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1 ROSALINA – A HEROÍNA DERROTADA Fernanda Gama Bezerra ...

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Cadernos de PÛs-GraduaÁ„o em Letras<br />

RESUMO<br />

<strong>ROSALINA</strong> ñ A HEROÕNA <strong>DERROTADA</strong><br />

1<br />

<strong>Fernanda</strong> <strong>Gama</strong> <strong>Bezerra</strong> *<br />

Este trabalho tem como objetivo compreender por que, de um modo ou de outro, a<br />

mulher È freq¸entemente castigada no palco da Ûpera. Para tanto, traÁar-se-· um<br />

paralelo entre a trajetÛria de algumas das mais cÈlebres figuras femininas do<br />

universo operÌstico e a de Rosalina, a heroÌna do romance ”pera dos mortos, de<br />

Autran Dourado. Ressalte-se que o termo ìÛperaî ser· considerado em sentido<br />

amplo, como gÍnero que ultrapassa os limites da m˙sica.<br />

PALAVRAS-CHAVE<br />

”pera. Mulher. Derrota.<br />

Com o fito de compreender por que, de um modo ou de outro, a mulher È<br />

freq¸entemente castigada no palco da Ûpera, este trabalho percorrer· a trajetÛria de algumas<br />

das mais cÈlebres figuras femininas do universo operÌstico, traÁando um paralelo com<br />

Rosalina, a heroÌna do romance ”pera dos mortos, de Autran Dourado.<br />

Ressalte-se que aqui se considerar· o termo ìÛperaî em sentido amplo, enquanto<br />

gÍnero que ultrapassa os limites da m˙sica. Afinal, mais do que um espet·culo musical, a<br />

Ûpera ìatende a uma necessidade do homem: a transmiss„o (...) das muitas e diferentes formas<br />

de drama com que se defronta a condiÁ„o humanaî (KOBB…, 1997, p. xiii).<br />

ConheÁamos as sofredoras, a comeÁar por Violeta ValÈry, da Ûpera La traviata, de<br />

Giuseppe Verdi. Apaixonada por Alfredo Germont, a cortes„ deixa a vida mundana e vai<br />

morar em uma casa de campo na companhia do amado. Tudo parece ir bem, atÈ o dia em que<br />

a ex-prostituta recebe a visita de Giorgio Germont. Em nome da reputaÁ„o da famÌlia, o pai de<br />

Alfredo pede o fim da uni„o. Violeta aceita o sacrifÌcio. O rapaz, ignorando o real motivo da<br />

separaÁ„o, e julgando-se traÌdo ñ ele supıe que ela voltou a exercer a antiga profiss„o ñ,<br />

humilha Violeta, atirando contra o seu rosto dinheiro para reembols·-la das despesas com a<br />

casa onde viveram. A heroÌna desmaia ñ È o auge do sofrimento. Mais tarde, Alfredo descobre<br />

a verdade e vai visit·-la, pedir perd„o. Todavia, n„o h· mais nada a fazer: a tosse, presente<br />

desde o ato I, tem fim. A traviata, a ëextraviadaí, a ëperdidaí, est· morta.<br />

* Aluna do Mestrado em Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie


As tÌsicas, porÈm, n„o s„o as ˙nicas que se debatem no palco da Ûpera. H· tambÈm as<br />

suicidas e, seguramente, Madame Butterfly, de Giacomo Puccini, figura entre as mais<br />

not·veis.<br />

ForÁada a exercer a funÁ„o de gueixa depois que seu pai se suicidou, Cio-Cio-San ñ ou<br />

Butterfly para os mais Ìntimos ñ ëcasa-seí com Pinkerton, um jovem oficial da Marinha norte-<br />

americana. Ela acredita na uni„o, sem saber que para o ëmaridoí tudo n„o passava de uma<br />

brincadeira, um passatempo enquanto estivesse em Nagasaki. Ridicularizada pela cidade e<br />

renegada pela famÌlia ñ na ausÍncia de um pai h· sempre um tio para cumprir o papel<br />

castrador ñ, Butterfly espera que um dia seu marinheiro volte para buscar a ela e ao filho, cuja<br />

existÍncia todos ignoram. Eis que o tempo passa e Pinkerton retorna ao Jap„o, desta vez<br />

acompanhado de uma elegante mulher, sua verdadeira esposa. A fr·gil borboleta compreende<br />

tudo e, resignada, resolve entregar o menino ao americano. Antes, porÈm, comete o haraquiri:<br />

fere-se mortalmente com a espada de seu pai ñ cuja l‚mina traz a inscriÁ„o ìmorrer com honra<br />

para n„o viver na desonraî ñ, arrasta-se atÈ o local onde o filho brinca e morre no momento<br />

em que Pinkerton entra para levar a crianÁa.<br />

Nem tÌsica, nem suicida. A Carmen, de Georges Bizet, tem um outro fim. Igualmente<br />

tr·gico. Igualmente definitivo. A jovem cigana È oper·ria em uma f·brica de cigarros em<br />

Sevilha. Atrevida, vol˙vel, insolente, logo no inÌcio da Ûpera envolve-se em uma briga e, para<br />

escapar ‡ pris„o, seduz o pacato Don JosÈ, o cabo respons·vel por vigi·-la. Este se encanta<br />

com o charme provocante da zÌngara e a deixa fugir, ficando preso em seu lugar. Depois, em<br />

uma taberna, os dois reencontram-se e Carmen o convence a unir-se a ela e a um bando de<br />

contrabandistas. Desesperadamente apaixonado, Don JosÈ È corroÌdo pelo ci˙me. A moÁa j·<br />

se cansou dele e agora sente-se atraÌda por Escamillo, o garbo toureiro. O ex-policial promete<br />

mat·-la, caso ela o troque pelo outro; a cigana nem se abala, n„o tem medo da morte.<br />

Transtornado, Don JosÈ cumpre a ameaÁa e a apunhala pelas costas, antes que ela<br />

ultrapassasse o port„o da arena onde assistiria a Escamillo tourear. A morte ocorre exatamente<br />

no momento em que o toureiro È aclamado pela multid„o em delÌrio.<br />

ìMortes violentas, mortes lÌricas, mortes suaves, mortes falantes ou silenciosas... (...)<br />

Mortas, mortas, t„o freq¸entementeî (CL…MENT, 1993, p. 68). Mas, nem sempre. Nem sÛ de<br />

cad·veres femininos se faz uma Ûpera. H· espaÁo tambÈm para as loucas ñ e elas brilham,<br />

tanto quanto as mortas.<br />

… o caso de Lucia di Lammermoor, a heroÌna da Ûpera homÙnima de Donizetti.<br />

EspÈcie de Julieta escocesa, Lucia est· no epicentro de um conflito entre duas famÌlias. Ama<br />

Edgar, mas È forÁada a se casar com outro. Durante a festa, os convidados na sala festejando,<br />

Lucia mata o esposo no quarto, no andar de cima da casa; desce as escadas, ainda usando o<br />

vestido de noiva, agora todo encharcado de sangue, e comeÁa a valsar e a cantar, sozinha,<br />

2


imaginando-se na companhia do amado. Um dueto sublime com um parceiro fantasma. Est·<br />

louca, È o que todos dizem, estupefatos.<br />

Seja a tuberculose, seja o suicÌdio, seja o homicÌdio, seja a loucura, seja por meio de<br />

um gl·dio milenar ou de um simples punhal, v·rios s„o os caminhos e expedientes que<br />

conduzem as personagens femininas a um mesmo fim: ìas mulheres no palco da Ûpera cantam<br />

invariavelmente sua eterna derrota. Jamais a emoÁ„o È t„o pungente quanto no momento em<br />

que a voz se eleva para morrerî (Ibidem, p. 12).<br />

As Ûperas anteriormente mencionadas, e tantas outras, apesar das particularidades,<br />

ìfalam das mulheres e de seu infort˙nioî, das ìmulheres presas de intrigas cruÈisî (Ibidem, p.<br />

16). Nesse ìespet·culo concebido para adorar, e tambÈm para matar, a personagem femininaî<br />

(Ibidem, p. 12), ìelas sofrem, elas gritam, elas morrem (...). Nenhuma se salva, ou t„o<br />

poucas...î (Ibidem, p. 19).<br />

O fato È que a Ûpera acostumou-se a ver a mulher como ornamento indispens·vel ñ a<br />

diva, a prima donna ñ e habituou-se, igualmente, a transferir para os homens os verdadeiros<br />

papÈis principais: compositores, regentes, metteurs en scËne, alÈm dos pais, dos tios, dos reis<br />

e de tantas outras figuras patriarcais que sÛ aceitam se calar momentaneamente, interrompidos<br />

pelas vozes agudas, lindas e efÍmeras das ìmulheres massacradasî (Ibidem, p. 35). Vozes<br />

que, contudo, ecoam, trazendo ‡ tona um surpreendente esquema psÌquico que repete<br />

interminavelmente a histÛria de uma mulher condenada por ter subvertido a ordem dos<br />

homens.<br />

Eis o ponto crucial; tudo gira em torno da subvers„o, da transgress„o cometida pelas<br />

mulheres. Sob esse prisma, a Ûpera È um espet·culo que ìperpetua um massacre ignorado,<br />

verrumado pela histÛriaî (Ibidem, p. 21), no qual as mulheres, ìquando contrariam sua funÁ„o<br />

familiar e ornamental, acabam punidas, decaÌdas, abandonadas ou mortasî (Ibidem, p. 14).<br />

Portanto, È imperioso que essas ìmulheres desobedientes que infringem as leisî (Ibidem, p.<br />

191) sejam punidas, castigadas. … a lei da Ûpera. Dura lex sed lex...<br />

Desde o prel˙dio, tudo È concebido para que a lei primordial ñ a lei da Ûpera ñ seja<br />

sempre cumprida e para que as ëindisciplinadasí sejam severamente punidas ñ seja pela morte,<br />

seja pela loucura. Os<br />

laÁos da trama servem para prender as personagens e conduzi-las ‡ morte por<br />

transgress„o. Transgressıes das regras familiares, das regras polÌticas, dos<br />

jogos do poder sexual e autorit·rio. (Ibidem, p. 18)<br />

… o que acontece com Violeta ValÈry, a cortes„ rom‚ntica; Madame Butterfly, a<br />

gueixa inocente; Carmen, a cigana saliente; Lucia, a esposa louca. … o que ocorre, tambÈm,<br />

com Rosalina na ”pera dos mortos.<br />

3


O ponto de intersecÁ„o entre essas e tantas outras heroÌnas de Ûpera È justamente o fato<br />

de elas terem transgredido regras impostas, determinadas por homens. Companheiras na<br />

derrota, ìas mortas, as sofredoras, as dilaceradasî s„o vÌtimas de ìum complÙ terrÌvel, vindo<br />

do comeÁo dos tempos, feito para trazer ‡ luz essas mulheres, vÌtimas de sua feminilidade,<br />

adoradas e odiadas, figuras simuladas de uma sociedade real demaisî (Ibidem, p. 17).<br />

A despeito das trajetÛrias diversas, as mulheres, na arena operÌstica, de algum modo<br />

ìtranspıem uma linha rigorosa invisÌvel, a linha que as torna insuport·veis, de tal modo que<br />

elas precisam ser castigadasî (Ibidem, p. 84, grifo nosso).<br />

Apesar de Rosalina ser a heroÌna de uma Ûpera que n„o foi concebida para ser<br />

encenada em um palco de teatro ñ e que, portanto, n„o conta com o apoio da m˙sica na<br />

construÁ„o dos sentidos ñ, guarda muitas semelhanÁas com as personagens femininas<br />

anteriormente citadas. Tanto uma quanto as outras percorrem caminhos que as levam ‡<br />

transgress„o, ao castigo e, conseq¸entemente, ‡ derrota.<br />

Rosalina, em especial, tem uma trajetÛria de vida bastante peculiar, repleta de detalhes<br />

que denunciam, desde o inÌcio, a iminÍncia de um epÌlogo tr·gico.<br />

Neta do famigerado Lucas ProcÛpio HonÛrio Cota e filha ˙nica de Jo„o Capistrano<br />

HonÛrio Cota e de Dona Genu, Rosalina nasceu apÛs uma longa sÈrie de tentativas frustradas:<br />

ìos filhos n„o vinham e n„o vingavam. Nasciam temporıes e mortos ou n„o iam alÈm de<br />

meio ano (...), a miuÁalha perdida, os frutos pecos (...)î (DOURADO, 1999, p. 29). Nem o<br />

casal nem a cidade acreditavam que aquele ciclo tÈtrico pudesse ser rompido. Mas um fruto<br />

finalmente vingou, juntando-se ao corpo daquela famÌlia e daquele infausto sobrado.<br />

O nascimento da menina trouxe ao solar um sopro de felicidade e de esperanÁa. AtÈ<br />

mesmo Quincas CirÌaco, ˙nico e leal amigo de Jo„o, arriscou sonhar um belo futuro para a<br />

afilhada, acreditando, em segredo, que aquele novo membro poderia mudar a sina daquela<br />

famÌlia e, quem sabe, amainar a sombra pesada do passado:<br />

Queria ver aquela, moÁa crescida, abrandar em beleza e graÁa o destino<br />

bruto e selvagem de Lucas ProcÛpio HonÛrio Cota. Nem de longe aqueles<br />

traÁos, aquelas sobrancelhas cabeludas que ainda estavam na cara de Jo„o<br />

Capistrano (Ibidem, p. 30)<br />

Artimanhas do mundo operÌstico. Rosalina n„o carregava no rosto as ìsobrancelhas<br />

cabeludasî do avÙ; tinha tudo para ìabrandarî o destino dos HonÛrio Cota. Entretanto, a neta<br />

de Lucas herdou um ìfardo pesado demaisî (CL…MENT, 1993, p. 172), assaz penoso: o fardo<br />

de todas as heroÌnas de Ûpera. Se nem de longe ìdona Genu e o coronel HonÛrio se<br />

permitiram pensar que podia ser um menino-homem, var„o, para continuar aquela linhagemî<br />

(DOURADO, 1999, p. 30) È porque tinha de ser uma menina a cumprir a sina, n„o sÛ daquela<br />

famÌlia, mas das mulheres na Ûpera. … a regra.<br />

4


O tempo foi passando e Rosalina foi crescendo. A menina ìencorpou, virou moÁaî<br />

(Ibidem, p. 31). N„o sendo mais crianÁa, estava pronta para cumprir a sua funÁ„o na Ûpera, o<br />

papel de protagonista. Enfim, o prel˙dio havia terminado; a Ûpera de fato ia comeÁar.<br />

Foi nessa Època que os planos de Jo„o Capistrano, atÈ ent„o secretos, de ingressar na<br />

vida polÌtica fracassaram; o filho de Lucas ProcÛpio passou a odiar a cidade e trancou-se no<br />

sobrado, tornando-se ìmais triste e ensimesmado do que eraî (Ibidem, p. 38-39).<br />

Essa tristeza profunda, esse ìÛdio manso, medido, magoadoî (Ibidem, p. 107)<br />

acabaram aproximando ainda mais pai e filha, e desse estreitamento nasceu um pacto<br />

silencioso, um acordo velado que influenciaria de modo definitivo a biografia da moÁa:<br />

Rosalina n„o quis se casar (...). Tinha de deixar a casa. Mesmo que n„o<br />

tivesse de deixar o sobrado, o pai ia ficar sozinho. Tinha de quebrar o trato<br />

que com certeza mesmo sem palavra os dois fizeram escondido. Abrir o<br />

coraÁ„o pros outros, as portas do sobrado pras visitas. O pai n„o pedia<br />

aquele sacrifÌcio, mas ela sabia que contrariando (...) atendia ao querer que<br />

ficava mais no fundo da alma dele. Contrariando, ela satisfazia, era a melhor<br />

filha do mundo. (Ibidem, p. 107, grifo nosso)<br />

Esse trato ìsem palavraî que pai e filha ìfizeram escondidoî foi estabelecido em um<br />

momento crucial da vida de Rosalina. Aos dezesseis anos, no instante em que o bot„o estava<br />

prestes a desabrochar, na iminÍncia de transformar-se em uma bela flor, a moÁa viu todas as<br />

possibilidades de uma vida que mal tinha comeÁado serem podadas. N„o se tratava apenas de<br />

um casamento, mas da oportunidade de viver fora do sobrado, alÈm dos limites do Largo do<br />

Carmo. Casar ou n„o era um mero detalhe. O cerne da quest„o era outro: Rosalina n„o poderia<br />

abrir ìo coraÁ„o pros outros, as portas do sobrado pras visitasî. AlÈm disso, a ìmelhor filha<br />

do mundoî n„o devia deixar o pai sozinho. N„o podia abandon·-lo, n„o podia desobedecer-<br />

lhe.<br />

Desse modo, Rosalina, a filha exemplar, a filha fiel, tomou para si uma dor que n„o<br />

era sua, um silÍncio que n„o era seu, apenas para agradar ao pai. E foi vestindo,<br />

gradativamente, uma m·scara, atr·s da qual se esconderia por um longo perÌodo: ìaquele<br />

mesmo ar casmurro e pesado, de dignidade ofendida, aquele Ûdio em surdina, duradouro, de<br />

quem nunca se esqueceî (Ibidem, p. 39). DaÌ a ficar enclausurada no sobrado, fechada em<br />

uma estufa, isolada do mundo, seria uma quest„o de tempo.<br />

Com a morte de Dona Genu, o insulamento de pai e filha acentuou-se e o primeiro<br />

relÛgio foi parado no sobrado; a partir de ent„o, o tempo ìseria sÛ a noite e o sol, as duas<br />

metades impossÌveis de pararî (Ibidem, p. 51).<br />

Quando Jo„o morreu, foi a vez de Rosalina, a ˙ltima integrante viva da famÌlia<br />

HonÛrio Cota, parar mais um relÛgio no sobrado, reiterando os gestos do pai:<br />

5


Rosalina descia as escadas, toda a sua figura bem maior do que era, a cabeÁa<br />

erguida, digna, soberba, que nem uma rainha ñ os olhos postos num fundo<br />

muito alÈm da parede, os passos medidos, nenhuma vacilaÁ„o (...).<br />

Abriu-se caminho para Rosalina. Quando a gente pensou que ela fosse<br />

primeiro para junto do pai, voltou-se para a parede e aquilo que ela trazia<br />

brilhante na m„o era o relÛgio de ouro do falecido Jo„o Capistrano HonÛrio<br />

Cota (...). Os relÛgios da sala estavam todos parados, a gente escutava as<br />

batidas do silÍncio (...). Foi assim que Rosalina fez, todos os gestos medidos:<br />

viu o pai no caix„o, o corpo coberto de flores, cruzou os dedos como quem<br />

ia rezar mas n„o rezou. S˙bito se voltou para onde tinha vindo. A gente viu<br />

tudo em silÍncio de igreja: Rosalina subia de novo as escadas, direitinho<br />

como desceu. (Ibidem, p. 41-42)<br />

Perturbadoramente semelhante ao ritual protagonizado por Jo„o na ocasi„o da morte<br />

de Dona Genu, este episÛdio È o primeiro solo de Rosalina no palco da Ûpera. Tudo È teatral<br />

nesta primeira apariÁ„o como estrela do ëespet·culoí: ela desce as escadas ìque nem uma<br />

rainhaî, ìa cabeÁa erguida, digna, soberba, (...) os passos medidos, nenhuma vacilaÁ„oî. A<br />

ëplatÈiaí, hipnotizada, abre caminho e Rosalina p·ra mais um relÛgio, reforÁando as ìbatidas<br />

do silÍncioî; depois, vai atÈ o esquife e olha o pai pela ˙ltima vez; tudo feito, volta para o<br />

quarto, sobe as escadas, ìdireitinho como desceuî.<br />

Assim È Rosalina: a filha exageradamente parecida com o pai, a moÁa diferente do<br />

resto da cidade, esquisita, exÛtica, estrangeira em sua prÛpria terra. E ela n„o È a ˙nica. As<br />

heroÌnas da Ûpera ser„o freq¸entemente estrangeiras, (...) o exotismo nem<br />

sempre È geogr·fico, pode estar assinalado por um detalhe, uma profiss„o,<br />

uma idade que se considera inadequada ‡ mulher. (CL…MENT, 1993, p. 84)<br />

… importante ressaltar que ser estrangeira, no universo operÌstico, n„o pressupıe,<br />

necessariamente, ser de outro lugar, de outro paÌs, mas ser exÛtica, excÍntrica, diferente. N„o<br />

se trata, portanto, de um deslocamento fÌsico, mas de um ìexÌlio interiorî (Ibidem, p. 95), que<br />

se materializa por meio de um detalhe, um pormenor, uma particularidade. Assim ocorre com<br />

a cortes„, com a gueixa e com a cigana. Assim acontece com Rosalina.<br />

Violeta ValÈry, por exemplo, ìn„o est· bem em parte algumaî, nem na vida mundana,<br />

nem na vida domÈstica ñ na qual experimentou um sopro de tranq¸ilidade, logo dissipado pela<br />

visita do pai burguÍs, que veio lembrar ‡ messalina que ali, na casa de campo, fingindo o<br />

papel de esposa, estava em ìterra estrangeiraî (Ibidem, p. 89), ocupando um lugar que n„o lhe<br />

pertencia, um posto ao qual n„o tinha direito. Em suma, traviata, extraviada, estrangeira.<br />

Mais complicada È a situaÁ„o de Madame Butterfly, duplamente estrangeira: enquanto<br />

oriental, È ìestrangeira ao Ocidenteî, representado na figura de Pinkerton; enquanto ëesposaí<br />

de um americano, torna-se ìestrangeira em seu prÛprio paÌsî (Ibidem, p. 84), negando a<br />

tradiÁ„o de seu povo.<br />

6


Todavia, dentre as heroÌnas de Ûpera, Carmen talvez seja a mais estrangeira, a mais<br />

exÛtica de todas. Cigana, nÙmade, ìvinda de todas as terrasî (Ibidem, p. 84), ìn„o estava ‡<br />

vontade em seu lugarî, n„o estava ‡ vontade em lugar algum; ìos ofÌcios que lhe convÈm s„o<br />

os ambulantes, ilegais, clandestinos, como o contrabando nas montanhasî (Ibidem, p. 72).<br />

Carmen, portanto, È a estrangeira por excelÍncia.<br />

Rosalina, por sua vez, n„o mudou de casa como Violeta, n„o quebrou nenhuma<br />

tradiÁ„o milenar como Butterfly nem ao menos chegou perto de levar uma vida nÙmade como<br />

Carmen. Mas, apesar de nunca ter ultrapassado os limites do Largo do Carmo e de jamais ter<br />

ido alÈm das janelas do sobrado apÛs a morte do pai, È t„o estrangeira quanto as outras. …<br />

justamente o isolamento, a necessidade de manter-se longe, afastada, que a torna t„o diferente<br />

do resto da cidade ñ uma estrangeira em sua terra natal, para sempre incompreendida. O povo,<br />

incapaz de captar a complexidade dessa figura e de aceitar o seu modo exÛtico de ser, deu o<br />

veredicto: ìsoberba mais pancadiceî (DOURADO, 1999, p. 79). E, assim, a imagem<br />

cristalizou-se: Rosalina, a orgulhosa, a estranha.<br />

Seja como for, o fato È que a filha de Jo„o Capistrano vivia encerrada em seu pal·cio,<br />

ìprisioneira da ang˙stiaî (CL…MENT, 1993, p. 106), submersa em um ìpoÁo de silÍncioî<br />

(DOURADO, 1999, p. 50) ñ depois da morte do pai, sua companhia di·ria passou a ser<br />

exclusivamente Quiquina, a criada muda. Todavia, Rosalina n„o era indiferente ao mundo<br />

exterior. Ao contr·rio, acompanhava tudo o que acontecia na cidade ñ ainda que nada<br />

acontecesse ñ, ìdesde sempre olhando detr·s das cortinasî (Ibidem, p. 13).<br />

Gradualmente, o terreno foi sendo preparado para a chegada de JosÈ Feliciano ñ mais<br />

conhecido como Juca Passarinho ñ, o intermedi·rio do destino, o mediador em cuja presenÁa<br />

ìse realizam os deslocamentos, as perturbaÁıes necess·riasî (CL…MENT, 1993, p. 181):<br />

bem que carecia de um homem empregado dentro de casa, pra limpar a horta<br />

(...); pra espantar os meninos que pulam o muro e jogam pedra, esses<br />

serviÁos, mas n„o podia ser dali, sÛ o homem vindo de outra cidade<br />

(DOURADO, 1999, p. 53, grifo nosso)<br />

Aos poucos, Quiquina deixou de ser suficiente e Rosalina sentiu a necessidade de mais<br />

um empregado, ìum homem (...) dentro de casaî. Contudo, somente uma pessoa vinda ìde<br />

outra cidadeî poderia entrar no sobrado; seu Ûdio por aquele povo era eterno, ordens do pai.<br />

Mas, e quanto ao pacto de jamais abrir ìas portas do sobrado pras visitasî (Ibidem, p. 107)?<br />

Rosalina distraÌda, Rosalina transgressora, Rosalina derrotada.<br />

Antes de encontrar o sobrado e conhecer Rosalina, a existÍncia de Juca resumia-se a<br />

ìtrabalhar um pouco de biscateiro e ganhar o que comer, e ent„o prosseguir a sua caminhadaî<br />

(Ibidem, p. 61). Seu patrimÙnio: uma ìpequena trouxa com suas roupas e poucos pertencesî<br />

(Ibidem, p. 60). Praticamente um cigano. Extrovertido, folgaz„o, gostava de inventar histÛrias,<br />

7


contar mentiras. AlÈm disso, tinha um ìdefeito na vistaî (Ibidem, p. 59) ñ n„o enxergava do<br />

olho esquerdo ñ e, constantemente, usava essa limitaÁ„o como pretexto para escapar ao<br />

trabalho pesado.<br />

Sendo assim, esse forasteiro, dono de caracterÌsticas t„o ëedificantesí, n„o poderia<br />

jamais ocupar, na Ûpera, o posto de um pai, um avÙ, um tio, um marido, os ìfortes das leis da<br />

sociedade civilî (CL…MENT, 1993, p. 181). Restava a ele representar os fracos, os<br />

estrangeiros, os excluÌdos, os ìmarginais de sempreî. Em suma, o trickster, o farsante, o<br />

brincalh„o, sempre ìfora-da-lei dos outrosî (Ibidem, p. 167), pertencente ao grupo dos<br />

homens que<br />

desatam, quebram, provocam curtos-circuitos, ziguezagues, desviam o<br />

pensamento reto e obstinado e o quebram em m˙ltiplos estilhaÁos (...). Com<br />

eles, os horizontes se deslocam, as montanhas mudam de forma, pontes se<br />

erguem, m„os se estendem. No palco da Ûpera, tendem ao fracasso, como as<br />

mulheres, porque o mundo ali representado n„o suporta transgress„o alguma,<br />

desvio algum que n„o seja duramente castigado. (Ibidem, p. 166)<br />

Esse È o papel de Juca na Ûpera. Sua funÁ„o: desatar os nÛs que prendiam Rosalina<br />

‡quela vida sufocante, quebrar barreiras, alargar limites e horizontes, provocar ìcurtos-<br />

circuitosî. Enfim, desestabilizar, romper o equilÌbrio prec·rio.<br />

Eis que ocorre o encontro decisivo ñ o inÌcio da derrota:<br />

J· se afastava quando uma voz chamou, Ùi moÁo, chega aqui. Uma voz clara,<br />

bonita (...). Era Rosalina, da janela. Protegida pela cortina (...). Pelo menos<br />

este n„o È daqui, pensou. Foi o que ele disse. De Paracatu, se ouviu bem.<br />

Gostou do feitio do homem, do seu jeito despachado, da fala f·cil. H· muito<br />

n„o ouvia fala humana. (DOURADO, 1999, p. 85)<br />

Dispensado por Quiquina, Juca j· se preparava para ir embora quando ìuma voz<br />

chamouî. Sem querer, Rosalina cometeu a primeira transgress„o: ìÙi moÁo, chega aquiî. Ele<br />

j· havia desistido, estava indo embora, quando ela o chamou. Um simples vocativo e, como<br />

conseq¸Íncia, uma retumbante derrota ñ a derrota de Rosalina, transgressora como as outras<br />

heroÌnas, ìportadora de um destino que n„o ser· jamais uma vida simples porque ao redor<br />

dela age, poderosamente, o efeito m·gico da Ûpera, magnificando todos os seus gestos e<br />

transformando-os em dramaturgiaî (CL…MENT, 1993, p. 39).<br />

Assim, o improv·vel aconteceu: a filha fiel rompeu o pacto, desobedeceu ‡ ordem do<br />

pai ñ abriu ìas portas do sobrado pras visitasî. Logo viria a segunda transgress„o, a definitiva:<br />

Rosalina abriria ìo coraÁ„o pros outrosî (DOURADO, 1999, p. 107).<br />

Pouco a pouco, a presenÁa de Juca foi tornando-se essencial:<br />

8


A voz de JosÈ Feliciano veio dar vida ao sobrado, encheu de m˙sica o oco<br />

do casar„o, afugentou para longe as sombras pesadas em que ela, sem dar<br />

muita conta, vivia. (...) De repente, acordada pelo canto, viu a solid„o que<br />

era a sua vida. Como foi possÌvel viver tanto tempo assim? (...) Ela estava<br />

virando coisa, se enterrava no oco do escuro, ela e o mundo uma coisa sÛ. E<br />

dentro dela rugia a seiva, a forÁa que atravÈs de verdes fusos d· vida (...). E a<br />

voz, que a princÌpio chegava a doer-lhe nos ouvidos, alta demais, acordou-a<br />

para a claridade, para a luz das coisas, para a vida. (Ibidem, p. 90-91)<br />

Mais do que ìdar vida ao sobradoî e encher ìde m˙sica o oco do casar„oî, mais do<br />

que romper um longo processo de reificaÁ„o ñ Rosalina ìestava virando coisaî ñ, a voz de<br />

Juca fez desabrochar uma flor ëpodadaí aos dezesseis anos, uma rosa dentro da qual ìrugia a<br />

seivaî. Ao dissipar as ìsombras pesadasî do passado, Juca ìacordou-a para a claridade, para a<br />

luz das coisas, para a vidaî. E ela, aos poucos, foi se soltando das amarras, libertando-se do<br />

pacto, recuperando a identidade. Rosalina, Rosalinda, ìRosavivaî (Ibidem, p. 155).<br />

Enfim, Rosalina abriu as portas de sua vida e escancarou ìo coraÁ„o pros outrosî<br />

(Ibidem, p. 107). Infringiu a regra capital, transpÙs a ˙ltima barreira rumo ‡ perdiÁ„o. Estava ‡<br />

beira do abismo; decidiu pular, entregar-se a Juca.<br />

Violando as leis, Rosalina ìarrisca-se na clandestinidadeî (CL…MENT, 1993, p. 96):<br />

durante o dia, a patroa; ‡ noite, a amante. Nessa altern‚ncia de ìdias absurdosî seguidos de<br />

ìnoites sem sentidoî (DOURADO, 1999, p. 200) estabeleceu-se uma relaÁ„o subterr‚nea ñ a<br />

ìvida partida ao meio: as noites e os diasî (Ibidem, p. 202).<br />

A ìsemente no corpoî (Ibidem, p. 197) foi uma quest„o de tempo. E eis que o bebÍ de<br />

Rosalina nasceu. Noite longa, parto difÌcil, apenas Quiquina para ajud·-la. Mas a filha de Jo„o<br />

tinha de sofrer, era chegada a hora do castigo, o inÌcio do fim. As dores vindo de hora em<br />

hora, Rosalina ìsofrendo muito demaisî (Ibidem, p. 231). Juca do lado de fora sem poder<br />

fazer nada, ìo coraÁ„o pesado de medo, de culpa, de penaî (Ibidem, p. 237).<br />

De repente, silÍncio. EpisÛdio obscuro; n„o fica claro se a crianÁa nasce morta ou È<br />

assassinada por Quiquina. O fato È que na noite seguinte a criada entregou a Juca um pacote<br />

ì˙mido, feito manchado de terraî, ìum peso estranho, uma umidade desagrad·vel, um cheiro<br />

nauseabundoî (Ibidem, p. 237-238). Indicou-lhe com as m„os o cemitÈrio. O destino do bebÍ<br />

de Rosalina ñ ìa semente na terraî (Ibidem, p. 197).<br />

ApÛs enterrar o filho, Juca voltou ao seu quarto decidido a ir embora do sobrado. Os<br />

olhos brilhando, molhados; n„o conseguiu segurar o choro. Essa foi sua ˙ltima apariÁ„o no<br />

palco da Ûpera; o pranto, sua derradeira ·ria. Juca, tambÈm derrotado, sai de cena.<br />

Enfim, o epÌlogo, o ˙ltimo ato da Ûpera: a ìcantiga de Rosalinaî (Ibidem, p. 241), o<br />

canto das loucas:<br />

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toda noite, h· muitas noites, tarde da noite, quando todos dormiam, Rosalina<br />

saÌa do sobrado e ia por aÌ cantando a sua cantiga no mundo da noite. O que<br />

ela falava na sua cantiga, nunca ninguÈm soube. (Ibidem, p. 245-246)<br />

N„o h· Ûpera sem m˙sica ñ mesmo quando n„o se trata de um espet·culo teatral, como<br />

È o caso da ”pera dos mortos. TambÈm aqui a protagonista canta no final, ìno momento<br />

crucial em que de repente o conflito aparece em toda a sua violÍnciaî. NinguÈm entende o que<br />

Rosalina canta: ìressoa a melodia sem a palavraî (CL…MENT, 1993, p. 33), o ìgrito de pura<br />

dorî (Ibidem, p. 93). A despedida, o ocaso de Rosalina. ìEssa È a sua hora, essa È a sua ·riaî<br />

(Ibidem, p. 97), o instante sublime da mulher na arena operÌstica: o momento da sonora<br />

derrota.<br />

Como em toda Ûpera, esse canto ìÈ perdedor (...). O universo vencedor È o outro, o do<br />

pai, o dos homens. (...) A derrota das mulheres est· garantidaî (Ibidem, p. 103-105), uma vez<br />

mais. Rosalina n„o est· sozinha; sua sina È a mesma de Violeta, Butterfly, Carmen, Lucia. Ao<br />

envolver-se com Juca, permitiu-se rir, chorar, sentir, tocar. Enfim, ousou viver. Essa È a sua<br />

ëculpaí, esse, o seu ëpecadoí. E se os homens s„o vencidos, como È o caso de Juca, ìÈ porque<br />

possuem algum traÁo quase imperceptÌvel de uma feminilidade sobre a qual a Ûpera jamais se<br />

enganaî (Ibidem, p. 34).<br />

Assim, ìa Ûpera encontra sua resoluÁ„oî (Ibidem, p. 98): È a filha que ìpıe um fim ‡<br />

histÛria da famÌlia (...), nessa Ûpera onde, como em todas as Ûperas, a mulher È afetada pelo sofrimento<br />

(...); ela, uma mulher, concluiî (Ibidem, p. 222). Coube a Rosalina ñ a filha, a mulher ñ concluir a<br />

Ûpera dos mortos, pÙr ìum fim ‡ histÛria da famÌliaî, um ponto final na gente HonÛrio Cota.<br />

REFER NCIAS BIBLIOGR¡FICAS<br />

CL…MENT, Catherine. A Ûpera ou a derrota das mulheres. TraduÁ„o de Rachel GutiÈrrez. Rio de<br />

Janeiro: Rocco, 1993.<br />

DOURADO, Autran. ”pera dos mortos. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.<br />

KOBB…, Gustave. KobbÈ: o livro completo da Ûpera. Editado pelo conde de Harewood. Rio de<br />

Janeiro: Jorge Zahar, 1997.<br />

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