Nova Marginal de Sesimbra - Área Metropolitana de Lisboa
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EDIÇÃO DA GRANDE ÁREA METROPOLITANA DE LISBOA TRIMESTRAL NÚMERO 16 2006<br />
1<br />
5<br />
MUNICÍPIOS<br />
<strong>Nova</strong> <strong>Marginal</strong><br />
<strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong><br />
DOSSIER TEMÁTICO<br />
Acelerar Roterdão<br />
Martin Aarts<br />
10<br />
12<br />
CULTURA<br />
Poetas do Tejo<br />
Manuela Fonseca<br />
GASTRONOMIA<br />
As Cal<strong>de</strong>iradas <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong><br />
Maria <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s Mo<strong>de</strong>sto<br />
<strong>Nova</strong> <strong>Marginal</strong> <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong>
MUNICÍPIOS<br />
<strong>Nova</strong> <strong>Marginal</strong> <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong><br />
Em <strong>Sesimbra</strong> a ligação entre a terra e o mar foi sempre<br />
<strong>de</strong>terminante. A íntima relação entre o vale, as falésias e a<br />
praia, caracteriza o anfi teatro natural on<strong>de</strong> a vila cresceu,<br />
dando protagonismo à pesca e à importância dos contactos<br />
marítimos com o exterior, em <strong>de</strong>trimento das difíceis ligações<br />
terrestres, que só na segunda meta<strong>de</strong> do século XX foram<br />
signifi cativamente melhoradas.<br />
É também <strong>de</strong>sse período a construção da marginal. O automóvel<br />
passa a ser progressivamente prepon<strong>de</strong>rante, invadindo as ruas<br />
e ruelas da antiga vila <strong>de</strong> pescadores.<br />
A <strong>de</strong>volução da marginal ao peão, e da rua ao cidadão, é uma<br />
exigência histórica e uma dívida a saldar com a “bela piscosa”...<br />
Intervenção em três fases<br />
O plano <strong>de</strong> reor<strong>de</strong>namento da marginal <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong> contempla<br />
três fases <strong>de</strong> intervenção.<br />
A primeira, do Largo Bombal<strong>de</strong>s às rochas do Caneiro, na Praia<br />
da Califórnia, iniciada em 2005, envolveu a requalifi cação da<br />
marginal nascente e a edifi cação <strong>de</strong> uma nova praça, com<br />
comércio e equipamento <strong>de</strong> apoio à Praia da Califórnia.<br />
2<br />
Esta fase fi cará concluída com um novo acesso à Praia da<br />
Califórnia, obra que tem parecer favorável do Parque Natural<br />
da Arrábida mas aguarda, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004, um parecer favorável<br />
do ICN.<br />
A marginal nascente é hoje a nova gran<strong>de</strong> praça central <strong>de</strong><br />
<strong>Sesimbra</strong>, expressão da afi rmação da vila. Um gran<strong>de</strong> passeio<br />
urbano valoriza o <strong>de</strong>senvolvimento equilibrado dos múltiplos<br />
usos instalados, constituído por uma plataforma <strong>de</strong> nível,<br />
que se alonga junto da amurada e viabiliza a circulação viária<br />
lenta, proveniente do centro, balizada por pequenas bolsas<br />
<strong>de</strong> estacionamento, geridas através <strong>de</strong> pinos retrácteis e um<br />
caminho pedonal adjacente ao limite edifi cado.<br />
Também para o sucesso <strong>de</strong>sta área contribuiu a qualida<strong>de</strong> da<br />
sua pavimentação, do mobiliário e da iluminação. A intervenção<br />
teve em conta as sugestões apresentadas no âmbito da<br />
discussão pública <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias para a marginal<br />
<strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong>, feita em 2002 e consubstanciada numa gran<strong>de</strong><br />
exposição que <strong>de</strong>correu no Auditório Municipal Con<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Ferreira e culminou numa sessão <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate público muito<br />
participada.<br />
FICHA TÉCNICA<br />
EDIÇÃO TRIMESTRAL DA AML, ANO IV, Nº16, 2006<br />
COORDENAÇÃO: Dalila Araújo<br />
COLABORAÇÃO: Arq.º Augusto Pólvora (Pres. C. M. <strong>Sesimbra</strong>), Martin Aarts, Dr.ª Sofia Cid, Prof. Manuela Fonseca, Mª <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s Mo<strong>de</strong>sto<br />
REDACÇÃO: Silas Oliveira | Fotos: <strong>Área</strong> <strong>Metropolitana</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, C. M. <strong>Sesimbra</strong>, Município <strong>de</strong> Roterdão, A2-Studio/KCAP Architect & Planners<br />
Rotterdam, Associação <strong>de</strong> Turismo <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong><br />
PRODUÇÃO: Escrita das I<strong>de</strong>ias<br />
PROPRIEDADE: <strong>Área</strong> <strong>Metropolitana</strong> <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong> - R. Carlos Mayer 2, R/C 1700 - 102 LISBOA<br />
TIRAGEM: 10 000 ex. | ISSN: 1645-7471<br />
DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
O projecto procurou respon<strong>de</strong>r a algumas das críticas então<br />
apresentadas, sem fugir ao conceito <strong>de</strong>senvolvido, assente na<br />
eliminação integral do estacionamento e na <strong>de</strong>volução do<br />
espaço público ao peão e às activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> recreio e lazer.<br />
Estando praticamente concluída a primeira intervenção, a<br />
Câmara Municipal procura agora soluções para a execução da<br />
segunda fase, que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Largo <strong>de</strong> Bombal<strong>de</strong>s ao monte<br />
do Macorrilho, junto à Praia do Ouro. A terceira e última<br />
intervenção inicia-se no monte do Macorrilho e prolonga-se<br />
até à doca.<br />
De referir que, em breve, avançarão duas intervenções<br />
integradas na segunda fase, que darão continuida<strong>de</strong> à <strong>Nova</strong><br />
<strong>Marginal</strong>. Incluem a Rua Cândido dos Reis, Largo António<br />
Baptista e Rua da Fortaleza, da autoria do Arquitecto Paulo<br />
Braula Reis, e a da Rua Jorge Nunes e Largo <strong>de</strong> Bombal<strong>de</strong>s, da<br />
autoria do Arquitecto Paulo A<strong>de</strong>lino. As propostas sugerem<br />
soluções originais que, apesar das linhas mo<strong>de</strong>rnas, têm um<br />
enquadramento perfeito na traça urbana antiga.<br />
Criação <strong>de</strong> estacionamento<br />
Consciente <strong>de</strong> que, para a valorização dos espaços exteriores,<br />
é essencial a criação <strong>de</strong> condições para a sua utilização<br />
multifuncional, em muitos casos impedida pela invasão do<br />
automóvel, a autarquia programou a construção <strong>de</strong> dois silos <strong>de</strong><br />
parqueamento localizados a nascente e a poente da marginal.<br />
➤➤<br />
MUNICÍPIOS<br />
3
MUNICÍPIOS<br />
4<br />
O parqueamento nascente, aberto ao público em 2005, está<br />
inserido no edifício Mar da Califórnia e conta com 500 lugares<br />
cobertos, escadas e elevadores <strong>de</strong> acesso à praia.<br />
O parqueamento poente, com 350 lugares cobertos, será<br />
localizado a nascente do Hotel do Mar num terreno junto à<br />
praia, e <strong>de</strong>verá ser concretizado nos próximos anos, a par <strong>de</strong><br />
uma unida<strong>de</strong> turística projectada para a mesma zona.<br />
Os dois silos, com acesso viário por Norte, permitem eliminar<br />
ou reduzir substancialmente o parqueamento e condicionar a<br />
circulação automóvel no centro histórico <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong>, tornando<br />
possível a sua reabilitação e o reor<strong>de</strong>namento faseado da<br />
marginal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Praia da Califórnia até à doca.<br />
<strong>Nova</strong> marginal movimentada<br />
Decorrido pouco mais <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a conclusão da obra,<br />
a nova marginal é já um dos locais mais movimentados <strong>de</strong><br />
<strong>Sesimbra</strong>. A requalifi cação permitiu o alargamento do passeio<br />
em vários metros, que benefi ciam o peão em <strong>de</strong>trimento do<br />
automóvel.<br />
Aproveitando as potencialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta zona, a Câmara tem<br />
vindo a dinamizar ao longo do ano, com particular incidência<br />
no Verão, inúmeras iniciativas <strong>de</strong> âmbito cultural, como a Feira<br />
do Livro, espectáculos musicais, activida<strong>de</strong>s no âmbito do Dia<br />
Internacional da Criança e acções em parceria com outras<br />
entida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> que é um bom exemplo a Exposição Internacional<br />
<strong>de</strong> Artes Plásticas.<br />
Como se esperava, a nova marginal contribuiu para aproximar<br />
a população da vila e do mar, proporcionando longos passeios<br />
numa zona cada vez mais viva e movimentada e com novas<br />
esplanadas.<br />
Um pormenor interessante a ter em conta: a plantação <strong>de</strong><br />
fl ora da região na zona nascente, que privilegiou o alecrim, o<br />
rosmaninho, a alfazema, o caril e outras espécies, cujos aromas<br />
<strong>de</strong>spertam os sentidos e proporcionam gran<strong>de</strong> proximida<strong>de</strong><br />
com a natureza.
Acelerar Roterdão<br />
Martin Aarts *<br />
Lenta, mas inevitavelmente, as activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> manufactura<br />
<strong>de</strong>saparecem da paisagem económica da socieda<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal,<br />
<strong>de</strong>slocando-se para os países on<strong>de</strong> a mão-<strong>de</strong>-obra é barata.<br />
Estas activida<strong>de</strong>s estão a ser substituídas pela economia do lazer<br />
e – cada vez mais – pelos serviços assentes no conhecimento.<br />
A única medida que uma cida<strong>de</strong> europeia po<strong>de</strong> tomar para<br />
sobreviver é concentrar-se neste tipo <strong>de</strong> serviços.<br />
Perante isto, se, por um lado, Roterdão parece estar a evitar esta<br />
transformação graças à sua economia portuária pujante, por<br />
outro nada podia estar mais longe da verda<strong>de</strong>. Actualmente, o<br />
porto tem uma necessida<strong>de</strong> premente <strong>de</strong> pessoal altamente<br />
qualifi cado. Basta pensar, por exemplo, na investigação e<br />
<strong>de</strong>senvolvimento levada a cabo no porto e em todos os balcões<br />
<strong>de</strong> bancos e seguradoras no centro da cida<strong>de</strong>.<br />
A transição da era industrial para a era do conhecimento é,<br />
em geral, muito mais complicada do que se possa imaginar. A<br />
rivalida<strong>de</strong> entre as cida<strong>de</strong>s europeias força-as a manterem-se<br />
atraentes para os trabalhadores do conhecimento, livres e sem<br />
compromissos. A cida<strong>de</strong> tem uma importância vital para este<br />
grupo, pois é o ambiente privilegiado para todos os que têm<br />
um estilo <strong>de</strong> vida criativo.<br />
Tal tem consequências claras para a socieda<strong>de</strong> urbana,<br />
caracterizada, por um lado, pelo enorme dinamismo da classe<br />
mais qualifi cada e, por outro, pela insatisfação dos menos<br />
qualifi cados <strong>de</strong>vido à perda, sobretudo, <strong>de</strong> benefícios sociais. (2)<br />
DOSSIER TEMÁTICO<br />
Numa altura em que a cida<strong>de</strong> per<strong>de</strong> algumas das suas velhas funções, outras terão, <strong>de</strong> alguma maneira, que as substituir. A especialização é<br />
a palavra-chave. Esta especialização dará azo a uma nova re<strong>de</strong> europeia <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s, em que todas competem entre si e ao mesmo tempo se<br />
complementam. Harm Tilman (1)<br />
Praça <strong>de</strong> Schouwburg<br />
Ao mesmo tempo, é também aqui que resi<strong>de</strong> a chave do êxito,<br />
porque é nas cida<strong>de</strong>s com maior sucesso que há uma maior<br />
procura do sector dos serviços, sector criador <strong>de</strong> postos <strong>de</strong><br />
trabalho para todos os que vivem nos arredores e trabalham<br />
no interior da cida<strong>de</strong>, inclusive para os menos qualifi cados. (3)<br />
A “caça” aos profi ssionais mais qualifi cados irrompeu não sem<br />
consequências. O factor mais importante para este grupo,<br />
quando chega a altura <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir o local <strong>de</strong> residência, para on<strong>de</strong><br />
regressa <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um dia <strong>de</strong> trabalho, é o nível <strong>de</strong> atracção<br />
da cida<strong>de</strong>. Por outras palavras, este grupo procura uma cida<strong>de</strong><br />
altamente “urbana”, com alojamento a preços acessíveis, uma<br />
comunida<strong>de</strong> tolerante e um ambiente cultural inovador. Com<br />
um centro on<strong>de</strong> as pessoas se possam encontrar. Neste contexto,<br />
torna-se vital a existência <strong>de</strong> restaurantes, bares, esplanadas<br />
agradáveis nos passeios e uma vida nocturna empolgante.<br />
Competição entre cida<strong>de</strong>s<br />
Roterdão está altamente focalizada na Europa, <strong>de</strong> uma forma<br />
corajosa e, porém, inevitável. Um passo mental signifi cativo para<br />
Roterdão foi abandonar a retórica da reconstrução que surgiu<br />
como resultado dos bombar<strong>de</strong>amentos durante a Segunda<br />
Guerra Mundial, que arrasaram completamente o centro da<br />
cida<strong>de</strong>. Depois <strong>de</strong> um longo e <strong>de</strong>morado período <strong>de</strong> construção,<br />
Roterdão passou a integrar <strong>de</strong> forma consciente o grupo <strong>de</strong><br />
cida<strong>de</strong>s activas. Cida<strong>de</strong>s que se <strong>de</strong>batem com uma nova realida<strong>de</strong><br />
económica. Estas cida<strong>de</strong>s estão actualmente a fl orescer. Não só<br />
porque estão a crescer, mas sobretudo porque continuam a ter a<br />
capacida<strong>de</strong> para se reinventarem. Hoje, o objectivo do projecto<br />
urbano é mo<strong>de</strong>rnizar, reorganizar e transformar a área urbana.<br />
Tudo ligado à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que é necessária uma intervenção mais<br />
activa para tornar a cida<strong>de</strong> mais agradável para viver e melhorar<br />
a sua viabilida<strong>de</strong>.<br />
A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sabrochará como resultado <strong>de</strong> uma combinação<br />
<strong>de</strong> três tipos <strong>de</strong> inovação: no domínio da cultura, no mundo da<br />
tecnologia e no domínio da administração pública. Nas três áreas,<br />
a aposta situa-se ao nível da criativida<strong>de</strong>, valor acrescentado e<br />
resultados tangíveis. (4)<br />
A História transformou-se no curriculum vitae da cida<strong>de</strong>. Os<br />
planos para o futuro utilizam esta qualida<strong>de</strong> intrínseca e utilizamna<br />
como potencial inalienável. Aquilo que todas estas cida<strong>de</strong>s<br />
têm em comum é o facto <strong>de</strong> só conseguirem competir se forem<br />
capazes <strong>de</strong> “angariar” as pessoas graças à “urbanicida<strong>de</strong>”, pois é<br />
aqui que se situam os pontos <strong>de</strong> encontro dos trabalhadores do<br />
conhecimento mo<strong>de</strong>rnos.<br />
➤➤<br />
5
DOSSIER TEMÁTICO<br />
Esplanadas na margem do rio<br />
As agradáveis esplanadas <strong>de</strong> passeio são tão importantes aqui<br />
quanto o ambiente cultural experimental. O raciocínio é o<br />
seguinte: se os estudantes acham que uma cida<strong>de</strong> é atraente,<br />
existem fortes probabilida<strong>de</strong>s que aí se queiram instalar<br />
<strong>de</strong> maneira permanente. As actuais leis da economia ditam,<br />
subsequentemente, que as empresas se estabeleçam on<strong>de</strong> os<br />
recursos humanos com elevada formação se sentem melhor.<br />
É óbvio que a activida<strong>de</strong> comercial estará sempre ligada ao<br />
conhecimento específi co fornecido pelos cursos <strong>de</strong> formação<br />
existentes na cida<strong>de</strong>.<br />
Ao <strong>de</strong>sempenhar o seu papel no âmbito do or<strong>de</strong>namento<br />
territorial, o Governo <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ocupar uma posição autónoma<br />
e terá que procurar a colaboração junto dos agentes da cida<strong>de</strong><br />
interessados. Trata-se, em primeira instância, <strong>de</strong> saber qual é o<br />
ADN económico da cida<strong>de</strong>. É necessário, em seguida, adaptar a<br />
cida<strong>de</strong> no sentido <strong>de</strong>sta po<strong>de</strong>r respon<strong>de</strong>r às exigências da ida<strong>de</strong>.<br />
Depois, a importância recai tanto na qualida<strong>de</strong> dos espaços<br />
públicos no centro como nos investimentos na cultura.<br />
Ao mesmo tempo, é imprescindível não esquecer a séria tarefa <strong>de</strong><br />
combate aos problemas sociais associados a esta nova realida<strong>de</strong><br />
económica. As cada vez maiores divisões no interior da socieda<strong>de</strong><br />
são o resultado da diferença nas oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> carreira, que<br />
variam consoante o nível <strong>de</strong> formação. Mas a formação também é<br />
necessária para a economia dos serviços, daí que sejam urgentes<br />
gran<strong>de</strong>s investimentos em escolas e na colocação <strong>de</strong> professores.<br />
A questão não é <strong>de</strong> saber SE Roterdão vai respon<strong>de</strong>r a todas<br />
estas exigências, porque muito simplesmente será obrigada a<br />
fazê-lo. A questão é saber ONDE é que Roterdão se <strong>de</strong>marcará,<br />
tanto ao nível económico como físico. É imprescindível a<br />
realização simultânea <strong>de</strong> estudos e acções para respon<strong>de</strong>r a<br />
esta questão.<br />
6<br />
Porta <strong>de</strong> acesso à Europa<br />
Na perspectiva <strong>de</strong> Roterdão, o ADN da cida<strong>de</strong> é indubitavelmente<br />
utilizado como alicerce para o futuro. Não se trata <strong>de</strong> uma<br />
ambição fi ctícia, mas sim <strong>de</strong> reforçar as qualida<strong>de</strong>s já existentes.<br />
Roterdão, que pertence ao Randstad Holland, juntamente com<br />
outras cida<strong>de</strong>s como Amesterdão, Haia e Utrecht, está bem ciente<br />
que tem <strong>de</strong> justifi car claramente o seu valor acrescentado. Só<br />
assim se perceberá <strong>de</strong> imediato que Roterdão é por excelência<br />
uma cida<strong>de</strong> portuária. (i.e. Uma porta <strong>de</strong> acesso à Europa)<br />
Mas, tal como já referido, o impacto económico do porto alterouse.<br />
Não se trata apenas <strong>de</strong> ampliar o porto para reforçar a sua<br />
posição competitiva internacional, intensifi cando as activida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
alto mar; verifi ca-se também uma intensifi cação notória <strong>de</strong> outras<br />
activida<strong>de</strong>s portuárias, que se refl ectem nomeadamente no reforço<br />
da Investigação e Desenvolvimento na indústria petroquímica.<br />
Além disso, a transformação das áreas portuárias adjacentes à<br />
cida<strong>de</strong> está orientada para a inovação e expansão da economia do<br />
porto. Estão praticamente a transformar-se em tradicionais cida<strong>de</strong>s<br />
portuárias, on<strong>de</strong> os indivíduos vivem e trabalham. O interior da<br />
cida<strong>de</strong> continua a <strong>de</strong>sempenhar um papel enquanto localização<br />
prestigiada para se<strong>de</strong>s <strong>de</strong> empresas e como centro <strong>de</strong> negócios<br />
para activida<strong>de</strong>s bancárias e <strong>de</strong> seguros relacionadas com o porto.<br />
A inovação continua a <strong>de</strong>sempenhar o seu papel no porto, mas<br />
hoje em dia há cada vez menos trabalho para os menos qualifi cados<br />
e uma oferta cada vez maior para os altamente qualifi cados. A<br />
cooperação com as instituições <strong>de</strong> conhecimento <strong>de</strong> Roterdão e<br />
<strong>de</strong> Delft é cada vez mais importante neste contexto.<br />
Deverão surgir também novos pilares económicos. O Centro<br />
Médico Erasmus <strong>de</strong> Roterdão, juntamente com a Universida<strong>de</strong><br />
Técnica <strong>de</strong> Delft, por exemplo, entrevê oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gerar<br />
activida<strong>de</strong>s comerciais relacionadas com a Medicina/Tecnologia<br />
na zona entre Delft e Roterdão. Oportunida<strong>de</strong>s essas que já<br />
foram utilizadas com proveito por Delft.<br />
Por último, e igualmente importante, Roterdão dispõe <strong>de</strong><br />
um mercado fl orescente para artes aplicadas. Tal <strong>de</strong>ve-se<br />
prioritariamente aos institutos baseados na cida<strong>de</strong>, mas também ao<br />
carácter internacional da cida<strong>de</strong> portuária. Roterdão é, a título <strong>de</strong><br />
exemplo, A capital da arquitectura dos Países Baixos; por um lado<br />
existe a UT <strong>de</strong> Delft, o Instituto <strong>de</strong> Arquitectura <strong>de</strong> Roterdão, o<br />
Instituto Berlage, o Museu <strong>de</strong> Arquitectura, a Bienal <strong>de</strong> Arquitectura<br />
<strong>de</strong> Roterdão e, por outro, os gabinetes <strong>de</strong> arquitectura OMA (Rem<br />
Koolhaas), MVRDV e Neutelings Riedijk, que servem <strong>de</strong> íman para<br />
atrair os estudantes <strong>de</strong> arquitectura do mundo inteiro. Outros<br />
aspectos das artes aplicadas estão também em curva ascen<strong>de</strong>nte,<br />
tal como a fotografi a e o <strong>de</strong>sign, tendo como fi guras <strong>de</strong> proa Hans<br />
Werlemann, Hella Jongerius e Joep van Lieshout.<br />
Uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve fazer-se notar<br />
As cida<strong>de</strong>s que querem ser competitivas não têm outra escolha<br />
senão tornar-se imediatamente atraentes e publicitar os seus<br />
dotes. A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve fazer-se notar e, ao mesmo tempo, cativar<br />
as pessoas. Este último aspecto é importante, pois é o sinal
inequívoco <strong>de</strong> que as pessoas querem continuar a viver na<br />
cida<strong>de</strong>. Uma das condições sine qua non é a existência <strong>de</strong> uma<br />
comunida<strong>de</strong> tolerante. Mas uma cida<strong>de</strong> tem <strong>de</strong> possuir uma<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria que seja o orgulho justifi cado da elite urbana.<br />
Na maioria das cida<strong>de</strong>s bem sucedidas, esta i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria é<br />
cunhada pelo interior da cida<strong>de</strong>. Em nenhuma outra zona é a cida<strong>de</strong><br />
tão autêntica, tão gran<strong>de</strong> a concentração e diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> esplanadas<br />
agradáveis, <strong>de</strong> restaurantes, lojas, cinemas, teatros e museus.<br />
Uma coisa é sentir-se orgulhoso da sua cida<strong>de</strong>, outra coisa é<br />
a prova dos nove. Um indício muito revelador acerca <strong>de</strong> uma<br />
cida<strong>de</strong> é o facto <strong>de</strong> uma proporção signifi cativa da sua população<br />
estudantil se instalar permanentemente na cida<strong>de</strong> após ter<br />
terminado os estudos. Os licenciados procuram trabalho, mas<br />
muitos tornam-se empresários. Acresce que uma cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />
uma população altamente qualifi cada queira viver também atrai<br />
novas empresas, tal como já mencionado.<br />
A autenticida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Roterdão po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scrita sobretudo pelo<br />
facto <strong>de</strong> ser uma cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna junto ao rio Maas. A este<br />
rio <strong>de</strong>ve a cida<strong>de</strong> a sua razão <strong>de</strong> ser e a sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. O rio<br />
constitui, em termos físicos, o principal elemento estruturante da<br />
cida<strong>de</strong>. A importância do rio revela-se <strong>de</strong> várias maneiras, mas a<br />
mais visível encontra-se na frente ribeirinha no centro da cida<strong>de</strong>.<br />
O espaço abre-se na sua imensidão graças ao rio, mas também<br />
graças às antigas zonas do porto que se estão a transformar,<br />
lenta mas inevitavelmente, em áreas urbanas e que, apesar do<br />
bombar<strong>de</strong>amento <strong>de</strong> que foram alvo, representam séculos <strong>de</strong><br />
história, quanto mais não seja <strong>de</strong>vido à sua estrutura robusta.<br />
O rio é <strong>de</strong> todos os que lá vivem, pertence aos habitantes <strong>de</strong><br />
Roterdão e a TODOS os que a visitam. O que signifi ca que a<br />
Praia fl uvial<br />
Cafe Rotterdam<br />
DOSSIER TEMÁTICO<br />
zona ribeirinha já é o domínio público mais atraente na cida<strong>de</strong> e<br />
na região. (ie. maratonas, praia, piqueniques). As autorida<strong>de</strong>s estão<br />
a <strong>de</strong>senvolver uma estratégia diferenciada relativamente à divisão<br />
<strong>de</strong> programas públicos. Sempre que, como actualmente, não há<br />
verbas para fi nanciar espaços e equipamentos públicos <strong>de</strong> alta<br />
qualida<strong>de</strong> para a manutenção da zona ribeirinha, são criadas<br />
soluções temporárias. Todos os Verões, por exemplo, é criada<br />
uma praia temporária ao longo do cais De Boompjes (a avenida<br />
principal junto ao rio). O enorme sucesso da praia é a prova <strong>de</strong><br />
que o rio e a cida<strong>de</strong> estão geneticamente ligados e que há uma<br />
gran<strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> utilizar a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> diferentes maneiras.<br />
Uma das estratégias <strong>de</strong> maior êxito é a atenção dada à nova<br />
política <strong>de</strong> habitação. O carácter urbano <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>vese<br />
essencialmente aos seus habitantes e Roterdão ainda tem<br />
muito trabalho a fazer neste domínio. No respeito da tradição <strong>de</strong><br />
Roterdão, estes novos empreendimentos surgem muitas vezes sob<br />
a forma <strong>de</strong> construção em altura (i.e red apple, Wilhelminapier). Esta<br />
é uma forma <strong>de</strong> habitação altamente valorizada, porque expressa o<br />
estatuto e a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, mas também porque a<br />
construção em altura é feita no local certo, <strong>de</strong>signadamente junto<br />
às infra-estruturas urbanas que conduzem ao centro da cida<strong>de</strong>.<br />
Neste sentido, existem poucos prece<strong>de</strong>ntes na Europa, daí que<br />
promotores e investidores se <strong>de</strong>sloquem frequentemente a<br />
<strong>Nova</strong> Iorque ou a Chicago para uma visita <strong>de</strong> reconhecimento.<br />
Alguns exemplos: Wiel Arets construiu duas torres gémeas junto à<br />
Ponte Erasmus, os Arquitectos H&M conceberam três torres em<br />
Wijnhaveneiland, numa das margens do rio, e Mecanoo <strong>de</strong>senvolveu<br />
uma torre resi<strong>de</strong>ncial (Montevi<strong>de</strong>o) na outra margem.<br />
Mas a zona ribeirinha precisa <strong>de</strong> melhorar ainda mais. Um dos<br />
principais objectivos no sentido <strong>de</strong> aumentar a “sensação <strong>de</strong><br />
centro” é precisamente duplicar a actual população <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong><br />
trinta para sessenta mil pessoas.<br />
7<br />
➤➤
DOSSIER TEMÁTICO<br />
É por esta razão que a construção nunca pára na frente ribeirinha. Estão<br />
a ser/ ou serão brevemente edifi cadas as torres resi<strong>de</strong>nciais concebidas<br />
por OMA, KCAP, Siza e Cruz y Ortiz. Ao continuar a enveredar por<br />
este caminho, Roterdão faz jus à sua fama <strong>de</strong> “cida<strong>de</strong> das torres” dos<br />
Países Baixos. Nos próximos <strong>de</strong>z anos, as actuais 25 torres po<strong>de</strong>rão<br />
duplicar e, tal como já referido, a gran<strong>de</strong> maioria será resi<strong>de</strong>ncial.<br />
Todos estes planos são imprescindíveis para se conseguir uma<br />
melhor fusão entre as funções urbanas. Com novos resi<strong>de</strong>ntes é<br />
possível uma maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instalações <strong>de</strong> lazer que sejam<br />
atraentes. Para além disso, faz crescer a pressão nos teatros<br />
e museus existentes. Por sua vez, esta pressão faz crescer o<br />
entusiasmo naqueles que participam <strong>de</strong>sta evolução. Aqueles que<br />
vivem no centro são, neste sentido, os que marcam a vida cultural.<br />
Mas a questão que se coloca é <strong>de</strong> saber se os trabalhadores<br />
do conhecimento se querem ligar a esta Roterdão. E será que<br />
uma frente ribeirinha forte é uma forma <strong>de</strong> atingir esta ambição?<br />
Estudos revelam que os jovens profi ssionais gostam <strong>de</strong> viver no<br />
centro da cida<strong>de</strong>, mas que estão igualmente conscientes <strong>de</strong> que<br />
não po<strong>de</strong>m pagar os elevados preços <strong>de</strong> alojamento pedidos<br />
nas torres resi<strong>de</strong>nciais no centro da cida<strong>de</strong>. Contudo, esta forte<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um centro <strong>de</strong> cida<strong>de</strong> vivo é importante para eles.<br />
O querer fazer parte <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> é um factor <strong>de</strong> relevo.<br />
As áreas perto do centro são hoje consi<strong>de</strong>radas igualmente<br />
atraentes já que o centro da cida<strong>de</strong>, incluindo a zona ribeirinha, se<br />
tem vindo a <strong>de</strong>senvolver com êxito. Mas os critérios permanecem<br />
exigentes. O alojamento <strong>de</strong>ve situar-se a não mais <strong>de</strong> cinco minutos<br />
do centro em bicicleta, numa zona on<strong>de</strong> viva uma massa crítica <strong>de</strong><br />
habitantes do mesmo “grupo” e com uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que possa<br />
ainda ser consi<strong>de</strong>rada tipicamente <strong>de</strong> Roterdão. Como resultado,<br />
apenas os típicos bairros do século <strong>de</strong>zanove à volta do centro<br />
8<br />
Wilhelminapier: <strong>Nova</strong>s áreas <strong>de</strong> habitação e serviços no Porto <strong>de</strong> Roterdão<br />
são verda<strong>de</strong>iramente populares. O processo <strong>de</strong> “gentrifi cação”<br />
que está numa fase bastante avançada nesta zona signifi ca que a<br />
área da qual a cida<strong>de</strong> se po<strong>de</strong> orgulhar cresceu consi<strong>de</strong>ravelmente.<br />
Para além disso, o número <strong>de</strong> bairros realmente problemáticos<br />
diminuiu, tornando possível uma política focalizada.<br />
O investimento numa frente ribeirinha <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, em<br />
Roterdão, signifi ca um investimento num verda<strong>de</strong>iro íman, porque<br />
sabemos que não é possível conseguir “mais Roterdão” do que<br />
isto. Roterdão <strong>de</strong>ve ser o tal íman com o qual todos se possam<br />
i<strong>de</strong>ntifi car, mas que po<strong>de</strong> igualmente ser usado a qualquer hora do<br />
dia para lazer e entretenimento. Não é por acaso que Roterdão<br />
é a cida<strong>de</strong> escolhida para a realização do festival dos portos e <strong>de</strong><br />
muitos mais eventos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Carnaval <strong>de</strong> Verão à maratona.<br />
A cida<strong>de</strong> do futuro será cada vez mais um local “24 horas”. O<br />
horário <strong>de</strong> trabalho é cada vez mais fl exível e as pessoas querem<br />
ter a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r comer, beber ou sair a qualquer hora.<br />
Nenhuma cida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser encarada seriamente se não possuir<br />
bibliotecas famosas, museus e teatros; mas os equipamentos<br />
públicos on<strong>de</strong> todos se possam divertir no dia a dia estão a<br />
ganhar cada vez maior importância. Roterdão <strong>de</strong>ve gran<strong>de</strong> parte<br />
da sua fama, por exemplo, à sua cultura jovem <strong>de</strong>sinibida, com<br />
discotecas como a Now & Wow.<br />
A frente ribeirinha <strong>de</strong>sempenha aqui um papel-chave, porque é a prova<br />
clara <strong>de</strong> que nos encontramos numa cida<strong>de</strong> portuária internacional.<br />
* Director do Departamento <strong>de</strong> Ambiente do Município <strong>de</strong> Roterdão<br />
Fontes:<br />
Martin Aarts, Ben Maandag: Acelerar Roterdão, stad in versnelling (1)<br />
Richard Sennet: Respeito (2)<br />
Richard Florida: A ascensão da classe criativa (3)<br />
Peter Hall: Cida<strong>de</strong>s na civilização (4)<br />
FPW-Katendrecht
O Cabo Espichel<br />
Erguendo-se sobranceiro ao Oceano, sujeito às agruras das águas<br />
e dos ventos, o Cabo Espichel alberga o conjunto monumental<br />
do Santuário <strong>de</strong> Nossa Senhora da Pedra da Mua, consi<strong>de</strong>rado o<br />
mais importante do concelho <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong> e ainda hoje <strong>de</strong>stino<br />
<strong>de</strong> romaria anual.<br />
O conjunto arquitectónico inclui a Ermida da Memória e a Igreja<br />
Seiscentista <strong>de</strong> Nossa Senhora do Cabo, la<strong>de</strong>ada por uma fi la <strong>de</strong><br />
alojamentos para peregrinos – a Casa dos Círios, ou simplesmente<br />
Hospedarias -, que formam o Terreiro. Ao fundo po<strong>de</strong> avistar-se<br />
um cruzeiro; um pouco mais longe encontra-se a Casa da Água,<br />
que recebia a água trazida por aqueduto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Azóia, e possuía<br />
um poço e dois tanques para dar <strong>de</strong> beber aos animais.<br />
A Ermida para os mareantes remonta a 1410, ano em que foi<br />
<strong>de</strong>scoberta na extremida<strong>de</strong> do Cabo Espichel a venerada imagem<br />
<strong>de</strong> Nossa Senhora do Cabo, por dois velhos da Caparica e <strong>de</strong><br />
Alcabi<strong>de</strong>che, que em sonhos coinci<strong>de</strong>ntes foram avisados por Deus.<br />
Diz a lenda que Nossa Senhora teria sido conduzida da praia até<br />
ao planalto por um animal <strong>de</strong>signado por “Mua”, cujas pegadas<br />
fi caram gravadas nas rochas. Na realida<strong>de</strong>, o trilho que sobe<br />
da falésia faz parte <strong>de</strong> um importante conjunto <strong>de</strong> jazidas <strong>de</strong><br />
icnofósseis, que incluem pegadas <strong>de</strong> dinossauros saurópo<strong>de</strong>s.<br />
A Ermida da Memória, uma capela <strong>de</strong> planta quadrada coberta<br />
por cúpula boleada, tem o interior revestido por silhar <strong>de</strong><br />
azulejos setecentistas, representando o milagre <strong>de</strong> Nossa<br />
Senhora do Cabo, a construção da igreja e das hospedarias.<br />
A igreja foi construída em 1701/1707 por iniciativa <strong>de</strong> D. Pedro<br />
II. A fachada principal é enquadrada por duas torres sineiras<br />
e rematada por um frontão triangular, <strong>de</strong>corado com volutas.<br />
PATRIMÓNIO<br />
Penetrando no templo através do guarda-ventos <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira<br />
do Brasil, <strong>de</strong>paramo-nos com uma nave ampla, coberta por<br />
falsa abóbada <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira pintada com a Assunção da Virgem,<br />
obra executada por Lourenço da Cunha.<br />
À volta da igreja foram crescendo mo<strong>de</strong>stas casas para receber<br />
os peregrinos, que, em 1715, <strong>de</strong>ram lugar à construção das<br />
hospedarias com sobrados e lojas, também conhecidas como<br />
as casas dos círios. No entanto, só entre 1745 e 1760 foram<br />
ampliadas para as dimensões actuais. Numa lápi<strong>de</strong> junto à porta<br />
da igreja po<strong>de</strong> mesmo ler-se: “Casas <strong>de</strong> N. Sra. <strong>de</strong> Cabo feitas<br />
por conta do Sírio dos Saloios no ano <strong>de</strong> 1757 p. acomodação<br />
dos mordomos que vierem dar bodo”.<br />
A cerca <strong>de</strong> 600 metros do santuário, ergue-se o farol do Cabo<br />
Espichel, uma torre hexagonal <strong>de</strong> grossas pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> alvenaria.<br />
Data <strong>de</strong> 1790 e foi mandado construir na sequência <strong>de</strong> um<br />
alvará pombalino da Junta Geral da Fazenda, <strong>de</strong> 1758. No fi nal<br />
do séc. XIX o corpo do edifício anexo à torre foi aumentado<br />
para ambos os lados.<br />
9
CULTURA À BEIRA RIO<br />
Poetas do Tejo<br />
Manuela Fonseca *<br />
10<br />
Poetas, muitos, entre a nossa gente: na vida, no trabalho tantas<br />
vezes duro, na esperança no porvir, na projecção <strong>de</strong> sonhos nos<br />
fi lhos, na transmissão <strong>de</strong> valores. Poetas à beira-mar e à beira-rio,<br />
construtores <strong>de</strong> sonhos nas acções, nas palavras feitas acções.<br />
Poetas, produtores <strong>de</strong> beleza e <strong>de</strong> sonhos, o Atlântico e o Tejo<br />
como testemunhas da criação.<br />
Mulheres, anos e anos a caminho <strong>de</strong> <strong>Lisboa</strong>, o lar na outra margem,<br />
as crianças no barco, o jardim-<strong>de</strong>-infância, a escola tão perto<br />
quanto possível do local <strong>de</strong> trabalho da progenitora. Mulheres ao<br />
lado das crianças, os trabalhos <strong>de</strong> casa feitos à pressa, livros no<br />
colo das mães, os conselhos e achegas <strong>de</strong>stas, os lápis afi ados,<br />
os ca<strong>de</strong>rnos, mais ou menos cuidados, o fi m da viagem, curta e<br />
impertinente. Novo dia <strong>de</strong> labor, os meninos e as meninas longe<br />
<strong>de</strong> casa, das suas ruas e bairros; fi cam tão perto quanto possível<br />
das mães, o encontro à tardinha, no fi m das aulas, das ofi cinas<br />
escolares e dos trabalhos conotados (ainda) com a Mulher.<br />
Uma corrida até ao barco, a rotina <strong>de</strong>sgastante que nem poupa<br />
os mais pequenos, já cansados pelos dias que podiam ser<br />
<strong>de</strong> (mais) brinca<strong>de</strong>ira, outros passos até aos autocarros e mais<br />
tempo <strong>de</strong> ansieda<strong>de</strong>, não vá o próximo transporte estar cheio.<br />
Entre o nervosismo e o cansaço do passado e do futuro já ali,<br />
as mulheres e as crianças dormitam, no regresso, embaladas pela<br />
ondulação do Tejo, nem sempre amiga, afagadas pelo cansaço.<br />
Poetas que foram os meninos-alunos e as meninas-alunas <strong>de</strong> Maria<br />
Rosa Colaço, enquanto jovem professora primária, docente,<br />
pedagoga e artista da palavra que encontrei, há trinta e cinco<br />
anos, indirectamente, em <strong>Lisboa</strong>, num estabelecimento comercial<br />
feito livraria, através da quinta edição <strong>de</strong> A Criança e a Vida,<br />
monumento à infância, à educação, ao <strong>de</strong>senvolvimento proporcionado<br />
por esta, à língua feita criação. No Prefácio, a mestra, que<br />
<strong>de</strong>scobrira a riqueza das palavras infantis na orla do rio dos que<br />
queriam tempos mais felizes, referia esses alunos sem privilégios:<br />
“Não eram génios, nem poetas, nem meninos prodígios. Eram<br />
fi lhos <strong>de</strong> pescadores, <strong>de</strong> varinas, <strong>de</strong> ladrões-<strong>de</strong>-coisas… essenciais-ao-dia-a-dia.<br />
Moravam em casas com buracos e dormiam<br />
nos barcos, no vão das portas, nos <strong>de</strong>graus da doca, em qualquer<br />
sítio.” 1<br />
Meninos-alunos e meninas-alunas que, estimulados pela professora<br />
que acreditava na suas possibilida<strong>de</strong>s, comunicacionais e estéticas,<br />
enquanto utentes das palavras, assim escreviam:<br />
“vou viajando num barco <strong>de</strong> morte<br />
vou andando sem andar<br />
não tenho passaporte<br />
não tenho luar” 2<br />
(A dor – feita retórica – enfeitando a tristeza)
“se me levassem nos braços para o céu com se fosse uma gaivota,<br />
essa era a minha melhor prenda <strong>de</strong> Natal.” 3<br />
(A comparação do ser poético com a ave marinha, motivo <strong>de</strong><br />
liberda<strong>de</strong> reinventado)<br />
Maria Rosa Colaço, criadora <strong>de</strong> sentimentos, cores, personagens<br />
e cenários, Maria Rosa Colaço, pioneira, o Tejo inspirador,<br />
arquitecta paciente <strong>de</strong> almas e palavras, as suas, as<br />
dos pupilos e pupilas, nadando contra a corrente política do<br />
situacionismo (cobar<strong>de</strong>) <strong>de</strong> então, na <strong>de</strong>scoberta daquelas<br />
crianças. Obreira do imaginário das mesmas, em altura <strong>de</strong><br />
ditadura – a que tinha os olhos e ouvidos sempre atentos a<br />
qualquer manifestação <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, impedindo-a que chegasse<br />
ao País, às suas escolas e crianças. Liberda<strong>de</strong> ainda<br />
mais perigosa (para aqueles olhos e ouvidos doentes) se<br />
inventada pelos miúdos. Liberda<strong>de</strong> à beira-Tejo no imaginário<br />
construído por essas crianças, <strong>de</strong>vido ao profissionalismo,<br />
atenção e coragem da Maria Rosa.<br />
O poema-feito-vida da professora Maria Rosa Colaço e dos pequenos<br />
e pequenas que fez <strong>de</strong>sabrochar e que educou ligou-se<br />
ao imaginário. Como refere Postic: “Pelo imaginário a criança <strong>de</strong>scobre<br />
laços entre si e o mundo, interioriza signifi cações. O céu<br />
torna-se o infi nito; a noite, o mistério.” 4 Foi um feito pedagógico<br />
notável porque ainda hoje, nas socieda<strong>de</strong>s livres e <strong>de</strong>mocráticas,<br />
os processos <strong>de</strong> ensino / aprendizagem que promovem a<br />
imaginação têm escolhos no seu <strong>de</strong>senvolvimento, consi<strong>de</strong>rando<br />
<strong>de</strong> novo as palavras avisadas <strong>de</strong> Postic: “Na escola, a imaginação<br />
da criança é incessantemente retida, refreada pelas activida<strong>de</strong>s<br />
que se lhe propõem. Quando ela é solicitada, permanece sob<br />
vigilância, tanto no domínio do texto quanto no das activida<strong>de</strong>s<br />
principais.” 5<br />
CULTURA À BEIRA RIO<br />
Imaginámos, as crianças que fomos, os olhos habituados ao Tejo<br />
que nos moldou, na observação das fotografi as <strong>de</strong> Mestre Augusto<br />
Cabrita que (também) o imortalizou, pontes físicas que<br />
melhor unissem as suas margens, não a esquerda e a direita<br />
mas margens, apenas. De progresso e fraternida<strong>de</strong>. Os políticos<br />
(também para isso os elegemos), os cientistas, os técnicos e os<br />
operários têm-nas materializado, também eles poetas com outra<br />
inspiração, fazedores <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos tornados matéria, artífi ces <strong>de</strong><br />
um <strong>de</strong>senvolvimento que nos junta na diversida<strong>de</strong>, olhando e<br />
vivendo um rio com riquezas novas.<br />
O Tejo, esta parte da nossa vida, não esquecerá a professoraquase-menina,<br />
aqui chegada há quase cinquenta anos, oriunda<br />
do Alentejo cujo aroma nos entranha com poejo e dignida<strong>de</strong>.<br />
Professora que, na invenção <strong>de</strong> mais afazeres para além do Tejo, o<br />
ligou a rios africanos que se cruzam com a nossa História, tirando,<br />
certamente, crianças da marginalida<strong>de</strong> e comungando com elas<br />
da riqueza maior, a da Língua Portuguesa.<br />
“Um gran<strong>de</strong> abraço para todos. A fresca memória da Maria Rosa<br />
é a nossa, enquanto vivermos. Para quem é mortal esse é talvez o<br />
melhor dos futuros possíveis.<br />
Maio, 2006 - O António Joaquim <strong>de</strong> A Criança e a Vida” 6<br />
* Cidadã do Barreiro. Professora <strong>de</strong> Língua Portuguesa e Literatura da Escola Superior<br />
<strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> Setúbal<br />
1. COLAÇO, Maria Rosa. A Criança e a Vida. 5.ª ed., ITAU, <strong>Lisboa</strong>, 1971, pp. 14-15.<br />
2. I<strong>de</strong>m, p. 55.<br />
3. I<strong>de</strong>m, p. 47.<br />
4. Postic, MARCEL. O Imaginário na Relação Pedagógica. 1.ª ed., ASA, Col. Biblioteca<br />
Básica <strong>de</strong> Educação e Ensino (10), 1992, p. 22.<br />
5. I<strong>de</strong>m, p. 28.<br />
6. http://mariarosacolaco.blogspot.com<br />
11
PATRIMÓNIO<br />
Gastronomia<br />
As Cal<strong>de</strong>iradas <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong><br />
Maria <strong>de</strong> Lur<strong>de</strong>s Mo<strong>de</strong>sto<br />
Falar <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong> é evocar um mar muito azul e espelhado, peixe<br />
magnífi co e o bulício que envolve os pescadores na sua faina e no<br />
ritual que envolve a confecção das suas cal<strong>de</strong>iradas. Se existe um<br />
prato nacional, eu não hesitaria em apontar a cal<strong>de</strong>irada. Faz-se<br />
em todo o litoral <strong>de</strong> Norte a Sul do País, mas também no interior,<br />
nas terras banhadas pelos rios on<strong>de</strong> ainda nada o peixe. É um<br />
prato que não se sujeita a regras fi xas, nem na composição dos<br />
ingredientes, nem no modo <strong>de</strong> fazer. Só tem que haver peixe,<br />
porque on<strong>de</strong> há peixe há pescadores e cal<strong>de</strong>irada.<br />
A cal<strong>de</strong>irada dos pescadores <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong> tem, contudo, as suas<br />
exigências, o que a torna diferente e inconfundível. Essa diferença<br />
está sobretudo na composição piscícola: é imprescindível a<br />
presença do tamboril, safi o, caneja (pata-roxa), tremelga e ainda<br />
os fígados do tamboril, da caneja e da tremelga e, geralmente,<br />
sardinhas.<br />
Esta fórmula já po<strong>de</strong> variar para a que se faz em casa, em família,<br />
ou nos restaurantes. Nos últimos, a primeira camada tem que ser<br />
<strong>de</strong> amêijoas e as batatas cozidas à parte. Já nas famílias, a cal<strong>de</strong>irada<br />
começa pelo quase imprescindível refogado, a que chamaríamos<br />
a marca da cozinha nacional. Estas diferenças confi rmam e, ao<br />
mesmo tempo, <strong>de</strong>smentem aquilo que foi tão <strong>de</strong>scrito por Fialho<br />
<strong>de</strong> Almeida a propósito do “Prato Nacional”, <strong>de</strong>signação para<br />
que eu elegi a cal<strong>de</strong>irada. “Uma composição rebel<strong>de</strong> à escrita<br />
dos manuais, característica, inconfundível, incapaz <strong>de</strong> se exprimir<br />
em quantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ingredientes, fracções <strong>de</strong> tempo, e acção<br />
rápida ou lenta do calor, da água, do gelo, do uso da peneira, do<br />
passador, da faca ou da colher.”<br />
A cal<strong>de</strong>irada faz-se em <strong>Sesimbra</strong> sempre que o peixe convida,<br />
mas há dois dias no ano em que é da praxe: no dia <strong>de</strong> S. Pedro,<br />
o padroeiro dos pescadores, e no dia 30 <strong>de</strong> Junho, dia <strong>de</strong> S.<br />
Marçal. Ninguém sabe o porquê <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>voção dos pescadores<br />
sesimbrenses a este santo. Nem tão pouco se sabe quem<br />
inventou esta cal<strong>de</strong>irada <strong>de</strong> que os homens do mar <strong>de</strong> <strong>Sesimbra</strong><br />
fazem uma das <strong>de</strong> mais nomeada do País.<br />
Ainda a propósito do “prato nacional”, e em jeito <strong>de</strong> sobremesa,<br />
rematemos, a seu respeito, com mais algumas palavras <strong>de</strong> Fialho<br />
<strong>de</strong> Almeida: “É como o romanceiro nacional, ninguém o inventou<br />
e inventaram-no todos; vem-se ao mundo chorando<br />
por ele, e quando se <strong>de</strong>ixa a pátria, lá longe,<br />
antes <strong>de</strong> pai e mãe, é a primeira<br />
coisa que lembra.”<br />
COMO FAZER UMA BOA CALDEIRADA<br />
PARA DEZ PESSOAS<br />
7 kg <strong>de</strong> peixes, nos quais são obrigatórios: tamboril,<br />
safi o, caneja (pata roxa), tremelga e 10 sardinhas;<br />
4 kg <strong>de</strong> batatas;<br />
2 kg <strong>de</strong> cebolas;<br />
4 <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> alho;<br />
3 kg <strong>de</strong> tomate maduro;<br />
sal e pimenta;<br />
1 ramo <strong>de</strong> salsa;<br />
3 folhas <strong>de</strong> louro;<br />
2,5 dl <strong>de</strong> azeite;<br />
1 copo <strong>de</strong> vinho branco;<br />
piripiri (fac).<br />
Amanham-se os peixes, reservando os fígados. Lavam-se<br />
impecavelmente e cortam-se em bocados, com excepção das<br />
sardinhas que se amanham, mas fi cam inteiras. Descascamse<br />
as batatas, as cebolas e os alhos, e cortam-se em ro<strong>de</strong>las.<br />
Lava-se e corta-se o tomate, também em ro<strong>de</strong>las.<br />
Num tacho gran<strong>de</strong> e com o fundo espesso introduzem-se<br />
os peixes e os legumes em camadas alternadas. Reservam-se<br />
os fígados e as sardinhas. Cada camada <strong>de</strong> peixe é temperada<br />
com sal grosso, pimenta, piripiri, raminhos <strong>de</strong> salsa e bocados<br />
<strong>de</strong> louro. Estando tudo no tacho, rega-se com o azeite e<br />
leva-se ao lume, que <strong>de</strong>ve ser brando. Quando as batatas<br />
estiverem quase cozidas, dispõem-se à superfície os fígados e<br />
as sardinhas em estrela. Salpicam-se com sal e regam-se com<br />
o vinho. Se for necessário, junta-se um pouco <strong>de</strong> água.<br />
Para servir, retiram-se os peixes e os legumes <strong>de</strong> baixo para<br />
cima, metendo a colher até ao fundo, cuidadosamente,<br />
para não os esmagar.<br />
Ao caldo que sobrar da cal<strong>de</strong>irada, juntam-se cotovelinhos<br />
e raminhos <strong>de</strong> hortelã e come-se como sopa, mas <strong>de</strong>pois<br />
da cal<strong>de</strong>irada.