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(...) o lavrador podia confiar em um intervalo de dois ou três anos de colheitas<br />
tranqüilas antes de as formigas aparecerem em grande número. Todos os<br />
observadores coloniais da lavoura concordam que a onipresença das cortadeiras, sua<br />
agressividade e sua resistência a qualquer medida defensiva que os lavradores<br />
conseguissem conceber ou aplicar eram uma causa importante da persistência da<br />
agricultura itinerante. (Cf. Dean, 1996, p. 127)<br />
As pragas de formigas criou problemas que chegou mesmo a ser<br />
considerada no século <strong>XVI</strong>II, como sendo um castigo divino, segundo mostra em<br />
estilo barroco o padre Manuel Bernardes, em sua obra Nova Floresta (vol. 2,<br />
pp,117-18), escrito nos meados daquele século. Esta obra narra o caso das<br />
formigas que invadiram o Convento dos Capuchos no Maranhão, e cujo processo<br />
terminou sendo julgado pelo Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa. Tanto o exemplo<br />
acima, quanto o de Gabriel Soares a seguir — e que é anterior ao de Bernardes—,<br />
já são possíveis de serem olhados como uma hipotética primitiva anormalidade da<br />
natureza. Referindo-se à ação das formigas oriundas das roças de mandioca e<br />
atacando as demais lavouras, Gabriel diz que<br />
(...) Muito havia que dizer das formigas do Brasil, o que se deixa de fazer tão<br />
copiosamente como se poderá fazer, por se escusar prolixidade; mas diremos em<br />
breve de algumas, começando nas que mais dano fazem na terra, a que o gentio<br />
chama "ussaúba", 49 que é a praga do Brasil, as quais são como as grandes de<br />
Portugal, mas mordem muito e onde chegam destroem as roças de mandioca, as<br />
hortas de árvores da Espanha, as laranjeiras, romeiras e parreiras. Se estas formigas<br />
não foram, houvera na Bahia muitas vinhas e uvas de Portugal; as quais formigas vêm<br />
de muito longe de noite buscar uma roça de mandioca, e trilham o caminho por onde<br />
passam, como se fôsse gente por file muitos dias, e não salteiam senão de noite; e<br />
por atalharem a não comerem as árvores a que fazem nojo, põem-lhe um casto de<br />
barro ao redor do pé, cheio de água, e se de dia Ihe secou a água, ou Ihe caiu uma<br />
palha de noite que a atravesse, trazem tais espias que são logo disso avisadas; e<br />
passa logo por aquela palha tamanha multidão delas que antes que seja manhã, Ihe<br />
dão com tôda a fôlha no chão; e se as roças e árvores estão cheias de mato de redor,<br />
não lhes fazem mal, mas tanto que as vêem limpas, como que entende que tem gesto<br />
a gente disto, saltam nelas de noite, e dão-lhe com a falha no chão, para a levarem<br />
para os formigueiros; e não há dúvida senão que trazem espias pelo campo, que<br />
levam aviso aos formigueiros, porque se viu muitas vezes irem três e quatro formigas<br />
para os formigueiros, e encontrarem outras no caminho e virarem com elas, e<br />
tornarem todas carregadas, e entrarem assim no formigueiro, e sairem-se logo dele<br />
infinidade delas a buscarem de comer à roça, onde foram as primeiras; e têm tantos<br />
ardis que fazem espanto. E como se destas formigas não diz o muito que delas há<br />
que dizer, é melhor não dizer mais senão que se elas não foram que o despovoará<br />
muita parte da Espanha para irem povoar o Brasil; pois se dá nele tudo o que se pode<br />
desejar, o que esta maldição impede, de maneira que tira o gesto aos homens de<br />
plantarem senão aquilo sem o que não podem viver na terra.(Cf. Gabriel Soares de<br />
Souza, 1071, p. 270)<br />
49 Palavra não encontrada nos dicionários e enciclopédias consultados.<br />
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