18.04.2013 Views

O MÍNIMO VITAL E O FORNECIMENTO DE ÁGUA – UM ... - Conpedi

O MÍNIMO VITAL E O FORNECIMENTO DE ÁGUA – UM ... - Conpedi

O MÍNIMO VITAL E O FORNECIMENTO DE ÁGUA – UM ... - Conpedi

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

O <strong>MÍNIMO</strong> <strong>VITAL</strong> E O <strong>FORNECIMENTO</strong> <strong>DE</strong> <strong>ÁGUA</strong> <strong>–</strong> <strong>UM</strong> <strong>DE</strong>SAFIO AO PO<strong>DE</strong>R JUDICIÁRIO<br />

EM FACE DA NOVA LEI DO MANDADO <strong>DE</strong> SEGURANÇA<br />

THE MINIM<strong>UM</strong> SUBSISTENCE AND THE SUPPLY OF WATER <strong>–</strong> A CHALLENGE FOR THE<br />

JUDICIARY IN THE FACE OF THE NEW WRIT OF MANDAMUS<br />

Jaime Domingues Brito<br />

Teófilo Marcelo de Arêa Leão Júnior<br />

RES<strong>UM</strong>O<br />

O artigo investiga a possibilidade ou não de o Poder Público vir a suspender o fornecimento de água por<br />

falta de pagamento. Procura, assim, destacar que a suspensão dos serviços de fornecimento de água envolve<br />

a violação aos direitos da cidadania e da dignidade da pessoa humana, bem como atenta contra os objetivos<br />

fundamentais da República, que se referem à construção de uma sociedade livre e solidária, como também a<br />

de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais. O artigo mostra, portanto, como é importante o<br />

atendimento ao Mandado de Segurança do qual o usuário poderá lançar mão se essa hipótese vier a ocorrer<br />

porque, caso contrário, isto é, em caso de não acatamento desse remédio jurídico, o próprio texto<br />

constitucional poderá apresentar-se como meramente simbólico e não de autêntica concretização.<br />

PALAVRAS-CHAVES: Fornecimento de água; suspensão; mínimo vital; direito fundamental do usuário;<br />

Mandado de Segurança.<br />

ABSTRACT<br />

The article investigates the possibility of the Public Power comes to suspend the water supply by a lack of<br />

payment. The article destaches that the suspension of the service of water supply involves the violation of<br />

the right citizenship and the dignity of the human person and the Republic’s fundamentals objectives, that<br />

are in connection with the construction of a society where must have freedom and solidarity, and must also<br />

look for the eradication of poverty and the social inequalities. The article shows, therefore, how important is<br />

to comply with a request the writ of mandamus that the consumer can entreat if the hypothesis comes to<br />

happen, because, if her writ of mandamus is not conceded, the constitutional text could be considerate as<br />

something only symbolical and without a authentic realization.<br />

KEYWORDS: Water supply; suspension; the minimum subsistence; user’s human right; writ of<br />

mandamus.<br />

Sumário:<br />

1. Introdução. 2. DA TESE DO USUÁRIO. 3. DA TESE CONTRÁRIA AO INTERESSE DO<br />

USUÁRIO. 4. DA EVENTUAL OFENSA A DIREITO FUNDAMENTAL DO USUÁRIO E DA<br />

POSSIBILIDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> IMPETRAÇÃO <strong>DE</strong> MANDADO <strong>DE</strong> SEGURANÇA CONTRA O ATO<br />

ABUSIVO. 4.1. Conceito e características dos direitos fundamentais 4.2. As origens do Mandado de<br />

Segurança. 4.3.- O conceito de direito líquido e certo para a impetração da segurança, a possibilidade<br />

de concessão de liminar e seu condicionamento à caução. 4.4. O mérito do Mandado de Segurança.<br />

4.4.1. Orientações a favor do usuário. 4.4.2. Orientações contrárias ao usuário. 4.4.3. Da Lei nº<br />

11.445/2007 e Projeto de Lei nº 178/08 em trâmite no Congresso Nacional. 5. Do mero simbolismo<br />

constitucional uma vez prevalecida a possibilidade de se suspender o fornecimento de água. 6.<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7657


Considerações Finais. Referências bibliográficas.<br />

1.- INTRODUÇÃO<br />

O propósito de investigar a possibilidade ou não de o Poder Público vir a suspender o fornecimento<br />

de água por falta de pagamento é da maior importância. Isso se dá porque o assunto envolve o eventual<br />

direito do consumidor em ter o serviço religado uma vez ocorrida a suspensão, isso, independentemente, do<br />

pagamento da conta. De igual forma, relevante se mostra também o estudo em torno do remédio jurídico do<br />

qual o usuário poderá lançar mão, se essa hipótese vier a ocorrer.<br />

Realmente, tem sido motivo de controvérsia a análise em torno do ato de suspensão, por parte do<br />

Poder Público, do fornecimento de água, posto que isso implicaria, em tese e segundo alegam alguns, em<br />

ofensa ao direito à cidadania e à dignidade da pessoa humana, que não pode sobreviver sem água. Estar-se-<br />

ia, portanto <strong>–</strong>uma vez ocorrida a hipótese<strong>–</strong> diante não só de ofensa ao direito do consumidor, mas também<br />

em situação de violação de princípio constitucional. Entretanto, a opinião contrária, no sentido de que o<br />

Poder Público ou a pessoa jurídica concessionária do serviço público poderia suspender o fornecimento do<br />

mesmo serviço, inspirou outros pensadores a sustentarem que, por não atingir a coletividade, a interrupção<br />

do fornecimento de água seria inteiramente possível, havendo, inclusive, em lei e segundo a orientação da<br />

jurisprudência, respaldo para a prática de tal ato contra a pessoa individual usuária do serviço público.<br />

Mas, de qualquer forma, uma vez ocorrida a suspensão do fornecimento de água, por falta de<br />

pagamento, aquele que se sentiu lesado pode ir, se quiser, bater às portas do Pretório para defender o seu<br />

direito de continuar a ter o serviço. E certamente fará isso valendo-se do remédio heróico.<br />

A utilização da ação mandamental, por sua vez, abre novo debate, porque isso implica em saber se<br />

houve ou não ofensa ao direito líquido e certo do interessado e se tem ou não ele direito à obtenção de<br />

liminar ao impetrar a segurança, importando também saber, em última análise, se o writ of mandamus, no<br />

mérito, vingará ou não.<br />

Além disso, outra preocupação que surgirá, ao se analisar a questão, é exatamente aquela que se liga<br />

à concretização do próprio direito fundamental relativo à dignidade da pessoa humana. Ou seja, mostra-se<br />

merecedor de atenção, ao se debater o caso, se o não fornecimento da água não estaria se traduzindo e<br />

fazendo com que o próprio texto constitucional se apresentasse apenas simbólico e destituído, portanto, de<br />

efetividade.<br />

Assim, indicada a controvérsia e também o remédio jurídico que poderá ser utilizado no caso da<br />

eventual ocorrência de suspensão do serviço público, é de se analisar, em tópicos apartados, alguns dos<br />

termos do problema ora apresentado.<br />

2.- DA TESE DO USUÁRIO<br />

Interrompida a prestação de serviço, o usuário obviamente irá sustentar que tem direito ao acesso<br />

irrestrito e contínuo do serviço público de fornecimento de água canalizada e potável, porque tal serviço se<br />

constitui e se caracteriza como essencial para a sua própria sobrevivência, constituindo-se em verdadeiro<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7658


assunto de saúde pública, corolário, portanto, do direito à cidadania e à dignidade da pessoa humana, que se<br />

constituem em fundamentos da própria República Federativa e do Estado Democrático de Direito e<br />

sufragados nos incisos II e III do artigo 1º da Carta Maior.<br />

Além disso, a interrupção no fornecimento da água, por parte do agente do serviço público, se<br />

mostra ilegal e abusiva, porque o Código de Defesa ao Consumidor, que veio a lume por força do que<br />

dispõe o inc. XXXII do art. 5º da Carta Magna, não permite, de modo algum, que o serviço seja suspenso<br />

por falta de pagamento.<br />

A tese do usuário, portanto, será a de que a suspensão do fornecimento de água como meio de<br />

coerção para o recebimento de contas atrasadas é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor, que em<br />

seu art. 42 assim prescreve: “Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a<br />

ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.”<br />

Desta maneira, alegará o usuário que, para o recebimento da conta ou das contas atrasadas, o credor<br />

deveria se utilizar dos meios judiciais cabentes e não expô-lo ao ridículo, submetendo-o ao constrangimento<br />

de ficar sem água, ofendendo, com isso, os princípios constitucionais da cidadania e da dignidade da pessoa<br />

humana.<br />

3.- DA TESE CONTRÁRIA AO INTERESSE DO USUÁRIO<br />

A tese contrária, que também tem merecido prestígio, de igual maneira é de ser analisada. De fato, o<br />

agente público dirá em seu favor que a conduta de interromper o fornecimento de água por falta de<br />

pagamento não se mostra ilegal e abusiva, porque o “corte”, principalmente no Estado do Paraná <strong>–</strong>onde este<br />

trabalho é em parte desenvolvido por um dos seus autores<strong>–</strong>, é previsto na alínea a do art. 38 do Decreto nº<br />

3.926/88.<br />

Na visão do prestador do serviço público, portanto, não haveria ilegalidade no ato de interromper o<br />

fornecimento de água. Ademais, outro ponto que poderá levantar é o conteúdo do contrato ao qual o usuário<br />

aderiu, onde prevista estava, também, a possibilidade do corte d’água.<br />

De outra banda, o prestador de serviços poderá sustentar que, ao obter a concessão, através de<br />

contrato firmado com o Poder Público, prevista havia sido a possibilidade de interrupção do fornecimento<br />

d’água, de modo que, como concessionário, ao cortar a água por falta de pagamento das contas, estaria a<br />

cumprir aquilo que o contrato de concessão lhe permitia fazer.<br />

Já no âmbito da legislação federal, quando se trata de concessão ou permissão <strong>–</strong>dirá o prestador de<br />

serviços<strong>–</strong> há previsão para a interrupção da prestação dos serviços, segundo o teor do inc. II, do § 3º do art.<br />

6º da Lei nº 8.987/95.<br />

Não se pode negar, ao menos por ora, que o argumento da tese contrária se mostra bastante robusto.<br />

Convém prosseguir, contudo, no trabalho investigativo para, ao final, optar por uma ou outra das teses.<br />

4.- DA EVENTUAL OFENSA A DIREITO FUNDAMENTAL DO USUÁRIO E DA<br />

POSSIBILIDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> IMPETRAÇÃO <strong>DE</strong> MANDADO <strong>DE</strong> SEGURANÇA CONTRA O ATO<br />

ABUSIVO<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7659


Importa saber, em primeiro lugar, se o ato de interromper o fornecimento de água se traduz ou não<br />

em violação de direito fundamental do cidadão. Além disso, se positiva for a resposta a essa dúvida, é de se<br />

indicar, também, qual o remédio jurídico do qual poderá o ofendido valer-se para reparar ou minimizar a<br />

ofensa.<br />

Para isso, em itens apartados e em largas linhas, pretende-se neste trabalho: a) conceituar e<br />

caracterizar os direitos fundamentais; b) investigar, também de modo abreviado, as origens do Mandado de<br />

Segurança, trazendo algumas anotações sobre o direito estrangeiro; c) analisar o conceito de direito líquido e<br />

certo para a impetração da segurança em face do caso concreto e estudar se é possível ou não a concessão de<br />

liminar na segurança; d) investigar se a segurança deve ou não ser concedida; e e) verificar, por derradeiro <strong>–</strong><br />

uma vez considerado o direito do usuário como verdadeiro direito fundamental e não atendido o Mandado<br />

de Segurança <strong>–</strong> se o caso não envolveria os princípios constitucionais em meros simbolismos e desprovidos,<br />

portanto, de efetividade.<br />

4.1.- Conceito e características dos direitos fundamentais<br />

José Afonso da Silva (1995, p.174), ao tratar do conceito de direitos fundamentais, com acerto<br />

observa o seguinte:<br />

A ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no evolver histórico dificultalhes<br />

um conceito sintético e preciso. Aumenta essa dificuldade a circunstância de se empregarem<br />

várias expressões para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do<br />

homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades<br />

públicas e direitos fundamentais do homem.<br />

Assim, neste trabalho, para a designação dos direitos fundamentais, as expressões acima serão<br />

utilizadas como se sinônimas fossem.<br />

Já Antonio Enrique Perez Luño (1999, p. 12-14) desenvolve pensamento inteligente ao trazer a<br />

delimitação conceitual dos direitos humanos. Realmente, diz o autor que os resultados a que se chega<br />

quando se questiona a um homem médio o que entende ele a respeito de “direitos humanos” é semelhante à<br />

resposta que se obtém quando se pergunta ao homem comum o que significa o termo “razão”, porque, em<br />

ambos os casos, as pessoas arguirão que se trata de questão supérflua, já que o vocábulo “razão” se explica<br />

por si mesmo, além do que, no que se refere aos “direitos humanos”, inegável se mostra que todos têm<br />

perfeita noção de seus próprios direitos.<br />

Portanto, o uso do termo “direitos humanos” se alargou enormemente, servindo, pois, de base para<br />

argumentos de caráter social, político e jurídico.<br />

Após elaborar resenha histórica em torno do surgimento dos direitos humanos e citar, inclusive,<br />

trecho da obra de S. F. Ketchekian, Luño (1999, p. 23) destaca que a primeira aparição da idéia de direitos<br />

humanos teve lugar durante a luta contra o regime feudal e a formação das relações burguesas, não se<br />

devendo esquecer, ademais, que os direitos humanos são frutos da afirmação das idéias jusnaturalistas. Por<br />

outro lado, com base nos ensinamentos de Wolfgang Goethe, Luño (1999, p. 48) esboça a seguinte<br />

definição:<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7660


(...) un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las<br />

exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas<br />

positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional. (...)<br />

La definición propuesta pretende conjugar las dos grandes dimensiones que integran la noción<br />

general de los derechos humanos, esto es, la exigencia iusnaturalista respecto a su fundamentación<br />

y las técnicas de positivación y protección que dan la medida de su ejercício.<br />

Trazida, pois, a definição acima, que demonstra e menciona os elementos que compõem os direitos<br />

fundamentais, em passo seguinte cabe investigar se seria ou é possível dizer que o direito à utilização de<br />

água potável pode ser incluído como um direito fundamental do cidadão.<br />

Para isso é de se analisar as características dos direitos fundamentais. De fato, segundo o melhor<br />

escólio de Walter Claudius Rothenburg (2000, p. 145) os direitos fundamentais “(...) são universais porque<br />

inerentes à condição humana (...)”, de modo que,<br />

Se é certo que a noção de direitos fundamentais parte e gira em torno da idéia de atributos do ser<br />

humano por sua mera condição existencial, a indicação do conteúdo desses direitos fica a cargo da<br />

consciência desenvolvida por determinada comunidade em cada momento histórico.<br />

Pois bem, levando em conta as palavras acima, que se mostram bem posicionadas para o que ora se<br />

pretende, pode se dizer que o ser humano possui necessidades básicas, que são peculiares à sua própria<br />

condição de ser vivo. Pode-se dizer, até mesmo, que certas necessidades são universais e se estendem a toda<br />

e qualquer forma de vida. Ora, obviamente que isso se dá em relação à água, que é produto essencial à<br />

existência da vida. De maneira que é de se repetir: se “(...) a noção de direitos fundamentais gira em torno<br />

de atributos do ser humano por sua mera condição existencial (...)” (ROTHENBURG, 2000, P. 145),<br />

dessume-se que a água ou a necessidade dela para a sobrevivência da pessoa humana se constitui em um dos<br />

direitos fundamentais.<br />

Sublinhe-se que a Constituição, ao impor respeito e cumprimento ao que elegeu como direito<br />

fundamental, delimita a função estatal. É justamente por isso que Dimitri Dimolius (2010, p.47) extraiu o<br />

conceito de que os direitos fundamentais têm por finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da<br />

liberdade individual. São direitos de status negativus ou pretensão de resistência à intervenção estatal.<br />

Trata-se de direitos que permitem aos indivíduos resistir a uma possível atuação do Estado. Nessa<br />

hipótese, E (esfera do Estado) não deve intervir (“entrar”) em I (esfera do indivíduo), sendo que o indivíduo<br />

pode repelir eventual interferência estatal, resistindo com vários meios que o ordenamento jurídico lhe<br />

oferece. Estes direitos protegem a liberdade do indivíduo contra uma possível atuação do Estado e,<br />

logicamente, limitam as possibilidades de atuação do Estado. (DIMOLIUS, 2010, p. 55)<br />

Exemplo: a Municipalidade e/ou a concessionária de serviço público tem o dever de fornecer água<br />

aos consumidores, que, por sua vez, devem pagá-la. Em uma linha lógica, poder-se-ia dizer que sem<br />

pagamento não haveria o porquê se operar a continuidade da atividade de fornecimento. Porém, se o direito<br />

de recebimento de água enquadrar-se entre os direitos fundamentais, os usuários podem valer-se da<br />

possibilidade de resistência a uma intervenção estatal de corte de seu fornecimento. A questão que se coloca<br />

é se o corte de fornecimento de água seria forma lícita de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7661


multa, ou extrapola os limites da legalidade ou constitucionalidade conferida ao direito e se este, por seu<br />

conteúdo ou substância, encaixa-se nas características para ser considerado um direito fundamental.<br />

A essência do direito está na proibição imediata de interferência imposta ao Estado. Trata-se de um<br />

direito negativo, pois gera a obrigação negativa endereçada ao Estado, a obrigação de deixar de fazer algo.<br />

Trata-se de uma obrigação de abster-se da intervenção na esfera de liberdade e garantida pela Constituição<br />

(imperativo de omissão <strong>–</strong> Unterlassungsgebot). (DIMOLIUS, 2010, p. 55/56)<br />

Na verdade, não há como justificar, portanto, como a simples falta de pagamento de uma conta<br />

d’água possa ensejar que um ser humano fique ou venha a ficar privado de algo que lhe é fundamental à sua<br />

própria existência.<br />

Um Estado que permite a prática de semelhante ato poderia ser considerado democrático ou de<br />

Direito? Ao cortar ou interromper o fornecimento d’água o Estado estaria realmente valorizando o seu<br />

indivíduo-membro? Não estaria, ao contrário, somente valorizando as relações de consumo?<br />

Ora, se nem os animais podem ser privados da água, como se justificar que possa alguém privar o<br />

homem desse elemento essencial para a sua sobrevivência?<br />

Portanto, uma vez caracterizado o direito fundamental como universal <strong>–</strong>como de resto foi feito nas<br />

linhas anteriores<strong>–</strong> parece-nos que só esta caracterização já seria mais do que suficiente para se dizer que o<br />

corte d’água, uma vez concretizado, ofende, sem dúvida alguma, o direito fundamental do cidadão.<br />

Mas, como os direitos fundamentais têm outras características, acreditamos que outras reflexões<br />

ainda cabem em relação à situação cuja análise ora se realiza. Com efeito, Rothenburg (2000, p. 149) aponta<br />

que, além de universais, os direitos são (1) anteriores à positivação, além do que têm verdadeira (2) inter-<br />

relação entre si, (3) têm possibilidade de expandir-se e (4) são inexauríveis.<br />

Muito bem, viu-se, com base na orientação doutrinária acima, que os direitos fundamentais são<br />

anteriores à própria positivação e por ela não podem ser esgotados. A vida é um direito fundamental e essa<br />

consciência está presente na coletividade antes mesmo de sua positivação.<br />

Para que exista vida <strong>–</strong>e hoje muito se fala em qualidade de vida<strong>–</strong> é necessário que a pessoa usufrua<br />

de vários elementos básicos, dentre os quais, por óbvio, figura a água. Assim, numa sequência lógica, o<br />

direito a ter água para a própria sobrevivência é de ser considerado também como um direito fundamental,<br />

não sendo, inclusive, necessário que esse direito esteja explicitamente reconhecido ou positivado. Basta,<br />

segundo pensamos, que exista consciência de sua fundamentabilidade.<br />

No ponto relativo à inter-relação existente entre os direitos fundamentais, a Constituição Federal, no<br />

inciso III de seu art. 1º diz que o fundamento do próprio Estado de Direito repousa e tem como base a<br />

dignidade da pessoa humana, garantindo, também, no caput do art. 5º, a inviolabilidade do direito à vida,<br />

sufragando, de igual maneira, em seus arts. 6º e 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado.<br />

Ora, como o fundamento do Estado está calcado na dignidade da pessoa humana; como a saúde é<br />

direito de todos e dever do Estado; como, para ter saúde e dignidade ou, em uma palavra, para ter vida a<br />

pessoa carece de água potável, dessume-se que o Estado ou a pessoa jurídica concessionária de serviço<br />

público não pode, de modo algum, interromper o fornecimento de água por falta de pagamento.<br />

Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, p.112), partidário inconteste dos grandes e imortais princípios<br />

gravados na consciência humana, ao tratar do tema, não só demonstra o quanto continua válido e eficaz o<br />

clímax da lição de Kant quanto ser a dignidade um imperativo categórico destituído de equivalência a um<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7662


preço econômico-financeiro, como recomenda que se invoque a força de sua noção básica toda vez que se<br />

precise preservar a dignidade das pessoas, e justamente da força moral dele brota precisas expressões em<br />

que prefixa a linha diretriz que há de ser seguida:<br />

“Enxergar o ser humano como um fim, e não como um meio, aponta necessariamente um outro<br />

ângulo de abordagem do tema, o de que todos devem ter lugar na vida comunitária, donde resulta a<br />

idéia de inclusão, com todos os necessários consectários, também se inclui na noção de dignidade.”<br />

Segundo os constitucionalistas, por todos Pinto Ferreira (2001, p. 131), nenhuma validade prática há<br />

nos direitos do homem se não forem efetivadas as garantias destinadas a protegê-los, as quais são “os<br />

instrumentos práticos ou os expedientes que asseguram os direitos enunciados”. E o Mandado de Segurança,<br />

não há dúvida, é um dos meios de amparo de enorme eficácia contra a ilegalidade ou abuso de poder da<br />

autoridade que transgride os direitos fundamentais do homem.<br />

Por último, conforme já se disse, os direitos fundamentais se expandem e são inexauríveis. Aliás, a<br />

própria Carta de 1988, de modo expresso, no § 2º do art. 5º, sufraga que “Os direitos e garantias expressos<br />

nesta Constituição, não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos<br />

tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte”, de sorte que podemos afirmar, com<br />

apoio nos ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999, p. 254), que “A atual Constituição<br />

brasileira, como as anteriores, ao enumerar os direitos fundamentais, não pretende ser exaustiva ao<br />

estabelecer os setenta e oito incisos do art. 5º.”<br />

Aliás, Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 83-84), a respeito do assunto, assim escreve:<br />

A regra do art. 5º, § 2º da CF de 1988 segue a tradição do nosso direito constitucional republicano,<br />

desde a Constituição de fevereiro de 1891, com alguma variação, mais no que diz com a expressão<br />

literal do texto do que com a sua efetiva ratio e seu telos. Inspirada na IX Emenda da Constituição<br />

dos EUA e tendo, por sua vez, posteriormente influenciado outras ordens constitucionais (de modo<br />

especial a Constituição Portuguesa de 1911 [art. 4º]), a citada norma traduz o entendimento de que,<br />

para além do conceito formal de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito<br />

material, no sentido de existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao<br />

corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo. Neste<br />

contexto, importa salientar que o rol do art. 5º, apesar de exaustivo, não tem cunho taxativo.<br />

Portanto, socorre o pensamento que ora se desenvolve o aspecto de que os direitos fundamentais se<br />

expandem e são inexauríveis, de sorte que, por tudo isso, após analisar as características dos direitos<br />

fundamentais, convencido está o autor deste trabalho de que realmente, com ou sem o pagamento da taxa, o<br />

Estado não pode eximir-se de fornecer água potável ao cidadão. Poderia, é lógico, cobrá-lo pelo não<br />

pagamento. Contudo, interromper ou deixar de prestar o serviço público, isso não poderia e nem pode fazê-<br />

lo.<br />

4.2.- As origens do Mandado de Segurança<br />

Como parece-nos ser cabível a impetração de Mandado de Segurança contra o eventual corte de água<br />

que venha a ocorrer, convém que se trate, também, de modo abreviado, de alguns dos aspectos em torno da<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7663


ação mandamental, iniciando pelas origens do instituto, segundo escreve Maria Sylvia Zanella Di Pietro<br />

(2000, p. 612):<br />

O Mandado de Segurança foi previsto, pela primeira vez, na Constituição de 1934, desapareceu na<br />

Constituição de 1937 e voltou na Constituição de 1946.<br />

Ele surgiu como decorrência do desenvolvimento da doutrina brasileira do habeas corpus. Quando<br />

a Emenda de 1926 restringiu o uso dessa medida às hipóteses de ofensa ao direito de locomoção,<br />

os doutrinadores passaram a procurar outro instituto para proteger os demais direitos. Sob<br />

inspiração dos writs do direito norte-americano e do juicio de amparo do direito mexicano,<br />

institui-se o Mandado de Segurança. Está hoje previsto no art. 5º, LXIX, da Constituição e<br />

disciplinado pela Lei nº 1.533, de 31-12-51.[1]<br />

Como é sabido, outros sistemas também possuem mecanismos de reação para enfrentar eventuais<br />

atos abusivos e ilegais praticados por autoridades públicas. José da Silva Pacheco (1991, p. 101-108) arrola,<br />

dentre esses sistemas, o francês, o italiano, o anglo-americano e o mexicano.<br />

4.3.- O conceito de direito líquido e certo para a impetração da segurança, a possibilidade de<br />

concessão de liminar e seu condicionamento à caução<br />

Ao se questionar se a ação mandamental seria ou é cabente e se o juiz deve ou não conceder a<br />

liminar, os autores deste trabalho têm o convencimento de que a ação é, sim, cabível, por tratar-se de uma<br />

garantia constitucional, que se traduz como o meio ou instrumento judicial de tutela de direito individual,<br />

próprio, líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade pública ou agente de pessoa<br />

jurídica no exercício de sua funções, seja por ilegalidade, seja por abuso de poder, consoante estabelece o<br />

inc. LXIX do art. 5º da Lei Maior.<br />

Deste modo, como principalmente no Estado do Paraná, o fornecimento de água é realizado por<br />

concessionária de serviços públicos, ou seja, por um agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições<br />

de Poder Público, a impetração da segurança se mostra possível sem dúvida alguma.<br />

Os textos, tanto da Constituição como da lei mandamental, fazem referência a direito líquido e<br />

certo, o que sugere e leva a se proceder à revisão conceitual em torno da referida expressão. Dentre os<br />

escritores que se dedicaram a tanto, impõe-se mencionar Hely Lopes Meirelles (1992, p. 25):<br />

Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua<br />

extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito<br />

invocado, para ser amparável por Mandado de Segurança, há de vir expresso em norma legal e<br />

trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se sua existência for<br />

duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercício depender de situações e<br />

fatos ainda indeterminados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros<br />

meios judiciais. (grifo do autor)<br />

Portanto, à luz dos conceitos acima, resta bem claro que, ocorrida a suspensão do fornecimento de<br />

água, isso equivale a lesão ao direito líquido e certo do usuário do serviço público, que tem por isso, direito<br />

à segurança. E tendo, então, direito à segurança, é de se passar, a seguir, à análise dos requisitos para<br />

obtenção de liminar em matéria de Mandado de Segurança, sendo que a matéria encontra-se disciplinada no<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7664


inciso III e §§1º a 5º do art. 7º da Lei n° 12.016, de 07 de agosto de 2009. Relevante dizer, neste passo, na<br />

linha do pensamento de Fredie Souza Didier Jr (2002)[2], que o pedido de suspensão liminar tem a natureza<br />

antecipatória, já que visa antecipar os efeitos da futura sentença. Para obtê-la terá o usuário de demonstrar<br />

um risco de dano que poderá tornar a medida ineficaz quando da sua concessão.<br />

A nova Lei de Mandado de Segurança, no inc. III do art. 7º, inovou quanto ao direito imediatamente<br />

anterior, ao facultar ao juiz que exija ao impetrante que preste caução para que possa conceder a tutela<br />

liminar, “com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica". Vê-se um retrocesso evidente.<br />

Há quem não pensa assim, como o juiz Márcio Kammer de Lima (2009), ao defender a tese de que<br />

se parte “da equivocada premissa de que os magistrados lançarão mão do uso indiscriminado da exigência<br />

da contracautela, quando não vai nesse sentido a melhor interpretação do reportado enunciado legal”.<br />

Sustenta, com perspicácia, que os "elementos condutores" à tutela liminar “continuam rigorosamente os<br />

mesmos: relevância da fundamentação e risco de ineficácia do provimento final. Verificados in concreto,<br />

impõe-se o deferimento da liminar, inexorável e incondicionalmente.”<br />

Todavia, do modo que o referido inc. III do art. 7º autoriza ao magistrado condicionar o deferimento<br />

da liminar à exigência da caução, não se pode fiar que haverá tamanho equilíbrio de controle inspirado a que<br />

não se limite o direito à tutela mandamental originado em inquestionável essência de direito fundamental.<br />

Não! A liberdade não há de morrer no Brasil, que, não faz muito, teve seu povo reduzido ao<br />

silêncio, amordaçado então, porém, a duras penas ascendeu a um Estado Democrático Social de Direito. Há<br />

os que se querem exaltados ao poder e desejam avassalar o povo, tirando-lhe a voz e a liberdade.<br />

Não foi por outro motivo que o então presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do<br />

Brasil, Cezar Britto, ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal ação direta de inconstitucionalidade (Adin<br />

nº 4296) contra a Lei 12.016/09, que regulamentou o Mandado de Segurança (MS) individual e coletivo. O<br />

relator da ação é o ministro Marco Aurélio Mello.<br />

A Adin questiona dispositivos da nova lei, inclusive o inciso III do artigo 7º, que faculta a exigência<br />

de caução ou fiança para fins de concessão de liminar em Mandado de Segurança, o que, para o presidente<br />

da OAB, cria um verdadeiro "apartheid" judicial, entre ricos e pobres, entre quem pode e não pode pagar a<br />

caução, o que afronta a Constituição Federal. Vários outros dispositivos da lei que regulamenta o MS são<br />

atacados pela entidade por serem considerados inconstitucionais.<br />

As situações sob o presente estudo vêm a calhar, uma vez que nelas se cuida justamente de pessoas<br />

vulneráveis que aspiram acesso à Justiça por meio do remédio heróico, e por serem inadimplentes nem<br />

mesmo podem quitar o quanto devem de tarifa de água e quiçá multa, e por isso se lhes pode o juiz negar a<br />

medida liminar, só e só -enfatize-se-, porque sem condições de prestar caução dita idônea.<br />

Instalou-se na legislação infraconstitucional brasileira, com pretensa força para alterar um direito<br />

fundamental de acesso à Justiça, não há dúvida, um escandaloso retrocesso...<br />

Pontifica o Prof. Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, pp. 117-118) que o denominado princípio da<br />

proibição do retrocesso em matéria de direitos sociais tem sido cogitado pela doutrina nacional e<br />

estrangeira. Põe exemplo: violaria esse princípio a revogação pura e simples de uma lei para incrementar um<br />

direito subjetivo, lei essa necessária para integrar norma constitucional de eficácia limitada de princípio<br />

intuitivo (classificação de José Afonso da Silva).<br />

Na situação em foco, num grau de gravidade elevadíssimo, por detonar, por um lado, norma<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7665


constitucional atributiva de direito público subjetivo de acesso ao Poder Judiciário, por outro lado, nela está<br />

contida estrutura fulgentemente diferenciada quanto ao grau de densificação, há muito consagrada pela<br />

tradição libertária brasileira, não obstante banida em alguns períodos de agonizante terror.<br />

Isso incitou o espírito do presidente Cezar Britto que criticou em nota, com veemência, a decisão do<br />

Presidente da República de sancionar, sem qualquer dos vetos propostos pela OAB, a lei que dá nova<br />

regulamentação ao Mandado de Segurança. Para Cezar Britto, a nova lei é "elitista e fere de morte o direito<br />

de defesa do cidadão". A lei exige depósito prévio para concessão de liminares, o que, segundo esse<br />

dirigente dos advogados <strong>–</strong>ínsita-se<strong>–</strong>, criou “um verdadeiro ´apartheid´ no Judiciário entre pobres e ricos”.<br />

"O Mandado de Segurança, instituído em 1932, possui status constitucional desde 1934, e não podia<br />

ser amesquinhado pelo legislador ordinário", disse.<br />

Ainda segundo o então presidente nacional da OAB, "não é possível admitir que apenas os dotados<br />

de bens, que podem efetuar depósito prévio, poderão ter medidas liminares em seu favor. Essa disposição<br />

cria uma justiça acessível apenas aos ricos, inconcebível em um Estado Democrático de Direito". No<br />

entendimento do Conselho Federal da OAB, o veto ao projeto deveria ter recaído sobre três pontos, sendo o<br />

primeiro ao artigo 7º, III, e ao parágrafo segundo do artigo 22, que condicionam a concessão de liminares à<br />

prestação de garantia e "amesquinham" a amplitude constitucional do Mandado de Segurança.[3]<br />

Ao Supremo caberá colorir com a sua luz solar o rumo a ser tomado. Dirá se o direito de liberdade<br />

há de ressentir-se, ou não, da garantia incontinenti da liminar. O ministro relator Marco Aurélio Mello, com<br />

a sensibilidade jurídica que lhe é peculiar, ao aplicar o rito do artigo 12 da Lei 9.868/99 à dita Ação Direta<br />

de Inconstitucionalidade (Adin) nº 4296, em face da relevância da matéria, decidiu submeter o processo<br />

diretamente ao Tribunal, que terá a possibilidade de julgar definitivamente a ação em vez de apreciar<br />

primeiramente a medida cautelar.<br />

Acredita-se firmemente que o Pretório Excelso, ao analisar o enfraquecimento ou a supressão<br />

mesmo dessa garantia constitucional, estará preocupado pela liberdade do indivíduo e pelo direito, e não<br />

descurará do dever de preservar o bem-estar propiciado pela segurança da Constituição frente a um eventual<br />

e provisório arbítrio deflagrado pelo poderoso do momento.<br />

Aliás, no magistério de Américo Bedê Freire Júnior (2005, p. 39), hoje, a releitura da separação dos<br />

poderes leva à forma de efetivação da Constituição no Estado Democrático de Direito, com o<br />

redimensionamento, portanto, da função judicial na materialização da Constituição. Indica que a função<br />

judicial atravessa uma profunda crise de identidade, uma vez que antigamente só intervinha plenamente nas<br />

relações privadas, não tendo legitimidade de intervir nas questões públicas, cujo espaço era deixado para os<br />

eleitos. Agora, o Judiciário há de rever essa posição e passar a intervir mais ativamente no espaço público.<br />

Segundo a voz impulsiva de Lenio Streck (1988, p. 90), da CF de 1988 ergue-se uma nova ordem<br />

jurídica em que as “inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo<br />

Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos previstos na Constituição que estabeleceu o<br />

Estado Democrático de Direito. Ou isto, ou tais mecanismos legais/constitucionais podem ser expungidos<br />

do Texto Magno”.<br />

No entender de Mauro Cappelletti (1999, p.47), os tribunais hão de escolher uma das opções: (a)<br />

manter-se, na função tradicional, nos acanhados limites do século XIX , ou (b) erguer-se ao nível dos outros<br />

poderes, tornando-se “o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7666


administrador”.<br />

Voltemos a Bedê Freire Júnior (2005, p. 42), onde há a feliz conclusão no sentido de que possíveis<br />

zonas de tensões serão produzidas se o Judiciário tomar uma postura mais ativa [e altiva] em face das<br />

demais funções do Poder. Entrementes, coloca (e bem) não se almejar a supremacia de qualquer uma das<br />

funções, mas a supremacia da Constituição. O que se quer, por conseguinte, é que o Judiciário não se quede<br />

numa função servil de mero burocrata a chancelar atos dos outros Poderes.<br />

Consigna-se aqui e desse modo nossa indignação, que, aliás, associa-se a tantas as outras em idêntico<br />

sentido, como ao brado de repulsa de Antonio Ricardo Moreira[4], em face do draconiano dispositivo legal<br />

sob exame, não somente por sua flagrante inconstitucionalidade, mas também porque “faz ressurgir uma<br />

verdadeira segregação social em nosso país, ou seja, só poderá se defender da máquina pública quem tem<br />

dinheiro. Os pobres terão que amargar seus infortúnios sem poder, sequer, bater nas portas do judiciário.”<br />

homem.<br />

Em suma, sem essa garantia constitucional será mais difícil proteger o exercício dos direitos do<br />

Outro absurdo há e põe-se para almejar ainda mais a onipotência estatal indevida. Trata-se do § 2º do<br />

art. 1º da nova Lei do Mandado de Segurança, na medida em que limita o cabimento do mandamus,<br />

excluindo de sua abrangência a possibilidade de insurgência “contra os atos de gestão comercial praticados<br />

pelos administradores de empresas públicas, de sociedade de economia mista e de concessionárias de<br />

serviço público”.<br />

Ora, o que nos interessa neste estudo é justamente “os atos de gestão comercial praticados pelos<br />

administradores de (...) concessionárias de serviço público”, e não faltará quem, sem razão, venha a querer<br />

excluir - também por esse meio do mesmo modo severo e duro -, do amparo do writ o ato inconstitucional<br />

de corte de fornecimento de água.<br />

Passa-se doravante a abstrair esse revoltante condicionamento, e retoma-se o exame dos antigos e<br />

ainda atuais requisitos para o deferimento da medida liminar.<br />

Meirelles (1992, p. 56-57)[5] bem analisa os termos da questão quando escreve:<br />

Para a concessão da liminar devem concorrer os dois requisitos legais, ou seja, a relevância dos<br />

motivos em que se assenta o pedido na inicial e a possibilidade da ocorrência de lesão irreparável<br />

ao direito do impetrante se vier a ser reconhecido na decisão de mérito - fumus boni juris e<br />

periculum in mora. A medida liminar não é concedida como antecipação dos efeitos da sentença<br />

final, é procedimento acautelador do possível direito do impetrante, justificado pela iminência de<br />

dano irreversível de ordem patrimonial, funcional ou moral se mantido o ato coator até a<br />

apreciação definitiva da causa. Por isso mesmo, não importa prejulgamento; não afirma direitos,<br />

nem nega poderes à Administração. Preserva apenas o impetrante de lesão irreparável, sustando<br />

provisoriamente os efeitos do ato impugnado.<br />

Portanto, pode-se dizer que os pressupostos da concessão da liminar estão apostos em duas bases,<br />

necessitando, pois, a ocorrência de relevante fundamento, ou seja, a parte deve ter direito líquido e certo,<br />

que é aquele que deve ser comprovado, como se viu, de plano por meio de prova documental, ressaltando-<br />

se, outrossim, que tal requisito é mais do que o fumus boni juris; terá, também, de demonstrar que haverá<br />

ineficácia da medida, que do ato impugnado possa resultar, se não atendido, pressuposto este que é<br />

precisamente o periculum in mora.<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7667


Acaso o juiz, mediante análise dos documentos anexados à inicial e das próprias alegações do<br />

impetrante, constate, embora em cognição sumária, não estar presente direito líquido e certo, denegará o<br />

Mandado de Segurança. Daí se extrai, portanto, ser insuficiente o mero fumus boni juris para a concessão da<br />

liminar. Imprescindível, pois, para que ela venha a ser concedida, estar evidente e provada a alegação. Nem<br />

mesmo será possível dilação probatória quer para a concessão da liminar, quer para a concessão definitiva<br />

da segurança.<br />

Desta maneira, após realizar a abordagem em torno da possibilidade da impetração da ação<br />

mandamental, sua natureza, bem como a possibilidade ou não da concessão da liminar, convém que se<br />

investigue, agora, o chamado mérito da segurança, levando-se em consideração tanto a tese do usuário como<br />

a contrária, para, ao final, optar-se por uma ou outra solução.<br />

4.4.- O mérito do Mandado de Segurança<br />

4.4.1.- Orientações a favor do usuário<br />

Mostra-se bastante interessante a abordagem que Marcello Caetano (s. d., p. 3-4) faz em torno das<br />

necessidades decorrentes da vida em sociedade que, de início são individuais mas, ao depois, transmutam-se<br />

em coletivas. Eis o trecho, que menciona, inclusive, a necessidade da água potável:<br />

A par destas necessidades colectivas essenciais aparecem outras que, embora independentes da<br />

vida em sociedade e portanto essencialmente individuais, são hoje, em virtude do complexo da<br />

vida social, satisfeitas graças a processos coletivos. (...)<br />

Por exemplo: o homem tem sede, quer viva em sociedade, quer se conceba a viver isolado, e pode<br />

por si só procurar na nascente a água para se dessedentar. A complexidade da vida social tornou,<br />

porém, incómodo, e em muitos casos impossível, que se deixa a cada qual a procura na origem dos<br />

bens úteis para a satisfação das necessidades individuais: e então no seio da sociedade surgem<br />

intermediários que se encarregam de obter esses bens para os colocar à disposição de cada um. Um<br />

intermediário procederá à captação da água nas nascentes, ao seu transporte para a povoação, à sua<br />

distribuição domiciliária <strong>–</strong> e cada indivíduo, depois, não tem mais esforço a fazer do que o de<br />

utilizar torneiras em sua casa. Se o intermediário deixar de actuar, todas as pessoas que vivem<br />

numa povoação sentirão a privação da água e a aflição da sede. A existência do serviços<br />

abastecedor criou uma necessidade colectiva instrumental.<br />

Dito isso, é de se enfatizar que os argumentos do usuário, como se viu, estão alicerçados no fato de<br />

que o serviço de fornecimento de água não pode ser interrompido por falta de pagamento, visto que, para a<br />

concretização da cobrança existem formas judiciais adequadas. E mais, além de ser privado daquilo que é<br />

essencial à sua sobrevivência (a água), a interrupção do fornecimento ainda o expõe ao ridículo, situação<br />

esta que é vedada pelo artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, confortando também o direito do<br />

usuário, o contido no artigo 22, também do CDC, que estabelece, inclusive, que os serviços devem ser<br />

contínuos.<br />

Desta maneira, o corte não se mostra possível. Em prol da tese do usuário, outrossim, algumas<br />

decisões jurisprudenciais têm sido proferidas. Veja-se a propósito a orientação do Egrégio 1º Tribunal de<br />

Alçada Cível do Estado de São Paulo quando apreciou e julgou o apelo manejado em sede de Mandado de<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7668


Segurança (Ap. MS 647.627-3 - 9ª Câm. Ext. - j. 09.10.1997 - rel. Juiz Sebastião Flávio da Silva Filho): [6]<br />

SERVIÇO PÚBLICO - Água potável - Suspensão do fornecimento em virtude de inadimplência do<br />

usuário - Inadmissibilidade - Voto vencido.<br />

O fornecimento de água potável nos domicílios é serviço público essencial posto à disposição do<br />

cidadão, que não tem o arbítrio de recusá-lo não podendo, portanto, ser dele privado, em virtude de<br />

inadimplência, a qual deve ser resolvida pelos meios judiciais ordinários.<br />

Veja-se, ademais, outrossim, a seguinte decisão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no<br />

recurso especial nº 201.112-SC, que teve como relator o Ministro Garcia Vieira: [7]<br />

O fornecimento de água, por tratar-se de serviços público fundamental, essencial e vital ao ser<br />

humano, não pode ser suspenso pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas, já que o Poder<br />

Público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos dos usuários. Ademais, se os<br />

serviços públicos são prestados em prol de toda a coletividade, é medida ilegal sua negação a um<br />

consumidor tão-somente pelo atraso no seu pagamento.<br />

4.4.2.- Orientações contrárias ao usuário<br />

Feita, assim, investigação em torno dos argumentos do usuário, este trabalho não se mostraria<br />

completo se o contraponto também não fosse prestigiado, de sorte que é preciso centrar, também, a atenção<br />

na tese do prestador dos serviços que, como se disse em linhas atrás, penderá por dizer que o ato da<br />

suspensão dos serviços públicos está calcado, no âmbito da legislação federal, no inciso II do § 3º do artigo<br />

6º da Lei nº 8.987, que diz que não se caracteriza como descontinuidade dos serviços a interrupção por<br />

inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.<br />

Tal argumento tem sido acatado por alguns escritores. Com efeito, Luiz Alberto Blanchet (1995, p.<br />

42), ao analisar a Lei nº 8.987, escreve:<br />

O segundo motivo (...) da interrupção -inadimplemento do usuário- põe termo a equivocado<br />

entendimento de alguns no sentido de que o consumidor de energia elétrica, por exemplo, mesmo<br />

quando inadimplente, teria direito à continuidade do serviço. O princípio da permanência do<br />

serviço público protege exclusivamente aqueles que se encontram em situação juridicamente<br />

protegida, e o consumidor inadimplente evidentemente não se encontra em tal situação, inclusive<br />

em função do princípio da igualdade dos usuários perante o prestador do serviço.<br />

De outra banda, vários julgados também têm prestigiado e reconhecido a tese no sentido de que a<br />

suspensão do fornecimento de água é possível.<br />

A jurisprudência, portanto, não é pacífica em torno do tema. Mas, de qualquer forma, aí está<br />

delineada a controvérsia, de sorte que é chegada a hora de tomar partido em torno do debate, mesmo porque<br />

a situação não acomoda que se repita, a respeito das teses do usuário e do prestador de serviços, o velho<br />

mote segundo o qual tout le deux ont raison, de maneira que é de se analisar se, uma vez prevalecida a<br />

possibilidade de suspensão do fornecimento de água, não estar-se-ia diante do mero simbolismo<br />

constitucional.<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7669


4.4.3. Da Lei nº 11.445/2007 e Projeto de Lei nº 178/08 em trâmite no Congresso Nacional<br />

Ao prestador do serviço público de água, o inciso V do art. 40 da Lei 11.445, de 05 de janeiro de<br />

20007, possibilita interrompê-lo em decorrência do inadimplemento do usuário, se houver omissão no<br />

pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado. No § 2º do mesmo artigo, o legislador criou a<br />

obrigatoriedade de um prévio aviso formal ao usuário por prazo ao menos igual a 30 (trinta) dias da data<br />

prevista para a suspensão.<br />

Ainda no § 3º do mesmo dispositivo, ressalva a interrupção ou restrição do fornecimento de água por<br />

inadimplência de estabelecimentos de saúde, de instituições educacionais, de internação coletiva de pessoa e<br />

a usuário residencial de baixa renda beneficiário de tarifa social, no que se deverá obedecer a prazos e<br />

critérios que preservem condições mínimas de manutenção da saúde das pessoas atingidas.<br />

Embora se reconheça alguma melhoria, consistente na abertura de nova perspectiva para a solução<br />

do problema, não se pode aceitá-la, uma vez que a legislação assim positivada continua sem respeitar o<br />

mínimo vital do indivíduo. Ora, se há a possibilidade do fornecedor da água buscar o equivalente financeiro<br />

do serviço prestado por meio de ação judicial de cobrança normal da tarifa, que é meio alternativo razoável,<br />

não se justifica que se tome a medida extrema de cortar o fornecimento de água, líquido essencial ao ser<br />

humano. Essa essencialidade não constitui mero benefício ao bem estar da população, pois vai muito além,<br />

uma vez que sem esse precioso líquido nem mesmo se pode pensar na sobrevivência do indivíduo. É<br />

mesmo, sem dúvida, um mínimo vital.<br />

Esse mínimo vital, até que não seja previamente previsto em orçamento ou como encargo de quem<br />

deve prestar o serviços de fornecimento de água, não pode sofrer restrições orçamentárias e deve respeitá-lo<br />

tanto o órgão estatal como a entidade concessionária.<br />

O Prof. Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, p.176), após se insurgir contra a importação pelo Brasil<br />

da denominada teoria da reserva do possível, mostra que os limites materiais do orçamento contrapõem-se<br />

ao “aumento progressivo das exigências dos cidadãos em relação aos direitos de participação nos benefícios<br />

da vida associada (direitos fundamentais sociais). Ao prosseguir nessa mesma linha de raciocínio, mesmo<br />

firmando-se na concepção original da teoria da reserva do possível, esse estudioso entende, em apertada<br />

síntese que se deve observar dois pontos essenciais de seu regime jurídico:<br />

· observância, intransigente e incondicionada, do mínimo vital;<br />

· realização de outros direitos sociais, condicionada às possibilidades do orçamento, desde que<br />

comprovado o esforço proporcional do Estado em dar resposta à respectiva demanda social.<br />

(grifamos)<br />

Frise-se que tramita no Congresso Nacional, Projeto de Lei nº 178/08 de iniciativa do Senador<br />

Antonio Carlos Valadares, já aprovado terminativamente na Comissão de Constituição e Justiça do Senado,<br />

no dia 06 de abril de 2010, que proíbe o corte de serviços básicos essenciais, como fornecimento de água,<br />

energia elétrica, tendo como beneficiados pessoas e famílias de baixa renda, instituições de saúde, escolas,<br />

presídios e centro de internações de jovens. Ademais, o projeto de lei confere, inclusive às pessoas não<br />

agraciadas por esse benefício realmente otimizado, o direito de serem previamente notificadas, no prazo<br />

mínimo de 30 dias, antes de o corte do serviço de fornecimento de água vir a ser efetivado, para a liquidação<br />

do quantum devido.<br />

Os autores continuam defendendo, com o mesmo raciocínio e motivos até aqui expostos, a<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7670


inconstitucionalidade da Lei 11.445/2007. Assim, pelos motivos esposados na tese favorável ao usuário,<br />

embora não se possa deixar de olvidar que há pequeno avanço tanto na referida Lei quanto no Projeto de Lei<br />

178/2008 ao conferir e proteger grupos de pessoas que necessitam de serviços essenciais, com restrição de<br />

ação do poder público ou de seus concessionários aos hipossuficientes, grupos vulneráveis e minorias, tem-<br />

se que avançar ainda mais, a fim de proteger o mínimo vital.<br />

Ante o exposto, crêem os autores deva ser alterada mesmo a Lei 11.445/2007, todavia, se vier a ser<br />

aprovado, pelos parlamentares federais, o Projeto de Lei nº 178/08, ainda não se chagará à preservação<br />

necessária do mínimo vital do consumidor de água economicamente fragilizado e bem por isso eventual ou<br />

recidivamente inadimplente.<br />

5. Do mero simbolismo constitucional uma vez prevalecida a possibilidade de se suspender o<br />

fornecimento de água<br />

Demonstrou-se, até aqui, que o princípio orientador, contido na Carta Maior, enseja e leva a se<br />

dessumir que a garantia do fornecimento de água está atrelado ao fato de que o usuário tem o direito<br />

fundamental de ter a água potável, não só em decorrência de seus atributos de ser humano que, sem ela, não<br />

reúne sequer condições para sua existência.<br />

Ora, mesmo que exista lei, como se demonstrou, que permite o corte do fornecimento da água, a<br />

norma constitucional evidentemente haverá de prevalecer sobre a referida regra infraconstitucional. E isso<br />

decorre porque é a própria Constituição que, em seu inciso III do art. 1º, diz que o fundamento do próprio<br />

Estado Democrático de Direito repousa e tem como base a dignidade da pessoa humana, isso sem contar as<br />

garantias sufragadas nos artigos 6º e 196, que estabelecem que a saúde é direito de todos e dever do Estado,<br />

de sorte que não se pode conceber, com base nisso, que se permita possa alguém ficar privado de água.<br />

Em verdade, essa possibilidade, de se privar alguém de água, enseja até mesmo a que se afirme que,<br />

com isso, os cânones constitucionais estariam se convertendo em verdadeiros simbolismos.<br />

Com efeito, veja-se, a propósito, o escólio de Marcelo Neves (2007, p. 99) que, depois de analisar a<br />

ocorrência de situações em que se tem a legislação simbólica, a respeito especificamente da<br />

constitucionalização simbólica assim escreve:<br />

A constitucionalização simbólica vai diferenciar-se da legislação simbólica pela sua maior<br />

abrangência nas dimensões social, temporal e material. Enquanto na legislação simbólica o<br />

problema se restringe a relações jurídicas de domínios específicos, não sendo envolvido o sistema<br />

jurídico como um todo, no caso da constitucionalização simbólica esse sistema é atingido no seu<br />

núcleo, comprometendo-se toda a sua estrutura operacional. Isso porque a Constituição, enquanto<br />

instância reflexiva fundamental do sistema jurídico (...), apresenta-se como mera metalinguagem<br />

normativa em relação a todas as normas infraconstitucionais, representa o processo mais<br />

abrangente de normatização no interior do direito positivo.<br />

Com isso, segundo ainda Neves (2007, p. 103), após analisar que a constitucionalização simbólica<br />

pode-se apresentar como mera corroboração de determinados valores sociais ou como fórmula de<br />

compromisso dilatório, o texto constitucional, mesmo trazendo a garantia ao direito fundamental, o que se<br />

tem, em casos como o que ora se analisa, é, em última análise, uma constitucionalização-álibi:<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7671


Porém, nessa hipótese, não estaríamos mais no domínio estrito dos compromissos-fórmula<br />

dilatórios <strong>–</strong>que sempre podem surgir em qualquer processo de constitucionalização, implicando<br />

função simbólica de aspectos parciais da Constituição<strong>–</strong>, senão perante o problema mais abrangente<br />

da constitucionalização-álibi. Daí porque restrinjo a questão da constitucionalização simbólica aos<br />

casos em que a própria atividade constituinte (e reformadora), o texto constitucional e o discurso a<br />

ele referente funcionam, antes de tudo, com álibi para legisladores constitucionais e governantes<br />

(em sentido amplo), como também para detentores do poder não integrados formalmente em<br />

organização estatal.<br />

Ora, os princípios constitucionais citados, seja o que dá fundamento ao Estado Democrático de<br />

Direito e sobreleva a dignidade da pessoa humana (Cf. art. 1º, III) como um de seus principais pilares, seja o<br />

que estabelece que os objetivos da República envolvem a construção de uma sociedade livre, justa e<br />

solidária, com vista a erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais (Cf. art. 3º, inc. I e III), não se<br />

harmonizam, de modo algum, com a legislação infraconstitucional que permite a interrupção do<br />

fornecimento de água potável para uma determinada pessoa, porque, essa permissão, em última análise, se<br />

traduz em converter o texto constitucional em algo simbólico e destituído, portanto, de qualquer valor e<br />

efetividade.<br />

É tempo, portanto, de se ter o direito fundamental não como mera declaração de princípios, mas<br />

como verdadeiras normas que conferem direitos subjetivos aos indivíduos, sendo importante relevar, por<br />

oportuno, o escólio de Virgílio Afonso da Silva (2008, p. 77) que, ao destacar o papel de sistema de valores<br />

que os direitos fundamentais desempenham no ordenamento jurídico, escreve:<br />

Esse sistema de valores não pode ser confundido, contudo, com a superada idéia de “mera<br />

declaração de princípios”, mencionada acima. A concepção de “declaração de princípios”, muito<br />

difundida, especialmente na República de Weimar, quase sempre foi entendida como simples<br />

“declaração de intenções” do poder constituinte em relação à atividade legislativa, uma declaração<br />

sem valor normativo e, por isso, não vinculante. Um sistema de valores pretende ser muito mais do<br />

que isso, pois é o ponto de partida, vinculante, para uma constitucionalização do direito e uma<br />

ampliação da própria força normativa da constituição.<br />

Sabe-se, ademais, segundo o pensamento de Häberle, que todos somos regulados pela norma<br />

constitucional e ao mesmo tempo somos intérpretes dela. Isso, inclusive, levou ainda Silva (2008, p. 113),<br />

ao analisar os textos de Häberle, a fazer mais os seguintes comentários, que se mostram importantes para o<br />

presente trabalho:<br />

Isso significa que praticamente todas as ações humanas seriam ao mesmo tempo reguladas pela<br />

constituição e uma manifestação de uma interpretação constitucional, o que teria como<br />

consequência o fato de que nenhuma área da vida teria independência das normas constitucionais.<br />

O legislador, nesse sentido, seria um mero intérprete da Constituição, e sua tarefa consistiria<br />

sobretudo na efetivação dos direitos fundamentais.<br />

Portanto, é preciso consolidar, de vez, que os direitos fundamentais expressam valores que devem ter<br />

real concretude e não meras declarações simbólicas de princípios.<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7672


6.- Considerações finais<br />

Para pôr fecho a este opúsculo, parece oportuno que se transcreva as sábias palavras de Miguel<br />

Maria de Serpa Lopes (1959, p. 95) que, ao se manifestar sobre a interpretação das leis, assim se escreve<br />

Em nosso Direito, portanto, não há espaço para uma jurisprudência do Direito, no sentido direto de<br />

uma fonte de Direito.<br />

Nem outro é o sentido em alguns julgados de nossos Tribunais.<br />

O Tribunal de Apelação do Estado da Guanabara, a propósito (...) doutrinou que “a lei sempre teve<br />

e tem cunho de generalização. Não prevê todos os casos que possam ocorrer no presente e no<br />

futuro. A sua rigorosa interpretação não raro conduz a soluções desumanas. Humanizar as leis,<br />

aplicá-las com equidade, bom-senso, individuação, atentas sempre às realidades da vida, à<br />

relatividade das coisas, às exigências atuais da sociedade, da cultura e da civilização, eis os<br />

princípios que devem preponderar nas decisões judiciais.”<br />

Tais palavras, ditas há tempo e extraídas de antigo julgado do Estado do Rio de Janeiro, ainda soam<br />

atuais para a conclusão deste trabalho. Com efeito, analisadas bem os termos de ambas as teses, é de se<br />

inclinar e prestigiar o ponto de vista do usuário. E assim se diz porque o fornecimento de água, nos dias<br />

atuais, é serviço essencial, de sorte que o cidadão não pode, de modo algum, dela prescindir, sob pena de<br />

pôr em risco a sua própria sobrevivência.<br />

Ademais, mesmo sendo específico e de utilização individual e mensurável, não deixa dito serviços<br />

de ter, como se disse, característica de essencial à vida do cidadão, de modo que sua continuidade é<br />

imprescindível, além do que envolve saúde pública, bem este que é, de resto, tutelado pela Carta Maior<br />

(cânones 196 a 200).<br />

Portanto, o corte se mostra abusivo, pelo que cabente é, sim, o Mandado de Segurança, para<br />

assegurar o direito líquido e certo do usuário a ter o serviço público de água.<br />

Apesar de ter esse entendimento, sabe-se que o Superior Tribunal de Justiça mudou os rumos de sua<br />

orientação em relação ao assunto. De fato, veja o teor da decisão proferida no Resp 822090/RS[8], que teve<br />

como relator o Ministro José Delgado, que inclusive não admite o corte d’água, como se pode observar pelo<br />

teor da ementa do julgado:<br />

ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONS<strong>UM</strong>IDOR. AUSÊNCIA <strong>DE</strong><br />

PAGAMENTO <strong>DE</strong> TARIFA <strong>DE</strong> <strong>ÁGUA</strong>. INTERRUPÇÃO DO <strong>FORNECIMENTO</strong>. CORTE.<br />

IMPOSSIBILIDA<strong>DE</strong>. ARTS. 22 E 42 DA LEI Nº 8.078/90 (CÓDIGO <strong>DE</strong> PROTEÇÃO E<br />

<strong>DE</strong>FESA DO CONS<strong>UM</strong>IDOR). ENTENDIMENTO DO RELATOR. ACOMPANHAMENTO<br />

DO POSICIONAMENTO DA 1ª SEÇÃO DO STJ. PRECE<strong>DE</strong>NTES. (...)<br />

2. Não resulta em se conhecer como legítimo o ato administrativo praticado pela empresa<br />

concessionária fornecedora de água e consistente na interrupção de seu serviço, em face de<br />

ausência de pagamento de fatura vencida. A água é, na atualidade, um bem essencial à população,<br />

constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua<br />

prestação, pelo que se mostra impossível a sua interrupção. (...)<br />

5. Caracterização do periculum in mora e do fumus boni iuris para sustentar deferimento de liminar<br />

a fim de impedir suspensão de fornecimento de água. Esse é o entendimento deste Relator.<br />

6. No entanto, embora tenha o posicionamento acima assinalado, rendo-me, ressalvando meu ponto<br />

de vista, à posição assumida pela ampla maioria da 1ª Seção deste Sodalício, pelo seu caráter<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7673


uniformizador no trato das questões jurídicas no país, que vem decidindo que “é lícito à<br />

concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor<br />

de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta”.<br />

À guisa de arremate ante todo o exposto, sustentamos que mesmo existindo lei que permite a<br />

suspensão do fornecimento dos serviços públicos e mesmo diante da orientação do Superior Tribunal de<br />

Justiça, quer nos parecer que o melhor caminho, para se enfrentar o caso ora analisado, seria e é realmente o<br />

de “(...) humanizar as leis, aplicá-las com equidade, bom-senso, individuação, atentas sempre às realidades<br />

da vida, à relatividade das coisas, às exigências atuais da sociedade, da cultura e da civilização (...)”,<br />

porque exatamente são esses os princípios que devem preponderar nas decisões judiciais, tudo para que não<br />

tenhamos, como se disse, situação que envolva mera constitucionalização simbólica que, no caso brasileiro,<br />

tem-se denominado de constituição dirigente, que foi criada, portanto, com o fito de fixar planos de ação<br />

para a transformação da própria sociedade.<br />

Referências bibliográficas<br />

BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 1994.<br />

BLANCHET, Luiz Alberto. Concessão e permissão de serviços públicos. 1. ed. Curitiba: Juruá, 1995.<br />

CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. Coimbra: Almedina, s. d. Vol. I.<br />

CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? - Tradução de Carlos Alvaro de Oliveira. Porto Alegre:<br />

Sergio Antonio Fabris Editor, 1999.<br />

<strong>DE</strong>NARI, Zelmo. Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária.<br />

DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Liminar em Mandado de Segurança: natureza jurídica e importância<br />

histórica. Uma tentativa de reenquadramento dogmático em face das últimas reformas processuais. Jus<br />

Navigandi, Teresina, ano 6, n. 56, abr. 2002.<br />

Disponível em: . Acesso em: 07 abr. 2010.<br />

DIMOLIS, Dimitri. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.<br />

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 12ª. ed. São Paulo: Atlas, 2000.<br />

FERREIRA, Luiz Pinto. Curso de Direito Constitucional,11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001.<br />

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.<br />

FREIRE JÚNIOR. Américo Bedê. O Controle Judicial de Políticas Públicas. Temas Fundamentais de<br />

Direito v. 1. São Paulo: RT, 2005<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7674


LOPES, Miguel Maria de Serpa. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. 2. ed. Rio de Janeiro:<br />

Freitas Bastos, 1959, vol. I.<br />

LIMA, Márcio Kammer de. A exigência de caução na tutela liminar no regime da nova Lei de Mandado de<br />

Segurança (Lei nº 12.016/09). Avanço, não retrocesso!. Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2266, 14 set.<br />

2009. Disponível em: . Acesso em: 06 abr. 2010.<br />

LUÑO, Antonio Enrique Perez. Derechos humanos, estado de derecho y constitucion. 6. ed. Madrid:<br />

Tecnos, 1999.<br />

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.<br />

______. Mandado de Segurança, Ação Popular, Ação Civil pública, Mandado de Injunção, “habeas data”<br />

. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 1992.<br />

MOREIRA, Antonio Ricardo. O novo "apartheid" criado com a lei do Mandado de Segurança. Jus<br />

Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2432, 27 fev. 2010. Disponível em:<br />

. Acesso em: 07 abr. 2010.<br />

NEVES, Marcelo. A Constitucionalização simbólica. 2. ed. São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora,<br />

2007.<br />

NUNES JR, Vidal Serrano. A Cidadania Social na Constituição de 1988 <strong>–</strong> Estratégias de Positivação e<br />

Exigibilidade Judicial dos Direitos Sociais. São Paulo: Editora Verbatim.<br />

PACHECO, José da Silva. O Mandado de Segurança e outras ações constitucionais típicas. 2. ed. São<br />

Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.<br />

ROTHENBURG, Walter Claudius. Direitos fundamentais e suas características. Revista de direito<br />

constitucional e internacional. São Paulo, nº 30, jan-mar 2000.<br />

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado<br />

Editora, 2001.<br />

SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 10. ed. São Paulo: Malheiros Editores,<br />

1995.<br />

SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito. Os direitos fundamentais nas relações entre<br />

particulares. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.<br />

STRECK, Lenio Luiz. As constituições sociais e a dignidade da pessoa humana como princípio<br />

fundamental. 1988-1998, uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1988.<br />

[1] Tanto o Mandado de Segurança individual como o coletivo, hodiernamente, estão previstos no artigo 5º, LXIX<br />

e LXX, da Constituição, e disciplinados pela Lei nº 12.016, de 07 de agosto de 2009.<br />

* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />

7675


[2] A liminar em mandado de segurança antecipa os efeitos da futura sentença que decidir pela procedência do pedido, sendo, portanto,<br />

medida antecipatória. Esta característica é percebida por todos quantos estudaram o tema, até mesmo por aqueles que concebem a medida<br />

liminar como cautelar — estes últimos, como vimos, davam mais valor ao elemento segurança.<br />

DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Liminar em mandado de segurança: natureza jurídica e importância histórica. Uma tentativa de<br />

reenquadramento dogmático em face das últimas reformas processuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em:<br />

. Acesso em: 07 abr. 2010.<br />

[3] Disponível em:

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!