O MÍNIMO VITAL E O FORNECIMENTO DE ÁGUA – UM ... - Conpedi
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O <strong>MÍNIMO</strong> <strong>VITAL</strong> E O <strong>FORNECIMENTO</strong> <strong>DE</strong> <strong>ÁGUA</strong> <strong>–</strong> <strong>UM</strong> <strong>DE</strong>SAFIO AO PO<strong>DE</strong>R JUDICIÁRIO<br />
EM FACE DA NOVA LEI DO MANDADO <strong>DE</strong> SEGURANÇA<br />
THE MINIM<strong>UM</strong> SUBSISTENCE AND THE SUPPLY OF WATER <strong>–</strong> A CHALLENGE FOR THE<br />
JUDICIARY IN THE FACE OF THE NEW WRIT OF MANDAMUS<br />
Jaime Domingues Brito<br />
Teófilo Marcelo de Arêa Leão Júnior<br />
RES<strong>UM</strong>O<br />
O artigo investiga a possibilidade ou não de o Poder Público vir a suspender o fornecimento de água por<br />
falta de pagamento. Procura, assim, destacar que a suspensão dos serviços de fornecimento de água envolve<br />
a violação aos direitos da cidadania e da dignidade da pessoa humana, bem como atenta contra os objetivos<br />
fundamentais da República, que se referem à construção de uma sociedade livre e solidária, como também a<br />
de erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais. O artigo mostra, portanto, como é importante o<br />
atendimento ao Mandado de Segurança do qual o usuário poderá lançar mão se essa hipótese vier a ocorrer<br />
porque, caso contrário, isto é, em caso de não acatamento desse remédio jurídico, o próprio texto<br />
constitucional poderá apresentar-se como meramente simbólico e não de autêntica concretização.<br />
PALAVRAS-CHAVES: Fornecimento de água; suspensão; mínimo vital; direito fundamental do usuário;<br />
Mandado de Segurança.<br />
ABSTRACT<br />
The article investigates the possibility of the Public Power comes to suspend the water supply by a lack of<br />
payment. The article destaches that the suspension of the service of water supply involves the violation of<br />
the right citizenship and the dignity of the human person and the Republic’s fundamentals objectives, that<br />
are in connection with the construction of a society where must have freedom and solidarity, and must also<br />
look for the eradication of poverty and the social inequalities. The article shows, therefore, how important is<br />
to comply with a request the writ of mandamus that the consumer can entreat if the hypothesis comes to<br />
happen, because, if her writ of mandamus is not conceded, the constitutional text could be considerate as<br />
something only symbolical and without a authentic realization.<br />
KEYWORDS: Water supply; suspension; the minimum subsistence; user’s human right; writ of<br />
mandamus.<br />
Sumário:<br />
1. Introdução. 2. DA TESE DO USUÁRIO. 3. DA TESE CONTRÁRIA AO INTERESSE DO<br />
USUÁRIO. 4. DA EVENTUAL OFENSA A DIREITO FUNDAMENTAL DO USUÁRIO E DA<br />
POSSIBILIDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> IMPETRAÇÃO <strong>DE</strong> MANDADO <strong>DE</strong> SEGURANÇA CONTRA O ATO<br />
ABUSIVO. 4.1. Conceito e características dos direitos fundamentais 4.2. As origens do Mandado de<br />
Segurança. 4.3.- O conceito de direito líquido e certo para a impetração da segurança, a possibilidade<br />
de concessão de liminar e seu condicionamento à caução. 4.4. O mérito do Mandado de Segurança.<br />
4.4.1. Orientações a favor do usuário. 4.4.2. Orientações contrárias ao usuário. 4.4.3. Da Lei nº<br />
11.445/2007 e Projeto de Lei nº 178/08 em trâmite no Congresso Nacional. 5. Do mero simbolismo<br />
constitucional uma vez prevalecida a possibilidade de se suspender o fornecimento de água. 6.<br />
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />
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Considerações Finais. Referências bibliográficas.<br />
1.- INTRODUÇÃO<br />
O propósito de investigar a possibilidade ou não de o Poder Público vir a suspender o fornecimento<br />
de água por falta de pagamento é da maior importância. Isso se dá porque o assunto envolve o eventual<br />
direito do consumidor em ter o serviço religado uma vez ocorrida a suspensão, isso, independentemente, do<br />
pagamento da conta. De igual forma, relevante se mostra também o estudo em torno do remédio jurídico do<br />
qual o usuário poderá lançar mão, se essa hipótese vier a ocorrer.<br />
Realmente, tem sido motivo de controvérsia a análise em torno do ato de suspensão, por parte do<br />
Poder Público, do fornecimento de água, posto que isso implicaria, em tese e segundo alegam alguns, em<br />
ofensa ao direito à cidadania e à dignidade da pessoa humana, que não pode sobreviver sem água. Estar-se-<br />
ia, portanto <strong>–</strong>uma vez ocorrida a hipótese<strong>–</strong> diante não só de ofensa ao direito do consumidor, mas também<br />
em situação de violação de princípio constitucional. Entretanto, a opinião contrária, no sentido de que o<br />
Poder Público ou a pessoa jurídica concessionária do serviço público poderia suspender o fornecimento do<br />
mesmo serviço, inspirou outros pensadores a sustentarem que, por não atingir a coletividade, a interrupção<br />
do fornecimento de água seria inteiramente possível, havendo, inclusive, em lei e segundo a orientação da<br />
jurisprudência, respaldo para a prática de tal ato contra a pessoa individual usuária do serviço público.<br />
Mas, de qualquer forma, uma vez ocorrida a suspensão do fornecimento de água, por falta de<br />
pagamento, aquele que se sentiu lesado pode ir, se quiser, bater às portas do Pretório para defender o seu<br />
direito de continuar a ter o serviço. E certamente fará isso valendo-se do remédio heróico.<br />
A utilização da ação mandamental, por sua vez, abre novo debate, porque isso implica em saber se<br />
houve ou não ofensa ao direito líquido e certo do interessado e se tem ou não ele direito à obtenção de<br />
liminar ao impetrar a segurança, importando também saber, em última análise, se o writ of mandamus, no<br />
mérito, vingará ou não.<br />
Além disso, outra preocupação que surgirá, ao se analisar a questão, é exatamente aquela que se liga<br />
à concretização do próprio direito fundamental relativo à dignidade da pessoa humana. Ou seja, mostra-se<br />
merecedor de atenção, ao se debater o caso, se o não fornecimento da água não estaria se traduzindo e<br />
fazendo com que o próprio texto constitucional se apresentasse apenas simbólico e destituído, portanto, de<br />
efetividade.<br />
Assim, indicada a controvérsia e também o remédio jurídico que poderá ser utilizado no caso da<br />
eventual ocorrência de suspensão do serviço público, é de se analisar, em tópicos apartados, alguns dos<br />
termos do problema ora apresentado.<br />
2.- DA TESE DO USUÁRIO<br />
Interrompida a prestação de serviço, o usuário obviamente irá sustentar que tem direito ao acesso<br />
irrestrito e contínuo do serviço público de fornecimento de água canalizada e potável, porque tal serviço se<br />
constitui e se caracteriza como essencial para a sua própria sobrevivência, constituindo-se em verdadeiro<br />
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assunto de saúde pública, corolário, portanto, do direito à cidadania e à dignidade da pessoa humana, que se<br />
constituem em fundamentos da própria República Federativa e do Estado Democrático de Direito e<br />
sufragados nos incisos II e III do artigo 1º da Carta Maior.<br />
Além disso, a interrupção no fornecimento da água, por parte do agente do serviço público, se<br />
mostra ilegal e abusiva, porque o Código de Defesa ao Consumidor, que veio a lume por força do que<br />
dispõe o inc. XXXII do art. 5º da Carta Magna, não permite, de modo algum, que o serviço seja suspenso<br />
por falta de pagamento.<br />
A tese do usuário, portanto, será a de que a suspensão do fornecimento de água como meio de<br />
coerção para o recebimento de contas atrasadas é vedada pelo Código de Defesa do Consumidor, que em<br />
seu art. 42 assim prescreve: “Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a<br />
ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.”<br />
Desta maneira, alegará o usuário que, para o recebimento da conta ou das contas atrasadas, o credor<br />
deveria se utilizar dos meios judiciais cabentes e não expô-lo ao ridículo, submetendo-o ao constrangimento<br />
de ficar sem água, ofendendo, com isso, os princípios constitucionais da cidadania e da dignidade da pessoa<br />
humana.<br />
3.- DA TESE CONTRÁRIA AO INTERESSE DO USUÁRIO<br />
A tese contrária, que também tem merecido prestígio, de igual maneira é de ser analisada. De fato, o<br />
agente público dirá em seu favor que a conduta de interromper o fornecimento de água por falta de<br />
pagamento não se mostra ilegal e abusiva, porque o “corte”, principalmente no Estado do Paraná <strong>–</strong>onde este<br />
trabalho é em parte desenvolvido por um dos seus autores<strong>–</strong>, é previsto na alínea a do art. 38 do Decreto nº<br />
3.926/88.<br />
Na visão do prestador do serviço público, portanto, não haveria ilegalidade no ato de interromper o<br />
fornecimento de água. Ademais, outro ponto que poderá levantar é o conteúdo do contrato ao qual o usuário<br />
aderiu, onde prevista estava, também, a possibilidade do corte d’água.<br />
De outra banda, o prestador de serviços poderá sustentar que, ao obter a concessão, através de<br />
contrato firmado com o Poder Público, prevista havia sido a possibilidade de interrupção do fornecimento<br />
d’água, de modo que, como concessionário, ao cortar a água por falta de pagamento das contas, estaria a<br />
cumprir aquilo que o contrato de concessão lhe permitia fazer.<br />
Já no âmbito da legislação federal, quando se trata de concessão ou permissão <strong>–</strong>dirá o prestador de<br />
serviços<strong>–</strong> há previsão para a interrupção da prestação dos serviços, segundo o teor do inc. II, do § 3º do art.<br />
6º da Lei nº 8.987/95.<br />
Não se pode negar, ao menos por ora, que o argumento da tese contrária se mostra bastante robusto.<br />
Convém prosseguir, contudo, no trabalho investigativo para, ao final, optar por uma ou outra das teses.<br />
4.- DA EVENTUAL OFENSA A DIREITO FUNDAMENTAL DO USUÁRIO E DA<br />
POSSIBILIDA<strong>DE</strong> <strong>DE</strong> IMPETRAÇÃO <strong>DE</strong> MANDADO <strong>DE</strong> SEGURANÇA CONTRA O ATO<br />
ABUSIVO<br />
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Importa saber, em primeiro lugar, se o ato de interromper o fornecimento de água se traduz ou não<br />
em violação de direito fundamental do cidadão. Além disso, se positiva for a resposta a essa dúvida, é de se<br />
indicar, também, qual o remédio jurídico do qual poderá o ofendido valer-se para reparar ou minimizar a<br />
ofensa.<br />
Para isso, em itens apartados e em largas linhas, pretende-se neste trabalho: a) conceituar e<br />
caracterizar os direitos fundamentais; b) investigar, também de modo abreviado, as origens do Mandado de<br />
Segurança, trazendo algumas anotações sobre o direito estrangeiro; c) analisar o conceito de direito líquido e<br />
certo para a impetração da segurança em face do caso concreto e estudar se é possível ou não a concessão de<br />
liminar na segurança; d) investigar se a segurança deve ou não ser concedida; e e) verificar, por derradeiro <strong>–</strong><br />
uma vez considerado o direito do usuário como verdadeiro direito fundamental e não atendido o Mandado<br />
de Segurança <strong>–</strong> se o caso não envolveria os princípios constitucionais em meros simbolismos e desprovidos,<br />
portanto, de efetividade.<br />
4.1.- Conceito e características dos direitos fundamentais<br />
José Afonso da Silva (1995, p.174), ao tratar do conceito de direitos fundamentais, com acerto<br />
observa o seguinte:<br />
A ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no evolver histórico dificultalhes<br />
um conceito sintético e preciso. Aumenta essa dificuldade a circunstância de se empregarem<br />
várias expressões para designá-los, tais como: direitos naturais, direitos humanos, direitos do<br />
homem, direitos individuais, direitos públicos subjetivos, liberdades fundamentais, liberdades<br />
públicas e direitos fundamentais do homem.<br />
Assim, neste trabalho, para a designação dos direitos fundamentais, as expressões acima serão<br />
utilizadas como se sinônimas fossem.<br />
Já Antonio Enrique Perez Luño (1999, p. 12-14) desenvolve pensamento inteligente ao trazer a<br />
delimitação conceitual dos direitos humanos. Realmente, diz o autor que os resultados a que se chega<br />
quando se questiona a um homem médio o que entende ele a respeito de “direitos humanos” é semelhante à<br />
resposta que se obtém quando se pergunta ao homem comum o que significa o termo “razão”, porque, em<br />
ambos os casos, as pessoas arguirão que se trata de questão supérflua, já que o vocábulo “razão” se explica<br />
por si mesmo, além do que, no que se refere aos “direitos humanos”, inegável se mostra que todos têm<br />
perfeita noção de seus próprios direitos.<br />
Portanto, o uso do termo “direitos humanos” se alargou enormemente, servindo, pois, de base para<br />
argumentos de caráter social, político e jurídico.<br />
Após elaborar resenha histórica em torno do surgimento dos direitos humanos e citar, inclusive,<br />
trecho da obra de S. F. Ketchekian, Luño (1999, p. 23) destaca que a primeira aparição da idéia de direitos<br />
humanos teve lugar durante a luta contra o regime feudal e a formação das relações burguesas, não se<br />
devendo esquecer, ademais, que os direitos humanos são frutos da afirmação das idéias jusnaturalistas. Por<br />
outro lado, com base nos ensinamentos de Wolfgang Goethe, Luño (1999, p. 48) esboça a seguinte<br />
definição:<br />
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(...) un conjunto de facultades e instituciones que, en cada momento histórico, concretan las<br />
exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales deben ser reconocidas<br />
positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional. (...)<br />
La definición propuesta pretende conjugar las dos grandes dimensiones que integran la noción<br />
general de los derechos humanos, esto es, la exigencia iusnaturalista respecto a su fundamentación<br />
y las técnicas de positivación y protección que dan la medida de su ejercício.<br />
Trazida, pois, a definição acima, que demonstra e menciona os elementos que compõem os direitos<br />
fundamentais, em passo seguinte cabe investigar se seria ou é possível dizer que o direito à utilização de<br />
água potável pode ser incluído como um direito fundamental do cidadão.<br />
Para isso é de se analisar as características dos direitos fundamentais. De fato, segundo o melhor<br />
escólio de Walter Claudius Rothenburg (2000, p. 145) os direitos fundamentais “(...) são universais porque<br />
inerentes à condição humana (...)”, de modo que,<br />
Se é certo que a noção de direitos fundamentais parte e gira em torno da idéia de atributos do ser<br />
humano por sua mera condição existencial, a indicação do conteúdo desses direitos fica a cargo da<br />
consciência desenvolvida por determinada comunidade em cada momento histórico.<br />
Pois bem, levando em conta as palavras acima, que se mostram bem posicionadas para o que ora se<br />
pretende, pode se dizer que o ser humano possui necessidades básicas, que são peculiares à sua própria<br />
condição de ser vivo. Pode-se dizer, até mesmo, que certas necessidades são universais e se estendem a toda<br />
e qualquer forma de vida. Ora, obviamente que isso se dá em relação à água, que é produto essencial à<br />
existência da vida. De maneira que é de se repetir: se “(...) a noção de direitos fundamentais gira em torno<br />
de atributos do ser humano por sua mera condição existencial (...)” (ROTHENBURG, 2000, P. 145),<br />
dessume-se que a água ou a necessidade dela para a sobrevivência da pessoa humana se constitui em um dos<br />
direitos fundamentais.<br />
Sublinhe-se que a Constituição, ao impor respeito e cumprimento ao que elegeu como direito<br />
fundamental, delimita a função estatal. É justamente por isso que Dimitri Dimolius (2010, p.47) extraiu o<br />
conceito de que os direitos fundamentais têm por finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da<br />
liberdade individual. São direitos de status negativus ou pretensão de resistência à intervenção estatal.<br />
Trata-se de direitos que permitem aos indivíduos resistir a uma possível atuação do Estado. Nessa<br />
hipótese, E (esfera do Estado) não deve intervir (“entrar”) em I (esfera do indivíduo), sendo que o indivíduo<br />
pode repelir eventual interferência estatal, resistindo com vários meios que o ordenamento jurídico lhe<br />
oferece. Estes direitos protegem a liberdade do indivíduo contra uma possível atuação do Estado e,<br />
logicamente, limitam as possibilidades de atuação do Estado. (DIMOLIUS, 2010, p. 55)<br />
Exemplo: a Municipalidade e/ou a concessionária de serviço público tem o dever de fornecer água<br />
aos consumidores, que, por sua vez, devem pagá-la. Em uma linha lógica, poder-se-ia dizer que sem<br />
pagamento não haveria o porquê se operar a continuidade da atividade de fornecimento. Porém, se o direito<br />
de recebimento de água enquadrar-se entre os direitos fundamentais, os usuários podem valer-se da<br />
possibilidade de resistência a uma intervenção estatal de corte de seu fornecimento. A questão que se coloca<br />
é se o corte de fornecimento de água seria forma lícita de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou<br />
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multa, ou extrapola os limites da legalidade ou constitucionalidade conferida ao direito e se este, por seu<br />
conteúdo ou substância, encaixa-se nas características para ser considerado um direito fundamental.<br />
A essência do direito está na proibição imediata de interferência imposta ao Estado. Trata-se de um<br />
direito negativo, pois gera a obrigação negativa endereçada ao Estado, a obrigação de deixar de fazer algo.<br />
Trata-se de uma obrigação de abster-se da intervenção na esfera de liberdade e garantida pela Constituição<br />
(imperativo de omissão <strong>–</strong> Unterlassungsgebot). (DIMOLIUS, 2010, p. 55/56)<br />
Na verdade, não há como justificar, portanto, como a simples falta de pagamento de uma conta<br />
d’água possa ensejar que um ser humano fique ou venha a ficar privado de algo que lhe é fundamental à sua<br />
própria existência.<br />
Um Estado que permite a prática de semelhante ato poderia ser considerado democrático ou de<br />
Direito? Ao cortar ou interromper o fornecimento d’água o Estado estaria realmente valorizando o seu<br />
indivíduo-membro? Não estaria, ao contrário, somente valorizando as relações de consumo?<br />
Ora, se nem os animais podem ser privados da água, como se justificar que possa alguém privar o<br />
homem desse elemento essencial para a sua sobrevivência?<br />
Portanto, uma vez caracterizado o direito fundamental como universal <strong>–</strong>como de resto foi feito nas<br />
linhas anteriores<strong>–</strong> parece-nos que só esta caracterização já seria mais do que suficiente para se dizer que o<br />
corte d’água, uma vez concretizado, ofende, sem dúvida alguma, o direito fundamental do cidadão.<br />
Mas, como os direitos fundamentais têm outras características, acreditamos que outras reflexões<br />
ainda cabem em relação à situação cuja análise ora se realiza. Com efeito, Rothenburg (2000, p. 149) aponta<br />
que, além de universais, os direitos são (1) anteriores à positivação, além do que têm verdadeira (2) inter-<br />
relação entre si, (3) têm possibilidade de expandir-se e (4) são inexauríveis.<br />
Muito bem, viu-se, com base na orientação doutrinária acima, que os direitos fundamentais são<br />
anteriores à própria positivação e por ela não podem ser esgotados. A vida é um direito fundamental e essa<br />
consciência está presente na coletividade antes mesmo de sua positivação.<br />
Para que exista vida <strong>–</strong>e hoje muito se fala em qualidade de vida<strong>–</strong> é necessário que a pessoa usufrua<br />
de vários elementos básicos, dentre os quais, por óbvio, figura a água. Assim, numa sequência lógica, o<br />
direito a ter água para a própria sobrevivência é de ser considerado também como um direito fundamental,<br />
não sendo, inclusive, necessário que esse direito esteja explicitamente reconhecido ou positivado. Basta,<br />
segundo pensamos, que exista consciência de sua fundamentabilidade.<br />
No ponto relativo à inter-relação existente entre os direitos fundamentais, a Constituição Federal, no<br />
inciso III de seu art. 1º diz que o fundamento do próprio Estado de Direito repousa e tem como base a<br />
dignidade da pessoa humana, garantindo, também, no caput do art. 5º, a inviolabilidade do direito à vida,<br />
sufragando, de igual maneira, em seus arts. 6º e 196, que a saúde é direito de todos e dever do Estado.<br />
Ora, como o fundamento do Estado está calcado na dignidade da pessoa humana; como a saúde é<br />
direito de todos e dever do Estado; como, para ter saúde e dignidade ou, em uma palavra, para ter vida a<br />
pessoa carece de água potável, dessume-se que o Estado ou a pessoa jurídica concessionária de serviço<br />
público não pode, de modo algum, interromper o fornecimento de água por falta de pagamento.<br />
Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, p.112), partidário inconteste dos grandes e imortais princípios<br />
gravados na consciência humana, ao tratar do tema, não só demonstra o quanto continua válido e eficaz o<br />
clímax da lição de Kant quanto ser a dignidade um imperativo categórico destituído de equivalência a um<br />
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preço econômico-financeiro, como recomenda que se invoque a força de sua noção básica toda vez que se<br />
precise preservar a dignidade das pessoas, e justamente da força moral dele brota precisas expressões em<br />
que prefixa a linha diretriz que há de ser seguida:<br />
“Enxergar o ser humano como um fim, e não como um meio, aponta necessariamente um outro<br />
ângulo de abordagem do tema, o de que todos devem ter lugar na vida comunitária, donde resulta a<br />
idéia de inclusão, com todos os necessários consectários, também se inclui na noção de dignidade.”<br />
Segundo os constitucionalistas, por todos Pinto Ferreira (2001, p. 131), nenhuma validade prática há<br />
nos direitos do homem se não forem efetivadas as garantias destinadas a protegê-los, as quais são “os<br />
instrumentos práticos ou os expedientes que asseguram os direitos enunciados”. E o Mandado de Segurança,<br />
não há dúvida, é um dos meios de amparo de enorme eficácia contra a ilegalidade ou abuso de poder da<br />
autoridade que transgride os direitos fundamentais do homem.<br />
Por último, conforme já se disse, os direitos fundamentais se expandem e são inexauríveis. Aliás, a<br />
própria Carta de 1988, de modo expresso, no § 2º do art. 5º, sufraga que “Os direitos e garantias expressos<br />
nesta Constituição, não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos<br />
tratados internacionais que a República Federativa do Brasil seja parte”, de sorte que podemos afirmar, com<br />
apoio nos ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1999, p. 254), que “A atual Constituição<br />
brasileira, como as anteriores, ao enumerar os direitos fundamentais, não pretende ser exaustiva ao<br />
estabelecer os setenta e oito incisos do art. 5º.”<br />
Aliás, Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 83-84), a respeito do assunto, assim escreve:<br />
A regra do art. 5º, § 2º da CF de 1988 segue a tradição do nosso direito constitucional republicano,<br />
desde a Constituição de fevereiro de 1891, com alguma variação, mais no que diz com a expressão<br />
literal do texto do que com a sua efetiva ratio e seu telos. Inspirada na IX Emenda da Constituição<br />
dos EUA e tendo, por sua vez, posteriormente influenciado outras ordens constitucionais (de modo<br />
especial a Constituição Portuguesa de 1911 [art. 4º]), a citada norma traduz o entendimento de que,<br />
para além do conceito formal de Constituição (e de direitos fundamentais), há um conceito<br />
material, no sentido de existirem direitos que, por seu conteúdo, por sua substância, pertencem ao<br />
corpo fundamental da Constituição de um Estado, mesmo não constando no catálogo. Neste<br />
contexto, importa salientar que o rol do art. 5º, apesar de exaustivo, não tem cunho taxativo.<br />
Portanto, socorre o pensamento que ora se desenvolve o aspecto de que os direitos fundamentais se<br />
expandem e são inexauríveis, de sorte que, por tudo isso, após analisar as características dos direitos<br />
fundamentais, convencido está o autor deste trabalho de que realmente, com ou sem o pagamento da taxa, o<br />
Estado não pode eximir-se de fornecer água potável ao cidadão. Poderia, é lógico, cobrá-lo pelo não<br />
pagamento. Contudo, interromper ou deixar de prestar o serviço público, isso não poderia e nem pode fazê-<br />
lo.<br />
4.2.- As origens do Mandado de Segurança<br />
Como parece-nos ser cabível a impetração de Mandado de Segurança contra o eventual corte de água<br />
que venha a ocorrer, convém que se trate, também, de modo abreviado, de alguns dos aspectos em torno da<br />
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ação mandamental, iniciando pelas origens do instituto, segundo escreve Maria Sylvia Zanella Di Pietro<br />
(2000, p. 612):<br />
O Mandado de Segurança foi previsto, pela primeira vez, na Constituição de 1934, desapareceu na<br />
Constituição de 1937 e voltou na Constituição de 1946.<br />
Ele surgiu como decorrência do desenvolvimento da doutrina brasileira do habeas corpus. Quando<br />
a Emenda de 1926 restringiu o uso dessa medida às hipóteses de ofensa ao direito de locomoção,<br />
os doutrinadores passaram a procurar outro instituto para proteger os demais direitos. Sob<br />
inspiração dos writs do direito norte-americano e do juicio de amparo do direito mexicano,<br />
institui-se o Mandado de Segurança. Está hoje previsto no art. 5º, LXIX, da Constituição e<br />
disciplinado pela Lei nº 1.533, de 31-12-51.[1]<br />
Como é sabido, outros sistemas também possuem mecanismos de reação para enfrentar eventuais<br />
atos abusivos e ilegais praticados por autoridades públicas. José da Silva Pacheco (1991, p. 101-108) arrola,<br />
dentre esses sistemas, o francês, o italiano, o anglo-americano e o mexicano.<br />
4.3.- O conceito de direito líquido e certo para a impetração da segurança, a possibilidade de<br />
concessão de liminar e seu condicionamento à caução<br />
Ao se questionar se a ação mandamental seria ou é cabente e se o juiz deve ou não conceder a<br />
liminar, os autores deste trabalho têm o convencimento de que a ação é, sim, cabível, por tratar-se de uma<br />
garantia constitucional, que se traduz como o meio ou instrumento judicial de tutela de direito individual,<br />
próprio, líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade pública ou agente de pessoa<br />
jurídica no exercício de sua funções, seja por ilegalidade, seja por abuso de poder, consoante estabelece o<br />
inc. LXIX do art. 5º da Lei Maior.<br />
Deste modo, como principalmente no Estado do Paraná, o fornecimento de água é realizado por<br />
concessionária de serviços públicos, ou seja, por um agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições<br />
de Poder Público, a impetração da segurança se mostra possível sem dúvida alguma.<br />
Os textos, tanto da Constituição como da lei mandamental, fazem referência a direito líquido e<br />
certo, o que sugere e leva a se proceder à revisão conceitual em torno da referida expressão. Dentre os<br />
escritores que se dedicaram a tanto, impõe-se mencionar Hely Lopes Meirelles (1992, p. 25):<br />
Direito líquido e certo é o que se apresenta manifesto na sua existência, delimitado na sua<br />
extensão e apto a ser exercitado no momento da impetração. Por outras palavras, o direito<br />
invocado, para ser amparável por Mandado de Segurança, há de vir expresso em norma legal e<br />
trazer em si todos os requisitos e condições de sua aplicação ao impetrante: se sua existência for<br />
duvidosa; se sua extensão ainda não estiver delimitada; se seu exercício depender de situações e<br />
fatos ainda indeterminados, não rende ensejo à segurança, embora possa ser defendido por outros<br />
meios judiciais. (grifo do autor)<br />
Portanto, à luz dos conceitos acima, resta bem claro que, ocorrida a suspensão do fornecimento de<br />
água, isso equivale a lesão ao direito líquido e certo do usuário do serviço público, que tem por isso, direito<br />
à segurança. E tendo, então, direito à segurança, é de se passar, a seguir, à análise dos requisitos para<br />
obtenção de liminar em matéria de Mandado de Segurança, sendo que a matéria encontra-se disciplinada no<br />
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inciso III e §§1º a 5º do art. 7º da Lei n° 12.016, de 07 de agosto de 2009. Relevante dizer, neste passo, na<br />
linha do pensamento de Fredie Souza Didier Jr (2002)[2], que o pedido de suspensão liminar tem a natureza<br />
antecipatória, já que visa antecipar os efeitos da futura sentença. Para obtê-la terá o usuário de demonstrar<br />
um risco de dano que poderá tornar a medida ineficaz quando da sua concessão.<br />
A nova Lei de Mandado de Segurança, no inc. III do art. 7º, inovou quanto ao direito imediatamente<br />
anterior, ao facultar ao juiz que exija ao impetrante que preste caução para que possa conceder a tutela<br />
liminar, “com o objetivo de assegurar o ressarcimento à pessoa jurídica". Vê-se um retrocesso evidente.<br />
Há quem não pensa assim, como o juiz Márcio Kammer de Lima (2009), ao defender a tese de que<br />
se parte “da equivocada premissa de que os magistrados lançarão mão do uso indiscriminado da exigência<br />
da contracautela, quando não vai nesse sentido a melhor interpretação do reportado enunciado legal”.<br />
Sustenta, com perspicácia, que os "elementos condutores" à tutela liminar “continuam rigorosamente os<br />
mesmos: relevância da fundamentação e risco de ineficácia do provimento final. Verificados in concreto,<br />
impõe-se o deferimento da liminar, inexorável e incondicionalmente.”<br />
Todavia, do modo que o referido inc. III do art. 7º autoriza ao magistrado condicionar o deferimento<br />
da liminar à exigência da caução, não se pode fiar que haverá tamanho equilíbrio de controle inspirado a que<br />
não se limite o direito à tutela mandamental originado em inquestionável essência de direito fundamental.<br />
Não! A liberdade não há de morrer no Brasil, que, não faz muito, teve seu povo reduzido ao<br />
silêncio, amordaçado então, porém, a duras penas ascendeu a um Estado Democrático Social de Direito. Há<br />
os que se querem exaltados ao poder e desejam avassalar o povo, tirando-lhe a voz e a liberdade.<br />
Não foi por outro motivo que o então presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do<br />
Brasil, Cezar Britto, ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal ação direta de inconstitucionalidade (Adin<br />
nº 4296) contra a Lei 12.016/09, que regulamentou o Mandado de Segurança (MS) individual e coletivo. O<br />
relator da ação é o ministro Marco Aurélio Mello.<br />
A Adin questiona dispositivos da nova lei, inclusive o inciso III do artigo 7º, que faculta a exigência<br />
de caução ou fiança para fins de concessão de liminar em Mandado de Segurança, o que, para o presidente<br />
da OAB, cria um verdadeiro "apartheid" judicial, entre ricos e pobres, entre quem pode e não pode pagar a<br />
caução, o que afronta a Constituição Federal. Vários outros dispositivos da lei que regulamenta o MS são<br />
atacados pela entidade por serem considerados inconstitucionais.<br />
As situações sob o presente estudo vêm a calhar, uma vez que nelas se cuida justamente de pessoas<br />
vulneráveis que aspiram acesso à Justiça por meio do remédio heróico, e por serem inadimplentes nem<br />
mesmo podem quitar o quanto devem de tarifa de água e quiçá multa, e por isso se lhes pode o juiz negar a<br />
medida liminar, só e só -enfatize-se-, porque sem condições de prestar caução dita idônea.<br />
Instalou-se na legislação infraconstitucional brasileira, com pretensa força para alterar um direito<br />
fundamental de acesso à Justiça, não há dúvida, um escandaloso retrocesso...<br />
Pontifica o Prof. Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, pp. 117-118) que o denominado princípio da<br />
proibição do retrocesso em matéria de direitos sociais tem sido cogitado pela doutrina nacional e<br />
estrangeira. Põe exemplo: violaria esse princípio a revogação pura e simples de uma lei para incrementar um<br />
direito subjetivo, lei essa necessária para integrar norma constitucional de eficácia limitada de princípio<br />
intuitivo (classificação de José Afonso da Silva).<br />
Na situação em foco, num grau de gravidade elevadíssimo, por detonar, por um lado, norma<br />
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constitucional atributiva de direito público subjetivo de acesso ao Poder Judiciário, por outro lado, nela está<br />
contida estrutura fulgentemente diferenciada quanto ao grau de densificação, há muito consagrada pela<br />
tradição libertária brasileira, não obstante banida em alguns períodos de agonizante terror.<br />
Isso incitou o espírito do presidente Cezar Britto que criticou em nota, com veemência, a decisão do<br />
Presidente da República de sancionar, sem qualquer dos vetos propostos pela OAB, a lei que dá nova<br />
regulamentação ao Mandado de Segurança. Para Cezar Britto, a nova lei é "elitista e fere de morte o direito<br />
de defesa do cidadão". A lei exige depósito prévio para concessão de liminares, o que, segundo esse<br />
dirigente dos advogados <strong>–</strong>ínsita-se<strong>–</strong>, criou “um verdadeiro ´apartheid´ no Judiciário entre pobres e ricos”.<br />
"O Mandado de Segurança, instituído em 1932, possui status constitucional desde 1934, e não podia<br />
ser amesquinhado pelo legislador ordinário", disse.<br />
Ainda segundo o então presidente nacional da OAB, "não é possível admitir que apenas os dotados<br />
de bens, que podem efetuar depósito prévio, poderão ter medidas liminares em seu favor. Essa disposição<br />
cria uma justiça acessível apenas aos ricos, inconcebível em um Estado Democrático de Direito". No<br />
entendimento do Conselho Federal da OAB, o veto ao projeto deveria ter recaído sobre três pontos, sendo o<br />
primeiro ao artigo 7º, III, e ao parágrafo segundo do artigo 22, que condicionam a concessão de liminares à<br />
prestação de garantia e "amesquinham" a amplitude constitucional do Mandado de Segurança.[3]<br />
Ao Supremo caberá colorir com a sua luz solar o rumo a ser tomado. Dirá se o direito de liberdade<br />
há de ressentir-se, ou não, da garantia incontinenti da liminar. O ministro relator Marco Aurélio Mello, com<br />
a sensibilidade jurídica que lhe é peculiar, ao aplicar o rito do artigo 12 da Lei 9.868/99 à dita Ação Direta<br />
de Inconstitucionalidade (Adin) nº 4296, em face da relevância da matéria, decidiu submeter o processo<br />
diretamente ao Tribunal, que terá a possibilidade de julgar definitivamente a ação em vez de apreciar<br />
primeiramente a medida cautelar.<br />
Acredita-se firmemente que o Pretório Excelso, ao analisar o enfraquecimento ou a supressão<br />
mesmo dessa garantia constitucional, estará preocupado pela liberdade do indivíduo e pelo direito, e não<br />
descurará do dever de preservar o bem-estar propiciado pela segurança da Constituição frente a um eventual<br />
e provisório arbítrio deflagrado pelo poderoso do momento.<br />
Aliás, no magistério de Américo Bedê Freire Júnior (2005, p. 39), hoje, a releitura da separação dos<br />
poderes leva à forma de efetivação da Constituição no Estado Democrático de Direito, com o<br />
redimensionamento, portanto, da função judicial na materialização da Constituição. Indica que a função<br />
judicial atravessa uma profunda crise de identidade, uma vez que antigamente só intervinha plenamente nas<br />
relações privadas, não tendo legitimidade de intervir nas questões públicas, cujo espaço era deixado para os<br />
eleitos. Agora, o Judiciário há de rever essa posição e passar a intervir mais ativamente no espaço público.<br />
Segundo a voz impulsiva de Lenio Streck (1988, p. 90), da CF de 1988 ergue-se uma nova ordem<br />
jurídica em que as “inércias do Executivo e falta de atuação do Legislativo passam a poder ser supridas pelo<br />
Judiciário, justamente mediante a utilização dos mecanismos previstos na Constituição que estabeleceu o<br />
Estado Democrático de Direito. Ou isto, ou tais mecanismos legais/constitucionais podem ser expungidos<br />
do Texto Magno”.<br />
No entender de Mauro Cappelletti (1999, p.47), os tribunais hão de escolher uma das opções: (a)<br />
manter-se, na função tradicional, nos acanhados limites do século XIX , ou (b) erguer-se ao nível dos outros<br />
poderes, tornando-se “o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador mastodonte e o leviatanesco<br />
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administrador”.<br />
Voltemos a Bedê Freire Júnior (2005, p. 42), onde há a feliz conclusão no sentido de que possíveis<br />
zonas de tensões serão produzidas se o Judiciário tomar uma postura mais ativa [e altiva] em face das<br />
demais funções do Poder. Entrementes, coloca (e bem) não se almejar a supremacia de qualquer uma das<br />
funções, mas a supremacia da Constituição. O que se quer, por conseguinte, é que o Judiciário não se quede<br />
numa função servil de mero burocrata a chancelar atos dos outros Poderes.<br />
Consigna-se aqui e desse modo nossa indignação, que, aliás, associa-se a tantas as outras em idêntico<br />
sentido, como ao brado de repulsa de Antonio Ricardo Moreira[4], em face do draconiano dispositivo legal<br />
sob exame, não somente por sua flagrante inconstitucionalidade, mas também porque “faz ressurgir uma<br />
verdadeira segregação social em nosso país, ou seja, só poderá se defender da máquina pública quem tem<br />
dinheiro. Os pobres terão que amargar seus infortúnios sem poder, sequer, bater nas portas do judiciário.”<br />
homem.<br />
Em suma, sem essa garantia constitucional será mais difícil proteger o exercício dos direitos do<br />
Outro absurdo há e põe-se para almejar ainda mais a onipotência estatal indevida. Trata-se do § 2º do<br />
art. 1º da nova Lei do Mandado de Segurança, na medida em que limita o cabimento do mandamus,<br />
excluindo de sua abrangência a possibilidade de insurgência “contra os atos de gestão comercial praticados<br />
pelos administradores de empresas públicas, de sociedade de economia mista e de concessionárias de<br />
serviço público”.<br />
Ora, o que nos interessa neste estudo é justamente “os atos de gestão comercial praticados pelos<br />
administradores de (...) concessionárias de serviço público”, e não faltará quem, sem razão, venha a querer<br />
excluir - também por esse meio do mesmo modo severo e duro -, do amparo do writ o ato inconstitucional<br />
de corte de fornecimento de água.<br />
Passa-se doravante a abstrair esse revoltante condicionamento, e retoma-se o exame dos antigos e<br />
ainda atuais requisitos para o deferimento da medida liminar.<br />
Meirelles (1992, p. 56-57)[5] bem analisa os termos da questão quando escreve:<br />
Para a concessão da liminar devem concorrer os dois requisitos legais, ou seja, a relevância dos<br />
motivos em que se assenta o pedido na inicial e a possibilidade da ocorrência de lesão irreparável<br />
ao direito do impetrante se vier a ser reconhecido na decisão de mérito - fumus boni juris e<br />
periculum in mora. A medida liminar não é concedida como antecipação dos efeitos da sentença<br />
final, é procedimento acautelador do possível direito do impetrante, justificado pela iminência de<br />
dano irreversível de ordem patrimonial, funcional ou moral se mantido o ato coator até a<br />
apreciação definitiva da causa. Por isso mesmo, não importa prejulgamento; não afirma direitos,<br />
nem nega poderes à Administração. Preserva apenas o impetrante de lesão irreparável, sustando<br />
provisoriamente os efeitos do ato impugnado.<br />
Portanto, pode-se dizer que os pressupostos da concessão da liminar estão apostos em duas bases,<br />
necessitando, pois, a ocorrência de relevante fundamento, ou seja, a parte deve ter direito líquido e certo,<br />
que é aquele que deve ser comprovado, como se viu, de plano por meio de prova documental, ressaltando-<br />
se, outrossim, que tal requisito é mais do que o fumus boni juris; terá, também, de demonstrar que haverá<br />
ineficácia da medida, que do ato impugnado possa resultar, se não atendido, pressuposto este que é<br />
precisamente o periculum in mora.<br />
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Acaso o juiz, mediante análise dos documentos anexados à inicial e das próprias alegações do<br />
impetrante, constate, embora em cognição sumária, não estar presente direito líquido e certo, denegará o<br />
Mandado de Segurança. Daí se extrai, portanto, ser insuficiente o mero fumus boni juris para a concessão da<br />
liminar. Imprescindível, pois, para que ela venha a ser concedida, estar evidente e provada a alegação. Nem<br />
mesmo será possível dilação probatória quer para a concessão da liminar, quer para a concessão definitiva<br />
da segurança.<br />
Desta maneira, após realizar a abordagem em torno da possibilidade da impetração da ação<br />
mandamental, sua natureza, bem como a possibilidade ou não da concessão da liminar, convém que se<br />
investigue, agora, o chamado mérito da segurança, levando-se em consideração tanto a tese do usuário como<br />
a contrária, para, ao final, optar-se por uma ou outra solução.<br />
4.4.- O mérito do Mandado de Segurança<br />
4.4.1.- Orientações a favor do usuário<br />
Mostra-se bastante interessante a abordagem que Marcello Caetano (s. d., p. 3-4) faz em torno das<br />
necessidades decorrentes da vida em sociedade que, de início são individuais mas, ao depois, transmutam-se<br />
em coletivas. Eis o trecho, que menciona, inclusive, a necessidade da água potável:<br />
A par destas necessidades colectivas essenciais aparecem outras que, embora independentes da<br />
vida em sociedade e portanto essencialmente individuais, são hoje, em virtude do complexo da<br />
vida social, satisfeitas graças a processos coletivos. (...)<br />
Por exemplo: o homem tem sede, quer viva em sociedade, quer se conceba a viver isolado, e pode<br />
por si só procurar na nascente a água para se dessedentar. A complexidade da vida social tornou,<br />
porém, incómodo, e em muitos casos impossível, que se deixa a cada qual a procura na origem dos<br />
bens úteis para a satisfação das necessidades individuais: e então no seio da sociedade surgem<br />
intermediários que se encarregam de obter esses bens para os colocar à disposição de cada um. Um<br />
intermediário procederá à captação da água nas nascentes, ao seu transporte para a povoação, à sua<br />
distribuição domiciliária <strong>–</strong> e cada indivíduo, depois, não tem mais esforço a fazer do que o de<br />
utilizar torneiras em sua casa. Se o intermediário deixar de actuar, todas as pessoas que vivem<br />
numa povoação sentirão a privação da água e a aflição da sede. A existência do serviços<br />
abastecedor criou uma necessidade colectiva instrumental.<br />
Dito isso, é de se enfatizar que os argumentos do usuário, como se viu, estão alicerçados no fato de<br />
que o serviço de fornecimento de água não pode ser interrompido por falta de pagamento, visto que, para a<br />
concretização da cobrança existem formas judiciais adequadas. E mais, além de ser privado daquilo que é<br />
essencial à sua sobrevivência (a água), a interrupção do fornecimento ainda o expõe ao ridículo, situação<br />
esta que é vedada pelo artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, confortando também o direito do<br />
usuário, o contido no artigo 22, também do CDC, que estabelece, inclusive, que os serviços devem ser<br />
contínuos.<br />
Desta maneira, o corte não se mostra possível. Em prol da tese do usuário, outrossim, algumas<br />
decisões jurisprudenciais têm sido proferidas. Veja-se a propósito a orientação do Egrégio 1º Tribunal de<br />
Alçada Cível do Estado de São Paulo quando apreciou e julgou o apelo manejado em sede de Mandado de<br />
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Segurança (Ap. MS 647.627-3 - 9ª Câm. Ext. - j. 09.10.1997 - rel. Juiz Sebastião Flávio da Silva Filho): [6]<br />
SERVIÇO PÚBLICO - Água potável - Suspensão do fornecimento em virtude de inadimplência do<br />
usuário - Inadmissibilidade - Voto vencido.<br />
O fornecimento de água potável nos domicílios é serviço público essencial posto à disposição do<br />
cidadão, que não tem o arbítrio de recusá-lo não podendo, portanto, ser dele privado, em virtude de<br />
inadimplência, a qual deve ser resolvida pelos meios judiciais ordinários.<br />
Veja-se, ademais, outrossim, a seguinte decisão da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no<br />
recurso especial nº 201.112-SC, que teve como relator o Ministro Garcia Vieira: [7]<br />
O fornecimento de água, por tratar-se de serviços público fundamental, essencial e vital ao ser<br />
humano, não pode ser suspenso pelo atraso no pagamento das respectivas tarifas, já que o Poder<br />
Público dispõe dos meios cabíveis para a cobrança dos débitos dos usuários. Ademais, se os<br />
serviços públicos são prestados em prol de toda a coletividade, é medida ilegal sua negação a um<br />
consumidor tão-somente pelo atraso no seu pagamento.<br />
4.4.2.- Orientações contrárias ao usuário<br />
Feita, assim, investigação em torno dos argumentos do usuário, este trabalho não se mostraria<br />
completo se o contraponto também não fosse prestigiado, de sorte que é preciso centrar, também, a atenção<br />
na tese do prestador dos serviços que, como se disse em linhas atrás, penderá por dizer que o ato da<br />
suspensão dos serviços públicos está calcado, no âmbito da legislação federal, no inciso II do § 3º do artigo<br />
6º da Lei nº 8.987, que diz que não se caracteriza como descontinuidade dos serviços a interrupção por<br />
inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade.<br />
Tal argumento tem sido acatado por alguns escritores. Com efeito, Luiz Alberto Blanchet (1995, p.<br />
42), ao analisar a Lei nº 8.987, escreve:<br />
O segundo motivo (...) da interrupção -inadimplemento do usuário- põe termo a equivocado<br />
entendimento de alguns no sentido de que o consumidor de energia elétrica, por exemplo, mesmo<br />
quando inadimplente, teria direito à continuidade do serviço. O princípio da permanência do<br />
serviço público protege exclusivamente aqueles que se encontram em situação juridicamente<br />
protegida, e o consumidor inadimplente evidentemente não se encontra em tal situação, inclusive<br />
em função do princípio da igualdade dos usuários perante o prestador do serviço.<br />
De outra banda, vários julgados também têm prestigiado e reconhecido a tese no sentido de que a<br />
suspensão do fornecimento de água é possível.<br />
A jurisprudência, portanto, não é pacífica em torno do tema. Mas, de qualquer forma, aí está<br />
delineada a controvérsia, de sorte que é chegada a hora de tomar partido em torno do debate, mesmo porque<br />
a situação não acomoda que se repita, a respeito das teses do usuário e do prestador de serviços, o velho<br />
mote segundo o qual tout le deux ont raison, de maneira que é de se analisar se, uma vez prevalecida a<br />
possibilidade de suspensão do fornecimento de água, não estar-se-ia diante do mero simbolismo<br />
constitucional.<br />
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4.4.3. Da Lei nº 11.445/2007 e Projeto de Lei nº 178/08 em trâmite no Congresso Nacional<br />
Ao prestador do serviço público de água, o inciso V do art. 40 da Lei 11.445, de 05 de janeiro de<br />
20007, possibilita interrompê-lo em decorrência do inadimplemento do usuário, se houver omissão no<br />
pagamento das tarifas, após ter sido formalmente notificado. No § 2º do mesmo artigo, o legislador criou a<br />
obrigatoriedade de um prévio aviso formal ao usuário por prazo ao menos igual a 30 (trinta) dias da data<br />
prevista para a suspensão.<br />
Ainda no § 3º do mesmo dispositivo, ressalva a interrupção ou restrição do fornecimento de água por<br />
inadimplência de estabelecimentos de saúde, de instituições educacionais, de internação coletiva de pessoa e<br />
a usuário residencial de baixa renda beneficiário de tarifa social, no que se deverá obedecer a prazos e<br />
critérios que preservem condições mínimas de manutenção da saúde das pessoas atingidas.<br />
Embora se reconheça alguma melhoria, consistente na abertura de nova perspectiva para a solução<br />
do problema, não se pode aceitá-la, uma vez que a legislação assim positivada continua sem respeitar o<br />
mínimo vital do indivíduo. Ora, se há a possibilidade do fornecedor da água buscar o equivalente financeiro<br />
do serviço prestado por meio de ação judicial de cobrança normal da tarifa, que é meio alternativo razoável,<br />
não se justifica que se tome a medida extrema de cortar o fornecimento de água, líquido essencial ao ser<br />
humano. Essa essencialidade não constitui mero benefício ao bem estar da população, pois vai muito além,<br />
uma vez que sem esse precioso líquido nem mesmo se pode pensar na sobrevivência do indivíduo. É<br />
mesmo, sem dúvida, um mínimo vital.<br />
Esse mínimo vital, até que não seja previamente previsto em orçamento ou como encargo de quem<br />
deve prestar o serviços de fornecimento de água, não pode sofrer restrições orçamentárias e deve respeitá-lo<br />
tanto o órgão estatal como a entidade concessionária.<br />
O Prof. Vidal Serrano Nunes Júnior (2009, p.176), após se insurgir contra a importação pelo Brasil<br />
da denominada teoria da reserva do possível, mostra que os limites materiais do orçamento contrapõem-se<br />
ao “aumento progressivo das exigências dos cidadãos em relação aos direitos de participação nos benefícios<br />
da vida associada (direitos fundamentais sociais). Ao prosseguir nessa mesma linha de raciocínio, mesmo<br />
firmando-se na concepção original da teoria da reserva do possível, esse estudioso entende, em apertada<br />
síntese que se deve observar dois pontos essenciais de seu regime jurídico:<br />
· observância, intransigente e incondicionada, do mínimo vital;<br />
· realização de outros direitos sociais, condicionada às possibilidades do orçamento, desde que<br />
comprovado o esforço proporcional do Estado em dar resposta à respectiva demanda social.<br />
(grifamos)<br />
Frise-se que tramita no Congresso Nacional, Projeto de Lei nº 178/08 de iniciativa do Senador<br />
Antonio Carlos Valadares, já aprovado terminativamente na Comissão de Constituição e Justiça do Senado,<br />
no dia 06 de abril de 2010, que proíbe o corte de serviços básicos essenciais, como fornecimento de água,<br />
energia elétrica, tendo como beneficiados pessoas e famílias de baixa renda, instituições de saúde, escolas,<br />
presídios e centro de internações de jovens. Ademais, o projeto de lei confere, inclusive às pessoas não<br />
agraciadas por esse benefício realmente otimizado, o direito de serem previamente notificadas, no prazo<br />
mínimo de 30 dias, antes de o corte do serviço de fornecimento de água vir a ser efetivado, para a liquidação<br />
do quantum devido.<br />
Os autores continuam defendendo, com o mesmo raciocínio e motivos até aqui expostos, a<br />
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inconstitucionalidade da Lei 11.445/2007. Assim, pelos motivos esposados na tese favorável ao usuário,<br />
embora não se possa deixar de olvidar que há pequeno avanço tanto na referida Lei quanto no Projeto de Lei<br />
178/2008 ao conferir e proteger grupos de pessoas que necessitam de serviços essenciais, com restrição de<br />
ação do poder público ou de seus concessionários aos hipossuficientes, grupos vulneráveis e minorias, tem-<br />
se que avançar ainda mais, a fim de proteger o mínimo vital.<br />
Ante o exposto, crêem os autores deva ser alterada mesmo a Lei 11.445/2007, todavia, se vier a ser<br />
aprovado, pelos parlamentares federais, o Projeto de Lei nº 178/08, ainda não se chagará à preservação<br />
necessária do mínimo vital do consumidor de água economicamente fragilizado e bem por isso eventual ou<br />
recidivamente inadimplente.<br />
5. Do mero simbolismo constitucional uma vez prevalecida a possibilidade de se suspender o<br />
fornecimento de água<br />
Demonstrou-se, até aqui, que o princípio orientador, contido na Carta Maior, enseja e leva a se<br />
dessumir que a garantia do fornecimento de água está atrelado ao fato de que o usuário tem o direito<br />
fundamental de ter a água potável, não só em decorrência de seus atributos de ser humano que, sem ela, não<br />
reúne sequer condições para sua existência.<br />
Ora, mesmo que exista lei, como se demonstrou, que permite o corte do fornecimento da água, a<br />
norma constitucional evidentemente haverá de prevalecer sobre a referida regra infraconstitucional. E isso<br />
decorre porque é a própria Constituição que, em seu inciso III do art. 1º, diz que o fundamento do próprio<br />
Estado Democrático de Direito repousa e tem como base a dignidade da pessoa humana, isso sem contar as<br />
garantias sufragadas nos artigos 6º e 196, que estabelecem que a saúde é direito de todos e dever do Estado,<br />
de sorte que não se pode conceber, com base nisso, que se permita possa alguém ficar privado de água.<br />
Em verdade, essa possibilidade, de se privar alguém de água, enseja até mesmo a que se afirme que,<br />
com isso, os cânones constitucionais estariam se convertendo em verdadeiros simbolismos.<br />
Com efeito, veja-se, a propósito, o escólio de Marcelo Neves (2007, p. 99) que, depois de analisar a<br />
ocorrência de situações em que se tem a legislação simbólica, a respeito especificamente da<br />
constitucionalização simbólica assim escreve:<br />
A constitucionalização simbólica vai diferenciar-se da legislação simbólica pela sua maior<br />
abrangência nas dimensões social, temporal e material. Enquanto na legislação simbólica o<br />
problema se restringe a relações jurídicas de domínios específicos, não sendo envolvido o sistema<br />
jurídico como um todo, no caso da constitucionalização simbólica esse sistema é atingido no seu<br />
núcleo, comprometendo-se toda a sua estrutura operacional. Isso porque a Constituição, enquanto<br />
instância reflexiva fundamental do sistema jurídico (...), apresenta-se como mera metalinguagem<br />
normativa em relação a todas as normas infraconstitucionais, representa o processo mais<br />
abrangente de normatização no interior do direito positivo.<br />
Com isso, segundo ainda Neves (2007, p. 103), após analisar que a constitucionalização simbólica<br />
pode-se apresentar como mera corroboração de determinados valores sociais ou como fórmula de<br />
compromisso dilatório, o texto constitucional, mesmo trazendo a garantia ao direito fundamental, o que se<br />
tem, em casos como o que ora se analisa, é, em última análise, uma constitucionalização-álibi:<br />
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Porém, nessa hipótese, não estaríamos mais no domínio estrito dos compromissos-fórmula<br />
dilatórios <strong>–</strong>que sempre podem surgir em qualquer processo de constitucionalização, implicando<br />
função simbólica de aspectos parciais da Constituição<strong>–</strong>, senão perante o problema mais abrangente<br />
da constitucionalização-álibi. Daí porque restrinjo a questão da constitucionalização simbólica aos<br />
casos em que a própria atividade constituinte (e reformadora), o texto constitucional e o discurso a<br />
ele referente funcionam, antes de tudo, com álibi para legisladores constitucionais e governantes<br />
(em sentido amplo), como também para detentores do poder não integrados formalmente em<br />
organização estatal.<br />
Ora, os princípios constitucionais citados, seja o que dá fundamento ao Estado Democrático de<br />
Direito e sobreleva a dignidade da pessoa humana (Cf. art. 1º, III) como um de seus principais pilares, seja o<br />
que estabelece que os objetivos da República envolvem a construção de uma sociedade livre, justa e<br />
solidária, com vista a erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais (Cf. art. 3º, inc. I e III), não se<br />
harmonizam, de modo algum, com a legislação infraconstitucional que permite a interrupção do<br />
fornecimento de água potável para uma determinada pessoa, porque, essa permissão, em última análise, se<br />
traduz em converter o texto constitucional em algo simbólico e destituído, portanto, de qualquer valor e<br />
efetividade.<br />
É tempo, portanto, de se ter o direito fundamental não como mera declaração de princípios, mas<br />
como verdadeiras normas que conferem direitos subjetivos aos indivíduos, sendo importante relevar, por<br />
oportuno, o escólio de Virgílio Afonso da Silva (2008, p. 77) que, ao destacar o papel de sistema de valores<br />
que os direitos fundamentais desempenham no ordenamento jurídico, escreve:<br />
Esse sistema de valores não pode ser confundido, contudo, com a superada idéia de “mera<br />
declaração de princípios”, mencionada acima. A concepção de “declaração de princípios”, muito<br />
difundida, especialmente na República de Weimar, quase sempre foi entendida como simples<br />
“declaração de intenções” do poder constituinte em relação à atividade legislativa, uma declaração<br />
sem valor normativo e, por isso, não vinculante. Um sistema de valores pretende ser muito mais do<br />
que isso, pois é o ponto de partida, vinculante, para uma constitucionalização do direito e uma<br />
ampliação da própria força normativa da constituição.<br />
Sabe-se, ademais, segundo o pensamento de Häberle, que todos somos regulados pela norma<br />
constitucional e ao mesmo tempo somos intérpretes dela. Isso, inclusive, levou ainda Silva (2008, p. 113),<br />
ao analisar os textos de Häberle, a fazer mais os seguintes comentários, que se mostram importantes para o<br />
presente trabalho:<br />
Isso significa que praticamente todas as ações humanas seriam ao mesmo tempo reguladas pela<br />
constituição e uma manifestação de uma interpretação constitucional, o que teria como<br />
consequência o fato de que nenhuma área da vida teria independência das normas constitucionais.<br />
O legislador, nesse sentido, seria um mero intérprete da Constituição, e sua tarefa consistiria<br />
sobretudo na efetivação dos direitos fundamentais.<br />
Portanto, é preciso consolidar, de vez, que os direitos fundamentais expressam valores que devem ter<br />
real concretude e não meras declarações simbólicas de princípios.<br />
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6.- Considerações finais<br />
Para pôr fecho a este opúsculo, parece oportuno que se transcreva as sábias palavras de Miguel<br />
Maria de Serpa Lopes (1959, p. 95) que, ao se manifestar sobre a interpretação das leis, assim se escreve<br />
Em nosso Direito, portanto, não há espaço para uma jurisprudência do Direito, no sentido direto de<br />
uma fonte de Direito.<br />
Nem outro é o sentido em alguns julgados de nossos Tribunais.<br />
O Tribunal de Apelação do Estado da Guanabara, a propósito (...) doutrinou que “a lei sempre teve<br />
e tem cunho de generalização. Não prevê todos os casos que possam ocorrer no presente e no<br />
futuro. A sua rigorosa interpretação não raro conduz a soluções desumanas. Humanizar as leis,<br />
aplicá-las com equidade, bom-senso, individuação, atentas sempre às realidades da vida, à<br />
relatividade das coisas, às exigências atuais da sociedade, da cultura e da civilização, eis os<br />
princípios que devem preponderar nas decisões judiciais.”<br />
Tais palavras, ditas há tempo e extraídas de antigo julgado do Estado do Rio de Janeiro, ainda soam<br />
atuais para a conclusão deste trabalho. Com efeito, analisadas bem os termos de ambas as teses, é de se<br />
inclinar e prestigiar o ponto de vista do usuário. E assim se diz porque o fornecimento de água, nos dias<br />
atuais, é serviço essencial, de sorte que o cidadão não pode, de modo algum, dela prescindir, sob pena de<br />
pôr em risco a sua própria sobrevivência.<br />
Ademais, mesmo sendo específico e de utilização individual e mensurável, não deixa dito serviços<br />
de ter, como se disse, característica de essencial à vida do cidadão, de modo que sua continuidade é<br />
imprescindível, além do que envolve saúde pública, bem este que é, de resto, tutelado pela Carta Maior<br />
(cânones 196 a 200).<br />
Portanto, o corte se mostra abusivo, pelo que cabente é, sim, o Mandado de Segurança, para<br />
assegurar o direito líquido e certo do usuário a ter o serviço público de água.<br />
Apesar de ter esse entendimento, sabe-se que o Superior Tribunal de Justiça mudou os rumos de sua<br />
orientação em relação ao assunto. De fato, veja o teor da decisão proferida no Resp 822090/RS[8], que teve<br />
como relator o Ministro José Delgado, que inclusive não admite o corte d’água, como se pode observar pelo<br />
teor da ementa do julgado:<br />
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONS<strong>UM</strong>IDOR. AUSÊNCIA <strong>DE</strong><br />
PAGAMENTO <strong>DE</strong> TARIFA <strong>DE</strong> <strong>ÁGUA</strong>. INTERRUPÇÃO DO <strong>FORNECIMENTO</strong>. CORTE.<br />
IMPOSSIBILIDA<strong>DE</strong>. ARTS. 22 E 42 DA LEI Nº 8.078/90 (CÓDIGO <strong>DE</strong> PROTEÇÃO E<br />
<strong>DE</strong>FESA DO CONS<strong>UM</strong>IDOR). ENTENDIMENTO DO RELATOR. ACOMPANHAMENTO<br />
DO POSICIONAMENTO DA 1ª SEÇÃO DO STJ. PRECE<strong>DE</strong>NTES. (...)<br />
2. Não resulta em se conhecer como legítimo o ato administrativo praticado pela empresa<br />
concessionária fornecedora de água e consistente na interrupção de seu serviço, em face de<br />
ausência de pagamento de fatura vencida. A água é, na atualidade, um bem essencial à população,<br />
constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua<br />
prestação, pelo que se mostra impossível a sua interrupção. (...)<br />
5. Caracterização do periculum in mora e do fumus boni iuris para sustentar deferimento de liminar<br />
a fim de impedir suspensão de fornecimento de água. Esse é o entendimento deste Relator.<br />
6. No entanto, embora tenha o posicionamento acima assinalado, rendo-me, ressalvando meu ponto<br />
de vista, à posição assumida pela ampla maioria da 1ª Seção deste Sodalício, pelo seu caráter<br />
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uniformizador no trato das questões jurídicas no país, que vem decidindo que “é lícito à<br />
concessionária interromper o fornecimento de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor<br />
de energia elétrica permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta”.<br />
À guisa de arremate ante todo o exposto, sustentamos que mesmo existindo lei que permite a<br />
suspensão do fornecimento dos serviços públicos e mesmo diante da orientação do Superior Tribunal de<br />
Justiça, quer nos parecer que o melhor caminho, para se enfrentar o caso ora analisado, seria e é realmente o<br />
de “(...) humanizar as leis, aplicá-las com equidade, bom-senso, individuação, atentas sempre às realidades<br />
da vida, à relatividade das coisas, às exigências atuais da sociedade, da cultura e da civilização (...)”,<br />
porque exatamente são esses os princípios que devem preponderar nas decisões judiciais, tudo para que não<br />
tenhamos, como se disse, situação que envolva mera constitucionalização simbólica que, no caso brasileiro,<br />
tem-se denominado de constituição dirigente, que foi criada, portanto, com o fito de fixar planos de ação<br />
para a transformação da própria sociedade.<br />
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[1] Tanto o Mandado de Segurança individual como o coletivo, hodiernamente, estão previstos no artigo 5º, LXIX<br />
e LXX, da Constituição, e disciplinados pela Lei nº 12.016, de 07 de agosto de 2009.<br />
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010<br />
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[2] A liminar em mandado de segurança antecipa os efeitos da futura sentença que decidir pela procedência do pedido, sendo, portanto,<br />
medida antecipatória. Esta característica é percebida por todos quantos estudaram o tema, até mesmo por aqueles que concebem a medida<br />
liminar como cautelar — estes últimos, como vimos, davam mais valor ao elemento segurança.<br />
DIDIER JÚNIOR, Fredie Souza. Liminar em mandado de segurança: natureza jurídica e importância histórica. Uma tentativa de<br />
reenquadramento dogmático em face das últimas reformas processuais. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 56, abr. 2002. Disponível em:<br />
. Acesso em: 07 abr. 2010.<br />
[3] Disponível em: