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São Clemente Maria Hofbauer (Insigne propagador da Congregação

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SÃO CLEMENTE MARIA HOFBAUER<br />

<strong>Insigne</strong> <strong>propagador</strong> <strong>da</strong><br />

CONGREGAÇÃO DO SS. REDENTOR<br />

pelo<br />

P. OSCAR CHAGAS AZEREDO<br />

C.Ss.R.<br />

1928<br />

Edição <strong>da</strong><br />

Livraria Nossa Senhora Apareci<strong>da</strong><br />

Edição PDF de Fl.Castro, abril 2002<br />

1


NIHIL OBSTAT.<br />

S. Pauli, 22 Februarii 1927.<br />

Can. Dor. Joannes Martins Ladeira<br />

Censor.<br />

IMPRIMI POTEST.<br />

Pe. Estevam <strong>Maria</strong><br />

Vice-Provincial<br />

IMPRIMATUR<br />

Mons. Pereira Barros<br />

Vig. Geral<br />

2<br />

PRÓLOGO<br />

Mais uma hagiografia entregue aos católicos <strong>da</strong> nossa Pátria. Abrindo o<br />

livro esperam alguns deleitar-se na leitura empolgante de sensacionais milagres,<br />

êxtases contínuos, penitências sobre-humanas, na certeza de que santo<br />

só é aquele que opera prodígios estupendos. Julgam que a santi<strong>da</strong>de consiste<br />

nos milagres e que o Santo, alheio a este mundo, deve habitar uma altura inacessível<br />

e ser dotado do dom <strong>da</strong> impecabili<strong>da</strong>de. Quanto mais estupendos os<br />

prodígios, maior o Santo.<br />

Para eles a santi<strong>da</strong>de é coisa que se admira — e que muitos não crêem —<br />

e que se não pode imitar. Extasiam-se ante a vi<strong>da</strong> extraordinária de um S. Geraldo<br />

que desde o berço brincava com os milagres e vivia em êxtases contínuos;<br />

param perplexos ante a poesia perfumosa de um coração santamente infantil<br />

de uma Teresinha, que nas doçuras de uma alma bondosa e calma se desfazia<br />

nos sentimentos e arroubos místicos <strong>da</strong> união íntima com Deus — e sentem<br />

certa repugnância <strong>da</strong>queles que nos combates se exercem pela prática <strong>da</strong>s<br />

mais acrisola<strong>da</strong>s virtudes sem as exteriori<strong>da</strong>des de fatos extraordinários.<br />

É um engano. A santi<strong>da</strong>de não consiste absolutamente nos milagres que<br />

Deus opera, quando lhe apraz, e que são apenas a manifestação, nem sempre<br />

necessária, <strong>da</strong> santi<strong>da</strong>de interna. A ver<strong>da</strong>deira santi<strong>da</strong>de está em executar em<br />

tudo e do modo mais perfeito possível a vontade santíssima de Deus. Ela depende<br />

não só do socorro do alto mas também — e principalmente — <strong>da</strong> cooperação<br />

do homem, sem a qual não pode haver merecimento nem recompensa.<br />

Em <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong> não encontramos a multidão espantosa dos milagres<br />

nem os êxtases continuados; em sua vi<strong>da</strong> não se manifesta um coração<br />

convulsionado por violentas paixões internas com os enredos empolgantes que<br />

costumam adornar os romances fantásticos. A grande de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> é bem<br />

diversa; de coração singelo e pacato sabia conviver com a socie<strong>da</strong>de sem nela<br />

se manchar; era simples, amável, alegre, despreocupado a cantar hinos religiosos<br />

e, na intimi<strong>da</strong>de, capaz de gracejos inocentes.<br />

Os combates que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> teve de travar em vi<strong>da</strong> são todos de ordem<br />

exterior: as perseguições que suportou, os desgostos por que passou, o<br />

fracasso dos seus esforços, e o aparente insucesso <strong>da</strong>s suas obras: em tudo<br />

isto <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> tornou-se modelo <strong>da</strong> mais inabalável constância e <strong>da</strong> mais<br />

inteira confiança em Deus, esperando qual outro Abraão contra a esperança.<br />

Em tudo ele é digno <strong>da</strong> nossa imitação, e isso é para nós a coisa mais importante<br />

na vi<strong>da</strong> dos Santos.<br />

<strong>Clemente</strong> recebera de Deus um papel especial a representar sobre a terra.<br />

Nas grandes calami<strong>da</strong>des e nos cataclismos sociais Deus sempre suscita


um herói que lhes faça frente e lhes possa apresentar remédio salutar. Quando<br />

<strong>Clemente</strong> apareceu reinava na Europa o indiferentismo religioso a par do<br />

racionalismo mais declarado, produzido pelas idéias josefinas. Na sua infância<br />

<strong>Clemente</strong> assistira ao espetáculo desolador <strong>da</strong> guerra dos sete anos; nos anos<br />

do seu apostolado presenciou o desmembramento <strong>da</strong> Polônia, e mais tarde foi<br />

vítima <strong>da</strong>s arbitrarie<strong>da</strong>des de Napoleão. A vi<strong>da</strong> agita<strong>da</strong> <strong>da</strong> Europa favorecia o<br />

torpor e indiferentismo religioso.<br />

<strong>Clemente</strong>, com a sua constância de aço e com o seu coração afogueado<br />

de amor à santa religião, conseguiu quebrar o gelo e despertar a vi<strong>da</strong> religiosa<br />

não só entre o povo, mas ain<strong>da</strong> nos professores e alunos <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de e,<br />

com eles, nas altas ro<strong>da</strong>s sociais.<br />

Os nossos tempos são, mais ou menos, como os de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>; vemos<br />

o racionalismo dominar as massas, o sentimentalismo avassalar pessoas aliás<br />

bem intenciona<strong>da</strong>s. Precisamos de homens que imitem o grande Apóstolo de<br />

Viena, inflamados do mesmo zelo e do mesmo amor à Santa Igreja. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

é um Santo moderno, no sentido ver<strong>da</strong>deiro <strong>da</strong> palavra. Também hoje<br />

podemos dizer como outrora o vigário de Babenhausen: “Dai-me quatro <strong>Clemente</strong>s...<br />

que eu converterei impérios”.<br />

No nosso meio começa felizmente a despertar-se uma nova vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de<br />

sóli<strong>da</strong> e esclareci<strong>da</strong>. Do terreno putrefato do racionalismo levantam-se flores<br />

mimosas de virtude, centros de pie<strong>da</strong>de. Uma árvore frondosa estende seus<br />

ramos produzindo os mais saborosos frutos: a “Liga Católica Jesus, <strong>Maria</strong>, José”.<br />

<strong>São</strong> homens de fé esclareci<strong>da</strong> que tomaram por lema <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> restaurar<br />

santamente a família brasileira. Ora, especialmente para os liguistas quisemos<br />

escrever esta biografia, onde encontrarão o modelo consumado e o guia seguro<br />

na grande obra <strong>da</strong> restauração social.<br />

Que ca<strong>da</strong> liguista manuseie, estude e saboreie, em família, essa vi<strong>da</strong> cheia<br />

de peripécias guia<strong>da</strong> pela luz <strong>da</strong> fé! É <strong>Clemente</strong> o <strong>propagador</strong> insigne <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

Redentorista, e quem é que não conhece ain<strong>da</strong> o redentorista, que<br />

com sua batina preta e colarinho branco, e o rosário <strong>da</strong> Virgem pendente ao<br />

lado, percorre as ci<strong>da</strong>des e aldeias de nossa Terra evangelizando e chamando<br />

as almas para Deus? Que Ele pois mereça a confiança e o amor do povo brasileiro!<br />

E agora, livrinho meu, levanta o vôo e percorre o Brasil de Norte a Sul<br />

cantando as glórias de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>; faze-o conhecido e amado dos nossos<br />

patrícios! Conta às criancinhas a docili<strong>da</strong>de e a obediência do filhinho do cortador<br />

de Tasswitz, e aos operários a humil<strong>da</strong>de do padeiro de Znaim; descreve aos<br />

inocentes a pureza virginal de <strong>Clemente</strong>, e aos pecadores o seu zelo e amor<br />

<strong>da</strong>s almas. Penetra os conventos e descreve aos religiosos a vi<strong>da</strong> interior e<br />

recolhi<strong>da</strong> do grande Apóstolo do Norte; não receies entrar em todos os lares e<br />

falar a todos os corações <strong>da</strong>s virtudes do grande Redentorista. Se caíres nas<br />

mãos de um sacerdote, sobretudo nas de um vigário, canta-lhe melodiosamente<br />

os trabalhos de S. Beno e de Viena.<br />

Não canses, livrinho meu, nem desanimes, corre, voa ganhando os cora-<br />

***<br />

3<br />

ções para Jesus! Desejo-te, de coração, a melhor viagem e os maiores triunfos<br />

para a glória do teu herói.<br />

S. Paulo, Festa do Santíssimo Redentor, 18 de julho de 1926.<br />

O AUTOR.<br />

Neste trabalho foram utiliza<strong>da</strong>s as mais conheci<strong>da</strong>s biografias de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>,<br />

mormente as seguintes: Hofer, Bauchinger, Innerkofler, Haringer, Pichler,<br />

Brunner, Freund, Saint-Omer, autores todos <strong>da</strong> mais comprova<strong>da</strong>s competência<br />

e dignos de to<strong>da</strong> a fé.


ÍNDICE<br />

PARTE PRIMEIRA<br />

LUTA PELO SACERDÓCIO<br />

(1751-1786)<br />

CAPÍTULO I<br />

No lar paterno<br />

A pátria do Santo — Seu nascimento — Os pais de <strong>Clemente</strong> — Primeiras<br />

dores — É Ele o teu pai... — Ocupações prediletas — Passatempos — O futuro<br />

Apóstolo.<br />

CAPÍTULO II<br />

Os primeiros estudos<br />

Procura um ofício — Os sentimentos nobres — O <strong>São</strong> Cristóvão — No<br />

convento dos Premonstratenses — A grande carestia — Entre os seminaristas<br />

do Convento — Dificul<strong>da</strong>de nos estudos.<br />

CAPÍTULO III<br />

Peregrinações<br />

O ermitão de Mühlfrauen — As romarias e os romeiros — Abandona o<br />

ermitério — Vai à Boêmia e volta a Viena — Romaria à Itália — Volta à Áustria e<br />

torna novamente a Roma — Tívoli — Outra vez em Viena — As senhoras von<br />

Maul.<br />

CAPÍTULO IV<br />

Na universi<strong>da</strong>de de Viena<br />

Os estudos na Áustria — Na universi<strong>da</strong>de — Contradiz o professor — Encontro<br />

com Thadeu Hübl — A fé acima de tudo — As obras de Santo Afonso —<br />

Novamente em Roma.<br />

CAPÍTULO V<br />

O santo Redentorista<br />

Em Roma — O Senhor será um deles. Luta entre os dois peregrinos — É<br />

recebido na <strong>Congregação</strong> Redentorista. — O noviciado — O espírito <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

— A uva tentadora — Os noviços italianos — Alegria e profecia de<br />

Sto. Afonso — Profissão — Ordenação — Transpõe os Alpes.<br />

PARTE SEGUNDA<br />

4<br />

NA CAPITAL DA POLÔNIA (1787-1808)<br />

CAPÍTULO I<br />

Os primeiros anos em Varsóvia<br />

Em Viena — Estado lamentável <strong>da</strong> religião na Áustria — Destina-se à<br />

Curlândia — Fica em Varsóvia — S. Beno — As primeiras dificul<strong>da</strong>des — Senhor,<br />

agora é tempo — Restaura a igreja — Visita de Sto. Afonso — Um colégio<br />

em Roma — Os grandes planos — Recrutamento — O demônio em ação.<br />

CAPÍTULO II<br />

O apostolado em Varsóvia<br />

Polônia e sua história — Finis Poloniae — O comando <strong>da</strong> Prússia — Os<br />

trabalhos apostólicos — Corpus Christi — O confessionário e o púlpito — Vi<strong>da</strong><br />

de convento — As escolas — Os oblatos Redentoristas — Apostolado <strong>da</strong> imprensa.<br />

CAPÍTULO III<br />

Viagens de fun<strong>da</strong>ção<br />

O desejo mais ardente — Mitau — Radzynim — Lutkowka — O Santo em<br />

Praga — Lin<strong>da</strong>u — Em Viena — Morte inespera<strong>da</strong> — Novo recrutamento —<br />

Novas dificul<strong>da</strong>des com o governo — A imagem <strong>da</strong> Virgem.<br />

CAPÍTULO IV<br />

Os anos de 1798 a 1802<br />

Os trabalhos do Santo — Uma cura curiosa — Conversões numerosas —<br />

A congregação dos Oblatos — Três missões em regra — Os padres de S. Beno<br />

— Date et <strong>da</strong>bitur — Isto foi para mim... — O Pe. Passerat — A direção do<br />

Seminário — Escolas paroquiais — Desinteligências e explicações — Os livre<br />

pensadores em ação — S. Beno hostilizado.<br />

CAPÍTULO V<br />

Na diocese <strong>da</strong> Constância<br />

Em Altötting — Monte Tabor — Pe. Passerat Reitor — Ordenação dos clérigos<br />

na Itália — As necessi<strong>da</strong>des do novo convento — <strong>Clemente</strong> em Jestetten<br />

— O rico cardápio — Triberg, santuário <strong>da</strong> Virgem — Uma noite no paiol —<br />

Recepção em Triberg — Reanimação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de — Raiva do demônio<br />

— Triberg abandona<strong>da</strong>.<br />

CAPÍTULO VI<br />

Na Suabia<br />

On<strong>da</strong>s de sol<strong>da</strong>dos — Napoleão e <strong>Clemente</strong> — O manto ou a vi<strong>da</strong> — Em<br />

Babenhausen — Weinried — Desejam confessar-se? — O rapaz que ri no sermão<br />

— A ferreira apostrofa<strong>da</strong> — O violinista convertido — O rapaz libertino —<br />

Quebra vidraças e ganha uma missa — Vítima de calúnias — Montgelas —<br />

Perseguições.<br />

CAPÍTULO VII<br />

O último ano em S. Beno<br />

Um jantar depois <strong>da</strong> oração <strong>da</strong> noite — Perseguições em Varsóvia — Atentado<br />

contra o Pe. Thadeu — O escudo quebrado — Napoleão — A Baviera<br />

hostiliza os Redentoristas — Zelo admirável dos padres — Tristes acontecimentos<br />

em Varsóvia.


CAPÍTULO VIII<br />

A expulsão<br />

Ver<strong>da</strong>deira causa <strong>da</strong> expulsão — Davoust persegue os Benonitas — Soleni<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> Páscoa — Decreto de Napoleão — Aviso do céu — Execução do<br />

Decreto — Resignação do Santo.<br />

PARTE TERCEIRA<br />

O APÓSTOLO DE VIENA (1808-1820)<br />

CAPÍTULO I<br />

Chega<strong>da</strong> à Viena e primeiros trabalhos<br />

Chega à Viena — Dificul<strong>da</strong>des com a polícia — O racionalismo na Áustria<br />

— Napoleão e Francisco <strong>da</strong> Áustria — Bombardeio de Viena — Batalha de<br />

Aspern — Na igreja dos Italianos — Os Mechitaristas — Trabalhos prediletos —<br />

Intimação do governo — Notícias de Valais — Fun<strong>da</strong>ção em Friburgo.<br />

CAPÍTULO II<br />

O primeiro ano em Santa Úrsula<br />

Obrigações do Reitor <strong>da</strong> igreja — Reformas — Santa Úrsula adquire grande<br />

nome — Os primeiros trabalhos na cura d’almas.<br />

CAPÍTULO III<br />

O CONGRESSO DE VIENA<br />

<strong>Clemente</strong> na lista dos bispos — Igreja nacional — O desinteresse pela<br />

religião no Congresso — Desunião de vistas — Os três defensores — Atrás dos<br />

bastidores — Trabalho depois do Congresso<br />

CAPÍTULO IV<br />

O sábio pregador<br />

Exposição original e simples — O médico subjugado — Um velho funcionário<br />

josefino — Rir-se por último — Sua mímica no púlpito — temas prediletos —<br />

Apreciações populares — Proibição de pregar...<br />

CAPÍTULO V<br />

O zeloso auxiliar nas pregações<br />

Conversão do poeta — Suas pregações — Trombeta do juízo — O orador<br />

dos eruditos — O discípulo do grande Mestre — O poeta e o dramaturgo —<br />

Esses moleques...<br />

CAPÍTULO VI<br />

O Santo ao altar<br />

O Serafim ante o tabernáculo — O humilde aju<strong>da</strong>nte de missa — As piedosas<br />

traidoras — Cena comovente — O esmagador do josefismo — As quarenta<br />

horas.<br />

CAPÍTULO VII<br />

O devoto <strong>da</strong> Virgem<br />

Devoção combati<strong>da</strong> — O digno filho de S. Afonso — Invocações prediletas<br />

— O rosário sua biblioteca — O rosário à cabeceira dos doentes — A devoção<br />

a <strong>Maria</strong>; uma necessi<strong>da</strong>de — Os Santuários <strong>da</strong> Virgem.<br />

CAPÍTULO VIII<br />

O prudente Confessor<br />

5<br />

Confessor procurado — O dia no confessionário — A Irmã Francisca —<br />

Luiza Xavier — O caminho mais seguro — Francisco Arrependido — A caixa de<br />

rapé — A senhora às margens do Danúbio — O Kraus escrupuloso — Pe. José<br />

no altar — A mulher sem pecados — Preparação contínua — Passy confessase<br />

sem o saber.<br />

CAPÍTULO IX<br />

O amigo dos doentes<br />

O caridoso enfermeiro — O neo-presbítero enfraquecido — A Religiosa<br />

neurastênica — O cão preto — O barão tuberculoso — O lobo convertido em<br />

cordeiro — Convertido pela água benta — Dois coelhos de uma caja<strong>da</strong><strong>da</strong> —<br />

Um funcionário maçom morre santamente — Esforços de conversão — Conversão<br />

estupen<strong>da</strong> na hora <strong>da</strong> morte.<br />

CAPÍTULO X<br />

Sua dedicação aos pobres<br />

O pintor em apuros — A mulher esperta — A benfeitora oportuna — Multiplicação<br />

milagrosa — A postulante maravilha<strong>da</strong> — As dívi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s Ursulinas —<br />

O peixe pagador — Os sapatos <strong>da</strong> Irmã — O batalhão dos pobres.<br />

CAPÍTULO XI<br />

O sábio conselheiro<br />

O Espírito Santo lhe dirá — Ler romances — Pequenos presentes — Uma<br />

profecia — Interesse pelas vocações — Dedicação paternal.<br />

CAPÍTULO XII<br />

O Santo Superior<br />

Vi<strong>da</strong> interior — Rigor na pobreza — Obediência prática — A vi<strong>da</strong> de simplici<strong>da</strong>de<br />

— Humilhações edificantes — O exemplo escrupuloso — Os defeitos<br />

dos Santos — Uma precipitação — O dueto abençoado — A chave do enigma.<br />

CAPÍTULO XIII<br />

O amigo <strong>da</strong>s crianças<br />

Porque amava a infância — O enxame de crianças — Honrosa excepção<br />

— Carlito obediente — A criança judia batiza<strong>da</strong> — O mais belo vestido — As<br />

alunas <strong>da</strong>s Ursulinas — Lição a um professor — O Colégio dos nobres — Promessas<br />

do arquiduque.<br />

CAPÍTULO XIV<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e a moci<strong>da</strong>de<br />

O magnete admirável — Pe<strong>da</strong>gogo ideal — Os êxtases do Santo — Os<br />

passeios pela ci<strong>da</strong>de — Medonho temporal — As nuvens no jardim — Amor à<br />

pureza — Padre novo — Expor dúvi<strong>da</strong>s — José Lobo — O despertador traidor<br />

— Os secretas.<br />

CAPÍTULO XV<br />

O bom pastor<br />

Em procura do pecador — Magnífica prece — Interessante diálogo —<br />

Frederico Schlegel convertido — Klinkowström e sua família — Os preconceitos<br />

— Antônio Pilat renuncia a maçonaria — Schlosser e sua família aos pés do<br />

Mestre — O temor <strong>da</strong> penitência na confissão.<br />

CAPÍTULO XVI<br />

O sábio Diretor <strong>da</strong>s Ursulinas<br />

Que é a Religiosa — Da chácara ao convento — Deus ilumina os confesso-


es — Reforma as Ursulinas — Os trabalhos <strong>da</strong>s religiosas — A Religiosa tíbia<br />

— A vontade de Deus — A obediência — A Religiosa nervosa — A vassoura<br />

usa<strong>da</strong> — A Irmã tenta<strong>da</strong> — A bruaca velha — As armas <strong>da</strong> mulher.<br />

CAPÍTULO XVII<br />

Sua fé profun<strong>da</strong><br />

A fé profun<strong>da</strong> — O plano <strong>da</strong> Providência — O faro católico — O seu tesouro<br />

— O terço do Senhor — A boa intenção — Amor à Igreja — A Igreja na história<br />

— Os incrédulos — Respeito humano — Um professor — Um professor perigoso<br />

—Trabalho pela imprensa — A biblioteca popular.<br />

CAPÍTULO XVIII<br />

O amante <strong>da</strong> pobreza<br />

Que são as riquezas — O tesouro nas mãos — A cruz de brilhante — O<br />

quarto do Santo — A roupa do Servo de Deus — O belo Vigário Geral — As<br />

palavras de Jesus.<br />

CAPÍTULO XIX<br />

O Anjo de pureza<br />

A virtude angélica — As portas <strong>da</strong> impureza — As mulheres santas —<br />

Laconismo santo — A mortificação e a pureza — O cardápio de ca<strong>da</strong> dia — Sua<br />

bebi<strong>da</strong> usual — Necessárias explicações.<br />

CAPÍTULO XX<br />

O Coração bondoso<br />

Os princípios mun<strong>da</strong>nos — Humil<strong>da</strong>de necessária — O defensor dos<br />

oprimidos — O coração grato — Deogratias — Louvores humanos — Humil<strong>da</strong>de<br />

de fato — Oculta os dons sobrenaturais — Humilhações na vi<strong>da</strong> — O<br />

blasfemador arrependido — O perdão generoso.<br />

CAPÍTULO XXI<br />

Amor ao clero e à <strong>Congregação</strong><br />

Amor ao Papa, aos Bispos e Sacerdotes — As pupilas de Deus — O sacerdote<br />

francês — Redentorista até a medula dos ossos — Cache-nez de se<strong>da</strong> —<br />

Exemplos de severi<strong>da</strong>de e brandura — Enérgico protesto — Difusão <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

— Fun<strong>da</strong>ção na Valachia — Sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Polônia.<br />

CAPÍTULO XXII<br />

No combate com os maçons<br />

Sabelli imprudente — A causa <strong>da</strong> perseguição — As acusações — Aqui<br />

não é bom estar... — É ci<strong>da</strong>dão austríaco — A busca na residência — A intimação<br />

— A palavra do monarca — Esperanças desfeitas.<br />

CAPÍTULO XXIII<br />

A <strong>Congregação</strong> na Áustria<br />

O Imperador visita o Papa — O memorandum — Começa com os jovens —<br />

Eu não o verei — Previsões — Resignação.<br />

CAPÍTULO XXIV<br />

Suspirando pelo céu<br />

O cortejo <strong>da</strong>s Virgens — Sempre a trabalhar — O auxiliar enfermo — Desgraça<br />

é só o pecado — Missa por uma benfeitora — Bela profecia — Recebe a<br />

extrema-unção — Obediência edificante — Vou para o meu retiro — Morte santa<br />

— Na câmara ardente — Sepultamento magnífico.<br />

CAPÍTULO XXV<br />

6<br />

Retrato do Servo de Deus<br />

Testemunho de um dos discípulos — do Dr. Veith — do cônego Greif — de<br />

um amigo do Santo — de Jacoba de Welschenau — de Luiza Pilat — de um exjesuíta<br />

— do cardeal Rauscher.<br />

CAPÍTULO XXVI<br />

O Santo na glória<br />

Declaração de João Pilat — de Zacharias Werner — <strong>da</strong>s Irmãs Ursulinas.<br />

CAPÍTULO XXVII<br />

O bondoso Taumaturgo<br />

As profecias do Santo — Conversões miraculosas — Protege nas vocações<br />

— Em grande falta de recursos — Mesmo em negócio de cozinha — O<br />

padroeiro dos enfermos: Ignez Fiath — Livra <strong>da</strong> morte — Paralisia e trismo —<br />

Chlorose complicado — Hidropisia — Tumores perigosos — Dores de garganta<br />

— Artrite — Varizes — Hemorragia — Escrofulas — Artroflogose — Reumatismo<br />

— Peritonite.<br />

CAPÍTULO XXVIII<br />

Na memória <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> e <strong>da</strong> Igreja<br />

As reuniões dos rapazes — Os primeiros noviços — Ativi<strong>da</strong>de do Pe.<br />

Passerat — Difusão <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> — A província do Rio — A província de S.<br />

Paulo — Apareci<strong>da</strong>, Campinas, Penha, Perdões, Araraquara, Cachoeira —<br />

Quadro sinótico.<br />

CAPÍTULO XXIX<br />

As Irmãs Redentoristas<br />

Em Scala — A Ordem <strong>da</strong>s Irmãs Redentoristas — O seu fim principal — O<br />

seu hábito atraente — Sua propagação na Europa — Sua vin<strong>da</strong> ao Brasil —<br />

Seus progressos.<br />

CAPÍTULO XXX<br />

O seu sepulcro glorioso<br />

O seu sepulcro — Exumação — Beatificação — O seu triunfo no mundo —<br />

Canonização — O ofício e missa do Santo — Observação final.


PARTE PRIMEIRA<br />

Luta pelo sacerdócio (1751-1786)<br />

CAPÍTULO I<br />

No lar paterno<br />

A pátria do Santo — Seu nascimento — Os pais de <strong>Clemente</strong> — Primeiras<br />

dores — É Ele o teu pai... — Ocupações prediletas — Passatempos — O futuro<br />

Apóstolo.<br />

Incontestavelmente um dos mais belos recantos <strong>da</strong> Europa é o sul <strong>da</strong><br />

Morávia, cujas campinas sorridentes se cobrem de on<strong>da</strong>s de trigo e lourejar, e<br />

cujos outeiros ostentam os vinhedos carregados, riqueza principal <strong>da</strong>quela zona.<br />

Tão lin<strong>da</strong> e poética é lá a paisagem que um dos melhores trovadores, depois de<br />

percorrer o mundo e lhe apreciar as belezas, exclamou como que estático diante<br />

dos encantos <strong>da</strong> Morávia: “Aqui quisera eu morar e passar o resto de minha<br />

vi<strong>da</strong>, tão atraente e sedutora me parece esta região, mesmo debaixo <strong>da</strong> neve”.<br />

Ora nesse pe<strong>da</strong>cinho do globo é que, em meados do século XVIII, viviam duas<br />

grandes e piedosas famílias, pobres quanto aos bens de fortuna, porém muito<br />

ricas dos dons sobrenaturais <strong>da</strong> virtude. Uma delas era oriun<strong>da</strong> <strong>da</strong> Boêmia e a<br />

outra, <strong>da</strong> Áustria.<br />

Tasswitz, pequena aldeia não longe de Znaim, era o lugar onde moravam<br />

na mais doce paz e harmonia essas abençoa<strong>da</strong>s famílias. Um jovem cortador,<br />

eslavo de nascimento por nome de Pedro Paulo Dworak, uniu-se em matrimônio<br />

com uma donzela alemã de Tasswitz chama<strong>da</strong> <strong>Maria</strong> Steer. Piedosos ambos<br />

viviam, no seio <strong>da</strong> família, mais contentes e satisfeitos do que se foram<br />

poderosos monarcas, embora não possuíssem senão a pobre casa, em que<br />

moravam, e um pequeno vinhedo com uns campos de trigo, onde derramavam<br />

os suores de seu rosto. Deus abençoou essa união com doze filhos, dos quais<br />

sete voaram para o céu ain<strong>da</strong> crianças; dos cinco sobreviventes <strong>Clemente</strong> foi o<br />

mais novo e o mais santo. O sr. Pedro Paulo Dworak, por ocasião do seu casamento,<br />

mudou o nome boêmio para o de <strong>Hofbauer</strong>.<br />

<strong>Clemente</strong> viu a luz do dia pela primeira vez a 26 de dezembro de 1751<br />

sendo batizado no mesmo dia com o nome do evangelista S. João, que deveria<br />

<strong>da</strong>r e que, de fato, deu a seu protegido, junto com a candura virginal do coração,<br />

o amor acendrado a Jesus Redentor. Esse nome de João foi mu<strong>da</strong>do para o de<br />

<strong>Clemente</strong> alguns anos mais tarde como veremos adiante. Como o Santo é quase<br />

só conhecido com esse segundo nome, nós nesta biografia chamá-lo-emos<br />

<strong>Clemente</strong> e não João.<br />

A mãe do pequeno <strong>Clemente</strong> soube <strong>da</strong>r-lhe uma educação firme mais pelo<br />

exemplo do que por palavras. Em to<strong>da</strong> a redondeza era ela conheci<strong>da</strong> como um<br />

modelo consumado de virtudes, salientando-se entre to<strong>da</strong>s a sua pie<strong>da</strong>de tão<br />

profun<strong>da</strong> quão esclareci<strong>da</strong>; a sua ocupação predileta era a oração; gostava de<br />

7<br />

demorar-se na igreja, sempre que suas ocupações domésticas o permitiam;<br />

ajoelha<strong>da</strong> diante de Jesus Sacramentado mais parecia um anjo do que uma<br />

criatura mortal. Termina<strong>da</strong>s as funções do culto, a missa, a reza etc, era ela a<br />

última a deixar o recinto sagrado, sentindo sempre dificul<strong>da</strong>de em abandonar a<br />

presença de Jesus no seu Sacramento de amor. Ao chegar e casa depois <strong>da</strong><br />

missa e <strong>da</strong> sagra<strong>da</strong> comunhão, longe de palestrar com os vizinhos para se<br />

informar <strong>da</strong>s novi<strong>da</strong>des <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de ou <strong>da</strong>s famílias, encetava logo o trabalho que<br />

se prolongava até a tarde. Em as múltiplas devoções, porém, não se descui<strong>da</strong>va<br />

<strong>da</strong>s obrigações do seu estado; como esposa amava enterneci<strong>da</strong> o marido, e<br />

como mãe olhava desvela<strong>da</strong> para os filhinhos que procurava educar para o céu.<br />

O seu predileto era <strong>Clemente</strong>, porque mais piedoso e de índole mais dócil<br />

que os outros. Desvelava-se a boa mãe em desenvolver cautelosamente no<br />

coração do filhinho os germes do bem, que Deus nele implantara; ensinou-lhe<br />

bem cedo as orações e as devoções, que <strong>Clemente</strong> conservou até o fim <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>. A boa mãe bem sabia que a pie<strong>da</strong>de não consiste apenas em pronunciar<br />

belas orações, baixar a cabeça, virar os olhos e ter uma aparência singular e<br />

atraente, mas que ela deve apoderar-se de todo o homem encaminhando para<br />

o bem tanto a inteligência como a vontade; eis porque lhe ensinara a abnegação<br />

e a mortificação, insistindo com ele para que amasse o jejum e guerreasse<br />

a vontade própria. To<strong>da</strong>s as vezes que o pequeno <strong>Clemente</strong> se mostrava extraordinariamente<br />

bem comportado, a mãe o recompensava permitindo-lhe jejuar<br />

ou <strong>da</strong>r alguma esmola aos pobres.<br />

Quando Deus ama alguém, não deixa de visitá-lo com sofrimentos e dissabores<br />

para mais o purificar, desprender do mundo e tornar semelhante a seu<br />

divino Filho que tomou sobre si as nossas dores. Ora, sendo a família de <strong>Clemente</strong><br />

agradável a Deus, devia passar desde cedo pelo crisol de duras provações.<br />

Contava o nosso Santo apenas sete anos quando perdeu o extremoso e<br />

carinhoso pai. Fortemente golpea<strong>da</strong> sentiu-se a pobre viúva com a morte do<br />

esposo que idolatrava ,mas como o seu coração era todo de Deus não se deixou<br />

perturbar pelo duro golpe, resignou-se docilmente, beijando com carinho a<br />

mão de Deus que a feria, e depositando to<strong>da</strong> a sua confiança na Providência<br />

que tudo dirige com a maior sabedoria e acerto. O pequeno <strong>Clemente</strong> que,<br />

embora criança, já amava seu pai, chorou sentido a per<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele que tanto o<br />

acariciava e tanta ternura lhe mostrava. A pobre mãe tomando-o um dia pela<br />

mão levou-o para a igreja onde se achava um lindo e devoto Crucifixo; mãe e<br />

filho contemplavam resignados o Redentor pendente <strong>da</strong> cruz, haurindo conforto<br />

e alívio <strong>da</strong>s chagas rubras de Jesus. No auge do fervor e <strong>da</strong> fé, a mãe sentiu<br />

subitamente o coração palpitar-lhe fortemente no peito e to<strong>da</strong> enleva<strong>da</strong> disse<br />

ao filhinho apontando para o Cristo pregado na Cruz: “Meu filho, de hoje em<br />

diante é Ele o teu pai, não te afastes nunca do caminho que lhe agra<strong>da</strong>”. O<br />

pequeno <strong>Clemente</strong> compreendeu essa palavra saí<strong>da</strong> dos lábios maternos em<br />

hora tão solene, e conservou-a profun<strong>da</strong>mente grava<strong>da</strong> em seu coração. A recor<strong>da</strong>ção<br />

dessa cena íntima foi para <strong>Clemente</strong>, mais tarde, como que uma fonte<br />

de luz que o conservou no caminho <strong>da</strong> virtude e o confortou em os penosos<br />

transes <strong>da</strong> sua trabalhosa vi<strong>da</strong>.<br />

<strong>Clemente</strong> recebeu de Deus um coração extraordinariamente propenso para<br />

o bem, um coração reto e sincero, que odiava to<strong>da</strong> hipocrisia. Amava sincera-


mente sua mãe e gostava de falar dela com respeito e veneração. Quando já<br />

avançado em anos, agradecia ain<strong>da</strong> a Nosso Senhor o ter-lhe <strong>da</strong>do uma mãe<br />

tão santa e virtuosa; ca<strong>da</strong> vez que, mais tarde, em suas viagens empreendi<strong>da</strong>s<br />

para o bem <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> ou <strong>da</strong>s almas, passava por perto do lugar, onde se<br />

achava a sepultura de sua queri<strong>da</strong> mãe, fazia uma visita, breve embora, ao seu<br />

túmulo, ajoelhava-se respeitosamente umedecendo com suas lágrimas a terra<br />

que ocultava o precioso tesouro do seu coração.<br />

Para o coração filial de <strong>Clemente</strong>, em extremo impressionável para o bem,<br />

tinham grande valor e importância os exemplos de sua mãe. Como esta, amava<br />

<strong>Clemente</strong> a oração e a casa de Deus; ao vê-lo ajoelhado ao lado <strong>da</strong> queri<strong>da</strong><br />

progenitora, as mãozinhas postas, o rosto inocente inspirando santa serie<strong>da</strong>de<br />

e os olhos fitos no tabernáculo ou em alguma imagem <strong>da</strong> Santíssima Virgem,<br />

não havia quem não se comovesse tomando-o por um anjinho descido do céu.<br />

Sentia viva alegria em aproximar-se o mais possível, de Jesus a quem<br />

tanto amava; gostava de servir à missa por se achar assim mais perto do Menino<br />

Deus, vivo sobre o altar debaixo <strong>da</strong>s espécies sacramentais. Já nessa i<strong>da</strong>de<br />

era o rosário a sua oração predileta; aos sábados, consagrados à Santíssima<br />

Virgem, não sossegava enquanto não fizesse alguma devoção especial em louvor<br />

de sua mãe celestial. Se, às vezes, recebia alguma gratificação por seus<br />

servicinhos ao altar, economizava o dinheiro para depois ir ter com o vigário e<br />

man<strong>da</strong>r celebrar uma missa por intenção dos seus ou <strong>da</strong>s almas do purgatório.<br />

A sua vocação de apóstolo do bem, recebeu-a <strong>Clemente</strong> em seus verdes<br />

anos. Um belo dia, acompanhando sua mãe a um lugar um pouco retirado de<br />

Tasswitz, encontrou de caminho algumas pessoas de seu parentesco que se<br />

distraíam em agradável passeio. Como de costume em tais ocasiões, perguntou-lhes<br />

a mãe de <strong>Clemente</strong>, como iam de saúde, para onde se dirigiam e o que<br />

estavam a fazer; a esta última pergunta os parentes responderam: “Estamos<br />

passando o tempo”. <strong>Clemente</strong> não compreendeu bem essa última expressão;<br />

feitas as despedi<strong>da</strong>s retiraram-se, mas o menino preocupado puxa de leve o<br />

vestido de sua mãe e pergunta-lhe: “Mamãe, que quer dizer isto: ‘estamos passando<br />

o tempo’?” Ao receber a explicação encheu-se o pequeno de santa indignação<br />

e, com ar de indescritível gravi<strong>da</strong>de disse: “Mamãe, quando a gente não<br />

tem o que fazer, deve rezar!” Que bela palavra! que ensinamento salutar para<br />

tantos adultos que, esquecidos <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de, se preocupam quase que exclusivamente<br />

com a terra pensando encontrar nela o paraíso! Essa palavra, pronuncia<strong>da</strong><br />

por <strong>Clemente</strong> em tão tenra i<strong>da</strong>de, foi a norma de sua vi<strong>da</strong>, como<br />

veremos mais tarde; sempre se manifestou inimigo <strong>da</strong> expressão “passatempos<br />

e divertimentos” etc.<br />

Bela educação essa, <strong>da</strong><strong>da</strong> por uma mulher simples do meio do povo! e ela<br />

soube, segundo os ditames do seu coração reto, desenvolver e educar rica e valorosamente<br />

as disposições sobrenaturais coloca<strong>da</strong>s tão prodigamente por Deus no<br />

coração de seu filhinho. Já na infância de <strong>Clemente</strong> se revelaram claramente os<br />

traços que o distinguiram mais tarde: a sensibili<strong>da</strong>de extraordinária para as orações<br />

do Espírito Santo, a vi<strong>da</strong> num mundo superior, a clara e profun<strong>da</strong> compreensão <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fé, o apóstolo <strong>da</strong> oração, o relacionamento com as grandes e as pequenas<br />

questões <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, o herói <strong>da</strong> mortificação, o pai dos pobres e dos órfãos. Eis o<br />

que vale a educação <strong>da</strong><strong>da</strong> por uma mãe virtuosa e santa.<br />

CAPÍTULO II<br />

8<br />

Os primeiros estudos<br />

Procura um ofício — Os sentimentos nobres — O <strong>São</strong> Cristóvão — No<br />

convento dos Premonstratenses — A grande carestia — Entre os seminaristas<br />

do Convento — Dificul<strong>da</strong>de nos estudos.<br />

<strong>Clemente</strong> havia já entrado nos seus catorze anos. Depois de abandonar o<br />

banco escolar onde fora um dos alunos mais aplicados e estudiosos, pôs-se a<br />

aju<strong>da</strong>r sua mãe no cultivo do vinhedo e do campo, alegrando sempre a todos<br />

com o seu semblante risonho e com o seu comportamento exemplar; não havia<br />

quem não sentisse viva satisfação em se achar na companhia do filho do cortador<br />

de Tasswitz. Mas na medi<strong>da</strong> que os anos se iam, mu<strong>da</strong>va-se tudo ao redor de<br />

<strong>Clemente</strong>. Seu pai, já de há muito, havia falecido e junto dele repousavam no<br />

silêncio do túmulo quatro irmãs e três irmãos de <strong>Clemente</strong>. Os outros, pobres<br />

também, já se haviam espalhado em direções diversas a cata de negócios ou<br />

ocupações que lhes garantissem a subsistência. Era pois tempo de <strong>Clemente</strong><br />

decidir-se a começar a carreira de sua vi<strong>da</strong>. Um único ideal pairava então ante<br />

o seu espírito: sua alma inocente e pura sentia ternas sau<strong>da</strong>des do interior do<br />

Santuário do Senhor e ele só desejava alistar-se entre os ministros do Altíssimo<br />

pelo Sacerdócio. <strong>Clemente</strong> queria ser padre para oferecer a Deus o santo Sacrifício<br />

dos nossos altares, anunciara do alto do púlpito a palavra divina, converter<br />

os pecadores, perdoar as culpas ao pecador contrito depois de investido <strong>da</strong><br />

digni<strong>da</strong>de sacerdotal, superior à dos reis e imperadores. Esse era também o<br />

sonho dourado <strong>da</strong> sua mãe, cujo coração estremecia de júbilo só em pressentir<br />

a dita de ver um dia o seu filho sacerdote, intermediário <strong>da</strong>s bênçãos celestes<br />

entre Deus e o homem! Mas — pobrezinho! — <strong>Clemente</strong> não dispunha dos<br />

meios, sem os quais o estudo se torna impossível e por isso, o coração sangrava-lhe<br />

no peito; teve de renunciar, talvez para sempre, à mais queri<strong>da</strong> aspiração<br />

de sua alma — não podia ser padre. Não havia outro remédio, era forçoso aprender<br />

um ofício qualquer para o sustento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. O ofício de seu pai não lhe era<br />

simpático, parecia-lhe demasiado cruel; preferiu o ofício de padeiro. Entrou pois<br />

como aprendiz na casa de um dos melhores e mais afamados padeiros <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de, senhor de uma honesti<strong>da</strong>de a to<strong>da</strong> prova, católico praticante Estava<br />

pois bem colocado; seu novo mestre não queria fazer dele somente um bom<br />

padeiro mas, sobretudo, um cristão adornado de virtudes, alheio às tabernas,<br />

aos divertimentos perigosos e aos princípios subversivos que conduzem o pobre<br />

operário ao desprezo <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de, ao ouvido de Deus, às blasfêmias e à<br />

vi<strong>da</strong> dissoluta. <strong>Clemente</strong> lá esteve três anos a trabalhar e a exercer-se na prática<br />

<strong>da</strong>s virtudes necessárias a um operário piedoso. Trabalhava sim, mas seu


coração não se satisfazia, sentia um vácuo indizível na sua alma, uma voz parecia<br />

soar-lhe constantemente aos ouvidos convi<strong>da</strong>ndo-o a subir os degraus do<br />

altar; ah! <strong>Clemente</strong> tinha sau<strong>da</strong>des pungentes do sacerdócio, e ele, como outrora<br />

Abraão, esperando em Deus contra to<strong>da</strong> a esperança, suplicava ao céu se<br />

dignasse abrir-lhe em par as portas do santuário. Entretanto tudo parecia conjurar-se<br />

contra ele, mas <strong>Clemente</strong> não desanimava; ao fabricar o pão material<br />

lembrava-se do pão dos anjos, que o padre consagra sobre o altar; ao levar aos<br />

fregueses a cesta de pão às costas, pedia a Deus, soluçando, que lhe fosse<br />

<strong>da</strong>do um dia, levar o pão do céu aos pobres moribundos.<br />

O mestre tinha um filhinho que contava então seus cinco anos de i<strong>da</strong>de. O<br />

pequeno era inocente e, como as almas inocentes logo se conhecem, não tardou<br />

a travar com <strong>Clemente</strong> a mais santa amizade, não o querendo mais deixar<br />

nem um instante; acompanhava-o em to<strong>da</strong> parte, seguia-o em suas voltas pela<br />

ci<strong>da</strong>de, pois que <strong>Clemente</strong> sabia falar tão bem e contar tão lin<strong>da</strong>s coisas do céu,<br />

dos Santos e <strong>da</strong> Virgem Santíssima. Para não perder tempo na entrega dos<br />

pães aos fregueses, pediu <strong>Clemente</strong> à mãe do pequeno, que o retivesse em<br />

casa nessas ocasiões; porém debalde, a respeitável senhora não acedeu ao<br />

pedido de <strong>Clemente</strong>, porque não julgava perdido o tempo, em que o distribuidor<br />

do pão se retar<strong>da</strong>va nos negócios, a <strong>da</strong>r tão santas instruções e tão belos exemplos<br />

a seu filhinho. Que faz <strong>Clemente</strong>? Toma a cesta às costas e o menino em<br />

seus braços, e assim percorre apressado a ci<strong>da</strong>de. Semelhante cena Tasswitz<br />

nunca presenciara; alguns sorriam-se pela novi<strong>da</strong>de do fato, e outros <strong>da</strong>s janelas<br />

gritavam: “Olha o <strong>São</strong> Cristóvão”. <strong>Clemente</strong> desejoso de ver o Santo que o<br />

povo anunciava, olhou, no princípio, para to<strong>da</strong>s as direções; como não visse<br />

coisa alguma perguntou admirado onde é que estava S. Cristóvão. Quando lhe<br />

disseram que <strong>São</strong> Cristóvão era ele mesmo, não soube o que pensar; ao chegar<br />

em casa contou tudo ao mestre perguntando-lhe porque é que lhe tinham<br />

<strong>da</strong>do esse nome tão interessante. Ao ouvir <strong>da</strong> mulher do mestre, que S. Cristóvão<br />

era um gigante muito santo, que levado <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de, transportava as pessoas<br />

por sobre um rio destituído de ponte, e que um dia Jesus Cristo mesmo<br />

lhe apareceu, na forma de um viajante, pedindo o quisesse levar para o outro<br />

lado do rio. S. Cristóvão o transportou sobre seus ombros, merecendo depois<br />

ver a Jesus e ouvir-lhe as palavras de agradecimento. <strong>Clemente</strong> não pôde conter-se<br />

e exclamou: “Quem me dera ser deveras um S. Cristóvão para levar o<br />

Cristo em minhas mãos!”<br />

Esse pensamento não o deixava sossegar. Mal havia terminado o tempo<br />

de sua aprendizagem, <strong>Clemente</strong>, numa esperança que ele mesmo não saberia<br />

definir, dirigiu-se ao convento dos padres Premonstratenses, apresentou-se ao<br />

abade que se mostrou bem impressionado como o moço tão modesto, tão bem<br />

vestido e asseado. <strong>Clemente</strong> conjecturou: “Quem sabe, se lá não será mais fácil<br />

remover os obstáculos, superar as barreiras que me impedem de subir os degraus<br />

do altar?!” A Europa inteira gemia naquele tempo debaixo <strong>da</strong>s mais duras<br />

provações. A guerra dos sete anos era já passa<strong>da</strong>, mas as conseqüências faziam-se<br />

sentir profun<strong>da</strong>mente, levando a miséria e a fome a todos os países; as<br />

terras ficaram sem cultivo, muitas ci<strong>da</strong>des foram incendia<strong>da</strong>s. Nesse tempo de<br />

desolação e miséria eram os conventos o celeiro que fornecia o alimento a<br />

milhares de bocas. O abade dos Premonstratenses, homem de grandes virtu-<br />

9<br />

des, possuía um coração extremamente generoso: novecentas pessoas recebiam<br />

diariamente a alimentação à porta do convento. O trabalho de <strong>Clemente</strong> no<br />

convento, consistia em preparar o pão para essa multidão de desditosos, e ele<br />

sentia-se realmente feliz por poder prestar seus serviços aos pobres; dia e noite<br />

trabalhava para não deixar ninguém sofrer, e muitas vezes tirava o pão <strong>da</strong> própria<br />

boca, afim de matar a fome àqueles infelizes. Mas a carestia não veio só;<br />

apareceu acompanha<strong>da</strong> do tifo e de outras moléstias que dizimavam a população.<br />

Centenas de homens arrastavam-se até a porta do convento enfraquecidos<br />

pela fome e torturados pela febre, recebiam o pão que, às vezes, não podiam<br />

levar à boca, porque a morte os surpreendia naquele momento.<br />

Deus não se deixa vencer em generosi<strong>da</strong>de, dá cem por um a todos os que<br />

trabalham por amor dele; <strong>Clemente</strong> pois devia receber a sua recompensa: e<br />

esta não foi pequena. Na abadia, onde <strong>Clemente</strong> se empregara, existia um<br />

seminário onde trinta rapazes recebiam instrução e donde já tinham saído sacerdotes<br />

exemplares e santos. O pequeno padeiro conteve-se, dezoito meses,<br />

a ver calado os meninos que, os livros debaixo do braço, iam às aulas ou brincavam<br />

alegres na hora do recreio. As lágrimas corriam-lhe pelas faces, lágrimas<br />

de uma santa inveja, que ele não podia reprimir porque eram sinceras,<br />

saí<strong>da</strong>s do fundo do coração. As lágrimas de <strong>Clemente</strong> enterneceram o coração<br />

divino que lhe outorgou ânimo e coragem. Foi ter com o abade, abriu-lhe a alma<br />

e, o coração nos lábios, suplicou-lhe uma ocupação mais leve na abadia afim<br />

de poder dedicar-se aos estudos e assistir às aulas do colégio. O coração bondoso<br />

do abade, reconhecendo a vocação sacerdotal do seu padeiro, acedeu ao<br />

pedido de <strong>Clemente</strong>, nomeando-o seu refeitoreiro e copeiro.<br />

<strong>Clemente</strong> podia, pois, mais desimpedido dedicar-se às letras — mas o estudo<br />

já não lhe era tão fácil; o pouco de latim que aprendera com o vigário de<br />

Tasswitz, já há muito estava esquecido e aos vinte anos, que <strong>Clemente</strong> não<br />

contava, a memória já não é tão fresca e firme para reter tanta coisa. Além disso<br />

o estudo era para ele, naquelas circunstâncias, uma coisa secundária. Mas não<br />

há o que a aplicação constante não vença. Labor improbus omnia vincit. Em<br />

quatro anos completou <strong>Clemente</strong> as classes ginasiais fazendo os mais brilhantes<br />

progressos em to<strong>da</strong>s as matérias: em religião, latim, grego, geografia e história<br />

<strong>Clemente</strong> avantajou-se a muitos outros alunos mais talentosos do que ele.<br />

É certo que o nosso Santo, mais de uma vez, teve de ouvir palavras picantes<br />

dos colegas que zombavam <strong>da</strong> sua i<strong>da</strong>de, mas <strong>Clemente</strong> sabia suportar tudo<br />

aquilo com a maior tranqüili<strong>da</strong>de, agradecendo a Deus a amarga pílula que lhe<br />

apresentava.


CAPÍTULO III<br />

Peregrinações<br />

O ermitão de Mühlfrauen — As romarias e os romeiros — Abandona o<br />

ermitério — Vai à Boêmia e volta a Viena — Romaria à Itália — Volta à Áustria e<br />

torna novamente a Roma — Tívoli — Outra vez em Viena — As senhoras von<br />

Maul.<br />

Os Premonstratenses, também chamados Norbertinos, foram fun<strong>da</strong>dos por<br />

S. Norberto em 1120 na França. Têm por fim unir a ativi<strong>da</strong>de paroquial às ocupações<br />

do claustro. A ordem foi aprova<strong>da</strong> por Honório II em 1126. Dividem-se<br />

em sacerdotes Cônegos e leigos conversos. Têm o hábito de lã branca. A ordem<br />

espalhou-se rapi<strong>da</strong>mente na Europa, mormente na França e Alemanha.<br />

Em 1250 já contava com 1.200 residências. A reforma protestante fechou muitos<br />

conventos na Alemanha, e a revolução francesa só poupou algumas residências<br />

na Áustria e na Hungria. Desde 1834, porém, recomeçou a Ordem a<br />

florescer e em 1900 já possuía 5 províncias com 17 abadias e alguns prioratos.<br />

O abade geral é eleito; em 1905 tomavam mais de 182 paróquias e dirigiam 7<br />

ginásios.<br />

Terminados os estudos <strong>da</strong> abadia, achava-se outra vez <strong>Clemente</strong> em sérias<br />

dificul<strong>da</strong>des. A escola abacial tinha só quatro classes. Para entrar na Ordem<br />

dos Premonstratenses, não sentia vocação; para continuar os estudos fora, não<br />

possuía os meios necessários. Que fazer em semelhantes conjunturas? Deus<br />

mostrou-lhe um caminho inteiramente novo. <strong>Clemente</strong> será ermitão. Sem mais<br />

hesitar atravessou o rio e no meio <strong>da</strong> floresta construiu uma ermi<strong>da</strong> pequena e<br />

simples, não longe <strong>da</strong> povoação <strong>da</strong> Mühlfrauen. De manhã ia todos os dias à<br />

ci<strong>da</strong>de ouvir a missa, recebia a santa comunhão, e depois voltava ao trabalho, à<br />

oração ou à leitura de algum livro piedoso; um pe<strong>da</strong>ço de pão com alguns poucos<br />

legumes constituía a sua refeição cotidiana. Aos domingos, porém, e dias<br />

santos, <strong>Clemente</strong> quase não se ausentava <strong>da</strong> igreja; sentia-se lá tão feliz parecendo-lhe<br />

achar-se na antecâmara do paraíso. Na solidão <strong>da</strong> floresta sua alma<br />

expandia-se tranqüila aos encantos <strong>da</strong> natureza, cantava com os passarinhos,<br />

com as águas e as árvores sacudi<strong>da</strong>s pelo vento, os louvores e as magnificências<br />

de Deus; e quando a natureza repousava nas trevas que envolviam a terra,<br />

<strong>Clemente</strong> ain<strong>da</strong> rezava, até que o sono lhe abatesse as pálpebras sobre os<br />

olhos. A vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> floresta, porém, não era sempre assim tão poética; dias chuvosos<br />

umedeciam-lhe, por vezes, a pobre choupana e as tempestades com seus<br />

trovões desencadeavam-se sobre as árvores, curvando os possantes troncos,<br />

e não raramente os furacões furiosos <strong>da</strong>s tentações oprimiam-lhe violentamente<br />

a alma: <strong>Clemente</strong>, então, humilhava-se, abraçava a cruz alegre por poder<br />

10<br />

sofrer alguma coisa por Nosso Senhor.<br />

As grandes virtudes do ermitão já não podiam permanecer ocultas; espalharam-se<br />

pelos arredores e atraíram bem depressa a atenção e a admiração<br />

dos moradores <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e <strong>da</strong>s circunvizinhanças, e em geral de todos quantos<br />

iam visitar a Igreja de Nossa Senhora de Mühlfrauen. Os peregrinos, depois de<br />

satisfeita a devoção ao pé do altar <strong>da</strong> Virgem, iam procurar o ermitão, levandolhe<br />

presentes, o que <strong>Clemente</strong> agradecia retribuindo tão finas gentilezas com<br />

bons conselhos, úteis admoestações e santos pensamentos. Nas horas vagas,<br />

<strong>Clemente</strong> confeccionava cruzes de madeira extraí<strong>da</strong> <strong>da</strong> floresta; com esse trabalho<br />

mostrava aos peregrinos sua gratidão, exortando-os a carregarem sempre<br />

e com ver<strong>da</strong>deiro amor e espírito de sacrifício a cruz que Deus lhes impunha<br />

sobre os ombros. Não raras vezes ele mesmo tomava uma cruz grande e<br />

pesa<strong>da</strong>, que se conservava encosta<strong>da</strong> à porta, e carregava-a acompanhado<br />

dos peregrinos, ca<strong>da</strong> um com sua cruz às costas, até ao santuário do Bom<br />

Jesus atado à coluna. Nessa romaria piedosa cantavam e rezavam edificando a<br />

todos e despertando neles sentimentos de santa compunção e arrependimento.<br />

Eram tempos de fé e de simplici<strong>da</strong>de; que contraste com a vi<strong>da</strong> moderna!<br />

Hoje em dia, em vez do Santuário, visitam-se em geral os lugares de divertimentos;<br />

em vez <strong>da</strong> cruz carregam-se os jovens de perfumes; em vez <strong>da</strong> penitência<br />

procuram a sensuali<strong>da</strong>de. Mas, que contraste também no interior <strong>da</strong> alma!<br />

<strong>Clemente</strong> e os seus romeiros sentiam-se felizes no meio <strong>da</strong>s mortificações,<br />

porque gozavam a paz <strong>da</strong> consciência, enquanto que os modernos não se sentem<br />

bem nas on<strong>da</strong>s dos prazeres, porquanto a paz <strong>da</strong> alma só se encontra nos<br />

corações inocentes e puros, e a inocência não medra nos divertimentos que<br />

enervam, mas na mortificação que eleva o coração.<br />

Apenas um ano pôde <strong>Clemente</strong> gozar as doçuras <strong>da</strong> solidão. Naquele tempo,<br />

como agora, os governantes não tinham compreensão <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de sacrifício<br />

e de devoção; a oração era sinônimo de ociosi<strong>da</strong>de, e o ermitão passava por<br />

mandrião e preguiçoso. Entretanto os ermitães eram os melhores ci<strong>da</strong>dãos,<br />

que nas horas vagas se dedicavam ao cultivo <strong>da</strong> terra, empregando assim o<br />

seu tempo melhor do que centenas ou milhares de ricaços que vivem a custa<br />

dos pobres, e do que numerosos escritores que envenenam milhares de corações<br />

com seus escritos heréticos ou imorais. Um decreto imperial proibiu na<br />

Áustria a vi<strong>da</strong> eremítica, como já havia proibido também os conventos. <strong>Clemente</strong>,<br />

que na<strong>da</strong> se simpatizava com a visita importuna <strong>da</strong> polícia, abandonou a<br />

pobre choupana e disse adeus à doce solidão. Indeciso vai, sem saber bem<br />

porque, à ci<strong>da</strong>de onde nascera seu pai. Era o dedo <strong>da</strong> Providência que para lá<br />

o guiava, pois que destinando-o para o apostolado <strong>da</strong> Polônia, queria que lá<br />

aprendesse a língua necessária para a sua futura ativi<strong>da</strong>de em prol <strong>da</strong>s almas.<br />

Pobre <strong>Clemente</strong>! as portas do sacerdócio continuavam-lhe fecha<strong>da</strong>s; a vi<strong>da</strong><br />

solitária tornara-se-lhe impossível; que fazer? Não havia outro expediente senão<br />

voltar ao ofício antigo, à vi<strong>da</strong> de padeiro. Homem de resoluções firmes, não<br />

trepidou; afivelou a mochila, tomou a bengala e a pé caminhou até Viena, que<br />

ain<strong>da</strong> não conhecia. Nem por sonhos lhe passava pela mente, que um dia os<br />

vienenses haveriam de pronunciar com respeito o seu nome, gloriando-se de<br />

tê-lo por apóstolo e protetor. Não tardou a encontrar colocação numa pa<strong>da</strong>ria A


pera de ferro em frente à Igreja <strong>da</strong>s Ursulinas, onde passou três anos; sempre<br />

que lhe era possível, aju<strong>da</strong>va a missa na Catedral ou na Igreja <strong>da</strong>s Ursulinas,<br />

que freqüentava com assidui<strong>da</strong>de. Era esse o seu procedimento e o seu recato<br />

em Viena, porque estava convencido de que um moço não se conserva inocente<br />

e puro numa ci<strong>da</strong>de grande a não ser por meio <strong>da</strong> oração e <strong>da</strong> freqüência dos<br />

sacramentos.<br />

Nesse lapso de tempo, <strong>Clemente</strong> havia lido muita coisa edificante sobre<br />

Roma, a ci<strong>da</strong>de dos papas, onde tantos mártires derramaram o seu sangue<br />

pela fé, a ci<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s belas igrejas, onde se conservam preciosas relíquias. O<br />

seu coração sentiu sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de eterna e <strong>Clemente</strong> resolveu viajar até<br />

lá. Se tantos jovens visitam as grandes capitais, onde se perdem e pervertem,<br />

porque é que ele não poderia também satisfazer a esse seu desejo ardente e<br />

derramar o coração sobre os tumultos dos santos Apóstolos e dos grandes<br />

papas? Manifesta esse seu intento a um dos seus melhores e mais fiéis amigos,<br />

Pedro Kunzmann e convi<strong>da</strong>-o para a viagem; faz por um tempo as maiores<br />

economias possíveis, e juntos parte para Roma, vencendo a distância to<strong>da</strong> a<br />

pé. Era uma ver<strong>da</strong>deira romaria de penitência; rezando em voz alta o rosário,<br />

que repetiam muitas vezes, cantavam também as la<strong>da</strong>inhas e outras orações à<br />

Nossa Senhora, e os hinos devotos que sabiam de cor. A impressão causa<strong>da</strong><br />

sobre as pessoas à beira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>, por onde os nossos romeiros passavam,<br />

era naturalmente diversa e, às vezes oposta; uns sacudiam a cabeça em sinal<br />

de desaprovação, outros, porém, edificavam-se com tamanha devoção; os peregrinos,<br />

porém, pouco ou na<strong>da</strong> se importavam com os comentários que se<br />

faziam. Eles só procuravam glorificar o Senhor e tornar-se dignos <strong>da</strong>s bênçãos<br />

divinas na ci<strong>da</strong>de eterna. Cansados de cantar e rezar, punham-se, às vezes, a<br />

contemplar a natureza, que se abria belíssima a seus olhos sob o sol encantador<br />

<strong>da</strong> Itália. Dos vinhedos admiráveis, dos campos ondulados de trigo, por<br />

entre as alcantila<strong>da</strong>s montanhas dos Alpes e dos Apeninos, seus olhos levantavam-se<br />

até Deus, autor dessas maravilhas estupen<strong>da</strong>s, dessas belezas encantadoras.<br />

Se uma ou outra vez lhes faltava agasalho, à noite, para descansarem<br />

seus membros fatigados, lembravam-se do Redentor e sobre a palha, ao relento,<br />

dormiam mais tranqüilos do que os reis em seus ricos palácios.<br />

Itália, paraíso <strong>da</strong> Europa! os nossos peregrinos exultaram quando, pela<br />

primeira vez, sentiram as auras perfuma<strong>da</strong>s e quentes <strong>da</strong> península. Era Deus<br />

que os abençoava do alto do céu; embora não conhecessem a língua italiana,<br />

na<strong>da</strong> lhes faltou e nenhum incidente menos agradável veio perturbar-lhes a paz<br />

e a tranqüili<strong>da</strong>de. Ao passo que se avizinhavam <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de Santa, os corações<br />

pulsavam-lhes com mais rapidez e calor dentro do peito. Mal avistaram, <strong>da</strong> última<br />

colina, a magnífica ci<strong>da</strong>de com suas quatrocentas igrejas e inúmeros santuários,<br />

pareceu-lhes entrar no paraíso. <strong>Clemente</strong> não resiste, cai de joelhos, reza<br />

e chora de alegria. Apenas chegados, põem-se a percorrer com devoção os<br />

santuários mais conhecidos implorando, em to<strong>da</strong> a parte, a força na fé, o amor<br />

sincero a Jesus e a perseverança no caminho do céu. Ah! eles não tinham ido a<br />

Roma em excursão científica para estu<strong>da</strong>rem os estilos <strong>da</strong>s igrejas e as galerias<br />

artísticas, mas só com o fim de desabafarem os corações e haurirem mais<br />

profundos sentimentos de fé.<br />

Depois de satisfeita a devoção, voltaram para a Áustria alegres e conten-<br />

11<br />

tes, e com razão, pois que o coração humano precisa de quanto em vez, dessas<br />

emoções íntimas que lhe servem de desabafo e ao mesmo tempo de animação.<br />

Chegados a Viena, entram novamente na “A pera de ferro”; mas que contraste<br />

de vi<strong>da</strong>! Roma com suas festas pomposas, com suas igrejas magníficas e seus<br />

altares suntuosos, com suas procissões solenes, impressionara os visitantes e<br />

ficara para sempre grava<strong>da</strong> em seus corações — e em Viena era tudo tão frio,<br />

as igrejas tão vazias, a vi<strong>da</strong> religiosa tão diminuta; as irman<strong>da</strong>des e as ordens<br />

religiosas aboli<strong>da</strong>s e o culto desprovido de seu esplendor antigo: em vez dos<br />

sermões substanciosos de outrora, ouviam-se agora do alto do púlpito somente<br />

palavras de humani<strong>da</strong>de e quejan<strong>da</strong>s expressões de filantropia que não satisfazem<br />

o coração.<br />

<strong>Clemente</strong> e Kunzmann sentiam-se mal em Viena; não podendo habituar-se<br />

com a vi<strong>da</strong> monótona <strong>da</strong> Capital austríaca pensavam em voltar outra vez para o<br />

Sul, afim de <strong>da</strong>rem expansão a seus sentimentos de pie<strong>da</strong>de. E quiçá, ser-lhesia<br />

possível lá consagrar-se a Deus na solidão; na Itália não se considerava<br />

crime a vi<strong>da</strong> de ermitão. Deixando a conversa cair repeti<strong>da</strong>s vezes sobre o assunto,<br />

animaram-se por fim e tomaram a resolução de voltar para a Itália, desta<br />

vez provavelmente para sempre. Chega<strong>da</strong> a hora <strong>da</strong> parti<strong>da</strong> foram levar suas<br />

despedi<strong>da</strong>s a “A pera de ferro”. Houve lágrimas e protestos do velho mestre que<br />

os não queria deixar partir; disposto a tudo para impedir a per<strong>da</strong> dos dois amigos,<br />

ofereceu a <strong>Clemente</strong> grande soma de dinheiro e sua única filha em casamento.<br />

Tudo porém em vão; <strong>Clemente</strong> aspirava a coisas mais eleva<strong>da</strong>s. Um<br />

último abraço e o sacrifício estava completo. <strong>Clemente</strong>, sempre generosos, caritativo<br />

e de mãos abertas, não possuía recursos para a viagem, mas, em compensação,<br />

o companheiro mais econômico do que ele, conseguira ajuntar uma<br />

quantia não desprezível. Como <strong>da</strong> primeira vez seguiram a pé, renovando as<br />

cenas comoventes <strong>da</strong> primeira viagem. Chegados em Roma, peregrinaram e<br />

rezaram a vontade, pois que já não havia pressa como <strong>da</strong> primeira vez; entretanto<br />

não podiam nem deviam esquecer que tinham ido em procura <strong>da</strong> solidão.<br />

Seis léguas distante de Roma salientava-se uma ci<strong>da</strong>de célebre, mais antiga do<br />

que a ci<strong>da</strong>de dos papas, de nome Tívoli com um ermitério de conhecido nome<br />

na Europa.<br />

Vão a Tívoli onde visitam o bispo Gregório Chiaramonti, Beneditino, futuro<br />

papa com o nome de Pio VII. Como o bispo era dotado de insignes virtudes e de<br />

uma grande prudência, não deixou de colocar ante os olhos dos dois alemães<br />

as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> solitária, que geralmente se enche de cruzes e sacrifícios,<br />

onde a alma sente muitas vezes a fúria <strong>da</strong>s tempestades e os assaltos<br />

freqüentes dos inimigos, segundo as palavras do Espírito Santo. “Filho, quando<br />

entrares no serviço de Deus... prepara a tua alma para a tentação, vi<strong>da</strong> de<br />

trabalhos, de oração, de desprendimentos e de contemplação. A resposta dos<br />

dois postulantes foi: “por amor de Jesus estamos dispostos a tudo”. Foi o próprio<br />

bispo quem lhes deu o hábito e lhes mudou os nomes para que se esquecessem<br />

completamente do século; João recebeu o nome de <strong>Clemente</strong>, e Pedro<br />

Kunzmann o de Manoel. É dessa ocasião em diante que o futuro Redentorista<br />

começou a assinar-se sempre <strong>Clemente</strong>, tendo por protetor <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> de<br />

Ancyra na Ásia, o qual derramou intrepi<strong>da</strong>mente o seu sangue em defesa <strong>da</strong><br />

santa fé, e cuja festa a Igreja comemora no dia 23 de novembro. Revestidos do


urel escuro de ermitão, viam as suas esperanças em parte realiza<strong>da</strong>s. Os<br />

corações a transbor<strong>da</strong>r de contentamento, não se demoram na ci<strong>da</strong>de de Tívoli,<br />

transpõem o Anjo <strong>da</strong>s águas turbulentas e dirigem seus passos para o convento<br />

e a igreja, construídos na encosta <strong>da</strong> montanha, circun<strong>da</strong>dos de todos os<br />

lados, por magníficas oliveiras que adornavam a montanha inteira. Que bela<br />

igreja a <strong>da</strong> Madona coroa<strong>da</strong> com o diadema de ouro, tendo o Menino Deus em<br />

seus braços! Era a Madona de Quintiliolo, conheci<strong>da</strong> e venera<strong>da</strong> em to<strong>da</strong> a<br />

redondeza. Os novos ermitães foram fraternalmente recebidos pelos quatro irmãos<br />

que lá se santificavam na solidão. O coração de <strong>Clemente</strong>, tão sensível<br />

aos encantos <strong>da</strong> natureza e tão susceptível de emoções, quase não podia conter-se<br />

de contentamento aos pés <strong>da</strong> Virgem, na paisagem incomparável do<br />

Tívoli, no silêncio <strong>da</strong> sua cela, na misteriosa tranqüili<strong>da</strong>de do olival. Foi <strong>Clemente</strong><br />

quem se incumbiu de adornar a igreja e o altar <strong>da</strong> Virgem Santíssima. Depois<br />

de dedicar diariamente algumas horas ao cultivo do terreno que lhe coube por<br />

sorte, corria à igreja, que desejava sempre assea<strong>da</strong> e limpa, percorria o olival<br />

ou o jardim, em procura de flores frescas, para com elas mimosear o altar de<br />

sua queri<strong>da</strong> Mãe. Acendia com cui<strong>da</strong>do a lâmpa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Virgem, e no meio <strong>da</strong>s<br />

flores e <strong>da</strong>s luzes ofertava à sua Rainha o fogo do seu amor e as flores frescas,<br />

para com elas mimosear o altar de sua queri<strong>da</strong> Mãe. Acendia com cui<strong>da</strong>do a<br />

lâmpa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Virgem, e no meio <strong>da</strong>s flores e <strong>da</strong>s luzes ofertava à sua Rainha o<br />

fogo do seu amor e as flores <strong>da</strong>s suas virtudes. Se de quando em quando<br />

alguém pela estra<strong>da</strong> solitária passava perto <strong>da</strong> igreja e do convento, <strong>Clemente</strong><br />

batia com a mão na janelinha de sua cela, e quando o vian<strong>da</strong>nte, sem saber<br />

donde vinha a sau<strong>da</strong>ção, perguntava quem é que o chamava, <strong>Clemente</strong> respondia:<br />

“É a Virgem de Quintiliolo”, e o vian<strong>da</strong>nte entrava na Igreja onde sau<strong>da</strong>va<br />

a Virgem implorando sua bênção para a viagem.<br />

Quando os romeiros iam ao ermitério para homenagear a Virgem, <strong>Clemente</strong><br />

recebia-os, acendia-lhes as velas rezando e cantando com os peregrinos.<br />

Assim escoavam-se os dias; <strong>Clemente</strong> rezava continuamente e tinha deveras<br />

para quem rezar. Se olhava para a direita, divisava ao longe através <strong>da</strong> espessa<br />

neblina a cúpula do grande Domo, a cobrir os restos mortais do pobre pescador<br />

<strong>da</strong> Galiléia, que com as armas <strong>da</strong> graça divina esmagara o paganismo romano,<br />

e ele de joelhos agradecia a Jesus o grande benefício <strong>da</strong> fé; se olhava para a<br />

esquer<strong>da</strong>, os seus olhos contemplavam o Anio que de rochedo em rochedo se<br />

precipitava espumante, formando cachoeiras e despenhando no abismo, e ele<br />

recor<strong>da</strong>va-se dos infelizes irmãos separados <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira Igreja, que do alto<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de se haviam precipitado no abismo <strong>da</strong> heresia. E ele temia também<br />

por sua própria alma, que não estava livre dos perigos, era também homem, e<br />

por isso com santo temor e indizível humil<strong>da</strong>de se recomen<strong>da</strong>va<br />

encareci<strong>da</strong>mente à Virgem, para que lhe conservasse a fé tão firme como os<br />

rochedos que contemplava batidos do cau<strong>da</strong>loso rio; e quando, à noite, a lua<br />

projetava sobre a ci<strong>da</strong>de os seus meigos raios, cobrindo-a de um manto de<br />

prata, ele lá no jardim se ajoelhava meditando na dor imensa que oprimira o<br />

coração do Redentor, quando na véspera <strong>da</strong> sua morte, no jardim <strong>da</strong>s Oliveiras,<br />

oferecia o seu sangue pela redenção do homem, implorando o perdão para o<br />

mundo culpado. Essas cenas eram tão gratas ao seu coração e impressionavam<br />

tanto o seu espírito que, mesmo em sua avança<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, ain<strong>da</strong> se recor-<br />

12<br />

<strong>da</strong>va com sau<strong>da</strong>des do doce tempo <strong>da</strong> solidão do Tívoli. “Se soubésseis quão<br />

belo é o Tívoli! — dizia ele a seus discípulos mais tarde — lá podia-se rezar com<br />

o coração aberto, a alma sentia-se desprendi<strong>da</strong> do mundo e abismava-se to<strong>da</strong><br />

em Deus”.<br />

Seis meses durou o noviciado de <strong>Clemente</strong> em Tívoli. Embora tudo ali lhe<br />

satisfizesse o coração e lhe fizesse gozar a mais doce paz <strong>da</strong> alma, uma coisa<br />

havia a realizar-se e cumprir-se a qual, dia a dia, fazia maiores exigências a seu<br />

coração: era o desejo do sacerdócio, <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> ativa, do apostolado, que converte<br />

as almas e as conduz ao Redentor. <strong>Clemente</strong> contava já 26 anos e o seu coração,<br />

ain<strong>da</strong> lhe fazia sentir, que ele seria um padre e que faria grandes coisas<br />

para Deus. Mas como? Deus o haveria de providenciar. Num belo dia, deixa<br />

<strong>Clemente</strong> na cela o hábito de ermitão e sem se despedir de ninguém, a não ser<br />

do bispo que ele acatava, desaparece e põe-se a caminho confiando na Providência<br />

e no bom coração dos que haveria de encontrar em seu trajeto.<br />

Em Viena voltou ao emprego antigo de padeiro, esperando que Deus lhe<br />

mostrasse o caminho do presbitério, e — oh! prodígio <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de divina! —<br />

desta vez o Senhor iria recompensar a confiança de seu fiel servo, tanto é certo<br />

que quem põe no Senhor a sua confiança, não será confundido eternamente.<br />

— Como no tempo anterior à sua i<strong>da</strong> a Tívoli, também agora, aos domingos,<br />

aju<strong>da</strong>va uma ou mais missas na Catedral de Santo Estevam em Viena com o<br />

recolhimento e a devoção de um anjo diante dos augustos mistérios dos nossos<br />

altares. Não havia na ci<strong>da</strong>de quem não se edificasse com tão exemplar procedimento<br />

de um jovem de vinte e poucos anos, i<strong>da</strong>de essa que costuma ser fatal<br />

para quase todos os moços, mormente nos grandes centros. Entre os maiores<br />

admiradores de <strong>Clemente</strong> contavam-se três senhoras solteiras de bastante i<strong>da</strong>de,<br />

pertencentes à nobreza e possuidoras de grande fortuna e de maior pie<strong>da</strong>de<br />

ain<strong>da</strong>; pertenciam à família von Maul. Aconteceu que um dia, quando as três<br />

senhoras solteiras de bastante i<strong>da</strong>de, pertencentes à nobreza e possuidoras de<br />

grande fortuna e de maior pie<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong>; pertenciam à família von Maul. Aconteceu<br />

que um dia, quando as três senhoras saiam <strong>da</strong> igreja, depois de fin<strong>da</strong>s as<br />

sagra<strong>da</strong>s funções, começou a chover a cântaros e com tal abundância que as<br />

ruas ficaram alaga<strong>da</strong>s, obrigando as nobres <strong>da</strong>mas a esperar na porta <strong>da</strong> igreja.<br />

<strong>Clemente</strong> pelo mesmo motivo não pôde sair e como era um tanto acanhado,<br />

recostou-se a um canto <strong>da</strong> parede e esperou que o aguaceiro passasse. A hora<br />

já ia um tanto adianta<strong>da</strong> e o céu não cessava de derramar torrencialmente as<br />

águas. Compreendendo o embaraço <strong>da</strong>s nobres senhoras, <strong>Clemente</strong> aproximou-se<br />

delas com todo o respeito e depois de saudá-las atenciosamente, perguntou-lhes<br />

se não desejavam um carro para voltar à casa; as <strong>da</strong>mas aceitaram<br />

a oferta e <strong>Clemente</strong> imediatamente se pôs a correr debaixo <strong>da</strong> chuva torrencial<br />

em procura de cocheiro. Gratas àquela amabili<strong>da</strong>de, convi<strong>da</strong>m o moço a tomar<br />

assento no carro, e entretém com ele familiar palestra, perguntando-lhe por<br />

seus desejos e intenções; uma delas chegou a in<strong>da</strong>gar, se <strong>Clemente</strong> por acaso<br />

nutria desejos de ser sacerdote, pois que aju<strong>da</strong>va a missa com tanta devoção.<br />

Radiante de satisfação o humilde padeiro abriu o coração, manifestou-lhes a<br />

sua pobreza e completa falta de recursos, e em segui<strong>da</strong> narrou-lhes to<strong>da</strong> a sua<br />

vi<strong>da</strong> desde o banco escolar de Tasswitz e a sua esta<strong>da</strong> em Tívoli até aquele<br />

momento, em que esperava tudo <strong>da</strong> Providência. As ricas <strong>da</strong>mas sentiram-se


comovi<strong>da</strong>s e ofereceram-se a cobrir as despesas. Ao ouvir tão lisonjeira oferta<br />

<strong>Clemente</strong> parecia sonhar; tinha já 32 anos de i<strong>da</strong>de e nunca ninguém ain<strong>da</strong> lhe<br />

havia falado assim. Ao voltar para a casado mestre sentiu-se tão fora de si que<br />

queria abraçar a todos, tão grande era a alegria e o contentamento <strong>da</strong> sua<br />

alma. <strong>Clemente</strong> iria pois estu<strong>da</strong>r, seria padre, veria realizado o sonho de sua<br />

infância. Debulhado em lágrimas de satisfação íntima despediu-se de seu mestre<br />

e foi à universi<strong>da</strong>de.<br />

13<br />

CAPÍTULO IV<br />

Na universi<strong>da</strong>de de Viena<br />

Os estudos na Áustria — Na universi<strong>da</strong>de — Contradiz o professor — Encontro<br />

com Thadeu Hübl — A fé acima de tudo — As obras de Santo Afonso —<br />

Novamente em Roma.<br />

Deus dispusera tudo do melhor modo em favor de <strong>Clemente</strong>; o encontro<br />

com as três senhoras von Maul dera-se no outono, justamente no início do ano<br />

letivo <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Viena. Embora houvessem já decorrido sete anos que<br />

<strong>Clemente</strong> não abria livros escolares, ain<strong>da</strong> conservava na memória o que aprendera<br />

com tanto afã e a custo de tanto suor, de sorte que lhe foi possível começar<br />

logo o estudo <strong>da</strong> filosofia com as matérias anexas, a saber: o grego, a história<br />

universal, as matemáticas e a física.<br />

Felizmente não tinha <strong>Clemente</strong> de preocupar-se com o sustento, porque<br />

as nobres <strong>da</strong>mas, suas benfeitoras se esmeravam em auxiliá-lo e faziam questão<br />

que na<strong>da</strong> lhe faltasse. Mas <strong>Clemente</strong> já não era criança, a memória estava<br />

já cansa<strong>da</strong> e a inteligência perdera muito <strong>da</strong> agudeza e perspicácia antiga; e<br />

estu<strong>da</strong>r filosofia é um trabalho penoso, e, naquele tempo, cheio de dificul<strong>da</strong>des;<br />

os professores de então entendiam <strong>da</strong> matéria, muitas vezes, tão pouco como<br />

os estu<strong>da</strong>ntes, o compendio escolar distinguia-se pela confusão <strong>da</strong>s noções e<br />

<strong>da</strong>s divisões e não apresentava aos alunos a ciência clara e ver<strong>da</strong>deira, mas<br />

um sistema confuso sem precisão e sem ordem. Faltando as explicações dos<br />

professores, ficava o estudo à mercê dos estu<strong>da</strong>ntes; <strong>Clemente</strong> era aplicado e<br />

queria seriamente progredir não só para se mostrar grato às suas generosas<br />

benfeitoras, mas principalmente por ser o estudo a condição necessária para o<br />

estado sacerdotal; estu<strong>da</strong>va, investigava, examinava e quando julgava descobrir<br />

algum sentido nas imensas lucubrações do compendio, abanava a cabeça<br />

com asco, achando que aquilo não era católico. De dia <strong>Clemente</strong> folheava os<br />

livros procurando a <strong>da</strong>r a sua vi<strong>da</strong>; a clarividência e a firmeza de convicção em<br />

sua crença tinham sido, desde a infância, a força carismática de seu ser, de<br />

sorte que mais tarde ele mesmo afirmou, não esperar de Deus nenhuma recompensa<br />

por causa <strong>da</strong> fé, visto que nunca sentira tentações contra ela.<br />

Desde cedo familiarizara-se <strong>Clemente</strong> com as obras ascéticas e dogmáticas<br />

de Sto. Afonso <strong>Maria</strong>, obras essas dita<strong>da</strong>s pela mais profun<strong>da</strong> fé e convicção,<br />

repletas de santa e celestial unção; o jovem estu<strong>da</strong>nte via nelas a mais completa<br />

e a melhor refutação dos erros que então se espalhavam na Europa; e de fato<br />

eram elas que reconfortavam a fé já vacilante ou prestes a se extinguir, e que<br />

em sua simplici<strong>da</strong>de e clareza retratavam em quadros magníficos a formosura<br />

divina <strong>da</strong> religião. Traduzi<strong>da</strong>s para o alemão tornaram-se o remédio salutar para


aqueles tempos abismados no indiferentismo e racionalismo, e o antídoto poderoso<br />

contra outros erros funestos. Essas obras, maximé o livrinho <strong>da</strong>s Visitas a<br />

Jesus Sacramentado, encheram o coração de <strong>Clemente</strong> de veneração e amor<br />

para com o bispo de Sta. Ague<strong>da</strong>, que na Itália acabava de renunciar a seu<br />

honroso cargo.<br />

Para uma alma assim prepara<strong>da</strong> era impossível freqüentar os seminários<br />

<strong>da</strong> Áustria; <strong>Clemente</strong> queria ser padre, mas um padre virtuoso, trabalhador,<br />

segundo o coração de Deus. Era pois forçoso dizer adeus à Áustria, que tanto<br />

amava, e despedir-se dela, talvez para sempre, pois não podia prever até onde<br />

chegaria a impie<strong>da</strong>de em sua pátria; ele estava pronto ao sacrifício e fê-lo de<br />

boa vontade. Procurou seu amigo Thadeu Hübl, informou-o dos seus novos<br />

planos convi<strong>da</strong>ndo-o a que o acompanhasse. Hübl jazia enfermo no hospital e,<br />

irresoluto como era, admirou-se <strong>da</strong> súbita e brusca resolução do amigo. Doente<br />

e sem recursos, como empreender semelhante viagem? Como em sua resolução<br />

<strong>Clemente</strong> era inabalável, não pôde nem quis admitir as escusas e os<br />

pretextos do amigo; quando ao dinheiro, ele mesmo se incumbiria de arranjá-lo,<br />

quanto à saúde, Deus providenciaria. E assim foi. Thadeu Hübl restabeleceu-se<br />

e acompanhou <strong>Clemente</strong> a Roma.<br />

CAPÍTULO V<br />

14<br />

O santo Redentorista<br />

Em Roma — O Senhor será um deles. Luta entre os dois peregrinos — É<br />

recebido na <strong>Congregação</strong> Redentorista. — O noviciado — O espírito <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

— A uva tentadora — Os noviços italianos — Alegria e profecia de<br />

Sto. Afonso — Profissão — Ordenação — Transpõe os Alpes.<br />

Os dois amigos chegaram a Roma, sem novi<strong>da</strong>de, no mês de setembro de<br />

1784. <strong>Clemente</strong>, nesse interim, havia tomado a resolução firme de ingressar<br />

em uma Ordem religiosa: mas por prudência diferiu a entra<strong>da</strong> para ter mais<br />

tempo de examinar primeiro o fim particular <strong>da</strong>s diversas Congregações, o fervor<br />

<strong>da</strong> observância regular e outras particulari<strong>da</strong>des que haveriam de influir na<br />

sua resolução definitiva. Em companhia de Thadeu percorreu a ci<strong>da</strong>de, visitou<br />

as igrejas célebres de Roma, observando sempre os religiosos, e in<strong>da</strong>gando de<br />

várias pessoas, o que sabiam <strong>da</strong>s diversas Ordens e Congregações que lá<br />

havia. Coisas edificantes ouviam eles sobre grande número de Congregações<br />

cujos membros aspiravam seriamente à perfeição, mas nenhuma delas conseguiu<br />

entusiasmar-lhes os corações. Foi o próprio Deus que se encarregou de<br />

indicar a <strong>Clemente</strong> o lugar, onde o queria.<br />

Numa tarde, depois <strong>da</strong>s visitas feitas aos grandes santuários conferiu com<br />

o amigo as impressões recebi<strong>da</strong>s durante o dia, e junto compuseram o programa<br />

<strong>da</strong>s visitas para o dia seguinte. <strong>Clemente</strong> teve subitamente uma idéia:<br />

“Thadeu, disse ele, a primeira igreja a que iremos amanhã, será aquela cujo<br />

sino ouvirmos primeiro”. Thadeu concordou.<br />

Na manhã seguinte era ain<strong>da</strong> escuro, quando ouviram o som melancólico<br />

de um pequeno sino, que os convi<strong>da</strong>va à igreja; levantaram-se depressa e foram.<br />

Era a pequena Igreja de <strong>São</strong> Julião, perto <strong>da</strong> Vila Caserta; entraram, pé<br />

por pé, e ouviram rezar; eram sacerdotes desconhecidos para eles, batinas<br />

pretas com colarinhos brancos e salientes; rezavam imóveis como se fossem<br />

estátuas de mármore; de joelhos, mãos postas, olhos baixos pareciam imersos<br />

em profun<strong>da</strong> contemplação; os padres estavam fazendo a meditação <strong>da</strong> manhã.<br />

Os dois amigos caíram também de joelhos pedindo a Deus, se dignasse<br />

manifestar-lhes sua santíssima vontade. Termina<strong>da</strong> a meditação, <strong>Clemente</strong> também<br />

se levantou com o coração a bater-lhe fortemente no peito. Ao sair <strong>da</strong><br />

igreja deu com um rapazinho, coroinha <strong>da</strong> Igreja de S. Julião, e perguntou-lhe:<br />

“Menino, que padres são esses que acabam de rezar agora nessa igreja?” —<br />

“<strong>São</strong> padres Redentoristas, disse o pequeno, e o senhor também será um deles”.<br />

Essas palavras do menino abalaram o coração do Servo de Deus e bani-


am-lhe a tranqüili<strong>da</strong>de; a todo instante parecia-lhe ouvir: “o senhor será também<br />

um deles”. Não encontrando mais sossego, volta, essa mesma tarde ain<strong>da</strong>,<br />

à Igreja de <strong>São</strong> Julião, chama o Reitor ao locutório e informa-se <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

dos Redentoristas. Quando ouviu que foram fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Santo Afonso,<br />

cujas obras tanto apreciava, e que tem por fim evangelizar os povos por meio de<br />

missões e retiros, dedicando-se de um modo todo particular ao povo abandonado<br />

nos sítios, sentiu que para ela Deus o chamava; não hesitou, relatou ao<br />

Reitor os estudos que já tinha feito, a i<strong>da</strong>de que então contava, pediu admissão<br />

e o Reitor recebeu-o na <strong>Congregação</strong>: ei-lo o Redentorista.<br />

A alegria de <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong> foi indescritível: achara enfim a sua vocação,<br />

e isso de um modo tão extraordinário, sabia onde é que Deus o queria, e não<br />

encontrava na língua humana expressões com que pudesse agradecer dignamente<br />

ao Senhor de tê-lo chamado à <strong>Congregação</strong> do grande Apóstolo e eminente<br />

Teólogo Santo Afonso <strong>Maria</strong>, cujas “visitas” afoguea<strong>da</strong>s de amor divino<br />

tantas vezes recitara na Igreja de Santo Estevam. Além de tudo isso seria missionário<br />

para salvar as almas mais abandona<strong>da</strong>s e levá-las ao céu; seria o<br />

imitador de Jesus na sua vi<strong>da</strong> oculta e no seu apostolado. Contente como quem<br />

encontra um tesouro, corre ao encontro de Thadeu para fazê-lo participante <strong>da</strong><br />

sua indizível felici<strong>da</strong>de e anuncia-lhe que fora admitido na <strong>Congregação</strong> dos<br />

Redentoristas.<br />

Thadeu porém, que absolutamente não esperava tal resolução, indignouse,<br />

lançou-lhe em rosto sua precipitação e imprudência, exprobrou-lhe sua falta<br />

de cari<strong>da</strong>de, perguntando se era para abandoná-lo e deixá-lo só que o trouxera<br />

<strong>da</strong> Áustria para a Itália, cuja língua não conhecia; Thadeu ficaria só num país<br />

desconhecido, sem recursos para continuar os seus estudos. Isso era, na opinião<br />

de Thadeu, uma traição vergonhosa. Por mais que se esforçasse, <strong>Clemente</strong><br />

não conseguiu abran<strong>da</strong>r o coração do amigo, cujas palavras pesa<strong>da</strong>s lhe<br />

traspassaram a alma como uma espa<strong>da</strong> de dois gumes; e entretanto a intenção<br />

de <strong>Clemente</strong> era a melhor do mundo, queria fazer feliz o amigo levando-o consigo<br />

ao convento; este porém obstinava-se em não querer acompanhá-lo.<br />

Mas não há como um dia depois do outro; caiu a noite e Thadeu Hübl foi<br />

repousar <strong>da</strong>s fadigas do dia, e mais ain<strong>da</strong> do dissabor que o prostrara. <strong>Clemente</strong><br />

porém compreendendo que, em semelhantes apuros, só Deus pode aju<strong>da</strong>r,<br />

ajoelhou-se em terra junto do leito do amigo, e rezou a noite inteira pedindo ao<br />

céu se dignasse iluminar o companheiro, aliás tão virtuoso e dócil. Ao amanhecer<br />

estava ele ain<strong>da</strong> ajoelhado em oração a lutar com Deus como outrora o<br />

patriarca Jacó com o anjo na solidão <strong>da</strong> Palestina. Quando Thadeu acordou,<br />

volveu os olhos para o leito do amigo, como que a despertá-lo; mas com grande<br />

surpresa verificou-o intacto, tal qual o deixara na noite anterior; mais surpreendido<br />

ain<strong>da</strong> ficou ao contemplar <strong>Clemente</strong> ajoelhado em terra, os olhos a na<strong>da</strong>r<br />

em lágrimas; compreendeu imediatamente o motivo <strong>da</strong>queles preces e sentiuse<br />

comovido, mas não disse palavra. Levantou-se e com o companheiro dirigiuse<br />

a <strong>Maria</strong> Maggiore atravessando em silêncio as ruas desertas e taciturnas.<br />

Os corações de ambos sentiam-se torturados e vazios como as ruas ermas que<br />

atravessavam. À graça por fim venceu e Thadeu interrompendo o silêncio disse:<br />

“<strong>Clemente</strong>, eu entrarei contigo na <strong>Congregação</strong> dos Redentoristas”. Um abraço<br />

forte foi a resposta de <strong>Clemente</strong>, que não pôde conter as lágrimas; amplexou-o<br />

15<br />

como se já a muitos anos o não tivesse visto; entraram ambos na igreja e <strong>da</strong>li a<br />

pouco, os dois austríacos eram recebidos definitivamente na <strong>Congregação</strong> do<br />

Santíssimo Redentor.<br />

De acordo com a Regra <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, passaram eles uns dias, como<br />

candi<strong>da</strong>tos, em suas vestes seculares na casa do noviciado, preparando-se<br />

para o retiro de quinze dias que precede à toma<strong>da</strong> de hábito. Aos 24 de outubro<br />

de 1784 foram revestidos do hábito de Santo Afonso <strong>Maria</strong> e começaram o<br />

noviciado sob a sábia e firme direção do Pe. Landi, Reitor <strong>da</strong> casa, o qual há<br />

anos havia bebido o espírito <strong>da</strong> Regra, tendo por mestre o próprio santo Fun<strong>da</strong>dor.<br />

Foi Esse o momento <strong>da</strong> maior importância e relevância para a <strong>Congregação</strong><br />

transalpina. Nos planos divinos denotava esse momento um movimento<br />

espantoso de salvação, de trabalho, de suores em benefício <strong>da</strong>s almas; a entra<strong>da</strong><br />

dos dois estrangeiros na <strong>Congregação</strong> era o princípio <strong>da</strong> propagação do<br />

instituto Redentorista além dos Alpes, os limites <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> já não seriam<br />

coarctados pelas divisas <strong>da</strong> Itália, mas iriam de oceano a oceano, estendendose<br />

pelo mundo inteiro.<br />

<strong>Clemente</strong> olhando para o seu novo hábito sentia-se outro homem; a batina<br />

preta, o cíngulo tosco com o rosário à cintura, a cruz oculta ao peito enlevavam<br />

o seu espírito pela alta significação que tinham. Como noviço fervoroso procurava<br />

familiarizar-se com as Regras, ou antes, refundir em si o espírito <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>.<br />

A consecução desse nobre ideal não lhe causava a menor dificul<strong>da</strong>de;<br />

ouvira do mestre dos noviços que o espírito <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> Redentorista<br />

consiste, sobretudo, no espírito de oração, de humil<strong>da</strong>de e de abnegação própria;<br />

ora tudo isto era-lhe familiar desde os primeiros anos de sua vi<strong>da</strong>: a oração<br />

fora sempre o divertimento favorito <strong>da</strong> sua alma, desde os seus mais verdes<br />

anos, a humil<strong>da</strong>de aprendera ele, de sobre, na casa paterna e na oficina do<br />

padeiro; a abnegação <strong>da</strong> vontade própria fora sempre o seu pão cotidiano; não<br />

lhe era pois necessário transformar muita coisa na sua nova vi<strong>da</strong>, mas só continuar<br />

e aperfeiçoar o que praticara no século. E com a graça divina <strong>Clemente</strong><br />

não foi na<strong>da</strong> remisso no cumprimento desse dever. A oração tornou-se a alma<br />

<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> religiosa; orava não só quando prostrado ante o altar de Jesus<br />

Sacramentado ou a imagem <strong>da</strong> Virgem, mas sempre que an<strong>da</strong>va pelos corredores<br />

do convento e pelas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Reconhecia de boa mente na Regra<br />

do Instituto a expressão <strong>da</strong> vontade divina. Rijo por natureza e temperamento,<br />

fugia <strong>da</strong> moleza, amando a mortificação e procurando conseguir o domínio completo<br />

sobre as suas paixões.<br />

No noviciado de <strong>São</strong> Julião quis Deus que lhe não faltassem ocasiões para<br />

mortificações de todo o gênero. Filho do norte levara ao sul um apetite não<br />

insignificante, aumentado ain<strong>da</strong> pela força de uma constituição robusta, e a<br />

cozinha italiana do convento de S. Julião era tão parca e tão mesquinha. “A<br />

coisa mais difícil para mim na Itália, disse ele mais tarde, foi o não poder eu<br />

nunca matar completamente a fome”. O seu maior pecado no noviciado foi ter<br />

man<strong>da</strong>do vir uma fez algumas uvas sem a necessária licença dos Superiores.<br />

Isso porém deu-se uma única vez, pois que mesmo nesse ponto <strong>Clemente</strong><br />

sempre se mostrou forte; junto à janela <strong>da</strong> sua cela, do lado de fora, havia uma<br />

parreira, que estendia seus ramos até a altura do quarto e dum dos ramos<br />

pendia um cacho grande, maduro e apetitoso, que lhe sorria tentadoramente:


<strong>Clemente</strong> gostava <strong>da</strong>s uvas doces <strong>da</strong> Itália; mas não sucumbiu à tentação, foi<br />

mais forte do que Eva no paraíso, venceu-se e lá deixou ficar o cacho para ter<br />

ca<strong>da</strong> dia mais ocasião de se mortificar.<br />

Nos companheiros de noviciado não podia o Servo de Deus suportar moleza<br />

nem falta de mortificação. — Com franqueza austríaca — e <strong>Clemente</strong> era de<br />

franqueza rude — não raramente dizia aos italianos: “Os estrangeiros que vêm<br />

à Itália esperar e querem que os italianos sejam santos; prestam atenção a tudo<br />

para depois contarem lá fora quanto viram e observaram na Itália”. Os noviços<br />

italianos tinham o costume de, no tempo do calor, levar consigo, nos passeios,<br />

alguma roupa limpa, para quando estivessem suados. <strong>Clemente</strong> estranhou semelhante<br />

hábito e uma vez não podendo conter-se foi ter com o mestre de<br />

noviços e disse-lhe: “Sr. padre, eu que aqui estou, vim <strong>da</strong> Áustria com uma<br />

camisa, um paletó, um par de calçar, um chapéu e uma bengala caminhando<br />

400 horas de Viena até Roma, e nem por isso vi abala<strong>da</strong> a minha saúde; e aqui<br />

em Roma para um passeio de duas horas vejo tantos preparativos, porque tudo<br />

isso? O mau costume foi, desde então, abolido no noviciado de <strong>São</strong> Julião.<br />

<strong>Clemente</strong> costumava dizer que os meses do seu noviciado oram os mais<br />

belos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. O conselho que Santo Afonso <strong>da</strong>va aos seus, de serem<br />

cartuxos em casa e apóstolos fora, condizia inteiramente com a sua inclinação.<br />

O impulso para a solidão e o desejo ardente do apostolado haviam até então<br />

lutado em sua alma, e agora via esses dois sentimentos harmoniosamente unidos<br />

em sua <strong>Congregação</strong>. Tornou-se Redentorista de corpo e alma, entregando<br />

e consagrando à <strong>Congregação</strong> o amor robusto do seu coração, tomando por<br />

lema <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> trabalhar por ela, e por ela <strong>da</strong>r até a última gota do seu sangue.<br />

Eis porque mal entrando na <strong>Congregação</strong> do Santíssimo Redentor já sonhava<br />

com a propagação desta no Norte <strong>da</strong> Europa; queria levá-la à sua Pátria,<br />

fazê-la conheci<strong>da</strong> e ama<strong>da</strong> de todos: disso nunca fez segredo durante o noviciado.<br />

As circunstâncias, porém, não pareciam favoráveis aos dois noviços austríacos.<br />

Os próprios companheiros de noviciado sacudiam a cabeça achando até<br />

atrevimento, o quererem dois pobres padeiros, que não conheciam ain<strong>da</strong> a fundo<br />

a teologia, implantar a <strong>Congregação</strong> na Áustria numa época em que tudo se<br />

conjurava contra os conventos. Essa notícia transpôs os limites dos Estados<br />

Pontifícios e chegou aos ouvidos do Santo Fun<strong>da</strong>dor, que residia em Nápoles.<br />

O velhinho também sorriu-se ao ouvir falar do desejo de dois austríacos, mas o<br />

seu sorriso foi a expressão <strong>da</strong> alegria e do contentamento. Essa foi uma <strong>da</strong>s<br />

maiores consolações, que Deus lhe man<strong>da</strong>ra em sua velhice e no meio <strong>da</strong>s<br />

mais rudes provações por que ele tinha de passar nos últimos anos <strong>da</strong> sua<br />

laboriosa vi<strong>da</strong>. Deus iluminou-lhe o espírito, como outrora ao velho Simeão no<br />

templo, e extremamente consolado quis, ele também, pronunciar o seu “Nunc<br />

dimittis”. Em tom profético disse Santo Afonso aos seus filhos espirituais: “Não<br />

duvideis, a <strong>Congregação</strong> há de persistir até o dia do juízo, porque não é obra<br />

minha, mas de Deus; enquanto eu viver ela continuará na obscuri<strong>da</strong>de e nas<br />

humilhações; depois <strong>da</strong> minha morte, porém, ela estenderá suas asas, mormente<br />

nos países do Norte”. Para Santo Afonso eram <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong> e o seu<br />

companheiro os dois homens <strong>da</strong> Providência, enviados pelo céu para consoli<strong>da</strong>rem<br />

a <strong>Congregação</strong> e levarem-na para além dos Alpes. “Esses padres, acrescentou<br />

Afonso, farão muito pela glória de Deus, mas necessitam de uma luz<br />

16<br />

especial do céu”. E o grande bispo resignatário de Santa Ague<strong>da</strong> dos Godos,<br />

que amava a <strong>Congregação</strong>, por ele fun<strong>da</strong><strong>da</strong>, como a pupila dos seus olhos,<br />

viveu ain<strong>da</strong> três anos depois <strong>da</strong> toma<strong>da</strong> de hábito dos dois austríacos a rezar e<br />

sacrificar-se pelos dois noviços; e se <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong> se tornou um grande Santo<br />

e a pedra fun<strong>da</strong>mental <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> transalpina, deve-o em grande parte<br />

às orações que por ele fez o velhinho Fun<strong>da</strong>dor do seu leito de dores em Pagani.<br />

Tão grande e extraordinário foi o zelo e fervor dos dois noviços que o Superior<br />

Geral achou que podia abreviar o tempo <strong>da</strong> provação. No dia de S. José, a<br />

19 de março de 1785, cinco meses depois <strong>da</strong> toma<strong>da</strong> de hábito, os dois austríacos<br />

fizeram a profissão religiosa, sendo logo em segui<strong>da</strong> enviados para<br />

Frosinone, que era a casa de estudos, não longe <strong>da</strong>s divisas do reino de Nápoles.<br />

A sua esta<strong>da</strong> nessa nova residência não devia, contudo, prolongar-se por<br />

muito tempo; em atenção à i<strong>da</strong>de de <strong>Clemente</strong> e em vista dos estudos feitos na<br />

Universi<strong>da</strong>de de Viena e <strong>da</strong> premente necessi<strong>da</strong>de de <strong>da</strong>r início, quanto antes,<br />

à fun<strong>da</strong>ção além dos Alpes, julgaram os Superiores poder realizar o mais ardente<br />

desejo do coração de <strong>Clemente</strong>. Dez dias depois <strong>da</strong> profissão religiosa<br />

receberam os dois austríacos a ordenação sacerdotal na ci<strong>da</strong>de de Alatri, duas<br />

horas distante de Frosinone. Debaixo de uma chuva torrencial voltaram os<br />

neopresbíteros para casa, jubilosos pela graça extraordinária que Deus lhes<br />

concedera. Segundo o costume na Áustria, esperavam uma recepção festiva e<br />

solene, um banquete opíparo, um dia de recreio, adornos em todos os quartos<br />

e corredores, em sinal de alegria <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Mas, ó decepção! O Superior<br />

de Frosinone, que bem conhecia a virtude de ambos, quis pô-la em prova já no<br />

primeiro dia. Logo que chegaram em casa, em vez desses sinais externos de<br />

regozijo, um deles teve de ler no refeitório enquanto os outros tomavam a refeição,<br />

e o outro foi auxiliar do irmão copeiro. Na<strong>da</strong> pois de banquete, de recreio,<br />

de distinções. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> mais tarde, lembrando-se desse episódio de sua<br />

vi<strong>da</strong>, gracejava narrando com vivas cores como ao voltar de Alatri com apetite<br />

devorador e desejo de sentar-se à mesa junto com os confrades — o Reitor,<br />

para o mortificar, mandou-lhe que servisse à comuni<strong>da</strong>de e almoçasse depois.<br />

Mas isso tudo pouco importava; <strong>Clemente</strong> era padre, o pobre filho do cortador<br />

de Tasswitz podia subir ao altar, chamar do céu o próprio Deus às suas mãos.<br />

Como soe acontecer em tais circunstâncias, a vi<strong>da</strong> parecia um sonho a <strong>Clemente</strong>,<br />

que não cansava de repetir: “Sou padre, ministro de Deus, para conduzir<br />

as almas ao céu”. A mãe de <strong>Clemente</strong> sobreviveu a esse acontecimento, soube<br />

que seu Joãozinho era sacerdote do Altíssimo, mas não lhe foi <strong>da</strong>do abraçá-lo<br />

depois dessa grande ventura, porque em junho desse mesmo ano veio a falecer<br />

em Tasswitz. <strong>Clemente</strong> contava 34 anos de i<strong>da</strong>de quando, pela primeira vez,<br />

subiu aos degraus do altar para o santo sacrifício; era justamente a metade <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong>, que Nosso Senhor lhe iria conceder. Ain<strong>da</strong> um ano passaram eles em<br />

Frosinone, ocupados com o estudo <strong>da</strong> teologia, e de um modo especial, <strong>da</strong><br />

moral composta pelo Santo Fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>.<br />

Os Superiores tomaram seriamente a peito a fun<strong>da</strong>ção redentorista na<br />

Áustria, chamaram a Roma os dois austríacos, que receberam ordens de partir<br />

logo depois do encerramento do Capítulo de Scifelli. Devido às enormes dificul<strong>da</strong>des<br />

que iriam ter na Áustria, e às circunstâncias especiais desse país, que se<br />

achava nas mãos dos “iluminados” e josefinos, receberam eles plenos poderes


com carta branca para tudo; a própria Regra sofreu pequenas modificações<br />

acidentais, devendo provisoriamente amol<strong>da</strong>r-se às lamentáveis circunstâncias<br />

do Norte, onde não se podia mencionar a palavra “missão” que se detestava<br />

como sinal de atraso; era, pois, necessário fun<strong>da</strong>r — contra a Regra — escolas<br />

e colégios, aceitar paróquias, dirigir institutos etc. <strong>Clemente</strong> foi nomeado Superior,<br />

e dele esperavam todos o maior êxito possível para a glória de Deus e a<br />

salvação <strong>da</strong>s almas.<br />

17<br />

PARTE SEGUNDA<br />

Na capital <strong>da</strong> Polônia (1787-1808)<br />

CAPÍTULO I<br />

Os primeiros anos em Varsóvia<br />

Em Viena — Estado lamentável <strong>da</strong> religião na Áustria — Destina-se à<br />

Curlândia — Fica em Varsóvia — S. Beno — As primeiras dificul<strong>da</strong>des — Senhor,<br />

agora é tempo — Restaura a igreja — Visita de Sto. Afonso — Um colégio<br />

em Roma — Os grandes planos — Recrutamento — O demônio em ação.<br />

Em vestes de sacerdotes seculares <strong>Clemente</strong> e Thadeu Hübl tomaram o<br />

caminho mais breve em direção a Viena; ao avistarem as primeiras casas <strong>da</strong><br />

grande Capital sentiram os corações palpitar de contentamento, e prostrados<br />

agradeceram à Providência, que lhes fizera ver novamente a ci<strong>da</strong>de onde tantos<br />

anos haviam labutado pela existência com sau<strong>da</strong>des do sacerdócio; visitaram<br />

as pessoas <strong>da</strong> sua amizade, maxime as insignes benfeitoras von Maul, o<br />

antigo mestre e amigo <strong>da</strong> “A pera de ferro”, e em geral a todos a quem deviam<br />

algum favor especial.<br />

Depois de cumprindo esse primeiro dever de gratidão, o Pe. <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong><br />

começou a ocupar-se seriamente <strong>da</strong> missão que lhe fora confia<strong>da</strong>, de introduzir<br />

na grande ci<strong>da</strong>de do Danúbio a sua queri<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> do Santíssimo Redentor.<br />

Dificul<strong>da</strong>des de todo o gênero impediam-lhe os passos e bal<strong>da</strong>vam-lhe<br />

os esforços. O racionalismo e o jansenismo haviam já escravizado a Áustria<br />

levando tudo a ferro e fogo e procurando abafar e extinguir todo e qualquer<br />

sentimento católico. O imperador José II, instigado pelos ministros e pela política<br />

contrária, baixava decretos e mais decretos que suprimiam os conventos,<br />

perseguiam os religiosos e impediam o exercício livre do culto divino. No espaço<br />

de apenas cinco anos suprimira na<strong>da</strong> menos de sessenta e quatro conventos<br />

na Boêmia e trinta na Áustria, bem como to<strong>da</strong>s as Ordens mendicantes, não<br />

excetuando as irmãs de cari<strong>da</strong>de. Os governantes precisavam de quartéis para<br />

os sol<strong>da</strong>dos — e para isso os conventos prestavam-se admiravelmente; os religiosos<br />

foram expulsos, as bibliotecas saquea<strong>da</strong>s, as obras de arte despe<strong>da</strong>ça<strong>da</strong>s<br />

e os próprios esquifes preciosos, que guar<strong>da</strong>vam os restos mortais dos antigos<br />

fi<strong>da</strong>lgos, foram postos em hasta pública. A par de to<strong>da</strong>s essas injustiças, forjavam-se<br />

ain<strong>da</strong> contra os religiosos as maiores calúnias, como se quisessem<br />

assim justificar seu nefando procedimento.<br />

S. <strong>Clemente</strong> considerando tudo isso sentiu a espa<strong>da</strong> traspassar-lhe a alma;<br />

não era possível, em tais circunstâncias, nem sequer pensar em fun<strong>da</strong>ções de<br />

conventos em Viena, e muito menos de uma residência de Redentoristas que<br />

ninguém ain<strong>da</strong> conhecia, uma <strong>Congregação</strong> estrangeira, emissária talvez do<br />

papismo que os governantes detestavam. Além disso S. <strong>Clemente</strong> havia pecado<br />

gravemente contra o decreto de José II, recebendo o sacerdócio fora <strong>da</strong>


Áustria, sem passar pelo seminário organizado pelo governo. De tudo isto S.<br />

<strong>Clemente</strong> informou o Superior Geral em Roma, mas convencido de sua missão<br />

e movido do desejo de não privar sua Pátria dos benefícios <strong>da</strong> religião, pôs-se à<br />

disposição <strong>da</strong> Propagação <strong>da</strong> fé com a licença do Superior Geral.<br />

O Núncio de Varsóvia acabava de pedir sacerdotes alemães para a província<br />

<strong>da</strong> Curlândia na Rússia por conselho <strong>da</strong> imperatriz Catarina II, que embora<br />

má em sua vi<strong>da</strong> particular, compreendia que só pela proteção outorga<strong>da</strong> à religião<br />

poderia ganhar para si os católicos <strong>da</strong> nova província, que lhe ficou cabendo<br />

na divisão <strong>da</strong> Polônia. O Superior Geral autorizou os dois Redentoristas a<br />

trabalhar na Curlândia, fun<strong>da</strong>r casas e aceitar noviços. Sem mais detença aprontam<br />

a mala e põem-se a caminho, dispostos a transpor a pé as 200 léguas que<br />

vão de Viena a Varsóvia. Já se achavam fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, quando deram com um<br />

pobre ermitão, vestido pobremente com o capuz cinzento às costas e um bordão<br />

na mão: era o velho eremita de Tívoli, Manoel Kunzmann, amigo de S.<br />

<strong>Clemente</strong>, o qual se achava em viagem de visita às relíquias dos Santos Reis<br />

Magos em Colônia. S. <strong>Clemente</strong> o convidou a entrar na <strong>Congregação</strong> e a<br />

acompanhá-lo à Curlândia. Manoel aceitou gostosamente o convite e tornou-se<br />

assim o primeiro noviço, admitido por S. <strong>Clemente</strong> na <strong>Congregação</strong>.<br />

S. <strong>Clemente</strong>, ao partir de Viena, passando por perto de Znaim fez uma<br />

pequena volta a fim de visitar os seus parentes e amigos; de Znaim foi a Tasswitz,<br />

sua ci<strong>da</strong>de natal, onde sentiu renascerem em sua alma as mais gratas recor<strong>da</strong>ções<br />

<strong>da</strong> infância: conhecia ain<strong>da</strong> tudo, a igrejinha era a mesma de outrora sem<br />

nenhuma modificação, os prédios não apresentavam nenhuma alteração considerável;<br />

ao chegar à casa, onde nascera, bateu à porta e radiante de satisfação<br />

abraçou sua boa irmã, que já não via há muitos anos; dirigiu-se em segui<strong>da</strong> ao<br />

cemitério, e diante do túmulo de sua mãe ajoelhou-se e, as lágrimas a correrlhe<br />

pelas faces, rezou por intenção de sua santa mãe, agradecendo-lhe os benefícios,<br />

sobretudo a boa educação cristã que dela recebera.<br />

Entretanto o tempo urgia e <strong>Clemente</strong> não podia demorar-se muito; a obediência<br />

chamava-o à Curlândia, onde tantas almas sedentas <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e ávi<strong>da</strong>s<br />

do pão <strong>da</strong> palavra divina reclamavam seu suor e suas fadigas. Como o Núncio<br />

Apostólico, D. Fernando Salluzo, nobre napolitano e íntimo amigo de Sto. Afonso,<br />

se achava em Varsóvia nessa ocasião, resolveram os missionários passar<br />

por lá afim de receberem a necessária jurisdição para a Curlândia e as ordens<br />

do Superior Geral. Mons. Salluzo, porém, não os quis deixar ir adiante, reteveos<br />

em Varsóvia confiando-lhes a cura espiritual dos alemães, antigamente entregue<br />

aos cui<strong>da</strong>dos dos padres jesuítas, e há treze anos já sem pastor. Depois<br />

dos necessários entendimentos com a <strong>Congregação</strong> <strong>da</strong> Propagan<strong>da</strong> Fide e o<br />

Superior Geral dos Redentoristas, e com a permissão de Poniatowski, rei <strong>da</strong><br />

Polônia, receberam eles a Igreja de S. Beno, construí<strong>da</strong> sobre uma colina no<br />

ponto extremo <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Varsóvia. Essa igreja, embora não muito vasta,<br />

comportava cerca de mil pessoas e possuía três altares. Na capela-mor, abaixo<br />

<strong>da</strong> estátua de S. Beno achava-se o quadro milagroso de Nossa Senhora<br />

Auxiliadora, venera<strong>da</strong> com amor pela população de Varsóvia; dos outros altares<br />

um era dedicado a S. José e o outro a Jesus preso à coluna na flagelação;<br />

invocações essas que condiziam admiravelmente com as devoções de S. Cle-<br />

18<br />

mente. A casa que lhe serviria de convento era mais do que modesta; além de<br />

muito pequena, era úmi<strong>da</strong> e desprovi<strong>da</strong> de tudo; uma mesinha e algumas cadeiras<br />

velhas constituíam a única mobília <strong>da</strong> nova residência e do primeiro convento<br />

dos Redentoristas além dos Alpes; não havia livros, nem relógio, nem<br />

estampas, nem camas, nem utensílios de cozinha e — o que era ain<strong>da</strong> pior —<br />

nem dinheiro para comprá-los. A igreja participava inteiramente <strong>da</strong> sorte do<br />

convento: Não possuía um vintém, nem título algum de ren<strong>da</strong>s, de sorte que se<br />

tornava difícil obter o azeite para a lâmpa<strong>da</strong>, a cera para o altar e o vinho para<br />

a missa.<br />

Os dois padres encetaram logo sua ativi<strong>da</strong>de apostólica na igreja, celebrando,<br />

ouvindo confissões e pregando em alemão. Fr. Manoel servia de cozinheiro<br />

e porteiro; de alfaiate não se precisava, porque ca<strong>da</strong> um remen<strong>da</strong>va o<br />

que lhe pertencia. A cozinha, porém, era lastimável em to<strong>da</strong> a extensão <strong>da</strong><br />

palavra, pois que Fr. Manoel, que nunca exercera o ofício de cozinheiro em sua<br />

vi<strong>da</strong>, por força <strong>da</strong>s circunstâncias, tornara-se o cozinheiro-mor <strong>da</strong> nova comuni<strong>da</strong>de;<br />

de uns pe<strong>da</strong>ços de madeira improvisou os talheres para a cozinha; pratos<br />

e caçarolas recebeu-as de presente de umas pessoas caridosas, que se apie<strong>da</strong>ram<br />

dos pobres religiosos. O mais difícil era digerir o preparado na cozinha<br />

do Irmão Manoel; não poucas vezes foi necessário ao Pe. Superior, ao sair do<br />

confessionário ou ao descer do púlpito, ir à cozinha, cingir o avental e preparar<br />

a refeição. O fazer as camas não fatigava ninguém; Irmão Manoel estendia-se<br />

sobre o banco e os dois padres procuravam o repouso sobre a dura mesa. O Pe.<br />

<strong>Clemente</strong>, embora amante apaixonado <strong>da</strong> pobreza, sentia, ver seu caro confrade<br />

sofrer tantas privações; não tinha a quem recorrer senão ao melhor de todos os<br />

benfeitores; nos momentos mais penosos, quando faltava o necessário em casa,<br />

ia à Igreja, ajoelhava-se diante do sacrário e, sentindo-se com coragem, subia<br />

os degraus do altar, batia à porta do sacrário e, cheio de confiança, parecia<br />

acor<strong>da</strong>r a Jesus como outrora os Apóstolos, e dizia-lhe: “Senhor, agora é tempo”.<br />

E — ó prodígio! — muitas vezes, depois dessas cenas tocantes, batiam à<br />

porta do convento; eram benfeitores que traziam alguma coisa para os padres<br />

de S. Beno.<br />

Um dos primeiros trabalhos de S. <strong>Clemente</strong> em Varsóvia, como ele mesmo<br />

narra em uma carta, consistiu em fun<strong>da</strong>r e dirigir escolas alemãs, que eram lá<br />

desconheci<strong>da</strong>s até então. O trabalho tornou-se em breve exaustivo pela enorme<br />

afluência de alunos alemães, polacos e russos; até meninos protestantes<br />

pediram admissão na escola de S. Beno. Os livros escolares compravam-se<br />

todos em Viena; o local comportava cerca de 200 crianças, não contando os<br />

órfãos, que eram numerosos.<br />

O serviço <strong>da</strong> igreja, no princípio, não tomava muito tempo aos sacerdotes.<br />

Depois de feita a necessária limpeza <strong>da</strong>s paredes e dos altares, os missionários<br />

puseram-se a trabalhar no confessionário e no púlpito, mas a assistência era<br />

diminuta; no primeiro ano distribuíram apenas 2.000 comunhões. Os alemães<br />

eram frios e indiferentes para as coisas <strong>da</strong> religião, enquanto que os polacos<br />

fugiam ou evitavam propositalmente os Benonitas, aos quais desprezavam como<br />

a estrangeiros e mais ain<strong>da</strong> como alemães, que o povo considerava luteranos.<br />

O fato de que em S. Beno se pregava em alemão e se <strong>da</strong>vam aulas nessa<br />

língua, foi interpretado como um ensaio de germanização dos polacos. A tudo


isso ajuntava-se ain<strong>da</strong> a desespera<strong>da</strong> situação financeira, a pobreza mais que<br />

franciscana. A pobre comuni<strong>da</strong>de só tinha o conforto do céu, que felizmente<br />

não faltava. Deus conhecia a virtude <strong>da</strong>queles heróis, a sinceri<strong>da</strong>de e a boa<br />

vontade de seus corações, e como os queria para instrumento na realização de<br />

seus divinos planos na restauração moral <strong>da</strong> Europa, aprouve-lhe aperfeiçoálos<br />

na prática <strong>da</strong> mais completa abnegação. Sem abrirem os lábios para a menor<br />

queixa, suportaram tudo resignados — e Deus mostrou-se contente e satisfeito<br />

com eles de um modo visível.<br />

Como que para aprovar a nova fun<strong>da</strong>ção, <strong>Clemente</strong> teve um dia um aviso<br />

do céu. Era o dia 1 de agosto de 1787, e não fazia ain<strong>da</strong> um ano que os padres<br />

tinham aberto a residência de S. Beno. Depois do meio-dia, estando os dois<br />

missionários a recrear-se no Senhor e a conversar sobre as dificul<strong>da</strong>des, que<br />

se multiplicavam de dia para dia em Varsóvia, ouviram subitamente um ruído<br />

inexplicável, que os fez estremecer nos bancos. <strong>Clemente</strong> dirigindo-se a Thadeu<br />

Hübl disse-lhe: “Com certeza este é o sinal de que o nosso Fun<strong>da</strong>dor acaba de<br />

falecer”. E com efeito, tomaram nota do dia e <strong>da</strong> hora e, meses depois, souberam<br />

ter passado à melhor vi<strong>da</strong> justamente naquela <strong>da</strong>ta, o grande Sto. Afonso,<br />

que, desejoso de conhecer seus filhos e de abençoá-los, foi visitá-los no momento<br />

em que subiu ao céu.<br />

S. <strong>Clemente</strong>, depois dos primeiros meses em Varsóvia, quase se decidira a<br />

voltar para a Itália. Quem conhece bem os grandes planos do Santo não estranha<br />

esse resolução, que à primeira vista, parece um tanto precipita<strong>da</strong>, e fruto<br />

de um espírito indeciso, fraco e volúvel. O desejo de S. <strong>Clemente</strong> não era achar<br />

para si e para o Pe. Thadeu um campo qualquer de trabalho; a missão, de que<br />

ele se sabia incumbido, era de formar nas terras do Norte um ramo viçoso <strong>da</strong><br />

<strong>Congregação</strong> Redentorista, e isso o mais breve possível, pois que não podiam<br />

nem queriam viver longe de uma comuni<strong>da</strong>de completa, onde pudessem observar<br />

a Regra e executar todos os seus preceitos com a maior exatidão e<br />

pontuali<strong>da</strong>de. É o próprio Superior Geral que lhe escreve: “Se não houver esperança<br />

de se fun<strong>da</strong>r ai um convento, o melhor é voltar para Itália”. Apenas chegado<br />

em Varsóvia, dera S. <strong>Clemente</strong> os primeiros passos para a realização dessa<br />

grandiosa missão, mas sem resultado; as circunstâncias declararam-se contra<br />

ela, e as experiências feitas fracassaram tristemente. Da Itália não lhe podiam<br />

man<strong>da</strong>r reforços de pessoal nem de dinheiro, e dois alemães, que entretanto<br />

pediram admissão no Instituto, abandonaram logo a <strong>Congregação</strong>.<br />

Uma idéia grandiosa reanimou-lhe ain<strong>da</strong> a esperança: a fun<strong>da</strong>ção de um<br />

grande colégio na Itália, quanto possível em Roma, com o fim de educar e<br />

formar os alemães para a <strong>Congregação</strong> e para o Norte; chegou a expor essa<br />

idéia ao Núncio e ao Superior Geral, que aplaudiram e aprovaram o grandioso<br />

plano. Mas onde levantar esse colégio? O Superior Geral ofereceu S. Julião,<br />

como único local menos mau para isso. — Em vista <strong>da</strong> estreiteza <strong>da</strong> casa e <strong>da</strong><br />

impossibili<strong>da</strong>de de encontrar outro lugar, teve S. <strong>Clemente</strong> de desistir desse<br />

grande plano, que entretanto o preocupou até os últimos anos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>.<br />

S. <strong>Clemente</strong>, porém, depositando to<strong>da</strong> a sua confiança na Providência,<br />

pôs-se a trabalhar, na certeza de que, mais cedo ou mais tarde, Deus haveria<br />

de ajudá-lo na realização <strong>da</strong> missão que o céu lhe dera. Conhecedor profundo<br />

<strong>da</strong>s almas quis começar seu plano de reforma pelo clero, que não pecava por<br />

19<br />

exagero de pie<strong>da</strong>de, mas Dalberg e Wessenberg embargaram-lhe os passos;<br />

dirigiu seus olhares para os protestantes <strong>da</strong> Alemanha e <strong>da</strong> Suíça para convertêlos;<br />

chegou a envolver em seus gigantescos planos a América e a Ásia, na<br />

convicção de que Deus não o poderia abandonar na grandiosa empresa, que<br />

visava tão somente a glória divina e o bem <strong>da</strong>s almas. Seus planos eram vastos<br />

e ilimitados, porque imenso era o zelo pela salvação <strong>da</strong>s almas, e ardente o<br />

desejo de difundir o reino de Deus em to<strong>da</strong> parte; não era apenas fantasia ou<br />

sonho de uma natureza doentia, pois que, onde <strong>Clemente</strong> punha os pés, brotava<br />

a vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de e floresciam as virtudes. Em to<strong>da</strong> parte, porém, colheu<br />

desilusões bem amargas; se todos os planos de S. <strong>Clemente</strong> se tivessem realizado,<br />

a sua biografia seria uma <strong>da</strong>s mais interessantes, mais varia<strong>da</strong>s pela<br />

multiplici<strong>da</strong>de e varie<strong>da</strong>de dos pontos de vista com que ele encarava as coisas,<br />

sabendo <strong>da</strong>r a tudo, com admirável precisão, a uni<strong>da</strong>de de ação. É sob esse<br />

aspecto que se compreendem as palavras do grande poeta Zacharias Werner,<br />

que afirmava, serem Napoleão e <strong>Clemente</strong> os maiores gênios, os mais abalizados<br />

talentos do seu século. Embora não nos seja <strong>da</strong>do o prazer de contemplar,<br />

admirados, a realização dos intentos grandiosos de S. <strong>Clemente</strong>, curvemo-nos<br />

ante as suas virtudes excepcionais, sua humil<strong>da</strong>de, seu desprendimento, sua<br />

confiança em Deus e sua fortaleza inabalável.<br />

Para <strong>Clemente</strong> não havia outro remédio, senão contentar-se provisoriamente<br />

com o movimento localizado na Igreja de S. Beno e ai receber os noviços<br />

que Deus lhe man<strong>da</strong>sse, e viver <strong>da</strong> esperança de um futuro mais favorável na<br />

mais inteira confiança em a Providência.<br />

Aprouve a Deus consolar seu humilde Servo que, batido <strong>da</strong>s adversi<strong>da</strong>des,<br />

colocara sob a proteção do Altíssimo a sua pessoa e os seus maravilhosos<br />

planos. Além de um Irmão leigo pediu admissão no convento de S. Beno, logo<br />

no ano seguinte, um saxônio, alto no corpo e grande no coração, de um temperamento<br />

pacato e sisudo: O Pe. Jestersheim que mais tarde se tornou uma <strong>da</strong>s<br />

colunas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de de Varsóvia. As esperanças de <strong>Clemente</strong> readquiriram<br />

novo vigor com a entra<strong>da</strong> desse esperançoso jovem. Para maior facili<strong>da</strong>de no<br />

desempenho do seu cargo o Superior Geral nomeou <strong>Clemente</strong> seu representante<br />

com to<strong>da</strong>s as facul<strong>da</strong>des e poderes além dos Alpes, delegação essa que<br />

se tornara necessária, porquanto <strong>Clemente</strong> se achava, em S. Beno, sobrecarregado<br />

de trabalhos: era o mesmo tempo Superior de Varsóvia, vigário, mestreescola,<br />

mestre de noviços e pai dos órfãos.<br />

Em 1791 existia já em <strong>São</strong> Beno uma respeitável comuni<strong>da</strong>de de cinco<br />

padres e dois irmãos leigos, com um noviciado de quatro clérigos, que faziam<br />

entrever um belo futuro e <strong>da</strong>vam as maiores e as mais consoladoras esperanças.<br />

Ao ser informado desse estado florescente <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> transalpina, o<br />

Superior Geral escreveu a <strong>Clemente</strong>: “Congratulo-me convosco pelos muitos<br />

trabalhos que tendes; quem me dera poder, também eu, ir batalhar ao vosso<br />

lado! Coragem, não desanimeis na missão sublime que Jesus vos confiou; eus<br />

<strong>da</strong>r-vos-á, pelos vossos trabalhos, a recompensa que esperais”.<br />

As dificul<strong>da</strong>des financeiras, porém, continuavam sempre mais prementes,<br />

e se não fosse um adjutório de cem escudos oferecidos gentilmente pela Propagan<strong>da</strong><br />

para cobrir as grandes e força<strong>da</strong>s despesas <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de e do culto,<br />

bem como as palavras reconfortantes do Núncio, que apreciava imensamen-


te os trabalhos dos Redentoristas, <strong>Clemente</strong> teria voltado à Itália, e a grande<br />

obra <strong>da</strong> reforma dos costumes <strong>da</strong> Polônia e na Áustria ficaria por fazer, Deus<br />

sabe até quando.<br />

O demônio, que não estava na<strong>da</strong> contente com a pie<strong>da</strong>de sempre crescente<br />

em S. Beno, envidou os maiores esforços para destruir a obra começa<strong>da</strong> com<br />

tão belos auspícios e tão brilhantes êxitos espirituais para as almas. Por intrigas<br />

e má vontade de um dos padres, que logo depois abandonou a <strong>Congregação</strong>,<br />

começaram a surgir certas desinteligências entre Varsóvia e Roma, de sorte<br />

que o Procurador Geral dos Redentoristas julgou necessário pedir ao Núncio<br />

Apostólico que verificasse, se de fato <strong>Clemente</strong> havia falsificado a Regra, e o<br />

Superior Geral, desconfiado pela falta de cartas que explicassem a situação,<br />

perguntou a <strong>Clemente</strong>, se os padres de S. Beno planejavam uma ruptura de<br />

relações com a <strong>Congregação</strong>, pretendendo declarar-se independentes. Essas<br />

suspeitas cresciam, dia a dia, por causa <strong>da</strong> desorganização dos correios e em<br />

conseqüência <strong>da</strong>s guerras e outras perturbações sociais, que tornavam difícil,<br />

para não dizer quase impossível a comunicação epistolar com Roma. A correspondência<br />

era feita ou por portadores especiais ou, então, por intermédio <strong>da</strong><br />

Nunciatura.<br />

Devido a tudo isso a questão entre S. Beno e Roma azedou-se de forma<br />

que <strong>Clemente</strong> chegou a pedir ao Superior Geral a exoneração do pesado cargo<br />

de Vigário Geral <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, pedido esse que ficou sem efeito.<br />

O ano de 1790 começou alvissareiro para a <strong>Congregação</strong> Redentorista; às<br />

casas do reino de Nápoles, que por decreto real não podiam antes seguir o<br />

regulamento aprovado pelo Papa, foi permitido pelo rei seguir a Regra antiga<br />

sem falsificações, operando-se assim a união delas aos conventos dos Estados<br />

Pontifícios; o Capítulo Geral reunido elegeu Reitor-mor o padre Paulo Blasucci,<br />

cujo governo abrangia então as dezoito casas <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, existentes nos<br />

Estados Pontifícios, na Sicília, em Nápoles e em Varsóvia. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> foi<br />

confirmado pelo Superior Geral no campo de Vigário Geral e de representante<br />

do Reitor-mor para todos os efeitos, além dos Alpes. <strong>Clemente</strong>, para se tornar<br />

menos impedido no desempenho de seu cargo, procurou dividir um pouco o<br />

peso <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de imediata, nomeando o padre Thadeu Hübl Reitor <strong>da</strong><br />

casa e o Pe. Jestersheim ministros do convento. A coisa ia pois desenvolvendose<br />

admiravelmente a contento de todos e com a garantia <strong>da</strong> proteção do Rei<br />

que também se dignou de reconhecer, aprovar e admitir em to<strong>da</strong> a Polônia, de<br />

uma vez para sempre, a <strong>Congregação</strong> dos Redentoristas.<br />

20<br />

CAPÍTULO II<br />

O apostolado em Varsóvia<br />

Polônia e sua história — Finis Poloniae — O comando <strong>da</strong> Prússia — Os<br />

trabalhos apostólicos — Corpus Christi — O confessionário e o púlpito — Vi<strong>da</strong><br />

de convento — As escolas — Os oblatos Redentoristas — Apostolado <strong>da</strong> imprensa.<br />

Nos primeiros anos, a contar de 1790, S. <strong>Clemente</strong> pouco se preocupou<br />

com os trabalhos de fun<strong>da</strong>ções, que se tornaram impossíveis devido às numerosas<br />

guerras enceta<strong>da</strong>s e realiza<strong>da</strong>s nesse lapso de tempo. Varsóvia não foi<br />

poupa<strong>da</strong> nesses tempos calamitosos; antes parecia ter sido escolhi<strong>da</strong> para teatro<br />

principal e mais doloroso <strong>da</strong>s graves perturbações européias de então.<br />

Desde o primeiro desmembramento a Polônia não conseguiu mais levantar-se<br />

<strong>da</strong> sua ruína. Catarina II <strong>da</strong> Rússia, de há muito, planejara-lhe a ruína completa;<br />

de na<strong>da</strong> valeu a brilhante vitória conquista<strong>da</strong> com bravura por Cosciusko em<br />

Cracóvia. Varsóvia passou a pertencer ao domínio <strong>da</strong> Prússia. A prepotente<br />

imperatriz <strong>da</strong> Rússia impôs ao reino <strong>da</strong> Polônia a Estanislau Poniatowski, seu<br />

favorito, rei sem energia e sem amor à Pátria, <strong>da</strong>do às letras e à estética, porém<br />

sem caráter e sem força moral “rei <strong>da</strong>s mulheres e não rei dos heróis”. A nobreza<br />

<strong>da</strong> Polônia, outrora tão forte e poderosa, acabara de enfraquecer-se nos<br />

combates contra a Rússia; a flor <strong>da</strong> fi<strong>da</strong>lguia polaca sucumbira, em parte, nos<br />

combates sangrentos empreendidos em defesa sagra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Pátria, e em parte,<br />

sob o ferro desapie<strong>da</strong>do dos carrascos. Dentre os nobres restaurantes, quase<br />

todos preferiam comer o pão do exílio e mendigar o sustento longe <strong>da</strong> Pátria, a<br />

curvar-se ante o domínio humilhante <strong>da</strong> Rússia. Entre os poucos nobres, que<br />

se deixaram ficar na Polônia, reinava a mais degra<strong>da</strong>nte desunião; porque, enquanto<br />

uns se prontificaram a derramar o sangue pela Pátria, outros venderamse<br />

vergonhosamente à Rússia, cuja devassidão procuravam imitar. Infelizmente<br />

também alguns prelados seguiram em tudo a nobreza; os que com heroísmo<br />

cristão se levantaram contra os ataques do cisma russo e <strong>da</strong> violência do domínio<br />

estrangeiro, foram deportados para a Sibéria e outros pontos <strong>da</strong> Rússia. Os<br />

seus substitutos não passavam de humildes criaturas <strong>da</strong> imperatriz Catarina e<br />

juntamente com a nobreza degenera<strong>da</strong> puxavam o carro triunfante <strong>da</strong> Czarina.<br />

O baixo clero, em grande parte ignorante, deixava-se guiar quase em tudo pelos<br />

seus prelados. O comércio achava-se todo nas mãos dos judeus, que se<br />

enriqueciam explorando escan<strong>da</strong>losamente os cristãos enquanto que a indústria<br />

pertencia exclusivamente a estrangeiros. Nas guerras de 1764 e 1772 foram<br />

arrasa<strong>da</strong>s aldeias, vilas e ci<strong>da</strong>des inteiras pelos cossacos russos, sendo os<br />

seus habitantes, homens e mulheres, velhos e crianças, truci<strong>da</strong>dos com a mais


equinta<strong>da</strong> barbari<strong>da</strong>de. Em última análise to<strong>da</strong>s essas calami<strong>da</strong>des e misérias<br />

recaíam sobre os pobres lavradores e operários, oprimindo-os e esmagandoos.<br />

Apesar de tudo isso, o reino conseguiu recolher ain<strong>da</strong> as últimas forças<br />

para se levantar de tamanha ruína. O próprio rei colocou-se à frente do povo,<br />

restabelecendo assim a ordem e a tranqüili<strong>da</strong>de pública. Catarina, que ambicionava<br />

para si a Polônia, não podia ver com bons olhos esse estado de coisas;<br />

sob pretexto de tutelar a ordem expediu para a Polônia os militares que, desde<br />

a paz com a Turquia em 1792, estavam à disposição <strong>da</strong> Czarina. Os Polacos,<br />

em justa defesa, pediram auxílio em to<strong>da</strong> a parte, porém debalde; a Saxônia<br />

achava-se demasiado enfraqueci<strong>da</strong>, a Áustria estava ain<strong>da</strong> ocupa<strong>da</strong> com a França;<br />

a Turquia não se restabelecera bastantemente de última guerra; restava<br />

ain<strong>da</strong> a Prússia, que anciava por receber um bom pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> Polônia depois de<br />

feita a divisão.<br />

No auge do desespero os polacos pegaram em armas, prontos e dispostos<br />

a to<strong>da</strong>s as eventuali<strong>da</strong>des; o rei amedrontado passou vergonhosamente ao lado<br />

dos russos e o general polaco traiu o seu exército. Cosciusko, o último herói <strong>da</strong><br />

Polônia, com seu exército diminuto embora composto só de heróis, não pôde<br />

resistir ao número colossal dos sol<strong>da</strong>dos russos, e assim em 1793 efetuou-se o<br />

segundo desmembramento <strong>da</strong> pobre Polônia. NO ano seguinte, ao receber-se<br />

a ordem do desarmamento completo dos polacos organizou-se em Cracóvia<br />

um levantamento com Cosciusko à frente; o povo parecia eletrizado pelo entusiasmo<br />

e pela esperança <strong>da</strong> vitória, porquanto a sorte <strong>da</strong>s armas estava a sorrir-lhe<br />

favoravelmente; os russos foram esmagados em Varsóvia, e em geral,<br />

em todos os pontos do país. O ódio e a indignação popular contra os inimigos<br />

<strong>da</strong> Pátria era tal, que em Varsóvia se improvisaram forcas onde pereceram<br />

todos os grandes amigos dos russos; durante o último combate contra os súditos<br />

<strong>da</strong> Czarina os polacos penetraram nas prisões e truci<strong>da</strong>ram os prisioneiros<br />

prussianos e russos. Em meados de julho apresentou-se o exército prussiano<br />

às portas de Varsóvia, onde se travou um sangrento combate, enquanto os<br />

russos avançaram pelo lado oposto; indignados e exasperados os polacos formaram<br />

um novo exército para debelá-los, e em um só combate, os russos perderam<br />

9.000 homens. Em 10 de outubro o próprio Cosciusko comandou em<br />

pessoa o exército polaco, composto de 10.000 heróis; o combate foi tão renhido<br />

que, em seis horas, as forças polacas ficaram reduzi<strong>da</strong>s a 2.000 homens caindo<br />

8.000 gloriosamente no campo de batalha; Cosciusko atingido por uma<br />

espa<strong>da</strong> inimiga exclamou: Finis Poloniae. O caminho para Varsóvia estava pois<br />

aberto; em novembro entraram os russos em Praga, que serve de arrabalde a<br />

Varsóvia, em cujas ruas os polacos, homens e mulheres, se defendiam como<br />

leões; mas como o exército inimigo era demasiado grande, a vitória declarou-se<br />

a favor dos russos, cujo general Suwarow, indignado e enfurecido, mandou passar<br />

a fio <strong>da</strong> espa<strong>da</strong> a população inteira, correndo o sangue em torrentes pelas<br />

ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de; os que tentaram fugir foram afogados no Vistula. Varsóvia lutou,<br />

porém, debalde; a 13 de junho de 1795 passou a ser uma possessão prussiana.<br />

O assédio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de pelos russos S. <strong>Clemente</strong> o descreve a seu Superior Geral:<br />

“Mal libertados do assédio prussiano presenciamos o dos russos, o qual, embora<br />

não demorasse muito, teve um resultado horrível: mais de 16.000 homens,<br />

21<br />

mulheres e crianças foram truci<strong>da</strong>dos barbaramente; a nós coube a infelici<strong>da</strong>de<br />

de ser testemunhas dessas cenas horrorosas que se deram em frente <strong>da</strong> nossa<br />

casa à margem do Vistula; graças a Deus na<strong>da</strong> sofremos dos milhares de armas<br />

de fogo russas; os tiros passaram por sobre o telhado <strong>da</strong> igreja e <strong>da</strong> nossa<br />

residência, estando nós sempre em gravíssimo perigo de morte”. Foi nessa<br />

ocasião que S. <strong>Clemente</strong> fez o voto de ir em romaria a S. João Nepomuceno em<br />

Praga, se Varsóvia fosse poupa<strong>da</strong>.<br />

Vinte meses esteve Varsóvia sob o domínio russo, o que lhe foi de grande<br />

vantagem. O governo verificando serem pequenas as acomo<strong>da</strong>ções escolares,<br />

destina<strong>da</strong>s aos pobres, ofereceu generosamente os meios para a construção<br />

de escolas mais espaçosas. O convento de S. Beno foi aumentado e as suas<br />

necessi<strong>da</strong>des provi<strong>da</strong>s pelo governo. Esse estado de coisas, porém, não durou<br />

muito tempo, pois que em 1796 Varsóvia foi entregue oficialmente à Prússia,<br />

que lá governou durante dez anos. Os tempos normalizaram-se, mas Varsóvia<br />

decaiu consideravelmente, baixando de 120.000 habitantes a apenas 68.000.<br />

S. Beno lucrou muito com a chega<strong>da</strong> dos Prussianos, que viam nos padres<br />

Redentoristas um reforço do elemento alemão, embora os Redentoristas se<br />

conservassem sempre neutros, distribuindo seus benefícios indistintamente a<br />

alemães e polacos. De um documento <strong>da</strong>quele tempo temos a seguinte notícia:<br />

“Atualmente sustenta o Instituto (de S. Beno) 40 crianças e fornece instrução a<br />

200; esta ramifica-se no ensino do alemão, polaco, latim, religião, história, geografia,<br />

história natural...; os professores são homens de talento”.<br />

A ativi<strong>da</strong>de espiritual desenvolvi<strong>da</strong> por S. <strong>Clemente</strong> e seus padres na Igreja<br />

de S. Beno excede a qualquer descrição; foi coisa nunca vista na Europa. O<br />

povo, compreendendo que os Benonitas — assim chamavam os Redentoristas<br />

— longe de qualquer pretensão política apenas procuravam a glória de Deus e<br />

o bem <strong>da</strong>s almas, mormente entre a moci<strong>da</strong>de, escolheu a Igreja de S. Beno<br />

para centro de edificante pie<strong>da</strong>de. Desde o dia do assalto de Varsóvia em 1794<br />

a igreja começou a apinhar-se de povo, mais de polacos que de alemães, porque<br />

aqueles se deliciavam em ouvir as pregações polacas do Pe. Podgorski,<br />

que possuía um exterior angélico e a eloqüência de um João Crisóstomo. O<br />

número <strong>da</strong>s comunhões distribuí<strong>da</strong>s é a prova mais evidente e incontestável do<br />

progresso consolador e sempre crescente <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de na Igreja dos<br />

Benonitas; quando os padres lá chegaram havia 2.000 comunhões anuais, em<br />

1800 já houve 100.000. Nas funções religiosas a aglomeração era tanta, que<br />

não cabendo na igreja, que comportava só mil pessoas, os fiéis ficavam a rezar<br />

no cemitério e ao longo <strong>da</strong>s ruas para ao menos de longe ouvirem missa aos<br />

domingos. Com a introdução de novas devoções e exercícios, como novenas,<br />

tríduos etc. não passava um dia sem pregações, missas solenes etc. Isso foi um<br />

sucesso extraordinário, porque Polacos se sentem bem quando as missas e as<br />

funções religiosas se prolongam por muito tempo e são realiza<strong>da</strong>s com pompa.<br />

Em 1800 já todos os moradores de Varsóvia e <strong>da</strong>s imediações conheciam e<br />

estimavam a Igreja de S. Beno, onde se pregava uma missão contínua. É o<br />

próprio S. <strong>Clemente</strong> quem nos dá a seguinte descrição dos seus trabalhos em<br />

S. Beno: “Aos domingos e dias santos, às 5 horas <strong>da</strong> manhã há instrução para<br />

os operários e empregados, que não podem ouvir, em outra hora, a palavra<br />

divina, havendo em segui<strong>da</strong> uma missa para eles; nos dias úteis omite-se essa


pregação. Todos os dias á uma missa às 6 horas com exposição do Santíssimo,<br />

durante o qual o povo canta, havendo em segui<strong>da</strong> uma instrução ao povo em<br />

polaco; durante a instrução celebram-se missas para aqueles que não compreendem<br />

alemão nem polaco. Às 8 horas, missa canta<strong>da</strong> a cantochão com uma<br />

pregação em polaco, e logo em segui<strong>da</strong> uma outra em alemão. Termina<strong>da</strong> essa<br />

instrução os meninos <strong>da</strong> escola vão à igreja, onde começa a missa solene a<br />

grande orquestra: assim encerra-se o culto <strong>da</strong> manhã. Depois no meio-dia: aos<br />

domingos e dias santos há catecismo para as crianças às 2 horas, às 3 h. as<br />

irman<strong>da</strong>des cantam o ofício parvo de Nossa Senhora, às 4 h. há pregação para<br />

os alemães, segui<strong>da</strong> de vésperas solenes; termina<strong>da</strong>s estas, uma pregação em<br />

polaco e enfim a visita ao Santíssimo Sacramento e a Nossa Senhora segundo<br />

o método do venerável Servo de Deus, Afonso de Ligório. Nos dias úteis os<br />

exercícios pomeridianos começam só depois <strong>da</strong> aula. Todos os dias às 5 horas<br />

<strong>da</strong> tarde há pregação em alemão, visita ao Santíssimo e em segui<strong>da</strong> outra pregação<br />

em polaco, via sacra e cânticos sacros em louvor de Jesus Sacramentado<br />

e <strong>da</strong> Santíssima Virgem; rematando tudo faz-se com o povo o exame de consciência,<br />

rezam-se os atos cristãos, procede-se à leitura <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do Santo, cuja<br />

festa a igreja celebra no dia seguinte, e por fim a la<strong>da</strong>inha de Nossa Senhora,<br />

findo o que fecha-se a igreja”. Essa era a vi<strong>da</strong> em S. Beno no longo período de<br />

dez anos! Ca<strong>da</strong> dia cinco pregações: três em polaco e duas em alemão, aos<br />

domingos ain<strong>da</strong> duas aulas de catecismo; diariamente três missas solenes e<br />

tantos outros exercícios. E como tudo isso não se fazia para o mesmo público,<br />

mas para diversas classes de pessoas que se revezavam, era aquilo uma missão<br />

contínua de dez anos.<br />

Alguns talvez sintam tentação de pensar, ser essa ativi<strong>da</strong>de um exagero e<br />

quiçá, um abuso. Quem porém conhece o estado deplorável em que se achava<br />

Varsóvia em matéria de fé e de costumes, certamente se convencerá <strong>da</strong> grande<br />

sabedoria e prudência, que nesse particular guiaram a S. <strong>Clemente</strong>, cujo desejo<br />

sincero era a reforma radical e a restauração <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de tão decaí<strong>da</strong>. “Escân<strong>da</strong>los,<br />

vícios”, escreve ele, “atingiram aqui o seu auge e é difícil encontrar o<br />

caminho mais seguro e o modo mais eficaz de melhorar a situação; desde o<br />

clero até o mais miserável mendigo está tudo corrompido; é para se temer que<br />

Deus afaste o candelabro do seu lugar”.<br />

E S. <strong>Clemente</strong> não exagerava. Varsóvia possuía mais ou menos o caráter e<br />

as quali<strong>da</strong>des <strong>da</strong>s grandes ci<strong>da</strong>des modernas, a saber: frivoli<strong>da</strong>de a descrença<br />

nas altas ro<strong>da</strong>s sociais, e ignorância e imorali<strong>da</strong>de no povo baixo. Um outro<br />

escritor, conhecedor profundo <strong>da</strong>quele tempo, descreve a alta socie<strong>da</strong>de de<br />

então: “Varsóvia <strong>da</strong> alta aristocracia, que se revolvia e remexia atrás do carro<br />

triunfal <strong>da</strong> revolução francesa, corroí<strong>da</strong> nas orgias do rei Estanislau pela depravação<br />

<strong>da</strong> sensuali<strong>da</strong>de, a Varsóvia de então com seus palácios, com seus adultérios<br />

nos salões, com suas profanações do matrimônio pelo dinheiro vil, não<br />

queria saber de Deus nem do bem <strong>da</strong> Pátria, contanto que lhe fosse <strong>da</strong>do gozar<br />

e divertir-se”. S. <strong>Clemente</strong> ain<strong>da</strong> supunha pouco o que se fazia então, não pela<br />

falta de sacerdotes e conventos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que contava 400 padres seculares e<br />

15 regulares, mas pela falta de ativi<strong>da</strong>de no clero. “Fora <strong>da</strong> igreja dos Lazaristas<br />

e dos Reformados”, escreve ele, “só se prega uma vez por semana nas outras<br />

igrejas de Varsóvia e isso mesmo de modo incompreensível para o povo, sem<br />

22<br />

entusiasmo e sem espírito”.<br />

Para necessi<strong>da</strong>des supremas remédios extraordinários: eis a lógica natural<br />

e simples que organizou a missão contínua de S. Beno. Além disso, era essa<br />

também a única missão que se podia pregar naqueles tempos calamitosos. É<br />

necessário notar que, com esses trabalhos múltiplos e constantes, S. <strong>Clemente</strong><br />

não se mostrava cruel para seus padres martirizando-os, porque o Santo cui<strong>da</strong>va<br />

sempre para que o serviço fosse bem dividido os diversos sacerdotes <strong>da</strong><br />

comuni<strong>da</strong>de. O povo, em extremo satisfeito e contente com as soleni<strong>da</strong>des pomposas<br />

e os esforços aturados dos Redentoristas, não hesitava em ofertar o<br />

necessário para o sustento do culto e as despesas <strong>da</strong> igreja, e <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

não conhecia limites em sua generosi<strong>da</strong>de em se tratando <strong>da</strong> glória de Deus e<br />

dos Santos.<br />

De um modo todo especial fazia o Servo de Deus revestirem-se de soleni<strong>da</strong>de<br />

e pompa as procissões do Santíssimo Sacramento, mormente na festa de<br />

Corpus Christi, em que a Igreja presta publicamente a Jesus as homenagens<br />

de sua gratidão pelos tesouros de graças recebi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Eucaristia no altar e<br />

especialmente na mesa <strong>da</strong> comunhão. Nesse dia adornava a igreja com as<br />

mais lin<strong>da</strong>s flores que encontrava na ci<strong>da</strong>de, não se preocupando com o preço<br />

delas. Como a procissão só se podia fazer ao redor <strong>da</strong> igreja, providenciava<br />

para que esta e o largo se achassem profusamente ornamentados de luzes e<br />

flores; doze coroinhas caminhavam com turíbulos fumegando, enquanto que<br />

uma multidão de meninos, adornados de prata e ouro, espargiam flores diante<br />

do Santíssimo; os sacerdotes compareciam paramentados de pluviais<br />

riquíssimos; sendo o palio, mais suntuoso ain<strong>da</strong>, carregado pelos seis senhores<br />

mais nobres <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de; senhoras <strong>da</strong> mais alta nobreza e até príncipes faziam<br />

questão de trabalhar, ca<strong>da</strong> ano, no adorno do palio no qual pregavam flores e<br />

emblemas, <strong>da</strong> Eucaristia; só o ouro no palio avaliava-se em 3.000 escudos perto<br />

do ostensório formavam a guar<strong>da</strong> nobre do Santíssimo numerosos rapazes,<br />

em cujas vestes reluziam a prata e o ouro, com asas doura<strong>da</strong>s, simbolizando os<br />

querubins que rodeiam o trono do Altíssimo no céu. Na frente <strong>da</strong> procissão<br />

caminhavam as Associações e Irman<strong>da</strong>des com seus respectivos estan<strong>da</strong>rtes,<br />

símbolo <strong>da</strong> vitória de Jesus sobre o mundo, e logo em segui<strong>da</strong>, centenas de<br />

virgens, vesti<strong>da</strong>s de branco, empunhando velas acesas e entoando, sem cessar,<br />

piedosos hinos a Jesus Sacramentado, enquanto que os sinos de S. Beno,<br />

como se quisessem cantar também, faziam ecoar ao longe os sentimentos de<br />

fé e o entusiasmo do povo católico. Atrás de Jesus Sacramentado ia a ban<strong>da</strong> de<br />

música, prestando homenagens ao Rei dos reis, e logo em segui<strong>da</strong> os milhares<br />

de fiéis que cantavam e rezavam em voz alta. Termina<strong>da</strong> a procissão, <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

subia ao púlpito e com seu verbo afogueado e empolgante falava do<br />

amor imenso do Prisioneiro dos nossos tabernáculos. Termina<strong>da</strong> a alocução do<br />

Santo o Pe. Blumenau, orador arrebatado, ascendia à tribuna sagra<strong>da</strong> e discorria,<br />

em polaco, sobre o mesmo assunto, arrancando lágrimas aos ouvintes.<br />

Com essas soleni<strong>da</strong>des externas queria S. <strong>Clemente</strong>, além de prestar publicamente<br />

as homenagens de adoração que competem a Jesus, chamar a<br />

atenção do povo e guiá-lo para Deus; “as soleni<strong>da</strong>des públicas”, dizia ele, “atraem<br />

por seu esplendor e aos poucos cativam o povo, que ouve mais com os<br />

olhos do que com os ouvidos”.


No ministério apostólico a coisa principal para S. <strong>Clemente</strong> não eram essas<br />

exteriori<strong>da</strong>des, mas sim o púlpito e o confessionário; durante as longas soleni<strong>da</strong>des<br />

religiosas, tão queri<strong>da</strong>s dos Polacos, os confessionários achavam-se<br />

constantemente assediados de penitentes. De longe, até de vinte léguas de<br />

distância, iam pessoas a S. Beno para recuperar a paz do coração e <strong>da</strong> consciência.<br />

No púlpito um dos temas prediletos de S. <strong>Clemente</strong>, em essas ocasiões<br />

extraordinárias, era a sublimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fé. Nessas pregações mostrava-se incansável<br />

e inesgotável, realizando à risca as palavras de S. Paulo: praedica verbum,<br />

insta opportune et importune (2 Thim. 4, 2). Em S. Beno faziam-se anualmente<br />

cerca de duas mil pregações, em que S. <strong>Clemente</strong> e os seus padres esgotavam,<br />

nas duas línguas, to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong>des do símbolo e do decálogo.<br />

Tantos esforços não podiam ficar frustrados e sem resultado; a palavra<br />

divina, pronuncia<strong>da</strong> por lábios tão santos, devia necessariamente mover os corações<br />

e ilustrar os espíritos. E de fato; o povo de Varsóvia transformou-se completamente,<br />

de sorte que as pessoas, que freqüentavam a Igreja de S. Beno,<br />

começaram a levar uma vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de, que se podia quase chamar uma vi<strong>da</strong><br />

de convento: faziam todos os dias o exame de consciência e a meditação, e por<br />

ocasião <strong>da</strong>s têmporas recolhiam-se à solidão do retiro espiritual; essas pessoas<br />

piedosas, guia<strong>da</strong>s por tão sábios e prudentes Diretores, tornavam-se apóstolos<br />

para os pobres extraviados, não só pelo bom exemplo que <strong>da</strong>vam, mas<br />

sobretudo pelos conselhos, boas palavras que prodigalizavam e pelas orações<br />

que, na Igreja de S. Beno, dirigiam ao céu pela conversão dos pecadores. Dessa<br />

forma a ativi<strong>da</strong>de desenvolvi<strong>da</strong> no tempo por S. <strong>Clemente</strong> irradiava-se por<br />

to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de e até para mais longe com grande proveito de inúmeras almas. A<br />

ativi<strong>da</strong>de religiosa de Varsóvia ficará sendo sempre o modelo clássico de uma<br />

paróquia bem organiza<strong>da</strong> nas grandes ci<strong>da</strong>des modernas, onde não é lícito<br />

cingir-se ao costume patriarcal <strong>da</strong>s aldeias, mas onde os vigários devem ter em<br />

vista as necessi<strong>da</strong>des espirituais não só <strong>da</strong>s classes abasta<strong>da</strong>s, mas também<br />

dos operários, dos empregados e em geral de todos os que precisam sacrificarse,<br />

o dia inteiro, a fim de ganhar o sustento para si e para os seus.<br />

É claro que esses exercícios de pie<strong>da</strong>de dentro do templo não absorviam<br />

to<strong>da</strong> a ativi<strong>da</strong>de de S. <strong>Clemente</strong>; constituíam apenas uns pontos de seu vasto<br />

programa, pois que S. <strong>Clemente</strong> era reformador em grande estilo, de idéias<br />

largas e vastos horizontes; no momento, porém, não podia fazer muito mais por<br />

fora porque to<strong>da</strong>s as portas lhe estavam fecha<strong>da</strong>s e a sua ação tolhi<strong>da</strong>. Suas<br />

vistas e sua atenção achavam-se também volta<strong>da</strong>s para a escola, para a moci<strong>da</strong>de,<br />

para a organização <strong>da</strong> imprensa etc. De todos esses meios pretendia ele<br />

servir-se afim de restaurar o reino de Deus nos corações dos homens.<br />

A escola, por ele fun<strong>da</strong><strong>da</strong> para as crianças pobres, auxiliava poderosamente<br />

sua ação pastoral: as meninas e os meninos convertiam-se em apóstolos<br />

junto de seus parentes; era edificante e comovente ver muitas delas ajoelhar-se<br />

diante dos pais, as mãos postas e os olhos, não poucas vezes, banhados<br />

em lágrimas, a pedir-lhes que se confessassem, fossem à igreja e ouvissem<br />

a palavra de Deus. O método seguido por S. <strong>Clemente</strong> na educação <strong>da</strong><br />

infância, como veremos adiante, era todo dele e ditado por uma fé profun<strong>da</strong> e<br />

uma experiência de muitos anos. “No princípio <strong>da</strong>s aulas”, dizia ele, “basta que<br />

se leia, todos os dias, para as crianças alguma pericope do Evangelho, isso<br />

23<br />

causa grande impressão nos pequenos”. Depois <strong>da</strong> aula conduzia as crianças à<br />

igreja, cantava com elas e rezava algumas <strong>da</strong>s orações que haviam decorado<br />

na escola. Assim a teoria unia-se à prática, e mais indelevelmente se imprimia<br />

na memória <strong>da</strong>s crianças.<br />

Maior cari<strong>da</strong>de dedicava às meninas, que corriam perigo de se perderem<br />

devido à grande imorali<strong>da</strong>de, que campeava livre e soberana na ci<strong>da</strong>de em<br />

todos os cantos e direções; S. <strong>Clemente</strong> esmerava-se em preservá-las <strong>da</strong> sedução<br />

por meio <strong>da</strong> instrução e <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de. Em 1795 fundou para as meninas<br />

uma escola profissional a fim de assim habituá-las ao trabalho e garantir-lhes<br />

no futuro a honesta subsistência; para as donzelas mais piedosas e dedica<strong>da</strong>s<br />

formou-se uma Associação com vi<strong>da</strong> comum, <strong>da</strong>ndo-lhes uma Regra própria,<br />

por ele esboça<strong>da</strong>; as Associa<strong>da</strong>s receberam o nome de “irmãs de <strong>São</strong> José”. O<br />

fim que as donzelas se propunham nessa nova Instituição era, instruir gratuitamente<br />

as meninas pobres nos rudimentos <strong>da</strong>s ciências e nos ofícios próprios<br />

de sua i<strong>da</strong>de e sexo, e sobretudo educá-las e formá-las para moças piedosas e<br />

puras. Terminado o tempo <strong>da</strong> instrução as irmãs procuravam interná-las em<br />

casas de boas famílias. O bem que essas escolas produziam naquele tempo,<br />

pode-se perfeitamente deduzir do número de meninas que nelas se educavam<br />

em Varsóvia: era na<strong>da</strong> menos de 300 todos os anos.<br />

No tempo em que S. <strong>Clemente</strong> era ain<strong>da</strong> estu<strong>da</strong>nte em Viena, inscreverase<br />

na Ordem Terceira de <strong>São</strong> Francisco, e achava ser essa instituição providencial<br />

e de magníficos resultados para a conservação <strong>da</strong> fé e <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de entre os<br />

jovens; procurou fun<strong>da</strong>r também para a sua <strong>Congregação</strong> uma coisa semelhante,<br />

e essa idéia ele acalentou desde os primeiros dias <strong>da</strong> sua chega<strong>da</strong> em S.<br />

Beno. Aos poucos foi aparecendo a realização desse desejo numa espécie de<br />

ordem Terceira também para os Redentoristas: eram os Oblatos, entre os quais<br />

se achavam sacerdotes e pessoas virtuosas de ambos os sexos e de to<strong>da</strong>s as<br />

classes sociais. Não viviam juntos, como no convento, mas ca<strong>da</strong> um ficava em<br />

sua casa, comprometendo-se todos a tomar parte em atos determinados de<br />

vi<strong>da</strong> ascética, v. g. nas meditações diárias, exame de consciência etc. O objetivo<br />

de S. <strong>Clemente</strong>, ao instituir a Associação dos Oblatos, era de promover e secun<strong>da</strong>r<br />

o apostolado leigo, a defesa <strong>da</strong> Igreja, <strong>da</strong> fé e <strong>da</strong> morali<strong>da</strong>de, bem como<br />

a santificação pessoal dos membros; a essa Instituição de Oblatos deve S. <strong>Clemente</strong><br />

grande parte dos resultados magníficos que conseguiu as simpatias de<br />

muitas famílias, às quais nunca teria podido chegar por outros meios.<br />

Como se ain<strong>da</strong> não bastasse tudo isso, S. <strong>Clemente</strong> lançou mão de um<br />

outro apostolado, talvez mais importante ain<strong>da</strong>: a imprensa. É certo que sempre<br />

se pregava em S. Beno, mas que era pequena a Igreja de S. Beno para poder<br />

conter a população <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que ultrapassava o número de 128.000 habitantes?<br />

E quantos havia ain<strong>da</strong> fora de Varsóvia, que não chegavam a ouvir a palavra<br />

de Deus e a instruir-se nas ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> religião! E quantas pessoas instruí<strong>da</strong>s<br />

em diversos ramos <strong>da</strong> ciência ficavam priva<strong>da</strong>s <strong>da</strong> instrução religiosa por<br />

não quererem no templo ouvir a linguagem desatavia<strong>da</strong> e apostólica, preferindo<br />

entreter-se com as obras melífluas e benesonantes dos jansenistas e<br />

enciclopedistas 1 franceses com seus palavrões de filantropia, fraterni<strong>da</strong>de, liber<strong>da</strong>de<br />

etc.! ou então deliciando-se com as obras perniciosas dos maçons e<br />

“iluminados” <strong>da</strong> Alemanha, que além de acariciar o orgulho e a sensuali<strong>da</strong>de


eram escritas em linguagem elegante, poética e atraente, que mais parecia<br />

doce música e delicioso aroma que encantava os leitores e deixava as leitoras<br />

enlouqueci<strong>da</strong>s e apaixona<strong>da</strong>s, mormente quando na<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> haviam ouvido de<br />

Deus ou <strong>da</strong> religião! Eram desse quilate os livros que se espalhavam então em<br />

to<strong>da</strong> a Europa, passando de mão em mão e enervando com seu doce veneno,<br />

o pobre povo. A S. <strong>Clemente</strong> não podia passar despercebi<strong>da</strong> a desgraça, sempre<br />

crescente, produzi<strong>da</strong> por esses livros perniciosos; compreendendo que do<br />

púlpito não lhe era possível por um dique a esses males, recorreu à imprensa.<br />

Embora não pertencesse ele mesmo ao número dos escritores fecundos, tornou-se<br />

o maior propagandista dos livros bons já existentes e o instigador quase<br />

importuno de pessoas competentes, para que publicassem outros livros novos<br />

e instrutivos. De um modo especial dedicou-se em propagar e difundir em to<strong>da</strong><br />

a parte os livros de S. Afonso de Ligório, que Deus suscitara como um Doutor<br />

clássico contra Jansenio e a maçonaria; essas obras obtiveram na Polônia uma<br />

aceitação tal, que bastava constar serem elas <strong>da</strong> pena de S. Afonso para terem<br />

rápi<strong>da</strong> extração. Os Redentoristas de S. Beno tornaram-se heróis <strong>da</strong> pena por<br />

ordem de S. <strong>Clemente</strong>; o Pe. Thadeu Hübl traduziu para o alemão as obras de S.<br />

Afonso, que ain<strong>da</strong> faltavam, e diversas outras obras ascéticas; o Pe. Podgorski<br />

fez o mesmo para o polaco, enquanto que os padres franceses se dedicaram à<br />

tradução dessas mesmas obras para o francês. Para facilitar o trabalho <strong>da</strong> impressão<br />

S. <strong>Clemente</strong> tentou montar uma máquina tipográfica em ponto pequeno,<br />

e para a mais rápi<strong>da</strong> difusão dessas obras serviu-se <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

mariana, cujos Associados assumiam solene compromisso de trabalhar em<br />

benefício <strong>da</strong> boa imprensa.<br />

Desejoso de consoli<strong>da</strong>r para sempre o seu trabalho, não hesitou S. <strong>Clemente</strong><br />

e, fun<strong>da</strong>r Associações para to<strong>da</strong>s as classes de pessoas, porém, em<br />

particular para a juventude, porque estava convencido de que bal<strong>da</strong>dos são<br />

todos os trabalhos em prol do povo, quando não se ganha para o bem a moci<strong>da</strong>de,<br />

de um modo duradouro, e isso com maior razão ain<strong>da</strong> porque, em geral,<br />

a moci<strong>da</strong>de costuma ser preteri<strong>da</strong> e despreza<strong>da</strong> por católicos de certa categoria<br />

e até por sacerdotes, ao passo que os inimigos de Deus não se cansam de<br />

lhe proporcionar, por to<strong>da</strong>s as formas, meios de perversão. Só Deus sabe, a<br />

quantos jovens de ambos os sexos a <strong>Congregação</strong> mariana dos rapazes e a<br />

Associação S. José <strong>da</strong>s donzelas preservaram <strong>da</strong> corrupção, mormente naqueles<br />

tempos em que tudo parecia conspirar para a perversão <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de. Muitos<br />

dentre eles — mormente entre as donzelas — consagraram-se a Deus no<br />

estado religioso.<br />

24<br />

CAPÍTULO III<br />

Viagens de fun<strong>da</strong>ção<br />

O desejo mais ardente — Mitau — Radzynim — Lutkowka — O Santo em<br />

Praga — Lin<strong>da</strong>u — Em Viena — Morte inespera<strong>da</strong> — Novo recrutamento —<br />

Novas dificul<strong>da</strong>des com o governo — A imagem <strong>da</strong> Virgem.<br />

Com o fim de consoli<strong>da</strong>r a obra começa<strong>da</strong> em Varsóvia com tanto benefício<br />

espiritual para as almas S. <strong>Clemente</strong> não saiu <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de nos primeiros oito anos<br />

de seu apostolado na Polônia. Percebendo, porém, que sua presença em Varsóvia<br />

já não era de absoluta necessi<strong>da</strong>de, e vendo, de outro lado, que o número<br />

de seus padres se aumentava dia a dia, sentiu chega<strong>da</strong> a hora de expandir o<br />

seu zelo e de tratar na execução dos seus grandes planos; era tempo de pensar<br />

em outras fun<strong>da</strong>ções para assim levar a graça <strong>da</strong> conversão a todos os povos.<br />

S. <strong>Clemente</strong> não ignorava ser esse o seu dever principal, essa a missão que<br />

Deus lhe confiara, pois que para isso fora man<strong>da</strong>do ao Norte. Cheio de coragem<br />

e de confiança em Deus encetou suas grandes viagens pela Europa em<br />

procura de lugares para a queri<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, de campos de ativi<strong>da</strong>de para<br />

seus filhos espirituais; o seu desejo imediato era encontrar uma residência espaçosa<br />

e vasta para acomo<strong>da</strong>r os noviços, e outra não menor para os estu<strong>da</strong>ntes<br />

de filosofia e teologia; assim a <strong>Congregação</strong> poderia desenvolver-se e ramificar-se<br />

na Europa para regenerar a socie<strong>da</strong>de tão decaí<strong>da</strong>, levantar o espírito<br />

de fé e arrebanhar as almas para o grêmio <strong>da</strong> Santa Igreja, fora <strong>da</strong> qual não há<br />

salvação. Mas para onde ir? Onde teria ele esperança de ver seus trabalhos<br />

coroados de êxito? Certamente não podia contar com o norte <strong>da</strong> Alemanha,<br />

com a Inglaterra etc. onde tudo estava eivado de protestantismo; esses países<br />

deveriam ser missionados, porém só mais tarde, quando a <strong>Congregação</strong> tivesse<br />

já conseguido firmeza e garantias de existência em outras partes. As suas<br />

vistas dirigiram-se, em primeiro lugar, para os países católicos no sul <strong>da</strong> Alemanha<br />

e na Suíça. Deus, porém, em seus planos divinos dispôs que as primeiras<br />

tentativas de fun<strong>da</strong>ção se fizessem na Curlândia, para onde já desde o princípio,<br />

teria ido <strong>Clemente</strong> com seu companheiro P. Thadeu Hübl, se o Núncio Apostólico<br />

não o tivesse detido em Varsóvia, ain<strong>da</strong> mais que a Curlândia acabava de<br />

ser incorpora<strong>da</strong> à Rússia em virtude do terceiro desmembramento <strong>da</strong> Polônia.<br />

No princípio S. <strong>Clemente</strong> mostrou-se indeciso e um tanto sem vontade de aceitar<br />

essa fun<strong>da</strong>ção, apesar dos pedidos reiterados do bispo <strong>da</strong> Curlândia, que<br />

lhe punha ante os olhos a grande falta de padres na sua diocese, pois que <strong>da</strong>s<br />

quarenta e duas paróquias alemãs quase to<strong>da</strong>s estavam vagas, enquanto que<br />

nas outras provi<strong>da</strong>s os vigários já eram de i<strong>da</strong>de muito avança<strong>da</strong>. O Superior<br />

Geral, Pe. Blasucci, veio tirar-lhe to<strong>da</strong> a dúvi<strong>da</strong> mostrando-lhe numa carta ser a


vontade divina que se fun<strong>da</strong>ssem residências no Norte, ain<strong>da</strong> mais que ele<br />

esperava <strong>da</strong> Curlândia inúmeras conversões. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> destacou para essa<br />

missão dois padres e um clérigo, que se dirigiram a Mitau, capital <strong>da</strong> Curlândia,<br />

e tomaram por residência o antigo convento dos padres jesuítas; poucos anos<br />

depois fundou ain<strong>da</strong> as residências de Radzynim e de Lutkowka, e mais outras<br />

teria aceito, se não fossem tão maus os tempos, porquanto se achava pronto a<br />

fazer o bem onde quer que fosse, mesmo nos países mais longínquos. De Mitau<br />

não tar<strong>da</strong>ram a chegar as mais consoladoras notícias sobre a ativi<strong>da</strong>de dos<br />

padres e sobre o resultado obtido; os padres conseguiram cativar o povo, que<br />

neles depositava inteira confiança; os próprios luteranos, vindos de longe, iam<br />

receber a bênção dos missionários. Tudo isso fez com que S. <strong>Clemente</strong> se comprometesse,<br />

por um contrato, a enviar para lá mais sete padres, contanto que o<br />

aumento dos Redentoristas em Varsóvia correspondesse a seus cálculos; desejava<br />

que Mitau fosse para o Norte e que S. Beno era para Varsóvia e para a<br />

Polônia.<br />

Já em 1792 um nobre cavalheiro fôra <strong>da</strong> Suíça a Varsóvia para pedir a S.<br />

<strong>Clemente</strong> que se dignasse fun<strong>da</strong>r em sua Pátria uma residência, expondo-lhe<br />

as belezas <strong>da</strong> Suíça e mais ain<strong>da</strong> o abandono em que se achava o povo sedento<br />

de ouvir, naqueles regiões, a palavra de Deus; por absoluta falta de pessoal<br />

teve S. <strong>Clemente</strong> de indeferir, embora muito contra a vontade, o pedido do nobre<br />

senhor; essa oferta, porém, tanto o impressionou que não lhe saiu mais <strong>da</strong><br />

lembrança. Três anos mais tarde o convento de Varsóvia contava já maior número<br />

de religiosos. Um belo dia <strong>Clemente</strong>, havendo descido do púlpito, dirigiase<br />

à sacristia a fim de paramentar-se para o santo Sacrifício, quando recebeu<br />

de alguém uma carta; termina<strong>da</strong> a missa pôs-se o Santo a ler a escrita assina<strong>da</strong><br />

por um cônego Lin<strong>da</strong>u na Alemanha, a pedir-lhe que se lembrasse <strong>da</strong> Suabia<br />

com a fun<strong>da</strong>ção de um convento, e a prometer auxiliá-lo nos primeiros anos.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> viu nisso o dedo <strong>da</strong> Providência e alegrou-se com o antegozo <strong>da</strong><br />

realização de seus mais lisonjeiros intentos; iria encontrar um convento para<br />

seus noviços e assim garantir a existência dos Redentoristas além dos Alpes. S.<br />

Beno teria que sofrer, provisoriamente, com a per<strong>da</strong> dos padres, dos quais dois<br />

já tinha ido ao Norte e agora mais quatro sairiam em procura de novas casas,<br />

pois que também de Constança tinha chegado insistente pedido para uma nova<br />

fun<strong>da</strong>ção. Os três que deviam ficar em Varsóvia, porém, eram fortes e corajosos,<br />

podendo com facili<strong>da</strong>de desempenhar-se do serviço <strong>da</strong> Igreja já bem organizado<br />

e consoli<strong>da</strong>do. <strong>Clemente</strong> toma o bordão do vian<strong>da</strong>nte, apronta a sua<br />

pequena mala, e tendo por companheiro o Pe. Thadeu Hübl, diz adeus aos que<br />

ficavam, e depois dos paternais conselhos e necessárias recomen<strong>da</strong>ções põese<br />

a caminho para a bela Suíça. A Europa achava-se então mais ou menos<br />

tranqüila; a França e a Prússia acabavam de entrar em acordo em Basiléia e a<br />

Áustria estava já entabolando as negociações para a paz. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> aproveitou<br />

nessa ocasião o ensejo de cumprir o voto feito a S. João Nepomuceno no<br />

assédio de Varsóvia. Em Praga permaneceu nove dias em visita ao túmulo do<br />

grande Taumaturgo e às relíquias dos célebres Santos Padroeiros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de:<br />

<strong>São</strong> Norberto, Sta. Ludmila, <strong>São</strong> Wenceslau e <strong>São</strong> Vito; de lá dirigiu-se a Lin<strong>da</strong>u<br />

passando por Ratisbona. As suas esperanças, porém, foram bal<strong>da</strong><strong>da</strong>s; não conseguiu<br />

na<strong>da</strong> por causa <strong>da</strong> revolução que acabava de rebentar outra vez; levou<br />

25<br />

somente para casa a mais viva impressão <strong>da</strong>s necessi<strong>da</strong>des espirituais do povo<br />

e o desejo, ain<strong>da</strong> mais ardente, de socorrer os infelizes. Em uma carta ao Superior<br />

Geral escreve: “Entre os católicos do Norte é grande a fome do pão <strong>da</strong><br />

palavra divina a distribuir-se pelos operários evangélicos; o estado em que se<br />

acham as igrejas é mais triste do que se possa crer; em to<strong>da</strong> a parte reina<br />

incalculável ignorância a respeito <strong>da</strong>s mais importantes ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> salvação.<br />

Na Boêmia é tão sensível a falta de sacerdotes, que muitas paróquias estão<br />

desprovi<strong>da</strong>s de vigários, os quais, em os dias santificados, devem ir de um lugar<br />

para o outro afim de celebrar a santa missa; os escân<strong>da</strong>los estão na ordem do<br />

dia e não há quem lhes possa <strong>da</strong>r remédio; em todos os lados há falta de fé e os<br />

inimigos <strong>da</strong> religião difundem os erros <strong>da</strong> heresia, não havendo que os possa<br />

rebater”.<br />

Na volta de Lin<strong>da</strong>u visitou Viena, que já não vira há mais de nove anos.<br />

Francisco II, católico fervoroso, inimigo dos “iluminados” governava a Áustria;<br />

mas o espírito josefino, que tudo perturbara, dirigia a burocracia; aos bispos<br />

continuava ain<strong>da</strong> proibi<strong>da</strong> to<strong>da</strong> e qualquer influência na formação dos teólogos,<br />

e nas preleções <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des ensinavam-se os princípios falsos e heréticos<br />

do josefismo. S. <strong>Clemente</strong>, pois, não podia pensar em fazer tentativas <strong>da</strong><br />

fun<strong>da</strong>ção na Áustria. Felizmente não faltavam homens de talento, peso e nobreza<br />

que quisessem levantar o espírito <strong>da</strong> época. Diversos desses sacerdotes<br />

distintos trabalhavam em Viena para a regeneração religiosa do povo, porém,<br />

sempre às ocultas e com medo <strong>da</strong>s perseguições; faziam, entretanto, constantemente<br />

suas conferências pela restauração <strong>da</strong> fé e empenhavam-se na difusão<br />

de livros católicos e morais. Nos poucos dias que S. <strong>Clemente</strong> lá esteve,<br />

relacionou-se com esses sacerdotes, aumentando assim seus conhecimentos<br />

e deixando em tão distintos ministros de Deus a mais indelével e a melhor<br />

impressão, como veremos mais tarde. Não havia entre eles quem não reconhecesse<br />

em <strong>Clemente</strong> um homem superior, pois que de outra forma não se poderia<br />

explicar como um religioso sem nome, sem fortuna, sem distinção de família<br />

e sem maiores sucessos conhecidos, pudesse exercer tanta atração e força<br />

sobre aqueles espíritos inteligentes e experimentados <strong>da</strong> grande Capital.<br />

Por Tasswitz, sua ci<strong>da</strong>de natal, dirigiu-se para Varsóvia acompanhado de<br />

quatro meninos que pediram a admissão no colégio de S. Beno; depois de três<br />

meses de ausência <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e Pe. Thadeu Hübl chegaram a Varsóvia em<br />

meados de dezembro.<br />

Entretanto, na Curlândia as coisas não corriam na<strong>da</strong> bem; o novo governo<br />

começava a imiscuir-se nos negócios <strong>da</strong> Igreja. Os padres podiam, sim, trabalhar<br />

e desenvolver sua ativi<strong>da</strong>de, mas a comunicação com os Superiores tornara-se-lhes<br />

quase impossível. De outro lado, em Roma não compreendiam bem<br />

as intenções de S. <strong>Clemente</strong> em seus novos empreendimentos. Fun<strong>da</strong>r casas<br />

em tantos lugares ao mesmo tempo parecia exagero aos Superiores de Roma,<br />

que viam, em tudo isto, possível enfado de Varsóvia, ou sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Pátria<br />

austríaca por parte de <strong>Clemente</strong> e seus companheiros. Em uma longa carta<br />

explica <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> as suas intenções, manifesta a vontade que sempre nutrira<br />

de morrer, talvez, em Roma junto dos caros confrades, e declara ser o<br />

desejo do seu coração em todos esses trabalhos, empreendimentos e viagens,<br />

abrir novos horizontes para a <strong>Congregação</strong>. Corrigindo, com alguma ironia, o


pouco conhecimento de geografia lá em Roma, acrescenta, fazendo alusão às<br />

palavras do Superior Geral, i.é que ele desejava ir à Suíça por amor à Pátria: “A<br />

Suíça dista <strong>da</strong> minha terra mais ou menos como Roma dista <strong>da</strong> Suíça”.<br />

A Suíça pairava-lhe constantemente aos olhos como o país <strong>da</strong>s suas esperanças;<br />

de fato não tardou a vir nesse sentido, mais um convite por intermédio<br />

do Embaixador de Varsóvia; <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> despachou-o com as melhores esperanças.<br />

Preparava-se já para enviar reforço à Curlândia, onde os padres arcavam<br />

sob o peso dos trabalhos apostólicos quando, num só dia, vê morrer três<br />

de seus padres mais novos e três dias depois o quarto, talvez em conseqüência<br />

de algum envenenamento. O choque foi tremendo. Ficando a comuni<strong>da</strong>de reduzi<strong>da</strong><br />

à metade, S. <strong>Clemente</strong> não podia já pensar na Curlândia e muito menos na<br />

Suíça. Deus, porém, não abandonou seu Servo; uma semana antes <strong>da</strong>quela<br />

morte inespera<strong>da</strong>, a Providência man<strong>da</strong>ra-lhe quatro noviços franceses de vastos<br />

e profundos conhecimentos; Passerat, Lenoir, Vannelet e Mercier, que durante<br />

a revolução havia fugido de sua terra para completar os estudos na Alemanha;<br />

ao rebentar a guerra de 1795, não se sentindo seguros lá, passaram a<br />

Varsóvia, onde, depois de breve noviciado na <strong>Congregação</strong>, fizeram a profissão<br />

religiosa no dia de Sto. Estanislau Kostka. Dentre eles destaca-se o Pe. José<br />

Constantino Passerat que teve um papel sobremaneira saliente na vi<strong>da</strong> do nosso<br />

Santo, como veremos mais adiante. Em fins de 1796 S. Beno contava três<br />

padres, catorze clérigos professores, quatro noviços e dois aspirantes. S. <strong>Clemente</strong><br />

estava satisfeito com a sua comuni<strong>da</strong>de, mormente com o Pe. Passerat,<br />

em quem notara disposição declara<strong>da</strong> para uma perfeição não comum.<br />

Em abril de 1797 Napoleão assinou os preliminares <strong>da</strong> paz com a Áustria.<br />

No Sul, pois, o caminho estava aberto: era necessário aproveitar a ocasião.<br />

<strong>Clemente</strong> toma, pela segun<strong>da</strong> vez, o bordão do vian<strong>da</strong>nte e parte para o Oeste;<br />

as coisas porém tornaram-se ain<strong>da</strong> piores que dois anos atrás; a revolução<br />

francesa precipitara-se, qual furacão violento, contra o Este ameaçando subverter<br />

a ordem em to<strong>da</strong> a Europa. Não sabemos, se <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, desta vez,<br />

chegou até a Suíça; o certo é, que ele esteve em Ratisbona em visita ao santo<br />

bispo Wittmann e também na Áustria, onde ain<strong>da</strong> medrava o josefismo. A Áustria<br />

pôs-se em guerra com Napoleão que marchara <strong>da</strong> Itália contra Viena. Não<br />

era, pois, tempo de fun<strong>da</strong>r conventos. Entretanto a viagem não foi totalmente<br />

perdi<strong>da</strong> para ele nem para a <strong>Congregação</strong>, porque teve outra vez o prazer de<br />

visitar sua irmã e as alegres crianças bem como seu irmão em Bratelsbrunn,<br />

donde levou seu sobrinho Francisco <strong>Hofbauer</strong>, que se tornou um santo<br />

Redentorista, vindo a falecer em Altötting, na Baviera, em 1845.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não deixou de ficar sentido com o fracasso dessa sua segun<strong>da</strong><br />

excursão, que não teve melhor êxito que a primeira. Como recompensa,<br />

porém, <strong>da</strong> boa vontade de seu Servo, quis Deus conceder-lhe as alegrias inocentes<br />

e santas do seu convento. Ao chegar em casa edificou-se com o movimento<br />

sempre crescente na igreja; as crianças <strong>da</strong> escola, cheias de sau<strong>da</strong>des<br />

do seu benfeitor e pai, rodearam-no e fizeram-lhe festa; a casa de estudos progredia<br />

também admiravelmente, de sorte que até de longe iam estu<strong>da</strong>ntes a<br />

Varsóvia para se aperfeiçoar na teologia em S. Beno. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> pode escrever<br />

a Roma: “O governo prussiano vê com bons olhos os que se dedicam à<br />

educação <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de, e por isso muitos nos favorece preferindo a nossa es-<br />

26<br />

cola a to<strong>da</strong>s as outras”. Tudo parecia correr de vento em popa para os<br />

Redentoristas em S. Beno — quando em Berlim nuvens negras se preparavam,<br />

às ocultas, para se precipitar contra o convento de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>. Já em 1796 o<br />

governo proibira a to<strong>da</strong>s as Congregações e Ordens religiosas admitir noviços<br />

à profissão sem a sua alta licença; três anos mais tarde, em 1799, apareceu<br />

nova proibição de abraçar a vi<strong>da</strong> religiosa aos jovens que não tivessem ain<strong>da</strong><br />

feito o serviço militar, ou que ain<strong>da</strong> não houvessem completado 24 anos, e isso<br />

mesmo com a licença do governo; a ninguém era permitido comunicar-se com<br />

Roma, sob as mais severas penas; os noviços não podiam usar o hábito religioso;<br />

durante o noviciado em vez de livros de pie<strong>da</strong>de deviam <strong>da</strong>r-se aos noviços<br />

obras científicas, obrigá-los a compor trechos de literatura em polaco e<br />

alemão, e dedicar-se ao estudo <strong>da</strong> álgebra, geometria, desenho, história natural,<br />

física, tecnologia e pe<strong>da</strong>gogia teórica e prática; terminado o noviciado, farse-iam<br />

dois exames diante de examinadores protestantes: o primeiro, antes <strong>da</strong><br />

profissão religiosa, o segundo, antes <strong>da</strong> ordenação que não podia ser feita senão<br />

por bispos alemães, quando se tratava de alunos germanos. Para a fiscalização<br />

do cumprimento dessa lei constituiu-se, em to<strong>da</strong> a parte, uma Comissão<br />

de conselheiros; os de Varsóvia professavam todos o protestantismo e tinham<br />

por presidente um homem detestável, inimigo fi<strong>da</strong>lgal dos conventos. Além disso<br />

o governo proibiu protrair as rezas para além <strong>da</strong>s 18 horas, sendo apenas<br />

permitido deixar aberta a igreja até às 20 horas, porém só de 1 de maio a 1 de<br />

outubro. Isso era naturalmente a morte de S. Beno e <strong>da</strong> florescente fun<strong>da</strong>ção<br />

redentorista.<br />

S. <strong>Clemente</strong> man<strong>da</strong>ra vir a Varsóvia uma belíssima imagem <strong>da</strong> Ssma. Virgem,<br />

que queria colocar na igreja com a maior soleni<strong>da</strong>de e o maior concurso<br />

do povo. Esse desejo foi considerado um crime; o governo protestou, mandou<br />

chamar o Superior do convento, que não se deixou to<strong>da</strong>via amedrontar. Considerando<br />

que em coisas de religião na<strong>da</strong> tinha que perguntar a protestantes,<br />

<strong>Clemente</strong> esperou, à noite, o povo ausentar-se <strong>da</strong> igreja, e ocultamente colocou<br />

a imagem no lugar preparado; no dia seguinte foi grande o contentamento dos<br />

católicos, quando viram a belíssima imagem <strong>da</strong> Virgem sobre o altar, porém,<br />

não menor a indignação do governo. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> foi citado perante o consistório<br />

episcopal protestante, onde relatou o fato sem mais graves conseqüências. O<br />

Servo de Deus percebeu que as coisas iam de mal a pior e temia, não sem motivo,<br />

que o expulsassem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de; revestiu-se de to<strong>da</strong> a prudência e soube tentear os<br />

negócios com tal diplomacia, que na<strong>da</strong> sucedeu de desagradável à igreja dos<br />

Redentoristas durante todo o tempo, que Varsóvia esteve debaixo do poder prussiano,<br />

não deixando, porém, nunca de defender os direitos sacrossantos <strong>da</strong> Igreja com<br />

franqueza e energia apostólica. Tal modo de vi<strong>da</strong>, porém, não agra<strong>da</strong>va na<strong>da</strong> a<br />

<strong>Clemente</strong>, inimigo <strong>da</strong> guerra, onde na<strong>da</strong> medra nem prospera; suspirava por um<br />

lugar seguro, onde pudesse ver seus noviços tranqüilos e sossegados; não o encontrando<br />

no Norte, lembrou-se <strong>da</strong> Itália, mas infelizmente lá também a coisa não<br />

ia bem. Foi necessário curvar-se ante a mão de Deus e adorar os juízos do Eterno.<br />

Nesse interim os padres <strong>da</strong> Curlândia receberam de Roma a dispensa dos votos.<br />

Antes de encetarmos a narração <strong>da</strong> terceira viagem de fun<strong>da</strong>ção, lancemos<br />

um olhar para os trabalhos do Santo em Varsóvia nesse lapso de tempo.


CAPÍTULO IV<br />

Os anos de 1798 a 1802<br />

Os trabalhos do Santo — Uma cura curiosa — Conversões numerosas —<br />

A congregação dos Oblatos — Três missões em regra — Os padres de S. Beno<br />

— Date et <strong>da</strong>bitur — Isto foi para mim... — O Pe. Passerat — A direção do<br />

Seminário — Escolas paroquiais — Desinteligências e explicações — Os livre<br />

pensadores em ação — S. Beno hostilizado.<br />

De 1798 a 1802 S. Beno tinha atingido ao apogeu <strong>da</strong> grandeza e desenvolvimento.<br />

Achando-se em casa, era S. <strong>Clemente</strong> que tomava sobre si todo o<br />

peso do trabalho; desejava excitar os outros padres ao trabalho apostólico mais<br />

pelo exemplo do que por palavras. Verba movent, exempla trahunt. Uma senhora<br />

<strong>da</strong> alta nobreza polaca, quando já avança<strong>da</strong> em anos, escreveu o seguinte<br />

juízo sobre S. <strong>Clemente</strong>: “Parece-me ter sempre antes os olhos aquele sacerdote<br />

venerando em sua atitude tão nobre e cheia de digni<strong>da</strong>de, e entretanto tão<br />

simples; ele irradiava sempre alegria ao derredor de si; suas palestras eram<br />

chans não usando nelas palavras rebusca<strong>da</strong>s, mas traíam sempre a grandeza<br />

de espírito e inspiravam imediatamente confiança; seu grande amor para com<br />

Jesus Cristo transluzia em to<strong>da</strong>s as suas ações... de seus olhos percebia-se a<br />

pureza do seu coração e a paz íntima <strong>da</strong> sua alma... ele afadigava-se sem<br />

conhecer descanso”. E realmente S. <strong>Clemente</strong> era incansável. Não raras vezes,<br />

<strong>da</strong> cozinha onde estava a remediar os poucos conhecimentos culinários do<br />

Irmão Manoel, no caso de alguma visita mais nobre, ia ao confessionário ou,<br />

tirando o avental, subia do fogão ao púlpito. Era sempre ele que celebrava todos<br />

os dias a última missa canta<strong>da</strong> e pregava os sermão principal; por assunto <strong>da</strong><br />

pregação costumava tomar a epístola do último domingo, <strong>da</strong> qual só explicava<br />

dois ou três versículos, porém com tal clareza que sobre o tema não restava<br />

dúvi<strong>da</strong> alguma por resolver nos ouvintes. Por vezes ele mesmo apostrofava, do<br />

púlpito, os alunos <strong>da</strong> escola e os estu<strong>da</strong>ntes para assim manter sempre viva a<br />

atenção; louvava os aplicados e censurava os preguiçosos. Como se vê, era<br />

tudo isso muito familiar.<br />

Diversos conventos de religiosas queriam-no para Diretor espiritual, v. g. as<br />

Beneditinas, Visitandinas, Carmelitas etc. O confessor ordinário dessas últimas<br />

era o Pe. Podgorski; às vezes, porém, era necessário que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, o<br />

próprio Vigário Geral, interviesse no caso. Assim estando uma vez o Pe. Podgorski<br />

quase desesperado com os escrúpulos de uma <strong>da</strong>s Irmãs, por nome Josefa,<br />

mandou chamar o Vigário Geral, que logo apareceu e citou a Irmã escrupulosa.<br />

Vendo-a tão abati<strong>da</strong>, as faces encova<strong>da</strong>s e a nervosia estampa<strong>da</strong> no rosto,<br />

disse sorrindo. “A Irmã coma muita galinha e durma bastante, que os escrúpu-<br />

27<br />

los desaparecerão”. A pobrezinha corou-se, mas sarou completamente em corpo<br />

e alma, vindo a exercer, diversas vezes, o cargo de Superiora antes <strong>da</strong> morte,<br />

que só a levou depois de muitos anos de vi<strong>da</strong> religiosa, estando ela em i<strong>da</strong>de<br />

bem avança<strong>da</strong>.<br />

Os convertidos <strong>da</strong>vam muito trabalho aos padres; atraídos pela beleza <strong>da</strong><br />

música, os protestantes também freqüentavam a igreja dos Redentoristas, e<br />

não poucos se converteram ouvindo os sermões cheios de unção e erudição do<br />

nosso Santo. Inúmeros judeus também se apresentaram pedindo o batismo;<br />

antes porém de renascerem pelas águas lustrais eram preparados pelo Pe.<br />

Lenoir, versado em to<strong>da</strong>s as línguas orientais e conhecedor profundo do Talmud.<br />

Uma ou outra dessas conversões ju<strong>da</strong>icas não eram sinceras, mas sim motiva<strong>da</strong>s<br />

pelo interesse; os judeus, odiados pelos católicos, deixavam-se batizar para<br />

o aumento <strong>da</strong> freguesia, continuando to<strong>da</strong>via em as práticas do ju<strong>da</strong>ísmo. É por<br />

isso que algumas vezes S. <strong>Clemente</strong> dizia a sorrir: “O judeu deveria ser afogado<br />

nas águas do Vistula logo após o batizado”. As conversões sinceras e duradouras<br />

eram tão numerosas, que foi necessário alugar um quarto na casa vizinha,<br />

para se ter mais comodi<strong>da</strong>de em instruir todos os que queriam abjurar a heresia.<br />

Nesse mesmo tempo S. <strong>Clemente</strong> dedicou-se ao aperfeiçoamento <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

dos Oblatos, que poucos anos antes instituíra, confeccionando os<br />

Estatuto que deveriam ser apresentados em Roma à aprovação <strong>da</strong> Santa Sé.<br />

Para a propagan<strong>da</strong> dessa obra santa serviu-se <strong>da</strong>s viagens pela Alemanha,<br />

Suíça, Áustria etc. O número de Oblatos não era grande, porque só se admitiam<br />

pessoas conheci<strong>da</strong>mente piedosas, almas de virtudes prova<strong>da</strong>s e acrisola<strong>da</strong>s.<br />

O noviciado devia durar um ano; a formula de profissão continha juramento de<br />

fideli<strong>da</strong>de irrevogável à Santa Sé e a promessa de “edificar, quanto possível, o<br />

próximo com bons exemplos, desviá-lo dos princípios subversivos <strong>da</strong> época,<br />

difundir o conhecimento <strong>da</strong> Santa Igreja Romana, implantar os bons costumes,<br />

espalhar a leitura de livros bons e piedosos, de escritos segundo o Espírito de<br />

Jesus Cristo, e destruir nos corações o reinado <strong>da</strong> culpa”. O Oblato recebia um<br />

nome e o hábito <strong>da</strong> Ordem, que ele trazia somente em casa, para se lembrar<br />

constantemente do seu compromisso; os associados estavam debaixo <strong>da</strong>s ordens<br />

de um Diretor provincial, escolhendo-se um lugar determinado para as<br />

reuniões e as conferências. A direção suprema, porém, pertencia ao Vigário<br />

Geral dos Redentoristas.<br />

Desde 1800 podia S. <strong>Clemente</strong> dedicar-se às missões propriamente ditas,<br />

que são o escopo principal <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> Redentorista. Até então as circunstâncias<br />

tão desagradáveis, ocasiona<strong>da</strong>s pelas constantes guerras e revoluções<br />

e, não menos, pela má vontade dos governantes, não lhe permitiam pensar<br />

nisso; agora parecia viável esse apostolado <strong>da</strong> palavra. E de fato, em 1801<br />

foram prega<strong>da</strong>s três grandes missões: a primeira em uma <strong>da</strong>s matrizes de Varsóvia<br />

e as outras duas em ci<strong>da</strong>des do interior. Estas últimas estiveram ao cargo<br />

do Pe. Thadeu Hübl que saiu acompanhado de cinco missionários; uma delas<br />

durou quinze dias e a outra trinta, ambas com o mais estupendo resultado: mais<br />

de onze mil pessoas, em ca<strong>da</strong> uma delas, receberam os santos sacramentos<br />

<strong>da</strong> confissão e <strong>da</strong> comunhão. Em uma carta ao Superior Geral, descreve <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> uma dessas missões, acrescentando que o maior adversários <strong>da</strong>


missão fora justamente o vigário <strong>da</strong> paróquia, o qual porém, ao ouvir o primeiro<br />

sermão <strong>da</strong> tarde, sentiu-se tão comovido que, não podendo já conter-se, dirigiu-se<br />

ao quarto dos missionários, caiu de joelhos a seus pés abraçando-os e<br />

chorando sem poder falar durante um quarto de hora. Desde então pregaramse<br />

diversas missões, no sul <strong>da</strong> Prússia, ao povo ávido de ouvir a palavra divina.<br />

Mesmo então eram as missões apenas uma ocupação secundária devido às<br />

circunstâncias, à grande falta de sacerdotes, à absorção <strong>da</strong>s forças em S. Beno,<br />

e a preocupação principal de difundir e consoli<strong>da</strong>r a <strong>Congregação</strong> Redentorista<br />

além dos Alpes. Os grandes oradores que emocionavam o povo e arrancavam<br />

lágrimas às massas, fazendo encher, à cunha, a Igreja de S. Beno, eram os<br />

padres Podgorski e Blumenau; o Pe. Thadeu Hübl pregava menos, mas era o<br />

mais procurado no confessionário, mormente pelos nobres e pelos prelados; na<br />

cúria metropolitana de Varsóvia era ele uma autori<strong>da</strong>de em questões teológicas;<br />

dos doze examinadores sino<strong>da</strong>is era ele o mais temido dos estu<strong>da</strong>ntes,<br />

que lhe deram o apelido de “Hobl”, i. é plaina; falava corretamente sete línguas<br />

e para o uso dos seus alunos compôs tratados de lógica e metafísica. O seu<br />

temperamento grave, porém bondoso e serviçal, valeu-lhe o nome “mãe <strong>da</strong><br />

<strong>Congregação</strong>”. Em caso de questões com o governo, <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, temendo<br />

seu temperamento sangüíneo e irascível, confiava o negócio à prudência do Pe.<br />

Thadeu Hübl.<br />

A parte material do convento era administra<strong>da</strong> pelo Pe. Jestersheim, que,<br />

como ótimo cantor, regia o coro <strong>da</strong> Igreja de S. Beno. Por força <strong>da</strong>s circunstâncias<br />

era necessário fazer então as maiores economias. O ministro tinha mão<br />

firme e passava por ser um administrador econômico; era, pois, o homem em<br />

seu posto certo — como dizem os ingleses — porque as ren<strong>da</strong>s <strong>da</strong> casa não<br />

cresciam e a caixa estava quase sempre vazia. Não poucas vezes ele, um tanto<br />

contrariado, chamou a atenção do Vigário Geral, que abria demais as mãos<br />

para beneficiar os pobres; <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, porém, abran<strong>da</strong>va-o sempre com estas<br />

palavras, que bem mostram a confiança ilimita<strong>da</strong> que depositava na Providência.<br />

“Date et <strong>da</strong>bitur (<strong>da</strong>r e receber) são duas irmãs”, isto é, se derdes esmolas,<br />

recebereis outras, essas irmãs dão-se muito e não querem estar separa<strong>da</strong>s. E<br />

de fato, embora a caixa do convento tivesse estado muitas vezes vazia, a Providência<br />

nunca deixou de socorrer os Redentoristas de Varsóvia. Em favor dos<br />

órfãos e dos outros meninos pobres ia ele, em pessoa, pedir esmola de casa<br />

em casa, expondo-se a vexames e humilhações de to<strong>da</strong> a sorte; isso porém ele<br />

fazia com gosto e santa alegria em espírito de humil<strong>da</strong>de sacrificando-se para o<br />

bem <strong>da</strong>s criancinhas, <strong>da</strong>s quais mais tarde dependeria, em parte, a regeneração<br />

social <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e a conservação do espírito de fé. Foi numa dessas ocasiões<br />

que ele deu um exemplo admirável de mansidão e paciência. Saiu a esmolar,<br />

quando observou que no balcão de uma casa de negócios reinava extraordinária<br />

alegria; vendo tanta gente reuni<strong>da</strong> sentiu-se no direito de esperar copiosa<br />

esmola. Se um der, pensava ele, os outros por coleguismo ou outros motivos,<br />

não poderão negar. Devagar entrou e aproximou-se do lado, onde estavam sentados<br />

muitos senhores que pelo traje pareciam bastante ricos; chegou-se a um<br />

deles e delica<strong>da</strong>mente pediu uma esmola para os seus órfãos. O homem que<br />

estava disposto a tudo, menos a <strong>da</strong>r esmolas, e que não era na<strong>da</strong> amigo de<br />

batinas, irritou-se com o pedido, levantou-se espumando de raiva, as veias a<br />

28<br />

saltar-lhe do corpo, cobriu de injúrias o pobre do padre lançando-lhe em rosto<br />

que ele não deveria começar coisa alguma, muito menos um orfanato, não tendo<br />

meios para isso. <strong>Clemente</strong> ouvia tudo aquilo com calma e tranqüili<strong>da</strong>de; o<br />

homem porém, na medi<strong>da</strong> que falava, se enchia de cólera e mais se exaltava:<br />

esgotado afinal o vasto repertório de palavras injuriosas, enche a boca e escarra<br />

vergonhosamente no rosto do Santo, o qual com a maior tranqüili<strong>da</strong>de de<br />

espírito toma o lenço, passa-o pela face, dizendo em segui<strong>da</strong> ao homem: “Isto<br />

foi para mim; agora dê alguma coisa para os meus orfãozinhos”. Essa palavra<br />

tão humilde e tão mansa foi como água na fervura. Não houve entre aqueles<br />

senhores quem não admirasse tão heróica virtude; o próprio senhor, que tanto<br />

se enraivecera, sentiu-se comovido, arrependeu-se, pediu perdão e entregou a<br />

S. <strong>Clemente</strong> uma avulta<strong>da</strong> soma para os seus orfãozinhos. A conversão desse<br />

senhor foi sincera; ele tornou-se um católico fervoroso e um grande benfeitor<br />

dos órfãos e <strong>da</strong>s demais obras caritativas de S. <strong>Clemente</strong>.<br />

Não pequeno serviço prestava a comuni<strong>da</strong>de o grande Pe. José Passerat;<br />

os sete anos passados na formação dos noviços foram para ele a esca<strong>da</strong> por<br />

onde subiu às alturas <strong>da</strong> perfeição na vi<strong>da</strong> interior; era homem <strong>da</strong> oração, digno<br />

imitador de seu pai espiritual Santo Afonso com razão intitulado o grande Doutor<br />

<strong>da</strong> Oração, porque ninguém como ele soube inculcar tanto o valor e a necessi<strong>da</strong>de<br />

dela para a salvação. O Pe. Passerat não cessava de fazer de seus<br />

noviços outros tantos mestres <strong>da</strong> oração. “O primeiro meio, dizia ele, para progredir<br />

na perfeição é a oração, o segundo, o terceiro, o quarto, o décimo, o<br />

centésimo meio é outra vez a oração”. O Vigário Geral não poucas vezes fê-lo<br />

<strong>da</strong>r a seus noviços o mais heróico exemplo de humil<strong>da</strong>de. O seguinte fato é a<br />

prova evidente do espírito de abnegação e humil<strong>da</strong>de que reinava no noviciado<br />

de <strong>São</strong> Beno. Um dia o Pe. Passerat querendo provar a vocação de um de seus<br />

noviços, mandou-lhe conservar-se de joelhos à porta <strong>da</strong> igreja, do lado de fora,<br />

até segun<strong>da</strong> ordem. Entretanto Passerat esquecendo-se inteiramente de seu<br />

noviço que tinha sido posto em provação; à noite, achando falta nele, correu à<br />

igreja e encontrou o pobre noviço ajoelhado como lhe tinha sido man<strong>da</strong>do desde<br />

a manhã; Pe. Passerat abraçou-o e pediu-lhe perdão com a maior humil<strong>da</strong>de.<br />

Deus quis purificar seu servo Passerat com grandes provações interiores.<br />

Era ele um francês nobre e de coração grande; abandonara tudo e queria só<br />

viver para Deus, mas o amor <strong>da</strong> idolatra<strong>da</strong> Pátria e <strong>da</strong> família era-lhe uma ver<strong>da</strong>deira<br />

tortura. Filho único de sua mãe, que vivia tão distante, tinha sau<strong>da</strong>des<br />

dela e sabia que a progenitora ardia em desejo de vê-lo ao menos uma vez<br />

antes <strong>da</strong> morte, mas não conseguiu obter licença, porque a Regra dos<br />

Redentoristas proíbe a todos a visita à casa paterna, a não ser em caso de<br />

perigo de vi<strong>da</strong> para o pai ou para a mãe. Pe. Passerat consumou o sacrifício,<br />

curvando-se ao peso <strong>da</strong> cruz.<br />

Não obstante todo o esforço de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> em contrário, <strong>São</strong> Beno<br />

continuava ain<strong>da</strong> a ser a casa dos estudos. Os padres franceses que se distinguiam<br />

por uma instrução vasta e profun<strong>da</strong> foram incumbidos <strong>da</strong> formação intelectual<br />

dos clérigos. Afim de que os estu<strong>da</strong>ntes aprendessem praticamente a<br />

aparecer em público e a se desenvolver no exercício <strong>da</strong> linguagem, <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

designava-os, de vez em quando, para diversos ofícios na igreja v. g.<br />

explicar as estações <strong>da</strong> Via Sacra, o Catecismo, o modo de fazer o exame de


consciência etc.<br />

Em 1800 os Redentoristas de S. Beno aceitaram a direção de um seminário<br />

de clérigos seculares. Com a supressão <strong>da</strong> Companhia de Jesus em muitos<br />

seminários ficaram desprovidos de professores; eis porque muitos seminaristas<br />

de fora iam a Varsóvia para lá continuarem seus estudos; e não poucos dentre<br />

eles tornaram-se, mais tarde fervorosos Redentoristas. Essa medi<strong>da</strong> extraordinária,<br />

toma<strong>da</strong> por <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, garantiu a subsistência ao convento de S.<br />

Beno sob o governo <strong>da</strong> Prússia, que timbrava em proteger todos os que se<br />

dedicavam à educação <strong>da</strong> infância e <strong>da</strong> moci<strong>da</strong>de. Também outras ordens religiosas,<br />

como, por exemplo, os Lazaristas 2 serviram-se desse estratagema para<br />

a manutenção do Instituto.<br />

A instrução na escola dos meninos pobres foi ministra<strong>da</strong> pelos padres somente<br />

nos primeiros anos; mais tarde o Superior Geral entregou esse serviço<br />

aos estu<strong>da</strong>ntes que pediam admissão na <strong>Congregação</strong>. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> considerava<br />

essas escolas não só como uma obra de cari<strong>da</strong>de para com os pobres,<br />

mas como um dos melhores meios de apostolado; e de fato na ci<strong>da</strong>de de Varsóvia<br />

na<strong>da</strong> menos de 700 crianças a saber 400 meninos e 300 meninas, recebiam<br />

sempre instrução e educação religiosa nessas escolas, preservando-se assim<br />

<strong>da</strong> corrupção geral que campeava impune na grande ci<strong>da</strong>de; durante a esta<strong>da</strong><br />

relativamente curta dos padres Redentoristas em Varsóvia na<strong>da</strong> menos de onze<br />

mil crianças passaram por essas escolas. Os prédios em que funcionavam as<br />

escolas eram naturalmente bem primitivos, sem luxo e sem as comodi<strong>da</strong>des<br />

que se requerem geralmente em semelhantes estabelecimentos; as paredes<br />

eram, em grande parte, de madeira. Isso porém não estranha porque o próprio<br />

convento dos padres era pobre e mais que modesto, o Vigário Geral e o Reitor<br />

<strong>da</strong> casa, residiam no mesmo quarto por falta de acomo<strong>da</strong>ções.<br />

É certo que Varsóvia nunca fora lugar apto para casa de noviços e estu<strong>da</strong>ntes;<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era o primeiro a reconhecê-lo, mas a necessi<strong>da</strong>de o constrangia.<br />

Quem acreditara, que Deus se serviria dessa circunstância para humilhar<br />

seu Servo e fazê-lo passar por momentos bem amargos!<br />

Nem todos os Redentoristas de Varsóvia estavam inteiramente de acordo<br />

com a ativi<strong>da</strong>de extraordinária e estafante, que nos primeiros anos de desenvolveu<br />

em S. Beno. — Os padres Passerat e Vannelet, almas <strong>da</strong><strong>da</strong>s à contemplação<br />

e ao recolhimento, não deixaram de estranhar esse moto contínuo na<br />

igreja e no convento, com o que achavam incompatível a observância <strong>da</strong> Regra<br />

que man<strong>da</strong> o recolhimento de espírito. Como bons religiosos e santos sacerdotes<br />

julgaram-se em consciência obrigados a relatar tudo ao Superior Geral em<br />

Roma. Monsenhor Litta, Núncio apostólico, ao voltar de S. Petesburgo a Roma,<br />

levou a carta de Passerat; embora o Núncio fosse um acérrimo e eloqüente<br />

defensor <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, o Superior Geral esteve mais propenso<br />

ao Pe. Passerat do que a Litta. Os trabalhos de Varsóvia eram realmente exagerados<br />

e contrários aos princípios na <strong>Congregação</strong> nas casas <strong>da</strong> Itália. O Capítulo<br />

Geral reunido em 1793 para a união <strong>da</strong>s duas partes <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, aboliu<br />

as permissões e resoluções de Scifelli que outorgara carta branca a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

no Norte, proibiu as escolas, os colégios e semelhantes trabalhos por<br />

serem contrários à letra e ao espírito <strong>da</strong> Regra; <strong>Clemente</strong> porém na<strong>da</strong> ouvira<br />

desse Capítulo, ou porque os Superiores de Roma se esqueceram de lho parti-<br />

29<br />

cipar, ou porque as cartas se extraviaram, o que não era coisa rara naqueles<br />

tempos. O Superior Geral, levando em conta e tomando em consideração a<br />

carta do Pe. Passerat, admoestou o Vigário Geral exigindo sossego e tranqüili<strong>da</strong>de<br />

para a casa dos noviços e dos estu<strong>da</strong>ntes, aconselhando apenas duas<br />

pregações por dia em vez <strong>da</strong>s cinco usuais, e lembrando-lhe a proibição de<br />

dirigir escolas, seminários etc. Às explicações de S. <strong>Clemente</strong>, que na sua carta<br />

acentuava a ignorância religiosa do povo, a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s escolas para a<br />

subsistência <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, o bem espiritual <strong>da</strong>s almas, o desejo e a ância<br />

do povo por ouvir a palavra divina, bem como a afirmação ver<strong>da</strong>deira de que os<br />

estudos não eram de modo algum negligenciados, visto serem os alunos<br />

redentoristas sempre os primeiros nos exames dos ordinários, pacificaram completamente<br />

o Superior Geral.<br />

Diversas desinteligências amarguraram bem o Vigário Geral, cujas intenções<br />

eram, sem dúvi<strong>da</strong>, as melhores possíveis. Deus permitiu esses dissabores<br />

para mais o conservar na humil<strong>da</strong>de e para acrisolar a sua virtude. Não há<br />

dúvi<strong>da</strong> de que bem grande era o perigo de uma cisão e separação do ramo<br />

transalpino <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, e se S. <strong>Clemente</strong> não tivesse sido um Superior de<br />

alta envergadura, tão prudente e tão afeiçoado à sua queri<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>,<br />

talvez fosse inevitável esse desfecho. Apesar <strong>da</strong> troca de cartas menos amistosas<br />

tanto de Roma como de S. Beno, não nos é lícito concluir que tenha havido<br />

estremecimento entre esses dois ramos vigorosos <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> Redentorista.<br />

Ninguém poderá estranhar que o Superior Geral, obedecendo a um dever sagrado,<br />

tenha tentado tudo para impedir qualquer transformação essencial e contrária<br />

à Regra nos conventos além dos Alpes. Se o Pe. Blasucci, Superior Geral,<br />

não se achasse já enfraquecido pela i<strong>da</strong>de e se os tempos calamitosos e incertos<br />

de então o permitissem, certamente o representante do Santo Fun<strong>da</strong>dor<br />

atravessaria os Alpes e iria em pessoa regularizar tudo segundo os seus desejos.<br />

Os padres <strong>da</strong> Itália interessavam-se vivamente pela <strong>Congregação</strong> transalpina<br />

e não poucas vezes se lembravam dela enviando sau<strong>da</strong>ções e cartas aos padres<br />

de <strong>São</strong> Beno. Assim, p. ex. escreve o Pe. Tannoia de Pagani ao Santo:<br />

“Quem nos dera asas para voarmos até ai e vos <strong>da</strong>rmos o amplexo do nosso<br />

amor e fraterni<strong>da</strong>de!” Esse grande biógrafo de Santo Afonso, acrescentou a<br />

essa biografia interessantes notícias sobre as casas de Varsóvia e Mitau: isso<br />

mostra o interesse com que os padres italianos acompanhavam o desenrolar<br />

<strong>da</strong> grande ativi<strong>da</strong>de apostólica dos Redentoristas, súditos do nosso Santo além<br />

dos Alpes.<br />

Teria sido realmente um ver<strong>da</strong>deiro desastre se S. <strong>Clemente</strong>, por causa<br />

dessas desinteligências tivesse abandonado a “missão continua<strong>da</strong>” de S. Beno.<br />

Ninguém podia desconhecer o grande bem que ela operava entre o povo e em<br />

to<strong>da</strong>s as ro<strong>da</strong>s e classes <strong>da</strong> população. Isto era mais uma prova de que S.<br />

<strong>Clemente</strong> não seguia apenas um capricho qualquer, mas que tinha em vista tão<br />

somente a maior glória de Deus e o bem <strong>da</strong>s almas. É ele mesmo quem declarou<br />

uma vez, que após os dez anos de trabalhos em Varsóvia lá se formou um<br />

número bem considerável de católicos, de ambos os sexos, que poderiam fazer<br />

honra aos cristãos do primeiro século <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong>de pelo brilho de to<strong>da</strong>s as<br />

virtudes.<br />

A prova mais evidente <strong>da</strong> conversão radical de muitos e <strong>da</strong> difusão cons-


tante do espírito haurido na Igreja de S. Beno, é o combate sempre crescente<br />

que contra os Redentoristas faziam os livre pensadores de Varsóvia, que se<br />

sentiam seriamente ameaçados em seu governo absoluto sobre a ci<strong>da</strong>de. Luz<br />

sobre a situação de então lança uma carta escrita por um oficial a seu amigo:<br />

“Imagine... há aqui uma Ordem, os Benonitas, quase todos alemães, que não<br />

obstante a grande aversão que todos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de sentem contra os germanos,<br />

têm conseguido com argúcia jesuítica fazer com que o povo os estime mais do<br />

que aos próprios sacerdotes nacionais, e esteja pronto a se deixar truci<strong>da</strong>r por<br />

eles. É certo que são trabalhadores, enquanto que alguns sacerdotes polacos<br />

são preguiçosos; são instruídos ao passo que os polacos são uns idiotas que<br />

an<strong>da</strong>m sempre bêbados; eles sabem prender o povo conservando a igreja aberta<br />

<strong>da</strong>s 6 horas <strong>da</strong> manhã às 9 <strong>da</strong> noite, cantando, pregando, incensando... possuem<br />

uma multidão de Irman<strong>da</strong>des de homens e de mulheres, tirados <strong>da</strong> mais<br />

baixa cama<strong>da</strong> popular, e servem-se <strong>da</strong>s confissões para terem maior influência...<br />

eu quisera oferecer 100 ducados a quem quebrasse o Crucifixo de S.<br />

Beno nas costas desses padrecos”. Quem isso escreveu foi o célebre Zacharias<br />

Werner, que dez anos depois deveria tornar-se um dos maiores e mais sinceros<br />

amigos de S. <strong>Clemente</strong> em Viena.<br />

Em 1800 S. <strong>Clemente</strong> mesmo escreve: “Os jacobinos espalham contra nós<br />

to<strong>da</strong> a sorte de invencionices injustas, somos escarnecidos nos teatros públicos,<br />

o próprio clero está contra nós, exceto o bispo e alguns cônegos, somos<br />

publicamente ameaçados com a forca”. Os inimigos usaram contra os<br />

Redentoristas todos os meios vis de combate, de que se costumam servir contra<br />

as Ordens religiosas em geral: escárnio, calúnia, ameaças. S. Beno foi apresentado<br />

por eles ao público como uma fonte de desordens e abusos para to<strong>da</strong><br />

a ci<strong>da</strong>de, como se os Redentoristas disseminassem a discórdia nas famílias;<br />

negligenciassem os deveres domésticos, roubassem as alfaias preciosas <strong>da</strong><br />

igreja, enviassem ladrões para expoliarem os bens <strong>da</strong> igreja etc. etc. Em plena<br />

rua eram os padres escarnecidos e, à tarde, muitas vezes esperados por pessoas<br />

arma<strong>da</strong>s de chicotes nas diversas esquinas, por onde tinham de passar.<br />

Nos dias do carnaval os Benonitas eram a fantasia predileta dos rapazes, que<br />

se vestiam dos paramentos litúrgicos para se tornarem mais engraçados. Os<br />

mais abjetos e indignos panfletos eram contra eles espalhados entre o povo. O<br />

alvo principal dos seus esforços resumia-se na desmoralização completa dos<br />

padres junto ao governo, para assim mais desimpedidos e com mais facili<strong>da</strong>de<br />

golpear de morte a ativi<strong>da</strong>de apostólica que tanto os incomo<strong>da</strong>va. E de fato, o<br />

governo recebeu as mais execráveis acusações contra eles que foram apresentados,<br />

não só como perturbadores <strong>da</strong> ordem pública e <strong>da</strong> paz, mas também<br />

como transgressores <strong>da</strong> moral e instigadores de revoltas políticas. Ora to<strong>da</strong>s<br />

essas acusações e vis calúnias caiam necessariamente sobre <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

que era a alma de todo aquele movimento de <strong>São</strong> Beno, e por isso mesmo o<br />

alvo predileto do ódio dos sectários e <strong>da</strong>s nefan<strong>da</strong>s calúnias. Se uns o veneravam<br />

a ponto de lhe beijarem a barra <strong>da</strong> batina e os vestígios dos pés, outros<br />

consagravam-lhe o mais entranhável ódio, como a um fanático, não poupando<br />

paus e pedras nem coisa alguma que o pudesse molestar. Mais tarde olhando<br />

retrospectivamente para esses acontecimentos de Varsóvia dizia ele: Uns prostravam-se<br />

diante de mim, para me beijar os pés, outros me cobriam de lama;<br />

30<br />

aqueles exageravam na honra e estes no desprezo”.<br />

A ação do governo prejudicou muito a ativi<strong>da</strong>de pastoral de S. <strong>Clemente</strong>,<br />

mas o ódio dos livre pensadores incentivou ain<strong>da</strong> mais a coragem do Servo de<br />

Deus e o seu desejo de combater o erro e de alcançar a vitória <strong>da</strong>s almas, que<br />

quisera depositar aos pés do Redentor. Os olhos fitos no céu aceitou tudo aquilo<br />

com calma e santo heroísmo, desprezando o desprezo contanto que Deus<br />

fosse glorificado e a sua queri<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> se consoli<strong>da</strong>sse no Norte. O que<br />

mais o afligia era ver que também no clero encontrava inimigos, que se obstinavam<br />

em não querer compreender as suas melhores intenções; isso ele mesmo<br />

dá a entender em uma carta ao Núncio de Viena a 9 de maio de 1802. Em<br />

tantos apuros e dificul<strong>da</strong>des não tinha o Santo a quem se dirigir, a nenhum dos<br />

sacerdotes seculares de então atrevia-se a abrir o coração ou pedir conselho. O<br />

seu único amigo e confidente era um ex-jesuíta, homem de merecimento e<br />

peso que outrora, como membro <strong>da</strong> Companhia, missionara a Pomerânia, a<br />

Rússia, a Lituânia e a Polônia — e também a este quis Deus chamar para si,<br />

quando na i<strong>da</strong>de de noventa anos, atacado de um colapso, expirou ao rezar a<br />

la<strong>da</strong>inha de todos os santos no segundo dia <strong>da</strong>s Rogações. Os outros amigos<br />

do Santo estavam longe, em Viena. Deus, aos poucos, ia rompendo os laços<br />

que o prendiam a Varsóvia e preparava sua i<strong>da</strong> a Viena, cujo Núncio Severoli<br />

muito o desejava.


CAPÍTULO V<br />

Na diocese <strong>da</strong> Constância<br />

Em Altötting — Monte Tabor — Pe. Passerat Reitor — Ordenação dos clérigos<br />

na Itália — As necessi<strong>da</strong>des do novo convento — <strong>Clemente</strong> em Jestetten<br />

— O rico cardápio — Triberg, santuário <strong>da</strong> Virgem — Uma noite no paiol —<br />

Recepção em Triberg — Reanimação <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de — Raiva do demônio<br />

— Triberg abandona<strong>da</strong>.<br />

Em fins de 1802 <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> deixou Varsóvia pela terceira vez, em procura<br />

de algum lugar, onde pudesse estabelecer definitivamente a sua <strong>Congregação</strong><br />

na Alemanha; tinha tanta convicção de que conseguiria realizar o seu<br />

desejo ardente nessa viagem, que tomou consigo o Pe. Thadeu Hübl, embora<br />

este parecesse indispensável ao serviço espiritual de Varsóvia e ao an<strong>da</strong>mento<br />

<strong>da</strong>s obras <strong>da</strong> Igreja de S. Beno. Com essa viagem S. <strong>Clemente</strong> despedia-se<br />

propriamente <strong>da</strong> Polônia, porque embora tenha ain<strong>da</strong> voltado duas vezes a<br />

Varsóvia, só o fez por circunstâncias imprevistas — e na opinião do Santo essas<br />

visitas deviam ser brevíssimas e apressa<strong>da</strong>s. Isso não era indício nem prova<br />

de aversão que talvez sentisse para com a Polônia, que ele amava como sua<br />

segun<strong>da</strong> Pátria, cuja língua conhecia a fundo, cuja sorte infeliz lhe traspassava<br />

o coração. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> convencera-se de que sua <strong>Congregação</strong> não poderia<br />

ter ver<strong>da</strong>deira garantia de subsistência para o futuro no Norte <strong>da</strong> Europa, enquanto<br />

não lançasse raízes em algum pe<strong>da</strong>ço do território alemão.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e o Pe. Thadeu vestem a batina dos sacerdotes seculares —<br />

naquele tempo não era permitido de viajar de outra forma — e a pé vão de<br />

Varsóvia até a Alemanha não receando a distância nem temendo os perigos<br />

provenientes <strong>da</strong>s constantes revoluções e guerras, mas confiando somente na<br />

proteção do céu. Levou consigo também o clérigo Sabelli, passou por Viena, foi<br />

a Baviera onde se deteve, um dia, no santuário de Nossa Senhora de Altötting,<br />

erigido por S. Roberto, seu primeiro bispo, a mais de mil anos. Depois de desabafar<br />

o seu coração ante a imagem milagrosa <strong>da</strong> Virgem, recomen<strong>da</strong>ndo-lhe<br />

com fervor a sua pessoa e o feliz êxito <strong>da</strong>s suas pesquisas para o bem <strong>da</strong><br />

<strong>Congregação</strong>, sem jamais sonhar que aquele mesmo Santuário, um dia, seria<br />

confiado aos cui<strong>da</strong>dos dos seus filhos espirituais, continuou a viagem até<br />

Jestetten, onde perguntou pelo Monte Tabor, que lhe fora oferecido pelo príncipe<br />

Schwarzenberg. A nova mora<strong>da</strong> eram as ruínas de um antigo castelo, quase<br />

sem telhado e com as paredes encosta<strong>da</strong>s. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> compreendeu que a<br />

pobreza e a miséria seriam ali companheiras de seus filhos; mas lembrando-se<br />

de Varsóvia, cujo convento no princípio se achava em idênticas condições e que<br />

ele, com poucos vinténs no bolso, conseguiu levantar, criou coragem e aceitou<br />

31<br />

a fun<strong>da</strong>ção, ain<strong>da</strong> mais que Jestetten se achava na divisa de quatro países:<br />

Baden, Suíça, Württemberg e Áustria. De Jestetten esperava poder entrar um<br />

dia na Alemanha, e enquanto isso não se realizasse, teriam os seus padres um<br />

campo de trabalho inteiramente novo, onde poderiam pregar as mais<br />

consoladoras missões. Sem mais detença escreveu a Constança pedindo autorização<br />

para fun<strong>da</strong>r o convento e chamou de Varsóvia o Pe. José Passerat, a<br />

quem nomeou Reitor de Jestetten. Nessa nomeação mostrou o Vigário Geral<br />

admirável tato de governo. — Pe. Passerat amigo <strong>da</strong> pobreza e <strong>da</strong> abnegação<br />

própria, era o homem para aquela fun<strong>da</strong>ção, sobre a qual com o seu espírito de<br />

oração e de sacrifício atrairia as mais copiosas bênçãos do céu. Entretanto <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> e o Pe. Thadeu puseram mãos à obra para a restauração <strong>da</strong> casa e a<br />

acomo<strong>da</strong>ção do convento. Ao chegar o Pe. Passerat com seus estu<strong>da</strong>ntes encontrou<br />

a casa mais ou menos em condições de recebê-lo e de agasalhar os<br />

bons clérigos.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não se demorou muito em Jestetten; levando consigo o Pe.<br />

Passerat foi a Joinville na Champagne a ver, se poderia fun<strong>da</strong>r na França algum<br />

convento de Redentoristas, pois que a duquesa de Angoulême, filha de Luiz<br />

XVI, lhe tinha <strong>da</strong>do as mais belas esperanças, quando se achava em Mitau com<br />

os Redentoristas. Infelizmente não lhe foi possível realizar esse grande plano<br />

por a França se achar em guerra naquela ocasião.<br />

Acompanhado do Pe. Thadeu e de três clérigos S. <strong>Clemente</strong> atravessou os<br />

Alpes e foi a Itália para lá conseguir a ordenação dos três teólogos e tratar<br />

pessoalmente com o Superior Geral de negócios importantes <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>.<br />

Essa medi<strong>da</strong> era de necessi<strong>da</strong>de em virtude <strong>da</strong> nova lei que acabou de ser<br />

promulga<strong>da</strong> pelo governo. Os clérigos não podiam ser ordenados em Varsóvia<br />

porque pela lei só se ordenavam lá os súditos alemães nascidos na Prússia; em<br />

Constança tampouco era-lhes possível receber as ordens sacras porque o Vigário<br />

Geral Wessenberg, que governava a diocese em nome de Dalberg, não<br />

era ain<strong>da</strong> nem sacerdote. Deixando os clérigos em Spello perto de Foligno,<br />

continuou a viagem com o Pe. Hübl até Roma, onde foi recebido em audiência<br />

pelo Papa Pio VII, que o Servo de Deus bem conhecia — era o antigo bispo de<br />

Tívoli que, anos atrás, lhe dera o hábito de ermitão e lhe mu<strong>da</strong>ra o nome de<br />

João para <strong>Clemente</strong>; o papa ouviu-o com benevolência, aprovou oralmente os<br />

Estatutos <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> dos Oblatos, concedendo-lhe muitos privilégios. Não<br />

lhe foi possível avançar até Nápoles e Nocera, onde teria tido o prazer de celebrar<br />

sobre o túmulo do Santo Fun<strong>da</strong>dor; prometeu porém ao Superior Geral<br />

voltar no ano seguinte. Essa promessa porém S. <strong>Clemente</strong> não realizaria mais<br />

em sua vi<strong>da</strong>, não obstante ter sido grande e ardente o desejo de cumpri-la.<br />

Ordenados a 23 de outubro, os neo-presbíteros celebraram a primeira missa no<br />

dia seguinte, e nessa mesma manhã puseram-se a caminho de volta para o<br />

Monte Tabor onde chegaram sãos e salvos. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> demorou-se ain<strong>da</strong><br />

sete dias no novo convento para pôr em ordem os negócios <strong>da</strong>s Irmãs, que lá<br />

havia; depois disso voltou para Varsóvia com o Pe. Thadeu Hübl.<br />

Mal haviam decorrido uns meses após a saí<strong>da</strong> de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, quando<br />

cartas e mais cartas apareceram em Varsóvia, nas quais o Pe. Passerat expunha<br />

ao Vigário Geral as duras necessi<strong>da</strong>des por que passava a nova comuni<strong>da</strong>de<br />

de Jestetten pela falta absoluta do mais indispensável; não havia recursos


de quali<strong>da</strong>de alguma. O coração bondoso de <strong>Clemente</strong> ao ler aquelas notícias,<br />

<strong>da</strong><strong>da</strong>s pelo santo Pe. Passerat, que não era capaz de exageros, sentiu-se comovido.<br />

As necessi<strong>da</strong>des materiais dos seus padres em Jestetten traspassaram-lhe<br />

a alma; ele, o homem forte, chorou de compaixão; as lágrimas rolaramlhe<br />

pelas faces como que para apagarem aquelas novas, conti<strong>da</strong>s nas cartas e<br />

tão tristes ao seu coração. Como bom Superior obrigado a olhar para seus<br />

súditos, não hesitou em tomar outra vez o bordão do peregrino para fazer novamente,<br />

a pé, a caminha<strong>da</strong> de 300 horas até o Monte Tabor afim de levar auxílio<br />

a seus caros filhos; tomou consigo um estu<strong>da</strong>nte de Varsóvia, que desejava ser<br />

redentorista e, passando por Dresden, Augsburgo e Constança onde tinha negócios<br />

de urgência, chegou a Tabor a 21 de setembro. Até a primavera do ano<br />

seguinte permaneceu lá a compartilhar com os seus súditos as agruras de uma<br />

vi<strong>da</strong> de privações e pobreza. O edifício, que tinha em vista de comprar, não o<br />

pôde obter. A comuni<strong>da</strong>de crescia entretanto dia a dia; naquela <strong>da</strong>ta lá se achavam<br />

seis padres, quatro irmãos, nove noviços e diversos estu<strong>da</strong>ntes; estes dormiam<br />

no sótão <strong>da</strong> igreja; como nos cinco quartos, de que se compunha a residência<br />

inteira, a comuni<strong>da</strong>de não encontrassem acomo<strong>da</strong>ção suficiente, os seis<br />

padres e os três teólogos dormiam nas mansar<strong>da</strong>s <strong>da</strong> casa, enquanto que os<br />

noviços e os irmãos leigos iam procurar o descanso dentro de uma torre no<br />

jardim; por uma pequena esca<strong>da</strong> de mão subiam até em cima e ficavam, a<br />

noite, expostos ao vento, à neve e em geral a to<strong>da</strong>s as inclemências do tempo.<br />

Para defender os padres do rigor do inverno, havia apenas uma estufa no salão<br />

que servia simultaneamente de sala de recreio e de estudos; de acordo com a<br />

habitação, a comi<strong>da</strong> era também pouca e insuficiente; não se tomava café o ano<br />

inteiro, o almoço consistia num prato de sopa e noutro de legumes com um<br />

pe<strong>da</strong>cinho de carne, que não aparecia na mesa às quartas e sextas-feiras e<br />

aos sábados: o jantar era o ano todo o mesmo, isto é: sopa e batatas; a única<br />

bebi<strong>da</strong> era a água <strong>da</strong> cisterna, exceto aos domingos e quintas-feiras em que<br />

aparecia à mesa um pequeno copo de vinho azedo. S. <strong>Clemente</strong> porém não se<br />

espantava com tão pouco; com prazer compartilhava essas privações e com o<br />

exemplo e santas palavras animava a todos os seus, que esquecidos dos efeitos<br />

<strong>da</strong>quela pobreza extrema, sentiam-se felizes por estarem debaixo <strong>da</strong> direção<br />

de um Superior tão santo e sábio; era edificante vê-lo, não poucas vezes, a<br />

enxa<strong>da</strong> na mão, ir ao campo com seus confrades passando horas e horas naquele<br />

trabalho penoso e rude. Felizmente, como atesta o próprio S. <strong>Clemente</strong>,<br />

com aquele estado miserável <strong>da</strong>s finanças reinava no convento o genuíno espírito<br />

religioso: era o entusiasmo natural que costuma apoderar-se de gente nova<br />

nas recentes fun<strong>da</strong>ções. Todos os domingos e dias santificados pregava <strong>Clemente</strong><br />

em Jestetten, como o fazia em Varsóvia, e o povo acudia de todos os<br />

lados. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> em seu grande zelo apostólico instruía todos nas ver<strong>da</strong>des<br />

<strong>da</strong> religião e não cessava de convidá-los à confissão e à santa comunhão<br />

— e os católicos obedeceram afinal às instâncias do Santo e grande movimento<br />

religioso desenvolveu-se na Capela dos Redentoristas de Jestetten. O tempo<br />

que restava <strong>da</strong>s pregações, audição de confissões e despacho <strong>da</strong> grande correspondência<br />

epistolar, S. <strong>Clemente</strong> o empregava na oração e em outros exercícios<br />

de pie<strong>da</strong>de.<br />

Deus quis recompensar seu Servo. Umas oito léguas distante de Jestetten<br />

32<br />

existe uma ci<strong>da</strong>de chama<strong>da</strong> Triberg, célebre por uma imagem milagrosa <strong>da</strong><br />

Virgem cuja história é a seguinte: A pouca distância <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de havia um pinheiro<br />

à beira <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>. Aconteceu que um dos muitos transeuntes, para excitar<br />

pensamentos de pie<strong>da</strong>de nos que passavam, abriu no pinheiro uma cavi<strong>da</strong>de,<br />

onde colocou uma pequena imagem de <strong>Maria</strong> Santíssima, com a frente volta<strong>da</strong><br />

para uma fonte límpi<strong>da</strong> que brotava de um rochedo não muito distante. A imagem<br />

não tardou a ser conheci<strong>da</strong> por todos, e havendo um conhecido morfético<br />

recuperado miraculosamente a saúde somente por se ter banhado nas águas<br />

<strong>da</strong> fonte, a devoção à Virgem do Pinheiro começou a aumentar-se até atingir as<br />

proporções do entusiasmo. Com o tempo porém a devoção arrefeceu e a imagem<br />

<strong>da</strong> Virgem caiu no esquecimento. Depois de receber as homenagens do<br />

povo, fez a Virgem por diversas vezes, ouvirem-se no bosque doces e suaves<br />

melodias que ecoavam pelos arredores. Três sol<strong>da</strong>dos atraídos por aquelas<br />

vozes misteriosas foram ao bosque, ajeitaram o nicho <strong>da</strong> Virgem e a romaria<br />

recomeçou com tanto fervor, que foi mister derrubar o pinheiro e levantar um<br />

templo, um santuário que pudesse conter as massas. Na<strong>da</strong> menos de 153.000<br />

pessoas recebiam lá anualmente os santos sacramentos <strong>da</strong> confissão e comunhão.<br />

Com o fim de facilitar ao povo o exercício <strong>da</strong>s suas devoções, construiuse<br />

perto do templo um espaçoso prédio com acomo<strong>da</strong>ções para quinze sacerdotes,<br />

e assim Triberg tornou-se um dos mais célebres santuários <strong>da</strong> zona;<br />

príncipes e princesas não excetuando o próprio imperador José I, iam, repeti<strong>da</strong>s<br />

vezes, a Triberg cumprir seus votos e homenagear a Rainha do universo.<br />

No decorrer dos tempos esfriou um tanto a devoção; as guerras quase contínuas<br />

e os princípios falsos do racionalismo começaram a infiltrar a descrença nos<br />

corações, de sorte que o Santuário já não era quase visitado. Além disso o<br />

cui<strong>da</strong>do do santuário foi confiado a sacerdotes idosos, que não <strong>da</strong>vam bons<br />

exemplos em sua vi<strong>da</strong> particular. Os moradores de Triberg, ouvindo que em<br />

Jestetten havia sacerdotes sérios, animados de zelo, foram ter com o arquiduque<br />

Fernando de Modena a quem pertencia Triberg, e instaram com ele para que<br />

conseguisse padres como os de Jestetten para diretores do Santuário. O<br />

arquiduque prometeu gostosamente realizar os desejos de seus súditos e chegou<br />

até oferecer 960 escudos para três padres de Jestetten, que quisessem<br />

encarregar-se <strong>da</strong> administração e direção do Santuário. Os moradores de Triberg,<br />

satisfeitos com a decisão do arquiduque e a licença concedi<strong>da</strong>, foram expor a<br />

súplica também a S. <strong>Clemente</strong>, a quem fizeram ver as grandes dificul<strong>da</strong>des com<br />

que se achavam, o desejo ardente do povo e a promessa do arquiduque. S.<br />

<strong>Clemente</strong> depois de uma breve viagem a Lucerna, aonde levou dois clérigos<br />

para serem ordenados pelo Núncio Testaferrata que lá se achava, partiu para<br />

Triberg com quatro padres e alguns estu<strong>da</strong>ntes. Embora o tempo ameaçasse<br />

muita chuva, S. <strong>Clemente</strong> não teve receio, partiu; não tardou porém a desabar<br />

uma chuva torrencial que molhou os nossos caminhantes até a medula dos<br />

ossos. Depois de marcharem umas doze horas sentiram-se cansados, além<br />

disso a escuridão <strong>da</strong> noite chuvosa não lhes permitia ir adiante. A beira <strong>da</strong><br />

estra<strong>da</strong> viu S. <strong>Clemente</strong> uma casa e perto dela um paiol e uma estrebaria,<br />

entrou na casa e adiantando-se para o dono pediu-lhe um pouso para aquele<br />

noite. O pobre do homem vendo os padres, inteiramente molhados e ouvindo o<br />

pedido de S. <strong>Clemente</strong> ficou perplexo sem saber como sair do embaraço: ele


era pobre, não possuía casa digna de hospe<strong>da</strong>r pessoas tão distintas como<br />

aquelas que o apostrofavam, gostaria de oferecer tudo, mas não tinha o que<br />

<strong>da</strong>r. — O nosso Santo compreendeu logo o motivo <strong>da</strong> perplexi<strong>da</strong>de do homem<br />

e sem mais rodeios lhe disse: “Diga a sua mulher que nos prepare uma sopa;<br />

para o sono temos o paiol e isso basta”. O dono mais atônito ain<strong>da</strong> diante de<br />

tanta modéstia e humil<strong>da</strong>de, agradeceu a Deus tê-lo honrado com a visita de<br />

tão santos sacerdotes. Aos cansados caminhantes apeteceu a pobre sopa mais<br />

do que se tivessem, em outras ocasiões, saboreado um bocado de paca ou<br />

qualquer outra iguaria preciosa. Na manhã seguinte tiveram de vestir a batina<br />

ain<strong>da</strong> molha<strong>da</strong>; não deixaram porém de escapar de seus lábios nenhuma palavra<br />

de queixa, porquanto viam ser o Superior o primeiro a fazer com alegria<br />

aquele ato de mortificação.<br />

Algumas horas depois chegaram a Triberg, cuja população os recebeu<br />

jubilosa. Repicaram os sinos solenemente como nos dias de grande festa, o<br />

povo acorreu em multidão e assim entraram os novos padres no Santuário para<br />

a missa canta<strong>da</strong>. Termina<strong>da</strong>s as cerimônias <strong>da</strong> igreja, o povo levou-os à residência,<br />

casa espaçosa e bem construí<strong>da</strong> de dois an<strong>da</strong>res; o an<strong>da</strong>r superior<br />

ficou reservado aos sacerdotes, encarregados do governo do Santuário, enquanto<br />

que o primeiro an<strong>da</strong>r e a rez do chão foram entregues aos Redentoristas.<br />

Poucos dias depois <strong>da</strong> chega<strong>da</strong> dos padres celebrava a Igreja a festa <strong>da</strong> Ascensão<br />

do Senhor; o templo encheu-se de povo ávido por ouvir a palavra de Deus<br />

em sua simplici<strong>da</strong>de e ver<strong>da</strong>de. Era a repetição <strong>da</strong>quelas cenas emocionantes<br />

<strong>da</strong> Palestina em que as multidões se agrupavam ao redor de Jesus, pendentes<br />

dos lábios divinos, a beberem em largos tragos a água <strong>da</strong> doutrina sagra<strong>da</strong>.<br />

Desde esse dia não faltaram pregações em Triberg, aos domingos e dias santificados;<br />

os confessionários, em que as almas se purificam <strong>da</strong>s suas manchas<br />

recebendo conselhos salutares para o seu progresso na virtude, começaram a<br />

ser freqüentados pelas massas, que se comoviam com as pregações dos zelosos<br />

apóstolos do bem. Aos poucos a alegre nova difundiu-se por to<strong>da</strong> a redondeza,<br />

de sorte que os romeiros recomeçaram suas peregrinações a Triberg,<br />

não só em cumprimento <strong>da</strong>s promessas feitas, mas também com o fim de se<br />

instruírem nas ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> religião, receberem os santos sacramentos <strong>da</strong> confissão<br />

e comunhão, e assim deixarem a vi<strong>da</strong> do pecado para a <strong>da</strong> graça. O<br />

templo em pouco tempo se restaurou completamente, porque S. <strong>Clemente</strong> não<br />

conhecia economias quando se tratava <strong>da</strong> glória de Deus ou <strong>da</strong> Santíssima<br />

Virgem. O povo, que tudo observa e comenta, <strong>da</strong>va a <strong>Clemente</strong> o nome de<br />

“Padre santo” e tinha razão para isso.<br />

Todos achavam-se satisfeitos, menos o demônio que não podia ver com<br />

bons olhos o desenvolvimento sempre crescente do Santuário, que se tinha<br />

tornado um oásis abençoado de fé e inocência no meio do deserto tremendo do<br />

indiferentismo e <strong>da</strong> increduli<strong>da</strong>de <strong>da</strong>queles tempos. Para instrumentos <strong>da</strong> sua<br />

cólera tomou os sacerdotes idosos que lá residiam e que não <strong>da</strong>vam, infelizmente,<br />

o melhor exemplo ao povo; excitou o ciúme nos seus corações bem<br />

como nos dos sacerdotes circunvizinhos que começaram a maquinar, às ocultas<br />

e também às claras, a expulsão dos Padres Redentoristas por meio de calúnias<br />

e intrigas; escreveram à cúria eclesiástica de Constança, a Wessenberg,<br />

que infelizmente havia bebido o espírito do tempo e era inimigo declarado dos<br />

33<br />

santuários, afirmando serem os Redentoristas, em Triberg, uns fanáticos sem<br />

prudência e sem ciência, que alucinavam o povo enlouquecendo-o. Wessenberg,<br />

que, embora vigário geral <strong>da</strong> diocese, era um dos “iluminados” e maçons, jurou<br />

perder aqueles sacerdotes ignorantes, fanáticos e carolas, e suspendeu imediatamente<br />

do uso de ordens dos dois sacerdotes novos que tinham chegado de<br />

Jestetten, pelo simples motivo de terem sido ordenados pelo Núncio Apostólico,<br />

não se lembrando que os Redentoristas têm um privilégio papal que lhes dá o<br />

direito de receber a ordenação <strong>da</strong>s mãos de qualquer prelado amigo, e que ele<br />

próprio — Wessenberg, por não ser ain<strong>da</strong> nem sacerdote, não podia conferir<br />

essas ordens a ninguém. Aos outros padres mandou intimação a que se submetessem<br />

a um exame de teologia. Como os examinadores eram também “iluminados”,<br />

cuja moral não se pautava pelos princípios do Evangelho mas sim<br />

pelos enciclopedistas franceses, e protestantes alemães, reprovaram S. <strong>Clemente</strong><br />

e seus companheiros, declarando-os incapazes de fazer as pregações e<br />

de ouvir as confissões dos fiéis.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> viu, mais uma vez, ruírem suas esperanças e, o coração a<br />

sangrar, teve de deixar aquele excelente povo de Triberg sem pastores, entregue<br />

a dois sacerdotes contaminados pelo espírito <strong>da</strong> época, sem vontade nem<br />

intenção de lhe mostrarem a vere<strong>da</strong> <strong>da</strong> virtude e o caminho do céu. Não tinha a<br />

quem recorrer, porquanto o nobre arquiduque Fernando de Modena, na paz de<br />

Pressburg em 1805 fora despojado de todos os seus bens e domínios que passaram<br />

primeiro a Württemberg e depois a Baden, cujo grão-duque era protestante.<br />

De na<strong>da</strong> valeu uma deputação do povo a Carlsruhe, pedindo que os padres<br />

continuassem em Triberg. S. <strong>Clemente</strong> curvou-se resignado ante a mão<br />

poderosa do Eterno que o feria em suas mais belas esperanças, mas não perdeu<br />

o ânimo. Sabia que quem confia no Senhor, não será confundido eternamente.<br />

Aos seus ouvidos soavam as palavras de Jesus: “Orai pelos que vos<br />

perseguem e caluniam”, e ele perdoando de coração a Wessenberg e aos sacerdotes<br />

que o perseguiam, rezou por eles, e sacudindo o pó dos seus sapatos<br />

retirou-se com to<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de.


CAPÍTULO VI<br />

Na Suabia<br />

On<strong>da</strong>s de sol<strong>da</strong>dos — Napoleão e <strong>Clemente</strong> — O manto ou a vi<strong>da</strong> — Em<br />

Babenhausen — Weinried — Desejam confessar-se? — O rapaz que ri no sermão<br />

— A ferreira apostrofa<strong>da</strong> — O violinista convertido — O rapaz libertino —<br />

Quebra vidraças e ganha uma missa — Vítima de calúnias — Montgelas —<br />

Perseguições.<br />

Vendo S. <strong>Clemente</strong> que Triberg estava perdi<strong>da</strong> para a <strong>Congregação</strong> e que<br />

também Jestetten não lhe estava segura por haver essa ci<strong>da</strong>de passado ao<br />

domínio protestante de Baden, volveu suas vistas para Augsburgo, onde tinha<br />

um amigo sincero na pessoa de Antônio Nigg, que ocupava o honroso cargo de<br />

vigário-geral <strong>da</strong> diocese, e que, desde há muito, desejava um ginásio bem organizado<br />

em Babenhausen. Em novembro de 1805 partiu para lá com Sabelli a<br />

fim de se entender com o bispo <strong>Clemente</strong> Wenceslau e conseguir dele a permissão<br />

necessária para a fun<strong>da</strong>ção de uma residência em Babenhausen. Foi<br />

essa uma viagem bem penosa para o nosso Santo; as trinta léguas que vão de<br />

Triberg a Augsburgo fê-las S. <strong>Clemente</strong> o coração oprimido pelos mais sinistros<br />

pressentimentos. Em Varsóvia a revolução tornava-se sempre mais ameaçadora<br />

para S. Beno, no Tabor não encontrava garantia alguma, em Triberg estava<br />

condenado à inação e entregue às mãos de poderosos inimigos; olhava para<br />

Augsburgo, mas não com muitas esperanças ao contemplar a multidão de sol<strong>da</strong>dos<br />

que inun<strong>da</strong>vam to<strong>da</strong> aquela região. No dia 1 de outubro Napoleão à frente<br />

de um exército de 180.000 homens atravessara o Reno perto de Strassburgo<br />

em direção a Stuttgart contra Mack, o general austríaco, que o esperava em<br />

Ulm com 80.000 sol<strong>da</strong>dos; aos 13 de outubro Napoleão cercou Mack em Ulm e<br />

em sete dias a ci<strong>da</strong>de se rendeu devendo 23.000 austríacos depor as armas<br />

aos pés do imperador dos franceses. O caminho estava aberto a Napoleão até<br />

o coração <strong>da</strong> Áustria, e seus sol<strong>da</strong>dos deban<strong>da</strong>ram para todos os lados na<br />

Baviera, roubando e saqueando quanto encontravam sem atenção à miséria,<br />

em que iriam cair os pobres saqueados. É pelo meio dessa multidão que <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> teve de passar; felizmente porém na<strong>da</strong> de mal lhe aconteceu.<br />

Quando S. <strong>Clemente</strong> chegou em Augsburgo, lá se achava Napoleão. Que<br />

contraste entre essas duas personagens que se encontravam na mesma ci<strong>da</strong>de!<br />

entre o vitorioso Napoleão e o perseguido S. <strong>Clemente</strong>! Aquele triunfou dez<br />

anos percorrendo a Europa ao sorriso <strong>da</strong>s armas, vendo reis e imperadores<br />

tremer diante dele como a vara bati<strong>da</strong> do ven<strong>da</strong>val; este perseguido, desconhecido<br />

e desprezado, ia de ci<strong>da</strong>de em ci<strong>da</strong>de procurando não a sua glória, mas a<br />

de Jesus Cristo. Depois de alguns anos morreu S. <strong>Clemente</strong> e teve o enterro de<br />

34<br />

um imperador; um ano depois de <strong>Clemente</strong> faleceu Napoleão e teve o sepultamento<br />

de um mendigo. <strong>São</strong> desígnios <strong>da</strong> Providência!<br />

Depois de recebido amavelmente pelo bispo, volta a Babenhausen para<br />

tratar com o príncipe Fugger <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> nova residência. De caminho um<br />

sol<strong>da</strong>do avança contra ele, e prevendo que <strong>Clemente</strong> não levava dinheiro consigo,<br />

puxa <strong>da</strong> espa<strong>da</strong>, aponta-lhe o peito e diz: “O manto ou a vi<strong>da</strong>”. Sem o menor<br />

sinal de temor ou de impaciência, S. <strong>Clemente</strong> tira o manto, que na<strong>da</strong> tinha de<br />

precioso, e entrega-o ao sol<strong>da</strong>do, que saiu contente por possuir mais um meio<br />

de se resguar<strong>da</strong>r contra o frio.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, apesar dos esforços feitos, não pôde conseguir senão uma<br />

habitação provisória, tão úmi<strong>da</strong> que dos trinta religiosos que a inauguraram,<br />

quase todos adoeceram; somente alguns meses depois, foi-lhe possível conseguir<br />

uma casa mais espaçosa, porém ain<strong>da</strong> insuficiente para tanta gente; essa<br />

circunstância obrigou alguns a hospe<strong>da</strong>r-se na vizinha aldeia de Weinried na<br />

casa do vigário, grande amigo de S. <strong>Clemente</strong>. De dia o Pe. <strong>Clemente</strong> ficava<br />

com os seus padres em Babenhausen a rachar lenha, cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s estufas etc.;<br />

na quaresma ele mesmo tomava conta <strong>da</strong> cozinha; às horas <strong>da</strong>s refeições, nos<br />

dias de jejum, ele sentava-se a mesa com a comuni<strong>da</strong>de, mas não tocava nas<br />

comi<strong>da</strong>s, porque, em espírito de penitência, nesses dias só tomava alguma<br />

coisa depois do sol posto. A ativi<strong>da</strong>de apostólica era muito limita<strong>da</strong> em<br />

Babenhausen porque, não tendo eles igrejas própria, eram obrigados a ir à<br />

matriz, onde o vigário só lhes permitia celebrar e ouvir confissões, ao púlpito<br />

era-lhes proibido subir. Os vigários dos arredores imitavam o vigário de<br />

Babenhausen, menos os de Illerberg, que tendo tido S. <strong>Clemente</strong> dois dias em<br />

sua companhia, escreveu no diário. “O Pe. <strong>Clemente</strong> é um homem muito delicado,<br />

tem boa declamação, é muito lido e de muito zelo pela religião; fala um<br />

alemão puro, é vienense e tem relações de amizade com todos os senhores de<br />

Viena e até com a corte do imperador; à noite a nossa ceia passa-se entre<br />

conversas edificantes e científicas... O fim <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> é propagar a religião<br />

nestes tempos sem fé. “O vigário de Weinried era o mais entusiasta pelo<br />

Santo e entregou-lhe a paróquia <strong>da</strong>ndo-lhe carta branca; desde a chega<strong>da</strong> dos<br />

Redentoristas o vigário não subiu mais ao púlpito que deixara aos padres, e<br />

com íntima satisfação acompanhava o aumento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> religiosa em sua paróquia.<br />

Em Babenhausen visitava ele constantemente os doentes a quem consolava<br />

e <strong>da</strong>va bons conselhos, animando-os e ouvindo-lhes as confissões. De um<br />

modo todo especial tomava a peito a direção espiritual <strong>da</strong>s almas; em Weinried<br />

quase não saia do confessionário; se as vezes se levantava do tribunal <strong>da</strong> penitência,<br />

ficava ajoelhado perto a rezar o seu breviário. Quando alguém entrava<br />

na igreja por curiosi<strong>da</strong>de ou qualquer outro motivo, <strong>Clemente</strong> levantava-se, ia<br />

devagar até onde se achava a pessoa, e com to<strong>da</strong> a cortesia e amabili<strong>da</strong>de<br />

perguntava, se por acaso desejava se confessar. Esse estratagema produziu os<br />

melhores resultados; pessoas que há dezenas de anos já não se tinham reconciliado<br />

com Deus, não podendo resistir ao convite do Santo, faziam com arrependimento<br />

a confissão e mu<strong>da</strong>ram de vi<strong>da</strong>.<br />

O púlpito entretanto era o lugar predileto, onde com ardor discorria sobre<br />

as ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fé, corrigia os erros, cortava os abusos e mostrava a todos, com<br />

argumentos irrespondíveis e fortes, quais os deveres para com Deus e o próxi-


mo. Um dos vigários, admiradores de S. <strong>Clemente</strong>, disse uma vez: “Dai-me<br />

quatro homens para o púlpito como o Pe. <strong>Clemente</strong>, e quatro para o confessionário<br />

como o Pe. Passerat, e eu converterei reinos inteiros”. O modo de pregar<br />

de S. <strong>Clemente</strong> era de uma simplici<strong>da</strong>de admirável; abria o Evangelho a qualquer<br />

hora do sermão, apostrofava o povo, fazia perguntas prometendo uma<br />

missa a quem respondesse bem etc. Uma vez discorrendo com fogo sobre as<br />

ver<strong>da</strong>des eternas, comoveu o povo a ponto de todos prorromperem em prantos<br />

e soluços, menos um moço que continuava a rir-se criticando as palavras do<br />

pregador. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> parou bruscamente no meio do sermão, fitou por uns<br />

momentos o rapaz e disse-lhe com voz firme: “Moço, a igreja não é lugar para<br />

brincadeiras; teu procedimento bem mostra que não queres converter-te”. O<br />

auditório voltou-se para o jovem, que corou de vergonha, e reconhecendo o<br />

erro, pediu perdão e mudou de vi<strong>da</strong>: foi esse o mais proveitoso sermão, que o<br />

moço ouvira em sua vi<strong>da</strong>.<br />

Em Weinried havia uma senhora, esposa do ferreiro do lugar, já bem idosa,<br />

que não gostava muito de se confessar com freqüência, contentando-se com<br />

uma única confissão anual pela Páscoa. Encontrando-a casualmente admoestou-a<br />

S. <strong>Clemente</strong> a que se aproximasse mais vezes do santo tribunal <strong>da</strong> penitência,<br />

porquanto já estava velha e não longe <strong>da</strong> hora em que deveria prestar<br />

contas a Deus. A ferreira porém olhou para S. <strong>Clemente</strong> e disse-lhe: “Mas padre,<br />

que diria a gente se a mulher do ferreiro se fosse confessar tantas vezes?”<br />

No domingo seguinte <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> pregou sobre a recepção freqüente dos<br />

Sacramentos, mostrando sua utili<strong>da</strong>de para o tempo e a eterni<strong>da</strong>de, pois que<br />

comunicam força e vigor espiritual à alma para os combates com os inimigos,<br />

consolam-na na hora <strong>da</strong> morte etc., e no fim acrescentou: “Vedes pois que é útil<br />

e salutar receber amiúde os Sacramentos; mas a velha ferreira diz: ‘que diria a<br />

gente se a mulher do ferreiro se fosse confessar tantas vezes’ — e em segui<strong>da</strong><br />

olhando para a ferreira que lá estava, apostrofou-a perguntando: ‘Ó boa<br />

ferreirinha, que diria a gente se a ferreira estivesse no inferno?’” Não só no<br />

púlpito, mas também em suas relações de amizade procurava S. <strong>Clemente</strong> converter<br />

os pecadores e levar as almas para o céu.<br />

Uma vez encontrou-se com um músico que tocava violino em todos os<br />

bailes e sempre que se apresentava ocasião em qualquer divertimento. Por<br />

causa dessa alegria o Santo certamente não o repreenderia, pois que Deus<br />

ama os corações alegres e S. Paulo duas vezes, em segui<strong>da</strong>, aconselha os<br />

Filipenses a se alegrarem no Senhor; o rei Davi também <strong>da</strong>nçava diante <strong>da</strong> arca<br />

e tocava sua harpa cantando os salmos do Senhor. — Mas o violinista de Weinried<br />

não tocava a harpa sagra<strong>da</strong> nem cantava os salmos de Davi, mas modinhas<br />

inconvenientes, dita<strong>da</strong>s pelo espírito impuro e pelas vis paixões, escan<strong>da</strong>lizando<br />

a todos e levando muitas almas à perdição. S. <strong>Clemente</strong>, compadecido do<br />

pobre violinista, chamou-o às ordens pondo-lhe antes os olhos o estado deplorável<br />

de sua alma, a ignobili<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele modo de ganhar a vi<strong>da</strong>, o escân<strong>da</strong>lo<br />

causado a tantas almas, e o contentamento do demônio, que o queria levar<br />

para o inferno. As palavras tão sinceras quão severas de S. <strong>Clemente</strong> penetraram<br />

profun<strong>da</strong>mente no coração do pobre músico que refletindo seriamente nelas,<br />

deixou para sempre a vi<strong>da</strong> cômica e pecaminosa que levava e tornou-se um<br />

excelente cristão tendo sempre antes os olhos as palavras do Espírito Santo.<br />

35<br />

“Não te comprazas de ir às assembléias de grande tumulto, nem ain<strong>da</strong> às pequenas;<br />

porque ali são freqüentes os pecados que se cometem” (Eclo 18,32)<br />

Lá em Weinried havia um indivíduo que se chafur<strong>da</strong>ra em todos os vícios e<br />

crimes, seduzindo a quantos podia; detestava a igreja e seus ministros; blasfemava<br />

contra a religião e em seus lábios só se encontrava palavras injuriosas e<br />

ofensivas contra os padres, os bispos e o próprio Deus. O vigário trabalhara em<br />

vão procurando todos os meios possíveis de conversão, a fim de o levar para o<br />

caminho <strong>da</strong> virtude; mas vendo a perversi<strong>da</strong>de do rapaz, desesperou <strong>da</strong> sua<br />

conversão. S. <strong>Clemente</strong> porém não desanimou, orou e orou bastante pelo infeliz<br />

ao Pai, cuja misericórdia é infinita. Em segui<strong>da</strong>, com to<strong>da</strong> a ternura de um coração<br />

amigo, aproximou-se do grande pecador; aos poucos foi-lhe mostrando<br />

to<strong>da</strong> a feal<strong>da</strong>de do vício, e conseguiu que ele rezasse e fosse a igreja. A misericórdia<br />

divina tocou-lhe o coração e ele se converteu sinceramente fazendo a<br />

sua confissão debulhado em lágrimas.<br />

Depois de reparar com o arrependimento sincero os escân<strong>da</strong>los que causara,<br />

perguntou a S. <strong>Clemente</strong> como deveria agir para desfazer o mal ocasionado<br />

aos outros por sua vi<strong>da</strong> escan<strong>da</strong>losa. Como bom pai aconselhou-lhe o Santo<br />

que fizesse quanto estivesse ao seu alcance, pois que o escân<strong>da</strong>lo é como um<br />

grande incêndio que se ateia com uma pequena faísca, e não se apaga nem<br />

com o maior cui<strong>da</strong>do e trabalho; mas que confiasse na misericórdia divina e<br />

pedisse perdão a todos a começar pelo vigário e de fato levou-o ao pároco, que<br />

ficou atônito ao ver o Pe. <strong>Clemente</strong> e o criminoso entrarem juntos em sua casa;<br />

mais perplexo porém se sentiu quando o rapaz escan<strong>da</strong>loso se prostrou a seus<br />

pés chorando de compunção, como outrora Ma<strong>da</strong>lena aos pés de Jesus; não<br />

pôde conter-se de alegria o bom vigário, chorou com o penitente e no excesso<br />

de contentamento deu três saltos no quarto como se fosse ain<strong>da</strong> rapazinho na<br />

flor <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de.<br />

Meio anos apenas estivera S. <strong>Clemente</strong> em Babenhausen, e a ci<strong>da</strong>de já<br />

mostrava um aspecto inteiramente novo quanto à vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de e à prática<br />

<strong>da</strong>s virtudes; e esse progresso espiritual não era conseqüência de um entusiasmo<br />

passageiro que se extingue como um fogo de palha, mas real e duradouro<br />

pois que, dezenas de anos depois, ain<strong>da</strong> se encontraram na ci<strong>da</strong>de pessoas<br />

que levavam uma vi<strong>da</strong> santa, recor<strong>da</strong><strong>da</strong>s dos sábios ensinamentos de S. <strong>Clemente</strong>.<br />

Os habitantes de Weinried agrupavam-se em redor de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

como os filhos em torno do pai, amavam-no sinceramente, e não poucas vezes,<br />

vendo a grande pobreza do Santo, levavam-lhe o necessário para a sua subsistência;<br />

respeitavam-no como a um Santo e beijavam o chão por onde ele passava.<br />

Por mais que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> procurasse esconder o brilho <strong>da</strong>s suas virtudes<br />

e corresse atrás <strong>da</strong>s humilhações e até do desprezo dos homens, a sua santi<strong>da</strong>de<br />

se fazia sentir a todos com tanto maior admiração quanto maior cui<strong>da</strong>do<br />

tinha o Santo em ocultá-la. A fisionomia e a lembrança de <strong>Clemente</strong> imprimiram-se<br />

tão indelevelmente na alma <strong>da</strong>quele bom povo, que muitos e muitos<br />

anos depois que o Santo já se achava na eterni<strong>da</strong>de, ele ain<strong>da</strong> falava com<br />

gratidão e sau<strong>da</strong>des do bom e santo padre <strong>Clemente</strong>. Sessenta anos depois <strong>da</strong><br />

saí<strong>da</strong> do Pe. <strong>Clemente</strong> de Babenhausen, mostraram a sua fotografia a uma<br />

velhinha, que vendo o retrato derramou lágrimas de contentamento exclamando<br />

como que fora de si de alegria: “É o Pe. <strong>Clemente</strong>!” A velhinha, quando vira o


Santo, tinha apenas 10 anos de i<strong>da</strong>de, esquecera desde então muita coisa que<br />

se passara em sua vi<strong>da</strong>, mas os traços <strong>da</strong> fisionomia e <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de de S. <strong>Clemente</strong><br />

permaneceram gravados em sua memória e muito mais ain<strong>da</strong> em seu<br />

coração. Em sinal de respeito e veneração para com <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, deixaram<br />

vazio, durante muitos anos, o quarto em que ele residia em a casa paroquial<br />

durante a sua permanência em Babenhausen, e na parede do quarto penduraram<br />

o retrato do Santo, que quase todos conservavam no coração. Um indivíduo<br />

de Babenhausen, que não possuía nem religião, nem fé disse um dia: “Tenho<br />

um estômago de sol<strong>da</strong>do, mas gostei imensamente desse homem” — era<br />

S. <strong>Clemente</strong>.<br />

Em Weinried porém havia também alguns que não se simpatizavam com S.<br />

<strong>Clemente</strong>, e que nem queriam ouvir pronunciar-lhe o nome; mas isso não admira,<br />

porque os maus não podem suportar o brilho <strong>da</strong> virtude; o próprio Jesus<br />

Cristo, a Bon<strong>da</strong>de infinita, teve inúmeros adversários que o desprezaram, denegriram<br />

e por fim lhe deram a morte infame <strong>da</strong> cruz. Também em Babenhausen<br />

havia um rapaz libertino e malcriado, a quem as pregações de S. <strong>Clemente</strong><br />

causavam dor de cabeça e mau estar, porque o Santo se aprazia em discorrer,<br />

repeti<strong>da</strong>s vezes, sobre a obediência, temperança, casti<strong>da</strong>de e semelhantes virtudes,<br />

que o jovem detestava tanto na teoria como principalmente na prática. O<br />

infeliz perdendo-se na leitura dos filósofos <strong>da</strong> Revolução francesa e nas más<br />

companhias, julgava-se liberto dos man<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> lei de Deus e supunha já<br />

não existir o sexto man<strong>da</strong>mento. E como S. <strong>Clemente</strong> sempre pregava sobre<br />

esse assunto, as moças começavam a revestir-se de grande serie<strong>da</strong>de, as senhoras<br />

casa<strong>da</strong>s tornaram-se modelos de virtude, e as próprias infelizes, que<br />

antes se entregaram ao vício, caíram em si, mu<strong>da</strong>ram de vi<strong>da</strong> e fizeram penitência.<br />

O rapaz libertino via pois em S. <strong>Clemente</strong> o seu maior inimigo, enraiveceu-se<br />

contra ele e entregou ocasião oportuna em que pudesse vingar-se. Aconteceu<br />

passar uma noite má o pobre rapaz; não pregou os olhos pois que estava<br />

fortemente excitado <strong>da</strong> paixão, e tocado do calor do álcool; achava-se conseqüentemente<br />

de mau humor, cabeça pesa<strong>da</strong>, olhos cansados e consciência<br />

carrega<strong>da</strong>. Ao amanhecer lembrou-se de descarregar a sua cólera no pobre Pe.<br />

<strong>Clemente</strong>, que em sua humilde cela estava a fazer a meditação <strong>da</strong> manhã.<br />

Colocando-se em frente à janela do Santo desatou a língua nas mais grosseiras<br />

imprecações, nos nomes mais injuriosos contra Deus e seu Servo; e quanto<br />

mais impropérios soltava, mais se enraivecia; não encontrando, em seu copioso<br />

vocabulário, palavras que lhe traduzissem todo o rancor que nutria contra o<br />

Santo, colecionou umas pedras na rua, e com elas fez em cacos a vidraça do<br />

quarto onde estava <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, de sorte que os pe<strong>da</strong>ços iam cair aos pés do<br />

nosso Santo, que chorava não de medo <strong>da</strong>s pedra<strong>da</strong>s nem de raiva <strong>da</strong>s palavras<br />

injuriosas, mas de compaixão para com o infeliz, que assim ofendia a Deus<br />

e escan<strong>da</strong>lizava o povo. Ao clamor do rapaz e ao som <strong>da</strong>s pedra<strong>da</strong>s acor<strong>da</strong>ram<br />

as pessoas dos arredores, que vendo o procedimento do moço, se amaram de<br />

cacetes, bengalas e chicotes para lhe <strong>da</strong>rem uma boa lição de urbani<strong>da</strong>de.<br />

Quando S. <strong>Clemente</strong> percebeu que a vizinhança se pusera em movimento, desceu<br />

também, não para se vingar, mas para tomar em sua defesa o rapaz libertino<br />

que o acabava de injuriar tão covardemente. Recomen<strong>da</strong>ndo a todos que<br />

tivesse compaixão do infeliz, disse: “Não lhe façais mal; vou agora à igreja,<br />

36<br />

celebrar a missa por intenção dele”. Os lavradores que acorreram, voltaram<br />

para casa descontentes por perderem uma ocasião tão boa de ensinar<br />

morali<strong>da</strong>de ao libertino, porém edificados com o procedimento de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>,<br />

que executava o conselho do divino Mestre: “Orai pelos que vos perseguem<br />

e caluniam”.<br />

Como esse pobre rapaz havia também outros, mesmo entre o clero, que<br />

não podiam ver com bons olhos a ativi<strong>da</strong>de apostólica e os resultados estupendos<br />

obtidos por S. <strong>Clemente</strong>. Não encontrando outras armas, nem descobrindo<br />

na vi<strong>da</strong> de <strong>Clemente</strong> coisa alguma que depusesse contra ele, recorreram à<br />

calúnia que forjaram com tanta habili<strong>da</strong>de, que muitos deram crédito às suas<br />

palavras. Assim acusaram o Santo ao delegado de polícia, de haver arrombado<br />

violentamente o sacrário para levar a comunhão a um dos seus doentes contra<br />

a vontade do vigário que lhe havia negado a chave. Como o delegado era prudente<br />

chamou o respectivo vigário, que aproveitou a ocasião para tecer oficialmente<br />

os mais elogiosos encômios ao zelo apostólico e às virtudes consuma<strong>da</strong>s<br />

<strong>da</strong>quele Servo de Deus, que trouxera à sua paróquia as mais copiosas<br />

bênçãos do céu.<br />

As más línguas porém não cansam, quando querem vingar-se ou fazer mal<br />

a um sacerdote; eram tantas as calúnias inventa<strong>da</strong>s pelos maus, que S. <strong>Clemente</strong><br />

pôde escrever a seus confrades na Itália: “<strong>São</strong> tantos os inimigos que se<br />

levantam contra nós nesta terra, onde estamos há pouco tempo, que sentimos<br />

necessi<strong>da</strong>de de amigos ver<strong>da</strong>deiros que nos consolem e nos levantem o ânimo”.<br />

Durante todo tempo em que o príncipe Fugger dominou em Babenhausen,<br />

estavam os Redentoristas bem amparados, porquanto esse bondoso príncipe<br />

era amigo de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, escolher o Pe. Sabelli para educador de seus filhos<br />

e tinha já em vista construir, em seu território, um convento e uma igreja para os<br />

padres Redentoristas. Mas naquele tempo an<strong>da</strong>va Napoleão pela Europa mu<strong>da</strong>ndo<br />

e transferindo reis e coroas, como se fossem figuras de xadrez; em 1806<br />

Fugger foi pelo poderoso monarca dos franceses despojado de suas terras que<br />

passaram a pertencer à Baviera cujo príncipe eleitoral fora mimoseado por<br />

Napoleão com a coroa real, por lhe haver prestado auxílio contra a Alemanha.<br />

Embora Maximiliano José fosse um monarca de bom coração e um cristão de<br />

convicção, deixou-se rodear de maus auxiliares, a cuja testa se achava o ímpio<br />

Montgelas, maçom e “iluminado”, que possuía tanta fé como a sua escrivaninha,<br />

arrogando-se poderes papais, espoliando as igrejas e abolindo todos os<br />

conventos <strong>da</strong> Baviera. Um dos seus primeiros atos foi, baixar um decreto, que<br />

proibia os Redentoristas to<strong>da</strong> e qualquer ativi<strong>da</strong>de no reino <strong>da</strong> Baviera.<br />

Entretanto recebia S. <strong>Clemente</strong> as mais desoladoras notícias do seu querido<br />

convento de <strong>São</strong> Beno, que desde o momento em que Varsóvia passou para<br />

o governo prussiano, fora o alvo do ódio dos maçons e dos “iluminados” que o<br />

queriam arrasar. Grave acusação acabava de ser feita contra os Benonitas ao<br />

rei <strong>da</strong> Prússia; estando o Reitor <strong>da</strong> casa, Pe. Thadeu, gravemente enfermo teve<br />

o Pe. Jestersheim de ir pessoalmente a Berlim desfazer a calúnia e defender-se<br />

junto ao rei, o que conseguiu felizmente com o mais brilhante êxito.<br />

To<strong>da</strong>s essas circunstâncias alarmantes faziam S. <strong>Clemente</strong> compreender<br />

que não se achava seguro em Babenhausen nem em Varsóvia. Mas para onde<br />

ir? Pensou primeiro na Itália e nesse sentido escreveu a Severoli, que infeliz-


mente nem com a melhor vontade pôde servir a seu amigo por não ter, na hora,<br />

nenhum colégio disponível na diocese, mas que aconselhou <strong>Clemente</strong> a não<br />

sair <strong>da</strong> Alemanha. Guiando-se por esse conselho resolveu dirigir-se a Würzburg<br />

no caso que a situação em Babenhausen se tornasse insuportável e insustentável,<br />

o que infelizmente sucedeu. Por ordem de Montgelas os vigários receberam<br />

proibição expressa e terminante de chamar Redentoristas para as suas<br />

paróquias, e o povo, de confessar a eles, <strong>da</strong>r-lhes intenções de missa, presentes<br />

etc. Tudo isso era anunciado e comentado publicamente do alto do púlpito.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> sentiu o coração partido; to<strong>da</strong>s as suas esperanças ruíram<br />

por terra; o Santo via-se só, perseguido de todos os lados. Um pensamento<br />

porém o consolava: era perseguido de todos os lados. Um pensamento porém o<br />

consolava: era perseguido tão somente por causa do bem que Ele e seus padres<br />

operavam; e Jesus dissera: “Bem-aventurados os que sofrem perseguições<br />

por amor <strong>da</strong> justiça”.<br />

Mas ele responsabilizara-se diante dos Superiores em Roma pela implantação<br />

do Instituto redentorista além do Alpes, e era esse o ideal <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>.<br />

Vendo que lhe era de todo impossível fixar-se na Europa, volveu seus olhos<br />

para a América, a terra clássica <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, que cheia de vi<strong>da</strong> e vigor se<br />

mostrava aos europeus, prometendo as maiores esperanças para o futuro. <strong>Clemente</strong><br />

era homem prudente, mas de decisões rápi<strong>da</strong>s, quando necessário; estava<br />

pois decidido: durante o inverno ficaria em Würzburg com os seus e logo,<br />

ao entrar na primavera, atravessaria os mares em deman<strong>da</strong> do Canadá; de lá<br />

man<strong>da</strong>ria missionários para cristianizar a Europa. — A única coisa que ain<strong>da</strong> o<br />

preocupava então, eram as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> viagem por causa <strong>da</strong> guerra <strong>da</strong><br />

França com a Inglaterra. Ele escreveu ao Pe. Thadeu: “Já estão feitos os preparativos<br />

para a viagem, porque sinto man<strong>da</strong>r embora e demitir <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

tão boa gente... muitas palavras causar-te-ão surpresa e dir-me-ás que o caminho<br />

do Canadá é longo; não faz mal, contanto que tenhamos um lugar, onde<br />

esperar tempos melhores, e formar missionários para a infeliz Europa! Da Suabia<br />

muitos se unirão a nós porque eles gostam de viajar; a dificul<strong>da</strong>de única é agora<br />

arranjar as passagens por causa <strong>da</strong> guerra... nunca me sinto tão bem como<br />

quando me lembro do Canadá... quero cui<strong>da</strong>r dos meus filhinhos antes de deixar<br />

este mundo... estamos estu<strong>da</strong>ndo o mapa e a geografia... só Deus sabe,<br />

onde os meus ossos aguar<strong>da</strong>rão a ressurreição...; se tiveres algum plano melhor,<br />

peço-te comunicar-me... do Canadá poderemos com o tempo man<strong>da</strong>r missionários<br />

para o Oriente”. E continuando a carta dá ao Pe. Thadeu a notícia de<br />

que todo o peso recai sobre os seus ombros: “... Aqui o Pe. Passerat detém-se<br />

no confessionário o dia inteiro, de sorte que nem lhe posso falar; ele pensa que<br />

todo o merecimento de um padre consiste em sentar-se no confessionário dia e<br />

noite; os outros são crianças, nem refletem na possibili<strong>da</strong>de de sermos expulsos<br />

<strong>da</strong> noite para o dia; tudo pois se acumula sobre a minha pessoa”.<br />

A 6 de agosto S. <strong>Clemente</strong> recebeu do Pe. Thadeu uma carta pedindo uma<br />

entrevista em Viena. <strong>Clemente</strong> com os mais negros pressentimentos abandona<br />

a idéia de ir a Würzburg e dirige-se a Viena; antes porém escreveu a S. Beno:<br />

“Coragem, Deus é o Senhor, que dirige tudo para a sua glória e o nosso bem;<br />

quem se levanta contra nós, leva-nos para onde Deus quer; caros confrades,<br />

conservemos a inocência e a perfeição: é só a isso que devemos aspirar; um<br />

37<br />

anime o outro”. Partiu para a capital <strong>da</strong> Áustria, e o seu coração lhe dizia que já<br />

não haveria de ver a muitos dos seus filhos. Com as lágrimas a rebentar-lhe dos<br />

olhos despediu-se: “É forçoso deixar-vos, caros confrades; em Varsóvia há maiores<br />

dificul<strong>da</strong>des ain<strong>da</strong> do que aqui em Babenhausen; rezai pela <strong>Congregação</strong><br />

para que ela não venha a perecer; os tempos são maus; quem sabe o que será<br />

de nós; talvez não nos vejamos mais”. Recomen<strong>da</strong>ndo ain<strong>da</strong> a todos a mais fiel<br />

obediência ao Pe. Passerat, do qual ninguém deveria separar-se, abraçou paternalmente<br />

a todos apertando-os contra seu coração; depois de uma breve<br />

oração levantou suas mãos ao céu e deitou sua bênção sobre a comuni<strong>da</strong>de,<br />

implorando para ela as bênçãos de Deus. Em segui<strong>da</strong> tomou o bordão do viajante<br />

e com o clérigo Martinho Starck partiu para Varsóvia passando por Viena.<br />

Os moradores de Weinried, que idolatravam seu apóstolo e benfeitor, foram a<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> dizer-lhe o último adeus — e em sinal <strong>da</strong> sua gratidão ofereceram-lhe<br />

cem escudos para a viagem. Era a última vez que eles veriam <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> sobre a terra.


CAPÍTULO VII<br />

O último ano em S. Beno<br />

Um jantar depois <strong>da</strong> oração <strong>da</strong> noite — Perseguições em Varsóvia — Atentado<br />

contra o Pe. Thadeu — O escudo quebrado — Napoleão — A Baviera<br />

hostiliza os Redentoristas — Zelo admirável dos padres — Tristes acontecimentos<br />

em Varsóvia.<br />

A pé, debaixo de um sol ardente, partiram S. <strong>Clemente</strong> e o clérigo Martinho<br />

Starck para Viena passando por Linz. Não levaram dinheiro consigo, porque S.<br />

<strong>Clemente</strong> presenteara a comuni<strong>da</strong>de de Babenhausen com o valioso donativo<br />

recebido dos habitantes de Weinried, e para a viagem muniram-se de uma boa<br />

porção de confiança na divina Providência. Muitas vezes tiveram de esmolar, de<br />

caminho, uma fatia de pão e de padecer fome não poucos dias. Uma vez aconteceu<br />

an<strong>da</strong>rem o dia inteiro sem provarem um pe<strong>da</strong>cinho de pão. Cansado e<br />

debilitado pela fome queixou-se Martinho Starck de não poder mais caminhar<br />

de fraqueza. S. <strong>Clemente</strong> consolou o súdito pedindo-lhe que tivesse paciência,<br />

porque o dia não passaria sem que ele recebesse suculento jantar. Embora a<br />

promessa não parecesse muito crível, Martinho fez um esforço supremo e em<br />

silêncio acompanhou o Superior até a ci<strong>da</strong>de, onde <strong>Clemente</strong> pediu um agasalho<br />

por ser já noite. Ain<strong>da</strong> que contrariado com a visita importuna, o dono <strong>da</strong><br />

casa, querendo passar por hospitaleiro, mandou buscar no paiol algumas palhas,<br />

que estendeu no chão para servirem de cama aos hóspedes e retirou-se.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> agradecendo a Deus que lhes proporcionava mais uma ocasião<br />

para a mortificação, disse ao companheiros: “Vamos fazer a oração <strong>da</strong> noite”. O<br />

clérigo, espantado, puxa a batina do Santo com as palavras: “E o jantar...?” <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> sorriu-se: “Reze e vá deitar-se, que a refeição virá”. O pobre clérigo<br />

abriu uns olhos que denunciavam tristeza e desaponto. Deitar-se para comer<br />

depois: isso lhe parecia uma ironia. Entretanto sabia que seu Superior nunca<br />

mentira. Foi deitar-se sobre as palhas sem to<strong>da</strong>via conciliar o sono por fome e<br />

cansaço. Na sala, entretanto, desenvolveu-se uma luta furiosa: dois jogadores,<br />

descontentes, gritava, imprecavam e blasfemavam contra Deus; <strong>da</strong>s palavras<br />

passaram aos fatos e a coisa ia-se tornando bem desagradável quando de<br />

repente aparece S. <strong>Clemente</strong>, olha a cena de longe, percebendo porém que a<br />

luta não queria terminar, entra no meios dos lutadores, pede por amor de Deus<br />

que deixem de ofender Nosso Senhor, se perdoem mutuamente para evitarem<br />

os remorsos <strong>da</strong>s consciência e os castigos do outro mundo; toma as dextras<br />

dos adversários, fita-os com mansidão e bon<strong>da</strong>de, e depois de os apaziguar<br />

com boas palavras consegue que eles se dêem amigavelmente as mãos. Um<br />

deles deixou-se tomar de veneração para com S. <strong>Clemente</strong>, e lembrando-se<br />

38<br />

que os dois senhores de batina tinham ido acomo<strong>da</strong>r-se sem jantar, mandou ao<br />

hoteleiro aprontar uma suculenta ceia para a qual convidou <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e<br />

seu companheiro, que se levantou bem depressa e se assentou à mesa. Termina<strong>da</strong><br />

a refeição, disse <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> sorrindo: “Martinho, está vendo como Deus<br />

é bom e não desampara os seus servos?”<br />

Na manhã seguinte partiram para Viena, onde o Pe. Thadeu Hübl os esperava;<br />

lá demoraram-se cerca de dois meses. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> preparava-se já<br />

para voltar a Varsóvia, quando em outubro, rebentou a guerra entre França e<br />

Prússia, de cujo êxito dependia a sorte de Varsóvia e conseqüentemente também<br />

de S. Beno. As batalhas de Iena e Auerstädt foram decisivas; Napoleão<br />

entrou triunfante em Berlim depois de derrotar, ou antes, aniquilar o exército<br />

prussiano. Varsóvia pois pertencia à França; em 1806 Napoleão em pessoa foi<br />

visitar a capital <strong>da</strong> Polônia depois que seu general Davoust lá tinha entrado<br />

debaixo <strong>da</strong>s aclamações delirantes do povo. No ano seguinte Napoleão elevou<br />

a Polônia à categoria de grão-ducado entregando-a a Frederico Augusto, que<br />

fora rei <strong>da</strong> Saxônia. Embora católico e até piedoso, Frederico Augusto era apenas<br />

um manequinho na Polônia, devendo obedecer servilmente aos magnatas<br />

<strong>da</strong> França e <strong>da</strong>nçar ao compasso <strong>da</strong> batuta de Napoleão. O ódio e a perseguição<br />

aos sacerdotes estendeu-se também à Polônia, na medi<strong>da</strong> que eram praticados<br />

na França. Os maçons e “iluminados” de Varsóvia exultavam, pois que a<br />

vitória lhes estava garanti<strong>da</strong>, e sem detença começaram a mais encarniça<strong>da</strong><br />

guerra contra o convento de S. Beno. Momentos amargos foram esses para S.<br />

<strong>Clemente</strong> que, mais tarde, o manifestou com as palavras: “Ninguém no mundo<br />

pode fazer idéia, e só no dia do juízo final ficará patente o quando padeci em<br />

Varsóvia nesses tristes dias”.<br />

Os maçons 3 de Varsóvia excogitaram um plano de campanha ardiloso contra<br />

os Benonitas e contra a religião, o que aliás costumam fazer em to<strong>da</strong> parte,<br />

também em nossos dias. Esforçaram-se primeiro para ridicularizar os Benonitas<br />

através <strong>da</strong> imprensa e de folhetos avulsos que distribuíam grátis entre o povo;<br />

em versos chulos a<strong>da</strong>ptados a melodias conheci<strong>da</strong>s e triviais zombavam-se<br />

dos sacerdotes e de Deus; e essas cantilenas ouviam-se nos cafés, nas esquinas,<br />

nos teatros etc.; para figuras cômicas nos teatros usavam a batina dos<br />

Benonitas; e o povo ébrio de divertimentos e novi<strong>da</strong>de ria-se e aplaudia a tudo,<br />

como outrora os judeus que gritavam Crucifique contra Jesus.<br />

As pessoas piedosas de Varsóvia, porém, firmes na sua fé continuaram a<br />

freqüentar ain<strong>da</strong> com mais assidui<strong>da</strong>de a igreja dos Redentoristas, onde recebiam<br />

com devoção os santos sacramentos, pois que as almas ver<strong>da</strong>deiramente<br />

religiosas não se incomo<strong>da</strong>m com as irrisões dos maus e chegam-se tanto<br />

mais aos sacerdotes, quanto mais estes são perseguidos e caluniados pelos<br />

inimigos de Deus. Em plena rua eram eles escarnecidos pela corja maçônica,<br />

que os apontava entre assobios de escárnio com o grito: “Benonitas, Benonitas!”<br />

Vendo os maçons que não conseguiam demover o povo de freqüentar a<br />

igreja dos Redentoristas, procuravam incutir temor aos padres, proibindo-lhes<br />

pregar sobre pecados, vícios etc. e man<strong>da</strong>ndo espiões à igreja. Quando um<br />

padre era chamado a confessar algum doente, ou quando ia pregar em outra<br />

igreja, os tais de combinação se punham se punham a assobiar, a populaça se<br />

reunia e o pobre padre se via desacatado publicamente. Ao Pe. Blumenau, ora-


dor fogoso que não só empolgava, mas também arrebatava as massas, ameaçaram<br />

de morte se continuasse a fazer as suas pregações; como o Pe. Blumenau<br />

não se deixasse atemorizar pelas pistolas carrega<strong>da</strong>s dos emissários <strong>da</strong> maçonaria,<br />

a raiva dos inimigos se transformou em fúria, de sorte que o pobre do<br />

padre não pôde mais sair de casa.<br />

O zelo apostólico dos Benonitas crescia na medi<strong>da</strong> que os maçons se enfureciam;<br />

de sorte que em 1807 pôde S. <strong>Clemente</strong> escrever a Roma: “A nossa<br />

igreja está sempre repleta; admiradíssimos estão os confessores do rei e <strong>da</strong><br />

rainha <strong>da</strong> Saxônia que vêm freqüentemente à nossa igreja e à nossa casa... em<br />

ca<strong>da</strong> missa distribuem-se mais de cem comunhões; muitos protestantes convertem-se...<br />

É um ver<strong>da</strong>deiro milagre poder sustentar 64 pessoas nestes tempos<br />

calamitosos sem o auxílio de um vintém de esmola”.<br />

Entretanto o Pe. Passerat estava lá para tratar <strong>da</strong>s passagens para o Canadá<br />

e <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> participou isto ao Vigário de Mitau, que lamentando intimamente<br />

a resolução do Santo, escreveu-lhe para o demover do seu intento: “Queres<br />

abandonar um povo que se nutriu a teu peito, somente porque sua cerviz é<br />

dura e seu coração corrompido? porque procuraste três anos os frutos e não os<br />

encontraste, queres agora cortar a figueira? Deus tal não permita”. Como porém<br />

o vigário não queria contrariar o Santo deu-lhe uma carta de recomen<strong>da</strong>ção<br />

para Lord Douglas em Londres.<br />

Em tudo isto o coração de S. <strong>Clemente</strong> sangrava, não tanto por causa <strong>da</strong><br />

sua pessoa, mas por causa dos seus padres, <strong>da</strong> sua queri<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, e<br />

ain<strong>da</strong> mais, <strong>da</strong> glória de Deus ultrajado — previa grandes males para o futuro e<br />

temia pela grandiosa obra que estabelecera na capital <strong>da</strong> Polônia.<br />

Em todos esses duros transes procurava ele, depois de Deus, o coração do<br />

grande e sincero amigo Pe. Thadeu Hübl para se desabafar e encontrar novo<br />

alento e coragem; e o Pe. Thadeu, homem de grande prudência e de vastos<br />

conhecimentos sempre sabia um bom conselho a <strong>da</strong>r e um expediente para<br />

sair <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des. É por isso que S. <strong>Clemente</strong> não poucas vezes o denominava<br />

“um outro eu” e a outra metade <strong>da</strong> sua alma.<br />

Havia pouco que <strong>Clemente</strong> e Thadeu tinham chegado a Varsóvia, quando<br />

este foi vítima de um nefando atentado. Sob pretexto de que um penitente, achando-se<br />

muito mal, o chamava para os últimos sacramentos, foram buscar o Pe.<br />

Thadeu em um carro. Mal o padre tinha entrado, quando o amarram de mãos e<br />

pés e lhe ven<strong>da</strong>m os olhos. Depois de muitas voltas chegam a uma choupana,<br />

onde não havia nenhum enfermo, mas alguns senhores e empregados. O padre<br />

recebe afrontas de to<strong>da</strong> a sorte e por fim a intimação de nunca mais ouvir de<br />

confissão certas senhoras, ao que o nobre Redentorista respondeu que não<br />

recuaria um passo do cumprimento do seu dever. A um aceno dos senhores, os<br />

empregados começam seu trabalho: despem o padre, lançam-no por terra, e<br />

põe-se a vergastá-lo com bengalas e outros instrumentos até rebentar o sangue<br />

de muitas chagas. Em estado grave foi ele, de olhos ven<strong>da</strong>dos, reconduzido<br />

a Varsóvia. Só S. <strong>Clemente</strong> ficou sabendo desse acontecimento.<br />

Mal restabelecido desses maus tratos foi o Pe. Thadeu chamado ao hospital.<br />

Era ele o único sacerdote que em Varsóvia falava sete línguas e por isso só<br />

ele estava em condições de consolar nos hospitais os sol<strong>da</strong>dos alemães italianos,<br />

franceses, polacos e boêmios que lá se reuniram com a entra<strong>da</strong> do exérci-<br />

39<br />

to francês e do regimento italiano. O bom do padre, embora doente, mostrou-se<br />

incansável no cui<strong>da</strong>do dos enfermos, acudindo a todos com carinho e presteza,<br />

até que Deus lhe mandou o aviso de que não estava longe o dia em que iria no<br />

céu receber a recompensa dos seus grandes trabalhos; a febre tifóide, apanha<strong>da</strong><br />

à cabeceira dos doentes, reduziu-o à fraqueza extrema; S. <strong>Clemente</strong> não<br />

saía de perto do seu confrade; vendo que a doença era grave administrou-lhe<br />

os santos sacramentos dos moribundos. Dia e noite passava o Santo junto do<br />

leito do seu caro Pe. Thadeu Hübl. À 4 de julho de 1807 rodeado de to<strong>da</strong> a<br />

comuni<strong>da</strong>de esperava Thadeu a morte com o rosto sereno e a conformi<strong>da</strong>de de<br />

um Santo; depois de receber a última bênção de S. <strong>Clemente</strong>, que conservava<br />

as mãos do moribundo entre as suas, o Pe. Thadeu voou para o céu deixando<br />

seus caros confrades imersos na mais profun<strong>da</strong> dor. A morte desse prestimoso<br />

sacerdote foi uma <strong>da</strong>s maiores provações para S. <strong>Clemente</strong>, porque amava<br />

Thadeu Hübl coo a seu irmão com amor santo e forte; a consternação no convento<br />

foi tal que ninguém teve ânimo nem a lembrança de fazer o necessário<br />

para o enterro. Foi preciso que de foram viessem as providências nesse sentido.<br />

O arcebispo mandou que por três dias cessassem as cerimônias <strong>da</strong> Igreja de S.<br />

Beno, providenciou para que a noite, empregados de confiança cobrissem o<br />

templo de luto pesado e arranjassem o maior número possível de velas. Nos<br />

três dias que se seguiram à morte do Pe. Thadeu, as comuni<strong>da</strong>des religiosas de<br />

Varsóvia rezaram, revezando-se, o ofício dos defuntos na igreja e todos esses<br />

dias, os sinos de Varsóvia dobraram tristemente durante uma meia hora. O<br />

enterro do antigo estu<strong>da</strong>nte mendigo foi pomposo como o sepultamento de um<br />

grande do mundo. A dor de S. <strong>Clemente</strong>, nessa ocasião, foi lancinante. Quatro<br />

meses depois, escreveu ain<strong>da</strong> a um amigo na Itália: “Tenho a convicção de que<br />

Hübl está no céu... conformo-me com a vontade santíssima de Deus, contudo<br />

devo confessar que, desde a sua morte, não tive mais nem uma hora feliz na<br />

vi<strong>da</strong>”. Em uma carta ao bispo, falando <strong>da</strong> dor que sentira pela morte de seu<br />

amigo Hübl, acrescentou: “No tempo <strong>da</strong> meditação, aos pés do Crucifixo, parece<br />

que estamos dispostos para tudo, mas logo que o Senhor nos quer impor a<br />

sua cruz, não sentimos coragem de carregá-la”. Semelhantes cartas repassa<strong>da</strong>s<br />

dos mais dolorosos sentimentos escreveu ele ao Pe. Passerat, que do seu<br />

lado também sentia a morte do amigo e companheiro Pe. Vannelet, falecido<br />

quase ao mesmo tempo que Hübl. Desconsolado escreveu Passerat a Varsóvia<br />

desfazendo-se em pensamentos tristes e desejando a morte, ao que S. <strong>Clemente</strong><br />

respondeu: “Devemos adorar a santíssima vontade de Deus e beijar cem<br />

vezes a mão que nos feriu, porque ele pode curar-nos novamente as chagas. Tu<br />

queres também morrer? será isso por amor de Jesus Cristo ou <strong>da</strong> carne, que<br />

reluta contra a cruz? melhor do que morrer é sofrer e permanecer pregado com<br />

Cristo na cruz”.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> tencionava ira Cur em visita ao Pe. Passerat e a seus padres;<br />

mas a morte inespera<strong>da</strong> de Thadeu Hübl o impediu; era difícil achar um<br />

substituto para o falecido: “O escudo está quebrado, Deus sabe o que agora<br />

virá sobre nós” disse ele a sua comuni<strong>da</strong>de em uma <strong>da</strong>s suas conferências.<br />

Em meados de novembro anunciou o Pe. Passerat sua provável i<strong>da</strong> a Cur.<br />

Essa carta parecia dita<strong>da</strong> pelos mais graves pressentimentos; são as últimas<br />

palavras de despedi<strong>da</strong> a transbor<strong>da</strong>r de amor e intimi<strong>da</strong>de. “Sede santos, aceitai


astante noviços... Procede de forma como se fosses o Vigário Geral, dou-te<br />

to<strong>da</strong>s as facul<strong>da</strong>des, os padres José e Francisco <strong>Hofbauer</strong> são teus auxiliares;<br />

alegrem-se eles contigo por serem as primeiras pedras do edifício; na eterni<strong>da</strong>de<br />

alegrar-se-ão certamente com os santos patriarcas, quando virem seus filhos<br />

sentados à direita de Deus; mas lembrem-se também que hão de suportar<br />

as dores <strong>da</strong> materni<strong>da</strong>de; o temor dos sofrimentos não os intimide de <strong>da</strong>r filhos<br />

a Nosso Senhor. Saúdo a todos, apertando-os contra o meu coração. Adeus,<br />

irmãos, vós sois a minha alegria, a minha coroa, a minha glória em Cristo;<br />

adeus, Jesus Cristo queira encher-vos a todos <strong>da</strong>s bênçãos celestiais, dê-vos o<br />

seu Santo Espírito como aos apóstolos. Santificai o mundo, caríssimos irmãos,<br />

na<strong>da</strong> poderá contra vós o inimigo, se Cristo for por vós; rezai por nós como o<br />

fazemos por vós para que cumpramos a santíssima vontade do nosso Pai. Sau<strong>da</strong>ções<br />

de todos os irmãos”. Essa carta não alcançou o seu destino porque o<br />

Pe. Passerat tinha abandonado Luzi em Cur justamente uma semana antes <strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>ta <strong>da</strong> carta.<br />

Já em junho Passerat escrevera a Varsóvia, que as calúnias contra os<br />

Redentoristas haviam já chegado a Paris. O Pe. Passerat, francês patriota, depusera<br />

to<strong>da</strong> a sua confiança e esperança em Napoleão, no grande imperador,<br />

“protetor <strong>da</strong> inocência oprimi<strong>da</strong>”; pedira ao Vigário Geral que se dirigisse a ele,<br />

pois que com uma só palavra o imperador faria calar todos os adversários.<br />

Pobre Passerat, em breve teve de sentir que o homem só pode confiar em<br />

Deus, que tem os corações dos reis em suas mãos! O adversário principal dos<br />

Redentoristas foi, naquele tempo, o governo bávaro, que fazia passar pela censura<br />

to<strong>da</strong>s as cartas envia<strong>da</strong>s ou recebi<strong>da</strong>s pelos padres <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>; vinte<br />

e quatro delas estão ain<strong>da</strong> guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s no arquivo do governo, cartas inocentes<br />

que só se referem a coisas de negócios e que bastariam para provar aos<br />

funcionários públicos que os Redentoristas não se envolviam em política nem<br />

se intrometiam em negócios do Estado. Alguns trechos dessas cartas são testemunhas<br />

evidentes do bom espírito que existia entre os bons religiosos. Assim<br />

a resposta a um postulante que perguntava o que deveria levar para ser recebido<br />

na <strong>Congregação</strong>, dizia: “Não compreendemos o que o sr. entende por requisitos<br />

<strong>da</strong> entra<strong>da</strong>... aqui na<strong>da</strong> se prescreve a respeito; quer traga bastante, quer<br />

traga pouco o sr. será recebido <strong>da</strong> mesma forma; se trouxer um coração dócil e<br />

bom, estimaremos mais do que to<strong>da</strong>s as riquezas e tesouros; aviso que o sr.<br />

não encontrará entre nós comodi<strong>da</strong>de alguma, mas sim uma vi<strong>da</strong> simples e<br />

pobre que não afaga nem a carne nem as paixões, mormente em nossos tempos,<br />

em que se exige uma alma forte para o sacerdócio; se estiver resolvido a<br />

isso, venha, venha quando quiser; não tenha cui<strong>da</strong>dos por causa do temporal,<br />

pense só em salvar a sua alma”. Mesmo dessa carta quiseram deduzir que os<br />

padres <strong>da</strong> Suíça chamavam para o estrangeiro os súditos <strong>da</strong> Baviera. Os padres<br />

Redentoristas receberam ordens de sair do território bávaro; não houve<br />

pois remédio. O Pe. Passerat aprontou-se e, em grupos de quatro, saíram todos<br />

para Valais na Suíça pelo caminho mais breve.<br />

Como as dificul<strong>da</strong>des se aumentavam dia a dia, o Pe. Passerat resolveu<br />

enviar para as suas casas os quatro estu<strong>da</strong>ntes, que o acompanharam; mas<br />

qual não foi o seu espanto, quando estes, assustados com a triste nova, se<br />

ajoelharam diante <strong>da</strong> Imagem de Nosso Senhor suplicando-lhe que não os de-<br />

40<br />

samparasse nem os julgasse indignos <strong>da</strong> santa vocação. O Pe. Passerat não<br />

pôde resistir, tomou-os consigo dizendo: “A Providência que cui<strong>da</strong> <strong>da</strong>s aves do<br />

céu, não nos abandonará”. Os diversos grupos encontraram-se em Visp. No<br />

meio de tantas desilusões <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> teve uma consolação bem grande:<br />

nesse ano de perseguições nenhum dos seus filhos se tornou infiel à sua santa<br />

vocação; pelo contrário em santa emulação exerciam-se todos de modo admirável<br />

na prática <strong>da</strong>s virtudes convertendo a milhares com suas palavras e mais<br />

ain<strong>da</strong> com seus exemplos. Tudo isso parecia menos mal a S. <strong>Clemente</strong>, mas o<br />

desejo ardente de achar um lugar e uma casa para os seus noviços e sua<br />

<strong>Congregação</strong>, ain<strong>da</strong> não se tinha realizado nem parecia querer realizar-se em<br />

breve. A i<strong>da</strong> ao Canadá, tornara-se impossível devido às circunstâncias.<br />

Em Varsóvia as coisas pioraram de dia para dia, só não na igreja, onde os<br />

padres no último ano tiveram na<strong>da</strong> menos de 104.000 comunhões, e mais ain<strong>da</strong><br />

teriam se os padres fossem mais numerosos; mas o ódio dos maçons aumentava-se<br />

sempre mais. <strong>São</strong> Beno tinha-se tornado o baluarte contra o livre<br />

pensamento que tudo avassalara. Já temos falado do atentado contra o Pe.<br />

Thadeu Hübl, que nos últimos anos era o representante de S. Beno; gozava nas<br />

ro<strong>da</strong>s católicas uma influência única; via-se o seu retrato até nos cachimbos e<br />

nas caixas de rapé; as princesas e as <strong>da</strong>mas nobres tinham-no por confessor. O<br />

contraste entre os Benonitas e os Jacobinos acentuava-se sempre mais.<br />

A <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não pouparam os maçons; à semelhança do Pe. Thadeu<br />

Hübl esteve ele atado de mãos e pés numa adega escura e fun<strong>da</strong> onde não se<br />

pôde afastar os sapos e rãs que pulavam sobre o seu rosto; ele mesmo afirmou<br />

uma vez, “haver sofrido na Polônia coisas que só serão manifesta<strong>da</strong>s no dia do<br />

juízo final”.<br />

Os Redentoristas ficaram afinal inteiramente isolados; não podiam trabalhar<br />

com o clero tão numeroso <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de porque as idéias divergiam demais.<br />

Davoust pôde com ver<strong>da</strong>de participar a Napoleão, que o clero de Varsóvia detestava<br />

os Benonitas, e um dia S. <strong>Clemente</strong> perguntado, por quem haviam sido<br />

expulsos os Redentoristas de Varsóvia, respondeu laconicamente: “pelos falsos<br />

irmãos”. Em geral porém, S. <strong>Clemente</strong> não tinha motivos mais sérios para suspeitar<br />

perigosa a sua posição no grão-ducado; suas últimas cartas não traem<br />

cui<strong>da</strong>dos nem receios. À 9 de março escreveu ain<strong>da</strong> ao Procurador geral dos<br />

Redentoristas em Roma: “Aqui não há novi<strong>da</strong>des; o tempo difícil, em que todos<br />

sofrem, não nos poupa, mas, Deus louvado, nossa <strong>Congregação</strong> faz dia a dia<br />

novos progressos”. Isso era apenas uma pausa. O Santo iria em breve sofrer a<br />

mais dura provação em sua vi<strong>da</strong>, pois que se preparava a ruína de <strong>São</strong> Beno.


CAPÍTULO VIII<br />

A expulsão<br />

Ver<strong>da</strong>deira causa <strong>da</strong> expulsão — Davoust persegue os Benonitas — Soleni<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> Páscoa — Decreto de Napoleão — Aviso do céu — Execução do<br />

Decreto — Resignação do Santo.<br />

A expulsão dos Redentoristas e a ruína de S. Beno devem sua realização,<br />

em parte, à loja maçônica de Varsóvia, a qual, desde muito, não podia ver com<br />

bons olhos a ativi<strong>da</strong>de dos padres e os resultados estupendos que haviam conseguido<br />

quanto à pie<strong>da</strong>de e moralização do povo. Embora tivessem os maçons<br />

trabalhado nesse sentido e contribuído para isso, não é bem a eles, mas às<br />

conseqüências desastrosas de Babenhausen, que se deve atribuir a expulsão<br />

dos padres de Varsóvia. O governo bávaro fez o que pôde não só para desmoralizar<br />

os Redentoristas, mas também para denegri-los aos olhos do povo, e<br />

apresentá-los ao público como uma socie<strong>da</strong>de inútil e prejudicial. Os diários<br />

mais importantes e mais lidos na Baviera v. g. o Postzeitung de Augsburgo, o<br />

jornal de Frankfurt etc. publicavam as maiores infâmias contra os padres de<br />

Babenhausen e de Cur.<br />

De uma dessas notícias teve conhecimento o coman<strong>da</strong>nte militar de Varsóvia,<br />

o marechal Davoust, a saber, que os Redentoristas haviam sido expulsos<br />

<strong>da</strong> Baviera, por haverem conspirado contra a paz e a tranqüili<strong>da</strong>de públicas, e<br />

que os Congregados estavam em correspondência epistolar com um tal <strong>Clemente</strong><br />

<strong>Hofbauer</strong>, Vigário Geral dessa Ordem em Varsóvia. Essa notícia foi o<br />

começo do fim para o convento de S. Beno. O marechal, desejoso de informações,<br />

escreveu a Montgelas, ministro do interior na Baviera. A carta-resposta<br />

deu a Devoust a informação deseja<strong>da</strong>, isto é, que os Redentoristas eram os<br />

causadores <strong>da</strong> perturbação <strong>da</strong> ordem em Babenhausen, fanatizando o povo,<br />

indispondo-o com o governo e o clero. que seus penitentes se distinguiam pela<br />

devassidão etc. Ain<strong>da</strong> mais perigosa foi a declaração de que em Cur se verificou<br />

ser sua presença prejudicial ao recrutamento dos regimentos para o Imperador<br />

dos franceses. Era o suficiente para Devoust man<strong>da</strong>r fazer buscas no<br />

convento e seqüestrar o arquivo <strong>da</strong> casa. Alguns trechos <strong>da</strong> correspondência<br />

epistolar confisca<strong>da</strong>, como: as relações dos Redentoristas com os Bourbons,<br />

com os jesuítas e os amigos dos jesuítas, as expressões do Pe. Eduardo de<br />

Mitau pouco honrosas para Napoleão e os franceses, o projeto <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção no<br />

Canadá, deviam realmente parecer comprometedoras a Davoust que selecionando<br />

as passagens mais obscuras escreveu a Napoleão a 12 de abril: “... Tenho<br />

certeza de que essa gente é realmente inimiga de todo governo, mormente<br />

do de Vossa Majestade; em breve terei a honra de enviar a V. M. os papéis, dos<br />

41<br />

quais V. M. poderá ver a constituição dessa Associação e quais as suas ramificações...<br />

Um tal Litta, Núncio do papa, é um dos grandes organizadores...<br />

<strong>Hofbauer</strong> esteve de viagem pela Suíça e França, mas já voltou faz pouco; as<br />

observações por ele feitas, levam à convicção de que é um homem perigoso...<br />

<strong>Hofbauer</strong> está em correspondência ativa com o confessor do rei <strong>da</strong> Saxônia...<br />

Peço a V. M. man<strong>da</strong>r a esta região homens experimentados e fiéis”.<br />

Os inimigos de <strong>São</strong> Beno tinham pois o jogo ganho. As acusações foram<br />

to<strong>da</strong>s acredita<strong>da</strong>s e aceitas sem mais in<strong>da</strong>gações, mesmo as que eram evidentes<br />

mentiras e calúnias. Assim p. ex. aconteceu que devido à grande carestia <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> os padeiros, açougueiros etc. de Varsóvia fecharam suas portas para não<br />

sofrerem prejuízos: e na ci<strong>da</strong>de correu que os Redentoristas os haviam instigado<br />

a isso para oporem dificul<strong>da</strong>des ao novo governo. Poucos meses antes eram<br />

os Benonitas considerados inimigos figa<strong>da</strong>is dos Prussianos, e agora acusados<br />

de amizade exagera<strong>da</strong> com eles. Davoust desejava liqui<strong>da</strong>r logo com os<br />

Redentoristas ain<strong>da</strong> mais que para isso não encontrava oposição no governo<br />

de Varsóvia; o único que protegia os Benonitas era Estanislau Breza, secretário<br />

de Estado na Polônia. O rei católico <strong>da</strong> Saxônia fez o papel de Pedro no átrio do<br />

Sumo Sacerdote: negou estar relacionado ou conhecer os Benonitas, exigiu<br />

também que Davoust examinasse pessoalmente a coisas com exatidão, e lhe<br />

man<strong>da</strong>sse as atas. Isso desagradou a Davoust. O marechal para não <strong>da</strong>r satisfações<br />

ao rei <strong>da</strong> Saxônia, só procurou uma ocasião em que pudesse provar a<br />

animosi<strong>da</strong>de dos padres contra os franceses, o que não tardou a <strong>da</strong>r-se. A 19<br />

de abril de 1808 celebrava o mundo cristão a festa <strong>da</strong> páscoa <strong>da</strong> Ressurreição<br />

do Senhor. Em S. Beno costumava essa festa ser celebra<strong>da</strong> com a maior soleni<strong>da</strong>de<br />

possível. No sábado de Aleluia prolongaram-se as cerimônias até às 10<br />

horas <strong>da</strong> noite, como é costume na Polônia; a igreja naquela ocasião assemelhava-se<br />

a uma noiva no dia <strong>da</strong>s suas núpcias, resplandecente ao clarão <strong>da</strong>s<br />

inúmeras velas e adorna<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mais lin<strong>da</strong>s flores. O templo regurgitava de povo<br />

de sorte se tornara impossível encontrar mais um lugar vazio na igreja. Quando<br />

o sacerdote no altar entoou o “Surrexit Dominus” o Senhor ressuscitou, milhares<br />

de vozes acompanharam o celebrante cheias de entusiasmo. Termina<strong>da</strong>s<br />

as cerimônias voltou novamente a tranqüili<strong>da</strong>de ao templo, e as pessoas puseram-se<br />

a caminho para suas casas, passando, como de costume, por uma porta<br />

estreita perto <strong>da</strong> sacristia. Naquele aperto apareceram dois senhores à paisana<br />

que queriam, à força, penetrar na igreja, dizendo serem oficiais franceses<br />

mas portando-se como embriagados. Não sendo atendidos, puseram-se a bater<br />

por todos os lados e a gritar contra o povo. Naturalmente as pessoas que<br />

saíam, ofenderam-se com aquele procedimento, e alguns mais valentes retribuíram<br />

na mesma moe<strong>da</strong> as cortesias dos oficiais franceses; o sangue chegou<br />

a correr. Passando por ali um oficial polaco encheu-se de cólera contra os franceses<br />

e estava já de espa<strong>da</strong> em punho para acabar com eles, quando apareceu<br />

o Pe. Jestersheim, Reitor dos Redentoristas, pedindo por amor de Deus que<br />

respeitassem aquela noite tão santa. Como tudo aquilo não passava de uma<br />

farsa, em que se procurava acusação contra os Benonitas, logo se propalou<br />

que o Pe. Reitor havia <strong>da</strong>do uma violenta bofeta<strong>da</strong> em um dos oficiais franceses;<br />

e isso era um crime perante a lei. Davoust ouviu os oficiais e remeteu a<br />

Napoleão as acusações junto com um resumo <strong>da</strong> correspondência de S. Cle-


mente.<br />

Napoleão leu com atenção as informações de Davoust e respondeu: “Eles<br />

parecem ser <strong>da</strong> mesma corporação como aqueles que expulsei <strong>da</strong> Itália e <strong>da</strong><br />

França; pedirei às cortes alemãs que os expulsem, e farei o mesmo ao rei <strong>da</strong><br />

Saxônia: esses padres começaram a existir há poucos anos e já se tentou inun<strong>da</strong>r<br />

deles a França; já proibi suas reuniões, mandei fechar seus conventos e<br />

dispersar-se todos indo ca<strong>da</strong> um para sua casa...!” E no mesmo dia mandou o<br />

Ministro do Exterior expulsar esses sacerdotes <strong>da</strong> Polônia... “por serem eles o<br />

renascimento dos jesuítas”. Era essa a sentença de morte contra S. Beno!<br />

Napoleão, em sua levian<strong>da</strong>de, afirmou que os Redentoristas inun<strong>da</strong>vam a França<br />

quando não havia nenhum deles lá!<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> iludira-se muito tempo a esse respeito; confiava demais na<br />

leal<strong>da</strong>de do rei católico <strong>da</strong> Saxônia, a quem pertencia Varsóvia. Deus entretanto<br />

quis preparar seu Servo para o grande golpe. À 9 de junho, num dos dias <strong>da</strong><br />

oitava de Pentecostes, lera no breviário as palavras do salmo 87: “Eu sou pobre,<br />

e em trabalhos estou desde a minha juventude, e embora exaltado e elevado,<br />

sinto-me humilhado e contristado”; nesse momento sentiu o corpo tremer como<br />

uma vara verde; pôs-se a meditar no que podia significar aquilo e tornou a sentir<br />

o mesmo tremor em todo o corpo; convenceu-se de que era aviso do céu para<br />

uma grande tribulação; curvou-se antecipa<strong>da</strong>mente, com to<strong>da</strong> a resignação,<br />

ante a vontade de Deus, e a tranqüili<strong>da</strong>de tornou a voltar à sua alma.<br />

Nesse mesmo dia foi assinado em Pilnitz o decreto que expulsava os<br />

Redentoristas de S. Beno. Essa ordem fora confecciona<strong>da</strong> por dois amigos do<br />

Santo: pelo rei <strong>da</strong> Saxônia e por Breza, secretário do Estado! O rei Frederico<br />

Augusto com lágrimas nos olhos tomou a pena para confirmar o decreto <strong>da</strong><br />

expulsão — fizera-o debaixo <strong>da</strong> pressão do imperador dos franceses. Pelo decreto<br />

era permitido aos padres levar consigo suas proprie<strong>da</strong>des pessoais e a<br />

viagem deveria ser feita às custas do governo.<br />

Aos 14 de junho o decreto chegou às mãos de Davoust, que com a maior<br />

circunspecção se preparou para desfechar o golpe; um funcionário, porém, amigo<br />

dos padres traiu o segredo; entrou no convento disfarçado por causa <strong>da</strong> grande<br />

vigilância dos sol<strong>da</strong>dos, e na maior reserva contou tudo a S. <strong>Clemente</strong>, o qual,<br />

convoca<strong>da</strong> a comuni<strong>da</strong>de, impôs-lhe o mais rigoroso segredo e narrou o que<br />

estava por acontecer. Foi como se um raio, naquele momento, caísse sobre o<br />

convento: uns até choraram e soluçaram de dor. Mas não havia tempo a perder;<br />

<strong>da</strong> igreja e <strong>da</strong> sacristia foram retira<strong>da</strong>s as alfaias mais preciosas; os ornamentos<br />

foram colocados na cripta; as relíquias reparti<strong>da</strong>s entre os padres e os irmãos;<br />

estes aprontaram as malas e ca<strong>da</strong> qual recebeu um pouco de dinheiro<br />

para as maiores e mais urgentes necessi<strong>da</strong>des eventuais.<br />

No dia seguinte houve as cerimônias na igreja como de costume sem que<br />

ninguém pudesse suspeitar a menor sombra de novi<strong>da</strong>de.<br />

O dia 17 de junho foram determinado para a execução do decreto. Pelo<br />

temor de possível sedição popular, foram guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s militarmente as ruas que<br />

iam ao convento; ao meio-dia apareceu em S. Beno a comissão <strong>da</strong> expulsão;<br />

era hora do culto. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> estava no púlpito a pregar e os padres no<br />

confessionário a ouvir as confissões. A citação foi feita sem mais preâmbulos<br />

com a obstupefação do povo que viu o Pe. <strong>Clemente</strong> interromper bruscamente<br />

42<br />

o sermão, e os irmãos ir de confessionário a confessionário chamar os padres,<br />

que se levantaram imediatamente. Fecharam-se as portas e o povo ficou preso<br />

dentro <strong>da</strong> igreja. Os comissários assustaram-se ao perceber a calma dos padres,<br />

que não se mostravam surpreendidos; temeram uma revolta, mas S. <strong>Clemente</strong><br />

tranqüilizou-os assegurando-lhes que o povo ignorava tudo e que eles<br />

não usariam violência. Os Redentoristas, desde aquele momento, estavam presos<br />

por ordem de Davoust e incomunicáveis — só então é que abriram as portas<br />

<strong>da</strong> igreja e deixaram o povo sair.<br />

Davoust não era contrário à i<strong>da</strong> dos padres à Galícia como haviam pedido,<br />

mas, como o coronel austríaco na<strong>da</strong> podia decidir sem primeiro consultar Viena,<br />

o coman<strong>da</strong>nte indignou-se e mandou os presos para Küstrin, donde ca<strong>da</strong><br />

um iria para sua casa; isto se <strong>da</strong>ria a 20 de junho. Os comissários franceses<br />

insistiram com os clérigos e estu<strong>da</strong>ntes de Varsóvia, a que rompessem de vez<br />

com os padres e de lá mesmo voltassem para suas casas; só um foi infiel à<br />

vocação; todos os outros preferiram partilhar a sorte dos demais padres indo<br />

juntos ao exílio. A comuni<strong>da</strong>de de S. Beno contava então quarenta membros,<br />

dos quais vinte eram padres e vinte estu<strong>da</strong>ntes e irmãos leigos. No dia 20 de<br />

junho, levantaram-se os religiosos às 3h30min, prepararam-se para a viagem e<br />

esperaram os carros que os haviam de separar <strong>da</strong> cela queri<strong>da</strong>. Os veículos<br />

não tar<strong>da</strong>ram a chegar a S. Beno munidos de sol<strong>da</strong>dos. Embora de madruga<strong>da</strong>,<br />

as ruas e as janelas <strong>da</strong>s casas achavam-se repletas de povo; os padres entretanto<br />

consolaram-se ao verem que os carros seguiam na mesma direção esperando<br />

poder juntos beber o cálice <strong>da</strong> amargura e do desterro; mas essa consolação<br />

também evanuiu-se quando, ao sair <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, perceberam que os carros<br />

se dirigiam para direção diversa; separavam-se, talvez para sempre, sem se<br />

despedirem. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, sentando em seu carro baixara a cabeça resignando-se<br />

com a vontade santíssima de Deus, enquanto que seus dedos desfiavam<br />

as contas do rosário <strong>da</strong> Virgem, e seu coração rezava pelos filhos perseguidos<br />

e pelos perseguidores. Nenhuma palavra de queixa ou reprovação saiu de seus<br />

lábios; colocara tudo nas mãos <strong>da</strong> Providência.<br />

Era o fim de S. Beno.<br />

Durante cinco dias, de carros fechados, foram conduzidos para o Oeste<br />

parando apenas ao meio-dia e à tarde para o descanso dos cavalos — enfim<br />

chegaram a uma ci<strong>da</strong>de cingi<strong>da</strong> de muralhas de todos os lados. Lá havia uma<br />

fortaleza, como <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> nunca vira na sua vi<strong>da</strong>; — e agora ia vê-la bem<br />

de perto; a ci<strong>da</strong>de era to<strong>da</strong> protestante. Os carros pararam em frente a essa<br />

fortaleza no meio <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, abriram-se as portas e os padres receberam o<br />

convite de entrar dentro do soberbo prédio. Foi na ci<strong>da</strong>de e na fortaleza de<br />

Küstrin, perto de Berlim que se reuniram os exilados. A habitação era espaçosa<br />

e o tratamento não deixou na<strong>da</strong> a desejar. Ca<strong>da</strong> um recebeu um quarto separado;<br />

na sala grande levantaram um altar, e a comuni<strong>da</strong>de reencetou os seus<br />

exercícios, prescritos pela Regra, como se os Congregados se achassem no<br />

convento. Os protestantes sentiam compaixão dos exilados e não tar<strong>da</strong>ram a<br />

simpatizar-se com eles; em grandes grupos detinham-se perto <strong>da</strong>s janelas a<br />

ouvir os cânticos que ecoavam pela sala; os pastores protestantes chegaram a<br />

temer a influência dos sacerdotes católicos sobre as suas ovelhas.<br />

Aos 28 de junho S. <strong>Clemente</strong> dirigiu uma carta ao arcebispo de Posen,


agradecendo todos os favores recebidos e <strong>da</strong>ndo algumas informações sobre a<br />

situação “... conformamo-nos com a sorte que nos coube pela vontade de Deus;<br />

é-nos suave o sofrimento porque nossa consciência de na<strong>da</strong> nos acusa; o decreto<br />

nos foi anunciado sem preceder-lhe processo, e foi executado com mais<br />

dureza do que fora lavrado... estamos separados de todos e não sabemos porque;<br />

estamos aqui na fortaleza e só Deus sabe a sorte que nos espera... porém<br />

em tudo reconhecemos a vontade de Deus que seja sempre glorificado Deus<br />

permitiu isto, porque não éramos o que deveríamos ser”.<br />

A prisão na fortaleza durou quatro semanas passa<strong>da</strong>s na mais escrupulosa<br />

observância regular, semanas de mortificação e de resignação com a vontade<br />

divina; <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> nutria ain<strong>da</strong> a esperança de poder conservar uni<strong>da</strong> a<br />

sua queri<strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de; confiava sempre na leal<strong>da</strong>de e amizade do rei que<br />

tudo faria para o seu regresso a Varsóvia ou a alguma residência na Saxônia.<br />

Eram sonhos! Em meados de julho anunciou-se aos exilados a cassação do<br />

desterro, indo ca<strong>da</strong> um para sua casa. Tremendo golpe para S. <strong>Clemente</strong>! Separar-se<br />

dos seus, ver seus planos esfacelados, sua grande obra aniquila<strong>da</strong>, o<br />

ideal <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> para sempre frustrado! O fechamento do convento de <strong>São</strong><br />

Beno significava não só a per<strong>da</strong> de uma residência como Triberg, Babenhausen<br />

etc., mas a dissolução <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> além dos Alpes. Quando, na fortaleza,<br />

ele abraçou os seus súditos por despedi<strong>da</strong>, fê-lo pela última vez, porque a muitos<br />

dentre eles não veria mais em sua vi<strong>da</strong>.<br />

Só restava ain<strong>da</strong> salvar as proprie<strong>da</strong>des <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> em Varsóvia: as<br />

novas construções, os terrenos adquiridos etc. O Pe. Jestersheim, saxônio de<br />

nascimento, foi incumbido desse negócio, ain<strong>da</strong> mais que fora ele o Reitor <strong>da</strong><br />

casa desde a morte do Pe. Thadeu Hübl. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> esperou em Viena a<br />

solução final de tudo, para de lá tomar a decisão sobre sua futura residência.<br />

Consigo levou o clérigo Martinho Stark e o irmão Mathias Wildhalm, os únicos<br />

austríacos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de dissolvi<strong>da</strong>.<br />

A viagem a Viena não se deu sem dificul<strong>da</strong>des e dissabores para o Servo<br />

de Deus. No passe recebido do governo estava, com to<strong>da</strong> a exatidão, determina<strong>da</strong><br />

a marcha de Küstrin até Viena. Como porém S. <strong>Clemente</strong> desejava celebrar<br />

todos os dias o santo Sacrifício <strong>da</strong> missa tinha de fazer, às vezes, algum<br />

pequeno desvio para chegar a uma igreja católica, o que não era fácil naquelas<br />

regiões onde dominava o protestantismo. Na Silésia Superior saiu-se mal uma<br />

vez, porque encontrando tropas francesas, teve de lhes apresentar o passe,<br />

que o clérigo Martinho Stark, na grande pressa, perdera com os outros papéis.<br />

Levaram-no ao Coman<strong>da</strong>nte que o tomou por espião e já estava para ordenar o<br />

seu fuzilamento, quando apareceu um oficial polaco, conhecido do Santo, o<br />

qual deu informações favoráveis; devido a isso o Santo foi detido em um convento<br />

até chegar de Küstrin a notícia de que <strong>Clemente</strong> e Martinho Stark haviam<br />

recebido o passe. Assim, debaixo de agruras e dissabores, chegou o nosso<br />

Santo às últimas fronteiras do país, ao qual tantos benefícios prestara, em os<br />

dias do seu ativo apostolado. O novo país, que haveria de receber dele as mais<br />

insignes bênçãos do céu, recebeu-o mal até com injuriosa suspeita. Atravessa<strong>da</strong>s<br />

as fronteiras <strong>da</strong> Áustria foram logo aprisionados por faltarem, mais uma<br />

vez, os necessários passaportes, e tiveram de esperar até que uma nobre senhora<br />

polaca, que se interessara por S. <strong>Clemente</strong>, lhes procurou novos docu-<br />

43<br />

mentos em Viena.<br />

Conseguidos os papéis reencetaram a viagem por Olmütz e Brünn até<br />

Tasswitz, onde S. <strong>Clemente</strong> esteve com sua irmã Bárbara. Depois de uma breve<br />

demora na pátria, apressou-se o Santo a partir para a nova residência ao encontro<br />

de novos esforços e trabalhos.<br />

Quem poderia imaginar que aquele sacerdote pobre, perseguido e desconhecido<br />

seria por Deus escolhido como instrumento para a restauração do espírito<br />

cristão, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira pie<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> salvação de inúmeras almas na grande<br />

ci<strong>da</strong>de, em que acabara de entrar, e em to<strong>da</strong> a Áustria, para não dizer no<br />

mundo inteiro! Quem acreditaria que aquele homem sem nome, avançado já<br />

em anos, seria o médico enviado por Deus para inocular nova vi<strong>da</strong> e nova força<br />

à Igreja na Áustria que definhava sob o jugo do josefismo nas garras <strong>da</strong> maçonaria!<br />

Deus assim apraz-se em brincar com os homens; fá-los passar por dificul<strong>da</strong>des<br />

e parece querer aniquilá-los, quando os escolhe para instrumentos <strong>da</strong><br />

execução dos seus grandiosos planos. Deus escolhe o fraco para confundir o<br />

forte, e destruir aquilo que o mundo preza, com aquilo que o mundo despreza.<br />

Vinte anos passaram desde a ordenação sacerdotal de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> até<br />

a expulsão de Varsóvia, período bastante longo, repleto de trabalhos, de grandes<br />

planos, de belas esperanças, de grandiosos sucessos, mas também de<br />

amargas desilusões, de cruéis perseguições, de nefan<strong>da</strong> ingratidão; foi uma via<br />

crucis de vinte anos e de outras tantas estações, ca<strong>da</strong> qual mais doí<strong>da</strong> e torturante.<br />

Quem tudo olha só com os olhos <strong>da</strong> carne, terá compaixão de <strong>Clemente</strong>,<br />

a quem olhará como a um infeliz sem sorte, que trabalhou em vão. Os desígnios<br />

de Deus são imperscrutáveis; to<strong>da</strong>s essas peripécias só serviram para mostrar<br />

ao mundo a grandeza <strong>da</strong> alma de S. <strong>Clemente</strong>, que qual rochedo inabalável<br />

sustentado pelas mãos do Eterno, resistia a tudo depositando inteira confiança<br />

em Aquele que não desampara seus filhos. Nessas desilusões é que admiramos<br />

a santi<strong>da</strong>de do herói, que não abre sua boca para proferir uma palavra<br />

sequer contra as disposições admiráveis <strong>da</strong> Providência.


PARTE TERCEIRA<br />

O apóstolo de Viena (1808-1820)<br />

CAPÍTULO I<br />

Chega<strong>da</strong> à Viena e<br />

primeiros trabalhos<br />

Chega à Viena — Dificul<strong>da</strong>des com a polícia — O racionalismo na Áustria<br />

— Napoleão e Francisco <strong>da</strong> Áustria — Bombardeio de Viena — Batalha de<br />

Aspern — Na igreja dos Italianos — Os Mechitaristas — Trabalhos prediletos —<br />

Intimação do governo — Notícias de Valais — Fun<strong>da</strong>ção em Friburgo.<br />

Viena não recebeu com as devi<strong>da</strong>s honras o seu grande Apóstolo, que a<br />

visitou no intenso inverno de 1808. Apenas chegado à Capital <strong>da</strong> Áustria, teve<br />

de avir-se coma polícia, que lendo no passaporte o nome de <strong>Clemente</strong> <strong>Hofbauer</strong>,<br />

vindo <strong>da</strong> fortaleza de Küstrin, se deixou levar pelas mais graves suspeitas; sem<br />

mais preâmbulos conduziu o pobre padre com seu companheiro ao posto policial,<br />

onde ambos ficaram detidos os três dias inteiros, que foram necessários<br />

para o exame dos papéis e as informações a respeito dos prisioneiros. Terminado<br />

e protocolado esse exame, originou-se na polícia nova suspeita, ao verificar<br />

que ricos paramentos de igreja acondicionados em dois enxergões e um grande<br />

caixão, se achava em poder <strong>da</strong>quele sacerdote. A modéstia excessiva <strong>da</strong><br />

batina do padre contrastava por demais com a riqueza dos paramentos; <strong>da</strong>í a<br />

conclusão, de que muito provavelmente deveriam ter sido roubados a alguma<br />

igreja <strong>da</strong>s imediações; e essa suspeita atingiu a seu auge quando o agente<br />

policial encontrou em poder de S. <strong>Clemente</strong> uma boa quantia de dinheiro. Não<br />

foi difícil ao Santo provar à polícia que aqueles paramentos preciosos, ele os<br />

comprara legitimamente quando Superior em Varsóvia, e que aquele dinheiro<br />

ele o recebera <strong>da</strong> família Bourbon na Polônia como intenções de missa. Depois<br />

de três dias presos foram postos em liber<strong>da</strong>de, mas as investigações prolongaram-se<br />

durante meses tantos em Dresden como em Varsóvia e Viena. Foi necessária<br />

a intervenção do Núncio Apostólico, que pediu informações oficiais<br />

<strong>da</strong>s autori<strong>da</strong>des civis e eclesiásticas de Varsóvia a respeito dos objetos levados<br />

por S. <strong>Clemente</strong>; somente depois dessas declarações oficiais é que a polícia<br />

restituiu os paramentos. Foi nessa ocasião que Severoli escreveu ao bispo de<br />

Varsóvia: “Deus tem permitido que esse seu Servo fiel seja provado por muitas<br />

contrarie<strong>da</strong>des, para fazê-lo ain<strong>da</strong> mais digno <strong>da</strong> sua divina complacência; amo<br />

e venero imensamente esse homem de Deus tanto por simpatia pessoal como<br />

principalmente por ele trabalhar tanto pelo rebanho de Jesus Cristo”.<br />

Chegados em Viena necessitavam de algum albergue, ao menos para as<br />

primeiras semanas. S. <strong>Clemente</strong> lembrou-se do seu velho mestre Weyrig, e<br />

para lá foi com o Fr. Stark num dos arrabaldes de Viena; o Irmão Widhalm hos-<br />

44<br />

pedou-se com os Servitas enquanto que o Irmão Manoel Kunzmann, que entretanto<br />

chegara a Viena, encontrou um lugar no convento dos Cistercienses. Quatro<br />

Redentoristas achavam-se em a Capital austríaca, porém separados sem<br />

formarem comuni<strong>da</strong>de. Na casa de Weyrig S. <strong>Clemente</strong> era o cozinheiro e as<br />

refeições obedeciam sempre ao mesmo cardápio a saber: pão negro e bolo de<br />

farinha. Não lhe faltaram contudo convites feitos pelos bons amigos que possuía<br />

em Viena; às sextas-feiras e aos sábados ia sempre à casa do padeiro “A<br />

pera de ferro” para suas modestas refeições. A pequena Pepi, filhinha do padeiro,<br />

a qual não era pouco curiosa, observava atentamente, nessas ocasiões,<br />

quanto ca<strong>da</strong> um comia; muitos anos mais tarde ela contou: “Quanto mais insípi<strong>da</strong><br />

a comi<strong>da</strong>, mais parecia ser do gosto de <strong>Clemente</strong>, que deixava de lado todo<br />

o manjar agradável e apetitoso; creio que ele nunca matou a fome lá em casa”.<br />

<strong>Clemente</strong> porém não se demorou muito na casa do seu antigo mestre nos<br />

arrabaldes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de; os católicos de Viena, edificando-se desde logo com o<br />

procedimento santo de <strong>Clemente</strong>, fizeram questão que esse homem de tantas<br />

virtudes se hospe<strong>da</strong>sse no centro <strong>da</strong> Capital.<br />

<strong>Clemente</strong>, homem de ação, habituado às lutas, afeito aos grandes empreendimentos,<br />

não podia acostumar-se à vi<strong>da</strong> de completa inação a que se via<br />

condenado sem nenhuma ativi<strong>da</strong>de apostólica. Sem esperança de breve alteração<br />

em seu modo de viver, <strong>Clemente</strong> pensava em abandonar Viena. Nas<br />

horas em que a aflição oprimia sua alma pela solidão em que se via imerso, ia<br />

visitar o Santuário <strong>da</strong> Virgem do Socorro, não distante de Viena; lá desabafava<br />

seu coração apostólico, que clamava constantemente com S. Francisco Xavier.<br />

“Da mihi animas” <strong>da</strong>i-me almas, Senhor, <strong>da</strong>i-me a possibili<strong>da</strong>de de sacrificarme,<br />

de imolar-me inteiramente em prol <strong>da</strong>s almas abandona<strong>da</strong>s, para reconduzilas<br />

ao aprisco e levá-las ao céu. “Prostrava-se em segui<strong>da</strong> ante o altar do<br />

Santíssimo, onde passava, por vezes, horas e horas a fio em procura de conforto,<br />

de animação e de conformi<strong>da</strong>de. O povo de Viena, pouco habituado a semelhantes<br />

transportes de devoção e fervor, admirava e, em magníficos comentários,<br />

enaltecia aquele sacerdote que em todo o seu porte, mormente nos momentos<br />

<strong>da</strong> prece, fazia resplandecer um que de extraordinário e divino. Essa<br />

admiração, origina<strong>da</strong> <strong>da</strong> santi<strong>da</strong>de não comum <strong>da</strong>quele sacerdote recém-chegado<br />

em Viena, não se apoderara só do povo simples, mas sobretudo de pessoas<br />

altamente coloca<strong>da</strong>s como: o arcebispo de Viena Mons. Hohenwart, o<br />

Núncio apostólico Mons. Severoli, Mons. Muzzi, auditor <strong>da</strong> Nunciatura, o Provincial<br />

dos Carmelitas e o dos Servitas, os quais se tornaram todos amigos íntimos<br />

do nosso Santo.<br />

Nesses primeiros anos de solidão dedicou-se o Servo de Deus, de um<br />

modo todo especial, à oração, que sabia ser a arma poderosa que conquista o<br />

coração do próprio Deus. Orava por seus caros confrades expulsos <strong>da</strong> Polônia<br />

e dispersos pelo mundo para que Deus lhes concedesse a perseverança; orava<br />

por aqueles confrades que sob a direção do grande Pe. Passerat erravam de<br />

um lugar para o outro em busca de um seguro abrigo para a <strong>Congregação</strong>;<br />

orava porém com especial ardor por sua pobre Pátria, presa do racionalismo<br />

implantado <strong>da</strong> França, o qual na Áustria levava o nome de josefismo. Como o<br />

intuito do racionalismo é extinguir a fé no coração do povo, projetando sobre<br />

to<strong>da</strong>s as ver<strong>da</strong>des, mesmo de ordem sobrenatural, apenas os fracos lampejos


<strong>da</strong> limita<strong>da</strong> razão humana, compreende-se que os seus defensores se empenhavam<br />

em estancar, o mais possível, to<strong>da</strong>s as fontes que pudessem alimentar<br />

ou fomentar o sentimento religioso; eis porque na Áustria as leis do josefismo 4<br />

proibiam as pregações substanciosas <strong>da</strong> palavra divina, a impressão e difusão<br />

de livros piedosos, o adorno dos templos, as rezas e devoções públicas, as<br />

missas solenes, a freqüência dos sacramentos etc.; as irman<strong>da</strong>des foram quase<br />

to<strong>da</strong>s aboli<strong>da</strong>s, as procissões restringi<strong>da</strong>s, as romarias formalmente interditas.<br />

O josefismo chegou até a determinar o número de velas e acender-se nos<br />

altares durante as cerimônias religiosas; não se podia introduzir nenhuma reza<br />

nem cantar hino algum a não ser com a alta aprovação e licença do governo.<br />

Essas leis causaram no princípio a indignação geral; mas, aos poucos, foi-se o<br />

povo habituando a elas na medi<strong>da</strong> que desaparecia a fé e o sentimento religioso.<br />

Era desolador o estado <strong>da</strong> religião na Áustria pelos anos de 1808; a vi<strong>da</strong><br />

cristã com seus encantos espirituais era desconheci<strong>da</strong> entre o povo; os que<br />

freqüentavam a igreja, aos domingos, faziam-no quase só por costume e tradição;<br />

os homens envergonhavam-se <strong>da</strong> prática <strong>da</strong>s devoções católicas, que denominavam<br />

crendices e superstição e temiam ser conhecidos na socie<strong>da</strong>de<br />

como católicos <strong>da</strong> têmpera dos antigos, que não baseavam sua crença na palavra<br />

do homem nem nos ditames <strong>da</strong> falível e fraca razão humana, mas sim na<br />

autori<strong>da</strong>de de Deus que tem poder e direito de manifestar sua vontade ao homem<br />

e de lhe revelar seus mistérios e suas ver<strong>da</strong>des.<br />

Nos templos as pregações não eram vaza<strong>da</strong>s nos moldes <strong>da</strong> simplici<strong>da</strong>de<br />

e liber<strong>da</strong>de apostólicas, nem versavam sobre as ver<strong>da</strong>des substanciosas do<br />

dogma ou <strong>da</strong> moral cristã e muito menos sobre as ver<strong>da</strong>des eternas, mas limitavam-se<br />

a frases vazias de sentido, períodos altissonantes, floreados retóricos,<br />

terminologia insípi<strong>da</strong> de humani<strong>da</strong>de e filantropia e quejan<strong>da</strong>s expressões, inventa<strong>da</strong>s<br />

para o engano <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de. Isso eram, aliás, muitíssimo natural, e<br />

nem se podia esperar outra coisa dos sacerdotes formados nos seminários<br />

gerais do governo, onde os jovens bebiam a largos tragos o espírito envenenado<br />

<strong>da</strong>s leis e <strong>da</strong> doutrina do josefismo.<br />

No ano em que S. <strong>Clemente</strong> foi a Viena, i. é em 1808 já não existiam esses<br />

tais seminários, mas o seu espírito ain<strong>da</strong> perdurava. Nas escolas públicas ensinava-se<br />

às crianças o catecismo explicado segundo as normas do racionalismo 5 ,<br />

de acordo com os princípios de Pestalozzi e de Rousseau. Nos ginásios confirmava-se<br />

o racionalismo, que atingia seu auge nas universi<strong>da</strong>des, onde se ouvia<br />

a filosofia de Kant sem palavra alguma que pudesse abrir aos alunos os horizontes<br />

sublimes <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de católica, que enleva o espírito e conforta os corações.<br />

A conseqüência natural de tudo isso era o ódio ou, pelo menos, o desprezo<br />

ao clero, a liber<strong>da</strong>de mal entendi<strong>da</strong> de ca<strong>da</strong> um poder formar a sua religião e<br />

forjar a sua crença de acordo com as suas comodi<strong>da</strong>des, os seus interesses e<br />

os seus caprichos.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, ao chegar a Viena, viu logo o abismo em que se precipitava<br />

sua pátria, e a ruína de milhares e milhares de almas; quis logo levantar a voz,<br />

clamar, ensinar, persuadir, mover, converter, porém debalde; foi-lhe imposto o<br />

mais rigoroso silêncio tanto no púlpito como no confessionário. Só uma coisa<br />

podia ele fazer: rezar e rezar bastante — e <strong>Clemente</strong> orava, pedia a Deus se<br />

amerceasse do pobre povo e lhe man<strong>da</strong>sse homens de valor e de peso, capa-<br />

45<br />

zes de combater com vantagem o josefismo e de implantar na Europa a Santa<br />

religião que produz os heróis <strong>da</strong> virtude e <strong>da</strong> santi<strong>da</strong>de. S. <strong>Clemente</strong>, em sua<br />

grande modéstia estava longe de suspeitar ser ele mesmo o homem escolhido<br />

pela Providência para debelar o racionalismo e converter a Áustria e a Europa<br />

com a sua palavra e o seu exemplo<br />

O próprio Deus se incumbiu de preparar o terreno para a admirável ativi<strong>da</strong>de<br />

apostólica que S. <strong>Clemente</strong> haveria de desenvolver em Viena. Em 1809 o<br />

imperador Francisco <strong>da</strong> Áustria, confiado no auxílio do céu e no patriotismo de<br />

seus súditos resolveu guerrear o imperador dos franceses e humilhar a arrogância<br />

de Napoleão; convocou seus sol<strong>da</strong>dos, dos quais 176.000 se postaram<br />

nas fronteiras <strong>da</strong> Polônia, enquanto que 80.000 defendiam a Áustria contra a<br />

Itália. Os príncipes alemães acharam mais prudente e seguro combater ao lado<br />

de Napoleão e abandonaram vergonhosamente o imperador Francisco <strong>da</strong> Áustria<br />

cobrindo-o de injúrias, taxando de loucura e megalomania o seu procedimento<br />

em conjunturas tão arrisca<strong>da</strong>s. Napoleão indignado resolvera esmagar a<br />

Áustria e perder a família dos Habsburgos. A 20 de abril Napoleão, a frente de<br />

seu exército entra na Alemanha e desbarata os austríacos em Abensberg e em<br />

Eckmühl, avançando até Viena; a 10 de maio assedia a Capital, cujo imperador<br />

fugira para a Hungria com to<strong>da</strong> a família. Nenhuma potência ousou levantar-se<br />

para terçar armas em defesa <strong>da</strong> Áustria. A 12 de maio começou Napoleão a<br />

bombardear Viena — e de momento a momento crescia o furor do bombardeio;<br />

bombas sibilavam pelos ares, penetravam nas casas dos particulares produzindo<br />

o pânico em to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de. Todos tremiam, só <strong>Clemente</strong> conservava a sereni<strong>da</strong>de<br />

d’alma, depositando to<strong>da</strong> sua confiança em Deus, e qual outro Moisés<br />

dirigia ao céu as mais ardentes preces em favor de sua pátria enquanto fervia o<br />

combate; <strong>da</strong> oração levantava-se ele apenas para animar e consolar as famílias;<br />

não era fácil a sua tarefa porque as bombas caíam sobre a ci<strong>da</strong>de como as<br />

gotas d’água numa chuva impertinente. A família Weyrig, onde se achava <strong>Clemente</strong>,<br />

parecia desesperar, quando <strong>Clemente</strong> a sorrir mandou que todos se<br />

ajoelhassem para implorar do céu a proteção; rezava a família quando uma<br />

bomba penetrando pela janela passou por cima <strong>da</strong>s cabeças dos que oravam e,<br />

sem explodir, rolou tranqüila a um canto do quarto. O bombardeio não tardou a<br />

cessar porque Viena se entregou depois de algumas horas; a casa em que<br />

estivera o Servo de Deus não sofreu a menor arranhadura, não obstante acharse<br />

no ponto <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, onde o fogo era mais violento e terrível.<br />

Napoleão entrou na ci<strong>da</strong>de, onde não se demorou muito; correu com seu<br />

exército contra o grão-duque Carlos, que se aproximava para à defesa de Viena.<br />

As primeiras bombas de combate de Aspern foram ouvi<strong>da</strong>s na Capital <strong>da</strong><br />

Áustria a 21 de maio. <strong>Clemente</strong> sabia que <strong>da</strong>quela batalha dependia a sorte <strong>da</strong><br />

sua pátria, que ele queria salva e grande; corre pressuroso a Jesus no<br />

tabernáculo, ajoelha-se e de braços abertos pede a Deus a vitória, ou pelo<br />

menos, a salvação <strong>da</strong> sua pátria. Entretanto lá fora o combate tornava-se renhido<br />

e feroz; as bombas pareciam querer escurecer o sol e o combate perdurou<br />

até a noite sem resultado definitivo; ao romper <strong>da</strong> aurora Napoleão recomeçou<br />

o ataque sau<strong>da</strong>ndo os austríacos com uma salva de bombas que fizeram estremecer<br />

as vidraças de Viena; foi para <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> o sinal de que era chega<strong>da</strong><br />

a hora de ele se prostrar novamente aos pés de Jesus no tabernáculo. E a


oração de S. <strong>Clemente</strong> foi atendi<strong>da</strong> pelo céu. No último ataque feito por Napoleão,<br />

tornou-se a luta encarniça<strong>da</strong>; o desespero apoderou-se dos franceses, o grãoduque<br />

Carlos saltou do cavalo e à frente dos seus sol<strong>da</strong>dos empunhou a bandeira<br />

animando com seus exemplos e com seu valor os sol<strong>da</strong>dos que o seguiram<br />

vibrando de entusiasmo; mais umas poucas horas e o campo de batalha<br />

achava-se em poder dos austríacos; era a primeira batalha aberta que Napoleão<br />

perdia. Quem reconhece que é Deus quem distribui as vitórias segundo os<br />

sapientíssimos desígnios <strong>da</strong> sua Providência, não hesitará em crer que a família<br />

Habsburgo foi salva mediante as súplicas do grande Apóstolo de Viena, pois<br />

que Deus não deixa de atender os pedidos dos seus Santos. Se a Áustria não<br />

venceu em Wagram, foi por disposição <strong>da</strong> Providência; pois que no caso de<br />

vitória o josefismo ter-se-ia consoli<strong>da</strong>do na Áustria e produzido à pátria de S.<br />

<strong>Clemente</strong> maiores males do que poderia fazer a derrota dos austríacos por<br />

Napoleão.<br />

Porém não foi só com suas orações que o servo de Deus prestou à sua<br />

Pátria relevantes serviços nessa ocasião. Os sol<strong>da</strong>dos feridos nas grandes batalhas<br />

foram conduzidos em massas para a ci<strong>da</strong>de e, como conseqüência natural,<br />

a febre tifóide começou a grassar desastra<strong>da</strong>mente em Viena, cujos habitantes<br />

se alarmaram. O bispo convocou o clero, e ele, ancião de seus 79 anos,<br />

deu a todos o bom exemplo trabalhando incansável nos hospitais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e<br />

dos arrabaldes. S. <strong>Clemente</strong> recebeu especial convite para os hospitais militares,<br />

onde dia e noite se cansava no cui<strong>da</strong>do espiritual e temporal dos pobres<br />

enfermos, esquecendo-se de si próprio, do sono e <strong>da</strong> fome para que aos doentes<br />

na<strong>da</strong> faltasse. Foi nessa ocasião que um sol<strong>da</strong>do sem religião no auge do<br />

desespero clamou ao avistar S. <strong>Clemente</strong>: “Venha aqui, que lhe quero arrancar<br />

os olhos”. S. <strong>Clemente</strong> foi ter com o infeliz e com suas palavras repassa<strong>da</strong>s de<br />

bon<strong>da</strong>de e de fé converteu-o para Deus inoculando-se na alma sentimentos de<br />

arrependimento e de confiança em Deus. Muitos sacerdotes perderam sua vi<strong>da</strong><br />

nessa época de heroísmos. A S. <strong>Clemente</strong> Deus reservara para coisas maiores<br />

e mais importantes empreendimentos. As portas do apostolado em Viena estavam<br />

abertas dessa <strong>da</strong>ta em diante, ao nosso Santo.<br />

Como nos hospitais militares de Viena havia uma infini<strong>da</strong>de de sol<strong>da</strong>dos<br />

franceses e italianos, foram destacados para o serviço dos sol<strong>da</strong>dos enfermos<br />

todos os sacerdotes <strong>da</strong> Capital, que pudessem prestar serviços nessas duas<br />

línguas; entre esses distintos sacerdotes achava-se também o Pe. Luiz Virginio,<br />

Diretor <strong>da</strong> Igreja dos Italianos em Viena. Tendo Deus levado para melhor vi<strong>da</strong> o<br />

Pe. Virginio, que faleceu vítima de seus trabalhos em prol dos sol<strong>da</strong>dos, cuja<br />

moléstia contraíra, passou a direção <strong>da</strong> Igreja dos Italianos ao venerando Pe.<br />

Caselli, que não podendo lá trabalhar em virtude de sua i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong>, recebeu<br />

um coadjutor na pessoa de S. <strong>Clemente</strong>, a quem deu carta branca no serviço<br />

espiritual <strong>da</strong> igreja. Era pois S. <strong>Clemente</strong> quem desempenhava to<strong>da</strong>s as<br />

funções religiosas na vasta e bela igreja; o trabalho porém era pouco, porque<br />

quase não havia pregações durante o ano, e porque na quaresma, o único<br />

tempo em que se podia anunciar a palavra de Deus, era costume chamar <strong>da</strong><br />

Itália algum orador de celebri<strong>da</strong>de mundial, para deliciar os ouvidos dos italianos<br />

de Viena. O serviço principal de <strong>Clemente</strong> era o confessionário, onde ele<br />

passava boa parte do dia, sendo procurado mormente pelos polacos que residi-<br />

46<br />

am em Viena; aos poucos tornou-se bem considerável o núcleo de vienenses<br />

que se agrupavam ao redor do confessionário do nosso Santo.<br />

Em 1809 os padres Mechitaristas 6 , acossados pelos franceses, de Trieste<br />

foram procuram um abrigo em Viena, onde o imperador lhes cedera o antigo<br />

convento dos Capuchinhos. No princípio o povo assustado por aquelas figuras<br />

barba<strong>da</strong>s e de rito tão diverso, não quis freqüentar a igreja dos recém-chegados.<br />

S. <strong>Clemente</strong> compreendendo o embaraço <strong>da</strong>queles sacerdotes, foi ter com<br />

eles e lá permaneceu três semanas auxiliando-os no arranjo <strong>da</strong> casa, pregando<br />

e ouvido as confissões, numa palavra, envi<strong>da</strong>ndo os maiores esforços para que<br />

os Michitaristas fossem conhecidos e estimados do povo. É por esse motivo que<br />

esses religiosos, reconhecidos e gratos para com S. <strong>Clemente</strong>, lhe dão o honroso<br />

nome de “Anjo <strong>da</strong> Guar<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>”.<br />

Como uma <strong>da</strong>s virtudes mais características do nosso Santo era a constância<br />

em todos os seus trabalhos, quando neles entrevia algum aumento <strong>da</strong><br />

glória divina, ou algum proveito espiritual para as almas, permaneceu quatro<br />

anos quase inteiros na igreja dos Italianos a ouvir pacientemente as confissões<br />

<strong>da</strong>s numerosas pessoas que o procuravam, e a apurar conversões estupen<strong>da</strong>s<br />

que só Deus conhece. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> pregava apenas uma ou outra vez nas<br />

igrejas dos arrabaldes de Viena, porém a sua pessoa não tardou a empolgar a<br />

população vienense. Crianças, jovens e adultos de to<strong>da</strong>s as classes procuravam<br />

avizinhar-se dele, para de seus lábios ouvirem falar de Deus e <strong>da</strong> religião.<br />

Um senhor de Würzburg que gostava de freqüentar a igreja dos Italianos, já<br />

naquele tempo pôde escrever: “De 1811 a 1812 fui eu diversas vezes à igreja<br />

dos Italianos, que se achava sob a direção do Pe. <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong> <strong>Hofbauer</strong>;<br />

sua humil<strong>da</strong>de e devoção edificaram-me tanto, que me parecia ver um anjo do<br />

céu. Desejava muito falar com esse distinto sacerdote, mas um notável número<br />

de moços que o rodeavam, não me deixou chegar até ele; nunca em minha vi<strong>da</strong><br />

tinha eu visto um homem como o Pe. <strong>Clemente</strong>”. O nome de S. <strong>Clemente</strong> começava<br />

a ser pronunciado pelas altas ro<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de com admiração e amor; as<br />

pessoas mais distintas pelo nascimento ou pelas belas quali<strong>da</strong>des pessoais<br />

alistaram-se no rol dos penitentes do nosso Santo, a quem abriam seus corações.<br />

Uma <strong>da</strong>s mais notáveis figuras femininas de Viena, Júlia Zichy, a mais<br />

nobre matrona <strong>da</strong> Capital, em a qual, como disse alguém, no mais puro ideal do<br />

feminismo resplandecia a maior beleza, a expressão <strong>da</strong> inocência e <strong>da</strong> virtude<br />

em to<strong>da</strong> a plenitude, depois de conhecer o Pe. <strong>Clemente</strong>, cuja vi<strong>da</strong> santa e cuja<br />

ciência sobre-humana admirava, deixou-se vencer pela graça e tomou-o por<br />

diretor espiritual. O mesmo deu-se com a donzela distinta tanto por sua beleza<br />

e espírito como por sua ilustração e nobreza de sentimentos, Nina Hartl; deixou-se<br />

guiar em tudo pela mão firme e santa de <strong>Clemente</strong>, encontrando na vi<strong>da</strong><br />

austera a maior consolação para sua alma.<br />

Enquanto tudo parecia correr às mil maravilhas, preparava Deus amargos<br />

golpes para o coração de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>. A polícia continuava a persegui-lo sem<br />

lhe permitir sossego. Ao perceber o governo que o arcebispo de Viena protegia<br />

a <strong>Clemente</strong> <strong>da</strong>ndo-lhe até uma colocação na igreja dos Italianos, indignou-se e<br />

protestou contra o Ordinário, que se defendeu com um tanto de azedume. O<br />

chanceler Ugarte que em nome do governo, desejava ver o nosso Santo pelas<br />

costas, propôs a S. <strong>Clemente</strong> a alternativa: “Ou emigrar ou abandonar a Con-


gregação que não era reconheci<strong>da</strong> na Áustria”. <strong>Clemente</strong>, torcendo <strong>da</strong> alternativa,<br />

declarou querer terminar a vi<strong>da</strong> em sua pátria. O nosso Santo assim respondeu<br />

ao chanceler porque nutria a convicção íntima de trabalhar pela <strong>Congregação</strong><br />

e conseguir para ela a confirmação e a consoli<strong>da</strong>ção na Áustria.<br />

Em Valais ia tudo bem como diziam cartas do Pe. Passerat. Os padres<br />

Redentoristas trabalhavam lá assiduamente na vinha do Senhor, e esperançosos<br />

olhavam para o futuro, pois que tinham vinte jovens a completar o estudo <strong>da</strong><br />

filosofia e teologia. Foi nessa ocasião que o Pe. Passerat, fatigado de tantos<br />

esforços, rogou a S. <strong>Clemente</strong>, se dignasse nomear o Pe. José <strong>Hofbauer</strong> Reitor<br />

<strong>da</strong> Suíça, pois que tudo estava em ordem e o futuro <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> parecia já<br />

garantido. S. <strong>Clemente</strong> porém que pensava de outra forma escreveu ao Superior<br />

Geral; “Pe. Passerat é um homem extraordinário em prudência e pie<strong>da</strong>de,<br />

exige de todos a observância exata <strong>da</strong>s Regras e Constituições sendo em tudo<br />

a paciência personifica<strong>da</strong>; possui extraordinário zelo e não foge dos trabalhos<br />

nem teme os perigos...; nele tem a <strong>Congregação</strong> o modelo de to<strong>da</strong>s as virtudes;<br />

se aprouver a Deus chamar-me deste mundo, desejo e peço que ele seja meu<br />

sucessor no cargo que ocupo”.<br />

Não obstante to<strong>da</strong> a tranqüili<strong>da</strong>de do momento, Passerat procurava um<br />

lugar seguro de refúgio e suas vistas dirigiam-se para Würzburgo, e com razão,<br />

porque, como pressentira, ain<strong>da</strong> nesse mesmo ano Valais tornou-se um departamento<br />

francês, passando os Redentoristas com essa mu<strong>da</strong>nça de governo a<br />

súditos de Napoleão, que os não podia tragar; era pois necessário fugir. Mas<br />

para onde? Na incerteza em ponto de tanta relevância foi a Viena consultar S.<br />

<strong>Clemente</strong> e o Núncio apostólico. Este opinou que em vista <strong>da</strong>s circunstâncias<br />

alarmantes e excepcionais os padres deveriam continuar na Suíça trabalhando<br />

e vivendo ca<strong>da</strong> um em seu canto. Estava pois novamente dissolvi<strong>da</strong> a <strong>Congregação</strong><br />

além dos Alpes. Na Polônia e na Suíça viviam os padres, em grupos de<br />

dois, nas paróquias ou no seio <strong>da</strong>s famílias. A única coisa que <strong>Clemente</strong> podia<br />

fazer era esperar e confiar em Deus, e para isto não havia lugar melhor do que<br />

Viena, ain<strong>da</strong> mais que de lá lhe era mais fácil do que de qualquer outro lugar,<br />

entender-se e cartear-se com os confrades dispersos na Polônia e na Suíça.<br />

Sendo Viena a ci<strong>da</strong>de mais central de to<strong>da</strong> a Europa, de la acompanharia com<br />

mais facili<strong>da</strong>de os acontecimentos e com mais vantagem trabalharia na execução<br />

dos seus gigantescos planos.<br />

Entretanto o Pe. Passerat corria todos os países e ci<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Europa em<br />

procura de um abrigo para os seus estu<strong>da</strong>ntes; rechaçado de todos os lados<br />

nunca perdeu a coragem nem a confiança em Deus. Em Friburgo encontrou<br />

enfim uma casa, para onde transferiu os seus estu<strong>da</strong>ntes, que deveriam freqüentar<br />

a universi<strong>da</strong>de lá existente, os outros padres permaneceram nos lugares<br />

onde se achavam na Suíça e na Alsacia. Desejoso de conservar nos seus<br />

padres o espírito religioso, não obstante as dificul<strong>da</strong>des dos tempos, Passerat<br />

visitara ora um ora outro nas paróquias. Os que estavam mais perto iam procurálo<br />

em Friburgo. O quanto rezava Passerat por seus súditos testemunham seus<br />

dedos calejados de passar as contas do rosário. S. <strong>Clemente</strong> entregou por escrito<br />

to<strong>da</strong>s as suas facul<strong>da</strong>des de Vigário Geral ao Pe. Passerat, porque vigiado<br />

e espionado sempre pela polícia não lhe era possível manter com a Suíça a<br />

correspondência epistolar regular.<br />

47<br />

Na Polônia ia tudo de mal a pior. O governo do arquiducado de Varsóvia<br />

caíra em poder <strong>da</strong> loja, muitas igrejas foram profana<strong>da</strong>s e entregues a fins menos<br />

dignos. <strong>São</strong> Beno não conseguiu escapar à sorte infeliz: tornou-se primeiro<br />

arquivo nacional e depois cutelaria. Pobre Polônia! S. <strong>Clemente</strong> nunca mais<br />

pôde olvi<strong>da</strong>r a bela Polônia que ele amava sinceramente e onde derramara os<br />

primeiros suores do seu intenso apostolado. As sau<strong>da</strong>des torturavam-lhe o coração.<br />

Parecem não ser mais do que um eco <strong>da</strong>s conversas prolonga<strong>da</strong>s com o<br />

Núncio apostólico as palavras, que este escreveu ao bispo de Varsóvia: “Poderemos<br />

ain<strong>da</strong> esperar a volta desse homem extraordinário e de seu Instituto a<br />

essa ci<strong>da</strong>de? oh! quem dera, quem dera!”


CAPÍTULO II<br />

O primeiro ano em Santa Úrsula<br />

Obrigações do Reitor <strong>da</strong> igreja — Reformas — Santa Úrsula adquire grande<br />

nome — Os primeiros trabalhos na cura d’almas.<br />

Em 1813 houve uma pequena mu<strong>da</strong>nça na vi<strong>da</strong> externa de S. <strong>Clemente</strong>.<br />

Falecendo nessa <strong>da</strong>ta o diretor espiritual <strong>da</strong>s Irmãs Ursulinas de Viena, S. <strong>Clemente</strong><br />

foi investido desse cargo pelo bispo Hohenwart, e nomeado Reitor <strong>da</strong><br />

Igreja de Santa Úrsula. Com esse ato do Arcebispo de Viena S. <strong>Clemente</strong> <strong>da</strong>va<br />

mais um passo para a realização dos seus grandes desejos: possuía enfim uma<br />

igreja <strong>da</strong> qual podia dispor e onde podia pregar a palavra de Deus livremente.<br />

Como continuasse ain<strong>da</strong> no posto que tinha na igreja dos Italianos, deixou<br />

lá o Pe. Martinho Stark fazendo as suas vezes, enquanto ele com o Pe. Sabelli,<br />

que viera <strong>da</strong> Suíça, passou a residir na nova casa contínua à pa<strong>da</strong>ria “A pera de<br />

ferro”. Dois quartos no an<strong>da</strong>r superior e uma pequena sala de expediente formavam<br />

então a sua nova mora<strong>da</strong>; mais tarde ele ocupou os outros dois aposentos<br />

do terceiro an<strong>da</strong>r. As refeições vinham <strong>da</strong> cozinha do convento em uma<br />

espécie de marmita. A única obrigação a que se sujeitava aceitando o novo<br />

cargo, consistia em ouvir semanalmente as confissões <strong>da</strong>s religiosas. As conferências<br />

não estavam então em uso. Menos trabalho tinha ain<strong>da</strong> ele na igreja do<br />

convento, porque lá não era costume fazer pregação, e além disso o Reitor <strong>da</strong><br />

igreja era coadjuvado por um capelão. Não obstante, esse novo posto marcava<br />

um dos pontos mais importantes para a vi<strong>da</strong> de S. <strong>Clemente</strong> em Viena: pois que<br />

Sta. Úrsula se tornou propriamente o lugar do seu apostolado na Capital <strong>da</strong><br />

Áustria, como veremos adiante.<br />

Empossado no seu cargo começou S. <strong>Clemente</strong> por reformar a igreja que<br />

lhe acabava de ser confia<strong>da</strong>: refez o assoalho, caiou as paredes, providenciou<br />

os bancos, encomendou novas estátuas, levantou novos altares, conseguiu novos<br />

paramentos para o Santo Sacrifício e para as demais funções do culto, introduziu<br />

o cântico piedoso, celebrou com pompa as festas religiosas, numa palavra,<br />

reformou de tal modo a igreja, que nas imediações não se encontrava uma<br />

outra que se lhe pudesse comparar. Vendo a boa vontade do Reitor, o povo não<br />

se negou aos pedidos de S. <strong>Clemente</strong>: nunca lhe faltaram flores, velas, adornos<br />

nem dinheiro para a casa de Deus; <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não conhecia economias. A<br />

semana Santa, a festa de Corpus Christi e a adoração <strong>da</strong>s quarenta horas eram<br />

celebra<strong>da</strong>s com to<strong>da</strong> a pompa na Igreja de Santa Úrsula. Para esse fim S. <strong>Clemente</strong><br />

convi<strong>da</strong>va sacerdotes e clérigos que abrilhantassem as cerimônias religiosas;<br />

não poucas vezes ia o próprio Núncio apostólico pontificar na Igreja de<br />

Santa Úrsula. O povo que já não estava habituado a essas soleni<strong>da</strong>des afluía<br />

48<br />

de todos os pontos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, de sorte que a igreja se tornava demasiado pequena<br />

para conter a multidão, que desejava assistir as santas cerimônias do<br />

culto que em sua beleza e majestade empolga os corações. Os sacerdotes <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de percebendo o movimento religioso que se desenvolvia em a Igreja de<br />

Sta. Úrsula, edificados com a devoção <strong>da</strong> multidão e com os cânticos devotos<br />

que ecoavam pelas abóba<strong>da</strong>s do templo, faziam questão de participar <strong>da</strong>quele<br />

ambiente de santi<strong>da</strong>de e iam celebrar diariamente em Sta. Úrsula, de sorte que<br />

lá havia ininterruptamente missas desde manhã até o meio-dia. A polícia pouco<br />

se incomodou com essas cerimônias proibi<strong>da</strong>s pelo josefismo, porque os grandes<br />

do império, entre eles o próprio irmão do imperador, freqüentavam a igreja<br />

e se edificavam com a pie<strong>da</strong>de e devoção do povo. Aos poucos também outras<br />

igrejas de Viena começaram a imitar o Reitor de Sta. Úrsula.<br />

Esse movimento todo porém não se realizou <strong>da</strong> noite para o dia. Só com o<br />

tempo, com paciência e com um trabalho aturado é que se pôde desfazer a<br />

prevenção de um povo. Já no primeiro domingo depois de empossado no cargo,<br />

perguntou <strong>Clemente</strong> a que hora costumava ser a pregação naquela igreja. Ouvindo<br />

não ser costume pregar em Viena senão nas maiores festivi<strong>da</strong>des do ano,<br />

o novo Reitor admirou-se e mandou ao sacristão tocar festivamente para que o<br />

povo soubesse que lá haveria pregação naquele dia; embora no princípio, só<br />

poucas pessoas fossem à igreja nem por isso deixava ele de anunciar a palavra<br />

divina; pregou sempre todos os domingos e dias santificados. A pregação era<br />

para ele uma necessi<strong>da</strong>de, queria converter o mundo inteiro e naqueles tempos<br />

calamitosos, a pregação era quase que o único meio de restabelecer a fé em<br />

tantas inteligências extravia<strong>da</strong>s e de afervorar a pie<strong>da</strong>de nos corações bem<br />

intencionados.<br />

E, coisa admirável, o povo começou a interessar-se pelas pregações<br />

substanciosas de S. <strong>Clemente</strong>, de sorte que a igreja se enchia já muito antes de<br />

começarem as cerimônias, devendo o resto ouvir as pregações <strong>da</strong>s ruas e dos<br />

largos; e entre os ouvintes de <strong>Clemente</strong> não se encontravam apenas velhas e<br />

crianças, emprega<strong>da</strong>s ou cozinheiras, mas também pessoas <strong>da</strong> mais fina socie<strong>da</strong>de,<br />

homens de peso e de talento, doutores e professores e até pregadores<br />

de fama, que iam a Santa Úrsula aprender o segredo de empolgar o povo. Os<br />

primeiros anos do esconderijo do Santo tinham pois desaparecido; seu nome<br />

de pregador era pronunciado com admiração e amor em quase to<strong>da</strong> a ci<strong>da</strong>de<br />

de Viena, e seu confessionário permanecia assediado desde a manhã até ao<br />

meio-dia. Com o aumento diário do trabalho em sua igreja viu-se ele obrigado a<br />

levantar-se diariamente as quatro horas <strong>da</strong> manhã, às vezes até um pouco<br />

antes; para não perder a hora, na falta de um despertador, combinou com o<br />

guar<strong>da</strong> noturno <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de que o despertasse. Depois <strong>da</strong> meditação ia ao confessionário,<br />

donde não se levantava antes <strong>da</strong>s 10 horas em que subia ao altar<br />

para o santo Sacrifício.<br />

Duas vezes por semana levantava-se ain<strong>da</strong> mais cedo porque costumava<br />

levar à igreja dos Mechitaristas, distante meia hora, pão e outros objetos para<br />

os pobres que lá se reuniam. À tarde fazia suas excursões pela ci<strong>da</strong>de e pelos<br />

arrabaldes em visita aos pobres, doentes e moribundos. Quantas vezes não se<br />

levantou ele, alta hora <strong>da</strong> noite, o solidéu na cabeça e uma lanternazinha na<br />

mão para sacramentar moribundos nos arrabaldes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de!<br />

CAPÍTULO III


O Congresso de Viena<br />

<strong>Clemente</strong> na lista dos bispos — Igreja nacional — O desinteresse pela<br />

religião no Congresso — Desunião de vistas — Os três defensores — Atrás dos<br />

bastidores — Trabalho depois do Congresso.<br />

As guerras contínuas <strong>da</strong>queles anos arruinaram política e economicamente<br />

a Europa inteira, que se sentiu alivia<strong>da</strong> com a derrota final do imperador dos<br />

franceses, que terminou sua vi<strong>da</strong> no exílio de Sta. Helena. A Igreja ressentiu-se<br />

imensamente de to<strong>da</strong>s essas devastações. Wessenberg descreve o estado<br />

tristíssimo em que se achava a religião na Alemanha e Áustria do modo seguinte:<br />

“Há doze anos que a Igreja na Alemanha, a qual antes gozava do maior<br />

esplendor, se acha em um estado de abandono sem igual na história. Roubaram-lhe<br />

os bens que possuía, subtraíram-lhe o apoio legal às suas mais antigas<br />

Constituições; negaram a subvenção a seus estabelecimentos e institutos mais<br />

essenciais; os bispados acham-se devastados, o cabido catedrático está a expirar,<br />

sua ativi<strong>da</strong>de reprimi<strong>da</strong>, a execução de suas leis impedi<strong>da</strong>”. A todos esses<br />

abusos deveria o Congresso de Viena trazer um remédio eficaz. Segundo o<br />

disposto no tratado de Paris de 10 de maio de 1814, reuniram-se as potências<br />

européias em Viena para tratar <strong>da</strong> reorganização <strong>da</strong> Europa, cujo equilibro perecera<br />

de todo. Nesse grande senado europeu estiveram pessoalmente presentes<br />

os monarcas <strong>da</strong> Prússia, <strong>da</strong> Rússia e <strong>da</strong> Áustria com a maior parte dos<br />

soberanos secundários <strong>da</strong> Alemanha. O Papa foi representado pelo cardeal<br />

Gonsalvi.<br />

Nesse congresso reunido em fins de setembro de 1814 tratou-se, entre<br />

outras coisas, <strong>da</strong> abolição do decreto sobre as nomeações dos bispos, pois<br />

que, por causa dele, <strong>da</strong>s trinta e quatro dioceses só cinco estavam provi<strong>da</strong>s.<br />

Para o provimento desses bispados foram apresenta<strong>da</strong>s duas listas, numa <strong>da</strong>s<br />

quais se achava o nome de <strong>Clemente</strong>; corria o boato de que S. <strong>Clemente</strong> seria<br />

nomeado bispo dos Balcãs; isso causou protesto entre os numerosos amigos<br />

do Santo, que o reclamavam para qualquer diocese na Áustria ou na Alemanha.<br />

Severoli escreveu ao cardeal Litta: “A estima que esse homem goza na Alemanha<br />

é muito grande, porque ele conhece as necessi<strong>da</strong>des do povo em todos os<br />

sentidos... V. Excia. o ficou conhecendo qual Jeremias por seus lamentos... mas<br />

esteja certo que ele é também um Daniel por sua prudência e um grande Santo<br />

em sua vi<strong>da</strong>”. E Litta respondeu: “... aprovo o plano de <strong>da</strong>r ao Pe. <strong>Clemente</strong> um<br />

bispado na Alemanha; fique certo de que terei imenso prazer se isso se der”.<br />

Isso tudo porém ficou sem efeito devido ao mau êxito <strong>da</strong> concor<strong>da</strong>ta entre a<br />

Alemanha e a Santa Sé.<br />

49<br />

O maior perigo para a Igreja na Alemanha e na Áustria não era tanto a sua<br />

desorganização externa mas sim a desorientação dos seus governantes. A parte<br />

mais influente do clero, inspira<strong>da</strong> por Wessenberg que governava a diocese<br />

de Constança na quali<strong>da</strong>de de vigário geral de Dalberg, primaz <strong>da</strong> Germânia,<br />

pretendia a emancipação completa e absoluta do episcopado alemão em relação<br />

à Cúria Romana; com outras palavras, trabalhava para a formação de uma<br />

Igreja nacional e independente. O Núncio Severoli que esperava tudo do Congresso,<br />

já meses antes começara os preparativos, aprontara os papéis, tomara<br />

as informações necessárias, aconselhara-se com todos os católicos de nome<br />

na Áustria, e de um modo todo especial, com S. <strong>Clemente</strong>, cuja prudência e<br />

zelo apostólico faziam jus à admiração universal. Em princípios de setembro<br />

escrevera ao cardeal Litta: “O nosso Pe. <strong>Clemente</strong> tem idéias grandiosas; desejara<br />

que ele estivesse em Roma para expor tudo a V. Eminência”. Uma dessas<br />

idéias grandiosas, de que fala o Núncio, era estreitar e tornar mais íntimas as<br />

relações entre Roma e a Germânia, o que se poderia facilmente conseguir, pelo<br />

interesse que Roma deveria tomar pelas coisas e pelo povo do Norte e pela<br />

abertura de um grande Colégio em Roma para os alemães, que assim entrariam<br />

em contato com a Igreja, amando-a com mais calor, trabalhando por ela<br />

com melhor vontade. O nosso Santo lamentava amargamente o pouco interesse<br />

manifestado em Roma e a pouca vontade de ela se amol<strong>da</strong>r ao gênio e ao<br />

modo de pensar dos germanos, cujos corações com facili<strong>da</strong>de se poderiam<br />

entusiasmar pelas belezas e grandeza <strong>da</strong> Igreja de Roma.<br />

Não obstante tudo isso era grande a esperança no resultado do Congresso,<br />

do qual dependeria a prosperi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> religião de Nosso Senhor na Europa.<br />

Foi providencial a esta<strong>da</strong> de S. <strong>Clemente</strong> em Viena nessa época, como<br />

veremos em breve.<br />

Os príncipes congressistas pouco ou na<strong>da</strong> se interessavam pela religião,<br />

tendo em vista apenas o bem material e financeiro dos seus Estados e reinos. O<br />

único que de coração se batia pela causa de Deus era o príncipe <strong>da</strong> Baviera.<br />

Entre os que deviam defender a Igreja, havia grande deficiência e desunião de<br />

vistas; o cardeal Gonsalvi, representante <strong>da</strong> Santa Sé, estava pouco enfronhado<br />

nos negócios e intenções <strong>da</strong> Alemanha. Severoli carecia de to<strong>da</strong> influência; o<br />

trunfo do Congresso era Wessenberg que representava o arcebispo Dalberg.<br />

Diplomata consumado sabia torcer-se para todos os lados, distribuindo sorrisos<br />

a gregos e troianos; por suas maneiras gentis, suas palavras amáveis e sua<br />

pouca consciência soube conquistar a simpatia dos príncipes e dos adeptos do<br />

josefismo, e como maçom que era, envidou todos os esforços, abusando <strong>da</strong><br />

sua influência, para conseguir a formação <strong>da</strong> igreja nacional. A seu lado eram<br />

incansáveis os representantes <strong>da</strong> Prússia, Hannover, Nassau e Münster. O próprio<br />

cardeal Gonsalvi, que na<strong>da</strong> suspeitava de Wessenberg, em cuja probi<strong>da</strong>de<br />

confiava cegamente, não poucas vezes a ele se dirigiu pedindo conselhos e<br />

consultando-o em questões <strong>da</strong> maior relevância.<br />

A defesa dos interesses <strong>da</strong> Igreja estava to<strong>da</strong> nas mãos de três homens,<br />

que agiam independentes e em nome próprio, a saber o barão Francisco de<br />

Wambold, José Helfferich, deão de Spira, e José Spies, sacerdote de Worms;<br />

junto com eles agia incansavelmente José Schlegel, adido ao ministério do Exterior<br />

na Áustria. Só por um ver<strong>da</strong>deiro milagre explica-se o fato de poderem


esses três homens, aliás sem influência extraordinária, resistir a todos os diplomatas<br />

do Congresso, que não eram poucos, e impedir a realização dos planos<br />

de Wessenberg e de todos os seus grandes amigos e admiradores. Atrás dos<br />

bastidores trabalhava um outro, que por sua prudência e santi<strong>da</strong>de valia mais<br />

que todos eles: era S. <strong>Clemente</strong>. O Reitor <strong>da</strong> Igreja de Santa Úrsula, embora<br />

não tivesse assento no Congresso, na<strong>da</strong> deixou por fazer a fim de evitar a catástrofe<br />

tão sinistra, que parecia inevitável. Não passava um dia, sem que<br />

Helfferich fosse ter com S. <strong>Clemente</strong> a examinar com ele os papéis e as propostas<br />

que iria fazer no Congresso, a provar os argumentos e os arrazoados que<br />

pretendia desenvolver com energia na presença dos nobres Congressistas. Os<br />

outros amigos e discípulos de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> preparavam a opinião pública por<br />

meio de artigos calorosos nos principais diários de Viena, expondo com clareza<br />

e entusiasmo o que ouviam do seu Mestre; até o príncipe <strong>da</strong> Baviera ia pedir as<br />

instruções e os conselhos de <strong>Clemente</strong>, que tomara por confessor nos dias <strong>da</strong><br />

sua esta<strong>da</strong> em Viena; é notório que ele uma vez ficou conferenciando com o<br />

Reitor de Santa Úrsula <strong>da</strong>s 8 horas <strong>da</strong> noite até à 2 <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong> ventilando<br />

as mais intrinca<strong>da</strong>s questões e diluci<strong>da</strong>ndo os pontos mais importantes a tratarse<br />

na seguinte sessão do Congresso. Zacharias Werner, o discípulo e amigo de<br />

S. <strong>Clemente</strong>, recebeu de seu Diretor ordem expressa de pregar em to<strong>da</strong>s as<br />

igrejas de Viena, durante o tempo do Congresso, sobre os pontos religiosos em<br />

discussão orientando o povo e preparando os ânimos. A forma literária de seus<br />

sermões, sua conversão sensacional, seu modo original de expor as teses, sua<br />

bela linguagem, suas descrições poéticas e franqueza rude atraíam as multidões<br />

para a igreja onde pregava; a afluência, por vezes, era tamanha, que alguns<br />

por falta de espaço no templo, subiam em cima dos altares e dos confessionários<br />

para não perderem a ocasião de ouvi-lo. O inspirador de Zacharias<br />

Werner era o nosso Santo que, em tudo isto, visava o triunfo <strong>da</strong> Igreja e a glória<br />

de Deus.<br />

Se <strong>Clemente</strong> não conseguiu quanto desejava do Congresso, teve a glória<br />

de salvar a Áustria do cisma que a ameaçava, e de destruir por completo os<br />

planos <strong>da</strong> separação excogitados e defendidos pelo poderoso Wessenberg. Essa<br />

vitória foi uma <strong>da</strong>s mais gloriosas, que S. <strong>Clemente</strong> alcançou em sua vi<strong>da</strong>.<br />

Terminado o Congresso, o nosso Santo não quis descansar à sombra dos<br />

louros colhidos; colocou-se de atalaia para que não perigasse o que com tanto<br />

esforço conseguira. Em qualquer perigo mobilizava os seus, e com exatidão<br />

punha Roma ao par de tudo quanto se passava na Áustria. Em 2 de julho de<br />

1818 escreveu entre lágrimas a Pio VII, expondo-lhe as dificul<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Igreja<br />

em sua Pátria e os perigos que lá ameaçavam a cristan<strong>da</strong>de. “Não tememos<br />

pela Igreja, cuja pedra fun<strong>da</strong>mental foi lança<strong>da</strong> por Jesus Cristo, mas receamos<br />

uma lamentável separação, cujos inícios parece-nos já perceber, e essa separação<br />

começa a efetuar-se com tanta petulância e progride tão espantosamente,<br />

que quase já não podemos esperar consolação nem auxílio senão do céu,<br />

<strong>da</strong> intercessão dos Santos”.<br />

<strong>Clemente</strong> entretanto rezava com insistência pela conversão dos que perseguiam<br />

a Santa religião. Dalberg, logo depois do Congresso converteu-se sinceramente,<br />

separou-se de Wessenberg, detestou sua ação separatista e muitas<br />

vezes repetia a seus alunos em Ratisbona: Meus senhores, não andeis com<br />

50<br />

o mundo; eu confiei nele, e o mundo me enganou vergonhosamente; não confieis<br />

nele mas permanecei fiéis à Igreja”. Dalberg teve uma morte edificante em 1817.<br />

Vagando com sua morte a diocese de Constança S. <strong>Clemente</strong> apressou-se a<br />

escrever a Roma, em nome do Núncio Severoli, apresentando para sucessor<br />

de Dalberg o seu amigo Wambold, o grande batalhador pela causa <strong>da</strong> Igreja.<br />

Com esse último ato S. <strong>Clemente</strong> terminou a obra grandiosa que começara no<br />

Congresso de Viena: destruiu os planos dos inimigos <strong>da</strong> Igreja e consolidou a<br />

obra de Cristo assegurando-lhe brilhante futuro.


CAPÍTULO IV<br />

O sábio pregador<br />

Exposição original e simples — O médico subjugado — Um velho funcionário<br />

josefino — Rir-se por último — Sua mímica no púlpito — temas prediletos —<br />

Apreciações populares — Proibição de pregar...<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era um sacerdote e um apóstolo segundo o coração de Deus;<br />

exercia o munus sacerdotal com santo entusiasmo e escrupulosa exatidão; nessa<br />

esfera de pregador e diretor de almas é que ele se mostrou, à evidência, o<br />

ver<strong>da</strong>deiro apóstolo de Viena. O modo original com que se havia no exercício<br />

desse cargo, tornou-o popular na grande Capital e rompeu com todo o pe<strong>da</strong>ntismo<br />

introduzido pelo josefismo na Áustria. Um professor de teologia pastoral<br />

em uma preleção científica sobre as medi<strong>da</strong>s de prudência a tomar-se na administração<br />

dos sacramentos aos enfermos, notou que conhecia em Viena um<br />

sacerdote muito distinto que não observava nenhuma <strong>da</strong>s regras expostas e<br />

que, não obstante, conseguia os mais estupendos resultados: era <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>.<br />

Essas palavras referiam-se a todo o seu apostolado que se distinguia e sobressaia<br />

pela sua originali<strong>da</strong>de; por isso nem to<strong>da</strong>s as particulari<strong>da</strong>des <strong>da</strong> sua<br />

ativi<strong>da</strong>de apostólica são para todos indistintamente a serem imita<strong>da</strong>s literalmente.<br />

O jovem sacerdote Dom Pajalich edificado e encantado com o resultado<br />

obtido por S. <strong>Clemente</strong>, quis em tudo imitar seu mestre, mas saiu-se mal: assim<br />

começou a an<strong>da</strong>r pelas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de cabeça descoberta, como o fazia<br />

sempre S. <strong>Clemente</strong>, mas as vaias estrondosas <strong>da</strong> criança<strong>da</strong> fizeram-lhe cobrila<br />

novamente; entrou uma vez sem cerimônias na casa de um luterano para<br />

convertê-lo, mas foi tão infeliz que quase não teve tempo de abrir a boca, porque<br />

o despediram logo pela porta fora etc. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, nesse particular do<br />

apostolado, era simplesmente inimitável. Zacharias Werner dizia acerta<strong>da</strong>mente<br />

referindo-se a ele: “Não há outro como ele; <strong>da</strong> boca desse homem fala o<br />

Espírito Santo”.<br />

Para termos uma idéia mais ou menos níti<strong>da</strong> e certa <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de apostólica<br />

de S. <strong>Clemente</strong> basta-nos contemplá-lo no púlpito, no confessionário, ao<br />

altar, à cabeceira dos doentes, no seio <strong>da</strong>s famílias, e até nas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de,<br />

nas suas relações com as diversas classes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, no seu modo de agir<br />

como diretor <strong>da</strong>s religiosas e como superior do convento.<br />

Como temos visto em diversos lugares desta biografia, <strong>Clemente</strong> celebrizarase<br />

em to<strong>da</strong> a parte na quali<strong>da</strong>de de pregador fluente e arrebatador.<br />

Não possuímos na íntegra nenhum sermão de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, porque ele<br />

não costumava escrever os sermões nem mesmo os esboços; os seus contemporâneos<br />

dão-nos porém informações exatas do seu modo de pregar. Seus<br />

51<br />

sermões não eram pregações temáticas nem homilias propriamente ditas, mas<br />

qualquer coisa intermediária entre essas duas espécies de manifestação oratória.<br />

Do púlpito ou do altar lia o Evangelho ao povo, e durante a leitura intercalava<br />

observações oportunas; continuava em segui<strong>da</strong>, sentença por sentença, demorando-se<br />

em uma menos e em outra mais, explicando em ca<strong>da</strong> uma delas um<br />

dogma <strong>da</strong> fé ou um man<strong>da</strong>mento qualquer; com os princípios do Evangelho<br />

confrontava os costumes em voga e as idéias do tempo, exortando sempre com<br />

palavras quentes e insinuantes a que todos se convertessem e praticassem a<br />

virtude e a pie<strong>da</strong>de. Por vezes acontecia que em um só sermão tratava de<br />

assuntos diversos; assim, p. ex., na festa do nome de <strong>Maria</strong> a 10 de setembro<br />

falou ele sobre a santificação do domingo, a infalibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Igreja, a devoção a<br />

Nossa Senhora e a vi<strong>da</strong> religiosa. S. <strong>Clemente</strong> não era orador; a sua esta<strong>da</strong> no<br />

estrangeiro durante muitos anos pode ter sido causa de a sua linguagem<br />

vernácula não ser castiça nem escorreita. Ele pouco se preocupava com a elegância<br />

<strong>da</strong> forma; vestia seus possantes pensamentos em roupagem simples,<br />

repetindo e repisando muitas expressões que se tornaram estereotípicas. E<br />

não obstante, S. <strong>Clemente</strong> empolgava e eletrizava como nenhum outro pregador<br />

em Viena; sabia o segredo de arrebatar enchendo as almas de uma unção<br />

sobrenatural, de sorte que até os mais eruditos profun<strong>da</strong>mente consternados<br />

diziam: “Uma só palavra <strong>da</strong> sua boca basta-nos para a semana inteira”. Em<br />

parte explica-se isso por ser seu modo de pregar um contraste com o adotado<br />

em Viena e pelo tom de convicção e de fé com que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> discorria<br />

sobre as ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> religião; mas o segredo dessa força mágica está na santi<strong>da</strong>de<br />

de <strong>Clemente</strong> e no seu zelo apostólico.<br />

A simplici<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua pregação não prejudicava em na<strong>da</strong> a profundeza e<br />

perfeição de suas explicações e argumentações, e não o impedia de expender<br />

seus vastos conhecimentos <strong>da</strong> Escritura e dos Santos Padres. Com facili<strong>da</strong>de<br />

estupen<strong>da</strong> sabia explicar e expor a seus ouvintes os mais profundos mistérios<br />

<strong>da</strong> fé satisfazendo igualmente aos ignorantes e aos doutos.<br />

Muitos iam assistir os sermões de <strong>Clemente</strong> com o fim de ridicularizar a<br />

oração e o orador; entravam no templo e, logo às primeiras palavras, ficavam<br />

presos pela eloqüência, pela convicção e unção sobrenatural do Santo, voltando<br />

para casa contritos e, muitas vezes, confessados.<br />

Uma vez um jovem médico, passando pela Rua de <strong>São</strong> João em Viena viu<br />

imensa multidão de povo atropelar-se para entrar na Igreja de Sta. Úrsula como<br />

se lá houvesse alguma representação teatral, algum cinema ou coisa semelhante.<br />

Admirado perguntou pela causa de tão estranho movimento; a resposta<br />

foi: “O Pe. <strong>Clemente</strong> vai pregar”. A curiosi<strong>da</strong>de subjugou-o, entrou; o pregador<br />

arrebatado falava sobre a necessi<strong>da</strong>de que têm os homens de trabalhar para a<br />

salvação de sua alma; expunha com clareza que o céu não se compra com<br />

fortunas, honrosas patentes, belos títulos ou robusta saúde, mas sim com a boa<br />

vontade, com o desejo sincero e efetivo de cumprir a vontade de Deus. O médico<br />

gostou <strong>da</strong> pregação e desde aquele dia não perdeu mais nenhum sermão <strong>da</strong><br />

Igreja de Sta. Úrsula.<br />

Um outro senhor vivia em Viena como funcionário público, admirador profundo<br />

do imperador e adepto fanático do josefismo, cujos princípios mais lhe<br />

sabiam do que as máximas do Evangelho. Como muitos do seu tempo, formara-


se ele a sua religião que praticava ou não de acordo com os seus caprichos,<br />

na<strong>da</strong> detestava tanto como aquilo que costumava denominar fanatismo religioso,<br />

porquanto seu íntimo se revoltava sempre contra a intolerância <strong>da</strong> Igreja<br />

Católica, que reprova as outras religiões impondo aos homens dogmas incompreensíveis<br />

e contrários à razão humana.<br />

Por felici<strong>da</strong>de o velho funcionário tinha um amigo, que embora antes comungasse<br />

com as suas idéias, agora lhe falava do célebre pregador de Santa<br />

Úrsula, dos doutores que o ouviam com religiosa atenção e <strong>da</strong>s conversões<br />

maravilhosas que ele operava em Viena. Mais por atenção para com o amigo do<br />

que por outro motivo, foi ele também ouvir as pregações de <strong>Clemente</strong>, e debulhado<br />

em lágrimas de comoção voltou para a casa sinceramente convertido,<br />

abjurando o josefismo e tornando-se um católico prático. Mais tarde, referindose<br />

a essa sua conversão, admirava-se de como isso sucedera; para ele era um<br />

mistério a sua conversão; nenhum dos muitos oradores por ele apreciados lograra<br />

convertê-lo de josefino em católico fervoroso. Tais pecadores converteuos<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> aos milhares com a sua pregação e conseguiu até entusiasmar<br />

os hereges pelas belezas <strong>da</strong> santa Igreja Católica.<br />

Mais interessante ain<strong>da</strong> é que a não poucos dos amigos, veneradores e<br />

até futuros membros <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, <strong>Clemente</strong> conquistou-se dentre os que<br />

iam a suas pregações para o ridicularizarem. Uma vez percebeu S. <strong>Clemente</strong><br />

que alguns estu<strong>da</strong>ntes falavam e se riam durante a pregação. Sem perder o<br />

sangue frio, voltou-se para eles com as palavras: “Meus senhores, continuai a<br />

rir, mas quem se rir por último rirá melhor”. Foi o suficiente para encher de<br />

vergonha e de arrependimento os jovens que mu<strong>da</strong>ram de vi<strong>da</strong>.<br />

Se era apostólica a sua simplici<strong>da</strong>de, não o era menos o modo com que<br />

pregava; falava com vivaci<strong>da</strong>de, entusiasmo, ardor e sentimento tal que não só<br />

convencia, mas também prendia e arrebatava. “No púlpito, disse o cônego Veith,<br />

seu rosto se transfigurava <strong>da</strong>ndo-lhe as aparências de um Serafim”. Suas palavras<br />

eram chamas ardentes que inflamavam os corações, e espa<strong>da</strong>s que traspassavam<br />

as almas.<br />

“Percebia-se perfeitamente, contra a Irmã Thadéa, que o Pe. <strong>Clemente</strong> não<br />

procurava a si próprio nas pregações mas tão somente a glória de Deus e o<br />

bem <strong>da</strong>s almas; falava com força e vi<strong>da</strong>, inflamado de zelo ardente; suas palavras<br />

saiam do coração e por isso penetravam também os corações; não discorria<br />

com doutas palavras de humana sabedoria, mas com a doutrina do Espírito;<br />

por isso os que ouviam as suas pregações não podiam resistir e <strong>da</strong>vam-se por<br />

vencidos”. Mais adiante acrescenta a mesma Irmã: “Durante as suas pregações<br />

reinava um silêncio sepulcral entre os numerosos ouvintes, que freqüentes vezes<br />

se sentiram comovidos a ponto de não poderem conter as lágrimas e reprimir<br />

os soluços”.<br />

Nem no auge do maior entusiasmo perdia <strong>Clemente</strong> a digni<strong>da</strong>de e a calma<br />

em seus movimentos e gestos; na expressão do seu rosto e na viveza de seus<br />

olhos estampava-se a sua convicção profun<strong>da</strong> e fé viva. As vezes a sua ação<br />

expressiva produzia maior efeito do que suas palavras. Discorrendo, uma vez,<br />

sobre o mistério <strong>da</strong> Encarnação ao pronunciar as palavras: “Ele assumiu a nossa<br />

natureza, revestiu-se <strong>da</strong> nossa carne” bateu as mãos com tanta gravi<strong>da</strong>de e<br />

comoção que arrancou lágrimas aos ouvintes dissipando qualquer dúvi<strong>da</strong> pos-<br />

52<br />

sível sobre a divin<strong>da</strong>de e a humani<strong>da</strong>de de Cristo.<br />

Naquele tempo, desde José II, já não se ouvia mais sermão algum genuinamente<br />

católico em Viena, porque quase não se falava mais nas ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

fé, mas quase exclusivamente em elegantes e agradáveis temas, como: cristianismo,<br />

filantropia etc. Muito significativa é a observação que faz um discípulo de<br />

nosso Santo, de que a pregação sobre a Igreja católica era coisa tão rara, que<br />

os moços se alegravam quando o orador proferia a palavra “Santa Igreja Católica”.<br />

As pregações de S. <strong>Clemente</strong> produziam o efeito <strong>da</strong>s bombas. Eucaristia,<br />

culto <strong>da</strong> Virgem e dos Santos, confissão, indulgências, purgatório, inferno, demônio,<br />

eram temas proibidos então pelo josefismo, mas ver<strong>da</strong>des que S. <strong>Clemente</strong><br />

expunha no púlpito com a maior clareza e firmeza. O tema predileto<br />

porém era a Igreja e sua autori<strong>da</strong>de. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> ressuscitou em Viena a<br />

pregação católica; a sua expressão física contrastava imensamente com a pose<br />

elegante e vaidosa dos pregadores <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>; ele era um pregador popular no<br />

sentido ver<strong>da</strong>deiro <strong>da</strong> palavra: falava segundo as impressões do momento e<br />

não segundo esboços aprendidos.<br />

Quem ouvia o servo de Deus não se sentia somente satisfeito; voltava<br />

mu<strong>da</strong>do para a casa. “Ficava-se banhado em lágrimas, odiava-se o pecado e<br />

abraçava-se resolutamente a virtude”, diz resumindo, um dos ouvintes do nosso<br />

Santo. Não era raro ficarem homens esperando na sacristia a volta de <strong>Clemente</strong><br />

para fazerem a sua confissão. A pregação de <strong>Clemente</strong> era a revelação<br />

<strong>da</strong> fé que quase atingia os limites <strong>da</strong> visão; não argumentava muito, mas anunciava<br />

como quem via, ouvia ou tocava, sendo seus sermões ver<strong>da</strong>deiros atos<br />

de fé.<br />

Dentre os atributos divinos gostava <strong>Clemente</strong> de salientar a misericórdia<br />

infinita do Eterno. Mesmo quando falando <strong>da</strong> Justiça esmagava os corações,<br />

reanimava-os com a confiança na misericórdia sem limites de Deus descrevendo<br />

com vivas cores e ternura filial o amor de Jesus Cristo, o sangue que derramou<br />

e a morte que por nós sofreu.<br />

Esforçava-se por consolar os pusilânimes e reanimar os tímidos, e com voz<br />

comovi<strong>da</strong> repetia com freqüência: Jesus, filho de Davi, tende compaixão de<br />

nós, e Porque queres perecer, casa de Israel?<br />

Era tocante quando nas prédicas sobre o Santíssimo Sacramento, subjugado<br />

pelo amor, se ajoelhava no púlpito para adorar o Deus sacramentado;<br />

nessas ocasiões ele parecia um Serafim e de seus olhos abertos saiam raios<br />

de amor, que se concentravam na Hóstia consagra<strong>da</strong>.<br />

O seu auditório compunha-se geralmente de pessoas simples; não faltavam<br />

to<strong>da</strong>via representantes de to<strong>da</strong>s as classes; estu<strong>da</strong>ntes, literatos, artistas,<br />

funcionários públicos, aristocratas etc.; <strong>Clemente</strong> porém nunca sucumbiu à tentação,<br />

aliás comum aos oradores, de sacrificar o povo simples para agra<strong>da</strong>r à<br />

classe erudita, talvez até nunca sentiu essa tentação nem mesmo quando ao<br />

pé do púlpito via os seus grandes e eruditíssimos amigos. O seu princípio era<br />

sempre o mesmo: pregar com to<strong>da</strong> a simplici<strong>da</strong>de de modo a ser compreendido<br />

pelo mais ignorante dos ouvintes e até pelas crianças. S. <strong>Clemente</strong> que com<br />

sua pregação simples conseguiu empolgar homens de envergadura intelectual<br />

de um Werner, Günther, bem como estu<strong>da</strong>ntes e professores <strong>da</strong>s universi<strong>da</strong>des,<br />

é uma prova evidente de que a pregação genuinamente católica agra<strong>da</strong> e


satisfaz tanto a pequenos como a grandes, a sábios como a indoutos. É certo<br />

que nem todos os pregadores podem ser como S. <strong>Clemente</strong>, ao qual faltaram<br />

os atrativos naturais, mas não os encantos <strong>da</strong> fé e de uma convicção profun<strong>da</strong>.<br />

<strong>Clemente</strong> recebera de Deus a missão de esmagar os pregadores <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>, que<br />

se perdiam nas frases rebusca<strong>da</strong>s com detrimento <strong>da</strong> clareza requeri<strong>da</strong> pelas<br />

ver<strong>da</strong>des religiosas. O povo notara logo a diferença; não era raro ouvir-se: “Queres<br />

ouvir um orador brilhante? vai à igreja tal; queres porém ouvir um apóstolo, vai<br />

a Santa Úrsula, onde prega o Pe. <strong>Clemente</strong>”.<br />

A pregação de <strong>Clemente</strong> tornou-se em breve um espinho aos olhos do<br />

governo josefino e <strong>da</strong> polícia austríaca; temiam farisaicamente que, por essas<br />

pregações, os austríacos se tornassem ultramontanos e quisessem obedecer<br />

mais ao Papa do que ao Imperador; olhavam tudo aquilo com um fanatismo<br />

perigoso, que as autori<strong>da</strong>des deviam abafar, ain<strong>da</strong> mais que as leis austríacas<br />

proibiam terminantemente esse exagero de pregações, mormente a cerimônia<br />

<strong>da</strong> bênção papal que <strong>Clemente</strong> <strong>da</strong>va quatro vezes ao ano, sem haver para isso<br />

requerido licença do governo.<br />

O resultado foi uma ordem <strong>da</strong> polícia em 1816, que proibia de vez a <strong>Clemente</strong>,<br />

pregar em Viena ou onde quer que fosse na Áustria. Ao receber essa<br />

proibição <strong>Clemente</strong> sentiu o seu coração como que estracinhado; teve compaixão<br />

de milhares de almas que ficariam para sempre priva<strong>da</strong>s do pão <strong>da</strong> palavra<br />

de Deus. Mas não havia remédio; <strong>Clemente</strong> teve que sujeitar-se e de fato, curvou<br />

sua fronte confiado na proteção divina. No domingo seguinte calaram-se os<br />

sinos, mas o povo afluiu <strong>da</strong> mesma forma. O Reitor <strong>da</strong> Igreja ao ver a massa<br />

que se apinhava no templo, sentiu tentação de transgredir a ordem recebi<strong>da</strong><br />

dos homens, mas soube conter-se; de sobrepeliz e estola subiu ao púlpito e<br />

depois de lido o Evangelho, com voz entrecorta<strong>da</strong> e trêmula começou: “Mas<br />

caros irmãos, foi-me proibido fazer-vos pregações para o futuro, e eu devo obedecer;<br />

no santo Sacrifício <strong>da</strong> missa pedirei a Deus, se digne inspirar a ca<strong>da</strong> um<br />

de vós, o que eu hoje queria pregar”. O povo desatou em prantos e soluços,<br />

indignando-se uns e chorando outros, de sorte que o próprio governo se deixou<br />

intimi<strong>da</strong>r e retraiu nos dias seguintes a proibição que fizera a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>.<br />

Esse golpe tão brusco quão inoportuno serviu apenas para preparar ain<strong>da</strong><br />

mais os ânimos, encher as almas de admiração pela pessoa do Reitor de Santa<br />

Úrsula, e animar o Apóstolo à anunciar sempre mais destemi<strong>da</strong>mente o Evangelho,<br />

segundo a ordem do divino Mestre: “Ide e ensinai to<strong>da</strong>s as gentes... ensinando-as<br />

a observar to<strong>da</strong>s as coisas que vos tenho man<strong>da</strong>do (Mt 28,19-20).<br />

O leitor poderá ain<strong>da</strong>, levado de uma inocente curiosi<strong>da</strong>de, perguntar, como é<br />

que S. <strong>Clemente</strong> se preparava para as suas pregações. As muitas ocupações e<br />

preocupações <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> apostólica não lhe permitiam dedicar muito tempo à preparação;<br />

no princípio <strong>da</strong> semana lia o Evangelho do próximo domingo, meditando e<br />

ponderando ca<strong>da</strong> palavra e, nessa meditação, os pensamentos assaltavam-no em<br />

multidão; aos sábados, à noite, ordenava as idéias e os argumentos de acordo com<br />

a lógica e a psicologia; só então é que regularmente subia ao púlpito. Sem preparação,<br />

embora breve, ele nunca pregou, porque sabia que do contrário tentaria a<br />

Deus e faltaria ao respeito devido à palavra divina. Uma vez <strong>Clemente</strong> perguntou a<br />

um dos seus amigos: “Qual é a melhor preparação para a pregação?” e sem esperar<br />

a resposta apontou para os joelhos dizendo: “a oração é a coisa principal nas<br />

pregações”.<br />

53<br />

CAPÍTULO V<br />

O zeloso auxiliar nas pregações<br />

Conversão do poeta — Suas pregações — Trombeta do juízo — O orador<br />

dos eruditos — O discípulo do grande Mestre — O poeta e o dramaturgo —<br />

Esses moleques...<br />

Com certeza o leitor ain<strong>da</strong> se recor<strong>da</strong>rá <strong>da</strong> cena tristíssima que Varsóvia<br />

presenciou em 1808, quando S. <strong>Clemente</strong>, internado numa carruagem to<strong>da</strong><br />

fecha<strong>da</strong>, o terço a deslizar-lhe pelos dedos, foi expulso do seu querido convento<br />

de S. Beno e conduzido ao exílio, à fortaleza de Küstrin perto de Berlim. Um dos<br />

principais perseguidores dos Redentoristas e mais encarniçados inimigos de<br />

<strong>Clemente</strong>, foi um funcionário prussiano, de estatura elegante, estilo fluente, fantasia<br />

viva acalenta<strong>da</strong> por uma veia poética arrebatadora. Chamava-se Zacharias<br />

Werner; filho de sua época, joguete <strong>da</strong>s mais desenfrea<strong>da</strong>s paixões, só procurava<br />

os divertimentos mun<strong>da</strong>nos; educado no protestantismo pusera sua pena,<br />

aliás brilhante, a serviço <strong>da</strong> heresia compondo poesias, romances, peças teatrais,<br />

vaza<strong>da</strong>s nos moldes do filosofismo de Kant, atacando o clero, a Igreja, o<br />

jesuitismo etc. Seus amigos prediletos eram Rousseau, Goethe e Schiller, que<br />

lhe representavam o expoente máximo <strong>da</strong> cultura e <strong>da</strong> inteligência humana.<br />

Além de adepto do josefismo e <strong>da</strong> maçonaria levava vi<strong>da</strong> licenciosa, pois que<br />

além <strong>da</strong>s três mulheres que possuía simultaneamente, era, em Varsóvia, o escân<strong>da</strong>lo<br />

<strong>da</strong>s boas famílias. Poeta fino e artista consumado introduziu-se Werner<br />

na mais alta socie<strong>da</strong>de européia, mas descontente e irrequieto ia de ci<strong>da</strong>de em<br />

ci<strong>da</strong>de em procura de novos gozos e prazeres, até que, quas sem o perceber,<br />

chegou a Roma; ao penetrar os umbrais <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de dos Papas, o seu coração<br />

suspirou e sua alma vibrou aos bafejos <strong>da</strong>s auras acalenta<strong>da</strong>s do Sul; seus<br />

olhos ficaram-se naquelas monumentos <strong>da</strong> fé enquanto que seus lábios, enternecidos<br />

e arrependidos, pronunciavam a prece que brotava espontaneamente<br />

do seu coração. E a oração salvou-o; retirou-se à solidão, meditou as ver<strong>da</strong>des<br />

eternas, e qual outro Saul no caminho de Damasco, levantou-se convertido e<br />

decidido a pertencer inteiramente à Igreja católica, a única que apresenta e dá<br />

a seus filhos paz e sossego, ver<strong>da</strong>de e esperança. A 19 de abril de 1810 Zacharias<br />

Werner abraçou a religião, <strong>da</strong> qual, três anos depois, se constituiu ministro pela<br />

ordenação sacerdotal. Por seu temperamento sangüíneo era volúvel e inconstante<br />

passando bruscamente do auge do entusiasmo ao mais completo abatimento<br />

moral. Necessitava pois de um guia seguro e prudente; ao chegar a Viena<br />

encontrou-o em S. <strong>Clemente</strong>, que ele outrora perseguira, mas que agora lhe<br />

estendia amavelmente as mãos pronto a encaminhá-lo na vere<strong>da</strong> do céu pelas<br />

árduas montanhas <strong>da</strong> perfeição cristã. Desde então a história de Werner é


inseparável <strong>da</strong> de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, o qual, vendo em seu amigo as quali<strong>da</strong>des<br />

excepcionais e os dotes admiráveis que Deus lhe concedera tão prodigamente,<br />

procurou servir-se delas para a difusão do reino de Deus e a salvação <strong>da</strong>s<br />

almas. A fama literária de Werner, os ecos <strong>da</strong> sua antiga vi<strong>da</strong> efemina<strong>da</strong>, os<br />

comentários que sobre ele se faziam abertamente, atraiam as multidões para a<br />

Igreja de Santo Agostinho onde pregava o antigo discípulo de Schiller e Goethe.<br />

A impressão causa<strong>da</strong> por Werner na tribuna era deslumbrante. A figura esbelta,<br />

o rosto pálido, as sobrancelhas cerra<strong>da</strong>s e negras, os cabelos compridos que<br />

lhe caiam em cachos abun<strong>da</strong>ntes sobre os ombros preparavam o auditório; e<br />

quando ele descerrava os seus lábios e com a magia <strong>da</strong> sua palavra inflama<strong>da</strong><br />

descrevia a felici<strong>da</strong>de, que goza um católico no seio <strong>da</strong> sua Igreja, e depois,<br />

abrindo sua alma e apelando para sua experiência própria, expunha a insipidez<br />

do luteranismo ou pintava ao vivo o contentamento e o bem estar que se sente<br />

no estado de graça santificante, um como choque elétrico tocava os milhares<br />

de corações que o ouviam, não havendo quem pudesse resistir às suas palavras<br />

fascinantes. Quando sua fantasia se inflamava e com ardente fervor invocava<br />

as musas mais fagueiras, a poesia jorrava em borbotões de seus lábios<br />

trêmulos a descrever os magníficos quadros <strong>da</strong> formosa Itália, onde em on<strong>da</strong>s<br />

de púrpura o sol se esconde por entre os píncaros dos Apeninos; os ouvintes<br />

tinham então a sensação do assombro, ficando indelevelmente grava<strong>da</strong> em os<br />

espíritos e corações a lembrança <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fé, que o orador nunca deixava<br />

de ligar a seus quadros. Quando com voz possante anunciava ao povo os<br />

terrores do juízo final, ou abria ante seus olhos os abismos infernais, parecia<br />

um dos velhos profetas ressuscitados, e o temor e o espanto se estampavam<br />

nos rostos dos ouvintes que tremiam diante do juiz eterno. É por causa desses<br />

sermões impressionantes que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> lhe pusera o nome de “trombeta<br />

do juízo universal”. Quando, pelo contrário, o pregador poeta, com uma humil<strong>da</strong>de<br />

impressionável, falava dos desvarios <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> passa<strong>da</strong> e mostrava a<br />

misericórdia com que Deus o tirara do abismo <strong>da</strong> perdição, corriam-lhe as lágrimas<br />

pelas faces e os ouvintes choravam de comoção. Werner era original em<br />

suas pregações; não se perdia em frases vazias, mas fazia transpirar a convicção<br />

íntima de que se achava possuído, era o pregador dos eruditos e literatos.<br />

As suas pregações puseram to<strong>da</strong> Viena em movimento; durante o famoso Congresso<br />

de 1815 todos os reis e príncipes congressistas foram ouvir o maravilhoso<br />

pregador. Ora esse homem tão grande aos olhos do mundo, era como uma<br />

criança nas mãos de S. <strong>Clemente</strong>, em cuja escola ia constantemente aprender<br />

a arte <strong>da</strong> pregação apostólica; obedecia-lhe em tudo, porque nele via o homem<br />

de Deus, o oráculo do Espírito Santo. Do seu lado, <strong>Clemente</strong> que o estimava,<br />

não poupava esforços para lhe mostrar o caminho seguro <strong>da</strong> perfeição.<br />

Num domingo voltara Werner de uma estação de águas num carro, que lhe<br />

moeu o corpo inteiro; embora extenuado foi cumprimentar seu bom amigo na<br />

sacristia <strong>da</strong> Igreja <strong>da</strong>s Ursulinas. Sucedeu chegar ele justamente na hora, em<br />

que no coro se cantava o solo para a pregação. S. <strong>Clemente</strong> sem mais preâmbulos<br />

mandou a Werner subir ao púlpito, ao que ele respondeu: “Como? se eu<br />

não tive tempo nem de ler o Evangelho?” <strong>Clemente</strong> respondeu secamente: “Isso<br />

não é desculpa”. Werner curvou-se, fez o sacrifício acrescentando: “A isso ninguém<br />

poderia obrigar senão V. Revma. a quem obedeço com gosto e alegria”.<br />

54<br />

Uma vez ao pregar em Santa Úrsula escapou a Werner uma expressão<br />

que cheirava ao protestantismo, e S. <strong>Clemente</strong> ouviu o sermão inteiro, sentado<br />

na sacristia. Termina<strong>da</strong> a alocução desceu Werner, mas ao entrar na sacristia<br />

ouviu dos lábios de seu Mestre: “O que hoje disseste não era católico, e por isso<br />

no próximo domingo tens de retificá-lo”. E Werner obedeceu.<br />

Como Werner era, por natureza, altivo e voluntarioso, S. <strong>Clemente</strong> não<br />

perdia vaza para humilhá-lo às vezes até com certa aspereza. “Werner é a<br />

trombeta de Deus, dizia ele, mas o seu orgulho prussiano nunca se poderá<br />

bastantemente rebater”.<br />

Werner depois <strong>da</strong> sua conversão não abandonou a pena que sempre manejara<br />

com maestria. Compôs peças teatrais, romances, poesias tão lin<strong>da</strong>s,<br />

que ele mesmo se deliciava em sua leitura, e não raras vezes quis repartir a<br />

alegria com seu querido Diretor, esperando naturalmente os parabéns. <strong>Clemente</strong><br />

porém levantava apenas o dedo e movendo-o dizia: “Dalila” como se<br />

dissesse: “Cui<strong>da</strong>do, meu filho, como Dalila seduziu Sansão e foi a sua ruína,<br />

assim também a tua poesia será a tua ruína, se te ensoberbeceres”. Werner,<br />

qual criança amorosa, procurava achar-se, o mais possível, na companhia de<br />

seu Mestre; mas como <strong>Clemente</strong> sempre an<strong>da</strong>va rodeado de estu<strong>da</strong>ntes, Werner<br />

dificilmente conseguia estar a sós com seu Diretor. Uma vez por certo azedume<br />

lhe disse queixoso: “Quando é que lhe poderei falar! sempre que venho encontro<br />

aqui esses moleques”. Ao que <strong>Clemente</strong> respondeu: “Gosto mais desses<br />

moleques, que de você”.<br />

Nessa santa amizade passaram-se cinco anos de ver<strong>da</strong>deiro esforço para<br />

a perfeição religiosa. Eram duas almas que se fundiam e se amavam em Nosso<br />

Senhor; era a ver<strong>da</strong>deira amizade que se não perdia em sentimentalismo, mas<br />

que se espiritualizava sempre mais, a medi<strong>da</strong> que os anos se iam. Werner foi<br />

para <strong>Clemente</strong> um poderoso cooperador; por isso, como seu santo Diretor,<br />

mereceu que os vienenses o denominassem “o apóstolo de Viena”.


CAPÍTULO VI<br />

O Santo ao altar<br />

O Serafim ante o tabernáculo — O humilde aju<strong>da</strong>nte de missa — As piedosas<br />

traidoras — Cena comovente — O esmagador do josefismo — As quarenta<br />

horas.<br />

Para se compreender bem a ativi<strong>da</strong>de apostólica e o efeito admirável <strong>da</strong><br />

pregação de <strong>Clemente</strong>, seria necessário contemplá-lo ao altar. Os que tiveram<br />

a ventura de vê-lo perto do sacrário, não encontraram na língua humana palavras<br />

capazes de definir ou descrever a impressão recebi<strong>da</strong>. Sua intimi<strong>da</strong>de com<br />

Jesus Sacramentado era uma outra manifestação <strong>da</strong> sua fé, talvez ain<strong>da</strong> mais<br />

arrebatadora do que seu verbo inflamado no alto <strong>da</strong> tribuna sagra<strong>da</strong>. À imitação<br />

de seu Pai espiritual Santo Afonso não sentia maior prazer do que em permanecer<br />

diante do Prisioneiro dos nossos sacrários; lá era indescritível o seu recolhimento.<br />

Quando na igreja dos Italianos tinha de transportar o Santíssimo <strong>da</strong><br />

capela-mor para qualquer altar lateral, que se achasse um tanto afastado, sua<br />

fronte inclinava-se amorosamente sobre a ambula, os olhos conservavam-se<br />

semicerrados, fitos sobre o cibório, que ele apertava jeitosamente contra o peito.<br />

<strong>Clemente</strong> não precisava lutar para conservar a atenção e o recolhimento;<br />

pelo contrário era-lhe, às vezes, difícil conter as chamas que o devoravam, sem<br />

as manifestar por fora. Uma <strong>da</strong>s suas ocupações prediletas era distribuir a santa<br />

comunhão, por se sentir assim mais perto do seu Deus. Nessas ocasiões não<br />

lhe era sempre fácil disfarçar os soluços e conter as lágrimas de comoção, que<br />

lhe brotavam dos olhos e corriam, a fio, pelas faces traindo o que se passava<br />

dentro do coração. Nos dias <strong>da</strong> exposição solene do Santíssimo, de joelhos<br />

fixava os olhos na Hóstia consagra<strong>da</strong>, seu rosto se transfigurava e ele parecia<br />

um Serafim a contemplar face a face a Jesus, encanto <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>.<br />

Embora idoso gostava de aju<strong>da</strong>r a missa a qualquer sacerdote, embora<br />

novo, porque tinha assim mais uma ocasião de se achar perto de Jesus<br />

Sacramentado.<br />

Homens de conheci<strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de, como v. g. Mons. Muzzi auditor <strong>da</strong><br />

Nunciatura, iam nos dias de grande festa, à Santa Úrsula, unicamente para se<br />

edificarem com a devoção íntima de S. <strong>Clemente</strong>. O coração do Servo de Deus<br />

transbor<strong>da</strong>va de delícia e expandia-se docemente quando se julgava despercebido,<br />

a sós com Jesus Sacramentado. As religiosas de Santa Úrsula costumavam<br />

ser as traidoras piedosas dessas cenas comoventes. A Irmã Thadéa escondeu-se<br />

um dia na igreja, e pôs-se a contemplar <strong>Clemente</strong> que se julgava só<br />

diante do sacrário. “O rosto do Santo, diz ela, estava como que transfigurado e<br />

refulgente de amor; ele estendia muitas vezes seus braços a Jesus, como a<br />

55<br />

<strong>da</strong>r-lhe o coração, falava com o seu Deus com a ternura de um filho que deposita<br />

no coração de seu pai amado a expressão suma do seu amor e confiança;<br />

com a ponta dos dedos reunidos atirava em cheio para o sacrário o ósculo dos<br />

seus lábios e do seu coração”. Comovi<strong>da</strong> a Irmã Thadéa chamou também as<br />

outras irmãs, que se edificaram com aquela devoção e fé viva, que para elas<br />

tiveram mais valor e efeito do que amais tocante pregação.<br />

Jesus presente na Eucaristia é o centro de to<strong>da</strong> fé e pie<strong>da</strong>de, e por isso a<br />

devoção ao Santíssimo ocupa sempre um lugar saliente na vi<strong>da</strong> de todos os<br />

Santos. Mas em S. <strong>Clemente</strong> essa devoção tinha um caráter especial, produzido<br />

talvez em parte pelo espírito <strong>da</strong> época; o jansenismo e o racionalismo conservavam<br />

afastado dos olhos e do coração do povo esse grande mistério <strong>da</strong><br />

nossa fé. Para combatê-los <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> instituíra a missão permanente em S.<br />

Beno, que não era senão semanas, meses e anos eucarísticos. E de fato, o<br />

desejo ardente de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era difundir por to<strong>da</strong> parte e introduzir em<br />

todos os corações o amor ao Santíssimo, e o desejo de receber a Jesus freqüentes<br />

vezes na santa comunhão. Para a adoração do Rei dos reis, solenemente<br />

exposto no ostensório, não lhe era permitido fazer em Viena o que fizera<br />

em S. Beno, porque lhe faltavam os meios e a permissão dos governo.<br />

Durante a adoração <strong>da</strong>s 40 horas, porém, em Santa Úrsula, na igreja dos<br />

Italianos e na dos Mechitaristas era ele quem mais se interessava e trabalhava<br />

para que Jesus Sacramentado recebesse a homenagem mereci<strong>da</strong> dos<br />

adoradores. Durante o ano visitava sempre a igreja em que se achava exposto<br />

o Santíssimo na espaçosa ci<strong>da</strong>de de Viena, sendo quase sempre ele que, em<br />

própria pessoa, adornava de flores naturais os altares e o tabernáculo. <strong>Clemente</strong><br />

parecia ter abolido em Viena a diferença do domingo e dos dias úteis. O<br />

confessionário achava-se assediado todos os dias e a mesa <strong>da</strong> comunhão era<br />

um encanto diariamente pelo avultado número de almas eucarísticas; famílias<br />

inteiras, e <strong>da</strong>s melhores, permaneciam ajoelha<strong>da</strong>s no pavimento, horas e horas<br />

a fio, na mais profun<strong>da</strong> devoção diante de Jesus Sacramento. Santa Úrsula era<br />

o centro, donde se difundia pela ci<strong>da</strong>de to<strong>da</strong> esse amor e devoção a Jesus-<br />

Hóstia, de sorte que um dos amigos de <strong>Clemente</strong> pôde afirmar sem exagero,<br />

que depois de dez anos de trabalho de S. <strong>Clemente</strong>, Viena se tornou o lugar,<br />

onde Jesus era mais visitado, mesmo nos dias de semana, e onde mais se<br />

recebia a santa comunhão.


CAPÍTULO VII<br />

O devoto <strong>da</strong> Virgem<br />

Devoção combati<strong>da</strong> — O digno filho de S. Afonso — Invocações prediletas<br />

— O rosário sua biblioteca — O rosário à cabeceira dos doentes — A devoção<br />

a <strong>Maria</strong>; uma necessi<strong>da</strong>de — Os Santuários <strong>da</strong> Virgem.<br />

A devoção à Santíssima Virgem era um ponto atacado e combatido naqueles<br />

tempos de frieza religiosa e de jansenismo detestável.<br />

Até teólogos, que se diziam católicos, julgavam dever impugnar o culto de<br />

<strong>Maria</strong> Santíssima. O rosário era desconhecido em bastante centros católicos<br />

de sorte que em Viena se tinha em conta de curiosi<strong>da</strong>de o fato de que na Igreja<br />

de Santa Úrsula havia um padre que benzia terços e rosários.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era um digno filho espiritual de Sto. Afonso de Ligório, o<br />

dedicado cantor e defensor acerrimo <strong>da</strong>s Glórias de <strong>Maria</strong>, e por isso não podia<br />

deixar de consagrar à Virgem um amor terno e filial. O divino Mestre afirmou<br />

que a boca fala ex abun<strong>da</strong>ntia cordis, <strong>da</strong>quilo que enche o coração; para S.<br />

<strong>Clemente</strong>, o decantar no púlpito e nas palestras familiares as glórias <strong>da</strong> Mãe de<br />

Deus, era uma <strong>da</strong>s maiores alegrias e consolações <strong>da</strong> sua alma. No púlpito,<br />

quando discorria sobre algum mistério <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de Nossa Senhora, tornava-se<br />

excepcionalmente eloqüente e as palavras jorravam fáceis dos seus lábios: era<br />

o filho amoroso que enaltecia os encômios de sua Mãe. A Imacula<strong>da</strong> Conceição,<br />

as Sete Dores de <strong>Maria</strong>, e sobretudo o mistério <strong>da</strong> Anunciação, em que<br />

veneramos conjuntamente a encarnação do Verbo e a materni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Virgem,<br />

eram o objeto <strong>da</strong> sua mais terna devoção desde os dias <strong>da</strong> sua infância, e o<br />

assunto predileto dos seus eloqüentes sermões. Dificilmente passava-lhe despercebido<br />

o toque do “Angelus” de manhã, ao meio-dia e à tarde; onde quer que<br />

se achasse, punha-se de joelhos e com devoção e amor sau<strong>da</strong>va sua Rainha e<br />

Mãe.<br />

A exemplo de Sto. Afonso nutria uma devoção to<strong>da</strong> especial para com a<br />

Virgem sob o título do Bom Conselho, de cujas luzes tanto necessitava naqueles<br />

tempos turbulentos; e a Virgem diversas vezes deu mostras de que aceitava<br />

os obséquios do seu devoto Servo, guiando-o, qual estrela indeficiente através<br />

dos escolhos e abrolhos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> tempestuosa do seu século.<br />

Característica era a sua devoção para com o rosário de <strong>Maria</strong>, que denominava<br />

a sua “biblioteca”. Em todos os seus passeios pela ci<strong>da</strong>de e em casa,<br />

nos momentos livres, <strong>Clemente</strong> desfiava as contas do rosário. Para consoli<strong>da</strong>r<br />

essa devoção entre os seus discípulos impôs aos Oblatos <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> o<br />

dever de defender sempre o rosário, mormente quando escarnecido pelos hereges.<br />

No púlpito, no confessionário e nos entretenimentos familiares recomen-<br />

56<br />

<strong>da</strong>va com fogo essa devoção; nas pausas do confessionário rezava o terço, ou,<br />

ao menos, algumas “Ave-<strong>Maria</strong>s”, afirmando que por essa devoção conseguia<br />

quanto pedia a Deus. Por vezes, à cabeceira dos doentes, esgotados os meios<br />

de persuasão, ajoelhava-se, rezava o terço, e a conversão era garanti<strong>da</strong>. Chamado<br />

a algum doente, que morava um tanto afastado, punha-se a rezar o terço<br />

de caminho e gostava de dizer: “Quando tenho tempo de rezar o terço, não há<br />

pecador que se não converta!” Para S. <strong>Clemente</strong> a devoção a Nossa Senhora<br />

era uma necessi<strong>da</strong>de imperiosa. Não podia ouvir falar em nome de <strong>Maria</strong> sem<br />

algum predicado glorioso para Ela. Quando em suas longas viagens encontrava<br />

algum santuário <strong>da</strong> Virgem, não prosseguia seu caminho sem primeiro sau<strong>da</strong>r<br />

sua Mãe celeste e depositar em seu altar o ósculo ardente do seu amor filial.<br />

Em Viena os únicos passeios, que fazia fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, eram consagrados à<br />

Virgem em seus santuários. To<strong>da</strong>s as igrejas de Nossa Senhora eram-lhe caras,<br />

porque em to<strong>da</strong>s elas encontrava ocasião de homenagear sua Mãe e Rainha;<br />

porém o santuário que mais atraia era o de <strong>Maria</strong>zell onde se desenvolvia,<br />

como em nenhum outro, a vi<strong>da</strong> de fé católica, aliás abaladíssima na Áustria no<br />

tempo do josefismo. Quando o Santo contemplava as multidões que, de perto e<br />

de longe, invadiam o Santuário <strong>da</strong> Virgem, os corações a vibrar de amor, os<br />

cânticos a ecoar pelas planícies, as orações a repercutir na vasta abóba<strong>da</strong> do<br />

Santuário, sua satisfação era sem limites, seu peito estremecia, e seu coração<br />

parecia saltar fora a desafiar os incrédulos a virem em sua increduli<strong>da</strong>de explicar<br />

aquele espetáculo de fé. — “Que os incrédulos, exclamou ele, venham explicar-me,<br />

se puderem, o que impulsiona este povo, o que o traz de tão longe<br />

terras, a custo de mil fadigas, a estas montanhas! Tem-se de reconhecer que é<br />

o poder <strong>da</strong> fé. Oh! se o Santo Padre pudesse ver to<strong>da</strong> esta gente e esta devoção,<br />

havia de chorar de alegria”.<br />

No púlpito e no confessionário exortava continuamente os fiéis a recorrerem<br />

à Rainha do céu — “Não se pode ir para o paraíso senão por meio de<br />

<strong>Maria</strong>”, gostava ele de repetir.<br />

Mormente aos pecadores apontava <strong>Clemente</strong> a devoção a <strong>Maria</strong> como<br />

âncora de refúgio e de salvamento. “Meus irmãos, exclamou ele um dia levado<br />

de entusiasmo, se entre vós existir algum que perdeu a fé, ou nela se sente<br />

fraco, ouça o remédio eficaz que eu conheço ser infalível: reze diariamente de<br />

joelhos e com devoção uma ‘Ave <strong>Maria</strong>’ à Mãe de Deus, e sua alma atribula<strong>da</strong><br />

recuperará a paz”.


CAPÍTULO VIII<br />

O prudente Confessor<br />

Confessor procurado — O dia no confessionário — A Irmã Francisca —<br />

Luiza Xavier — O caminho mais seguro — Francisco Arrependido — A caixa de<br />

rapé — A senhora às margens do Danúbio — O Kraus escrupuloso — Pe. José<br />

no altar — A mulher sem pecados — Preparação contínua — Passy confessase<br />

sem o saber.<br />

Desde a chega<strong>da</strong> de <strong>Clemente</strong> a Viena, o lugar principal de sua ativi<strong>da</strong>de<br />

apostólica em prol <strong>da</strong>s almas já não era o púlpito como outrora em S. Beno, mas<br />

o confessionário, onde passava horas e horas na direção espiritual dos seus<br />

penitentes, sendo procurado por pessoas de to<strong>da</strong>s as classes <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de. Os<br />

prediletos eram os homens e os moços que iam procurar em casa para lá fazerem<br />

sua confissão. E não era em vão que tantos o procuravam. <strong>Clemente</strong> possuía,<br />

como confessor, quali<strong>da</strong>des extraordinárias que deixavam nos penitentes<br />

a certeza de uma direção segura e sã. Sempre que o estado <strong>da</strong> alma o exigia e<br />

as circunstâncias o permitiam, <strong>Clemente</strong> aconselhava a confissão geral, à qual<br />

fazia preceder bastante tempo de exata preparação. E <strong>Clemente</strong> não perdia a<br />

paciência, ouvia tudo como bom médico e depois <strong>da</strong>va o necessário remédio.<br />

Muitas vezes passava o dia inteiro no confessionário. Uma vez sentindo-se mal<br />

tomou uma sangria, como era costume naquele tempo, e para não perder tempo,<br />

correu ao confessionário, onde os panos se desataram, <strong>da</strong>ndo livre fluxo ao<br />

sangue que se pôs a correr sem parar, pelo pavimento; enfraquecido pela per<strong>da</strong><br />

de sangue <strong>Clemente</strong> desmaiou, e certamente ter-lhe-ia sucedido coisa pior, se<br />

lá por acaso não se encontrasse um médico, que acudiu com prontidão. Não<br />

era raro ficar o Santo no confessionário até alta hora <strong>da</strong> noite. Quem uma vez se<br />

confessava a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> sentia necessi<strong>da</strong>de de voltar outra vez, não porque<br />

<strong>Clemente</strong> gostasse de agra<strong>da</strong>r com palavras adocica<strong>da</strong>s, mas porque sabia<br />

infundir nas almas o ver<strong>da</strong>deiro amor a Jesus Cristo. Antes de sentar-se no<br />

confessionário costumava ajoelhar-se diante do tabernáculo a fim de pedir ao<br />

céu prudência e amor para tão espinhoso cargo. Ao ouvir as confissões S. <strong>Clemente</strong><br />

evitava os longos entretenimentos com os penitentes e procurava ser<br />

breve quanto possível; as poucas palavras de conselho e animação que dirigia<br />

aos penitentes eram paternais e por isso calavam profun<strong>da</strong>mente nas almas.<br />

<strong>Clemente</strong> possuía o dom extraordinário de penetrar com seu olhar através<br />

dos corações, e não poucas vezes, antes <strong>da</strong> confissão, desfazia as dúvi<strong>da</strong>s que<br />

o penitente desejava expor. “Em um dos nossos conventos, escreve a Irmã<br />

Thadéa, havia uma candi<strong>da</strong>ta que se via atormenta<strong>da</strong> por inúmeras tentações<br />

contra a vocação, até que, um dia, se decidiu abandonar o convento. Quando<br />

57<br />

menos o esperava, S. <strong>Clemente</strong> aproxima-se dela com as palavras: ‘Francisca,<br />

fica no convento, porque és chama<strong>da</strong> por Deus’. Como a ninguém ain<strong>da</strong> havia<br />

ela manifestado os seus pensamentos nesse sentido, reconheceu nas palavras<br />

de S. <strong>Clemente</strong> a vontade de Deus, e as dúvi<strong>da</strong>s sobre a vocação desapareceram<br />

instantaneamente”. Permaneceu na ordem e na i<strong>da</strong>de de 83 anos foi uma<br />

<strong>da</strong>s depoentes na causa <strong>da</strong> beatificação de S. <strong>Clemente</strong>.<br />

Um caso semelhante; conta-o a Visitandina Luiza Xavier: “Thereza Gonzaga,<br />

atual superiora do nosso convento em Gleink, era, no mundo, penitente de <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong>. Ao ouvir um sermão do Santo sentiu em si o desejo de entrar nas<br />

Ursulinas; manifestou ao pai esse seu intento, mas este a dissuadiu prometendo<br />

não <strong>da</strong>r jamais, para isso, o seu consentimento. Embora continuasse a ouvir<br />

a voz de Deus, que a chamava, desanimou diante <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des e desistiu do<br />

seu piedoso intento, ocultando tudo isso a seu diretor espiritual. Na confissão<br />

porém <strong>Clemente</strong> disse-lhe abruptamente: ‘Deves ser Visitandina, e eu mesmo<br />

me encarrego de arranjar-te um lugar’. A penitente sentiu um peso deslizar-se<br />

do seu coração, entrou para as Visitandinas, onde viveu 50 anos no gozo <strong>da</strong><br />

mais perfeita paz, graças ao esforço do seu bom diretor espiritual”.<br />

Com poucas palavras sabia <strong>Clemente</strong> aplicar o remédio conveniente às<br />

chagas <strong>da</strong> alma. Era com todos bondoso, delicado, porém sempre enérgico e<br />

firma em seus conselhos. A penitência que impunha não era sempre a mesma<br />

para todos porque para ca<strong>da</strong> doença há remédio especial. Homem de prudência<br />

reprimia em seus penitentes qualquer exagero ou imoderado zelo, e aconselhava<br />

a todos o caminho ordinário ao céu, por ser mais seguro do que todos<br />

os excessos que enfraquecem a alma e que muitas vezes se tornam contraproducentes.<br />

Uma vez um moço, comovido por um sermão, pediu a <strong>Clemente</strong> que o<br />

ouvisse de confissão imediatamente depois <strong>da</strong> pregação. O Santo tomou-o pela<br />

mão, fitou-lhe os olhos e penetrando to<strong>da</strong> a sua alma disse-lhe: “Ain<strong>da</strong> não,<br />

venha comigo” e levou-o para o convento provisório, onde o jovem no silêncio e<br />

na oração se devia preparar para as contas a <strong>da</strong>r a Nosso Senhor; ao entrar no<br />

quarto a ele destinado, <strong>Clemente</strong> apontou para um magnífico Crucifixo pendurado<br />

na parede, e disse ao jovem: “Francisco, aprende aqui a tua lição”. O jovem<br />

pôs-se a meditar, sua vi<strong>da</strong> inteira passou novamente ante os olhos <strong>da</strong> sua alma,<br />

recordou-se do tempo <strong>da</strong> infância e <strong>da</strong>s diabruras efetua<strong>da</strong>s por ele nas ruas de<br />

Viena; rememorou o tempo <strong>da</strong> sua primeira juventude dedica<strong>da</strong> à vi<strong>da</strong> militar,<br />

<strong>da</strong> qual desertara para ir viver em Paris, onde o não puderam suportar por<br />

muito tempo. Chafur<strong>da</strong>do em to<strong>da</strong> lama, lavado em to<strong>da</strong>s as águas voltou a<br />

Viena e não teve coragem de se apresentar à sua mãe, que era uma senhora<br />

severa. Foi nessa ocasião que o seu bom anjo o levou à Igreja de Sta. Úrsula,<br />

onde a voz de <strong>Clemente</strong> a discorrer sobre os tormentos <strong>da</strong> consciência criminosa,<br />

se fez ouvir ao coração do pobrezinho.<br />

Fez sua confissão derramando lágrimas de arrependimento; mas o temor<br />

<strong>da</strong> mão o perturbava. <strong>Clemente</strong> porém consolou-o dizendo: “Não temas, que eu<br />

disporei tudo”. No dia seguinte a mãe do jovem não ficou pouco espanta<strong>da</strong> ao<br />

receber o convite de tomar café na sala do convento. <strong>Clemente</strong>, muito de indústria,<br />

fez a conversa cair sobre os filhos e pediu-lhe que contasse a história deles.<br />

A mãe falou de todos menos de Francisco, cujo nome nem quis mencionar por


vergonha e indignação. <strong>Clemente</strong> não se deu por vencido e perguntou<br />

interessa<strong>da</strong>mente por ele; foi a hora em que a mãe perdeu as estribeiras e falou<br />

quanto seu coração sentiu num destampatório horrível, afirmando que, provavelmente,<br />

o tal já estaria enforcado. <strong>Clemente</strong> sorriu-se paternalmente notando<br />

que a forca não é coisa tão barata, levantou-se, abriu a porta, e Francisco,<br />

debulhado em lágrimas, prostrou-se diante de sua mãe, que longe de se comover,<br />

desatou numa filípica até então desconheci<strong>da</strong> contra o filho. No meio <strong>da</strong>quela<br />

tempestade <strong>Clemente</strong> fez um sinal com a mão dizendo: “Agora basta,<br />

vamos tomar juntos o café”. E a paz se fez. Francisco porém estava devendo<br />

ain<strong>da</strong> alguma diabrura às irmãs, que compravam todos os dias o leite na casa<br />

de Francisco. <strong>Clemente</strong> anunciou às irmãs que lhes iria levar um Agostinho. A<br />

Superiora agradeceu com to<strong>da</strong> a cordiali<strong>da</strong>de afirmando possuir já diversas<br />

imagens desse Santo e por isso, não precisar de outra. <strong>Clemente</strong> levou-lhes<br />

porém o Agostinho vivo, e a paz completa se restabeleceu com Deus e os homens.<br />

Francisco já não quis abandonar seu protetor, pediu admissão na <strong>Congregação</strong><br />

Redentorista, e depois de terminar seus estudos, tornou-se o grande<br />

missionário que enalteceu o nome <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> e que salvou inúmeras almas<br />

na Valachia e em diversas regiões <strong>da</strong> Áustria e <strong>da</strong> Inglaterra. Não satisfeito<br />

com esses trabalhos penosos, atravessou os mares, foi a América do Norte,<br />

indo morrer, em i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong>, no convento redentorista de Leoben na Áustria.<br />

Houve milhares de pessoas que como Francisco ficaram devendo a S. <strong>Clemente</strong><br />

a sua salvação eterna. O Santo redentorista empenhava-se seriamente<br />

em encaminhar as almas segundo o espírito de Sto. Afonso. É por causa dessa<br />

circunstância que um pintor se lembrou, em boa hora, de representar S. <strong>Clemente</strong><br />

na forma do Bom Pastor, que apoiado em seu cajado levanta para o céu<br />

a ovelha desgarra<strong>da</strong>. O Servo de Deus recebera do céu o dom singular de<br />

penetrar com o olhar o íntimo dos corações.<br />

Ao an<strong>da</strong>r pelas ruas de Viena bastava-lhe observar, de longe, os transeuntes<br />

para saber o que lhes faltava. Uma vez ao passar por uma <strong>da</strong>s ruas mais<br />

movimenta<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Capital deu com um rapaz de muito mau humor, que acabava<br />

de ser expulso <strong>da</strong> aula. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> dirige-se a ele com as palavras: “Menino,<br />

venha cá um pouco; você tem qualquer coisa de anormal”, tomou-o pela mão,<br />

levou-o para casa, animou-o com bons conselhos transformando completamente<br />

aquele coração, que mais tarde havia de tornar-se um benemérito <strong>da</strong> pátria. Em<br />

uma outra ocasião encontrou-se com um indivíduo, que enojado <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> nutria<br />

desejos de ser afogar no Danúbio. Sem conhecer anteriormente a resolução<br />

íntima do infeliz, aproxima-se dele, tira do bolso a caixa de rapé e sorrindo<br />

amigavelmente oferece-lhe uma pita<strong>da</strong> cativando assim o coração do infeliz,<br />

que lhe contou sua triste história, abriu sua consciência numa sincera confissão;<br />

foi <strong>Clemente</strong> quem o salvou guiando-o para melhores idéias.<br />

Caso semelhante deu-se com uma senhora, nasci<strong>da</strong> na opulência e no<br />

luxo, a qual pela quebra de um banco comercial ficou reduzi<strong>da</strong> à miséria. S.<br />

<strong>Clemente</strong> passeava com um amigo ao longo <strong>da</strong> margem do rio, quando subitamente<br />

interrompe a conversa e corre para uma senhora que se aproximava,<br />

devagar e com hesitações, <strong>da</strong>s margens do Danúbio. <strong>Clemente</strong> percebera imediatamente<br />

o intento <strong>da</strong>quela senhora, que não lhe era conheci<strong>da</strong>. Sem religião<br />

e <strong>da</strong><strong>da</strong> às vai<strong>da</strong>des e ilusões do mundo, a pobre mulher não possuía a força<br />

58<br />

moral para se conformar com a nova posição, em que acabava de ser lança<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> noite para o dia, e por isso desespera<strong>da</strong> resolvera pôr termo à vi<strong>da</strong> atirandose<br />

nas águas do Danúbio. Sem mais preâmbulos <strong>Clemente</strong> a interpela, e a<br />

senhora, que não esperava naquela hora a visita de um sacerdote, conta-lhe o<br />

que sucedera em sua casa com a quebra do banco, onde perdera to<strong>da</strong> a sua<br />

fortuna caindo em extrema miséria. O Santo compadecido com a dor <strong>da</strong> pobre<br />

mulher, inclinou-se, tomou um punhado de pó dizendo: “Que é dinheiro, minha<br />

senhora? é um punhado de terra e na<strong>da</strong> mais”. Conseguindo dissuadi-la de<br />

sem nefando intento, levou-a à ci<strong>da</strong>de onde lhe arranjou um lugar no convento<br />

<strong>da</strong>s Ursulinas. No dia seguinte ouviu-a de confissão; a senhora converteu-se<br />

inteiramente servindo de edificação para todos <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, que a ficaram considerando<br />

como a uma santa.<br />

Ao lado dos grandes pecadores, também muitas almas tími<strong>da</strong>s e pusilânimes<br />

procuraram a direção de tão experimentado Diretor. O pior de todos esses<br />

maçadores, que roubavam muitas horas ao Santo, era um tal Kraus, que quando<br />

se confessava ou se dirigia em particular ao Santo, não achava fim na enumeração<br />

de seus escrúpulos e dúvi<strong>da</strong>s de consciência. Referindo-se a ele dizia<br />

S. <strong>Clemente</strong> a sorrir: “Um Kraus, ain<strong>da</strong> vá, mas dois, me matariam”. Escrúpulos<br />

e dúvi<strong>da</strong>s de consciência ele os afastava com poucas palavras. Um dos seus<br />

confrades Pe. José Forthuber <strong>da</strong>va-lhe ocasiões de sobra para exercer a virtude<br />

<strong>da</strong> paciência por causa dos seus escrúpulos; quando celebrava o santo Sacrifício,<br />

ao chegar o momento de purificar a patena, gastava uma eterni<strong>da</strong>de em<br />

procura dos fragmentos que não havia na patena molestando assim os ouvintes,<br />

que começavam já a evitar a missa do Pe. José. Uma vez estando <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> a assistira missa desse padre, e percebendo que ele não terminava a<br />

purificação levantou-se devagar, subiu os degraus do altar e sussurrou ao ouvido<br />

do celebrante: “Padre José, deixe alguma coisa também para os anjos”. Foi<br />

o suficiente para corrigi-lo. Embora pacientíssimo no confessionário, às vezes<br />

parecia perder a calma, quando pessoas que nunca se haviam confessado em<br />

sua vi<strong>da</strong>, afirmavam não ter nenhum pecado a acusar. Nesses casos o Santo se<br />

desabafava com um pouco de sarcasmo: “Ah! o senhor é um santo; vou man<strong>da</strong>r<br />

logo acender algumas velas para o novo santo”. Como o mundo é malicioso e<br />

inventa anedotas para todos, inventou uma também para S. <strong>Clemente</strong>. Contam<br />

que estando uma vez o Santo a ouvir confissões na sacristia <strong>da</strong> Igreja <strong>da</strong>s<br />

Ursulinas, deu com uma pessoa que não tinha absolutamente nenhum pecado<br />

a se acusar. <strong>Clemente</strong> interrogou-o sobre to<strong>da</strong>s as possibili<strong>da</strong>des a respeito<br />

dos dez man<strong>da</strong>mentos <strong>da</strong> lei de Deus, dos cinco preceitos <strong>da</strong> Igreja, dos pecados<br />

capitais, esmiuçou suas perguntas sobre as mais sutis imperfeições, porém<br />

debalde. <strong>Clemente</strong>, então, não podendo já conter-se, disse ao sacristão: “André,<br />

venha cá e coloque esta mulher no altar; ela é uma santa”.<br />

Das pessoas que semanalmente se confessavam e que, em geral, levavam<br />

uma vi<strong>da</strong> piedosa não exigia <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> preparação muito prolonga<strong>da</strong>. Assim<br />

quando às vezes chegava inespera<strong>da</strong>mente ao convento para ouvir as confissões<br />

<strong>da</strong>s Irmãs e estas, desaponta<strong>da</strong>s, se escusavam pretextando falta de<br />

preparação dizia o Santo: “Venham que eu as aju<strong>da</strong>rei”. Um belo dia chegou ao<br />

convento e as irmãs deixaram-no esperar muito tempo; queriam preparar-se<br />

bem, porque receavam qualquer repreensão de S. <strong>Clemente</strong>, se se aproximas-


sem do tribunal <strong>da</strong> penitência sem estarem bem prepara<strong>da</strong>s. As mais velhas,<br />

com o fim de evitar qualquer palavra mais pesa<strong>da</strong>, foram ter com a Irmã mais<br />

nova e convi<strong>da</strong>ram-na a ir ao confessionário e demorar-se lá <strong>da</strong>ndo às outras o<br />

tempo necessário de fazer o exame de consciência. A Irmãzinha que na<strong>da</strong> suspeitara,<br />

ajoelhou-se no confessionário pedindo desculpas ao confessor por não<br />

ter tido o necessário tempo de preparação. <strong>Clemente</strong> com todo o carinho e<br />

paciência auxiliou a jovem Religiosa que fez uma confissão tão boa como poucas<br />

vezes na vi<strong>da</strong>. Lá fora as outras puseram-se a contemplar o rosto <strong>da</strong><br />

Irmãzinha, para se formarem uma idéia do que as esperava no confessionário.<br />

Vendo a Irmãzinha alegre e satisfeita, encheram-se de coragem, mas na confissão<br />

recebeu ca<strong>da</strong> qual o sermão que não esperava. A Irmãzinha nova encheuse<br />

de curiosi<strong>da</strong>de e, com a maior ingenui<strong>da</strong>de, perguntou às mais velhas que<br />

conselhos tão doces haviam recebido, que as fizeram chorar, ao que elas responderam:<br />

“O Pe. <strong>Clemente</strong> nos disse que para a confissão e para a morte ca<strong>da</strong><br />

qual deve estar sempre bem prepara<strong>da</strong>, porque ninguém sabe quando o Senhor<br />

virá”.<br />

Em Viena havia naquele tempo um célebre ator de teatro, chamado José<br />

Passy. Quando ain<strong>da</strong> pequeno, seu pai o queria para a vi<strong>da</strong> comercial não perdendo<br />

nunca vasa de o entusiasmar para esse ramo de ativi<strong>da</strong>de. O rapaz<br />

porém deu-se à leitura de romances cavalheirescos, amorosos e teatrais; com<br />

a fantasia efemina<strong>da</strong>, detestando todo o trabalho sério, fugiu para a ci<strong>da</strong>de de<br />

Praga, onde se colocou numa companhia dramática. O pai ao ter conhecimento<br />

do caso, mandou o filho mais velho ao encalço de José Passy para reconduzir à<br />

casa paterna.<br />

Reconhecendo José a sua incapaci<strong>da</strong>de para a vi<strong>da</strong> de teatros, e tendo a<br />

experiência de que o romance escrito é bem mais atraente do que o <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

real, acompanhou o irmão com o qual voltou para Viena. Sem fé e sem religião<br />

o pobre jovem levava uma vi<strong>da</strong> bem triste e sem consolação, quando percebeu<br />

os primeiros sintomas <strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong>de que o levaria fatalmente ao túmulo. Morrer<br />

na flor dos anos, ficar privado de todos os prazeres, dizer adeus a todos os<br />

divertimentos... isso tudo torturava-lhe o coração.<br />

Cheio de compaixão para com o pobre irmão, João Passy levou-o, a título<br />

de visita, ao Servo de Deus, que o convidou a voltar outra vez no dia seguinte;<br />

José que se edificara com as boas maneiras do velho sacerdote, para lá voltou<br />

conforme prometera em busca de nova palestra agradável. <strong>Clemente</strong> olhando<br />

para o jovem disse-lhe: “Amigo, deves fazer a tua confissão; só assim é que<br />

uma nova luz iluminará a tua alma”.<br />

Percebendo o desaponto do jovem, <strong>Clemente</strong> pareceu mu<strong>da</strong>r de assunto,<br />

perguntou-lhe por sua i<strong>da</strong>de, sua vi<strong>da</strong>, suas ocupações, seu desejos na infância<br />

e na juventude, interessou-se por seus sucessos em Praga, pelos livros de<br />

sua predileção, pelas orações que mais gostava de fazer, pelas igrejas que<br />

mais freqüentava aos domingos, pelos amores que lhe prenderam o coração<br />

etc. O jovem, comovido por tanto interesse e delicadeza, abriu o coração e<br />

desabafou-o no de <strong>Clemente</strong> fazendo-o confidente <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> inteira, descreveu-lhe<br />

minuciosamente os seus desejos, as suas aspirações, os seus dissabores,<br />

os seus fiascos e mais alguns pormenores. Quando o jovem terminou a<br />

narração, <strong>Clemente</strong> sorrindo paternalmente disse-lhe: “Meu caro amigo, tua<br />

59<br />

confissão está feita, ajoelha-te, pede perdão a Deus de todo o mal que fizeste e<br />

promete ao Senhor não mais ofendê-lo em tua vi<strong>da</strong>”. Em segui<strong>da</strong> perdoou-lhe<br />

em nome de Deus todos os desvarios cometidos. Completamente transformado,<br />

o coração a na<strong>da</strong>r de contentamento voltou Passy para casa contando a<br />

todos, como se confessara sem o saber, e como recuperara a paz que há tantos<br />

anos fugira <strong>da</strong> sua alma.


CAPÍTULO IX<br />

O amigo dos doentes<br />

O caridoso enfermeiro — O neo-presbítero enfraquecido — A Religiosa<br />

neurastênica — O cão preto — O barão tuberculoso — O lobo convertido em<br />

cordeiro — Convertido pela água benta — Dois coelhos de uma caja<strong>da</strong><strong>da</strong> —<br />

Um funcionário maçom morre santamente — Esforços de conversão — Conversão<br />

estupen<strong>da</strong> na hora <strong>da</strong> morte.<br />

A exemplo do divino Redentor, que nos dias <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> mortal, visitava os<br />

doentes derramando-lhes nas chagas <strong>da</strong> alma o bálsamo de consolo ou restituindo-lhes<br />

miraculosamente a saúde do corpo, os Santos de todos os tempos se<br />

têm distinguido no amor para com os doentes consagrando-lhes boa parte de<br />

sua vi<strong>da</strong>. Visitar os enfermos, consolá-los nas suas dores e aflições, e reanimar<br />

os seus corações encaminhando-os para Deus, é uma obra de cari<strong>da</strong>de genuinamente<br />

cristã, um trabalho ver<strong>da</strong>deiramente apostólico, tão útil como a pregação<br />

ou a audição <strong>da</strong>s confissões. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era admirável nesse particular.<br />

O seu coração nobre não podia ouvir, sem se comover, os ecos dos gemidos<br />

profundos ou <strong>da</strong>s dores lancinantes dos pobres enfermos.<br />

Como já tivemos ocasião de observar, S. <strong>Clemente</strong> consagrava a primeira<br />

parte do dia ao serviço divino e ao confessionário, e a segun<strong>da</strong> parte, ao cui<strong>da</strong>do<br />

dos seus queridos doentes na ci<strong>da</strong>de ou nos arrabaldes de Viena sem se<br />

perturbar com a neve e o vento, a chuva ou a tempestade. Qual anjo consolador<br />

é cabeceira dos doentes, suas palavras eram sempre fortes e animadoras em<br />

to<strong>da</strong>s as enfermi<strong>da</strong>des, porque extraí<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Escritura e umedeci<strong>da</strong>s no sangue<br />

do Crucificado. Após as visitas do Santo, os enfermos abraçavam resignados a<br />

sua cruz man<strong>da</strong><strong>da</strong> por Deus, beijavam-na com amor, como a esca<strong>da</strong> miraculosa<br />

que os conduziria ao paraíso.<br />

No caso de pobreza levava-lhes <strong>Clemente</strong>, debaixo do manto, a esmola<br />

que lhes devia mitigar a fome. Não tinha o pobrezinho quem lhe pensasse as<br />

chagas e lhe apresentasse o remédio na hora certa, <strong>Clemente</strong> lá ficava horas e<br />

horas, exercendo caridosamente o ofício de enfermeiro e não julgava perdido o<br />

tempo que passava junto <strong>da</strong> cabeceira do doente.<br />

Mesmo no caso de não ser grave a enfermi<strong>da</strong>de, <strong>Clemente</strong> sentia igual<br />

compaixão com o doente, e como não pudesse ver ninguém sofrer, ia visitá-lo e<br />

lembrar-lhe que o tempo <strong>da</strong> doença é a colheita dos maiores merecimentos<br />

para o céu. No seminário de Viena havia um rapaz, penitente do nosso Santo,<br />

de constituição franzina e fraca, a quem ninguém profetizava cabelos brancos<br />

no futuro. Ordenado sacerdote foi participar sua alegria ao velho amigo e benfeitor.<br />

<strong>Clemente</strong> mostrou viva satisfação pela felici<strong>da</strong>de do seu penitente e con-<br />

60<br />

vidou-o para o almoço, que o neo-presbítero aceitou, julgando-se ditoso por<br />

poder passar umas horas em companhia do Santo.<br />

Qual não foi o seu espanto, quando viu a <strong>Clemente</strong>, não sentado a seu<br />

lado, mas a exercer com to<strong>da</strong> a delicadeza o ofício de copeiro. Termina<strong>da</strong> a<br />

refeição, subiram ao an<strong>da</strong>r superior, onde <strong>Clemente</strong> lhe preparara um leito macio<br />

para a sesta... “porque é bom, disse ele, que gente nova e fraca durma um<br />

pouco depois <strong>da</strong>s refeições”. O neo-presbítero não se deixou rogar segun<strong>da</strong><br />

vez, entregou-se ao sono, enquanto que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> lá fora se aprofun<strong>da</strong>va<br />

em santas meditações.<br />

Na enfermaria do convento <strong>da</strong>s Ursulinas achava-se uma Religiosa já idosa<br />

e um tanto fraca do juízo, que com suas impaciências e impertinências molestava<br />

as outras religiosas. <strong>Clemente</strong>, para ganhar aquele coração, ia todos os<br />

dias ao jardim, onde colhia alguma flor, que levava à pobre enferma; na falta de<br />

flores, no inverno, procurava qualquer presente, de que a doente pudesse gostar,<br />

entretinha-se com ela sobre coisas e assuntos indiferentes, porque a velha<br />

não se simpatizava com ascese nem misticismo. Aos poucos conseguiu domar<br />

aquele coração, que completamente se rendeu, quando <strong>Clemente</strong>, convi<strong>da</strong>ndo-a<br />

para um passeio pelos corredores do convento, lhe apresentou o braço<br />

para lhe facilitar os passos. Tal amizade e compaixão converteram a pobre enferma,<br />

que alegre e contente <strong>da</strong>i por diante não molestou mais a enfermeira.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> tornava-se incansável à cabeceira dos doentes, mormente<br />

quando a morte se aproximava prostrando a pobre vítima. A Irmã Thadéa narranos<br />

um fato que comprova admiravelmente essa ver<strong>da</strong>de.<br />

“No nosso instituto de educação, havia uma aluna por nome Rosa, que já<br />

tinha feito a primeira comunhão. Aconteceu a pequena adoecer, e às portas <strong>da</strong><br />

morte, sentir temores indizíveis; levantava os braços e clamava: ‘O cão preto me<br />

quer tragar”. Uma <strong>da</strong>s Irmãs correu em procura do Pe. <strong>Clemente</strong>, que chegou<br />

imediatamente; mal havia o Servo de Deus penetrado no quarto, a aluna exclamou<br />

tranqüiliza<strong>da</strong>: “O cão preto já se foi”. O Servo de Deus abençoou a pequena,<br />

deu-lhe a absolvição geral e ela morreu com a placidez dos justos. “Temos<br />

no céu mais um anjo que reze por nós”, disse então o Servo de Deus dirigindose<br />

às irmãs.<br />

O amor do Santo Redentorista para com os doentes não se limitava à enfermaria<br />

do convento, mas abrangia a ci<strong>da</strong>de de Viena inteira desde os palácios<br />

dos grandes até as míseras choupanas dos pobres. Seria difícil, para não dizer<br />

impossível, enumerar os doentes que S. <strong>Clemente</strong> visitou e consolou no tempo<br />

<strong>da</strong> sua esta<strong>da</strong> em Viena. Não havia na grande Capital quem não conhecesse<br />

esse amor excepcional de <strong>Clemente</strong> para com os doentes; por isso chamavamno<br />

sempre, mormente em se tratando de infelizes, que perderam a fé e se<br />

obstinavam em não receber os santos sacramentos.<br />

Um dia foi chamado para sacramentar um senhor <strong>da</strong> alta nobreza; ninguém<br />

na família ousava manifestar ao infeliz a gravi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> doença, e o enfermo,<br />

ignorando a serie<strong>da</strong>de do caso, não se lembrou de pedir os últimos sacramentos.<br />

Ao chegar <strong>Clemente</strong> à casa do doente, pediu-lhe a esposa que por<br />

amor de Deus não espantasse o marido. O Servo de Deus deixou-a falar e<br />

entrou no quarto do enfermo; como este se achasse deitado atrás <strong>da</strong> porta,<br />

<strong>Clemente</strong> não o vendo, gritou: “Onde está o doente que não quer confessar-


se?” O temor <strong>da</strong> esposa era felizmente infun<strong>da</strong>do, o enfermo com gosto se<br />

confessou, consolando-se com a palavra de <strong>Clemente</strong>, que lhe assegurou a<br />

salvação.<br />

E sempre que <strong>Clemente</strong> afiançava a alguém a salvação e o céu, ninguém<br />

disso duvi<strong>da</strong>va porque a voz de <strong>Clemente</strong> era a de um anjo que falava em nome<br />

de Deus.<br />

Uma jovem princesa, prostra<strong>da</strong> em seu leito de morte, sofrendo horrivelmente,<br />

não cessava de dizer radiante de consolação: “O Pe. <strong>Clemente</strong> prometeu-me<br />

o céu”.<br />

Em Viena havia um barão, católico prático, porém só de confissão anual. Já<br />

de há muito vinham os bacilos <strong>da</strong> tuberculose roendo os seus pulmões. Embora<br />

o pobre barão se prometesse longa vi<strong>da</strong>, a boa esposa não o deixava sossegar,<br />

insistia com ele para que recebesse os sacramentos a fim de não morrer como<br />

um pagão. Como o nobre senhor não prestasse ouvidos a esse conselho, a<br />

baronesa foi procurar S. <strong>Clemente</strong>, que sau<strong>da</strong>ndo o enfermo lhe disse com voz<br />

decidi<strong>da</strong>: “Sr. Barão, confesse os seus pecados, que o sr. pode estar certo de ir<br />

para o céu”. O nobre senhor estranhou aquela sau<strong>da</strong>ção, refletiu um pouco e<br />

perguntou: “Que é que V. Revma. está dizendo? será ver<strong>da</strong>de mesmo?” — “Sim,<br />

é ver<strong>da</strong>de”. — Achando o barão que para ele era um bom negócio comprar o<br />

céu por coisa tão fácil, respondeu: “Pois então eu quero confessar-me agora<br />

mesmo”. Confessou-se, recebeu o viático e a extrema-unção.<br />

A morte porém não chegou tão depressa como se esperava; e estando ele<br />

já cansado de rezar e não sabendo sobre o que conversar com a baronesa o<br />

dia inteiro, comprou umas cartas de baralho e pôs-se a matar o tempo divertindo-se<br />

com seus amigos. A pobre esposa escan<strong>da</strong>lizou-se com esse modo singular<br />

de se preparar para a morte; mas ele tranqüilo respondeu-lhe: “Sabes<br />

duma coisa? o Pe. <strong>Clemente</strong> não me proibiu de jogar; se fosse pecado, ele não<br />

m’o teria permitido”. Foi o suficiente para terminar a desavença.<br />

Um senhor idoso e rico em Viena estava já desenganado dos médicos e<br />

por isso sem esperança alguma de recuperar a saúde. Os parentes fizeram-lhe<br />

ver o estado em que se achava e aconselharam-no a ajustar as contas com<br />

Deus; porém debalde. O ancião estava decidido a não procurar os sacramentos.<br />

Chamaram diversos sacerdotes, que foram visitá-lo, um depois do outro; e<br />

o doente a ca<strong>da</strong> um que entrava dirigia a sau<strong>da</strong>ção: “Vai-te para os diabos”. E<br />

os sacerdotes retiraram-se rezando pelo infeliz. Os parentes encheram-se de<br />

terror diante <strong>da</strong>quelas palavras blasfemas dirigi<strong>da</strong>s aos ministros de Deus, mas<br />

não desanimaram; lembraram-se do Reitor <strong>da</strong> Igreja de Santa Úrsula. Contaram-lhe<br />

todo o ocorrido, mas <strong>Clemente</strong> não perdeu nem a coragem nem a esperança;<br />

tomou o rosário e, pelas ruas de Viena, conjurou o céu que lhe desse<br />

aquela alma. Mal chegara o Servo de Deus à porta <strong>da</strong> casa, quando chorosas<br />

lhe correram ao encontro a esposa e as filhas, pedindo que tivesse paciência<br />

pois que já doze sacerdotes, antes dele, na<strong>da</strong> haviam conseguido do doente.<br />

<strong>Clemente</strong> entrou perguntando: “Onde é que está o doente?” Quando lhe mostraram<br />

o leito, viu o Servo de Deus o enfermo imóvel sobre a cama e exclamou:<br />

“Ah! é ele; estaremos logo prontos”. Saudou o doente, que mando como um<br />

cordeiro, fez sua confissão, recebeu a comunhão e extrema-unção e morreu na<br />

amizade de Deus.<br />

61<br />

Um jovem <strong>da</strong> aristocracia vienense, filho de pais católicos e piedosos, dedicando-se<br />

ao estudo <strong>da</strong> filosofia racionalista, perdeu a fé, como acontece a todos<br />

que fazem seus estudos superficialmente sem procurar aprofun<strong>da</strong>r-se na<br />

ciência. Como a increduli<strong>da</strong>de, embora origina<strong>da</strong> do orgulho humano, não tem<br />

poder para afastar as enfermi<strong>da</strong>des e a morte, o jovem foi atacado de doença<br />

mortal, que lhe roubou a tranqüili<strong>da</strong>de e a paz, pois na<strong>da</strong> tinha a esperar nesta<br />

vi<strong>da</strong> nem na outra. Chamaram o Pe. <strong>Clemente</strong> para lhe endireitar a cabeça que<br />

os professores haviam entortado. Compreendendo S. <strong>Clemente</strong> que a fé, bebi<strong>da</strong><br />

nas fontes de uma boa educação doméstica, não se perde facilmente em<br />

seus princípios, deixou de lado to<strong>da</strong> e qualquer argumentação e convidou o<br />

moço a recitar com ele o “Creio em Deus Padre”. Porém debalde, o jovem não<br />

proferia palavra. O Santo percebeu que não podia ser outro senão o demônio,<br />

que lhe segurava a língua para não rezar; tomou um pouco de água benta<br />

aspergiu-a sobre o doente, com as palavras: “Reze agora!” E sem mais dificul<strong>da</strong>de<br />

o jovem recitou o credo inteiro. Sua alma estava outra vez transforma<strong>da</strong><br />

para o bem, possuía novamente fé, cria como nos dias <strong>da</strong> sua infância. Seus<br />

olhos derramaram lágrimas, enquanto seus lábios proferiam o desejo íntimo do<br />

coração: “Padre, eu quero confessar-me”. Pouco depois deu a alma a Deus,<br />

consolado por haver recebido os Sacramentos.<br />

Um barão de Viena, embora filho de mãe católica e sobrinho de um trapista,<br />

era calvinista como seu pai, de acordo com o contrato pecaminoso feito pelos<br />

pais na hora do casamento, de educar os meninos no calvinismo e as meninas<br />

no catolicismo. O jovem entrou logo para a universi<strong>da</strong>de, como aluno do grande<br />

matemático João Madlener, discípulo de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>; os estudos porém, abateram<br />

logo o barão calvinista; o mal agravou-se sendo o pobrezinho em breve<br />

tempo desenganado dos médicos. Seu antigo professor visitou-o freqüentes<br />

vezes lamentando estar ele emaranhado no calvinismo e, por isso mesmo, privado<br />

dos confortos dos Sacramentos <strong>da</strong> Igreja; não teve porém coragem de<br />

dizer uma palavra sequer ao jovem barão. Foi ter com S. <strong>Clemente</strong>, participando-lhe<br />

o estado deplorável do seu discípulo na universi<strong>da</strong>de. O Santo franziu o<br />

rosto e com to<strong>da</strong> a serie<strong>da</strong>de disse a Madlener: “Por essa alma o senhor é<br />

responsável; diga-lhe que ele vai morrer”.<br />

O professor toma o chapéu e corre à casa do barão para lhe comunicar a<br />

sentença de morte; mas ao ver o infeliz perdeu a coragem contentando-se com<br />

as palavras: “Pe. <strong>Clemente</strong> interessou-se por ti e pretende fazer-te uma visita”.<br />

O jovem edificando-se com tamanha gentileza por parte de um homem tão<br />

conhecido e estimado na ci<strong>da</strong>de, sorrindo-se de contentamento murmurou com<br />

voz sumi<strong>da</strong>: “Diga-lhe que agradeço a visita, e que, quando sarar, quero ter o<br />

prazer de pagar tanta amabili<strong>da</strong>de”. Madlener, compreendendo que o doente<br />

podia morrer a ca<strong>da</strong> instante, voltou depressa a seu Diretor, pedindo-lhe que<br />

não se demorasse, que o doente estava já nas últimas. S. <strong>Clemente</strong> acompanhava<br />

Madlener, porém em silêncio; por entre os seus dedos deslizaram-se as<br />

contas do Rosário, enquanto que ele pedia à Virgem a conversão do infeliz. Ao<br />

aproximar-se do enfermo pergunta-lhe por seu estado, ao que o interrogado<br />

responde: “Padre, estou muito mal”. <strong>Clemente</strong> sentiu-se comovido com aquela<br />

declaração, mandou que todos se retirassem, e em segui<strong>da</strong> sentando-se à cabeceira<br />

do jovem barão, tomou-lhe a mão e, com o coração nos lábios, falou-lhe


<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e do erro, de Cristo e Calvino, <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira Igreja e <strong>da</strong> falsa, <strong>da</strong><br />

consolação que o católico tem na vi<strong>da</strong> e na morte, e do desespero do calvinismo<br />

que condena os seus adeptos, quer tenham culpa, quer não. Passado um quarto<br />

de hora, <strong>Clemente</strong> chama os amigos com as palavras: “O doente é católico,<br />

vou buscar a santa comunhão”, e ele recebeu o Corpo do Senhor com uma<br />

devoção tal, que arrancou lágrimas dos que presenciaram tão comovente cena.<br />

Depois de quatro horas de oração o enfermo entregou sua alma santifica<strong>da</strong> ao<br />

Senhor. — O irmão do falecido, calvinista como ele, ao saber <strong>da</strong> gentileza de<br />

<strong>Clemente</strong>, julgou seu dever visitar o Santo e agradecer-lhe quanto fizera por<br />

seu falecido irmão. O Servo de Deus compadeceu-se também <strong>da</strong>quela alma e<br />

aproveitou-se <strong>da</strong> ocasião, que Deus lhe man<strong>da</strong>va, para convertê-lo. <strong>Clemente</strong><br />

descreveu ao visitante a morte santa que tivera o jovem barão, e começou a<br />

falar de Calvino cuja vi<strong>da</strong> era cheia de vícios, e que por isso Deus não o podia<br />

ter escolhido para reformar sua Igreja etc. Passa<strong>da</strong> uma hora Carlos Rieger —<br />

assim se chamava ele — estava convertido, era católico; anos depois foi ordenado<br />

sacerdote trabalhando ain<strong>da</strong> muito tempo, em Viena, para a santa causa<br />

de Deus.<br />

Um velho funcionário público vivia em Viena ao lado de sua esposa, senhora<br />

distintíssima, que se desvelava dia e noite, para tornar agradável ao seu<br />

marido a vi<strong>da</strong> doméstica. O funcionário, porém, desejoso de uma vi<strong>da</strong> mais livre<br />

e diverti<strong>da</strong>, começou a sentir-se mal junto <strong>da</strong> sua esposa, cujas virtudes lhe<br />

exprobravam continuamente a vi<strong>da</strong> desregra<strong>da</strong> que levava. Achou melhor divorciar-se<br />

dela, o que fez sem se comover com as lágrimas e os pedidos de sua<br />

santa esposa; filiou-se à maçonaria 7 , que então era proibi<strong>da</strong> por lei na Áustria,<br />

como socie<strong>da</strong>de perigosa que ocultamente trabalha contra o trono e altar, embora<br />

proclame altamente filantropia e altruísmo. A pobre esposa, que tudo perdoara<br />

de coração, orava sem cessar pela conversão de seu marido, e, como<br />

penitente de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, pediu-lhe que em suas orações não se esquecesse<br />

do infeliz esposo do santo Sacrifício <strong>da</strong> missa. Por uma casuali<strong>da</strong>de qualquer<br />

entrou o velho funcionário em uma igreja durante a pregação de <strong>Clemente</strong>.<br />

Empolgado pela eloqüência, convicção e unção do Servo de Deus, começou a<br />

sentir os remorsos <strong>da</strong> consciência, até que subjugado pela graça fez sua confissão<br />

geral e chamou a esposa para sua companhia depois de lhe pedir humildemente<br />

perdão. Como sua conversão era sincera entregou ao confessor as insígnias<br />

<strong>da</strong> maçonaria, vivendo <strong>da</strong>li por diante como bom católico. Pouco tempo<br />

depois <strong>da</strong> sua conversão, a tuberculose galopante o prostrou, tirando-lhe to<strong>da</strong> a<br />

esperança de restabelecimento. O convertido não se perturbou por isso; estava<br />

bem com Deus e assim poderia com tranqüili<strong>da</strong>de comparecer perante o seu<br />

Juiz Eterno. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não cessou de o visitar, repeti<strong>da</strong>s vezes, a fim de<br />

assim melhor prepará-lo para a morte. Estando já em seus últimos momentos<br />

<strong>Clemente</strong> apresentou-lhe o Crucifixo, que ele beijou entre lágrimas e soluços<br />

aceitando de boa vontade a morte como expiação <strong>da</strong>s suas numerosas culpas;<br />

chamou sua esposa, agradeceu-lhe as orações, o generoso coração, os carinhos,<br />

e em segui<strong>da</strong> com voz entrecorta<strong>da</strong> de soluços disse-lhe: “Mulher, perdoa-me<br />

to<strong>da</strong>s as mágoas e dissabores que te causei”. E depois de receber o<br />

perdão de Deus e <strong>da</strong> sua esposa, entre os braços de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, expirou<br />

placi<strong>da</strong>mente no Senhor.<br />

62<br />

Milhares de casos semelhantes poderíamos mencionar para a edificação<br />

dos leitores; mas esses bastem como prova <strong>da</strong> solicitude e do amor com que S.<br />

<strong>Clemente</strong> procurava o bem-estar temporal e espiritual, mormente <strong>da</strong>queles que<br />

estavam prestes a ajustar suas contas com Deus.<br />

Quando percebia que seus esforços eram insuficientes, corria a Jesus no<br />

tabernáculo e não o deixava enquanto não sentisse em seu coração o pressentimento<br />

<strong>da</strong> conversão dos pecadores, por quem rezava. Era um outro Israel que<br />

não cedia em sua luta com Deus. Um dia <strong>Clemente</strong> trabalhara em vão na conversão<br />

de um moribundo: recorreu ao pastor de to<strong>da</strong>s as almas, escondido no<br />

sacrário. Era meio-dia, as Ursulinas estavam reuni<strong>da</strong>s no refeitório e a igreja<br />

vazia, inteiramente vazia; <strong>Clemente</strong> julgando-se só, ajoelhou ao pé do altar; sua<br />

oração não era tranqüila como de costume, era santamente violenta: “Senhor,<br />

<strong>da</strong>i-me essa alma... <strong>da</strong>i-m’a eu vo-lo peço; se não m’a derdes irei a vossa Mãe...”<br />

Mais não pôde compreender a Irmã Thadéa que nessa ocasião se conservava<br />

escondi<strong>da</strong> no coro <strong>da</strong> igreja. O rosto do Santo estava banhado em lágrimas,<br />

seus olhos fitos no sacrário, seus braços em forma de cruz, ora levantados, ora<br />

colocados sobre o altar; como que para obrigar a Jesus a conceder-lhe a alma<br />

prostra-se por terra osculando o pavimento sagrado do templo, humilhando-se,<br />

o mais possível, para mover o coração Daquele que disse: “Pedi e recebereis”.<br />

À cabeceira dos enfermos debatia-se muitas vezes para arrancar as almas à<br />

perdição eterna. Disso temos uma prova clássica no exemplo seguinte.<br />

Um oculista, lente <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Viena, intoxicado pelas más leituras<br />

e pelo espírito <strong>da</strong> época abandonou não só a prática <strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de, mas também<br />

a fé, homenageando tão somente os sábios racionalistas; alistou-se na maçonaria<br />

e chegou até a negação <strong>da</strong> existência de Deus. Oculista do corpo precisava<br />

de alguém que lhe abrisse os olhos <strong>da</strong> alma. Chamaram o Servo de Deus,<br />

que conhecia remédios para semelhantes males — e o infeliz estava já às portas<br />

<strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de. <strong>Clemente</strong> entrou, e o oculista que se dedicara à estética<br />

desde os tenros anos, fitando o Santo, sua fronte alta, seu rosto espiritualizado,<br />

seus traços nobres, saudou-o: “Na ver<strong>da</strong>de, tem a cabeça de um apóstolo”, ao<br />

que o Santo replicou, pagando na mesma moe<strong>da</strong>: “Na ver<strong>da</strong>de, o sr. tem a<br />

cabeça de um Sócrates”. O doente sorriu, e <strong>Clemente</strong> lhe principiou a falar de<br />

Deus e <strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de. Tudo porém foi em vão. <strong>Clemente</strong> retirou-se de perto do<br />

pecador obstinado, o coração traspassado por uma espa<strong>da</strong> de dor, porém esperançoso<br />

ain<strong>da</strong> de ganhar aquela alma para Deus. Pouco depois volta novamente<br />

o Santo, saú<strong>da</strong> com to<strong>da</strong> a cortesia o doutor oculista que o cumula de<br />

palavras grosseiras, o injuria, protestando contra padres que só sabem enganar<br />

a humani<strong>da</strong>de e não deixam a gente sossega<strong>da</strong> nem na hora <strong>da</strong> morte;<br />

mandou-o retirar-se <strong>da</strong> casa antes que chegasse a polícia. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> recebeu<br />

todo aquele destampatório com a costuma<strong>da</strong> calma, oferecendo tudo a<br />

Deus pela conversão do pecador obstinado; cheio de bon<strong>da</strong>de aproximou-se do<br />

leito do moribundo com a observação: “Meu amigo, quando alguém vai fazer<br />

uma viagem, leva dinheiro consigo; o senhor vai fazer uma longa viagem, e<br />

despreza os meios que lhe são necessários no caminho: os Sacramentos <strong>da</strong><br />

Igreja; não seja tolo”. O doente enfureceu-se novamente, apontando a porta ao<br />

Servo de Deus. <strong>Clemente</strong> vendo que aquela alma se achava to<strong>da</strong> em poder de<br />

Satanás, retirou-se um pouco, sentou-se em uma cadeira e pôs-se a desfiar as


contas do rosário. O enfermo indignado até o íntimo <strong>da</strong> alma, quis saltar sobre<br />

o Servo de Deus e, não o conseguindo, clamou-lhe: “Que quer o Senhor? vá-se<br />

embora e deixe-me em paz”. Com calma e tranqüili<strong>da</strong>de respondeu o Santo:<br />

“Tenho visto muitas vezes morrer o justo, agora quero ver como morre um condenado”,<br />

e continuou a rezar. Essas palavras despertaram o racionalista; ódio e<br />

arrependimento, temor e remorsos, confiança e desespero borbulharam em seu<br />

coração; nos seus ouvidos repetiam-se os ecos: “Quero ver como morre um<br />

condenado”. Não podendo já resistir à graça chama o Servo de Deus e pedelhe:<br />

“Reverendo, perdoe-me to<strong>da</strong>s as injúrias que lhe acabo de dirigir”. Assegurando-lhe<br />

o Santo haver já esquecido tudo, acrescentou: “Mas Deus perdoarme-á<br />

os meus pecados?” A essas palavras o doente desatou em prantos de<br />

arrependimento. — “Deus é bom, meu filho, faça o ato de contrição, peça-lhe<br />

perdão, que ele perdoará tudo”.<br />

Em segui<strong>da</strong> o doente confessou-se com as mostras de maior contrição e<br />

<strong>da</strong>li a pouco expirou bran<strong>da</strong>mente apertando contra o peito a imagem do Crucificado<br />

e as mãos do seu salvador.<br />

Se era raro um doente resistir aos esforços do Servo de Deus, não deixa<br />

contudo de haver exemplo disso. Eis um fato.<br />

Um maçom gabava-se de não acreditar em coisa nenhuma e até zombava<br />

dos que tinham fé. Apesar <strong>da</strong> impie<strong>da</strong>de notória desse inimigo <strong>da</strong> Igreja, <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> não hesitou emir ter com ele. Esgotou todos os recursos do seu zelo,<br />

mas não pôde chegar a converter o infeliz. — A conversão de um maçom é<br />

coisa dificílima: os juramentos que o prendem ao demônio são obstáculos terríveis<br />

à operação <strong>da</strong> graça no seu coração. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> conseguiu, to<strong>da</strong>via,<br />

várias conversões, mesmo entre os maçons como temos visto. Em Varsóvia e<br />

em Viena teve a alegria de levar para Deus grande quanti<strong>da</strong>de deles.<br />

63<br />

CAPÍTULO X<br />

Sua dedicação aos pobres<br />

O pintor em apuros — A mulher esperta — A benfeitora oportuna — Multiplicação<br />

milagrosa — A postulante maravilha<strong>da</strong> — As dívi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s Ursulinas —<br />

O peixe pagador — Os sapatos <strong>da</strong> Irmã — O batalhão dos pobres.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era incansável quando se tratava dos pobres. Embora vivesse<br />

muito modestamente, não podia ver os outros padecer fome ou miséria,<br />

achava sempre benfeitores dos quais recebia esmolas abun<strong>da</strong>ntes para os<br />

deser<strong>da</strong>dos <strong>da</strong> fortuna; muitos contos de réis passaram por suas mãos em<br />

benefício dos necessitados. Às crianças que o rodeavam mimoseava o Santo<br />

com maçãs e doces, aos estu<strong>da</strong>ntes, que to<strong>da</strong>s as noites se reuniam em sua<br />

casa, franqueava os armários; diariamente convi<strong>da</strong>va para o almoço cinco ou<br />

seis estu<strong>da</strong>ntes pobres, aos quais não <strong>da</strong>va apenas do que lhe sobrava, mas<br />

tirava muitas vezes <strong>da</strong> sua própria boca o pão que recebia, para com ele matarlhes<br />

a fome. Quando alguém nessas ocasiões se lembrava de dizer-lhe que não<br />

era bom privar-se do necessário para dá-lo aos outros, respondia o Santo: “Que<br />

lhe importa isso, se eu me sinto satisfeito assim?” Em benefício dos estu<strong>da</strong>ntes<br />

e dos órfão <strong>Clemente</strong> mendigava muitas vezes, de porta em porta não receando<br />

os vexames e as humilhações que por vezes passava.<br />

Especial solicitude manifestava o servo de Deus para com os pobres envergonhados,<br />

que se acanhavam de pedir; enchia as algibeiras fun<strong>da</strong>s do seu<br />

manto e ia de casa em casa em procura desses infelizes, aos quais fornecia<br />

caridosamente mantimentos e dinheiro, conforme as necessi<strong>da</strong>des deles. Detido<br />

por qualquer doença ou ocupação muito urgente, man<strong>da</strong>va seus padres em<br />

nome dele, visitar os pobres, levando-lhes o conforto material e espiritual.<br />

Nas suas esmolas <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era prudente, não querendo, em sua cari<strong>da</strong>de,<br />

favorecer a indolência de ninguém, pois que o trabalho é uma necessi<strong>da</strong>de<br />

e uma virtude, enquanto que a preguiça é um pecado e a mãe de muitos<br />

outros. Naqueles tempos vivia em Viena um pintor que, no ano magro de 1817,<br />

ficou reduzido à miséria, por falta de encomen<strong>da</strong>s de pintura. Para trabalhar<br />

não tinha incentivo, para mendigar não tinha ânimo e para roubar não tinha<br />

vontade. Não conhecendo outro recurso foi expor a S. <strong>Clemente</strong> o mísero estado<br />

em que se achava, pedindo seu apoio e conselho. E o pobre pintor não ficou<br />

enganado, o Santo olhou por ele todos os dias, enquanto durou a carestia; não<br />

querendo porém deixá-lo sem ocupação recomendou-lhe que pintasse muitos<br />

quadros de Sto. Afonso que mais tarde conseguiu vender com bastante lucro.<br />

Era interessante e edificante ao mesmo tempo. Os ricos procuravam a <strong>Clemente</strong>,<br />

e <strong>Clemente</strong> procurava os pobres. Não sabemos muitos detalhes porme-


norizados <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do Santo nesse sentido, e é natural, pois que os pobres esquecidos<br />

e desprezados, não deixaram nenhures consigna<strong>da</strong>s as suas impressões<br />

nem a gratidão de seus corações; além disso a cari<strong>da</strong>de oculta-se o mais<br />

possível, e <strong>Clemente</strong> trabalhava não para conquistar os louros <strong>da</strong> admiração<br />

mun<strong>da</strong>na, mas unicamente para agra<strong>da</strong>r a Deus.<br />

O Pe. Madlener escreve com muita razão: “<strong>Clemente</strong> gostava muito mais<br />

<strong>da</strong> companhia dos pobres e dos simples do que <strong>da</strong> dos ricos e grandes”.<br />

Os pobres, que conheciam a grande generosi<strong>da</strong>de de <strong>Clemente</strong>, usavam,<br />

às vezes, de astúcias para conseguir esmolas. Um belo dia um rapazinho de<br />

olhos tristes e melancólicos bateu à porta do Santo, pedindo-lhe que fosse ver<br />

uma senhora doente num dos arrabaldes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Era já tarde e começava a<br />

escurecer; o Servo de Deus cansado dos trabalhos e fadigas do dia preparavase<br />

para o descanso noturno. O recado do menino, porém, alarmou-o. A senhora,<br />

já idosa, poderia estar muito mal, talvez à morte, e quiçá com a consciência<br />

pesa<strong>da</strong>, e <strong>Clemente</strong> era responsável por aquela alma perante Deus. Vencendo<br />

o cansaço e sacrificando o sono pôs-se a caminho, atravessou a ci<strong>da</strong>de e depois<br />

de três quartos de hora chegou ao lugar indicado pelo rapaz. Ao entrar na<br />

sala não viu nenhuma pessoa doente, mas uma velhinha assenta<strong>da</strong> à mesa, a<br />

qual não parecia precisar nem de médico nem de padre. Como porém, as aparências<br />

enganam, perguntou-lhe o Santo por sua saúde e por seus desejos, ao<br />

que a velha respondeu com to<strong>da</strong> a simplici<strong>da</strong>de: “Doença eu não tenho nenhuma,<br />

mas como eu ouvi dizer que o sr. gosta muito de aju<strong>da</strong>r os pobres, mandei<br />

chamá-lo, eu estou precisando de 30$”. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> admirou a esperteza <strong>da</strong><br />

velha, não franziu a fronte nem proferiu palavra de repreensão por aquela imprudência,<br />

sacou <strong>da</strong> bolsa e fez-lhe o presente dos trinta mil réis desejados.<br />

O Servo de Deus <strong>da</strong>va sempre, e embora pobre e na<strong>da</strong> possuísse, sempre<br />

tinha o que <strong>da</strong>r. Os padeiros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de e as irmãs Ursulinas forneciam-lhe pães,<br />

com que matava a fome aos pobres. Quando era convi<strong>da</strong>do a algum almoço ou<br />

jantar, e lhe ofereciam a sobra <strong>da</strong> mesa, ele aceitava com alegria e levava-a<br />

para os seus pobres. Os vienenses generosos não tar<strong>da</strong>ram a perceber a cari<strong>da</strong>de<br />

de <strong>Clemente</strong> e, aos poucos, enviaram-lhe comi<strong>da</strong>s, roupas e até dinheiro,<br />

para que os pudesse distribuir entre os mais necessitados. Confiado na bon<strong>da</strong>de<br />

dos benfeitores <strong>Clemente</strong>, às vezes, <strong>da</strong>va mais do que tinha.<br />

Uma vez alugou uma casa para um estu<strong>da</strong>nte; chegando o dia do pagamento<br />

o Servo de Deus viu-se em apuros, porque não tinha com que satisfazer<br />

o cobrador. Rezou e tornou a rezar e Deus parecia surdo às suas súplicas.<br />

Como os Santos sempre têm confiança ilimita<strong>da</strong> em Deus, também <strong>Clemente</strong><br />

não desanimou: faltavam apenas 12 horas para o dono <strong>da</strong> casa aparecer com a<br />

cobrança. <strong>Clemente</strong> estava orando em seu quarto, quando batem a campainha.<br />

“Mais um pobre, supunha o Servo de Deus, mais um pobre que vem pedir esmola,<br />

e eu com as mãos vazias!” Abriu a porta e uma senhora tira <strong>da</strong> bolsa um<br />

pequeno pacote e retira-se. <strong>Clemente</strong> abre o presente, vê e admira: uma bela<br />

quantia para pagar a casa e fazer mais alguma esmola.<br />

Deus não poucas vezes mostrou quanto lhe era agradável a cari<strong>da</strong>de de<br />

seu Servo, <strong>da</strong>ndo-lhe o poder de multiplicar os pães como outrora Jesus nas<br />

encostas <strong>da</strong> montanha, o qual com cinco pães e dois peixinhos sustentou mais<br />

de cinco mil homens, não contando as mulheres e crianças.<br />

64<br />

Entre os discípulos do Santo havia um por nome Antônio Passy, que desconfiando,<br />

ou antes, percebendo qualquer coisa de extraordinário na distribuição<br />

<strong>da</strong>s comi<strong>da</strong>s, quando feita por <strong>Clemente</strong>, pôs-se a observar a coisa com<br />

especial atenção. Uma tarde chegou, como de costume a comi<strong>da</strong> do convento<br />

<strong>da</strong>s Ursulinas para o Santo e o Pe. Martinho seu companheiro; este, jovem e<br />

robusto, comeu com apetite a parte que lhe cabia, e <strong>Clemente</strong> tomando a sua<br />

porção, distribuiu-a entre os 16 estu<strong>da</strong>ntes que lá se achavam, ficando todos<br />

satisfeitos. Em segui<strong>da</strong> o Santo tomando o pão de sobre a pesa, cortou-o em 16<br />

grandes pe<strong>da</strong>ços, que distribuiu aos estu<strong>da</strong>ntes. Passy viu sobrar apenas um<br />

pe<strong>da</strong>cinho, que o Santo guardou para si. — Como os estu<strong>da</strong>ntes, em geral, têm<br />

bom apetite, os pe<strong>da</strong>ços de pão desapareceram-lhes bem depressa entre os<br />

dentes. O Santo, alegrando-se com os discípulos, sadios e contentes, tornou a<br />

tomar o pe<strong>da</strong>cinho de pão que sobrara, e dele cortou novamente mais 16 pe<strong>da</strong>ços.<br />

Passy observou que o pão crescia nas mãos de seu Mestre.<br />

O mesmo fato deu-se milhares de vezes, não só com o pão, mas também<br />

com as outras comi<strong>da</strong>s. Como já ficou dito, as refeições eram man<strong>da</strong><strong>da</strong>s do<br />

convento <strong>da</strong>s Ursulinas em porção suficiente só para duas pessoas i. é para o<br />

Santo e seu auxiliar Pe. Martinho Stark; este último, moço e robusto, servia-se,<br />

com honra, <strong>da</strong> sua porção, ficando a outra metade de S. <strong>Clemente</strong> para ele e<br />

cinco estu<strong>da</strong>ntes: e todos comiam e ficavam fartos. Se acontecia aparecer mais<br />

algum inespera<strong>da</strong>mente, o Santo man<strong>da</strong>va-o sentar-se e <strong>da</strong>s marmitas vazias<br />

tirava tanta comi<strong>da</strong> que lhe saciava a fome e o satisfazia.<br />

Numa sexta-feira apareceu na casa de S. <strong>Clemente</strong> uma postulante <strong>da</strong>s<br />

Ursulinas para <strong>da</strong>r um recado ao Pe. Sabelli. Como era justamente a hora do<br />

almoço S. <strong>Clemente</strong> convidou-a para tomar parte <strong>da</strong> frugal refeição; isto causou<br />

certo espanto à pobre postulante, porque o Servo de Deus não convi<strong>da</strong>va nunca<br />

senhoras para almoçar com ele. Para não fazer desfeita ao Santo, aceitou o<br />

convite, ain<strong>da</strong> mais que a curiosi<strong>da</strong>de a impelia a observar a mesa do Diretor<br />

espiritual do convento. Ao ver a pequena marmita e o número de estu<strong>da</strong>ntes<br />

sentiu-se envergonha<strong>da</strong> raciocinando consigo: “A comi<strong>da</strong> é tão pouca, e os convivas<br />

são tantos, eu não posso, seria imprudência <strong>da</strong> minha parte, aceitar o<br />

amável convite”, e foi <strong>da</strong>ndo escusas e mais escusas; mas já era tarde, o Santo<br />

insistiu e ela ficou. Sobre a mesa viu a postulante: sopa de macarrão, dois pe<strong>da</strong>ços<br />

de peixe, um prato de farinha de trigo, e perto um litro de vinho tinto. Depois<br />

de feita a oração antes <strong>da</strong> refeição, como todo cristão a faz, o Santo levantou-se<br />

e começou a servir os estu<strong>da</strong>ntes; ca<strong>da</strong> qual recebeu mais sopa do que havia<br />

na terrina; o mesmo fez com os peixes e o prato de farinha, em segui<strong>da</strong> encheu<br />

todos os copos, que não eram pequenos, e a garrafa de vinho ain<strong>da</strong> ficou cheia<br />

pelo meio. A postulante <strong>da</strong>s Ursulinas testemunha ocular do fato afirmou que<br />

aquelas comi<strong>da</strong>s admiráveis eram mais deliciosas do que as refeições prepara<strong>da</strong>s<br />

pelo melhor cozinheiro de Paris.<br />

De um modo especial socorria ele às pobres irmãs Ursulinas; embora possuidoras<br />

de algum recurso pecuniário nos primeiros anos, perderam tudo em<br />

1811, ano fatal em que o Estado fez bancarrota, os bancos se quebraram, e a<br />

carestia se manifestou horrível em Viena e, em geral na Áustria. As religiosas<br />

sofreram mais que todos os outros, porque não podendo transpor a clausura,<br />

só esperavam socorro <strong>da</strong> Providência e <strong>da</strong> generosi<strong>da</strong>de de quem as quisesse


eneficiar. S. <strong>Clemente</strong> não as desamparou; esmolava para elas entre os amigos<br />

e, radiante de alegria, levava-lhes o que recebia dos benfeitores. Uma vez<br />

bateu à porta do arquiduque Rodolfo, arcebispo de Olmütz e irmão do imperador,<br />

pedindo-lhe que intercedesse pelas irmãs junto do monarca, que se dignou<br />

sal<strong>da</strong>r to<strong>da</strong>s as dívi<strong>da</strong>s <strong>da</strong>s Ursulinas. — Uma outra vez a carestia e a fome<br />

invadiram novamente a ci<strong>da</strong>de de Viena. A pobre ecônoma do convento viu-se<br />

quase no desespero não sabendo donde tirar o necessário para matar a fome<br />

<strong>da</strong>s suas religiosas: já não havia pão no refeitório, nem carne na dispensa, nem<br />

farinha no armário, nem dinheiro na caixa e nem crédito nos negócios. A pobre<br />

irmã procurou nas lágrimas um alívio para a sua dor. Uma Religiosa que passava,<br />

compreendendo a causa <strong>da</strong>queles prantos, consolou-a com as palavras:<br />

“Precisamos de um peixe pagador como nos tempos de <strong>São</strong> Pedro”. A Irmã<br />

referiu-se a um caso sucedido com S. Pedro e narrado por S. Mateus (17,23-<br />

26): Estando a Judéia sujeita aos romanos, tinham os judeus de lhes pagar<br />

anualmente os impostos, como também hoje em dia é costume em todos os<br />

lugares. Indo S. Pedro com Jesus a Cafarnaum, lá encontrou os cobradores,<br />

que o sau<strong>da</strong>ram pouco amistosamente: “Pedro, como é, o vosso Mestre não<br />

paga os impostos?” <strong>São</strong> Pedro não deixou de sentir o arrepio em todo o corpo,<br />

pois que não estava absolutamente prevenido na hora; reanimando-se porém<br />

respondeu: “Paga, sim” e foi contar tudo a Jesus que lhe disse: “Não há dúvi<strong>da</strong>,<br />

Pedro; vai ao lado, lança o anzol, o primeiro peixe que apanhares terá na boca<br />

o dinheiro para o pagamento”. Embora admiradíssimo com semelhante ordem,<br />

Pedro obedeceu e com mais admiração ain<strong>da</strong> encontrou entre as guelras do<br />

peixe o dinheiro exigido pelos cobradores. — Coisa semelhante desejava a boa<br />

Irmã que se desse com os peixes do Danúbio, que passa em Viena; esse peixe<br />

pagador estava mais perto <strong>da</strong>s Irmãs do que elas o poderiam imaginar. Algumas<br />

horas depois aparece <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> no convento <strong>da</strong>s Ursulinas e, olhando<br />

para a Irmãzinha ecônoma disse-lhe: “Irmã, eu sou o peixe pagador”; tirou sua<br />

bolsa e entregou à Superiora uma boa soma de dinheiro, que recebera dos<br />

benfeitores.<br />

A Irmã Thadéa conta o fato seguinte que se deu com ela: “Recebi o santo<br />

hábito no tempo que Viena gemia sob o jugo <strong>da</strong> carestia e <strong>da</strong> fome: a Superiora<br />

disse-me: ‘Sapatos como os que as irmãs usam, não lh’os posso fornecer, contente-se,<br />

por enquanto, com os que a senhora trouxe’. Durante os santos exercícios<br />

preparatórios para a toma<strong>da</strong> de hábito, veio o Pe. <strong>Clemente</strong>, mostrou-me<br />

um par de sapatos com as palavras: ‘Experimente se lhe servem; se não, comprarei<br />

outros’. Os sapatos serviam perfeitamente, continua a irmã, e eu os usei<br />

somente nos dias de grande festa durante 34 anos”.<br />

O que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era para os pobres viu-se claramente por ocasião do<br />

seu sepultamento; os pobres de Viena — batalhão incalculavelmente grande —<br />

apareceram chorando o seu defunto pai e benfeitor. Por causa dos seus constantes<br />

passeios pelos arrabaldes <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de em procura dos pobres, <strong>Clemente</strong><br />

era muito conhecido em Viena. Além disso <strong>Clemente</strong> gostava de an<strong>da</strong>r de batina<br />

Redentorista, embora a <strong>Congregação</strong> não fosse ain<strong>da</strong> aprova<strong>da</strong> na Áustria,<br />

e as outras Congregações preferissem, por prudência, an<strong>da</strong>r em trajes seculares.<br />

Isso atraía no princípio a curiosi<strong>da</strong>de, e em segui<strong>da</strong> a admiração, o respeito<br />

e amor para com o grande Apóstolo.<br />

65<br />

Não obstante to<strong>da</strong> essa ativi<strong>da</strong>de, não se notava em <strong>Clemente</strong> aquela precipitação<br />

que facilmente se apodera de pessoas muito atarefa<strong>da</strong>s. A impressão<br />

que <strong>Clemente</strong> causava, habitualmente a todos, era a de uma alegria modesta e<br />

uma tranqüili<strong>da</strong>de serena e imperturbável. É como diz a Imitação de Cristo:<br />

“Uma alma pura, simples e firme no bem, nunca se desorienta nas preocupações<br />

mais agres <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, porque todo o seu procedimento visa a glória de Deus,<br />

e serena dentro em si, esquece-se sempre de si própria” (I. 3.3).<br />

CAPÍTULO XI


O sábio conselheiro<br />

O Espírito Santo lhe dirá — Ler romances — Pequenos presentes — Uma<br />

profecia — Interesse pelas vocações — Dedicação paternal.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não era apenas Diretor de almas no confessionário; sua<br />

prudência, zelo e santi<strong>da</strong>de faziam dele um firme conselheiro para todos os<br />

estados e classes de pessoas. Os seus princípios seguros e sãos, manejados<br />

sabiamente segundo as necessi<strong>da</strong>des dos que pediam conselhos, nunca erravam<br />

o alvo. Havendo uma senhora em Viena perguntando ao Pe. Zacharias<br />

Werner, quem poderia ser o seu diretor e conselheiro, teve por resposta: “Não<br />

lhe posso propor para Diretor nenhum outro melhor do que <strong>Clemente</strong>; porém<br />

mais bem servi<strong>da</strong> ficaria a senhora, se conseguisse, mesmo fora <strong>da</strong> confissão,<br />

pedir-lhe os sábios conselhos”. — “Desde o dia que tive a felici<strong>da</strong>de de me<br />

aproximar dele, dizia <strong>Maria</strong> Rizy, educadora dos filhos do conde Gilleis, tenho<br />

sentido sempre alegria e consolação apesar dos meus muitos e graves padecimentos;<br />

quando se achava muito ocupado ou sem tempo de me ouvir prolonga<strong>da</strong>mente,<br />

<strong>da</strong>va-me a bênção com as palavras: ‘o que eu não lhe posso dizer<br />

agora, dir-lhe-á por mim o Espírito Santo’ e — coisa admirável — nessas ocasiões<br />

eu adivinhava sempre o que o Pe. <strong>Clemente</strong> me iria dizer; muitas vezes só<br />

a sua aproximação fazia desaparecer <strong>da</strong> minha alma to<strong>da</strong>s as angústias e preocupações”.<br />

Quando uma vez uma dessas almas pediu a S. <strong>Clemente</strong> licença<br />

para se deliciar na leitura de um romance, disse-lhe o Santo: “Se quiser tornarse<br />

mais sábia, leia; mas se quiser ficar mais piedosa, não leia, porque a Sra.<br />

não precisa disso”. A uma <strong>da</strong>s penitentes disse um dia: “A senhora precisa tirar<br />

fora o que é de mulher e mu<strong>da</strong>r-se em homem, se quiser prestar para alguma<br />

coisa”. Quando alguém querendo falar-lhe, o encontrava a rezar o breviário,<br />

sorria-se o Santo com as palavras: “Se o sr. não está com muita pressa, espere<br />

que eu rezo ain<strong>da</strong> um pouco, para não ter de começar outra vez; mas se está<br />

com pressa faço pausa já”. Especial prazer sentia em presentear alguém com<br />

santinhos, terços, me<strong>da</strong>lhas, para que os distribuísse aos outros, dizendo: “Arranje<br />

com isto bastante amigos para Nosso Senhor”; só dois santinhos ele guardou<br />

sempre consigo e não os deu a ninguém por mais que os tivessem pedido.<br />

Uma donzela que queria entrar no convento, queixou-se ao Santo, de que as<br />

condições <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> a obrigavam a ficar no mundo ain<strong>da</strong> muitos anos, e que por<br />

isso temia não poder ser recebi<strong>da</strong> mais tarde no convento por causa <strong>da</strong> avança<strong>da</strong><br />

i<strong>da</strong>de. <strong>Clemente</strong> baixou os olhos, ficou uns momentos silencioso e pensativo,<br />

dizendo depois: “Fique sossega<strong>da</strong>, <strong>da</strong>qui a pouco a senhora será aceita em<br />

um convento, mas não faça nenhum plano a respeito”. E de fato, pouco depois,<br />

66<br />

ela entrou no convento <strong>da</strong>s Irmãs Redentoristas, que naquele tempo eram ain<strong>da</strong><br />

desconheci<strong>da</strong>s na Áustria.<br />

Cui<strong>da</strong>do especial dedicava ele às vocações religiosas ou sacerdotais. Sempre<br />

muito cauteloso e extremamente reservado nesse assunto, não deixava<br />

na<strong>da</strong> sem tentar quanto se convencia de que alguém era realmente chamado<br />

por Deus para a vi<strong>da</strong> religiosa, que ele, em sua fé profun<strong>da</strong>, só olhava à luz <strong>da</strong><br />

eterni<strong>da</strong>de.<br />

A uma Religiosa <strong>da</strong> Visitação disse o Servo de Deus uma vez: “Só na hora<br />

<strong>da</strong> morte é que a senhora irá avaliar quão grande e sublime é a graça <strong>da</strong> vocação<br />

religiosa; to<strong>da</strong> a grandeza do mundo não é na<strong>da</strong> em comparação dela” —<br />

Quando se tratava de levar alguma donzela ao convento, não olhava as dificul<strong>da</strong>des<br />

por grandes que fossem. Uma filha de boa família desejava ardentemente<br />

entrar no convento <strong>da</strong>s Carmelitas em Praga, mas a oposição dos pais era<br />

formidável; como não encontrasse meios de os convencer, a pobrezinha recorreu<br />

a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> pedindo seus conselhos e auxílio. O Servo de Deus determinou<br />

a hora em que ela deveria expor novamente aos pais a resolução inabalável<br />

do seu coração. Chega<strong>da</strong> a hora, <strong>Clemente</strong> estava já à porta. Ao cair o<br />

assunto sobre o ponto delicado, batem à porta. Era <strong>Clemente</strong> que simulando<br />

ignorar o caso, perguntou, a sorrir, sobre que versava a conversa, e com tanta<br />

eloqüência, vivaci<strong>da</strong>de e calor discorreu sobre a beleza <strong>da</strong> vocação, que os<br />

pais deram de boa vontade o consentimento. Muito significativa é a notícia que<br />

Antônia Ott nos narra sobre S. <strong>Clemente</strong> a esse respeito,, quando escreveu: “Já<br />

de há muito eu sentia o mais ardente desejo de me consagrar inteiramente a<br />

Deus na vi<strong>da</strong> religiosa, mas roceira e ignorante, não sabia como realizar o meu<br />

desejo... um dia vi passar pelas ruas de Viena um sacerdote venerável, que me<br />

parecia transfigurado. Dois anos mais tarde, tive de ir novamente à Viena... entrei<br />

na Igreja de Santa Úrsula; indizível alegria apoderou-se de mim quando<br />

reconheci o padre que oficiava nas cerimônias e que levava o Santíssimo do<br />

altar-mor à uma capela lateral... Abri-lhe o coração... O Santo interessou-se por<br />

mim, fez-me instruir, aprendi a ler, escrever, contar, e até a falar francês para<br />

poder entrar na Visitação”.


CAPÍTULO XII<br />

O Santo Superior<br />

Vi<strong>da</strong> interior — Rigor na pobreza — Obediência prática — A vi<strong>da</strong> de simplici<strong>da</strong>de<br />

— Humilhações edificantes — O exemplo escrupuloso — Os defeitos<br />

dos Santos — Uma precipitação — O dueto abençoado — A chave do enigma.<br />

<strong>Clemente</strong>, homem de ação, alheio a todo o sentimento estéril, amava e<br />

promovia entre os seus a vi<strong>da</strong> interior, que para ele era a alma de to<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong><br />

religiosa. Alegrou-se vivamente quando Deus lhe mandou os dois franceses Pe.<br />

Passerat e Pe. Vannelet, que tinham propensão especial e declara<strong>da</strong> para a<br />

vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de e que a compreendiam e praticavam, servindo de modelo para<br />

os demais confrades; por esse motivo entregou ao Pe. Passerat a formação e<br />

direção dos noviços, e mais tarde, quando precisou do Pe. Passerat para um<br />

posto de maior responsabili<strong>da</strong>de ain<strong>da</strong>, confiou o noviciado ao outro amigo <strong>da</strong><br />

vi<strong>da</strong> interior, isto é, ao Pe. Vannelet.<br />

<strong>Clemente</strong> era todo olhos e cui<strong>da</strong>do para os seus caros confrades; amavaos<br />

com amor forte e esclarecido; era antes severo que benigno, não era to<strong>da</strong>via<br />

pe<strong>da</strong>nte escravo <strong>da</strong> letra que mata; quando necessário sabia a<strong>da</strong>ptar, com generosi<strong>da</strong>de,<br />

a Regra às circunstâncias. Em se tratando porém <strong>da</strong> observância<br />

regular e <strong>da</strong> manutenção <strong>da</strong> disciplina era simplesmente inexorável.<br />

Em ponto de pobreza religiosa não admitia concessão alguma nem nas<br />

menores coisas. Quando se tratou em Nápoles de introduzir na <strong>Congregação</strong> o<br />

pecúlio, para a maior comodi<strong>da</strong>de dos súditos, <strong>Clemente</strong> protestou com energia.<br />

Aconteceu uma vez que um padre, por descuido, aceitou uma fita de se<strong>da</strong><br />

e a pregou em seu manto. Era uma falta contra a Regra, que proíbe aos padres<br />

o uso <strong>da</strong> se<strong>da</strong>, a não ser nas igrejas; essa falta custou-lhe caro. Tendo o Pe.<br />

<strong>Clemente</strong> de fazer uma visita a uma família muito conheci<strong>da</strong>, levou consigo o<br />

referido sacerdote; no meio <strong>da</strong> palestra perguntou aos presentes, se queriam<br />

conhecer um redentorista não observante <strong>da</strong> Regra, e apontou para o laço de<br />

se<strong>da</strong>, preso no manto do Pe. Martinho Stark, e em segui<strong>da</strong> despediu-o secamente<br />

dizendo: “Pode ir-se embora”. A família edificou-se com a modéstia e a<br />

humil<strong>da</strong>de do padre, que com sereni<strong>da</strong>de se retirou sem nenhum sinal de confusão<br />

ou desaprovação.<br />

Do mesmo rigor usava <strong>Clemente</strong> em se tratando <strong>da</strong> obediência. Estava ele<br />

uma vez em Babenhausen, cujo Reitor era o Pe. Passerat, homem de extraordinária<br />

virtude e de observância regular exemplar. Aconteceu demorar-se o Reitor<br />

um pouco mais que de costume nas confissões e retar<strong>da</strong>r sua chega<strong>da</strong> ao<br />

refeitório. <strong>Clemente</strong> aproveitou a ocasião para humilhá-lo; passou-lhe uma formidável<br />

descompostura e por castigo fê-lo tomar a refeição sentado no chão.<br />

67<br />

Procedendo assim queria <strong>Clemente</strong> <strong>da</strong>r aos padres e irmãos <strong>da</strong>quela residência<br />

uma ocasião de conhecerem a grande virtude de seu Reitor e se edificarem<br />

com a heróica humil<strong>da</strong>de e vi<strong>da</strong> interior dele.<br />

A simplici<strong>da</strong>de devia ser a virtude predileta dos seus padres, e por isso ele<br />

na<strong>da</strong> se poupava para vê-la pratica<strong>da</strong> por todos os seus filhos espirituais, e<br />

conseguiu-o admiravelmente, de sorte que nas maiores dificul<strong>da</strong>des e privações<br />

<strong>da</strong>s novas fun<strong>da</strong>ções todos se conservavam satisfeitos e contentes. O<br />

sábio Pe. Vannelet não julgava indigno <strong>da</strong> sua pessoa rachar lenha, varrer o<br />

quarto, adornar a igreja, ajuntar os materiais para a nova igreja etc. Queria que<br />

os Redentoristas aprendessem a vencer-se constantemente e desprezar as<br />

vai<strong>da</strong>des do mundo: eis porque, às vezes humilhava seus padres contra o amor<br />

próprio. O Pe. Martinho possuía um exterior atraente e manifestava certa tendência<br />

para a elegância e belas maneiras na socie<strong>da</strong>de; com o fim de abaterlhe<br />

o amor próprio <strong>Clemente</strong>, estando em Viena, mandou-o buscar em um grande<br />

jarro água fresca dum poço distante fora <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, e num vaso enorme<br />

comprar meio litro de leite. Ninguém estranhava tal procedimento porque <strong>Clemente</strong><br />

era o primeiro a proceder dessa forma e a <strong>da</strong>r o bom exemplo. A esse<br />

rigor unia sempre o sorriso <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de nos lábios. Quantas vezes sentava-se à<br />

mesa sem provar coisa alguma! jejuava com gosto enquanto os outros se alimentavam<br />

abun<strong>da</strong>ntemente. Não admitia queixas quanto ao preparo <strong>da</strong>s comi<strong>da</strong>s<br />

tendo isso como coisa indigna dos discípulos de um Deus Crucificado. Percebendo,<br />

às vezes, que o cozinheiro, pouco entendia do ofício, o próprio Vigário<br />

geral <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> abalançava-se até a cozinha e preparava as refeições<br />

para os súditos. Quem com ele viajava, tinha de ir a pé; o exemplo de <strong>Clemente</strong><br />

porém adoçava o cansaço <strong>da</strong> viagem.<br />

<strong>Clemente</strong> suportava com calma e tranqüili<strong>da</strong>de as maiores ofensas e os<br />

desacatos feitos à sua pessoa, mas era-lhe extremamente difícil conservar a<br />

calma, quando um Religioso que é de um modo especial consagrado a Deus,<br />

maxime um súdito seu, cometia alguma falta. Nem sequer os maiores Santos<br />

são inteiramente livres de certas imperfeições, que Deus permite para os conservar<br />

na humil<strong>da</strong>de. Sendo S. <strong>Clemente</strong> de um temperamento violento e possuindo<br />

uma vontade de aço, por vezes deixava-se levar um tanto por alguns<br />

momentos de santa ira e indignação por causa de Deus. <strong>Clemente</strong> conhecia<br />

esses defeitos; logo depois do primeiro ímpeto deixava seguir o arrependimento,<br />

levantava então os olhos ao céu e batia no peito dizendo: “Homo nequam<br />

sum, sou um servo indigno”.<br />

Com tal temperamento do Superior, os súditos tinham, às vezes, de sofrer<br />

um pouco. Quem, porém, mais lutava e padecia com isso era o próprio Servo de<br />

Deus, não só um ano ou dois, mas sempre até o fim <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, como prova o<br />

fato seguinte que ele mesmo contou a um amigo com todos os pormenores. Um<br />

belo dia os dois padres Martinho e Sabelli causaram-lhe um desgosto maior do<br />

que o Servo de Deus esperava receber. Indignado disse-lhes <strong>Clemente</strong> que,<br />

nesse caso, fizessem o que bem lhes parecesse, que não ficaria mais com eles,<br />

mas iria para a América, e sem mais esperar, aprontou a mala em sinal de<br />

desaprovação, e retirou-se.<br />

Os dois padres ficaram perplexos e confusos sem saberem o que fazer ou<br />

pensar. <strong>Clemente</strong> dirigiu-se à Igreja de N. Sra. Auxiliadora que costumava visi-


tar to<strong>da</strong>s as semanas. Enquanto, prostrado diante do altar, fazia suas preces à<br />

Mãe de Deus, compreendeu o mal <strong>da</strong> sua precipitação, arrependeu-se; quisera<br />

voltar, mas a sua posição de Superior não lhe permitia rebaixar-se diante de<br />

seus súditos. <strong>Clemente</strong> esperou que os padres arrependidos o fossem procurar.<br />

Seria essa a melhor solução; mas os dois padres nem se lembravam disso.<br />

Com o coração pesado e pesaroso levantou-se e devagar e pensativo dirigiu-se<br />

ao norte <strong>da</strong> Áustria rezando sempre. Já estava longe quando ouviu um rumor<br />

como de alguém que se aproximava: eram os dois padres que arrependidos lhe<br />

suplicavam que voltasse para casa. Nunca acedera <strong>Clemente</strong> de tão boa vontade<br />

a pedido algum como dessa vez. De caminho para Viena disse <strong>Clemente</strong>:<br />

“Infelizmente eu sou assim; dou graças a Deus que tenho esse defeito porque<br />

do contrário eu poderia ser tentado a beijar-me as próprias mãos por pura vai<strong>da</strong>de<br />

e consideração para comigo mesmo”.<br />

Em geral, porém, <strong>Clemente</strong> combatia-se e procurava tratar a todos com a<br />

maior mansidão possível a exemplo do divino Mestre. Um rapaz de seus 19<br />

anos, de muita boa vontade, mas de uma susceptibili<strong>da</strong>de única, desejava ardentemente<br />

tornar-se redentorista; pediu a <strong>Clemente</strong> que o recebesse e o Santo<br />

colocou-o entre os seus discípulos. Aconteceu que havendo o moço cometido<br />

uma falta qualquer, <strong>Clemente</strong> repreendeu-o como de costume não com luvas<br />

de pelica mas com termos claros e concisos. O jovem indignou-se interiormente,<br />

fechou carranca e silencioso retirou-se para seu quarto, onde se pôs a<br />

meditar sobre a injustiça <strong>da</strong> repreensão recebi<strong>da</strong>. Não demorou muito bateram<br />

à porta; era <strong>Clemente</strong> que ia ter com o moço; não tinha já a severi<strong>da</strong>de no olhar<br />

e no rosto, mas o sorriso nos lábios e um papel na mão; chegou-se e levantando<br />

um pouco a fronte ao jovem perguntou-lhe em tom suave: “Você conhece este<br />

cântico? vamos cantá-lo juntos” e em segui<strong>da</strong> lançou-lhe um olhar de ternura<br />

como se dissesse: “Não seja mau, eu não quis magoá-lo” <strong>Clemente</strong> pôs-se a<br />

cantar e o jovem acompanhou-o: era um dueto abençoado. No fim do cântico o<br />

moço estava outro, alegre e satisfeito.<br />

<strong>Clemente</strong> era não só respeitado mas também amado de seus súditos; alguns<br />

até quase se tornaram fanatizados por ele devido às boas quali<strong>da</strong>des do<br />

seu coração, como o provam as cartas dos súditos ausentes, que manifestam<br />

as sau<strong>da</strong>des e o desejo ardente de tornar a ver o pai e abraçá-lo ternamente. —<br />

<strong>Clemente</strong> conseguiu conservar o bom espírito entre os seus, conduzindo-os<br />

com brandura e energia à própria fonte: Jesus Sacramentado. Educou-os para<br />

a oração que dá força e coragem; na meditação de manhã, era ele quem fazia<br />

muitas vezes a consideração em voz alta. “Na meditação <strong>da</strong> manhã, escreve<br />

Czech, <strong>Clemente</strong> nos inspirava seu espírito, o seu amor a Jesus e <strong>Maria</strong>, a sua<br />

dedicação à <strong>Congregação</strong> e o seu zelo para to<strong>da</strong>s as virtudes”. É essa a chave<br />

de todo o segredo.<br />

CAPÍTULO XIII<br />

68<br />

O amigo <strong>da</strong>s crianças<br />

Porque amava a infância — O enxame de crianças — Honrosa excepção<br />

— Carlito obediente — A criança judia batiza<strong>da</strong> — O mais belo vestido — As<br />

alunas <strong>da</strong>s Ursulinas — Lição a um professor — O Colégio dos nobres — Promessas<br />

do arquiduque.<br />

Sendo certo que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, em seu zelo apostólico, não se descuidou<br />

de nenhuma classe social procurando levá-la a Jesus, se trabalhou incansavelmente<br />

pela conversão dos pecadores, parece ter-se distinguido ain<strong>da</strong> mais no<br />

amor às crianças. E quem o diria! ele, o homem de têmpera de aço, de força<br />

máscula, de planos gigantescos, de relações íntimas com as ro<strong>da</strong>s mais aristocratas<br />

de Viena, sentia ver<strong>da</strong>deiro prazer em estar com as criancinhas, em<br />

passar com elas bons momentos de sua labuta apostólica. É que o lema <strong>da</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong> era a imitação completa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> do divino Mestre: e Jesus afagava as<br />

crianças e com elas se entretinha. Além disso <strong>Clemente</strong> subordinava também<br />

essa ativi<strong>da</strong>de ao plano grandioso, que se propusera de restaurar a socie<strong>da</strong>de<br />

pelos princípios sãos do Evangelho. Como for a infância e em geral a moci<strong>da</strong>de,<br />

também será a vi<strong>da</strong> futura; <strong>da</strong>s disposições e <strong>da</strong> educação <strong>da</strong>s crianças dependem<br />

os destinos <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de; e por isso <strong>Clemente</strong> devia começar pela infância.<br />

O Servo de Deus ligava à educação uma importância capital, porque, pensava<br />

ele, se acaso as más companhias vierem mais tarde, conjuntamente com<br />

as paixões, arrastar os pobres corações para o abismo, estes, nos momentos<br />

<strong>da</strong> reflexão e <strong>da</strong> desilusão, facilmente se recor<strong>da</strong>rão do que ouviram ou aprenderam<br />

na infância, e espontaneamente se lançarão nas mãos do Redentor<br />

mu<strong>da</strong>ndo de vi<strong>da</strong>.<br />

Como o Servo de Deus, em todos os seus trabalhos, não procurava senão<br />

o bem <strong>da</strong>s almas e a glória de Deus, gostava dos afazeres, que facilmente<br />

permanecem encobertos aos olhos do mundo; é também por mais essa razão<br />

que se dedicava de um modo todo especial à educação <strong>da</strong> infância. No alto do<br />

púlpito um dos assuntos mais freqüentemente tratados, explicados e inculcados<br />

era a educação dos filhos. “Pais e mães, disse ele uma vez, não vos esqueçais<br />

que é de vós que, em grande parte, depende a bênção ou a maldição <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de<br />

humana, porque a vós é que está confia<strong>da</strong> a educação <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de;<br />

formareis uma boa geração se souberdes reprimir a rebeldia de vossos filhos; o<br />

que se semeia no coração <strong>da</strong> criança produzirá fruto na velhice; convencei-vos<br />

de que, se fizerdes o que está em vós, Deus <strong>da</strong>rá o incremento e a prosperi<strong>da</strong>de”.<br />

O leitor ain<strong>da</strong> se recor<strong>da</strong>rá do quanto S. <strong>Clemente</strong> trabalhou e fez para as<br />

crianças, mormente para os órfãos de Varsóvia. Ora esse mesmo zelo desen-


volveu-o S. <strong>Clemente</strong> em Viena. Ele mesmo, em pessoa, reunia as crianças <strong>da</strong><br />

grande Ci<strong>da</strong>de, ensinava-lhes as ver<strong>da</strong>des principais <strong>da</strong> religião, instruía-as para<br />

a confissão e a santa comunhão. O Servo de Deus tinha sorte nessas suas<br />

pesquisas para Deus, via-se constantemente rodeado de crianças, que sabia<br />

agra<strong>da</strong>r e atrair, segredo esse que nem todos conhecem. A criança gosta de<br />

agrado e carinho, contanto que proce<strong>da</strong>m de um coração bondoso e sincero, e<br />

o Servo de Deus não regateava os presentes aos pequerruchos: santinhos,<br />

me<strong>da</strong>lhas, frutas e doces eram distribuídos com profusão entre a criança<strong>da</strong>. A<br />

Irmã Thadéa descrevendo o Santo nesse particular conta-nos que “quando o<br />

Servo de Deus an<strong>da</strong>va pelas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, os meninos corriam para ele,<br />

beijavam-lhe as mãos e o rodeavam como um enxame de abelhas; e como<br />

<strong>Clemente</strong> se entretivesse muito alegre e familiarmente com eles, permaneciam<br />

em companhia do Santo um bom pe<strong>da</strong>ço de tempo e, não raro o acompanhavam<br />

até a residência, onde o Servo de Deus os instruía e os presenteava com<br />

santinhos, doces, frutas etc”.<br />

Quem toma em consideração o grande plano que S. <strong>Clemente</strong> se esboçara<br />

para a restauração religiosa <strong>da</strong> Europa, compreenderá facilmente porque é que<br />

o Santo se dedicara à educação <strong>da</strong> infância também nos colégios. É sabido que<br />

os Redentoristas se dedicam, por lei, exclusivamente às missões, aos retiros<br />

espirituais e a outras ocupações congêneres; e a fim que eles possam mais<br />

desimpedi<strong>da</strong>mente dedicar-se à vi<strong>da</strong> apostólica, S. Afonso proibiu-lhes ter a<br />

direção de colégios, de seminários etc. Ora <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não podia pregar<br />

missões, por a <strong>Congregação</strong> não ser ain<strong>da</strong> reconheci<strong>da</strong> na Áustria e nos outros<br />

países do Norte, e por causa dos tempos turbulentos de então, que não lh’o<br />

permitiam. Com a licença expressa dos seus Superiores <strong>da</strong> Itália, que lh’a concederam<br />

como por exceção, foi-lhe permitido abrir colégios, cui<strong>da</strong>r de orfanatos,<br />

instruir as crianças nas escolas etc. Nesse ponto o zelo de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

era inexcedível.<br />

As crianças, sentindo o afeto carinhoso do Servo de Deus, amavam-no<br />

com sinceri<strong>da</strong>de deixando-se influenciar grandemente pela palavra de <strong>Clemente</strong>,<br />

que aceitavam como se fora a palavra do próprio Deus. Ao voltar, uma vez,<br />

para casa numa sexta-feira, <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> teve, como sempre, a companhia de<br />

diversas crianças entre as quais se achava um rapazinho vistoso e de bons<br />

modos, por nome Carlos, filho do Conselheiro de Sua Majestade o imperador<br />

Francisco I. Como era de manhã, o Servo de Deus perguntou ao pequeno, que<br />

é que sua mãe lhe iria preparar para o almoço, ao que o menino ingenuamente<br />

respondeu que iria comer carne etc. como de costume. O Santo não perdeu<br />

vasa de ensinar o pequeno e disse-lhe compassa<strong>da</strong>mente: “Carlito, temos obrigação<br />

de executar todos os preceitos <strong>da</strong> Santa Igreja, e por isso não podemos<br />

comer carne nas sextas-feiras; temos de fazer esse pequeno sacrifício por amor<br />

de Nosso Senhor que morreu por nós em uma sexta-feira” 8 . Em segui<strong>da</strong> pôs-se<br />

a falar, com coração, na Paixão e Morte de Jesus descrevendo-a em vivas cores<br />

de modo acessível às crianças, e no direito que a Igreja tem de nos <strong>da</strong>r suas<br />

leis etc. Por fim o rapazinho depositou um ósculo na mão do venerando sacerdote,<br />

que conquistara um trono em seu pequeno coração, e foi-se para casa. —<br />

A hora do almoço percebeu o pequeno que a cozinheiro preparara carne e<br />

lembrou-se <strong>da</strong>s palavras de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>; com to<strong>da</strong> a modéstia e respeito<br />

69<br />

aproxima-se do pai e diz-lhe: “Papai, hoje eu não como carne”. Supondo que o<br />

pequeno estivesse doente, perguntou-lhe a causa, ao que o menino respondeu:<br />

“É por ser sexta-feira; a Santa Igreja proíbe comer carne no dia de hoje em<br />

memória <strong>da</strong> sagra<strong>da</strong> Paixão de Nosso Senhor”. O pai, despeitado pela lição<br />

que o próprio filho lhe passava, cerrou os sobr’olhos, como que a mostrar superiori<strong>da</strong>de<br />

e a abafar os remorsos <strong>da</strong> consciência, e perguntou: “Quem foi que t’o<br />

disse?” — “O Pe. <strong>Clemente</strong>”. — O nobre senhor indignou-se, enraiveceu-se,<br />

exasperou-se afirmando que nenhum padre man<strong>da</strong>va em sua casa, que não<br />

era o padre que comprara a carne e que não tinha que determinar o que devia<br />

ser preparado na cozinha; em segui<strong>da</strong> com um tom de espantar, dirigindo-se ao<br />

menino, intimou-o: “Põe-te já a comer!” O pequeno pôs as mãozinhas e, os<br />

olhos a derramar lágrimas, pediu ao pai que por amor de Deus o dispensasse<br />

<strong>da</strong>quela ordem. Mais enfurecido ain<strong>da</strong> com a resistência do pequeno, com voz<br />

imperiosa e sobr’olhos carregados diz ao pequeno: “Retira-te <strong>da</strong> minha vista;<br />

hoje não comerás mais coisa alguma”. O menino levanta-se e, os olhos baixos,<br />

arrasados de lágrimas, vai ter com a mãe e enxuga as lágrimas no avental dela.<br />

Enterneci<strong>da</strong> pergunta esta ao filho o que se passara. Ao tomar conhecimento<br />

do caso, consola-o dizendo: “Não chores, meu filho; vou preparar-te uma comi<strong>da</strong><br />

de farinha”. Carlito, porém, sacudindo bran<strong>da</strong>mente a cabecinha inocente<br />

diz: “Não, mamãe, papai disse que eu não comesse na<strong>da</strong> hoje, devo e quero<br />

obedecer-lhe; o Pe. <strong>Clemente</strong> nos disse tantas vezes ‘meninos, obedecei a vossos<br />

pais’; mamãe, não tenho medo, eu agüento passar o dia sem comer”. A<br />

mãe, tomando as dores do filho tão obediente e amoroso, dirige-se ao pai, e<br />

depois de eloqüente filípica pergunta-lhe na certeza do triunfo: “Então queres<br />

que nosso filho morra de fome? carne ele não come, e outro alimento não quer<br />

tomar porque tu lh’o proibiste; isso estão é coisa que se faça?” Ao perceber a<br />

obediência do filho o coração paterno enterneceu-se; o pai chamou o pequeno,<br />

louvou-o dizendo: “Pois bem, meu filho, às sextas-feiras não comerás carne de<br />

hoje em diante, e agora come o que tua mãe te vai <strong>da</strong>r”. O conselheiro do<br />

imperador encheu-se de admiração e respeito para com o Pe. <strong>Clemente</strong> que<br />

soube infiltrar no ânimo <strong>da</strong> criança tanto respeito e obediência aos pais, e em<br />

própria pessoa levou o pequeno a Santa Úrsula para que fosse o coroinha do<br />

Pe. <strong>Clemente</strong>.<br />

O que atraía <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> para as crianças, não era nenhum motivo natural<br />

de sentimentalismo doentio, mas unicamente a inocência que via estampa<strong>da</strong><br />

no rosto <strong>da</strong> criança e que queria conservar e adornar. Nos primeiros anos <strong>da</strong><br />

esta<strong>da</strong> de <strong>Clemente</strong> em Viena deu-se lá um caso edificante, mas singular. Uma<br />

família judia tinha uma emprega<strong>da</strong> católica de grande pie<strong>da</strong>de, mas também de<br />

inconcebível ingenui<strong>da</strong>de. Na família havia uma menina em extremo galante de<br />

seus dois anos de i<strong>da</strong>de. A emprega<strong>da</strong>, amiga íntima <strong>da</strong> criança, contristou-se<br />

com o pensamento de que a menina, embora tão boa e tão formosa, não poderia<br />

nunca entrar no céu por não ser batiza<strong>da</strong>; e esse pensamento a contrariava<br />

e incomo<strong>da</strong>va dia e noite. Por fim julgou encontrar uma solução, que lhe pareceu<br />

uma inspiração do céu. quando criança aprendera nas aulas de catecismo,<br />

que em caso de necessi<strong>da</strong>de qualquer pessoa pode e deve batizar, e isso sem<br />

haver distinção de homem ou mulher, cristão ou pagão, sem padrinhos ou<br />

velas, sem cerimônias e, mesmo, sem ser <strong>da</strong> Igreja. Raciocinou, como pôde, e


convenceu-se de que o caso <strong>da</strong> criança judia era um caso de extrema necessi<strong>da</strong>de,<br />

porque do contrário, a criança nunca seria batiza<strong>da</strong> e por isso nunca veria<br />

a Deus no céu por to<strong>da</strong> a eterni<strong>da</strong>de. Fechando-se no quarto com a criança,<br />

tomou água limpa e despejando-a sobre a cabeça <strong>da</strong> menina pronunciou ao<br />

mesmo tempo, as palavras: “Eu te batizo em nome do Padre e do Filho e do<br />

Espírito Santo”. Idéia tão geniosa ela nunca a tivera em sua vi<strong>da</strong>, guardou segredo<br />

inviolável e o coração a transbor<strong>da</strong>r de contentamento pela ação heróica<br />

e generosa que acabava de praticar, foi triunfante participar tudo a uma <strong>da</strong>s<br />

Irmãs Ursulinas, que não sabendo o que dizer a respeito, mandou-lhe expor<br />

todo o caso ao Servo de Deus, o que ela fez sem o menor acanhamento, esperando<br />

receber do Santo os mais rasgados elogios. Ao ouvir o caso, porém,<br />

<strong>Clemente</strong> abriu os olhos, mostrando admiração, que não era na<strong>da</strong> sinal de aprovação.<br />

A criança estava batiza<strong>da</strong>, era pois necessário registrar-lhe o nome no<br />

livro dos batizados, participar o caso à autori<strong>da</strong>de, <strong>da</strong>r-lhe uma educação cristã;<br />

ora tudo isso comprometia a pobre emprega<strong>da</strong> que tudo fizera com tão boa<br />

intenção. Que fazer em semelhantes conjunturas? <strong>Clemente</strong> teve uma idéia<br />

singular. Não querendo que a criança batiza<strong>da</strong> fosse educa<strong>da</strong> no ju<strong>da</strong>ísmo e<br />

vivesse como os hebreus, disse à emprega<strong>da</strong>: “Recomendemos o caso a Nosso<br />

Senhor; talvez queira Deus levar a criancinha para o céu. “Em segui<strong>da</strong> pôsse<br />

a rezar e mandou que as Ursulinas também rezassem nesse sentido. E de<br />

fato, poucas semanas depois veio a pequena a falecer e Deus levou-a ao paraíso.<br />

Esse caso encerra uma bela instrução e ao mesmo tempo uma grande<br />

consolação para os pais. A alma vale infinitamente mais do que o corpo, a vi<strong>da</strong><br />

no céu é imensamente preferível à vi<strong>da</strong> terrena cheia de misérias e amarguras.<br />

Quando Deus chama a si uma criança, na flor dos anos, Ele o faz por misericórdia<br />

prevendo talvez a perdição futura <strong>da</strong> criancinha. É pois justo, que os pais se<br />

conformem com as disposições divinas, e longe de se rebelarem contra os juízos<br />

de Deus, se curvem reconhecidos diante Dele, aceitando de suas mãos benignas<br />

essa provação. É escusado dizer que somente por causa <strong>da</strong> salvação <strong>da</strong><br />

alma <strong>da</strong> pequena criança é que S. <strong>Clemente</strong> pedira a Deus, se dignasse tirá-la<br />

deste mundo. Só assim é que nos compreendemos a palavra do Espírito Santo:<br />

“Foi arrebatado para que a malícia não lhe mu<strong>da</strong>sse o entendimento, ou para<br />

que não seduzisse sua alma o aparente” (Sb 4,11).<br />

Prazer especial sentia <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, quando podia preparar alguma criança<br />

para fazer com fruto sua confissão e receber pela primeira vez a santa<br />

comunhão. Entre essas crianças havia uma menina galante chama<strong>da</strong> Carolina<br />

Zichy, filha de uma rica e nobre condessa. Essa menina esteve sob a sábia<br />

direção de S. <strong>Clemente</strong> até a morte dele e sentiu sempre um ardente desejo de<br />

abandonar o mundo e voar para um convento, o que porém não conseguiu, por<br />

ter de tratar de uma tia que dela não podia prescindir; quando esta porém veio<br />

a falecer, Carolina, embora avança<strong>da</strong> em anos, entrou para o convento <strong>da</strong>s<br />

Visitandinas em Bruxelas. Quando menina era ela de uma ingenui<strong>da</strong>de encantadora.<br />

Uma vez numa <strong>da</strong>s aulas de catecismo, S. <strong>Clemente</strong> falou sobre o céu,<br />

mostrou a beleza empolgante, arrebatadora dos Anjos e Santos, animando as<br />

crianças com as palavras: “To<strong>da</strong>s as crianças boas para lá irão, pois que lá<br />

mora Jesus com sua Mãe e os Santos e os Anjos; a beleza do céu é sempre<br />

nova, lá não há doenças nem morte, nem fadigas nem trabalhos, mas só alegria<br />

70<br />

e regozijo em N. Senhor”. A menina era to<strong>da</strong> olhos e ouvidos às palavras fluentes<br />

e interessantes de <strong>Clemente</strong>; de repente porém uma como nuvem sombria<br />

passou-lhe pela fronte. A pequena lembrou-se do seu vestidinho e temendo<br />

não o receber novamente no céu, perguntou interessa<strong>da</strong> ao Santo: “Lá no céu a<br />

gente também tem um vestidinho bonito?” O catequista sorriu-se <strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> interlocutora dizendo-lhe: “Ó tolinha, o mais belo vestido que pudesses<br />

ter neste mundo, não passaria de uma hediondez em comparação <strong>da</strong> glória que<br />

tu receberás um dia no céu”. Esse belo vestido a que se referiu o Santo é a<br />

glória celeste teci<strong>da</strong> dos raios puríssimos do céu, reduzindo às sete cores do<br />

arco-íris, mais fulgurante que o esplendor do sol no auge do seu brilho, é a<br />

graça santificante que nos tornará semelhantes aos Anjos de Deus.<br />

Considerável era a influência exerci<strong>da</strong> pelo Santo sobre as alunas <strong>da</strong>s<br />

Ursulinas, embora não fosse ele o seu professor. As boas irmãs reconhecendo<br />

a fundo a santi<strong>da</strong>de do Diretor espiritual não deixavam facilmente passar uma<br />

ocasião sem levar a S. <strong>Clemente</strong> as numerosas alunas a fim que as abençoasse<br />

e assim a bênção do céu pairasse sobre o instituto. O Santo do seu lado,<br />

grande amigo <strong>da</strong>s crianças, era todo desvelo e solicitude para com as meninas,<br />

que o veneravam e lhe obedeciam como a um pai e protetor. Entre outras havia<br />

uma natural <strong>da</strong> Silésia prussiana, que ouvia sempre com a maior atenção e<br />

interesse os sermões do Servo de Deus deixando seu coração receber em<br />

cheio os ensinamentos tão prudentes e salutares do Santo, os quais a haviam<br />

de acompanhar a vi<strong>da</strong> inteira; não poucas vezes dirigia-se ao Santo para lhe<br />

expor suas dúvi<strong>da</strong>s e receber os seus conselhos e a sua bênção. Terminado o<br />

curso colegial, a pequena teve de voltar para casa; o pai foi buscá-la, mas ao<br />

chegar a hora <strong>da</strong> despedi<strong>da</strong>, a menina pôs-se a chorar, desatou-se em prantos<br />

ao pensamento <strong>da</strong> separação <strong>da</strong>s boas irmãs e <strong>da</strong>s companheiras do colégio, e<br />

mais ain<strong>da</strong>, do seu pai espiritual. De na<strong>da</strong> porém valeram suas lágrimas, foi<br />

forçoso partir; ao aproximar-se do Santo a quem queria agradecer os bons conselhos<br />

e cuja bênção desejava receber pela última vez, não pôde proferir palavra;<br />

soluçando de dor ajoelhou-se aos pés de <strong>Clemente</strong>, que colocando a mão<br />

sobre a fronte <strong>da</strong> menina, levantou os olhos ao céu, como se quisesse arrancar<br />

as bênçãos de Deus para a sua dirigi<strong>da</strong>, e disse: “Minha filha, guar<strong>da</strong> profun<strong>da</strong>mente<br />

em teu coração os ensinamentos recebidos nesta casa; serás sempre<br />

feliz e chegarás a uma i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong>”. Essa bênção teve efeito duradouro e<br />

as palavras de <strong>Clemente</strong> foram uma profecia que se realizou à risca. A moça<br />

casou-se com o barão de Pongrácz e, sessenta anos depois desse acontecimento<br />

ela ain<strong>da</strong> contava, com gratidão, os benefícios recebidos de seu santo<br />

Diretor. Mais tarde ela deixou tudo escrito afirmando que a devoção a S. <strong>Clemente</strong><br />

se tornara o patrimônio <strong>da</strong> família, que nos transes difíceis sempre recorria<br />

a sua valiosa proteção.<br />

A narração seguinte é mais uma prova do seu zelo pela educação religiosa<br />

<strong>da</strong> infância. “Uma vez, escreve a Irmã Thadéa, encontrou S. <strong>Clemente</strong> um rapaz<br />

completamente abandonado; a fome transparecia de seus olhos fundos e de<br />

suas faces encova<strong>da</strong>s, a pobreza mostrava-se nos farrapos e trapos miseráveis<br />

que o cobriam, o descuido via-se no rosto imundo do pobrezinho; isso tudo<br />

<strong>da</strong>va a entender que o menino não tinha nem podia ter uma educação decente.<br />

Depois de lhe matar a fome, foi conversando com ele pelas ruas de Viena,


sobre catecismo e religião, em que o rapaz era tão leigo como o sapateiro em<br />

jurisprudência. Por fim chegaram ao prédio escolar; <strong>Clemente</strong> mandou chamar<br />

o Diretor do estabelecimento, apresentou-lhe o menino rogando-lhe que o instruísse,<br />

que a gratificação correria por conta do apresentador. O Diretor era um<br />

dos espíritos fortes e independentes, que julgavam ser a religião boa só para os<br />

velhos, que já tem um pé na sepultura, mas não para gente nova que quer<br />

gozar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, e muito menos para homens que se sacrificam pelo bem-estar<br />

<strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, e que tem muita outra coisa mais importante a fazer. Enquanto S.<br />

<strong>Clemente</strong> lhe falava, com todo interesse, sobre a necessi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> educação e<br />

instrução do menino, começaram a ecoar pela ci<strong>da</strong>de os primeiros sons melodiosos<br />

e harmoniosos do sino de Santa Úrsula; momentos depois os outros sinos<br />

<strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, com seus afinados acordes, produziam uma música admirável, que<br />

se fazia ouvir até os fundos dos arrabaldes. O Diretor que ignorava a significação<br />

<strong>da</strong>quele concerto harmonioso, julgou-se autorizado a fazer um gracejo de<br />

mau gosto a S. <strong>Clemente</strong> dizendo: “Escute, estão tocando para a bóia”. A essa<br />

palavra o Santo mudou de cor, tristeza e compaixão oprimiram-lhe o coração:<br />

era um insulto a sua Mãe Santíssima e a Jesus seu divino Filho. “O que? — o sr.<br />

é professor e deve ensinar religião às crianças e nem sabe o que significa esse<br />

toque de sinos?” Depois de lhe <strong>da</strong>r uma explicação sobre o Angelus que se toca<br />

três vezes ao dia, a saber, e manhã, ao meio-dia, e à tarde em recor<strong>da</strong>ção do<br />

mistério <strong>da</strong> encarnação, e depois de lhe mostrar a grande conveniência desse<br />

sinal, a qual resulta <strong>da</strong> obrigação que temos de sau<strong>da</strong>r a Virgem Santíssima em<br />

reconhecimento dos inumeráveis benefícios recebidos, instruiu o professor com<br />

palavras delica<strong>da</strong>s, fez-lhe ver o quanto estava longe <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira pe<strong>da</strong>gogia,<br />

e o professor, envergonhado <strong>da</strong>s suas palavras descabi<strong>da</strong>s, balbuciou umas<br />

frases de desculpa e retirou-se; os ensinamentos do Santo, porém, gravaramse-lhe<br />

tão profun<strong>da</strong>mente na alma, que arrependido não pôde continuar no<br />

mundo, abandonou-o e internou-se num convento para servir a Deus e a Ss.<br />

Virgem com mais fideli<strong>da</strong>de e amor.<br />

A idéia <strong>da</strong> educação <strong>da</strong> infância era sempre uma <strong>da</strong>s suas mais solícitas<br />

preocupações. Olhando para a grande ci<strong>da</strong>de de Viena deplorava o abandono<br />

em que se achavam milhares e milhares de crianças, não só nas classes pobres,<br />

mas até entre os nobres e ricos, de sorte que só com temor encarava o<br />

futuro religioso <strong>da</strong> sua Pátria. Já em 1813 acalentara a idéia de fun<strong>da</strong>r um colégio<br />

para os meninos <strong>da</strong>s melhores famílias, e não o podendo fazer pessoalmente,<br />

insistiu com o célebre A<strong>da</strong>m Müller a tomar em mãos e a levar avante tão<br />

importante empresa. Esse literato conselheiro <strong>da</strong> corte, aceitou gostosamente<br />

a idéia e pôs-se imediatamente a realizar o nobre e grandioso projeto. Para<br />

mais o animar na filantropia empresa <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> prometeu-lhe três padres<br />

Redentoristas para professores. O princípio foi auspicioso, alentado pela mais<br />

fagueira esperança; quando porém recorreram ao governo pedindo a aprovação,<br />

encontraram as maiores dificul<strong>da</strong>des; os funcionários públicos temiam que<br />

os alunos desse Colégio, orientados por <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, só aprendessem a rezar<br />

o terço e cantar la<strong>da</strong>inhas, e tivessem maior amor a Roma do que a Áustria.<br />

O resultado foi que o colégio teve a sorte <strong>da</strong>s demais belas empresas que<br />

fracassam pela má vontade de certos indivíduos, dos quais afinal tudo depende.<br />

O Servo de Deus porém não era desses que desanimam com qualquer<br />

71<br />

fracasso. O demônio havia triunfado, e <strong>Clemente</strong> aguar<strong>da</strong>va oportuni<strong>da</strong>de melhor<br />

em que Deus haveria de vencer e de manifestar-se indubitavelmente. Alguns<br />

anos mais tarde, quando o ruído dos canhões e <strong>da</strong>s guerras já tinham<br />

acabado de soar ao longe, <strong>Clemente</strong> bateu à porta de um senhor nobre de<br />

Viena, pedindo-lhe se interessa-se pela idéia e abrisse um colégio para as classes<br />

nobres <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de vienense, pois que os pobres já possuíam colégios e<br />

outros estabelecimentos desse gênero. Naturalmente o Colégio a fun<strong>da</strong>r-se<br />

deveria basear-se sobretudo na instrução religiosa, sem a qual to<strong>da</strong> formação<br />

intelectual e moral é necessariamente falha e quase sempre, prejudicial. Esse<br />

senhor era Afonso Klinkowström que descreve a idéia do modo seguinte: “Tratase<br />

de difundir a consciência católica há pouco desperta<strong>da</strong> em Viena, e limita<strong>da</strong><br />

então a um pequeno número de homens escolhido, bem como de conseguir por<br />

meio <strong>da</strong> educação cristã uma nova geração não eiva<strong>da</strong> do indiferentismo religioso<br />

do tempo, porquanto as ordens religiosas, incumbi<strong>da</strong>s dessa missão, se<br />

haviam desviado desse objetivo desde o período <strong>da</strong> reforma josefina”. Havia<br />

tudo, menos o dinheiro para tão grandiosa empresa. <strong>Clemente</strong>, porém, confiado<br />

na Providência, que não os poderia abandonar, saiu com o futuro Diretor aos<br />

arrabaldes de Viena, e ao avistar um prédio que se prestava, disse sem mais<br />

hesitações: “Compre esse, que Deus providenciará pelo dinheiro”. E Klinkowström<br />

comprou-o sem um vintém na algibeira; a confiança do Santo não foi desmenti<strong>da</strong>:<br />

Deus enviou um ricaço que emprestou o necessário a juros módicos. A aprovação<br />

a obter-se do governo era a questão mais difícil. <strong>Clemente</strong> pediu a Deus, se<br />

dignasse mostrar-lhe, desta vez, o modo mais seguro de conseguir a aprovação<br />

deseja<strong>da</strong>. Em vez de se dirigir diretamente ao monarca, foi ter com o<br />

arquiduque Maximiliano José, primo do imperador, o qual, católico prático, se<br />

deixou entusiasmar pela idéia, e de olhos baixos, depois de fazer seus cálculos,<br />

prometeu alcançar do imperador a necessária aprovação deseja<strong>da</strong>. Ora aconteceu<br />

que enquanto fitava o chão para não se distrair em seus cálculos, viu que<br />

os sapatos de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> estavam rotos, de forma a aparecem as meios de<br />

diversos furos. Embora qualquer outro membro <strong>da</strong> nobreza ou <strong>da</strong> aristocracia<br />

estranhasse semelhante procedimento, tornando-o em conta de pouco caso ou<br />

tendo como desconsideração o aparecer assim esfarrapado em audiência oficial,<br />

o arquiduque edificou-se com a santi<strong>da</strong>de e desapego do Santo, que se<br />

esquecia de si próprio para só se lembrar dos outros. Comovido tomou a peito<br />

os rogos do Servo de Deus, e chegou até a fazer a promessa de não tomar<br />

açúcar no café, em sinal de penitência se Deus ouvisse o seu pedido e movesse<br />

o coração do imperador a aprovar o projeto e o novo estabelecimento de<br />

ensino. A aprovação foi concedi<strong>da</strong> pelo monarca e o arquiduque cumpriu com<br />

escrupulosa exatidão a sua promessa, não provando mais açúcar em to<strong>da</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong>, nem mesmo quando se sentava à mesa com príncipes ou monarcas. Quando<br />

alguém lhe chamava a atenção respondia laconicamente, que estava habituado<br />

a não tomar açúcar no café. Só ao aproximar-se <strong>da</strong> morte, é que ele revelou<br />

a seu confessor o motivo dessa sua abstinência. O instituto fun<strong>da</strong>do pelos<br />

esforços de <strong>Clemente</strong>, e em parte dirigido pela sua prudência, prosperou admiravelmente<br />

recebendo alunos de quase todos os países <strong>da</strong> Europa v. g. <strong>da</strong><br />

Alemanha, Áustria, Nápoles, Polônia, Constantinopla etc. Mais de duzentos e<br />

dez alunos, que se celebrizaram mais tarde nos diversos ramos <strong>da</strong> ciência,<br />

passaram por ele e prestaram os mais relevantes serviços à Igreja e à Pátria.<br />

CAPÍTULO XIV


<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e a moci<strong>da</strong>de<br />

O magnete admirável — Pe<strong>da</strong>gogo ideal — Os êxtases do Santo — Os<br />

passeios pela ci<strong>da</strong>de — Medonho temporal — As nuvens no jardim — Amor à<br />

pureza — Padre novo — Expor dúvi<strong>da</strong>s — José Lobo — O despertador traidor<br />

— Os secretas.<br />

Com to<strong>da</strong> a razão comparavam <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> ao magnete, pois que conhecia<br />

o segredo de atrair a si todos os corações. Realmente não havia em<br />

Viena classe alguma de pessoas que não o procurasse em sua pobre residência<br />

para receber seus conselhos ou para procurar consolo em alguma dor ou<br />

sofrimento físico ou moral; entre essas pessoas encontravam-se também protestantes,<br />

gregos cismáticos e até indivíduos que, em geral, se sentem mal na<br />

companhia de algum padre católico. Um atrativo especial sentiam os rapazes<br />

que a ele corriam, e a ele se apegavam não o querendo deixar nunca, como se<br />

pertencessem à família do Santo. Quando o Servo de Deus descia do púlpito, já<br />

alguns estu<strong>da</strong>ntes o esperavam na sacristia para o cumprimentar, beijar-lhe a<br />

mão ou travar amizade com ele; desejavam achar-se ao seu lado e em sua<br />

companhia nas reuniões que se efetuavam, to<strong>da</strong>s as tardes, em sua residência.<br />

Um estu<strong>da</strong>nte servia de chamariz para o outro; aos poucos aumentou-se consideravelmente<br />

o número dos alunos de <strong>Clemente</strong>, entre os quais se achavam<br />

estu<strong>da</strong>ntes de medicina, teologia, jurisprudência etc. Grande parte desses estu<strong>da</strong>ntes<br />

haviam já perdido a fé, outros haviam sido panteístas, ateístas,<br />

racionalistas etc. S. <strong>Clemente</strong> converteu-os radicalmente em grandes amigos<br />

<strong>da</strong> Igreja. Vinte e sete dentre eles abandonaram o mundo e entraram na <strong>Congregação</strong><br />

do Ss. Redentor, tornando-se colunas <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> na Áustria e<br />

no resto <strong>da</strong> Europa além dos Alpes. Era belo e encantador ver os moços jubilosos,<br />

sem respeito humano, ajoelhados todos os domingos à mesa <strong>da</strong> comunhão na<br />

Igreja de Santa Úrsula a receber o corpo sacramentado de Jesus. Diariamente<br />

achavam-se mais de 60 rapazes na igreja <strong>da</strong>s Ursulinas para à missa <strong>da</strong>s 7<br />

horas empunhando algum livro piedoso, o terço <strong>da</strong> Virgem, ou rezando todos<br />

em voz alta e clara. Quando alguém admirado perguntava a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> como<br />

é que conseguira tantos rapazes para Nosso Senhor, respondia ele: “Eu também<br />

não sei como é que Deus quis reunir tantos moços ao redor de mim, como<br />

se fossem minha guar<strong>da</strong> de honra”. Isso o Santo dizia com grande humil<strong>da</strong>de,<br />

porquanto não desconhecia que amor atrai amor. Ele amava muito a moci<strong>da</strong>de,<br />

e os rapazes retribuíam-lhe na mesma moe<strong>da</strong>. Para ca<strong>da</strong> estu<strong>da</strong>nte era o Servo<br />

de Deus pai e mestre, conduzindo todos com a maior prudência no caminho<br />

<strong>da</strong> virtude à prática exata <strong>da</strong> religião, mesmo nos pontos que pareciam insigni-<br />

72<br />

ficantes. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> era um pe<strong>da</strong>gogo consumado, de uma prudência extrema<br />

e comprova<strong>da</strong> por uma experiência de muitos anos. A virtude principal de<br />

<strong>Clemente</strong>, como pe<strong>da</strong>gogo, era a cari<strong>da</strong>de incomparável, que o animava a todos<br />

os atos e lhe traçava a norma de proceder para com ca<strong>da</strong> um dos estu<strong>da</strong>ntes.<br />

Dos principiantes exigia pouco, porque os achava ain<strong>da</strong> fracos na virtude, e<br />

não poucas vezes os agra<strong>da</strong>va com algum carinho especial, alguns elogios<br />

merecidos, ou com palavras de animação. Aos mais provectos na virtude regateava<br />

aplausos, que excitam a vai<strong>da</strong>de, fomentam o orgulho e tiram a força <strong>da</strong><br />

virtude; não poucas vezes dizia-lhes ver<strong>da</strong>des sérias, naturalmente com bon<strong>da</strong>de<br />

e a seu tempo: em tudo isso porém transparecia o amor que S. <strong>Clemente</strong><br />

consagrava a seus queridos rapazes, que por isso aceitavam tudo quanto o<br />

Santo lhes dizia. Nessas reuniões e, em geral sempre que se achava com os<br />

estu<strong>da</strong>ntes, falava pouco e isso mesmo com muita ponderação e prudência; um<br />

sorriso amável enflorava-lhe constantemente os lábios e a placidez e a bon<strong>da</strong>de<br />

resplandeciam de todo o seu físico espelhando a grandeza <strong>da</strong> sua alma.<br />

Sempre que algum estu<strong>da</strong>nte a ele se dirigia, <strong>Clemente</strong> o recebia e ouvia, entretendo-se<br />

com ele como se não tivera coisa mais importante a fazer; mesmo<br />

nas horas em que a enfermi<strong>da</strong>de lhe acabrunhava o corpo e abatia a alma, <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> era para seus estu<strong>da</strong>ntes a amabili<strong>da</strong>de personifica<strong>da</strong>.<br />

Depois dos trabalhos penosos do dia, <strong>da</strong>s corri<strong>da</strong>s pela Ci<strong>da</strong>de em visita<br />

aos enfermos e aos pobres, ou em benefício <strong>da</strong> causa santa, encontrava <strong>Clemente</strong>,<br />

à noite, uma multidão de estu<strong>da</strong>ntes que já o esperavam, alegres, divertindo-se<br />

na residência do Santo cuja casa não tinha nem tranca nem trinco para<br />

os rapazes que podiam nela entrar ou sair à vontade. Ao chegar em casa, <strong>Clemente</strong><br />

os sau<strong>da</strong>va ordinariamente com as palavras originais, que os faziam rir a<br />

todos: “Oh! que raça! que grandes marotos!” e depois de pendurar sua capa,<br />

entretinha-se um tempo com eles, e em segui<strong>da</strong> abrindo o armário velho distribuía-lhes<br />

o que para esse fim havia reservado dos presentes recebidos: maçãs,<br />

nozes, peras, pão, doces etc. <strong>Clemente</strong> servia-se dessas reuniões familiares e<br />

íntimas para infiltrar nos corações e inteligências dos rapazes os princípios sólidos<br />

<strong>da</strong> religião, e animá-los à prática constante <strong>da</strong>s virtudes cristãs. Depois<br />

que os moços se haviam divertido bastante, <strong>Clemente</strong> abria um livro, geralmente<br />

<strong>da</strong> história eclesiástica, e man<strong>da</strong>va um dos estu<strong>da</strong>ntes fazer a leitura, durante<br />

a qual o Santo semicerrava os olhos: quando ocorria algum caso mais<br />

edificante o Santo interrompia a leitura, para fazer suas explicações e considerações,<br />

tendo sempre em vista nesses comentários o bem espiritual dos rapazes.<br />

O mais interessante é que os estu<strong>da</strong>ntes se sentiam, nessas ocasiões,<br />

mais felizes do que se passassem aquelas horas no jogo, nas ven<strong>da</strong>s, nos<br />

cabarés e teatros ou talvez em namoros pouco recomendáveis, que excitam as<br />

paixões e fazer perder a calma e a saúde. Por vezes sucedia que durante a<br />

leitura, mormente quando se tratava <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de e misericórdia divina, <strong>Clemente</strong><br />

inclinava a fronte e fechava os olhos a meditar nesses atributos divinos. Então<br />

parecia ter a fronte cingi<strong>da</strong> de uma auréola e o rosto resplandecia-lhe com<br />

brilho desusado, saindo-lhe dos lábios palavras que traíam os seus transportes<br />

interiores, as faces tornavam-se rubras como a púrpura, e os estu<strong>da</strong>ntes que o<br />

não perdiam de vista, comovidos derramavam lágrimas. Era para nós — conta<br />

uma testemunha — o sinal de que a conversa estava acaba<strong>da</strong>, e retiravamo-


nos dizendo um para o outro: “O padre <strong>Clemente</strong> sente outra vez alguma coisa<br />

extraordinária”. Os rapazes não se enganavam. O Servo de Deus sentia que ia<br />

entrar em êxtase e, com grande humil<strong>da</strong>de, despedia todos os que pudessem<br />

ser testemunhas desse prodígio.<br />

No verão ou no outono, quando o tempo era bom e convi<strong>da</strong>tivo, o Servo de<br />

Deus encurtava a leitura e saía com os seus rapazes pelas ruas <strong>da</strong> Ci<strong>da</strong>de,<br />

escolhendo para seus passeios os lugares mais movimentados de Viena. Embora<br />

<strong>Clemente</strong> an<strong>da</strong>sse sempre com o hábito religioso, manto já usado e sapatos<br />

de sola grossa, nenhum dos estu<strong>da</strong>ntes se acanhava de sair com ele a<br />

passeio. Às vezes detinham-se no meio <strong>da</strong>s ruas, muito de indústria; os estu<strong>da</strong>ntes<br />

agrupavam-se ao redor dele a ouvir algum caso interessante. A curiosi<strong>da</strong>de<br />

atraía então para <strong>Clemente</strong> a multidão de transeuntes ou dos desocupados,<br />

aos quais o Servo de Deus não deixava de fazer algum sermão necessário<br />

ou útil.<br />

Quando <strong>da</strong>s torres de Viena soava pela ci<strong>da</strong>de o poético toque do Angelus,<br />

os estu<strong>da</strong>ntes descobriam e, em plena rua, rezavam, silenciosos, as três Ave-<br />

<strong>Maria</strong>s em louvor <strong>da</strong> Mãe de Deus. Não poucos dos que passavam recor<strong>da</strong>vam-se<br />

então que eram católicos, imitavam o bom exemplo <strong>da</strong>do pelos rapazes<br />

agrupados ao redor do Servo de Deus e habituavam-se a esse ato tão louvável,<br />

que havia já desaparecido em Viena.<br />

Não era sem motivo que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> gostava de reunir, à noite, os seus<br />

rapazes: sabia que as horas noturnas são as mais perigosas para os jovens,<br />

cujos corações inocentes facilmente se deixam perverter e ilaquear pelo inimigo<br />

<strong>da</strong>s almas; é por isso que o Santo em geral os detinha até a hora em que<br />

deviam ir acomo<strong>da</strong>r-se.<br />

Numa dessas reuniões desencadeou-se uma vez, horrível tempestade: os<br />

relâmpagos cruzavam-se nos ares, os trovões sucediam-se sem cessar, o temporal<br />

era medonho ficando todos transidos de terror. Mesmo depois de cessa<strong>da</strong><br />

a tormenta via-se ain<strong>da</strong> o pavor estampado no rosto dos rapazes. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

não deixou passar a ocasião: fez a seus estu<strong>da</strong>ntes uma preleção sobre as<br />

palavras de Jesus no Evangelho de S. Mateus (24,27): “Do modo como um<br />

relâmpago sai do oriente e se mostra no ocidente, assim há de ser também a<br />

vin<strong>da</strong> do Filho do Homem”. “Isso acontecerá, disse <strong>Clemente</strong>, no dia <strong>da</strong> nossa<br />

morte, em que a nossa vi<strong>da</strong> inteira há de patentear-se aos nossos olhos com a<br />

veloci<strong>da</strong>de e clari<strong>da</strong>de de relâmpago; a luz com que a veremos, será inteiramente<br />

outra, bem diversa <strong>da</strong>quela com que agora encaramos a vi<strong>da</strong>, será a luz<br />

<strong>da</strong> eterni<strong>da</strong>de”. A pregação foi tão forte e a ocasião tão asa<strong>da</strong>, que nenhum dos<br />

estu<strong>da</strong>ntes se distraiu nem perdeu palavra alguma saí<strong>da</strong> dos lábios do Servo<br />

de Deus. Termina<strong>da</strong> a alocução não houve quem não quisesse fazer sua confissão<br />

geral.<br />

Entretanto nem to<strong>da</strong>s as pregações de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> eram graves como<br />

essa do trovão; isso seria naturalmente contraproducente porque os rapazes<br />

gostam, em geral, de novi<strong>da</strong>de e de expressões e expansões de alegria; aliás o<br />

coração bondoso de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não lhe permitia tratar com aspereza os<br />

seus caros estu<strong>da</strong>ntes que constituíam a sua coroa e a sua glória. “Há tempo<br />

para tudo, diz o Espírito Santo, para descansar e trabalhar, para chorar e rir”. O<br />

Servo de Deus gostava de ver seus rapazes alegres e contentes, e mostrava-se<br />

73<br />

magoado quando percebia algum deles entristecido.<br />

Ele mesmo permitia-se algum gracejo inocente contribuindo assim, de sua<br />

parte, para a hilari<strong>da</strong>de geral. Em Viena havia um senhor muito rico e religioso,<br />

por nome Szecheny; esse conde húngaro era dono de uma viven<strong>da</strong> magnífica,<br />

ou antes, de um castelo suntuoso, circun<strong>da</strong>do de um elegante jardim e vistoso<br />

parque. Uma <strong>da</strong>s maiores alegrias do conde era receber a visita de S. <strong>Clemente</strong><br />

e tê-lo consigo nas horas <strong>da</strong>s refeições para assim se entreter com ele familiarmente<br />

e ouvir os sábios e práticos ensinamentos, que abun<strong>da</strong>vam dos lábios do<br />

Santo, que era seu Diretor espiritual e o educador dos seus filhos. Madlener, o<br />

discípulo predileto de <strong>Clemente</strong>, costumava acompanhá-lo nessas ocasiões;<br />

Madlener era panteísta e gostava de filosofar. Num desses passeios à casa do<br />

conde Szecheny, o filósofo esquecendo-se <strong>da</strong> terra pôs-se a considerar as nuvens<br />

par<strong>da</strong>centas encastela<strong>da</strong>s no firmamento a forma figuras curiosas de homens<br />

e animais, de castelos e ci<strong>da</strong>des, sempre novas e interessantes, figuras<br />

essas, que só Madlener via. Na próxima reunião dos rapazes Madlener não<br />

pôde conter-se e pôs-se a descrever as belezas <strong>da</strong>s nuvens do castelo do conde<br />

Szecheny; os estu<strong>da</strong>ntes riam-se a bandeiras desprega<strong>da</strong>s <strong>da</strong> ingenui<strong>da</strong>de<br />

do filósofo panteísta, com a aprovação de <strong>Clemente</strong> que não deixava de tomar<br />

parte ativa na hilari<strong>da</strong>de geral. Quando no dia seguinte Madlener quis entrar e<br />

abriu a porta, <strong>Clemente</strong> a sorrir-se com os estu<strong>da</strong>ntes saudou-o com a pergunta:<br />

“Então Madlener, no jardim do conde há nuvens bonitas, não é”? Essas palavras,<br />

que não ofendiam a Madlener, tornaram-se por algum tempo a sau<strong>da</strong>ção<br />

com que era recebido o filósofo panteísta, que mais tarde se tornou um<br />

santo Redentorista.<br />

Por causa <strong>da</strong> bon<strong>da</strong>de de seu coração, muitas vezes uma única palavra do<br />

Santo era bastante para alegrar sincera e intimamente os jovens. <strong>Clemente</strong><br />

exercia sobre eles uma ver<strong>da</strong>deira fascinação, em que tudo nos permite ver um<br />

condão sobrenatural. Um dia, conta Werner, encontrei um grupo de rapazes<br />

que saíam <strong>da</strong> casa dele, os olhos a faiscar contentamento, o júbilo estampado<br />

no rosto; supondo que ele lhes houvesse dirigido algum discurso singular e<br />

extraordinário que os impressionasse, perguntei-lhes o que é que os fazia entusiasmar<br />

tanto. — “Ah! responderam eles, coisa tão lin<strong>da</strong> que jamais temos ouvido<br />

na vi<strong>da</strong>”. — “Mas que coisa disse hoje o Pe. <strong>Clemente</strong>?” Ah! ele disse: “Rapazes,<br />

sede bons e tende juízo”.<br />

Além <strong>da</strong> convicção religiosa, procurava <strong>Clemente</strong>, de um modo todo especial,<br />

implantar nos corações dos jovens o amor à bela virtude, muni-los para os<br />

combates renhidos, que a moci<strong>da</strong>de costuma travar com os inimigos <strong>da</strong> pureza.<br />

A conversação com o Santo inspirava aos jovens compreensão e amor para a<br />

beleza dessa virtude angélica. João Pilat, um dos seus discípulos, disse: “Sempre<br />

que ele me abraçava, sentia eu em mim o amor divino”. Os conselhos nesse<br />

sentido eram mais do que abun<strong>da</strong>ntes; a ca<strong>da</strong> passo <strong>Clemente</strong> falava <strong>da</strong> pureza<br />

como adorno <strong>da</strong> alma e fonte de paz e alegria espiritual; aconselhava a<br />

recitação do terço nos passeios pelas ruas <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, proibia terminantemente<br />

a leitura dos romances e poesias eróticas, chamava-lhes a atenção prevenindoos<br />

contra as más companhias que costumam ser um dos mais perigosos laços<br />

de Satanás, aconselhava a recepção devota e freqüente dos santos sacramentos,<br />

maxime <strong>da</strong> santa comunhão. Com um empenho todo especial pedia aos


jovens que fugissem <strong>da</strong> ociosi<strong>da</strong>de e procurassem estar sempre ocupados a<br />

exemplo de S. Jerônimo que dizia: “Semper ter diabolus occupatum inveniat” i.<br />

é, o diabo deve encontrar-te sempre ocupado. Mormente quando tinha de tratar<br />

com sacerdotes novos ou com teólogos, acentuava ain<strong>da</strong> mais: “um padre novo<br />

deve estar ocupado o dia inteiro, do contrário acabará mal”. O Servo de Deus<br />

gostava quando os moços expunham, nas reuniões, suas opiniões, dúvi<strong>da</strong>s,<br />

desejos etc. Quando por acaso se originava entre eles alguma conten<strong>da</strong> ou<br />

discussão mais forte, <strong>Clemente</strong> intervinha com to<strong>da</strong> calma e restabelecia a harmonia<br />

abala<strong>da</strong>.<br />

O Santo, detestava a hipocrisia e não admitia, nem de leve, em seus rapazes;<br />

era difícil enganar o Santo, porque ele, no dizer de Werner, enxergava<br />

através <strong>da</strong>s paredes.<br />

Entre os discípulos de <strong>Clemente</strong> não havia só santos, nem só estu<strong>da</strong>ntes<br />

de boa vontade que aspiravam à perfeição: havia também alguns velhacos, mas<br />

isso não admira porquanto entre os doze Apóstolos também houve um traidor.<br />

Ao número dos rapazes, que freqüentavam a casa do Santo, pertencia um que,<br />

judeu de nascimento, se fez batizar na i<strong>da</strong>de de dezessete anos. De inteligência<br />

agu<strong>da</strong> e perspicaz, passou muitos meses em Constança, comensal de Talberg,<br />

pelo qual foi recomen<strong>da</strong>do à Propagan<strong>da</strong>, que aceitou em Roma, com intuito de<br />

o formar para missionário a trabalhar futuramente na conversão dos judeus.<br />

José Lobo era o seu nome, e de lobo era seu procedimento, pois que o<br />

batismo não conseguiu convertê-lo em cordeiro de inocência e sinceri<strong>da</strong>de. De<br />

Roma mantinha correspondência secreta com os protestantes, seus amigos,<br />

defendendo a heresia, e ridicularizando os dogmas e os ritos <strong>da</strong> Santa Igreja.<br />

Depois de ano e meio de experiências reconheceram os professores que o<br />

rapaz não se prestava para a carreira sacerdotal e fecharam-lhe as portas do<br />

seminário. Fixando residência em Viena não tardou a sentir a fome que lhe<br />

bateu à porta, horrível e desespera<strong>da</strong>; lembrou-se <strong>da</strong> generosi<strong>da</strong>de de <strong>Clemente</strong>,<br />

escreveu-lhe pedindo auxílio e declarando o desejo ardente de ser admitido<br />

entre os zelosos filhos de Sto. Afonso.<br />

Movido de compaixão o Servo de Deus foi visitar o autor <strong>da</strong> carta para se<br />

convencer de tudo e tomar-lhe o pulso. No meio <strong>da</strong> palestra percebendo certas<br />

vacilações na fé e nas opiniões religiosas, o Servo de Deus procurou convencêlo;<br />

o hipócrita ouviu tudo com o maior interesse e protestou querer sempre e em<br />

to<strong>da</strong> parte viver como um filho obediente <strong>da</strong> Santa Igreja, pela qual estava pronto<br />

a derramar o sangue e <strong>da</strong>r a vi<strong>da</strong>. Embora não se sentisse bem na companhia<br />

do rapaz, <strong>Clemente</strong> o aceitou franqueando-lhe as portas <strong>da</strong> sua casa, em<br />

atenção aos reiterados pedidos dos grandes amigos Werner, Madlener etc, e<br />

por deferência para com o Núncio Leardi e Cardeal Litta que o recomen<strong>da</strong>ram<br />

vivamente.<br />

O sr. José Lobo tornou-se em breve o mais piedoso dos estu<strong>da</strong>ntes; na<br />

igreja não levantava os olhos curiosamente, conservava as mãos sempre postas,<br />

permanecia imóvel qual estátua de mármore, ajoelhado no pavimento durante<br />

todo o tempo <strong>da</strong>s funções religiosas, por mais que elas se prolongassem,<br />

só entretinha conversas espirituais, mostrando enfado e desaprovação quando<br />

alguém se lembrava de desviar o assunto para coisas mun<strong>da</strong>nas; ao receber<br />

humilhações de seu santo Mestre, baixava humilde a cabeça e calado e calmo<br />

74<br />

aceitava as repreensões. Não obstante tudo isto <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não se iludia a<br />

respeito do sr. Lobo. As Ursulinas que, do coro, assistiam às cerimônias <strong>da</strong><br />

igreja, ao ouvirem a voz melodiosa e limpa que do meio dos estu<strong>da</strong>ntes ecoava<br />

sonora pelo templo, admira<strong>da</strong>s não puderam resistir à curiosi<strong>da</strong>de e erguendose<br />

nas pontas dos pés puseram-se a olhar para baixo, a fim de descobrirem o<br />

dono <strong>da</strong> voz que tão suave lhes deliciava os ouvidos.<br />

Viram o sr. Lobo e encheram-se de admiração por ele, como outrora as<br />

filhas de Judá que subiram aos muros encanta<strong>da</strong>s pela formosura excepcional<br />

de José, e foram ter com o Servo de Deus para lhe apresentarem os parabéns<br />

pela bela e feliz aquisição do moço que edificava o povo com seu comportamento<br />

exemplar e com sua devoção sobrenatural. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> franzindo o<br />

rosto disse com laconismo: “Não o conservarei comigo”. Como as irmãs se<br />

mostrassem estupefatas com essa palavra que não esperavam, o Servo de<br />

Deus continuou: “Olhai bem para o rapaz, o rosto, os modos, tudo nele denota<br />

um coração irrequieto”. O Santo desconfiava do moço que parecia sofrer êxtases<br />

contínuos e fingir exagera<strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de, e por fim não podendo já suportar-lhe<br />

a hipocrisia, disse-lhe sem rebuços: “Lobo, Lobo, és um velhaco e acabarás na<br />

forca”. O Servo de Deus enviou-o a Suíça para ser provado pelo Pe. Passerat,<br />

que não tardou expulsá-lo por seu mau comportamento. O rapaz tornou-se<br />

luterano, membro <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de bíblica <strong>da</strong> Inglaterra, percorreu a Ásia e a América,<br />

procurando nas cinco partes do mundo as dez tribos de Israel; como porém<br />

não as encontrasse voltou para a Inglaterra, onde morreu na forca <strong>da</strong> heresia.<br />

Uma vez deram a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, a guar<strong>da</strong>r, um belo relógio despertador<br />

de grande valor. O Santo guardou-o com cui<strong>da</strong>do em um lugar separado e seguro,<br />

pois que se tratava de um objeto alheio e de grande estima; porém mesmo<br />

assim, sem se saber como, o relógio desapareceu. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> examinou<br />

todos os cantos de sua pequena casa, mandou aos estu<strong>da</strong>ntes que o aju<strong>da</strong>ssem,<br />

e todos ao verem o Santo um tanto inquieto puseram-se prontamente à<br />

procura do despertador. Um aluno do ginásio que lá se achava, manifestou um<br />

interesse especial, e mais solícito que os outros remexeu tudo em busca do<br />

desertor, entrou por baixo <strong>da</strong> cama, inclinou-se em todos os cantos, vociferou<br />

contra o malicioso que assim causara o transtorno <strong>da</strong> casa, o desgosto do Santo,<br />

a perturbação <strong>da</strong> alegria geral. Qual não foi o espanto de todos quando o<br />

despertador disparou na algibeira do tal aluno do ginásio, traindo-o vergonhosamente!<br />

Todos ficaram perplexos, porque naquele canto ninguém o supunha<br />

escondido.<br />

<strong>Clemente</strong> fitou-lhe um olhar de compaixão, mas também de repreensão<br />

por seu vergonhoso procedimento. O pobre rapaz esconjurando o relógio que<br />

batera, quando menos o devia fazer, tremendo como varo verde entregou a<br />

<strong>Clemente</strong> o despertador, tomou o chapéu e retirou-se envergonhado e confundido.<br />

Como é fácil adivinhar, a reunião efetua<strong>da</strong> to<strong>da</strong>s as noites na residência do<br />

Santo, não deixou de alarmar a polícia, cujas suspeitas cresciam dia a dia. Dois<br />

desconhecidos que se diziam estrangeiros, apresentaram-se numa dessas reuniões<br />

e encantaram os rapazes, um por sua simplici<strong>da</strong>de e fingi<strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de,<br />

outro pela narração maravilhosa de suas viagens. Só <strong>Clemente</strong> permaneceu


frio e impassível. Deus lhe revelara tudo. Depois deles se retirarem disse aos<br />

amigos: “Esses senhores moram em Viena, são emissários <strong>da</strong> polícia secreta”.<br />

Como esse fato se repetisse muitas vezes, <strong>Clemente</strong> combinou uma senha<br />

com os estu<strong>da</strong>ntes, era “Que há de novo?” Essa medi<strong>da</strong> era necessária porque,<br />

em geral, como os rapazes no momento <strong>da</strong> exaltação e do entusiasmo não<br />

medem palavras, podiam talvez, inconscientes comprometer a socie<strong>da</strong>de to<strong>da</strong><br />

e perturbar a alegria geral.<br />

CAPÍTULO XV<br />

75<br />

O bom pastor<br />

Em procura do pecador — Magnífica prece — Interessante diálogo —<br />

Frederico Schlegel convertido — Klinkowström e sua família — Os preconceitos<br />

— Antônio Pilat renuncia a maçonaria — Schlosser e sua família aos pés do<br />

Mestre — O temor <strong>da</strong> penitência na confissão.<br />

Lemos no Evangelho do discípulo amado a belíssima parábola do bom<br />

Pastor, que não é outro senão o divino Redentor, que conhece suas ovelhas e é<br />

por elas conhecido. Repleto de amor promete <strong>da</strong>r e dá efetivamente sua vi<strong>da</strong><br />

para salvar as ovelhas fiéis. Jesus porém afirma possuir ovelhas ingratas, que<br />

abandonaram o aprisco; lastima sua ingratidão, mas declara-se pronto a trabalhar<br />

por elas: “importa que eu as arrebanhe, elas ouvirão a minha voz e haverá<br />

um só rebanho e um só Pastor!” A exemplo de Jesus queria o Servo de Deus<br />

ser um pastor zeloso <strong>da</strong>s almas, trabalhar por elas, e reconduzi-las ao caminho<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> fé. O seu coração sangrava ao ver a multidão dos protestantes<br />

e judeus que não pertenciam ao redil do Redentor. Do alto do púlpito exclamou<br />

uma vez: “Oh! quem me dera receber de Deus a graça de converter os hereges<br />

e incrédulos do mundo inteiro, em meus braços e sobre os meus ombros levalos-ia<br />

ao aprisco seguro <strong>da</strong> Santa Igreja Católica”. Essas palavras nos lábios de<br />

<strong>Clemente</strong>, não eram apenas figuras retóricas ou belas frases, filhas de um entusiasmo<br />

momentâneo, mas a expressão <strong>da</strong> pura reali<strong>da</strong>de. Heróicos eram os<br />

esforços que fazia continuamente pela conversão dos extraviados. Em to<strong>da</strong>s as<br />

ocasiões que se apresentavam, em to<strong>da</strong>s as formas que a prudência lhe sugeria,<br />

falava o Santo <strong>da</strong> Igreja Católica, <strong>da</strong> sua instituição divina, <strong>da</strong>s suas doutrinas<br />

consoladoras, dos seus sacramentos, <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de que se sente no seio <strong>da</strong><br />

Igreja; e tudo isto despejava-se de seus lábios com tamanha eloqüência e tão<br />

profun<strong>da</strong> convicção, que dificilmente alguém poderia resistir à força de suas<br />

palavras. Os protestantes e judeus sentiam prazer em assistir as suas reuniões,<br />

em que o Santo usava de uma delicadeza extrema mostrando sempre compaixão<br />

para com os hereges; fustigava o erro, porém sempre com palavras bran<strong>da</strong>s<br />

e delica<strong>da</strong>s. Como a conversão é uma graça que vem do céu e que só Deus<br />

pode conceder, consagrava ao Senhor todo o seu apostolado, pedindo ao bom<br />

Pastor que lhe desse as almas dos extraviados, movendo os seus corações e<br />

iluminando as suas inteligências. A oração que <strong>Clemente</strong> rezava constantemente,<br />

era a seguinte: “Jesus meu Senhor e Redentor, do trono <strong>da</strong> vossa majestade<br />

e misericórdia, laçai sobre nós um olhar de bon<strong>da</strong>de; Vós nos remistes<br />

com o preciosíssimo sangue que derramastes no madeiro infame <strong>da</strong> cruz. O<br />

vosso Pai celestial é também o nosso, pois que sois nosso irmão por vossa


natureza humana. Deverão acaso perder-se eternamente tão inumeráveis almas?<br />

Se quiserdes, podeis salvar-nos; olhai para as lágrimas <strong>da</strong> santa Igreja,<br />

vossa Esposa, reconduzi-lhe os filhos que apostataram <strong>da</strong> religião, difundi sobre<br />

os extraviados a luz celestial <strong>da</strong> fé, a única que pode nos salvar e santificar.<br />

Se os suspiros do meu amor não merecem ser atendidos por ser eu um mísero<br />

pecador, atendei a súplica <strong>da</strong> vossa santíssima Mãe, a Virgem poderosa e Mãe<br />

de misericórdia, que por nós intercede; assim todos se converterão e louvarvos-ão<br />

eternamente”.<br />

Deus recompensou o seu Servo concedendo-lhe conversões estupen<strong>da</strong>s<br />

de inúmeras almas à Santa religião. Não passava, geralmente, uma semana<br />

sem que <strong>Clemente</strong> trouxesse ao seio <strong>da</strong> Igreja protestantes, calvinistas, judeus<br />

etc. As vezes bastava uma única palestra com o Santo para se operar uma<br />

conversão dessas. Ao Servo de Deus iam também pessoas que se diziam espíritos<br />

fortes, instruí<strong>da</strong>s em muitas coisas, menos em religião, para com ele discutirem,<br />

apresentando dúvi<strong>da</strong>s que supunham insolúveis; desejavam confundir<br />

a <strong>Clemente</strong>, mas enganavam-se. Muitas vezes com a explicação de uma única<br />

palavra o Servo de Deus desfazia os sofismas, dissipava as dúvi<strong>da</strong>s, solvia as<br />

objeções, e, o que era ain<strong>da</strong> mais admirável, fazia as pessoas saírem converti<strong>da</strong>s<br />

e reconcilia<strong>da</strong>s com Deus. Entre muitos outros converteu o Servo de Deus<br />

um dos que se achavam a serviço <strong>da</strong> arquiduquesa Henriqueta, fazendo que<br />

ele em suas mãos abjurasse o protestantismo. O companheiro e comparsa do<br />

convertido indignou-se sobremaneira com esse ato, embora fosse um dos que<br />

sempre têm nos lábios palavras de filantropia e tolerância religiosa. Como bom<br />

protestante resolveu descompor o Santo em plena rua. E de fato, encontrandose<br />

pouco depois com o Servo de Deus, lançou-lhe em rosto publicamente o seu<br />

procedimento, taxando-o de perturbador <strong>da</strong> ordem, zelote fanático, afirmando<br />

que ninguém deve mu<strong>da</strong>r de religião, mas permanecer até a morte naquela em<br />

que nasceu. O Santo recebeu to<strong>da</strong> aquela afronta com tranqüili<strong>da</strong>de a exemplo<br />

de Jesus, esperando que o infeliz compreendesse a insensatez <strong>da</strong>s suas palavras,<br />

pois que na<strong>da</strong> é mais natural do que a conversão, isto é o abandono do<br />

erro e do vício para a recepção <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de e a prática <strong>da</strong> virtude; foi para isso<br />

que Jesus desceu do céu, quis converter os judeus e os pagãos fazendo-os<br />

abraçar a religião ver<strong>da</strong>deira, que ele nos trouxera do alto, do seio de Deus.<br />

Terminado o arrazoado do protestante, <strong>Clemente</strong> contentou-se em dizer-lhe:<br />

“Mas então, porque é que Martinho Lutero não quis viver e morrer na fé em que<br />

nasceu?” Embora embaraçado, o Luterano não quis <strong>da</strong>r a mão à palmatória e<br />

puxou outra objeção como soem fazem os protestantes para <strong>da</strong>r certa aparência<br />

de erudição e de grandeza. “Nós todos somos filhos de um mesmo pai que<br />

está nos céus, sejamos deste ou <strong>da</strong>quele credo”. O Santo porém não lhe ficou<br />

devendo resposta e disse: “Quem tem um pai, deve ter também uma mãe: se<br />

vós, luteranos, tendes a Deus por Pai, onde é que está a vossa mãe? nós católicos<br />

temos por mãe a Santa Igreja Católica”. O Luterano era teimoso e desejava<br />

mais uma resposta. “A veneração dos Santos, disse ele, é uma superstição<br />

católica”. — “Não é ver<strong>da</strong>de, o sr. está enganado, entre Deus e os pecadores<br />

são necessários intercessores, e esses são para nós os Santos; assim como<br />

necessitamos de intermediários junto dos grandes senhores <strong>da</strong> terra, assim<br />

também nós míseros e indignos pecadores precisamos de intercessores junto<br />

76<br />

de Deus infinitamente santo”. O protestante achou melhor calar-se, porque temia<br />

converter-se também, se continuasse a discussão.<br />

Seria difícil, para não dizer impossível enumerar nos moldes de uma simples<br />

biografia as conversões efetua<strong>da</strong>s por <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> nos anos que passou<br />

em Viena; entretanto para a glória do Santo e para edificação de todos colocamos<br />

aqui algumas <strong>da</strong>s mais notáveis.<br />

O filho do bispo protestante de Hannover por nome Frederico Schlegel foi<br />

pelo pai, que desejava fazer fortuna, colocado no comércio, e para isso enviado<br />

a Leipzig. — O rapaz inteligente não afeiçoando-se à profissão a que seu pai o<br />

destinara, fugiu para longe, e em Göttingen estudou humani<strong>da</strong>des, entrando<br />

em segui<strong>da</strong> para a universi<strong>da</strong>de de Leipzig, onde se dedicou à filosofia, e pôsse<br />

a escrever, e isto com uma fecundi<strong>da</strong>de espantosa. Desejoso de mais expansão<br />

a seus vastos conhecimentos, foi a Berlim onde se relacionou com uma<br />

judia de rara beleza e de dotes poéticos invejáveis, a qual aos 15 anos se unira<br />

em matrimônio a um judeu riquíssimo, banqueiro em Berlim por nome Simão<br />

Veith. Esse casamento foi infeliz para ambos, porque a poetisa, afeita aos vôos<br />

<strong>da</strong> fantasia, não se habituou à convivência com um indivíduo frio e contador de<br />

dinheiro.<br />

A bela judia apaixonou-se pelo poeta Schlegel, que era também artista, e<br />

sentiu-se correspondi<strong>da</strong>, embora Frederico fosse oito anos mais novo, e ela já<br />

casa<strong>da</strong> há vários anos. Sem mais preâmbulos tratou do divórcio e correu atrás<br />

de Frederico. Depois de viverem algum tempo juntos, foram a Paris onde a judia<br />

passou ao luteranismo para agra<strong>da</strong>r a Frederico, e recebeu no batismo o nome<br />

de Dorotéia e casou-se luteranamente com Schlegel. De Paris dirigiram-se a<br />

Colônia onde Frederico esperava uma colocação que, porém, nunca chegou a<br />

conseguir. Nesse meio tempo, os dois espíritos irrequietos dedicavam-se aos<br />

estudos; percorreram a história e chegaram a conclusão de que a ver<strong>da</strong>de não<br />

pode achar-se nem no ju<strong>da</strong>ísmo, nem no protestantismo, mas só na Igreja Católica;<br />

rezaram e imploraram as luzes do céu, e em 1808 na magnífica catedral<br />

de Colônia abraçaram o catolicismo, ajoelhados ao pé do altar <strong>da</strong> Virgem: dois<br />

dias depois receberam a santa comunhão e casaram-se religiosamente com a<br />

devi<strong>da</strong> dispensa do Ordinário. Só então é que conseguiram a paz pela qual<br />

tanto suspiravam, como escreve a própria Dorotéia em uma carta: “... nesse ano<br />

de 1808 derramei lágrimas de íntima gratidão por causa de minha tão grande,<br />

nunca mereci<strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de”. Depois <strong>da</strong> conversão os dois esposos foram à Viena<br />

onde Frederico encontrou a colocação deseja<strong>da</strong>. <strong>Clemente</strong> foi logo escolhido<br />

para Diretor espiritual de ambos. Desde então <strong>Clemente</strong> parecia ser um<br />

membro <strong>da</strong> família Schlegel; quando em 1809 Frederico teve de ir à guerra, o<br />

nosso Santo foi o anjo consolador de Dorotéia no assédio e bombardeio <strong>da</strong><br />

ci<strong>da</strong>de pelos franceses. Dorotéia teve dois filhos do primeiro matrimônio: Jonas<br />

e Philippe, que se dedicaram respectivamente ao comércio e à pintura; ambos<br />

eram judeus e desejavam abraçar a religião católica, pratica<strong>da</strong> pela mãe, que<br />

idolatravam e cuja inteligência admiravam, mas o ambiente em que se achavam<br />

e a companhia que freqüentavam na Alemanha fizeram-lhes adiar sempre o<br />

seu propósito. Desejosa de vê-los convertidos a mãe chamou-os a Viena, onde<br />

os apresentou a S. <strong>Clemente</strong> que em poucos meses lhes desfez to<strong>da</strong>s as dúvi<strong>da</strong>s,<br />

e os entusiasmou para a beleza divina <strong>da</strong> religião. Pediram o batismo que


lhes foi conferido por Severoli, Núncio Apostólico de Viena.<br />

Foi esse o dia mais belo, o dia em que Dorotéia com dificul<strong>da</strong>de pôde conter<br />

a veemência <strong>da</strong> alegria que lhe inun<strong>da</strong>va a alma. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> tornou-se o<br />

Diretor espiritual de to<strong>da</strong> a família, porque esses dois se tornaram piedosos,<br />

dóceis e obedientes aproximando-se com freqüência dos santos Sacramentos.<br />

<strong>Clemente</strong> não os perdeu nunca de vista, nem mesmo quando mais tarde se<br />

mu<strong>da</strong>ram para Roma; escreveu-lhes diversas cartas animando-os à perseverança<br />

na prática <strong>da</strong> virtude. A relação íntima com a família e o interesse que o<br />

Santo por ela tomava, deduzem-se perfeitamente de uma carta de Dorotéia a<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>: “... hoje, véspera <strong>da</strong> festa dos grandes Apóstolos, não posso<br />

deixar de vos escrever uma palavra; não há uma festa de mais importância em<br />

que eu não sinta desejo de me achar aos pés do meu pai espiritual para lhe<br />

ouvir os conselhos, os ensinamentos e as palavras de sabedoria... Abençoai o<br />

meu filho que se abandonou inteiramente à vossa direção, porque ninguém,<br />

melhor do que vós, caro pai, sabe guiar-nos para Deus; de coração unidos<br />

peçamos a Deus, se digne inflamar o coração do rapaz e iluminar o seu espírito;<br />

Vós que conheceis to<strong>da</strong>s as boas e más quali<strong>da</strong>des, bem como o gênio do meu<br />

filho, continuareis a guiá-lo e a <strong>da</strong>r-lhe conselhos; é disso que depende tudo;<br />

peço-vos, queirais amparar-nos com vossas orações, em que tanto confiamos”.<br />

O que porém mais admira é que o próprio Frederico Schlegel, o grande<br />

literato, o meteoro <strong>da</strong> sua época, se deixou guiar por <strong>Clemente</strong> com a ingenui<strong>da</strong>de<br />

de uma criança. O Servo de Deus visitava-o diariamente, já por amizade<br />

já porque em sua casa reuniam to<strong>da</strong>s as mentali<strong>da</strong>des científicas de Viena e<br />

até <strong>da</strong>s mais célebres ci<strong>da</strong>des dos outros países. O grande cientista era ver<strong>da</strong>deiramente<br />

piedoso: rezava todos os dias, tinha água benta em seu quarto, o<br />

Crucifixo e um genuflexório onde se ajoelhava para as suas meditações diárias;<br />

quando pelas ruas de Viena via passar um sacerdote, abandonava a companhia<br />

em que se achava e ia cumprimentar o ministro de Deus e beijar-lhe respeitosamente<br />

a mão, em plena sem a menor sombra de respeito humano; e<br />

ninguém tinha na<strong>da</strong> que dizer de Frederico Schlegel, porque não havia em Viena<br />

quem pudesse medir-se com ele em sabedoria ou em qualquer ramo de<br />

ciência; Frederico escreveu muitas obras, mas nunca publicou nenhuma delas,<br />

senão depois de ouvir o parecer de <strong>Clemente</strong>, a quem constituíra juiz <strong>da</strong><br />

catolici<strong>da</strong>de dos seus escritos.<br />

Uma vez havendo composto uma obra primorosa foi lê-la a seu santo Diretor<br />

que a aprovou in totum; terminado a leitura Frederico lançou um olhar<br />

perscrutador ao Servo de Deus, como se quisesse ler na fisionomia do Santo a<br />

impressão do seu escrito; S. <strong>Clemente</strong> abraçou o amigo dizendo: “Bem, meu<br />

caro Frederico, muito bem, porém melhor é ain<strong>da</strong> amar Nosso Senhor de todo<br />

o coração”. Essa amizade de <strong>Clemente</strong> não era na<strong>da</strong> sentimental, visava tão<br />

somente o bem espiritual de Frederico, que embora sábio, tinha, como convertido,<br />

opiniões singulares a respeito do cristianismo. Uma vez termina<strong>da</strong> que foi<br />

uma <strong>da</strong>s composições que Frederico julgava excelente e magnífica, correu ao<br />

seu Diretor para lhe participar a alegria e fazê-lo também deliciar-se com o fruto<br />

tão belo do seu espírito; certo do triunfo esperava que <strong>Clemente</strong> abrisse os<br />

braços para o amplexar com felicitações; mas não foi assim; durante a leitura o<br />

Santo meneava, por vez, a cabeça em sinal de desaprovação e repetia: “na<strong>da</strong>,<br />

77<br />

na<strong>da</strong>, não serve”. O doutor não se deu por achado, tornou-se mais eloqüente<br />

na esperança de converter o Santo para as suas idéias, mas debalde; <strong>Clemente</strong><br />

percebendo que a coisa ia muito além do genuíno sentir <strong>da</strong> Igreja, interrompeuo<br />

bruscamente, mas para não o ofender deu-lhe um abraço com a palavra amiga:<br />

“Não deixas de ser o meu Frederico”. Aborrecido com a interrupção e desapontado<br />

com o abraço, quis continuar, mas viu-se novamente interrompido por<br />

<strong>Clemente</strong> que desviou a conversa para outro assunto. Desse episódio tiramos a<br />

prova de que o amor do Santo, embora sincero, na<strong>da</strong> tinha de sentimental.<br />

<strong>Clemente</strong> também nos ensina com seu exemplo que em certas ocasiões é um<br />

crime permanecer calado; mesmo aos amigos e, às vezes, necessário dizer a<br />

ver<strong>da</strong>de com bons modos, e desviá-los do mal, do erro e do vício.<br />

Em 1808 estavam reunidos num dos hotéis de Hamburgo diversos rapazes<br />

de várias nacionali<strong>da</strong>des na mais cordial alegria, divertindo-se aos sons de variados<br />

cânticos. Entre os rapazes, destacava-se um sueco, protestante, filho de<br />

um nobre cavalheiro, que o destinou à vi<strong>da</strong> militar, na qual devia, de degrau em<br />

degrau, ascender ao apogeu <strong>da</strong> glória em magníficos triunfos para o engrandecimento<br />

<strong>da</strong> Pátria. O rapaz, porém, mais se simpatizava com o pincel do que<br />

com a espa<strong>da</strong>. Abandonando a carreira militar, dedicou-se à pintura em que<br />

não tardou a fazer rápidos progressos. O seu nome era Frederico Augusto<br />

Klinkowström; todos os anos, no verão, aproveitava-se <strong>da</strong>s férias para visitar<br />

um seu amigo em Hamburgo.<br />

Como facilmente se compreende, a alegria no hotel era grande, indescritível,<br />

os rapazes cantavam e riam-se, comiam e bebiam sem preocupações de espécie<br />

alguma. A companhia crescia na proporção <strong>da</strong>s horas que escoavam, e<br />

como nem todos os rapazes tinham a mesma educação esmera<strong>da</strong>, com ca<strong>da</strong><br />

copo excitava-se mais a conversa, que não tardou a descambar para o lado<br />

sensual e livre. Klinkowström, nobre de caráter e sério em sua vi<strong>da</strong>, detestava<br />

semelhantes abusos e sentia nojo de gracejos <strong>da</strong>quele teor; calou-se arrependido<br />

de haver entrado naquela casa; pensativo levanta-se e vai à janela para<br />

descobrir a causa do barulho que chegava a seus ouvidos. — Qual não foi sua<br />

consternação quando viu uma meretriz entrar pela porta que ficava em frente à<br />

janela. Chama<strong>da</strong> pelos estu<strong>da</strong>ntes ia ela aumentar a alegria dos rapazes.<br />

Seminua aproximava-se ela <strong>da</strong>nçando e sorrindo com a desenvoltura própria<br />

de semelhante classe, de forma a endoidecer os pobres moços que não lhe<br />

regateavam palmas e aplausos. O nobre sueco horrorizou-se com aquela cena,<br />

mas o que mais o impressionou foi a visão que teve no momento; um ancião<br />

venerando, sacerdote católico, de batina preta e sobrepeliz branca, estola e<br />

pluvial magníficos, olhou para ele sério e, levantando a mão direita, deu-lhe um<br />

sinal com o dedo como que a preveni-lo contra o vício e a admoestá-lo a fugir do<br />

perigo. O sueco que nunca vira semelhante padre nem outro, que com ele se<br />

parecesse, compreendeu o aviso, tomou o chapéu e retirou-se.<br />

A impressão <strong>da</strong>quela aparição, porém, nunca mais se desfez de sua alma;<br />

ao chegar em casa lançou na tela a figura majestosa e grave do sacerdote que<br />

lhe apareceu em Hamburgo. Depois de an<strong>da</strong>r pelo mundo, e de ver muitas<br />

ci<strong>da</strong>des, entre elas Paris e Roma, fixou sua residência definitiva em Viena, onde<br />

o príncipe Metternich lhe deu uma boa colocação; na capital <strong>da</strong> Áustria uniu-se<br />

em matrimônio com Luiza Mengershausen que conhecera em Paris. Em Viena


Klinkowström não tardou a relacionar-se com a família de Frederico Schlegel,<br />

que embora católica, se afeiçoava ao protestante Klinkowström. Num domingo,<br />

além de ir a missa, como é obrigação de todo católico, Frederico quis também<br />

assistir à reza e levou consigo o amigo protestante, que o acompanhou com<br />

gosto. Era um pouco tarde e, termina<strong>da</strong> a reza, o padre voltava já para a sacristia.<br />

Ao avistar o sacerdote Klinkowström abriu os olhos como que a perguntar,<br />

se estava a sonhar ou acor<strong>da</strong>do; aquele padre era o mesmo que lhe aparecera<br />

em Hamburgo, o pluvial era <strong>da</strong> mesma cor, tinha os mesmos adornos e era do<br />

mesmo feitio, fitou o rosto do sacerdote e reconheceu os mesmos traços, porém<br />

um tanto mais amáveis. Ao sair <strong>da</strong> igreja o nobre sueco interessou-se pelo<br />

sacerdote que acabava de presidir às funções, perguntou por seu nome e sua<br />

residência. Frederico Schlegel, penitente de <strong>Clemente</strong>, deu naturalmente to<strong>da</strong>s<br />

as informações, fez-lhe as melhores referências a respeito do Santo, de sorte<br />

que Klinkowström não se demorou em fazer-lhe uma visita na igreja dos Italianos,<br />

em que ele então se achava. O protestante foi recebido com to<strong>da</strong> a amabili<strong>da</strong>de<br />

e delicadeza pelo Reitor <strong>da</strong> igreja que o cativou totalmente. Como essas<br />

visitas se reproduzissem muitas vezes, teve <strong>Clemente</strong> ocasião de falar-lhe sobre<br />

a Igreja Católica, que é a única arca de salvação, sobre a falsi<strong>da</strong>de do<br />

Protestantismo e sobre a obrigação de pertencer à ver<strong>da</strong>deira Igreja de Jesus<br />

Cristo.<br />

Klinkowström, temendo ofender sua esposa que o idolatrava, não teve coragem<br />

de <strong>da</strong>r o passo decisivo, mas de lá em diante deixou de freqüentar o<br />

templo protestante; sentia gosto especial pelo culto católico na igreja dos Servitas,<br />

tomava porém cui<strong>da</strong>do em ocultar tudo isso à sua esposa. Como as mulheres<br />

são em geral desconfia<strong>da</strong>s e finas nas suas observações, esta não tardou a<br />

perceber a mu<strong>da</strong>nça em seu marido e já o supunha católico. Cheia de malícia<br />

perguntou um dia a seu esposo, porque é que não freqüentava mais o culto<br />

protestante, e porque ia todos os domingos ao templo católico. Surpreendido e<br />

desapontado com a pergunta, procurou Klinkowström um pretexto qualquer,<br />

que não lhe foi difícil encontrar: “É que amo a música, e esta lá na igreja dos<br />

Servitas é celestial e quase divina”. Embora a mulher não acreditasse muito<br />

nessas palavras do seu esposo, Klinkowström deu graças a Deus por haver<br />

encontrado tão depressa uma desculpa tão verosímil. <strong>Clemente</strong> do seu lado<br />

não insistia com o sueco, porque queria <strong>da</strong>r tempo ao tempo. Em 1813 rebentou<br />

a grande guerra com os franceses e Klinkowström com seu cunhado João Pilat<br />

teve de pegar em armas para defender a Pátria, ficando as duas jovens esposas<br />

a chorar a ausência dos maridos e a consolar-se mutuamente; nesses duros<br />

transes era <strong>Clemente</strong> o anjo consolador <strong>da</strong>quele lar. Embora protestantes,<br />

essas duas senhoras passavam os dias na oração e prática <strong>da</strong>s virtudes, para<br />

que Deus se compadecesse dos seus maridos. Para a ceia de Quinta-feira Santa<br />

prepararam-se com especial desvelo e cui<strong>da</strong>do e em chegando o grande dia,<br />

com todo o respeito se aproximaram do templo, executando a cerimônia do<br />

ritual protestante; nas orações, porém, permaneceram frias não sentindo alegria<br />

espiritual nem paz <strong>da</strong> alma. Nós católicos, compreendemos perfeitamente<br />

a causa <strong>da</strong> aridez espiritual <strong>da</strong>s duas senhoras, pois que os protestantes não<br />

têm ver<strong>da</strong>deira comunhão, nem sacerdócio como nós o temos, consagrado a<br />

Deus por um sacramento especial. Entristeci<strong>da</strong>s voltaram as duas para casa<br />

78<br />

silenciosas e cabisbaixas, sem coragem de comunicar uma à outra o que se<br />

lhes passava na alma. Em casa recomeçaram seus trabalhos costumados, até<br />

que uma interrompeu o silêncio: “Hoje tudo me enfastiou no templo; que modos<br />

grosseiros tinham os fiéis ao aproximarem-se <strong>da</strong> ceia do Senhor, fiquei indigna<strong>da</strong>!”<br />

Enquanto assim desabafavam seus corações, ouviram bater à porta; era<br />

<strong>Clemente</strong> que ia curar as duas almas. Notando a mu<strong>da</strong>nça opera<strong>da</strong> naquela<br />

casa, perguntou pela causa <strong>da</strong> tristeza inconcebível naquele dia de alegria, dia<br />

<strong>da</strong> ceia do Senhor, para a qual elas tanto se haviam preparado; as senhoras<br />

abriram os corações e não deixaram na<strong>da</strong> por contar. Foi para <strong>Clemente</strong> uma<br />

ocasião aza<strong>da</strong> para falar <strong>da</strong> insipidez do protestantismo; discorreu com entusiasmo<br />

e fogo e por fim acrescentou: “Se quiserdes a paz, fazei o que já vos tenho<br />

dito tantas vezes, despi as meias pretas 9 e renunciai ao protestantismo”. As<br />

senhoras ficaram pensativas; a Igreja Católica com suas belas cerimônias agra<strong>da</strong>va-lhes<br />

deveras, mas encontravam um grande empecilho para a sua conversão:<br />

era a confissão. Elisa, a mulher de Pilat, a sorrir, um tanto maliciosa levantou<br />

a voz e acentuou: “Mas a confissão... a confissão!” ao que S. <strong>Clemente</strong><br />

respondeu: “A confissão não vos custará a cabeça; fica por minha conta”. Experimentado<br />

na arte de dissipar temores, <strong>Clemente</strong> pôs-se a in<strong>da</strong>gar delas as<br />

circunstâncias pormenoriza<strong>da</strong>s <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, as alegrias e as tristezas que houveram<br />

no mundo etc. Percebendo que o Servo de Deus se interessava por elas,<br />

contaram muito mais do que <strong>Clemente</strong> perguntara. Termina<strong>da</strong> a conversa o<br />

Santo dirigindo-se à Elisa disse: “Que quer mais? a senhora já fez a sua confissão,<br />

pouca coisa falta ain<strong>da</strong>”. Foi água na fervura, a nobre <strong>da</strong>ma caiu em si,<br />

reconheceu que suas dúvi<strong>da</strong>s não passavam de preconceitos, estreiteza de<br />

idéias, orgulho herético; estudou ain<strong>da</strong> mais recebendo de <strong>Clemente</strong> instruções<br />

especiais, e poucas semanas depois foram as duas senhoras acolhi<strong>da</strong>s no grêmio<br />

<strong>da</strong> Igreja Católica. Luiza, a esposa de Klinkowström, tornou-se tão piedosa,<br />

que, na expressão de <strong>Clemente</strong>, poderia transportar montes em sua fé tão profun<strong>da</strong>.<br />

A alegria de Klinkowström foi indizível; ao voltar do campo de batalha<br />

abjurou, com prazer, o protestantismo nas mãos de seu amigo.<br />

Elisa e Luiza tinham ain<strong>da</strong> uma irmã solteira, por nome Augusta que, apesar<br />

de conhecer a falsi<strong>da</strong>de do protestantismo e a sublimi<strong>da</strong>de divina <strong>da</strong> Igreja<br />

Católica, não se animava a abandonar a sua religião por ser filha de um pastor<br />

protestante, cuja crença julgava dever seguir por ser ain<strong>da</strong> solteira. Sincera e<br />

muni<strong>da</strong> de boa vontade expôs to<strong>da</strong> a dificul<strong>da</strong>de a S. <strong>Clemente</strong> e mais algumas<br />

coisas que a desanimavam. A primeira dificul<strong>da</strong>de que a abatia era o dever de,<br />

como católica, adorar o papa, porque ela só adorava Deus, Criador do céu e <strong>da</strong><br />

terra, e não podia prestar essa homenagem a uma criatura, como fazem os<br />

católicos segundo o catecismo.<br />

<strong>Clemente</strong> sorriu-se, com to<strong>da</strong> paciência fê-la ver que, segundo o catecismo,<br />

nós só adoramos Deus e mais ninguém, pois que o contrário seria crime de<br />

idolatria, e que por isso, se ela se fizesse católica, não precisaria adorar o papa,<br />

mas respeitá-lo e obedecer-lhe como representante de N. Senhor. — Uma outra<br />

dificul<strong>da</strong>de impedia-lhe a entra<strong>da</strong> na Igreja Católica: não lhe era possível<br />

gostar dos paramentos com que os padres celebram por terem a forma de<br />

rabecão. O Servo de Deus revestiu-se ain<strong>da</strong> de paciência e respondeu, que<br />

isso não tinha importância e que ela podia ser católica fervorosa e achar feios e


até hediondos os paramentos, porque isso não era questão de religião, mas só<br />

de sentimentos estéticos. Uma terceira dificul<strong>da</strong>de, a maior de to<strong>da</strong>s, causavalhe<br />

espanto, não podia compreender, como é que alguém pode rezar aos Santos<br />

e implorar-lhes a proteção; achava que era uma ingratidão monstruosa para<br />

com Deus, depositar em outros e não nele a sua confiança. Na hora não quis o<br />

Servo de Deus <strong>da</strong>r-lhe uma explicação completa e teológica sobre a veneração<br />

dos Santos, contentou-se em dizer-lhe: “Se a senhora não quiser invocar os<br />

Santos, não os invoque; isso não impede que a senhora seja católica”.<br />

Augusta estava satisfeita, não tinha já dúvi<strong>da</strong>s em seu espírito: não precisava<br />

adorar o papa, nem louvar os paramentos, nem rezar aos Santos, e podia<br />

assim mesmo ser católica como suas duas irmãs. Em pouco tempo abjurou a<br />

heresia e, anos depois, entrou no convento <strong>da</strong>s Visitandinas onde professou e<br />

morreu santamente. — Enquanto tudo isso se passava Pilat, achava-se na França<br />

e ignorava o ocorrido em Viena. Ao voltar estranhou a mu<strong>da</strong>nça, mas não se<br />

perturbou; embora católico de batismo, pouco ou na<strong>da</strong> se incomo<strong>da</strong>ra com a<br />

religião, nunca sofrera dor de cabeça nem reumatismo nos joelhos por causa<br />

de orações demasia<strong>da</strong>s, nem dor de estômago por rigorosos jejuns; era um<br />

desses que acham a religião boa para as mulheres que não têm o que fazer e<br />

para as crianças que se deixam facilmente atemorizar, mas nunca para os homens,<br />

espíritos fortes, que só crêem o que vêem, e que não têm tempo a perder<br />

nas igrejas, reuniões etc; achava que to<strong>da</strong> a religião é boa, contanto que se seja<br />

um homem honesto. Essa idéia que bebera na maçonaria, acompanhou-o sempre,<br />

fazendo dele um adorador <strong>da</strong> humani<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cômo<strong>da</strong>. Sua esposa<br />

tornou-se-lhe anjo <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> e incansável apóstola. E Pilat a idolatrava! Suplicou-lhe<br />

com lágrimas nos olhos, renunciasse à maçonaria que sob o manto <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de e filantropia, só tem por fim exterminar a Igreja, derrubar os altares<br />

e os tronos e sobre as suas ruínas levantar o trono <strong>da</strong> revolução, pediu-lhe que<br />

se tornasse católico prático, para assim possuir a paz <strong>da</strong> alma. Aos pedidos<br />

pessoais uniu orações fervorosas e por fim levou-o ao Santo para que o instruísse<br />

e arrancasse <strong>da</strong>s garras <strong>da</strong> maçonaria. <strong>Clemente</strong> não tardou a ouvi-lo de<br />

confissão, tomou-lhe as insígnias <strong>da</strong> maçonaria: o avental, a colher, o diploma.<br />

Desde esse dia Antônio Pilat foi um dos mais assíduos penitentes de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>,<br />

e isso não obstante a posição nobre que ocupava na quali<strong>da</strong>de de secretário<br />

do príncipe Metternich.<br />

Para se fazer idéia <strong>da</strong> probi<strong>da</strong>de de Pilat, basta ouvir o que escreveu dele<br />

seu confessor depois de <strong>Clemente</strong>: “Para ir ao escritório, Antônio Pilat tinha de<br />

passar perto <strong>da</strong> Bolsa; um dia chegou-se perto dele um cambista que lhe sussurrou<br />

alguma coisa ao ouvido. Prometeu-lhe enorme quantia, se, quando passasse<br />

no dia seguinte, lhe dissesse uma palavra ao ouvido, ain<strong>da</strong> que fosse só<br />

‘Bom dia’. Embora com essa única palavra pudesse ganhar uma boa fortuna,<br />

Pilat não a quis pronunciar para não concorrer para um manejo injusto. Compreendeu<br />

que o homem se queria servir <strong>da</strong> palavra, que ele, secretário do príncipe<br />

Metternich, lhe diria com ar misterioso para lançar uma notícia de sensação<br />

a assegurar assim o êxito de uma especulação arrisca<strong>da</strong>”.<br />

Na casa de Pilat encontrou-se <strong>Clemente</strong> com um senhor muito conhecido<br />

nas altas ro<strong>da</strong>s sociais, por nome Frederico Schlosser, aparentado com o célebre<br />

Goethe. Poliglota e poeta, escreveu numerosas obras sobre poesia, arte e<br />

79<br />

política, merecendo ser encarregado pela ci<strong>da</strong>de de Frankfurt de importantes<br />

negócios no congresso de Viena. O caráter de Schlosser era nobre, e seu coração<br />

bondoso e amigo dos pobres e necessitados. Era protestante somente por<br />

ter nascido e ser educado na heresia. Sua esposa, francesa e calvinista, levava<br />

o belo nome de Sofia. Deus chamou-os à Igreja por caminhos bem diversos dos<br />

outros. Sofia notou logo com bastante dissabor que as pessoas, que a rodeavam,<br />

não tinham ver<strong>da</strong>deira paz, nem encontravam alegria para o seu coração,<br />

embora fossem abasta<strong>da</strong>s e se pudessem conceder todos os gozos imagináveis.<br />

Compreendendo que a paz <strong>da</strong> alma não se compra com dinheiro nem se<br />

aspira como o ar, por ser ela uma flor que só nasce no jardim do coração, pôsse<br />

a refletir sobre a causa de ela não nascer nos corações protestantes. Frederico<br />

também carecia dessa tranqüili<strong>da</strong>de íntima e de bom grado <strong>da</strong>ria tudo para<br />

consegui-la. Desanima<strong>da</strong> pôs-se Sofia a rezar e a freqüentar com mais assidui<strong>da</strong>de<br />

o templo calvinista; porém debalde. Em Viena, na residência de Pilat, teve<br />

ocasião de considerar a estranha visão que tanto procurava; lá foi-lhe <strong>da</strong>do<br />

contemplar um homem de cujos olhos transparecia a calma e a tranqüili<strong>da</strong>de<br />

d’alma: era <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, que sempre a sorrir possuía o condão de atrair os<br />

corações com suas palavras serenas e seus modos delicados. Sofia pôs-se a<br />

estu<strong>da</strong>r aquele sacerdote católico e não tardou a descobrir que aquela paz era<br />

o efeito do amor de Deus e <strong>da</strong> dedicação à Santa Igreja; assistiu às pregações<br />

do Servo de Deus em Sta. Úrsula que lhe satisfizeram plenamente tanto pela<br />

simplici<strong>da</strong>de do fraseado como pela profundeza <strong>da</strong> argumentação. Um dia ouviu<br />

<strong>Clemente</strong> sobre o seu trema predileto: a Igreja Católica, sua beleza celeste,<br />

e glória admirável, salientando-a com a destreza de seu pincel de mestre e as<br />

chamas <strong>da</strong> sua fé; na peroração disse o Santo: “Conhecem-na, porém, só aqueles<br />

que nela vivem e que têm a felici<strong>da</strong>de de ser seus filhos”. Sofia sentiu-se toca<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> graça, foi ter com <strong>Clemente</strong>, levou-lhe também seu esposo, e depois de<br />

instruídos foram recebidos os dois no mesmo dia, na Igreja Católica. Tornaramse<br />

amigos do Servo de Deus, que muitas vezes os convidou ao café, servindoos<br />

por suas próprias mãos e entretendo-os familiarmente, de sorte que mais<br />

tarde Sofia pôde afirmar, nunca ter tido horas tão felizes na vi<strong>da</strong> como aquelas<br />

que passaram em companhia de <strong>Clemente</strong>. O Santo sacrificava seu tempo atendendo<br />

a essa família, porque previa o grande bem espiritual que dos seus esforços<br />

proviria às almas. E de fato, essa senhora tornou-se benemérita do culto<br />

religioso pelas inúmeras poesias sacras que traduziu do italiano, espanhol, português,<br />

francês, inglês etc. Essas poesias, belíssimas na forma, foram publica<strong>da</strong>s<br />

por ma<strong>da</strong>me Schlosser em 7 volumes.<br />

Entre as muitas almas reconduzi<strong>da</strong>s por <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> ao seio <strong>da</strong> Igreja<br />

Católica, contava-se a esposa de A<strong>da</strong>m Müller, célebre filósofo, estadista consumado,<br />

e homem de confiança de Metternich, que o encarregara de negócios<br />

e cargos importantíssimos. O próprio A<strong>da</strong>m Müller no meio de tantas honrarias<br />

conservou-se sempre humilde e deixou-se guiar em tudo como uma criança por<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, seu diretor espiritual. Sua esposa porém era luterana; ao ouvir<br />

as pregações e instruções do Servo de Deus começou a admirar a beleza <strong>da</strong><br />

Igreja e a compreender o erro do protestantismo, mas receava passar ao catolicismo<br />

pelo temor de uma bagatela que lhe causava extraordinária impressão:<br />

temia a penitência que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> lhe iria impor na confissão por ela se


achar tanto tempo no luteranismo. Chegado o dia determinado para a recepção<br />

desse sacramento, fez um esforço supremo, e confessou-se com todo o arrependimento<br />

e sinceri<strong>da</strong>de. <strong>Clemente</strong>, como de costume, pôs-se a <strong>da</strong>r-lhe conselhos<br />

e instruções para a sua vi<strong>da</strong> prática; de tudo isso porém ela na<strong>da</strong> percebeu,<br />

tão preocupa<strong>da</strong> estava com a penitência horrível que iria receber. Qual não<br />

foi seu espanto, quando o confessor lhe deu uma penitência insignificante, tão<br />

pequena, que ela mesmo julgou pouca para tantos pecados e pediu uma maior.<br />

<strong>Clemente</strong> porém lhe respondeu: “Aceite também por penitência aquilo que<br />

N. Senhor lhe vai man<strong>da</strong>r”. Ma<strong>da</strong>me Müller levantou-se consola<strong>da</strong>; ao chegar<br />

porém em casa foi acometi<strong>da</strong> de uma dor de dentes tão agu<strong>da</strong> que lhe arrancou<br />

lágrimas; lembra<strong>da</strong> <strong>da</strong>s palavras do seu confessor, aceitou com gosto mais aquela<br />

penitência, beijando a mão de Deus que a castigava.<br />

80<br />

CAPÍTULO XVI<br />

O sábio Diretor <strong>da</strong>s Ursulinas<br />

Que é a Religiosa — Da chácara ao convento — Deus ilumina os confessores<br />

— Reforma as Ursulinas — Os trabalhos <strong>da</strong>s religiosas — A Religiosa tíbia<br />

— A vontade de Deus — A obediência — A Religiosa nervosa — A vassoura<br />

usa<strong>da</strong> — A Irmã tenta<strong>da</strong> — A bruaca velha — As armas <strong>da</strong> mulher.<br />

Entre as pessoas que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> conservava guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s no fundo de<br />

seu grande coração e com as quais mais se entretinha, eram as Ursulinas, sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, as primeiras. E com razão, pois que via em ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s religiosas a<br />

esposa, que Jesus se escolhera entre milhares, tirando-a do meio do mundo<br />

sedutor, e introduzindo-a em sua casa e santuário.<br />

Ca<strong>da</strong> convento era, a seus olhos, um templo e ca<strong>da</strong> alma uma pedra preciosa<br />

engasta<strong>da</strong> nesse santuário.<br />

É por essa razão que ele, sempre que passava por perto de um convento<br />

de religiosas, inclinava duas vezes a cabeça: uma para sau<strong>da</strong>r o Redentor oculto<br />

no Santíssimo Sacramento, e outra, por respeito às esposas de Jesus que se<br />

santificam no claustro. Das religiosas consagra<strong>da</strong>s a Deus tinha mais estima do<br />

que dos vasos sagrados. A Religiosa era, no seu modo de encarar, um ostensório<br />

vivo, preparado pelo próprio Deus para nele habitar com suas virtudes e com<br />

sua graça. A Religiosa é também uma heroína que possuiu força bastante para<br />

desprezar o mundo com seus encantos, alegrias e esperanças, e levar uma<br />

vi<strong>da</strong> de pobreza, desprendimento e abnegação na casa de Deus. <strong>Clemente</strong><br />

tinha gosto especial em falar sobre a virgin<strong>da</strong>de, consagra<strong>da</strong> a Deus por voto,<br />

sua excelência e beleza angélica. “A vi<strong>da</strong> claustral é uma graça assinala<strong>da</strong>,<br />

dizia ele, e quem nesse ponto conheceu claramente a vontade de Deus, deve<br />

segui-la mesmo contra a vontade dos pais ou parentes”. Para prova disso alegava<br />

a palavra de Jesus à sua Mãe que, durante três dias o procurara chorosa<br />

nas ruas de Jerusalém: “Não sabíeis que eu devo estar naquilo que é do meu<br />

Pai?” Falando a uma Religiosa disse um dia. “Não sabeis como sois felizes; na<br />

hora <strong>da</strong> morte compreendereis o que é a graça <strong>da</strong> vocação, em cuja comparação<br />

as grandezas <strong>da</strong> terra são um puro na<strong>da</strong>”.<br />

Do alto do púlpito falava sempre com fogo sobre a vocação religiosa, que<br />

era assunto desconhecido em outros púlpitos naquele tempo. Tendo de pregar,<br />

um dia, na igreja <strong>da</strong>s Visitandinas, depois de ler o que o catecismo romano diz<br />

sobre os conselhos evangélicos, falou sobre a vi<strong>da</strong> religiosa com tanta unção e<br />

acerto que as religiosas choraram de consolação e comoção.<br />

To<strong>da</strong>s as vezes que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> percebia sinais certos de vocação em<br />

uma alma, aju<strong>da</strong>va-a com seus conselhos e trabalhos para que com mais pres-


sa e segurança, conseguisse entrar no convento e consagrar-se inteiramente a<br />

Deus. <strong>São</strong> inúmeras as almas que o Servo de Deus enviou aos conventos <strong>da</strong>s<br />

Ursulinas, Visitandinas, Carmelitas etc. etc. não só <strong>da</strong>s classes populares, mas<br />

ain<strong>da</strong> <strong>da</strong> alta aristocracia e até <strong>da</strong> nobreza. Quando se tratava de donzelas<br />

pobres, ele mesmo <strong>da</strong>va os passos necessários, arranjava-lhes o lugar e facilitava-lhes<br />

a entra<strong>da</strong>.<br />

Uma donzela pobre dos arrabaldes mais afastados de Viena ia diariamente<br />

<strong>da</strong> chácara ao centro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de onde, sobre uma mesinha, colocava os ovos, a<br />

manteiga e a gordura, e lá ficava à espera de compradores. Fazia isso por necessi<strong>da</strong>de,<br />

pois que precisava ganhar a vi<strong>da</strong>, mas o desejo ardente de seu<br />

coração era entregar-se e consagrar-se inteiramente a Deus na vi<strong>da</strong> religiosa;<br />

sentia uma santa inveja <strong>da</strong>s Ursulinas que moravam lá perto, e suspirava por<br />

encontrar um Diretor espiritual prudente e caridoso, que a quisesse introduzir<br />

na casa de Deus. Aconteceu passar por ali um sacerdote venerando com um<br />

gorrinho na cabeça, grave, sério, sem olhar para ninguém; notava-se que era<br />

um Santo. A donzela, quando o viu, sentiu em sua alma uma voz que lhe dizia:<br />

“A esse deves manifestar o anhelo do teu coração, porque ele te levará ao<br />

convento”. A coisa porém não era tão fácil. A vendedora de ovos nunca vira o<br />

Santo, não sabia quem era aquele sacerdote, nem onde morava, nem para<br />

onde ia: a fisionomia do padre, porém, ficou bem impressa em sua memória.<br />

Dois anos depois, na quinta-feira santa de 1818 foi a donzela, casualmente,<br />

ouvir missa na Igreja de Sta. Úrsula. Exultou quando no altar viu o sacerdote<br />

que conhecera pela primeira vez há dois anos atrás; procurou-o depois no confessionário,<br />

abriu-lhe o coração e manifestou-lhe o seu desejo ardente. <strong>Clemente</strong><br />

prometeu auxiliá-la, mas querendo primeiro certificar-se <strong>da</strong> sua vocação,<br />

mandou-lhe mu<strong>da</strong>r-se para a ci<strong>da</strong>de, onde lhe arranjou um lugar, instruiua<br />

a um ano inteiro na vi<strong>da</strong> religiosa, e convencendo-se que a moça era chama<strong>da</strong><br />

por Deus para o convento, fê-la entrar nas Visitandinas.<br />

Às vezes sucedia que alguma penitente do Santo, sentindo a voz de Deus<br />

que a chamava, não tinha coragem de participar a seu Diretor esse chamamento<br />

divino; nesses casos Deus mesmo incumbia-se de revelar miraculosamente<br />

a seu Servo a vocação <strong>da</strong>s penitentes. Um belo dia uma tal Teresa, ouvindo um<br />

sermão de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> sentiu-se fortemente toca<strong>da</strong> <strong>da</strong> graça e do desejo de<br />

entrar no convento <strong>da</strong>s Ursulinas.<br />

Prelibando as doçuras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> religiosa, ao chegar em casa ajoelhou-se<br />

aos pés de seu pai pedindo-lhe permissão de seguir a voz de Deus que a queria<br />

para sua esposa. O pai era um <strong>da</strong>queles que julgam serem os conventos uma<br />

espécie de hospício para as mulheres fanáticas e histéricas, um recolhimento<br />

de pessoas imbecis ou asilo de mulheres sem préstimo; franziu sobr’olhos e<br />

declarou que, enquanto vivesse, não lhe <strong>da</strong>ria a licença pedi<strong>da</strong>. A donzela calou-se<br />

julgando haver cumprido o seu dever e nem mais cogitou em entrar no<br />

convento. A sua consciência porém não emudeceu, a voz de Deus fazia-se<br />

ouvir sempre mais clara. Teresa não sabia o que fazer: se obedecer ao pai ou a<br />

Deus que a chamava; em vez de pedir conselho ao confessor expondo-lhe to<strong>da</strong><br />

a dificul<strong>da</strong>de, preferiu conservar-se cala<strong>da</strong>. Deus porém não a desamparou; de<br />

modo sobrenatural iluminou o confessor a respeito <strong>da</strong> pobre donzela; — quando<br />

esta foi ao confessionário, em lugar dos conselhos disse-lhe <strong>Clemente</strong> a<br />

81<br />

queima-roupa: “A senhora deve ser Visitandina, eu mesmo lhe arranjarei um<br />

lugar”. Essa palavra bastou para enchê-la de coragem; não temendo já as ameaças<br />

paternas, foi para onde Deus a queria e tornou-se uma piedosa e santa<br />

Religiosa na Visitação.<br />

Sempre que o Servo de Deus enviava alguma donzela ao convento, fazia<br />

recomen<strong>da</strong>ções especiais à Superiora para que velasse constantemente sobre<br />

ela e a tornasse uma santa esposa de Jesus, guar<strong>da</strong>ndo a inocência e a boa<br />

vontade do coração. A uma que ia entrar no convento, deu o Santo uma carta<br />

com os seguintes dizeres à Superiora: “O meu desejo é que esta donzela cresça<br />

sempre na inocência e pie<strong>da</strong>de em que foi educa<strong>da</strong>; que ela cultive em si<br />

mesma a perfeição <strong>da</strong> sua sublime vocação, e depois procure implantar também<br />

nas demais irmãs o mesmo zelo e os mesmos sentimentos, para assim<br />

conduzi-las to<strong>da</strong>s para Deus”. Em se tratando do convento <strong>da</strong>s Ursulinas, <strong>Clemente</strong><br />

era incansável. Nos sete anos, que exerceu o cargo de Reitor <strong>da</strong> Igreja e<br />

Diretor <strong>da</strong>s Irmãs, reformou completamente esse jardim do Senhor. Em 1813 a<br />

disciplina regular achava-se quase to<strong>da</strong> em completa decadência devido às<br />

circunstâncias desfavoráveis do tempo. <strong>Clemente</strong> bateu-se como um herói para<br />

restabelecer no claustro a antiga disciplina, e não descansou enquanto não<br />

conseguiu introduzir no convento a observância regular. Como é natural isto<br />

não se deu sem grandes dificul<strong>da</strong>des e declara<strong>da</strong> oposição <strong>da</strong>quelas irmãs,<br />

que não queriam ouvir falar de reforma.<br />

<strong>Clemente</strong> não se intimidou com os obstáculos nem se alterou com as<br />

incriminações de algumas irmãs. Com paciência e cari<strong>da</strong>de conseguiu ganhar<br />

os corações de to<strong>da</strong>s as religiosas para Nosso Senhor, e, no fim recebeu maiores<br />

provas de gratidão justamente <strong>da</strong>quelas que antes mais se declararam contra<br />

ele.<br />

Se uma ou outra vez usava de rigor, fazia-o tão somente por amor <strong>da</strong> observância<br />

regular.<br />

Quanto mais santo é o estado a que Deus chama uma pessoa, maiores<br />

são os deveres que lhe impõe. Na fronte <strong>da</strong> Religiosa, eleva<strong>da</strong> à digni<strong>da</strong>de de<br />

esposa do Rei dos reis, coloca uma coroa de espinhos, por vezes bem penetrantes,<br />

sobre os seus ombros uma cruz pesa<strong>da</strong>, tornando-a semelhante a Jesus<br />

Cristo. A donzela não entra no convento para gozar ou levar uma vi<strong>da</strong> cômo<strong>da</strong>,<br />

mas para se santificar e subir a montanha escabrosa <strong>da</strong> perfeição — e<br />

isto não só de passagem, um ou outro dia, mas constantemente, sem tréguas,<br />

de dia e de noite. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, a personificação <strong>da</strong> energia, gostava de desenvolver<br />

esses temas e explicar essas ver<strong>da</strong>des às suas religiosas. Ao <strong>da</strong>r o<br />

hábito, uma vez, a quatro irmãs disse: “Uma Religiosa deve unir em si as duas<br />

irmãs <strong>Maria</strong> e Marta, isto é a oração e o trabalho; por amor dessas duas irmãs<br />

Jesus ressuscitou a Lázaro; por meio <strong>da</strong> oração e do trabalho devem as Virgens<br />

consagra<strong>da</strong>s a Deus, contribuir para a ressurreição dos mortos pelo pecado,<br />

isto é, dos pecadores, para a vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> graça, porque o Senhor, que ama as suas<br />

Esposas, não deixará de atender as suas ardentes súplicas; mesmo entre os<br />

pagãos romanos eram as virgens alvo de honrarias, de sorte que o governo<br />

chegava a perdoar a um criminoso pelo qual uma virgem intercedesse; quanto<br />

mais valerão as súplicas de uma esposa de Jesus Cristo junto ao Altíssimo em<br />

favor dos pecadores”.


A oração contínua, as meditações longas são um trabalho pesado, mormente<br />

no convento onde elas se repetem diariamente a vi<strong>da</strong> inteira; e entretanto<br />

a oração não é o único trabalho <strong>da</strong>s religiosas; no convento <strong>Maria</strong> deve muitas<br />

vezes ceder o lugar a Marta. Há religiosos que consomem o dia no confessionário<br />

a perdoar pecados, ou no púlpito a converter os pecadores, ou à secretária<br />

a cultivar as ciências, achando somente à tarde uma parcela de tempo<br />

para lançarem um rápido olhar para sua própria alma. Quantas religiosas, de<br />

manhã até à noite, cansam-se nas aulas instruindo as crianças, ou velam a<br />

noite inteira à cabeceira dos doentes nos hospitais, a combater o sono e o<br />

cansaço em seus membros entorpecidos pelas longas vigílias! quantas Esposas<br />

de Cristo por seus esforços heróicos e labutações atura<strong>da</strong>s em prol <strong>da</strong><br />

humani<strong>da</strong>de sofredora, se têm lançado, na flor dos anos, aos braços <strong>da</strong> inexorável<br />

morte! E mesmo que uma Religiosa não tivesse de sujeitar-se a nenhum desses<br />

trabalhos físicos ou intelectuais, nunca poderia esquecer, sob pena de condenação,<br />

o mais penoso de todos: o trabalho <strong>da</strong> santificação própria: domar as<br />

paixões, combater os vícios, cultivar as virtudes. Esse trabalho aturado e penoso<br />

só pode ser feito por almas generosas e fortes, a quem Deus chamou a sua<br />

casa. A vi<strong>da</strong> claustral exige abnegação e pressupõe grande energia espiritual e<br />

vigilância constante — não admira pois que uma ou outra alma, menos forte, se<br />

sinta esmorecer e abandone seu Deus voltando-lhe as costas. Outras, cansa<strong>da</strong>s<br />

do combate, permanecem, sim, no convento, mas o coração vaga pelo<br />

mundo, caem na tibieza causando prazer a Satanás que em seus corações<br />

deposita os germes <strong>da</strong>s imperfeições, <strong>da</strong> impaciência, hipocrisia, inveja, ciúmes,<br />

murmurações, loquaci<strong>da</strong>de, apego às coisas do mundo, ao amor próprio,<br />

à vanglória etc. Embora o mundo não tenha direito de exprobrar coisa alguma a<br />

esses abusos que não o prejudicam, porquanto uma Religiosa tíbia é sempre<br />

melhor do que uma pecadora no mundo, to<strong>da</strong>via o Esposo divino contrista-se,<br />

subtrai muitas vezes sua luz divina, retira seu braço, diminui as consolações<br />

espirituais, <strong>da</strong>s quais a Religiosa tíbia se torna indigna por suas imperfeições e<br />

infideli<strong>da</strong>des, e cheio de amargura lhe repete as palavras aterradoras: “Oxalá<br />

fosses quente ou fria!” (Ap 8,15). Abandona<strong>da</strong> pelo Esposo, a pobre Religiosa à<br />

beira do precipício, sem luz divina, sem o auxílio do céu, facilmente resvala para<br />

o abismo e precipita-se no pecado mortal. Nesse deplorável estado a mísera<br />

debate-se sem consolo, não tem as alegrias do mundo a que renunciou no dia<br />

<strong>da</strong> sua profissão, nem as consolações do céu, porque é infiel a seu Esposo.<br />

Como é triste uma Religiosa tíbia, suspensa entre o céu e a terra! Ela deve ser<br />

pobre, em virtude do voto, e nutre tantos desejos de possuir... deve ser pura,<br />

porém não goza as carícias do amor divino... deve obedecer, e não sente o fogo<br />

do céu... deve rezar e não sente consolação! pobrezinha, deve abnegar-se,<br />

porém sem merecimentos, vive sem esperança e morre se ma graça de Deus!<br />

To<strong>da</strong> essas ver<strong>da</strong>des eram expostas por <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> com animação e<br />

calor. No dia de sua nomeação para confessor <strong>da</strong>s Ursulinas, foi felicitado por<br />

um Barão, pela honrosa colocação obti<strong>da</strong>, na qual lhe era <strong>da</strong>do fazer tanto bem<br />

às almas puras, às Esposas de Jesus Cristo. <strong>Clemente</strong>, porém, meneou a cabeça<br />

e respondeu com serie<strong>da</strong>de: “Vós me felicitais por um cargo que eu temo;<br />

quisera antes ouvir de confissão a metade do exército austríaco do que a dez<br />

religiosas tíbias”. Quanta ver<strong>da</strong>de não encerra essa palavra! E de fato, entre<br />

82<br />

tantos milhares de sol<strong>da</strong>dos que perfazem o número <strong>da</strong> metade do exército<br />

austríaco, quantos blasfemadores, profanadores sacrílegos dos lugares santos,<br />

ladrões, libertinos, hereges, perjuros, beberrões! e por isso também quantos<br />

crimes e pecados, que reunidos num só mula<strong>da</strong>r, talvez o tornassem mais alto<br />

do que a Torre de Babel!... e entretanto o Servo de Deus tinha mais esperança<br />

na salvação deles do que na de dez religiosas tíbias! E quando em um convento<br />

existem, ain<strong>da</strong> que poucas, religiosas tíbias, a comuni<strong>da</strong>de inteira corre perigo<br />

de ser infecciona<strong>da</strong> pelo espírito mun<strong>da</strong>no, que a porá a perder. É certo que o<br />

mosteiro <strong>da</strong>s Ursulinas não estava em decadência completa, mas também é<br />

certo que lá penetraram, com o espírito <strong>da</strong> época, os bacilos do josefismo relaxando<br />

a disciplina claustral.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> que em uma de suas expressões fortes disse: “Eu tenho um<br />

faro católico”, percebeu imediatamente o qual e descobriu sua origem e causa;<br />

pôs-se a agir com energia pouco se incomo<strong>da</strong>ndo com as palavras, por vezes<br />

pesa<strong>da</strong>s, que teve de ouvir dentro e fora do convento, e conseguiu restabelecer<br />

o antigo espírito, o amor a Jesus Cristo e a observância regular em todos os<br />

pontos.<br />

Por meio de numerosas conferências ascéticas às religiosas, o Servo de<br />

Deus procurava torná-las dignas do seu divino Esposo, e proporcionar-lhes alegrias<br />

e consolações em seu convento. Uma vez falando <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana, <strong>da</strong> sua<br />

brevi<strong>da</strong>de e importância para a salvação, instou com elas a que aproveitassem<br />

o tempo... “porque o tempo, disse ele, é um tesouro infinitamente precioso, um<br />

bem inestimável; quem se aproveita bem do tempo, ganha o céu e o próprio<br />

Deus”. Embora seja o tempo uma criatura de Deus, que é o Senhor absoluto de<br />

tudo o e se acha infinitamente acima de todo criado, <strong>Clemente</strong> punha o próprio<br />

Deus em paralelo como tempo dizendo às Ursulinas: “O tempo vale tanto como<br />

o seu Autor divino, porque com ele podemos, por assim dizer, comprar o próprio<br />

Deus, se fizermos bom uso do tempo. Deus mesmo será a nossa recompensa<br />

no céu”.<br />

Homem eminentemente prático, não se perdia em teorias ou belas frases a<br />

que não corresponde reali<strong>da</strong>de, e por isso explicava também às religiosas o<br />

modo de empregarem bem o tempo, e de usarem desse capital para dele perceberem<br />

os maiores juros possíveis, coisa que não é difícil no convento. A ordem<br />

do dia no claustro é a vontade de Deus, e executá-la com fideli<strong>da</strong>de é<br />

merecer copiosos juros de merecimentos e de virtudes, porque a vontade divina<br />

deve ser sempre a norma <strong>da</strong> nossa vi<strong>da</strong>, a única guia do nosso procedimento;<br />

as religiosas não devem ter vontade própria por ser contrária à de Deus, que<br />

fala interiormente à nossa alma, ou exteriormente pela boca dos Superiores,<br />

que são para nós os representantes de Deus. E como as religiosas a isto se<br />

obrigam por um voto especial, o <strong>da</strong> obediência, <strong>Clemente</strong> repetia-lhes constantemente:<br />

“Não sejais voluntariosas, mas obedecei sempre em tudo!” “Até a morte,<br />

disse ele em outra ocasião, é mister obedecer; é preferível morrer a desobedecer.<br />

Se a uma Religiosa fosse <strong>da</strong>do escolher entre a morte e a desobediência<br />

a qualquer preceito do Superior, não deveria hesitar em sacrificar a própria<br />

vi<strong>da</strong>, que é o melhor dos bens terrenos, para não ser infiel a Deus. A morte seria<br />

um sacrifício e holocausto agradável ao Eterno, a desobediência porém um<br />

pecado; ora é muito mais nobre sacrificar-se que pecar; a morte pela obediên-


cia é um martírio que abre as portas do céu. Não terá dificul<strong>da</strong>de em obedecer<br />

a Religiosa ao contemplar seu divino Esposo que não quis outro epitáfio sobre<br />

seu sepulcro senão a afirmação de que Ele foi obediente até à morte, sim até a<br />

morte <strong>da</strong> cruz”.<br />

Como a hera entrança<strong>da</strong> à estaca cresce viçosa arrostando os furacões e<br />

as tempestades, a alma obediente torna-se grande e forte, resistindo sem dificul<strong>da</strong>de<br />

aos ven<strong>da</strong>vais <strong>da</strong>s paixões, atirando-se, arroja<strong>da</strong>, para o alto <strong>da</strong> perfeição<br />

e cantando vitórias e mais vitórias, como o afirma o Espírito Santo; torna-se<br />

tão forte, que vence o coração de Deus, a fortaleza substancial. Um dia ordenou<br />

<strong>Clemente</strong> a uma <strong>da</strong>s Irmãs que rezasse uma Ave-<strong>Maria</strong> pela conversão de um<br />

pecador que parecia obstinado. A Religiosa, achando que uma Ave-<strong>Maria</strong> seria<br />

pouca coisa para um efeito tão importante como é a conversão de um pecador,<br />

ofereceu-se a recitar mais Ave-<strong>Maria</strong>s naquela intenção. <strong>Clemente</strong> porém respondeu-lhe:<br />

“As almas que pelo voto <strong>da</strong> obediência sacrificaram a vontade própria,<br />

rezam com mais fruto, obedecendo, do que fazendo a sua vontade e seguindo<br />

os seus caprichos”. Quem faz a vontade de Deus merece ser por Ele<br />

atendido mesmo que faça uma oração tão breve como é a Ave-<strong>Maria</strong>.<br />

Em Sta. Úrsula havia uma irmã de bom coração, de muito bom espírito e,<br />

em geral, de muito belas quali<strong>da</strong>des, mas geniosa, de sangue quente que não<br />

suportava a menor contradição nem opinião alguma contrária à sua; quando<br />

contradita por alguém, desfazia-se em palavras pouco edificantes. Entre ela e<br />

uma outra Irmã levantou-se, um dia, forte discussão, onde as palavras jorravam<br />

com eloqüência espantosa, tornando-se sempre mais altas e fortes. Nesse solene<br />

e animado bate-boca, entrou <strong>Clemente</strong> que não ficou na<strong>da</strong> edificado com<br />

tais desabafos contrários à cari<strong>da</strong>de. As duas interromperam instantaneamente<br />

a batalha envergonhando-se do Diretor espiritual, que depois de in<strong>da</strong>gar a causa,<br />

dirigiu-se à Irmãzinha nervosa, fez-lhe um sermão em regra, <strong>da</strong>ndo-lhe de<br />

penitência a proibição de comungar o dia seguinte, porque a ninguém é permitido<br />

receber Jesus com rancor e ódio no coração. A Irmã, longe de se irritar e<br />

perturbar com a repreensão, aceitou humildemente o castigo, de olhos baixos,<br />

sem proferir uma única palavra de queixa ou desculpa. O Santo edificado com a<br />

virtude heróica dirigiu um olhar complacente para a Irmã, perdoou-lhe tudo,<br />

tirou a proibição que acabava de fazer, e em recompensa de sua obediência,<br />

permitiu-lhe receber mais uma comunhão além <strong>da</strong>s permiti<strong>da</strong>s pela Regra.<br />

<strong>Clemente</strong> inculcava a obediência sobretudo às noviças, porque sabia que,<br />

de pequenino se torce o pepino.<br />

Aprouve-lhe <strong>da</strong>r uma vez às noviças o seguinte enigma em forma de pergunta:<br />

“Qual é a melhor noviça?” As respostas foram certamente edificantes e<br />

belas: “A que mais reza” — “a que melhor cumpre sua Regra” — “a que vive<br />

contente no convento” — “a que comunga muitas vezes” — “a que faz amiúde o<br />

exame de consciência” etc. Como nenhuma acertasse com a solução deseja<strong>da</strong>,<br />

respondeu por elas o Servo de Deus: “A melhor noviça é aquela que, obedecendo<br />

com humil<strong>da</strong>de se sente feliz quando, qual vassoura usa<strong>da</strong>, é lança<strong>da</strong> a um<br />

canto <strong>da</strong> casa”.<br />

A uma pessoa pouco entendi<strong>da</strong> em vi<strong>da</strong> espiritual isso parecerá talvez um<br />

rebaixamento ignóbil e indigno; ser o homem comparado a uma coisa tão vil<br />

como é a vassoura, que se usa nos mais baixos serviços <strong>da</strong> casa. Entretanto<br />

83<br />

na<strong>da</strong> mais acertado do que essa comparação. A vassoura, antes de colhi<strong>da</strong> e<br />

enfeixa<strong>da</strong>, lá fora se elevava orgulhosa a receber as homenagens e os beijos<br />

dos zéfiros e os banhos de luz <strong>da</strong> aurora, e, depois de presa a um cabo, em um<br />

canto atrás <strong>da</strong> porta, jaz sem o direito de permanecer no salão mais nobre; e lá<br />

no canto tem de esperar até que a última <strong>da</strong>s emprega<strong>da</strong>s a tire <strong>da</strong> sua prisão,<br />

porque a dona <strong>da</strong> casa se acanha de tocar nela com medo de se manchar; e<br />

essa emprega<strong>da</strong> dela não se serve para os mais nobres empregos, mas para<br />

recolher o lixo, varrer as imundícias, e executar outros serviços semelhantes;<br />

terminado o trabalho, a vassoura não recebe palavra de gratidão e reconhecimento,<br />

nem ninguém se lembra de lhe tributar louvores; a cria<strong>da</strong> atira-a para o<br />

canto, onde antes se achava e ela não tem direito de se queixar, mas só de<br />

obedecer cala<strong>da</strong>; quando já não pode mais prestar serviços, é lança<strong>da</strong> a um<br />

mula<strong>da</strong>r ou atira<strong>da</strong> ao fogo. — Como a vassoura deve ser a noviça do convento,<br />

por mais nobre e eleva<strong>da</strong> que tenha sido no mundo a sua digni<strong>da</strong>de ou ascendência<br />

sobre os outros; só assim poderá ser boa noviça e prestar para o convento.<br />

<strong>Clemente</strong> nessa comparação não quer que as religiosas sejam vis como<br />

as vassouras, mas que tenham intenção e desejo de ser trata<strong>da</strong>s como elas,<br />

com to<strong>da</strong> a submissão e humil<strong>da</strong>de; — somente com esse desprendimento <strong>da</strong><br />

vontade e do amor próprio é que a alma se sentirá ver<strong>da</strong>deiramente feliz na<br />

casa de Deus. “Se alguém quiser vir após mim, abnegue-se a si próprio” disse o<br />

divino Salvador. Isso naturalmente refere-se exclusivamente aos sentimentos e<br />

disposições <strong>da</strong>s noviças, porquanto às Superioras impõe Deus o gravíssimo<br />

dever de tratar suas súditas com todo carinho e amor, de auxiliá-las com o<br />

desvelo de uma terna mãe, e de cui<strong>da</strong>r <strong>da</strong>s suas necessi<strong>da</strong>des temporais e<br />

espirituais.<br />

Convencido dessa importante ver<strong>da</strong>de, o Servo de Deus não cessava de<br />

admoestar as Superioras a que estu<strong>da</strong>ssem seriamente as aptidões, o temperamento<br />

e as forças físicas e morais de ca<strong>da</strong> Religiosa, e só então dessem as<br />

suas ordens. É em vista disso que muitas vezes dizia às irmãs: “Como é fácil e<br />

agradável obedecer, e quão difícil é man<strong>da</strong>r! a obediência dá plena segurança<br />

em todos os transes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>; quem obedece não pode errar, mesmo que o<br />

Superior caia no erro e se engane”.<br />

Com a entra<strong>da</strong> no convento não cessam as dificul<strong>da</strong>des para a alma que<br />

teme a Deus, pois que diz o Sábio: “Filho, quando entrares no serviço de Deus,<br />

tem-te firme na justiça e no temor, e prepara a tua alma para a tentação” (Eccl.<br />

2. 1).<br />

<strong>Clemente</strong> tratava suas noviças com to<strong>da</strong> a brandura e delicadeza. Se acontecia<br />

ver alguma delas entristeci<strong>da</strong> ou cabisbaixa, procurava dissipar-lhe a tristeza<br />

e levantar-lhe o ânimo.<br />

Uma donzela, muni<strong>da</strong> <strong>da</strong>s melhores intenções abandonara o mundo e entrara<br />

no convento <strong>da</strong>s Ursulinas, para lá glorificar a Deus e salvar a sua alma. O<br />

inimigo de todo o bem pôs-se logo a sussurrar-lhe aos ouvidos to<strong>da</strong> a sorte de<br />

tentações contra a vocação. “Tu não és chama<strong>da</strong> por Deus à vi<strong>da</strong> religiosa,<br />

dizia-lhe, nunca poderás suportar os rigores do convento; vivendo na casa de<br />

Deus sem vocação expões-te ao perigo de condenação eterna; além disso não<br />

és digna absolutamente de ser Esposa de Jesus Cristo por causa dos teus<br />

muitos pecados”. Do outro lado o inimigo pintou-lhe o mundo como um templo


magnífico onde poderia servir a Deus com liber<strong>da</strong>de e amor, entregando-se às<br />

doçuras e às delícias <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> no século que lhe seria um paraíso, mostrou-lhe a<br />

incomparável beleza <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, que nos dá direito de viver à vontade, os<br />

encantos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> familiar, os enlevos do matrimônio etc. Tenta<strong>da</strong> dessa forma a<br />

pobre donzela sentiu sau<strong>da</strong>des do mundo e asco <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> religiosa; lágrimas,<br />

em torrentes, lavavam-lhe as faces encova<strong>da</strong>s, lágrimas de arrependimento de<br />

haver entrado no convento. A única consolação que ain<strong>da</strong> lhe restava era a<br />

possibili<strong>da</strong>de de voltar ao mundo e aos seus encantos e divertimentos. A donzela<br />

aprontou a roupa e todos os seus apetrechos, resolvi<strong>da</strong> a voltar as costas a<br />

Jesus. Marca<strong>da</strong> a hora <strong>da</strong> saí<strong>da</strong>, sentia na ância de partir a vagareza do relógio.<br />

Momentos antes de abandonar o convento apareceu <strong>Clemente</strong> a quem ela<br />

não participara coisa alguma a respeito, aproximou-se dela e disse: “Francisca,<br />

fica no convento, porque foi Deus quem te chamou”. A donzela tremeu vendo-se<br />

conheci<strong>da</strong> por seu confessor, a quem tudo ocultara; percebeu que o Servo de<br />

Deus lia não só nos livros mas também nos corações, sentiu-se envergonha<strong>da</strong><br />

e implorou o perdão. Pouco depois a postulante pediu e recebeu o hábito, e<br />

viveu uma vi<strong>da</strong> santa e exemplar, atingindo a i<strong>da</strong>de de oitenta anos, sem compreender<br />

jamais como é que o demônio a podia enganar <strong>da</strong>quela forma.<br />

Havia em o convento uma Irmã por nome Jacoba, que entrara na <strong>Congregação</strong><br />

no mesmo dia em que o Servo de Deus tomara posse do cargo de confessor<br />

<strong>da</strong>s Irmãs. Sentia-se em extremo feliz no convento, donde não queria<br />

sair por coisa nenhuma deste mundo. Satanás, que não ignorava isso, começou<br />

a tratá-la por outra forma. Enfermi<strong>da</strong>des fortes abateram o físico <strong>da</strong> pobre noviça,<br />

que enfraqueci<strong>da</strong> e extremo temeu ser, por imprestável, expulsa do convento;<br />

a tristeza apoderou-se de sua alma, prostrando-a ain<strong>da</strong> mais que o corpo;<br />

sincera e franca, foi desabafar o coração junto do seu sábio Diretor espiritual<br />

que, o sorriso nos lábios, derramou em sua alma tortura<strong>da</strong> o suave bálsamo de<br />

real consolação dizendo-lhe: “Farás a profissão religiosa, recuperarás a saúde<br />

e sobreviverás a muitas que agora estão de faces rosa<strong>da</strong>s”. Essas palavras<br />

soaram doces e agradáveis aos ouvidos <strong>da</strong> boa noviça, que to<strong>da</strong>via não lhes<br />

deu muito crédito, por não terem nenhuma aparência de ver<strong>da</strong>de. A noviça, de<br />

fato, continuou a guar<strong>da</strong>r o leito, e a enfermi<strong>da</strong>de se agravava na medi<strong>da</strong> que se<br />

aproximava o dia <strong>da</strong> profissão. Desconfia<strong>da</strong> a noviça manifestou novamente<br />

seus temores ao santo Diretor, declarando ter pouca esperança de recuperar a<br />

saúde e permanecer na <strong>Congregação</strong>: O Santo, longe de se perturbar, disselhe<br />

ain<strong>da</strong> com mais energia:... “farás a profissão, e na i<strong>da</strong>de de 28 anos estarás<br />

inteiramente cura<strong>da</strong> e ficarás ain<strong>da</strong> uma bruaca velha”. A enferma necessitava<br />

<strong>da</strong> saúde aos 24 anos em que deveria professar, e o Santo só lhe prometia a<br />

cura quatro anos mais tarde!<br />

As irmãs conselheiras reuniram-se para tomar uma resolução definitiva a<br />

respeito de Jacoba e, a uma voz, declararam que o convento não é hospital,<br />

mas casa de oração e trabalho, e já que a condição para alguém ser recebido<br />

na <strong>Congregação</strong> é possuir não só boa vontade e nobre coração, mas também<br />

saúde bastante para executar os pesados deveres <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> religiosa, decidiram<br />

que a noviça Jacoba não podia fazer os votos, devendo voltar quanto antes para<br />

casa. Antes porém <strong>da</strong> execução definitiva, a Superiora pediu o parecer de <strong>Clemente</strong>,<br />

que disse sem mais preâmbulos: “Deixem-na fazer os votos, ela recupe-<br />

84<br />

rará a saúde e prestará relevantíssimos serviços à comuni<strong>da</strong>de”. A autori<strong>da</strong>de<br />

de <strong>Clemente</strong> foi decisiva e a noviça fez a profissão dos votos. A profecia de<br />

<strong>Clemente</strong> realizou-se à risca: Jacoba sobreviveu a to<strong>da</strong>s as irmãs que naquela<br />

época se achavam no convento; cinqüenta anos mais tarde festejou as bo<strong>da</strong>s<br />

de ouro de sua profissão religiosa com saúde perfeita e força invejável, embora<br />

contasse então na<strong>da</strong> menos de 76 anos de i<strong>da</strong>de!<br />

Os cui<strong>da</strong>dos paternais de <strong>Clemente</strong> não se limitavam apenas ao convento<br />

<strong>da</strong>s Ursulinas, estendiam-se em geral a to<strong>da</strong>s as religiosas procurando suavizar-lhes<br />

o jugo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> claustral. A Irmã Jacoba, <strong>da</strong> qual acabamos de falar,<br />

nobre de nascimento, era extremamente nervosa e irascível. Ao voltar uma vez<br />

<strong>da</strong> escola achou-se exausta de forças e sentia necessi<strong>da</strong>de de repouso no silêncio<br />

<strong>da</strong> sua cela. Possuidora porém de grande força de vontade, venceu-se e<br />

obedeceu à Regra que a chamava, e na capela diante de Jesus Sacramentado,<br />

desabafou, em fervorosas preces, o seu coração. Inespera<strong>da</strong>mente chega a<br />

Mestra <strong>da</strong>s noviças e man<strong>da</strong>-a ao confessionário. Ah, isso era demais para a<br />

nobre baronesa que enfraqueci<strong>da</strong> cai de nervosia e susto. Obediente e virtuosa,<br />

faz um esforço sobre-humano, levanta-se e dirige-se ao confessionário, onde<br />

declara suas culpas com a sinceri<strong>da</strong>de de uma criança, mas não diz palavra<br />

sobre sua doença e fraqueza. <strong>Clemente</strong> que conhecia bem a penitente e ouvira<br />

quanto se passara na capela, quis <strong>da</strong>r-lhe uma boa lição de que nunca se esquecesse<br />

em sua vi<strong>da</strong>; no fim <strong>da</strong> confissão acrescentou: “As mulheres têm um<br />

gosto especial de prorromper em suspiros e lamentações”.<br />

A noviça meditou nas palavras do Santo e achou que realmente as mulheres<br />

se servem <strong>da</strong>s lágrimas e dos soluços como armas poderosas, para mover<br />

os corações dos homens, para os dominar e para chamar sobre si a atenção de<br />

todos. Jacoba sentiu-se envergonha<strong>da</strong> dessa fraqueza e <strong>da</strong>li por diante esforçou-se<br />

por sofrer cala<strong>da</strong> e com calma por amor de Deus.<br />

O sonho dourado de <strong>Clemente</strong> era de transformar os corações <strong>da</strong>s suas<br />

dirigi<strong>da</strong>s em outros tantos jardins mimosos, onde brotassem e medrassem as<br />

mais belas flores <strong>da</strong>s virtudes cristãs e religiosas. Além <strong>da</strong> obediência e humil<strong>da</strong>de<br />

aprazia-se em inculcar-lhes o amor <strong>da</strong> cruz, que ele próprio pregava constantemente<br />

com o seu exemplo; costumava dizer: “Amar a Deus é um bem tão<br />

grande que não o poderemos descrever com palavras humanas, porém um<br />

bem ain<strong>da</strong> maior é sofrer por amor de Jesus. Deus e os sofrimentos são bemaventurança<br />

suprema”. Sempre que alguma Irmã conversa tinha de carregar<br />

lenha, esca<strong>da</strong> acima, <strong>Clemente</strong> man<strong>da</strong>va rezar: “Ó Jesus, permiti que eu vos<br />

ajude um pouco carregando convosco esta cruz pesa<strong>da</strong>”.<br />

A Irmã Thadéa nos deixou escritas as admoestações que o Servo de Deus<br />

costumava fazer às irmãs: “Amar a Deus é um bem indizível; o amor de Jesus<br />

seja o motivo de to<strong>da</strong>s as vossas boas ações; a vontade divina seja a vossa lei;<br />

a honra e o contentamento divino o vosso alvo; nas tentações não percais a<br />

paciência, mas alegrai-vos; atirai-vos nos braços <strong>da</strong> Providência; não murmureis<br />

nunca contra as disposições divinas, mesmo que vos sintais interior e exteriormente<br />

abandona<strong>da</strong>s; a tristeza vem do inferno e oprime o coração”.


CAPÍTULO XVII<br />

Sua fé profun<strong>da</strong><br />

A fé profun<strong>da</strong> — O plano <strong>da</strong> Providência — O faro católico — O seu tesouro<br />

— O terço do Senhor — A boa intenção — Amor à Igreja — A Igreja na história<br />

— Os incrédulos — Respeito humano — Um professor — Um professor perigoso<br />

—Trabalho pela imprensa — A biblioteca popular.<br />

O antigo padeiro de Tasswitz jamais se teria tornado o Apóstolo de Viena e<br />

o modelo de virtudes, se não tivesse possuído em grau heróico, e comunicado<br />

à to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, interior e exteriormente, aquela energia maravilhosa, que outrora<br />

transformara os pobres pescadores <strong>da</strong> Galiléia em colunas inabaláveis <strong>da</strong><br />

Igreja, tornando-os aptos para o apostolado e a conversão do mundo pagão<br />

chafur<strong>da</strong>do na lama de todos os vícios. A fé, fun<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deira justiça e<br />

de todo edifício espiritual, achava-se profun<strong>da</strong>mente arraiga<strong>da</strong> no coração do<br />

Servo de Deus, a quem transformou em um facho luminoso; aparecendo no<br />

mundo <strong>Clemente</strong> iluminou-o dissipando as trevas do erro, e aqueceu-o ateando<br />

o fogo divino nos corações frios e indiferentes. Ouçamos o que dele nos afirmaram<br />

com juramento as testemunhas que depuseram no processo <strong>da</strong> beatificação:<br />

“A fé que animou <strong>Clemente</strong>, era mais firme do que o granito ou o ferro; em<br />

se tratando <strong>da</strong> fé ele não cedia nem um palmo”. — O cardeal Rauscher, um dos<br />

seus mais ilustres discípulos, diz que “ele abraçava com fé viva e inabalável<br />

tudo quanto Deus revelou e a Igreja propõe para crer”. — “Não conheci jamais<br />

em minha vi<strong>da</strong>, diz outro, homem algum que possuísse como ele, uma fé tão<br />

firme e inquebrantável; a fé essencialmente católica era então uma rari<strong>da</strong>de,<br />

mormente entre as pessoas instruí<strong>da</strong>s; a literatura estava to<strong>da</strong> eiva<strong>da</strong> de<br />

racionalismo e heresia; <strong>Clemente</strong> agradecia a Deus efusivamente, o grande<br />

benefício de nascer de pais católicos, sobre tudo de receber de sua queri<strong>da</strong><br />

mãe uma educação firma<strong>da</strong> na ver<strong>da</strong>deira religião e temor de Deus; sua fé era<br />

tão inabalável que muitas vezes ele afirmava não esperar recompensa alguma<br />

pela fé, porque nunca teve de combater tentações contra ela”.<br />

A luz <strong>da</strong> fé, escreve a Ursulina Jacoba, guiava-o em to<strong>da</strong>s as ações e era a<br />

regra constante de todos os seus passos, pois que ele vivia <strong>da</strong> fé! No púlpito e<br />

nas palestras com os amigos falava sempre e com especial ardor do grande<br />

benefício <strong>da</strong> fé acrescentando amiu<strong>da</strong><strong>da</strong>s vezes: “A quem não possui fé viva, as<br />

mais sublimes ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> religião têm aparência de fábulas!” E enaltecendo o<br />

grande mérito <strong>da</strong> fé: “se eu pudesse ver com os meus olhos as ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

religião, não lhes <strong>da</strong>ria tanto crédito como a afirmação <strong>da</strong> Igreja, pois que esta<br />

é infalível nesse ponto, ao passo que os meus olhos estão sujeitos a muitos<br />

erros”. Apontando uma vez para uma imagem pendura<strong>da</strong> na parede fez a ob-<br />

85<br />

servação: “Duvido menos na Trin<strong>da</strong>de de Deus do que na presença dessa imagem”.<br />

A fé inabalável de <strong>Clemente</strong> era superior a qualquer sentimento de dúvi<strong>da</strong>;<br />

esse era o plano <strong>da</strong> Providência, que o destinara a avivar a fé quase morta<br />

naquele tempo no norte <strong>da</strong> Europa, e a fazê-la produzir abun<strong>da</strong>ntes frutos nas<br />

almas desorienta<strong>da</strong>s pelo espírito <strong>da</strong> época. Uma só coisa tinha ele ante os<br />

olhos e dentro do coração em seus numerosos trabalhos espirituais: Deus e a<br />

eterni<strong>da</strong>de. Todos os meios empregados na conversão e direção <strong>da</strong>s almas,<br />

<strong>Clemente</strong> os hauria <strong>da</strong> fonte límpi<strong>da</strong> e copiosa <strong>da</strong> fé; embora acatasse os conhecimentos<br />

humanos, <strong>da</strong>va preferência à ciência dos Santos e tinha especial<br />

prazer em repetir as palavras do Salmo: Quoniam non novi literaturam, introibo<br />

in potentias Domini (Ps. 70, 16) isto é, porque não conheço a sabedoria dos<br />

livros, entrarei na força do Senhor. “Para mim tenho por incompreensível, dizia<br />

ele, o fato de um homem poder viver sem fé; um tal parece-me um peixe fora<br />

d’água”.<br />

Outros ouviram-no dizer: “Sou orgulhoso e vaidoso, sou um pobre pecador<br />

e na<strong>da</strong> aprendi, mas uma coisa eu tenho pela graça de Deus: sou católico até a<br />

medula dos ossos; não trocaria com ninguém a minha fé”. Segundo o atestado<br />

de Madlener, para o Servo de Deus, as provas <strong>da</strong> religião tira<strong>da</strong>s <strong>da</strong> razão só<br />

tinham valor para os principiantes; para os mais adiantados julgava ele de maior<br />

importância as provas históricas, que ele reconhecia sobretudo na existência<br />

<strong>da</strong> Igreja”.<br />

A simplici<strong>da</strong>de e humil<strong>da</strong>de com que submetia sempre seu entendimento à<br />

fé, não ficaram sem recompensa. Deus esclareceu-lhe tão profun<strong>da</strong>mente o<br />

espírito, que ele ficou tendo <strong>da</strong>s coisas espirituais e divinas a mais extraordinária<br />

intuição. Com grande humil<strong>da</strong>de diz <strong>Clemente</strong> não haver aprendido na<strong>da</strong>,<br />

mas é fato que todos admiravam seus vastos conhecimentos; isso leva a crer<br />

que Nosso Senhor o iluminou de modo sobrenatural <strong>da</strong>ndo-lhe a facul<strong>da</strong>de de<br />

instruir os homens mais inteligentes e sábios. Produtos literários e poéticos,<br />

hipóteses científicas em qualquer ramo <strong>da</strong> ciência, especulação dogmática e<br />

doutrinas <strong>da</strong> alta ascese ou de misticismo, ele os julgava e decidia com presteza<br />

espantosa e agudeza de espírito; como a gracejar, dizia ele possuir um “faro<br />

católico”, afirmação essa que não queria certamente indicar outra coisa senão<br />

a luz superior que recebia do céu.<br />

Essa visão sobrenatural não era para <strong>Clemente</strong> apenas objeto de belas<br />

meditações, de êxtases suaves e de doçuras espirituais, mas ain<strong>da</strong> norma segura<br />

e certa para a vi<strong>da</strong> prática; o que o Servo de Deus via à luz <strong>da</strong> fé e reconhecia<br />

grande, sublime e atraente, pairava-lhe constantemente aos olhos e era<br />

o objeto dos seus pensamentos, desejos e sau<strong>da</strong>des. Da sua fé íntima brotavam<br />

indizível alegria na oração, contínuo recolhimento de espírito, respeito profundo<br />

de to<strong>da</strong>s as coisas divinas, numa palavra, to<strong>da</strong>s as virtudes que caracterizam<br />

a vi<strong>da</strong> orienta<strong>da</strong> pela fé. Em <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> verificou-se a palavra de Jesus:<br />

“Onde está o vosso tesouro, ai se encontra também o vosso coração”; ora<br />

Deus era o tesouro de <strong>Clemente</strong>, que o conhecia pela luz sobrenatural, e por<br />

isso era Ele o objeto dos seus pensamentos e <strong>da</strong>s suas mais fervorosas súplicas.<br />

Mesmo nas mais movimenta<strong>da</strong>s ruas de Viena e nas praças públicas, onde<br />

fervilhavam as multidões, o Santo conservava-se recolhido em Deus, enquanto


que seus dedos desfiavam as contas do rosário, oculto debaixo do manto; embora<br />

acompanhado de alguns dos seus confrades, falava pouco, a fim de poder<br />

rezar mais. Nos seus passeios obrigatórios gostava de recitar, como diz o cardeal<br />

Rauscher, o terço do Senhor, isto é, 33 Padres-Nossos em louvor dos trinta<br />

e três anos que o Filho de Deus passou sobre a terra.<br />

O seu espírito elevava-se, como que naturalmente, <strong>da</strong>s coisas terrenas ao<br />

Criador; era o resultado de sua união íntima com Deus; dessas alturas descia<br />

apenas quando a cari<strong>da</strong>de para com o próximo o exigia. Nas ci<strong>da</strong>des ou nas<br />

roças, durante o verão ou o inverno, an<strong>da</strong>va sempre de cabeça descoberta para<br />

honrar assim a presença de Deus que via em to<strong>da</strong> parte. Sua constante união<br />

com Deus deduz-se facilmente do cui<strong>da</strong>do que tinha de renovar com freqüência<br />

e com amor a boa intenção, que aconselhava também encareci<strong>da</strong>mente a todos.<br />

A ca<strong>da</strong> passo ouvia-se-lhe dos lábios a oração predileta: “Tudo para a<br />

glória do meu Deus...”<br />

Amor filial consagrava o Servo de Deus à Santa Igreja Católica. Se ele<br />

amava as almas e se esse amor era uma gota, a dedicação e o amor para com<br />

a Igreja era um ver<strong>da</strong>deiro oceano, para onde corriam to<strong>da</strong>s essas gotas de<br />

amor; como dizia alguém: Se ca<strong>da</strong> alma era para ele como uma pedra preciosa<br />

que o divino Arquiteto se escolheu e preparou, a Igreja Católica era o grande<br />

templo do Eterno, repleto <strong>da</strong> Majestade divina e feito para a sua glória; se em<br />

ca<strong>da</strong> alma contemplava uma jóia de valor inestimável, para cuja aquisição o<br />

Filho de Deus sofreu tantas dores e amarguras e para cujo resgate Ele derramou<br />

seu sangue divino, a Igreja representava o diadema magnífico e adornar a<br />

fronte augusta do Rei Eterno; se a alma é a imagem de Deus e destina<strong>da</strong> à<br />

união admirável com o Infinito e à participação <strong>da</strong> sua grandeza e glória, a<br />

Igreja é o corpo místico de Cristo e por isso a manifestação divina, indizivelmente<br />

bela, <strong>da</strong> uma sabedoria sobremaneira digna de amor e veneração”. É sob esse<br />

prisma e debaixo <strong>da</strong> orientação desses princípios e dessa convicção que o<br />

Servo de Deus encarava as almas, irmãs entre si e filhas <strong>da</strong> santa Madre Igreja,<br />

que as gera nas águas lustrais do batismo, as sustenta com o pão dos anjos e<br />

as conforta com a luz <strong>da</strong>s ver<strong>da</strong>des revela<strong>da</strong>s — é por meio <strong>da</strong> Igreja que Deus<br />

se vela nosso ver<strong>da</strong>deiro Pai”. As palavras e a doutrina <strong>da</strong> Igreja eram-lhe doces<br />

e suaves como o mel, porque anuncia<strong>da</strong>s por sua mãe; mais de uma vez<br />

ele mesmo declarou que não acreditaria nem nas Escrituras sagra<strong>da</strong>s, se lhe<br />

não fossem propostas pela Igreja.<br />

A demonstração clara e convincente <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> nossa santa religião<br />

não eram para ele os milagres operados por Deus ou as profecias realiza<strong>da</strong>s no<br />

decorrer dos tempos, mas a existência <strong>da</strong> Igreja. E de fato, depois de 1.900<br />

anos, a Igreja construí<strong>da</strong> sobre as ruínas e os destroços dos impérios, mais<br />

firme do que todos os reinos do mundo, ain<strong>da</strong> hoje é cheia de vi<strong>da</strong> e vigor<br />

apesar <strong>da</strong>s perseguições de inimigos poderosos, que procuram <strong>da</strong>r-lhe a morte<br />

e devastá-la a ferro e fogo, e apesar <strong>da</strong>s inúmeras heresias excogita<strong>da</strong>s no<br />

decorrer dos séculos e <strong>da</strong>s mais negras calúnias contra sua doutrina sagra<strong>da</strong>.<br />

Viu o sangue dos filhos regar os circos romanos por mais de trezentos anos e<br />

quando todos a supunham agonizar, e Dioclesiano anunciava ao orbe estar<br />

destruído o nome cristão sobre a terra, a Igreja preparava-se o maior triunfo no<br />

império de Constantino, no qual a cruz gloriosa começou a cintilar no alto de<br />

86<br />

magníficas e soberbas catedrais. Ora isto não se explica naturalmente, e nem<br />

se concebe senão por uma proteção to<strong>da</strong> singular de Deus; e essa proteção<br />

não seria possível se não se tratasse <strong>da</strong> obra prima do Homem-Deus, do corpo<br />

místico de Jesus Cristo, isto é <strong>da</strong> Igreja. Tão profun<strong>da</strong> era a convicção de <strong>Clemente</strong><br />

que ele dizia: “Tirai-me tudo, mas não me priveis do tesouro precioso <strong>da</strong><br />

fé: é melhor perder a vi<strong>da</strong> que naufragar na fé”.<br />

Quem conhece e avalia a fé viva e prática do Servo de Deus, compreenderá<br />

a compaixão que ele sentia dos seus patrícios de Viena, extraviados do caminho<br />

<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, o zelo apostólico que o devorava e o impelia a procurar, sem<br />

descanso, as almas abandona<strong>da</strong>s, a converter os hereges esclarecendo-lhes a<br />

inteligência. “Ah! que não devem acreditar os homens para não crerem nas<br />

ver<strong>da</strong>des <strong>da</strong> fé! preferem crer as coisas mais absur<strong>da</strong>s para não se curvarem<br />

diante <strong>da</strong> revelação; acreditam que só eles têm a ver<strong>da</strong>de; que to<strong>da</strong> a cristan<strong>da</strong>de<br />

há 19 séculos tateia nas trevas do erro; que em matéria de fé eles entendem<br />

mais do que os mais ilustrados e santos bispos e doutores <strong>da</strong> Igreja; que os<br />

milhões de mártires eram fanáticos ignorantes; que Deus com seus milagres<br />

aprova o erro e a mentira sobre a terra; que Cristo foi um infeliz iludido ou um<br />

fino enganador, quando se declarou Filho de Deus, embora o mundo inteiro até<br />

agora não tenha encontrado nele o mais leve defeito, mas só sabedoria e santi<strong>da</strong>de<br />

sobre-humana e até divina; que tudo se acaba com a morte, embora<br />

sinta o homem uma sede insaciável <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong>de; que o mundo é eterno,<br />

quando nele tudo envelhece e morre etc. etc. Ah! realmente, increduli<strong>da</strong>de e<br />

superstição são duas irmãs gêmeas e inseparáveis, ampara<strong>da</strong>s por hedion<strong>da</strong><br />

ignorância”.<br />

<strong>Clemente</strong> não podia compreender a possibili<strong>da</strong>de do respeito humano;<br />

parecia-lhe impossível, uma pessoa estar convenci<strong>da</strong> <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fé e sentir<br />

vergonha dela na presença dos homens. O católico deve ufanar-se de sua fé,<br />

louvar publicamente o Senhor, que lhe concedeu tão insigne favor, e em sinal<br />

<strong>da</strong> sua profun<strong>da</strong> gratidão prestar sempre e aos olhos de todos o obséquio do<br />

seu amor ao maior dos Benfeitores. Em suas pregações sobre a fé e sobre a<br />

Igreja <strong>Clemente</strong> era simplesmente inexcedível, como já o temos visto em diversos<br />

pontos desta obra.<br />

Falava <strong>da</strong> fé às criancinhas, aos rapazes que o rodeavam, aos amigos que<br />

o visitavam, aos pecadores que queria converter e em geral a todos que com<br />

ele se relacionavam. No púlpito e no confessionário inculcava a fé como base<br />

de to<strong>da</strong> santi<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> devota. Como ele vivia <strong>da</strong> fé desejava que esta<br />

fosse também para os outros a alma <strong>da</strong> inteligência, a estrela polar <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, a<br />

fonte dos grandes ideais, <strong>da</strong>s generosas abnegações e dos sublimes heroísmos.<br />

A fé é um dom de Deus, que o homem não pode merecer-se com to<strong>da</strong>s as<br />

suas boas obras; é por isso que S. <strong>Clemente</strong> orava e man<strong>da</strong>va orar muito pela<br />

conservação e propagação <strong>da</strong> fé.<br />

Vai aqui uma oração que o Santo gostava de recitar e que pode ser útil aos<br />

que talvez em sua casa ou família têm alguém que não crê ou não pratica a<br />

religião por não a conhecer convenientemente. É a seguinte:<br />

“Ó meu Redentor, chegado será então o momento terrível, em que não<br />

restarão mais do que poucos cristãos, animados do espírito de fé? o momento<br />

em que, provocado pelos crimes, nos retirareis vossa proteção? as faltas e a


vi<strong>da</strong> criminosa de vossos filhos terão enfim impelido irrevogavelmente a vossa<br />

justiça para a vingança justiceira? Ó autor e consumador <strong>da</strong> nossa fé, nós Vos<br />

conjuramos na amargura dos nossos corações contritos e humilhados, não<br />

permitais que a bela luz <strong>da</strong> fé se extinga em nós. Lembrai-vos <strong>da</strong>s vossas misericórdias<br />

e lançai um olhar de compaixão para a vinha que foi planta<strong>da</strong> pela<br />

vossa dextra, rega<strong>da</strong> com o vosso sangue e com o de milhares de mártires,<br />

com as lágrimas de tantos penitentes e com os suores e orações de tantos<br />

apóstolos, confessores e virgens. Ó divino Mediador, olhai para as almas fervorosas<br />

que se levantam puras até o vosso trono e vos rogam pela conservação<br />

do precioso tesouro <strong>da</strong> fé; diferi, ó Deus justíssimo, o decreto <strong>da</strong> vossa reprovação,<br />

não escuteis as nossas blasfêmias, fixai o vosso olhar sobre o sangue<br />

adorável que, derramado sobre a cruz para nossa salvação, intercede ain<strong>da</strong><br />

cotidianamente por nós nos nossos altares; conservai-nos a ver<strong>da</strong>deira fé e o<br />

amor à Santa Igreja, conservai-a pura e iliba<strong>da</strong>, guar<strong>da</strong>i-nos na barca de Pedro<br />

fiéis e obedientes a seus sucessores, vossos vigários na terra, a fim de que a<br />

uni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Igreja se conserve intacta, a santi<strong>da</strong>de fomenta<strong>da</strong>, e a Sé Apostólica<br />

protegi<strong>da</strong>, a Igreja dilata<strong>da</strong> para o bem <strong>da</strong>s almas. Aflijam-nos muito embora<br />

as enfermi<strong>da</strong>des, consumam-nos os pesares, acabrunhem-nos as desgraças,<br />

mas conserve-se a santa fé, porque enriquecidos com esse dom precioso, suportaremos<br />

de boa mente as dificul<strong>da</strong>des sem que coisa alguma possa perturbar<br />

nossa felici<strong>da</strong>de. Ó Jesus, autor <strong>da</strong> nossa fé, protegei, fortalecei e iluminai<br />

os governantes; humilhai e convertei os inimigos <strong>da</strong> vossa Santa Igreja; concedei<br />

a todos os reis, a todos os chefes cristãos, a todo o povo fiel a ver<strong>da</strong>deira uni<strong>da</strong>de<br />

e concórdia; conservai-nos em vosso santo serviço no qual queremos viver e<br />

morrer. Ó Jesus, por vós vivo, por vós quero morrer; quero ser vosso to<strong>da</strong> a<br />

minha vi<strong>da</strong>, também na hora <strong>da</strong> minha morte. Assim seja” (300 dias de ind. Leão<br />

XIII, uma vez ao dia).<br />

<strong>Clemente</strong> conservava os olhos continuamente abertos para descobrir os<br />

erros que pudessem <strong>da</strong>nificar a fé, para os combater e extirpar. Em Praga havia<br />

um professor por nome Bernardo Balzano, que embora lente de religião, não<br />

passava de um racionalista refinado, que pervertia os pobres alunos educandoos<br />

para o racionalismo e a increduli<strong>da</strong>de. Esse sr. lembrou-se de publicar uma<br />

obra intitula<strong>da</strong> “Palestras edificantes para acadêmicos”, na qual expendia os<br />

erros que vinha ensinando, a muito anos, do alto <strong>da</strong> cátedra. <strong>Clemente</strong> pediu<br />

um exemplar, e percebendo o <strong>da</strong>no incalculável que o professor fazia às almas,<br />

foi incontinenti ter com um dos vigários de Viena, pedindo-lhe falar com o imperador<br />

sobre aquele abuso em Praga.<br />

O monarca, católico de convicção, mandou examinar a obra, e depois de<br />

proscrevê-la, baniu o seu autor do magistério público.<br />

Os tempos de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> eram tempos maus de josefismo e de<br />

jansenismo; a literatura to<strong>da</strong> estava eiva<strong>da</strong> de erros e de falsas doutrinas que se<br />

espalhavam entre o povo, arrancando a convicção católica ou pelo menos inculcando<br />

a dúvi<strong>da</strong>. Para reformar a Europa era necessário não descurar <strong>da</strong> imprensa,<br />

dos bons livros, <strong>da</strong>s boas revistas etc., que mais do que os sermões<br />

penetram nos lares, desfazem as dúvi<strong>da</strong>s, ensinam a ver<strong>da</strong>de, animam a virtude<br />

e fortalecem a fé. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não desconhecia a importância <strong>da</strong> imprensa.<br />

“Os maçons, dizia ele, trabalham, dia e noite difundindo os livros mais perni-<br />

87<br />

ciosos; querem banir Jesus Cristo <strong>da</strong> Europa, e não recuam diante de dificul<strong>da</strong>de<br />

alguma, contanto que consigam seu nefasto intento. Oxalá fôssemos nós<br />

católicos animados do mesmo zelo pela Santa religião!” “Os alemães gostam<br />

de ler, repetia <strong>Clemente</strong>, mas não há na<strong>da</strong> que se lhes possa <strong>da</strong>r para a leitura”.<br />

Embora <strong>Clemente</strong> não escrevesse, pessoalmente, animava e encorajava os<br />

outros a que se dedicassem à grandiosa missão <strong>da</strong> imprensa. E os amigos do<br />

Servo de Deus escreviam nos mais importantes jornais <strong>da</strong> Áustria. Frederico<br />

Schlegel ideou a fun<strong>da</strong>ção de um órgão central católico para to<strong>da</strong>s as esferas<br />

<strong>da</strong> vi<strong>da</strong> intelectual. Embora não desprezasse as revistas, novelas, hinos, poesias,<br />

dramas e semelhantes obras, <strong>Clemente</strong> <strong>da</strong>va a preferência aos escritos<br />

ascéticos e dedicava-se com ardor à impressão e tradução de obras novas. Em<br />

<strong>São</strong> Beno esse trabalho constituiu uma parte importante do programa apresentado<br />

pelo Santo a seus padres; em Viena eram os seus amigos que se esforçavam<br />

para reformar a literatura frívola do tempo, e enriquecer a Alemanha e a<br />

Áustria de livros católicos e de pie<strong>da</strong>de sóli<strong>da</strong>. A pedido de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, Silbert<br />

publicou mais de cem obras e traduziu para o alemão as melhores obras <strong>da</strong><br />

França, Espanha e Itália; Veith editou 55 volumes de sermões e homilias com<br />

muitos outros volumes de tratados filosóficos, poesias, composições mistas etc.<br />

O mais incansável porém foi o Dr. Francisco Schmid, amigo íntimo e confessor<br />

do Santo, o qual não podendo pregar por fraqueza pulmonar, se dedicou à<br />

elaboração de livros de orações e pie<strong>da</strong>de em alemão, latim, italiano, francês,<br />

inglês e grego enviando-os, quase sempre gratuitamente, a esses países para<br />

mais facilmente ganhar todos para Jesus Cristo; introduziu esses livros nos<br />

hospitais e nos quartéis, repartindo-os entre os enfermos e os militares.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> entusiasmado por esse zelo admirável não hesitou em exclamar:<br />

“Se em Viena houvesse apenas três Schmids, converter-se-ia a ci<strong>da</strong>de<br />

inteira”.<br />

Com o fim de tornar os livros mais acessíveis a todos, formou-se, a conselho<br />

do Santo, uma biblioteca popular em Viena. Para a Áustria começava então<br />

uma nova era, era de renascimento espiritual, devido em grande parte, aos<br />

esforços de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>. Os grandes artistas, os conhecidos mestres, os heróis<br />

<strong>da</strong> pena como Frederico Schlegel, A<strong>da</strong>m Müller, não publicavam suas obras<br />

monumentais sem antes receberem a aprovação do Servo de Deus. E o juízo<br />

de <strong>Clemente</strong> era pronto, rápido não só em matéria de teologia teórica e prática,<br />

mas também em assuntos profanos, como literatura, poesia e arte. Todo esse<br />

movimento literário estava pois colocado nas mãos do Santo, que obrigava os<br />

artistas e os sábios à oração e assim levava a Deus a arte e a ciência; <strong>Clemente</strong><br />

regava as raízes, e as folhas e flores vinham por si mesmas; e esse seu trabalho<br />

foi decisivo para a reforma espiritual, a conservação e restauração <strong>da</strong> fé e o<br />

levantamento <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> moral.


CAPÍTULO XVIII<br />

O amante <strong>da</strong> pobreza<br />

Que são as riquezas — O tesouro nas mãos — A cruz de brilhante — O<br />

quarto do Santo — A roupa do Servo de Deus — O belo Vigário Geral — As<br />

palavras de Jesus.<br />

A opinião de <strong>Clemente</strong> a respeito <strong>da</strong>s fortunas e grandezas <strong>da</strong> terra, era<br />

bem diversa <strong>da</strong> dos filhos do século; a sua alma de escol não se prendia às<br />

coisas vis do mundo, que afinal não passam de lama e podridão. <strong>Clemente</strong><br />

procurava a pobreza como os mun<strong>da</strong>nos a riqueza e o fausto; amava-a como<br />

outrora o pobrezinho de Assis. “Que valor, dizia ele, terá no fim do mundo o<br />

ouro? certamente não valerá mais do que o vil estanho”. Queria dizer: no dia do<br />

juízo nenhuma riqueza terá valor perante Deus; com nenhum ouro ou prata se<br />

poderá comprar o Juiz Eterno; e os ricos lá estarão como pobres mendigos se<br />

não se tiverem provido dos bens imortais e imperecíveis <strong>da</strong> graça. Uma <strong>da</strong>s<br />

mais freqüentes exclamações do Santo era: “Meus irmãos, procuremos só o<br />

céu”. Seguindo o conselho de Jesus: “não vos preocupeis; procurai o reino de<br />

Deus e a sua justiça, o resto Deus vô-lo <strong>da</strong>rá de acréscimo” não se incomo<strong>da</strong>va<br />

nem preocupava com as coisas terrenas, em se tratando <strong>da</strong> sua própria pessoa.<br />

Deus que reveste os lírios dos campos, pensava ele, e alimenta as aves do<br />

céu, não me abandonará se eu nele depositar inteira confiança. Às irmãs costumava<br />

dizer: “O que a Religiosa tem é apenas um empréstimo, só Jesus é o seu<br />

tesouro”.<br />

O Servo de Deus amava tanto a pobreza, que só lhe <strong>da</strong>va o nome de “primeira<br />

bem-aventurança”; tinha por certo ser ela o caminho mais seguro para o<br />

céu, como nô-lo mostrou o Filho de Deus desde a pobreza do presépio até a<br />

desnu<strong>da</strong>ção completa na cruz e o seu sepultamento em túmulo alheio. Assim<br />

disso sabia o Servo de Deus que o Senhor derrama maior soma de consolações<br />

sobre uma alma desprendi<strong>da</strong> e desapega<strong>da</strong> <strong>da</strong>s cousas <strong>da</strong> terra do que<br />

sobre as que se prendem voluntariamente, por laços desprezíveis, às ninharias<br />

do mundo.<br />

Uma vez estava <strong>Clemente</strong> sentado entre os seus discípulos em palestra<br />

anima<strong>da</strong> pela cari<strong>da</strong>de cristã. Um deles, sacerdote, pôs-se a narrar com entusiasmo,<br />

fogo e visível contentamento, que durante o dia tivera em suas mãos um<br />

ornato belíssimo, precioso, no valor de muitos contos de réis. <strong>Clemente</strong>, a seu<br />

grande pesar, percebeu que aquele sacerdote conservava o seu coração apegado<br />

àquele objeto de luxo; querendo <strong>da</strong>r-lhe uma lição proveitosa, disse: “Eu<br />

também tive hoje em minhas mãos um tesouro infinitamente mais precioso do<br />

que esse ornato: Jesus no Santíssimo Sacramento! e o sr. gloria-se de ter segu-<br />

88<br />

rado lama e pó!” Devido à grande consideração em que era tido em Viena, e ao<br />

considerável número de amigos, muitos dos quais ricos e generosos, <strong>Clemente</strong><br />

poderia possuir objetos preciosíssimos em grande número; o Santo porém não<br />

os aceitava, não só por haver feito, como todo Religioso, o voto de pobreza, mas<br />

sobretudo por dedicação a essa virtude que amava como sua esposa.<br />

Tendo uma vez feito um favor de maior vulto a uma senhora, quis esta<br />

mostrar-se grata para com o Servo de Deus e procurou em seu guar<strong>da</strong>-jóias o<br />

que pudesse oferecer a seu benfeitor; entre outras preciosi<strong>da</strong>des encontrou<br />

uma cruz to<strong>da</strong> craveja<strong>da</strong> de diamantes, lembrança dos tempos antigos, e imediatamente<br />

dirigiu-se ao Santo para lhe <strong>da</strong>r de presente. <strong>Clemente</strong> agradecendolhe<br />

a boa intenção e ótimo coração, recusou aceitar o presente por amor à<br />

pobreza. A nobre senhora porém não se deixando vencer em generosi<strong>da</strong>de,<br />

pediu ao Santo não desprezasse a oferta feita de tão bom coração, e não a<br />

desfeiteasse dessa forma, ao que o Servo de Deus respondeu: “Guar<strong>da</strong>i-o para<br />

os vossos pobres que terei nisto maior alegria e consolação”. Mas debalde;<br />

sentindo-se despreza<strong>da</strong> a senhora pôs-se a chorar até que o Santo compadecido<br />

<strong>da</strong>s suas lágrimas, aceitou a cruz de brilhantes, porém com a condição de a<br />

colocar, como oferta, perto do altar do Sagrado Coração na igreja <strong>da</strong>s Ursulinas.<br />

Uma prova do grande amor que <strong>Clemente</strong> consagrava à pobreza, possuimola<br />

no mobiliário do quarto do Santo em Viena. Era o número 989 <strong>da</strong> rua que<br />

passava pela igreja <strong>da</strong>s Ursulinas. To<strong>da</strong> a residência do Santo consistia em um<br />

pequeno quarto que servia, ao mesmo tempo, de refeitório, dormitório, locutório<br />

e capela; junto dele uma pequena alcova em que o Santo guar<strong>da</strong>va seus livros<br />

e algumas alfaias e coisas de dispensa; a cela que lhe servia de habitação não<br />

era profana<strong>da</strong> pelo luxo dos mun<strong>da</strong>nos; lá não se encontravam elegantes pinturas<br />

nem ricas tapeçarias; era pequena, sem aparência vistosa, caia<strong>da</strong> como<br />

qualquer quarto de camponês, desprovi<strong>da</strong> dos ornatos que os grandes do mundo<br />

prezam; em vão lá se procurariam grandes molduras, suntuosos espelhos<br />

para a humana vai<strong>da</strong>de, macios divãs, reposteiros ou cortinados; ao contrário,<br />

tudo lá era simples: dois armários velhos servindo de guar<strong>da</strong>-roupa, um relógio<br />

de parede, um leito duro com palhas por colchão, um velho sofá e perto dele um<br />

genuflexório com um Crucifixo e uma imagem de Nossa Senhora <strong>da</strong>s Dores ao<br />

pé <strong>da</strong> cruz; no centro do quarto uma mesa compri<strong>da</strong> com umas cadeiras, nas<br />

paredes alguns quadros de Santos: eis to<strong>da</strong> a mobília do Pe. <strong>Clemente</strong>; e todos<br />

esses trastes eram pobres, simples e velhos. A única riqueza que lá se encontrava<br />

era o asseio e a ordem em tudo. A batina e, em geral, to<strong>da</strong> a roupa do<br />

Santo era simples e sem a menor sombra de luxo; mormente a batina que<br />

usava, era tão estraga<strong>da</strong> e sem cor, que todos se admiravam de não ser o<br />

Santo escarnecido e ludibriado pelos garotos de Viena, e de ao invés inspirar<br />

tanto respeito e chamar tanto a atenção de todos.<br />

Durante o tempo que passou em Viena não usou senão hábito redentorista,<br />

embora isso não fosse costume naquela época, em que todos se vestiam à<br />

secular. E se hoje os Redentoristas não usam fazen<strong>da</strong> fina em seus hábitos, a<br />

batina de S. <strong>Clemente</strong> era ain<strong>da</strong> mais ordinária. Os sapatos pesados e de sola<br />

grossa nunca se recomen<strong>da</strong>ram pelo lustro, embora estivessem bem asseados;<br />

não poucas vezes conservavam-se largo tempo rasgados por falta de dinheiro<br />

que, nas mãos de <strong>Clemente</strong>, era dos pobres; as meias ele mesmo as


emen<strong>da</strong>va por suas próprias mãos. Alguém que lhe perguntou, porque não<br />

<strong>da</strong>va a consertar a roupa rasga<strong>da</strong> ao alfaiate, respondeu a sorrir: “O padre deve<br />

entender de tudo no governo <strong>da</strong> casa”.<br />

Durante os sete anos que esteve em Viena, como confessor <strong>da</strong>s Ursulinas,<br />

só teve um hábito, que quase já não possuía um palmo de pano que não fosse<br />

remen<strong>da</strong>do. Só uma vez vestiu uma batina nova; foi esse um dia de festa para<br />

as irmãs que espanta<strong>da</strong>s exclamaram alto: “Que milagre! o nosso Pai espiritual<br />

com uma batina nova!” No tempo do inverno usava sobre o hábito um manto de<br />

pano escuro, que recebeu em Varsóvia uns quinze anos atrás. No verão a capa<br />

era de pano pouco mais leve, porém ordinário como o outro. O chapéu velho e<br />

usado não destoava do resto; sendo de notar que o uso de an<strong>da</strong>r de chapéu<br />

nas ruas <strong>Clemente</strong> não o conhecia, a não ser no tempo de chuva... Para se<br />

defender do frio, mesmo no mais rigoroso inverno, o Servo de Deus nunca usou<br />

luvas; relógio de algibeira ele tinha por coisa desnecessária, visto haver tantos<br />

relógios nas torres de Viena, que marcavam com exatidão o tempo. Às vezes o<br />

Servo de Deus olhava para o seu uniforme usado e quase sem cor, e ao arrancar<br />

um ou outro pe<strong>da</strong>ço <strong>da</strong> batina rasga<strong>da</strong> em qualquer parte dizia a sorrir:<br />

“Que belo vigário geral!” Embora <strong>Clemente</strong> pronunciasse essa palavra por gracejo<br />

e fina ironia, não fazia senão dizer a ver<strong>da</strong>de, pois que a ver<strong>da</strong>deira beleza<br />

não consiste tanto nos atavios externos, nos adornos principescos, nas jóias ou<br />

na se<strong>da</strong>, no enfeite do corpo, mas sim na nobreza do coração e na formosura<br />

<strong>da</strong> alma. Não passa de uma tolice infantil ligar importância à beleza do traje e ao<br />

adereço do corpo; os espíritos superiores, embora sempre asseados como o<br />

exige a socie<strong>da</strong>de, não se prendem a essas bagatelas, mas cui<strong>da</strong>m <strong>da</strong> virtude,<br />

preocupam-se com a beleza incomparavelmente superior <strong>da</strong> inteligência, e muito<br />

mais ain<strong>da</strong> com a formosura sobrenatural <strong>da</strong> alma. A beleza física e o adorno<br />

do corpo nem sempre dependem de nós, ao passo que a formosura <strong>da</strong> alma<br />

está em nossas mãos e em poder de ca<strong>da</strong> um. Deus não olha para o exterior<br />

mas para a alma tão somente. Jesus deu-nos o mais belo exemplo do completo<br />

desapego <strong>da</strong>s vai<strong>da</strong>des e futili<strong>da</strong>des <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, abraçando voluntariamente a pobreza,<br />

nascendo em uma estalagem, vivendo como um pobre artífice numa<br />

pequena e insignificante oficina em Nazaré e morrendo desprovido de tudo no<br />

alto <strong>da</strong> cruz. <strong>Clemente</strong> olhava para Jesus Cristo, que era o seu ideal supremo, e<br />

nele encontrava o motivo do seu amor à pobreza. “Beati pauperes, bem-aventurados<br />

os pobres”, disse Jesus e acrescentou ain<strong>da</strong> em outro lugar: “Vae divitibus,<br />

ai dos ricos, pois é mais fácil um camelo passar pelo vão de uma agulha do que<br />

um rico entrar no reino dos céus”. “Se alguém quer ser perfeito, vá, ven<strong>da</strong> o que<br />

tem, dê-o de esmola aos pobres, depois venha e siga-me”. “Não vos ajunteis<br />

riquezas sobre a terra, onde os ladrões as furtam e a traça as roe; acumulai-vos<br />

tesouros no céu”. To<strong>da</strong>s essas palavras <strong>da</strong> Ver<strong>da</strong>de Eterna, <strong>Clemente</strong> as guar<strong>da</strong>va<br />

em seu coração, fazendo delas suas meditações e tomando-as por guia<br />

<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> desprendi<strong>da</strong> <strong>da</strong>s ninharias do mundo.<br />

CAPÍTULO XIX<br />

89<br />

O Anjo de pureza<br />

A virtude angélica — As portas <strong>da</strong> impureza — As mulheres santas —<br />

Laconismo santo — A mortificação e a pureza — O cardápio de ca<strong>da</strong> dia — Sua<br />

bebi<strong>da</strong> usual — Necessárias explicações.<br />

Entre to<strong>da</strong>s as virtudes pratica<strong>da</strong>s por <strong>Clemente</strong>, a mais mimosa foi a pureza,<br />

a inocência de coração. Em seus discípulos não admitia nem sombra de<br />

impureza ou moleza efemina<strong>da</strong>. “Permanecei puros e castos” era o estribilho de<br />

muitas conferências e alocuções. O Servo de Deus tinha a pureza como a condição<br />

necessária para a fé e a vi<strong>da</strong> cristã. E de fato a impureza tem sido sempre<br />

uma <strong>da</strong>s causas <strong>da</strong> increduli<strong>da</strong>de não só de indivíduos, mas até de reinos e<br />

nações inteiras, porquanto a fé é como uma luz finíssima que se extingue facilmente<br />

ao contato com o ar impuro impregnado de nojentos miasmas exalados<br />

<strong>da</strong> podridão dos cadáveres. O impuro, não podendo suportar os remorsos <strong>da</strong><br />

consciência, quisera que Deus não existisse, procura abafar a voz importuna<br />

que lhe exprobra sua indigni<strong>da</strong>de e baixeza, e foge de quanto lhe possa fazer<br />

lembrar a virtude que não quer praticar. A impureza enerva o coração e enfraquece<br />

a alma, que, presa à lama, não tem força de levar uma vi<strong>da</strong> cristã, que é<br />

como a coroa de to<strong>da</strong>s as virtudes, e por isso, não conseguindo dominar-se, a<br />

alma cai, ou antes precipita-se de abismo em abismo. O impuro não compreende<br />

as coisas do céu, não sente alegria na religião nem pode respirar o ambiente<br />

puro que conserva a saúde <strong>da</strong> alma e a faz alcandorar-se às mais eleva<strong>da</strong>s<br />

alturas <strong>da</strong> grandeza sobrenatural. É por essas razões que o Servo de Deus<br />

invectivava o vício impuro mais do que qualquer outro. “É ele, dizia, que lança<br />

no inferno a maior parte dos jovens”; e acrescentava: “Almas virgens são irmãs<br />

dos anjos”. Conhecendo que o vício contrário à bela virtude oferece à alma os<br />

mais renhidos combates, às palavras unia também os esforços práticos e necessários<br />

para preservar a juventude desse grande mal: conselhos, avisos, exemplos,<br />

boa companhia, tudo isso ele empregava com solicitude para o bem <strong>da</strong><br />

moci<strong>da</strong>de. Quando se despedia de algum jovem, o último conselho era sempre:<br />

“Guar<strong>da</strong>i a pureza do coração e a retidão <strong>da</strong> intenção”.<br />

<strong>Clemente</strong> amava a infância, porque via a pureza estampa<strong>da</strong> na alma e no<br />

rosto <strong>da</strong> criança, que ain<strong>da</strong> não conhece o ardor do vício e os ataques <strong>da</strong> concupiscência;<br />

a inocência tinha para ele um atrativo todo singular. Sobretudo<br />

com o exemplo é que o Servo de Deus fazia as mais belas pregações sobre a<br />

pureza. Sua alma santa era como um lírio viçoso, que despregando-se <strong>da</strong> sordidez<br />

<strong>da</strong> terra, subia, atirava-se para o alto; em to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> de setenta anos<br />

jamais deixou cair ou macular-se uma só pétala desse lírio cândido; conservou


intacta, até a morte, a inocência batismal. Por mais curiosos que fossem os<br />

vienenses, não puderam descobrir a menos sombra de culpa ou de suspeita a<br />

respeito <strong>da</strong> virtude de <strong>Clemente</strong>; ao contrário, todo o exterior do Servo de Deus,<br />

mormente os olhos, pareciam desprender de si raios fulgurantes de virtudes,<br />

obrigando todos a admirar e a amar a pureza; quando abraçava a um jovem,<br />

uma como faísca de pureza ia ferir o coração do moço que se sentia impelido<br />

ao amor e à prática <strong>da</strong> virtude angélica.<br />

Sendo essa virtude um tesouro precioso, inúmeros são os que o pretendem<br />

roubar às almas, que para guardá-lo necessitam às vezes impor os maiores<br />

sacrifícios e praticar rasgos de heroísmos. O nosso corpo propende naturalmente<br />

para o lodo, é feito de barro e para a terra pende; os cinco sentidos, que<br />

o põe e contato com o mundo externo, são um perigo para a bela virtude. A<br />

fantasia e o coração são as duas portas por onde entra geralmente a morte e a<br />

ruína dessa virtude; a primeira porta ain<strong>da</strong> mais se abre pelas más leituras,<br />

figuras indecorosas, cinemas sem moral, teatros sem respeito, bailes livres,<br />

onde a promiscui<strong>da</strong>de dos sexos, a música lasciva, os olhares curiosos, trajes<br />

inconvenientes excitam as paixões. S. <strong>Clemente</strong> era inexorável na proibição dos<br />

romances, <strong>da</strong>s poesias amorosas, dos divertimentos ilícitos, que depositam na<br />

alma os bacilos deletérios <strong>da</strong> impureza. Pela segun<strong>da</strong> porta — o coração —<br />

entra o amor com as manifestações de afeto, carinho, galanteios etc. <strong>Clemente</strong>,<br />

o defensor intrépido <strong>da</strong> virtude angélica, com língua de fogo e ardor de serafim<br />

interditava a todos as amizades suspeitas e perigosas, mormente em se tratando<br />

de pessoas de outro sexo. Gostava de citar o exemplo do velho patriarca Jó,<br />

que não obstante sua avança<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de, sua grande e experimenta<strong>da</strong> virtude,<br />

sua vi<strong>da</strong> matrimonial, tremia diante do perigo e, como ele mesmo afirma, chegou<br />

a fazer um pacto com seus olhos de nunca fixá-los em uma donzela. <strong>Clemente</strong><br />

não queria que os seus discípulos se entretivessem com mulheres, e<br />

repetia muitas vezes aos jovens: “As senhoras piedosas, encomen<strong>da</strong>i-as ao<br />

Senhor”. Nesse ponto o Servo de Deus não conhecia condescendência, e muitas<br />

vezes mostrava-se indelicado.<br />

Uma vez estava ele, à noite, a trabalhar em seu aposento particular, quando<br />

alguém bate à porta; vai abri-la e dá com uma senhora que lhe pede man<strong>da</strong>r<br />

um padre novo a um dos arrabaldes ouvir a confissão de uma mulher enferma.<br />

Ao ponderar as duas palavras do pedido: padre novo e mulher enferma,<br />

franziu os sobr’olhos e com sereni<strong>da</strong>de disse à senhora: “Aqui não há padre<br />

novo para eu mandá-lo”, e bateu a porta no rosto <strong>da</strong> senhora que ousara fazerlhe<br />

semelhante pedido.<br />

Nas palestras íntimas com os seus discípulos era em extremo rigoroso,<br />

aconselhando-os a fugirem de todo e qualquer agrado <strong>da</strong>s mulheres. “As mulheres<br />

são sempre mulheres, dizia ele; enquanto não se desfizerem de todo o<br />

feminismo como uma Santa Teresa e outras santas mulheres, são sempre perigosas”.<br />

Ele até era de opinião que uma mulher nunca se tornará santa, enquanto<br />

não se despojar de tudo que é mulheril. “To<strong>da</strong>s as mulheres santas, afirmava<br />

ele, possuíam um espírito masculino e robusto; to<strong>da</strong>s as mulheres que não<br />

depuserem o ser efeminado são repugnantes para mim”.<br />

<strong>Clemente</strong> conhecia a fraqueza humana comprova<strong>da</strong> nos fatos tristes <strong>da</strong><br />

história e <strong>da</strong> experiência; conhecia a que<strong>da</strong> de homens como Adão, Ruben,<br />

90<br />

Davi, Salomão, Holofernes e tantos outros, e por isso evitava o mais possível<br />

qualquer aproximação com as suas penitentes; com elas era sempre breve evitando<br />

qualquer conversa desnecessária. Ao falar com senhoras, nunca lhes<br />

olhava o rosto, fitava o chão ou fechava os olhos de sorte que nenhuma mulher<br />

pôde saber a cor de seus olhos. Um dos seus discípulos afirmou que o Servo de<br />

Deus olhava para dentro e não para fora como os outros; era uma expressão<br />

forte que diz tudo: <strong>Clemente</strong> olhava mais com os olhos do espírito, com as<br />

vistas em Deus, do que com os olhos carnais. Afirmam os seus estu<strong>da</strong>ntes que<br />

<strong>Clemente</strong> não conhecia a nenhuma de suas penitentes, nem sequer as irmãs,<br />

pela fisionomia, mas só pela voz.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> refreava os sentidos e mortificava o corpo para subjugá-los<br />

e obrigá-los à escravidão gloriosa <strong>da</strong> alma; aceitava <strong>da</strong>s mãos de Deus, com<br />

ânimo alegre, to<strong>da</strong>s as inclemências do tempo, enfermi<strong>da</strong>des ou dissabores;<br />

alegrava-se, interiormente, sempre que recebia dos homens alguma afronta ou<br />

injúria, para assim se mortificar, pois que as mortificações que Deus nos man<strong>da</strong>,<br />

sem as procurarmos, são as mais úteis e proveitosas para as nossas almas,<br />

e mais próprias para nos conservarem na humil<strong>da</strong>de e na prática <strong>da</strong>s demais<br />

virtudes.<br />

Durante muitos anos foi ele confessor <strong>da</strong>s Ursulinas, e diversas vezes teve<br />

de ficar esperando, longo tempo, na antecâmara, onde não havia nenhuma<br />

cadeira, e o Santo nunca se queixou disso, nem o disse a ninguém; quando se<br />

cansava muito por causa <strong>da</strong>s contínuas visitas aos doentes, esperava sentado<br />

no chão, onde uma vez o surpreenderam. Não tinha pie<strong>da</strong>de do corpo, açoitava-o<br />

mais vezes por semana e, para maior penitência, atava às pontas <strong>da</strong> disciplina<br />

pontinhas de ferro, que lhe dilaceravam o corpo e arrancavam sangue.<br />

Desse instrumento de martírio servia-se para abater o corpo e assim com mais<br />

segurança guar<strong>da</strong>r o tesouro <strong>da</strong> virgin<strong>da</strong>de. Qual preciosa relíquia conserva-se<br />

essa disciplina no convento dos Redentoristas em Viena. O Servo de Deus usava<br />

quase sempre, um cilício agudo que lhe feria o corpo não lhe permitindo<br />

nenhum descanso. A respeito de tudo isso o Santo guar<strong>da</strong>va a mais completa<br />

reserva, não querendo que alguém percebesse a austeri<strong>da</strong>de <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>; fugia<br />

<strong>da</strong> ostentação e dos louvores humanos procurando nessas mortificações somente<br />

a glória de Deus e a santificação <strong>da</strong> sua própria alma. Embora de natureza<br />

robusta, em um clima frio, <strong>Clemente</strong> alimentava-se mui parcamente, arrancando<br />

a admiração de todos que não chegavam a compreender como é que ele<br />

podia viver com tão pouco e trabalhar tanto! Nunca tomou café nem coisa alguma<br />

de manhã em to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>, a não ser nos últimos anos por preceito<br />

médico e a pedido dos amigos que se compadeciam <strong>da</strong> grande debili<strong>da</strong>de em<br />

que se achava, mas isso mesmo nunca antes <strong>da</strong>s 10 horas; do confessionário<br />

onde ficava desde as 3 horas <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong>, levantava-se às 10 horas e celebrava<br />

a santa missa, na qual fazia sempre uma breve pregação; só depois é<br />

que, nos últimos anos, ia tomar um pouco de caldo com alguma leve mistura.<br />

Na hora <strong>da</strong>s refeições não se sentava à mesa, como os outros, a fazer-se servir<br />

de assados e iguarias delica<strong>da</strong>s, mas com o pranto em uma <strong>da</strong>s mãos e a<br />

colher na outra, an<strong>da</strong>va pelo quarto a tomar os restos de uma comi<strong>da</strong> qualquer<br />

de farinha com um minguado pe<strong>da</strong>ço de carne fria, ou, às vezes, apenas a<br />

sopa. Com isso contentava-se até à noite, em que não tomava mais que ao


meio-dia.<br />

Aos sábados abstinha-se de todo e qualquer alimento até à noitinha, em<br />

louvor <strong>da</strong> Santíssima Virgem; a sua única bebi<strong>da</strong> era a água fresca. “Olha, disse<br />

ele uma vez a um de seus padres, o missionário deve ser mortificado, porque<br />

do contrário não <strong>da</strong>rá conta do recado; até a i<strong>da</strong>de de 40 anos eu não provei<br />

uma gota de vinho”. Só nos últimos três anos de vi<strong>da</strong> é que tomava, à noite, um<br />

pequeno cálix de vinho quando voltava muito cansado e extenuado de alguma<br />

visita aos doentes ou aos pobres de Viena. Nessas ocasiões levantava os olhos<br />

ao céu em sinal de gratidão para com Deus e dizia: “O vinho é um dom de Deus<br />

para restabelecer as forças aos velhos”. O gosto <strong>da</strong> cerveja o Santo não chegou<br />

a conhecer nos setenta anos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. Quando convi<strong>da</strong>do a outras casas<br />

para as refeições, nunca louvava as comi<strong>da</strong>s, como geralmente se faz, nem<br />

procurava adular o cozinheiro; comia pouco deixando intactos os pratos delicados<br />

e de luxo.<br />

Não queremos terminar estes capítulo, sem <strong>da</strong>r aos leitores uma explicação<br />

necessária. As expressões fortes que conhecemos de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> a respeito<br />

do sexo feminino, como as já menciona<strong>da</strong>s e outras como esta: “Dou graças<br />

a Deus que não sou mulher nem tenho mulher” não denotam, absolutamente,<br />

aversão do Santo ao sexo feminino e às suas excelentes quali<strong>da</strong>des. Seria<br />

um engano pensar assim. Para compreendermos bem essas expressões devemos<br />

ter ante os olhos o fim pe<strong>da</strong>gógico delas; foram dirigi<strong>da</strong>s geralmente a<br />

estu<strong>da</strong>ntes ou a jovens clérigos. Além disso <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> queria acentuar,<br />

com elas, as fraquezas do caráter feminino, que podem ser um perigo tanto<br />

para a mulher como para o homem. Mas quem é que ignora os grandes elogios,<br />

a ilimita<strong>da</strong> admiração que ele tinha e exprimia a respeito dos grandes vultos<br />

femininos de Viena, que se impunham por suas excelsas virtudes e profun<strong>da</strong><br />

pie<strong>da</strong>de? É certo que no trato com senhoras ele era bem mais retraído do que<br />

quando li<strong>da</strong>va com homens ou rapazes. E justamente esse retraimento, em vez<br />

que se manifestava a sua iliba<strong>da</strong> pureza, é que atraía irresistivelmente para<br />

Deus as senhoras santas e piedosas, infiltrando-lhes ilimita <strong>da</strong> confiança no<br />

Santo.<br />

CAPÍTULO XX<br />

91<br />

O Coração bondoso<br />

Os princípios mun<strong>da</strong>nos — Humil<strong>da</strong>de necessária — O defensor dos oprimidos<br />

— O coração grato — Deogratias — Louvores humanos — Humil<strong>da</strong>de de<br />

fato — Oculta os dons sobrenaturais — Humilhações na vi<strong>da</strong> — O blasfemador<br />

arrependido — O perdão generoso.<br />

Não há coisa tão desprezível aos olhos dos mun<strong>da</strong>nos como a humil<strong>da</strong>de.<br />

Outrora humil<strong>da</strong>de era sinônimo de baixeza e vileza — aos pagãos modernos é<br />

ela um atentado contra a razão humana, uma indigni<strong>da</strong>de para o homem. Com<br />

os princípios do mundo contrasta a idéia <strong>da</strong> virtude cristã. A humil<strong>da</strong>de como<br />

virtude é o conhecimento efetivo <strong>da</strong> completa sujeição <strong>da</strong> criatura ao Criador e<br />

<strong>da</strong>s imperfeições, fraquezas e pecaminosi<strong>da</strong>de do nosso ser. Para que a humil<strong>da</strong>de<br />

seja uma virtude cristã, deve conter não só o reconhecimento do nosso<br />

na<strong>da</strong>, mas ain<strong>da</strong> a aceitação voluntária desse reconhecimento, e a sua aplicação<br />

à vi<strong>da</strong>. Essa virtude brilhou de modo heróico em todos os Santos que procuraram<br />

imitar a Jesus que disse: “Aprendei de mim que sou humilde de coração”.<br />

Modelo consumado dessa virtude era o nosso <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>.<br />

Esquecido de quanto fizera em Varsóvia e em Viena dizia com convicção:<br />

“Na<strong>da</strong> posso fazer; o pouco que trabalhei e consegui, foi Deus quem fez por<br />

mim; não passo de indigno instrumento nas mãos de Deus”. Sempre que lhe<br />

acontecia algum mau resultado atribuía-o a seus pecados e à sua inabili<strong>da</strong>de:<br />

“Oh! se em to<strong>da</strong> a minha vi<strong>da</strong> eu tivesse correspondido à graça, dizia ele, quanto<br />

bem não teria Deus operado por meu intermédio!” Isso não era só amplificação<br />

retórica ou frase vazia nos lábios de <strong>Clemente</strong>, mas pura convicção pessoal,<br />

embora saibamos ser isso simplesmente fruto <strong>da</strong> sua profun<strong>da</strong> humil<strong>da</strong>de.<br />

<strong>Clemente</strong> era de natureza irascível, possuía um temperamento fogoso que logo<br />

fazia o sangue ferver nas veias; o Santo porém vencia-se, domava o seu natural,<br />

e mesmo que a alma sentisse os ímpetos furibundos de uma cólera violenta,<br />

não perdia o equilíbrio conservando-se tranqüilo no meio <strong>da</strong>s tempestades,<br />

e até nessas horas críticas, muitas vezes, o sorriso enflorava-lhe os lábios, como<br />

se nenhuma luta sentisse interiormente. Nos momentos mais difíceis, nos combates<br />

mais renhidos, percebendo que a força resistente se lhe esgotava, levantava<br />

os olhos ao céu pedindo a proteção d’Aquele que estendia seus braços e<br />

as on<strong>da</strong>s encapela<strong>da</strong>s e revoltosas se acalmavam. “A mortificação <strong>da</strong> carne,<br />

dizia ele, não é absolutamente necessária à salvação, nem é tão difícil, mas a<br />

repressão interna <strong>da</strong> própria vontade e do amor próprio é penosa, e não obstante,<br />

imprescindível para a aquisição <strong>da</strong>s virtudes cristãs”. O Servo de Deus longe de<br />

se entristecer com o seu temperamento ríspido e colérico, conformava-se com


a vontade divina e dizia: “Agradeço a Deus diariamente por me ter deixado essa<br />

irascibili<strong>da</strong>de: ela conserva em mim a humil<strong>da</strong>de e me preserva do orgulho”. O<br />

quanto apreciava a humil<strong>da</strong>de já o vimos em outro lugar, quando explicava às<br />

noviças de Sta. Úrsula a grande arte de agra<strong>da</strong>r a Deus. “A humil<strong>da</strong>de, dizia, é<br />

a raiz de to<strong>da</strong> a virtude”. Em suas pregações e conferências gostava de comentar<br />

a palavra de Sto. Agostinho: “A humil<strong>da</strong>de é a mãe, a educadora, a companheira<br />

e o complemento <strong>da</strong>s outras virtudes; mesmo as mais estupen<strong>da</strong>s obras<br />

são sem valor, se não procederem <strong>da</strong> humil<strong>da</strong>de e não forem por ela guia<strong>da</strong>s”.<br />

“Sede humildes, exortava a todos, porque do contrário a palavra de Deus será<br />

para vós como uma fábula”. Por ser humilde <strong>Clemente</strong> não se envergonhava de<br />

reconhecer e confessar as suas faltas, e com to<strong>da</strong> a devoção rezava: “Perdoai<br />

as nossas dívi<strong>da</strong>s...” A tempestade interna desencadeava em sua alma foi, uma<br />

vez, tão violenta, que não pôde evitar em seu exterior uns leves movimentos de<br />

ira, que bem mostravam o que lhe ia na alma. Humilhado e confundido disse na<br />

presença de todos: “Sim, sim, eu sou um pobre coitado”.<br />

Essa grande humil<strong>da</strong>de fazia-lhe desculpar as faltas nos outros. Quando<br />

alguém, esquecendo-se <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de devi<strong>da</strong> ao próximo, se punha a criticar ou<br />

censurar a outrem em presença do Servo de Deus, este constituía advogado do<br />

ofendido ou injuriado. Uma vez caiu a conversa sobre os santinhos que se distribuíam<br />

às crianças, os quais não eram artísticos nem bem feitos; os entendidos<br />

na estética indignaram-se com os santinhos e criticaram o autor, que rebaixavam<br />

e deprimiam sob o ponto de vista. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> cheio de compaixão<br />

observou: “Não levem isso a mal; o pobrezinho fez o que pôde, teve a melhor<br />

vontade de agra<strong>da</strong>r e isso basta”. Uma outra vez um médico pôs-se a descompor<br />

uma família, que na<strong>da</strong> de mal lhe havia feito: possuía ela em casa um<br />

altarzinho e nas paredes <strong>da</strong> casa belos quadros de Santos, em vez de tantas<br />

figuras indecentes, más e indignas que se encontram infelizmente em tantas<br />

casas para escân<strong>da</strong>lo <strong>da</strong>s famílias e dos visitantes; o médico desgostou-se com<br />

a pouca arte dos quadros, e pôs-se a censurar com acrimônia o pobre do pintor,<br />

a quem não queria consentir o prazer de se dedicar à arte <strong>da</strong> pintura, afirmando<br />

serem as suas obras um abuso e uma afronta à humani<strong>da</strong>de. O Servo de Deus,<br />

sempre bondoso, chamou-o à parte e repreendeu-o com brandura censurando<br />

o seu juízo tão severo, com as palavras: “Cui<strong>da</strong>do com o que dizes; não convém<br />

magoar um homem em coisas que lhe causam prazer”.<br />

Ele porém julgava-se muito mau, e admirava-se de que Deus o pudesse<br />

suportar prodigalizando-lhe tantos favores e graças, e, o coração nos lábios,<br />

agradecia ao Senhor sua grande generosi<strong>da</strong>de e pedia aos amigos agradecessem<br />

a Deus em seu lugar, acrescentando: “Sempre que agradecemos a Deus,<br />

alcançamos dele novos favores”.<br />

Também para com os homens era <strong>Clemente</strong> extremamente grato por qualquer<br />

serviço ou favor recebido. Em sinal de gratidão distribuía tercinhos, santinhos<br />

e semelhantes coisas, que todos aceitavam com prazer por serem presentes de<br />

um Santo e dádiva de um coração bondoso que não possuía coisas mais preciosas<br />

ou luxuosas para <strong>da</strong>r; às crianças que lhe faziam algum pequeno favor,<br />

<strong>da</strong>vam os seus recados, ou cumpriam as suas ordens, presenteava com maçãs<br />

ou outras frutas, bem como com um abracinho cheio de carinhos e ternura que<br />

alegrava o coração infantil.<br />

92<br />

Quando <strong>Clemente</strong> não tinha na ocasião coisa alguma para <strong>da</strong>r em retorno<br />

de algum favor recebido, dizia de coração um “Deus lhe pague”, que aliás nunca<br />

dispensava; comovia-se ao contar a história de S. Félix de Cantalício, que como<br />

pobre capuchinho, não tendo na<strong>da</strong> para retribuir aos amigos, dizia sempre ao<br />

receber algum presente: “Deo gratias”, isto é, Deus lhe pague, o que lhe valeu o<br />

significativo nome de Frei Deogratias que o povo lhe deu. Quando Deus mesmo<br />

paga, a recompensa é infinitamente maior do que quando nós retribuímos; é<br />

essa a simples razão por que o Servo de Deus não podia simpatizar-se com a<br />

expressão: “Muito obrigado”.<br />

<strong>Clemente</strong> sentia-se ver<strong>da</strong>deira e sinceramente incomo<strong>da</strong>do quando percebia<br />

haver causado involuntariamente a qualquer pessoa alguma ofensa ou desgosto.<br />

Numa ocasião alguém o informou de o haver procurado muitas vezes<br />

sem conseguir encontrá-lo; <strong>Clemente</strong> disse sentido: “Sinto-me envergonhado<br />

de tê-lo feito assim <strong>da</strong>r essas caminha<strong>da</strong>s; mas Deus tê-las-á contado e escrito<br />

no livro <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> para a recompensa”. <strong>Clemente</strong> era frio para os louvores humanos.<br />

“Que são as palavras humanas?” perguntava ele, e respondia: “<strong>São</strong> apenas<br />

uma pressão passageira do ar”. Ao ouvir algum elogio feito a seus merecimentos,<br />

ou a seus trabalhos, interrompia imediatamente o panegirista com as<br />

palavras: “Acabe com isso; a gente só louva as crianças e os loucos”. Por vezes<br />

sentia até asco dos encômios que lhe faziam. “Quem me louva, açouta-me”<br />

dizia ele servindo-se <strong>da</strong>s palavras que aprendera na escola do mártir Sto. Inácio<br />

de Antioquia. Por uma longa experiência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> conhecia a falsi<strong>da</strong>de dos louvores<br />

pronunciados por lábios humanos: “Alguns beijaram-me os vestígios dos<br />

pés, e três vezes mais atiraram sobre mim a lama <strong>da</strong> estra<strong>da</strong>; na medi<strong>da</strong> que<br />

uns me louvavam, outros me enchiam de apodos e injúrias”. — <strong>Clemente</strong> manifestava<br />

não só por palavras, mas também por obra a sua profun<strong>da</strong> e ver<strong>da</strong>deira<br />

humil<strong>da</strong>de. Embora sacerdote acatado pelos mais finos representantes <strong>da</strong> aristocracia<br />

de sua terra, embora Vigário geral <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> Redentorista, servia<br />

a todos com a maior prontidão, lavava com suas próprias mãos os meninos<br />

órfãos, ia à cozinha, acendia a estufa nas celas dos confrades, costurava as<br />

suas vezes, procurava os pobres e com eles se entretinha familiarmente; com<br />

os ricos e grandes do século só ia ter em se tratando de ganhá-los para Deus;<br />

na igreja ajoelhava-se ao lado dos pobres, cuja pie<strong>da</strong>de o encantava; e fugia <strong>da</strong><br />

haute volée repetindo a miudo: “Os pobres procuram a igreja por devoção e<br />

amor de Deus, que adoram e saú<strong>da</strong>m já desde o romper <strong>da</strong> manhã”. Quando<br />

algum neo-presbítero cantava sua primeira missa, <strong>Clemente</strong> gostava de servir<br />

ao altar, e em geral nas missas solenes servia de subdiácono que é o ofício de<br />

menor saliência. “A humil<strong>da</strong>de é a sau<strong>da</strong>de de servir; a alma que, livre do amor<br />

próprio, procura em tudo estar submissa e servir, aju<strong>da</strong>r e alegrar os outros, é<br />

ver<strong>da</strong>deiramente humilde”. Com essas palavras <strong>Clemente</strong>, sem o saber, descrevia<br />

a sua própria vi<strong>da</strong>, e desenhava o seu retrato.<br />

O Santo, em geral, evitava falar de si mesmo, mormente quando o assunto<br />

podia reverter em louvor ou glória para ele; calava-se e na<strong>da</strong> dizia aos outros,<br />

quando recebia alguma visita honrosa, ou quando era alvo de parabéns ou<br />

felicitações mereci<strong>da</strong>s. — Embora desde 1793 ele fosse Vigário geral, isto é,<br />

possuísse o primeiro posto na <strong>Congregação</strong> depois do Reitor-mor em Roma,<br />

muitas pessoas, mesmo entre as mais íntimas, o ignoravam completamente,


chegando a sabe-lo só depois <strong>da</strong> morte do Santo. Ocultava com cui<strong>da</strong>do as<br />

graças singulares que Deus lhe concedia com tanta profusão, e disfarçava os<br />

mais estupendos milagres que operava. Uma vez disse a Madlener, um dos<br />

seus prediletos: “Meu caro Madlener, comigo vão muitos segredos ao túmulo,<br />

quiser t’os contar, mas não sabes guar<strong>da</strong>r segredos”.<br />

A esposa de Klinkowström tinha um filho, que era ídolo <strong>da</strong> mãe; mas Deus<br />

parecia tê-lo reservado para o céu em seus tenros anos; as escrófulas apoderaram-se<br />

<strong>da</strong> criança, tendo por conseqüência a tuberculose, e o pequeno emagreceu<br />

que mais parecia um cadáver do que um ser vivo. <strong>Clemente</strong>, que se<br />

<strong>da</strong>va muitíssimo com a família, foi visitá-la para colher notícias a respeito do<br />

pequeno. A mãe desconsola<strong>da</strong>, debulha<strong>da</strong> em lágrimas, apresentou a criança<br />

ao Santo: era só pele e osso, o corpinho já frio, os olhos vidrados, voltados para<br />

um lado, as lágrimas maternas que caiam, a fio, sobre o rosto do pequeno, não<br />

conseguiam aquecê-lo. <strong>Clemente</strong> olha o menino e com um sorriso nos lábios,<br />

bate-lhe mansamente com a mão na face, faz-lhe na fronte um sinal <strong>da</strong> cruz e<br />

diz à mãe: “Isso não é na<strong>da</strong>; hoje à tarde o pequeno terá fome e pedirá de<br />

comer”. E rapi<strong>da</strong>mente dá uma volta firmando-se no salto do sapato, e retira-se.<br />

À tarde o sangue apareceu nas faces do pequeno que pediu alimento, e conservou<br />

<strong>da</strong>i por diante o seu apetite. A mãe, quase não acreditando em seus próprios<br />

olhos, chorou, porém, de contentamento e amor. O pequeno cresceu com<br />

saúde e atingiu uma i<strong>da</strong>de bem avança<strong>da</strong>.<br />

<strong>Clemente</strong> era ávido dos sofrimentos e <strong>da</strong>s humilhações, como os outros o<br />

são <strong>da</strong>s honras e grandezas humanas. Muitas vezes convi<strong>da</strong>do às refeições por<br />

pessoas nobres ou altamente coloca<strong>da</strong>s, aceitava o convite não pela honra que<br />

lhe podia advir disso, mas pela ocasião que se lhe oferecia de sofrer um pouco<br />

por Nosso Senhor. Nessas ocasiões era, às vezes, posposto e deixado de lado;<br />

muitos dos que o conheciam e veneravam, envergonhavam-se do manto usado<br />

e velho, dos sapatos rotos, <strong>da</strong> batina remen<strong>da</strong><strong>da</strong>, <strong>da</strong>s maneiras não muito finas<br />

e <strong>da</strong> linguagem, às vezes, incorreta; muitos padres não lhe prestavam a atenção<br />

devi<strong>da</strong>, deixando-o só e sem entretenimento. Isso era um achado para <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong>, que em tudo se queria tornar semelhante ao divino Mestre, que em<br />

sua vi<strong>da</strong> mortal foi desprezado, preterido e até injuriado por amor de nossas<br />

almas. Executava em si e em sua vi<strong>da</strong> aquilo que tantas vezes pregava às<br />

Ursulinas: “Sede humildes e convencei-vos que ninguém vos faz injúrias; só<br />

assim podereis suportar com resignação, e até com alegria todo o desprezo<br />

pelo amor de Deus”. Só esse é o caminho reto e ver<strong>da</strong>deiro <strong>da</strong> humil<strong>da</strong>de: “A<br />

humil<strong>da</strong>de é a ver<strong>da</strong>de; falar e agir com humil<strong>da</strong>de é bom, porém só quando<br />

nisso há sinceri<strong>da</strong>de, porque diz a Escritura que alguns se humilham astutamente<br />

ficando o coração repleto de orgulho; o sinal mais certo e mais seguro <strong>da</strong><br />

ver<strong>da</strong>deira humil<strong>da</strong>de tem aquele que aceita e suporta as humilhações com<br />

paciência, amor e alegria.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> atingiu tão alto grau de desprendimento de si próprio que<br />

pôde dizer com ver<strong>da</strong>de: “Ser louvado ou censurado tem para mim o mesmo<br />

valor; só somos aquilo que valemos diante de Deus”.<br />

Na medi<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua humil<strong>da</strong>de crescia o seu amor também para com os<br />

inimigos, isto é, para com aqueles que o desprezavam e cobriam de injúrias.<br />

Tendo uma vez de fazer uma viagem <strong>Clemente</strong>, que não possuía muito<br />

93<br />

dinheiro para gastar, tomou o carro do correio, onde por acaso teve de fazer<br />

companhia a um Senhor desconhecido. Como todos sabem, é agradável, em<br />

viagem, mormente longa, ter um companheiro com o qual se possa trocar idéias<br />

e passar menos aborrecido o tempo — mas nessa ocasião não se deu o<br />

mesmo com o Servo de Deus, porque o seu companheiro era lavado em to<strong>da</strong>s<br />

as águas, e de religião e pie<strong>da</strong>de ou antes de educação e filantropia não possuía<br />

nem a mais rudimentar noção. Embora jovem achava-se já envelhecido<br />

pelo vício, todo cheio de sensuali<strong>da</strong>de e de ódio ao sacerdócio. No princípio<br />

lançou para o Santo, que se sentara em frente, um olhar sinistro, que bem<br />

mostrava a ira de que estava possuído; não tardou a abrir a boca imun<strong>da</strong> para<br />

expectorar sua bílis. Quanto mais falava, tanto mais eloqüente e violento se<br />

tornava; vendo que o Santo não reagia, indignou-se, desatou em blasfêmias<br />

horrorosas contra Deus e todo mundo, mormente contra <strong>Clemente</strong>, que desejava<br />

ver estraçalhado, picado e reduzido a sabão.<br />

Ao ouvir as blasfêmias o Servo de Deus estremeceu e pediu-lhe que cessasse<br />

tamanha ofensa contra Deus, porém debalde, a cólera do companheiro<br />

aumentava-se a ca<strong>da</strong> palavra que o Santo proferia. Percebendo serem os seus<br />

conselhos improfícuos, o Servo de Deus calou-se e pôs-se a rezar pelo infeliz,<br />

continuando por muito tempo sentado em frente do blasfemador.<br />

Ao chegarem ao primeiro restaurante, o jovem senhor sentiu o estômago<br />

vazio e conseqüentemente apetite devorador e sede ain<strong>da</strong> maior. Quis levantarse,<br />

mas o corpo, apodrecido pelos vícios, não teve força para erguer-se. <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong>, vendo a dificul<strong>da</strong>de do infeliz, esquece-se <strong>da</strong>s injúrias recebi<strong>da</strong>s,<br />

toma-o em seus braços, aju<strong>da</strong>-o a descer conduzindo-o em segui<strong>da</strong> ao restaurante<br />

com todo o cui<strong>da</strong>do. Termina<strong>da</strong> a refeição <strong>Clemente</strong> torna a tomá-lo em<br />

seus braços e transporta-o ao carro tratando-o como uma mãe desvela<strong>da</strong>. O<br />

blasfemador sentiu-se confundido, reconheceu o papel feio que acabava de<br />

fazer, admirou a delicadeza, cari<strong>da</strong>de e santi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>quele sacerdote, cujos lábios<br />

só se moviam para a oração, pediu perdão com to<strong>da</strong> a humil<strong>da</strong>de dizendo:<br />

“Se tivesse conhecido, a mais tempo, um sacerdote como vós, nunca teria caído<br />

em tão mísero estado”.<br />

Quando <strong>Clemente</strong> praticava atos heróicos de cari<strong>da</strong>de e paciência como<br />

esse, não se preocupava tanto com a fragili<strong>da</strong>de humana, mas visava tão somente<br />

a alma imortal cria<strong>da</strong> à imagem e semelhança de Deus. O Servo de<br />

Deus amava os inimigos e os perseguidores e chegava a dizer: “Os inimigos<br />

devem ser tidos na conta de benfeitores, porque nos auxiliam a ganhar o céu”.<br />

E de fato eles nos dão ocasião para a prática <strong>da</strong>s mais belas virtudes como <strong>da</strong><br />

paciência, mansidão, confiança em Deus, submissão à vontade divina e magnanimi<strong>da</strong>de,<br />

virtudes essas que não existiriam se não fossem os inimigos ou os<br />

mal-entendidos sobre a terra. <strong>Clemente</strong> tinha inimigos gratuitos que o odiavam<br />

entranhavelmente, desejavam destruir a sua obra e impedir a execução dos<br />

seus planos; o Santo porém nunca se queixou nem deixou escapar a menor<br />

palavra de murmuração ou de desgosto contra os seus perseguidores. Ao contrário<br />

conservava-se sempre alegre e sorridente no meio <strong>da</strong>s tempestades internas,<br />

que se moviam em seu coração, e <strong>da</strong>s externas que se desencadeavam<br />

contra ele. Uma Ursulina mostrando-se uma vez compadeci<strong>da</strong> com o Santo por<br />

causa <strong>da</strong>s muitas perseguições, de que era alvo, dirigiu-se a ele para lhe abrir o


coração. Em segui<strong>da</strong>, desejando edificar-se com as palavras do Santo, perguntou-lhe<br />

se não sentia algum rancor no seu coração. A sorrir-se <strong>Clemente</strong> levantou<br />

a mão para o alto dizendo: “Eis, minha mão não está mancha<strong>da</strong> de sangue<br />

nem nunca o derramou”.<br />

A sua única vingança consistia em rezar pelos inimigos afim de os ganhar<br />

para Nosso Senhor. No número desses adversários achava-se um sacerdote<br />

que o detestava e não perdia vasa em denegri-lo e caluniá-lo, fazendo tudo para<br />

vê-lo expulso de Viena. <strong>Clemente</strong> sabia disso, e para mostrar que não guar<strong>da</strong>va<br />

<strong>da</strong>quilo nenhum ressentimento, todos os domingos ia assistir-lhe a pregação<br />

para dela haurir proveito para a sua alma; louvava-o em to<strong>da</strong> a parte salientando<br />

e enaltecendo-lhe as boas quali<strong>da</strong>des e desculpando qualquer falta ou defeito<br />

que o dito padre pudesse ter cometido.<br />

Do púlpito o Servo de Deus não se cansava de recomen<strong>da</strong>r o amor aos<br />

inimigos e o perdão <strong>da</strong>s injúrias, e com o Evangelho na mão, repetia constantemente<br />

que ninguém deve ir acomo<strong>da</strong>r-se, à noite, sem antes perdoar de coração<br />

a quem o ofendeu. “Perdoai e ser-vos-à perdoado”, dizia ele com suas<br />

palavras e seu exemplo. Uma vez voltava o Santo <strong>da</strong> Igreja <strong>da</strong>s Ursulinas para<br />

casa, os olhos semicerrados, todo reconcentrado nas suas meditações. No outro<br />

lado <strong>da</strong> rua, na mesma direção, ia um par de noivos, de braços <strong>da</strong>dos,<br />

palestrando com animação fora do comum; falavam do Santo e tão alto que ele<br />

os ouvia; lançavam-lhe de quando em vez olhares sarcásticos, permitindo-se<br />

graçolas, ditos picantes e até ofensivos. Na intenção de magoarem o Servo de<br />

Deus, que não os ofendera, puseram-se a insultá-lo, <strong>da</strong>ndo-lhe os nomes de<br />

“santo taumaturgo” “ligoriano”, desfazendo-se em risa<strong>da</strong>s, e até em gargalha<strong>da</strong>s<br />

por causa desses nomes, que eles nem compreendiam. O Santo fez como<br />

se não ouvisse aqueles gracejos, sentindo sincera compaixão dos pobrezinhos.<br />

Aconteceu que no meio <strong>da</strong>s risa<strong>da</strong>s e dos vitupérios a senhoria deixou cair o<br />

lenço, sem o perceber. <strong>Clemente</strong> que casualmente vira aquilo, foi até o lugar<br />

onde estava o lenço, levantou-o do chão e an<strong>da</strong>ndo um pouco mais depressa<br />

alcançou a dona, a quem entregou o objeto perdido. Envergonha<strong>da</strong> a senhorinha<br />

nem sabia para onde olhar, e o seu muito digno companheiro não ficou<br />

menos perplexo. Uma única palavra lhes veio aos lábios: “Queira perdoar-nos,<br />

padre”.<br />

94<br />

CAPÍTULO XXI<br />

Amor ao clero e à <strong>Congregação</strong><br />

Amor ao Papa, aos Bispos e Sacerdotes — As pupilas de Deus — O sacerdote<br />

francês — Redentorista até a medula dos ossos — Cache-nez de se<strong>da</strong> —<br />

Exemplos de severi<strong>da</strong>de e brandura — Enérgico protesto — Difusão <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

— Fun<strong>da</strong>ção na Valachia — Sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong> Polônia.<br />

AMOR AO CLERO! — É impossível amar a Esposa mística de Jesus Cristo,<br />

a Santa Igreja, sem se sentir animado de santa veneração para com os seus<br />

ministros, a saber: o Papa, os Bispos e os Sacerdotes. Quantas vezes não disse<br />

o Servo de Deus do alto do púlpito: “Quem não honra e venera o Papa, não<br />

honra nem venera nossa mãe, a Santa Igreja; quem não obedece às ordens e<br />

aos preceitos do Sumo Pontífice, é um filho indigno <strong>da</strong> Igreja; quem não reza<br />

por seu pai, é um filho desnaturado, e quem não ora pelas intenções do Santo<br />

Padre, é um mau cristão”.<br />

Ele mesmo sentia-se animado de profundo respeito e sincero amor para<br />

com o Papa, que sabia revestido <strong>da</strong> digni<strong>da</strong>de suprema no mundo, o representante<br />

de Deus sobre a terra, o rochedo sobre o qual Jesus edificou a sua Igreja,<br />

o Pastor dos pastores, o pai espiritual de todos os milhões de católicos que<br />

existem, o possuidor <strong>da</strong>s chaves do reino dos céus, o oráculo do Espírito Santo,<br />

que o protege e ampara contra os erros, sempre que ele se apresenta como<br />

pastor supremo <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong>de a ensinar uma doutrina de fé ou de moral. Sentia<br />

orgulho santo por poder <strong>da</strong>r-lhe o nome de pai e declarar-se filho obediente<br />

e humilde <strong>da</strong> Santa Sé. As sau<strong>da</strong>des que sentia do Papa, levaram-no, mais<br />

vezes, a Roma; quando não podia ir pessoalmente, escrevia-lhe cartas informando-o<br />

dos acontecimentos tristes ou alegres <strong>da</strong> religião na Europa, maxime<br />

na Áustria.<br />

Ao falar <strong>da</strong> pessoa augusta do Pontífice usava sempre as expressões mais<br />

respeitosas, os termos mais reverentes, como se falasse de um Santo, ou do<br />

próprio Jesus Cristo. Uma vez foi-lhe <strong>da</strong><strong>da</strong> a honra de receber do Santo Padre<br />

Pio VII um rosário <strong>da</strong> Ss. Virgem; <strong>Clemente</strong> conservou-o, to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong>, qual<br />

relíquia preciosa, que o acompanhava em to<strong>da</strong> a parte. Dando uma vez pela<br />

falta do precioso tesouro ficou inconsolável, rezou e mandou as Ursulinas rezar<br />

a Sto. Antônio que costuma achar coisas perdi<strong>da</strong>s. Quando uma <strong>da</strong>s Irmãs encontrou<br />

o rosário, <strong>Clemente</strong> exultou de contentamento; porque aquele terço<br />

não lhe recor<strong>da</strong>va somente sua Mãe celestial, mas também a pessoa do representante<br />

de Jesus sobre a terra.<br />

Ao Núncio Apostólico de Viena tributava o Santo to<strong>da</strong> a veneração e respeito,<br />

porque nele via incorpora<strong>da</strong> a pessoa do Santo Padre em sua Pátria. Os


ispos eram-lhe como anjos de Deus, ver<strong>da</strong>deiros príncipes, elevados a essa<br />

digni<strong>da</strong>de pelo Sacramento <strong>da</strong> ordem, que eles possuem em to<strong>da</strong> a plenitude;<br />

de coração e com alegria executava pontualmente as suas determinações e<br />

ordens, que considerava a expressão <strong>da</strong> vontade divina. Ao encontrar-se casualmente<br />

com algum sacerdote sau<strong>da</strong>va-o, onde quer que fosse, com todo o<br />

respeito e atenção. Dos padres só falava como convém a ministros de Deus;<br />

não consentia que em sua presença alguém faltasse à reverência devi<strong>da</strong> ao<br />

caráter e à digni<strong>da</strong>de sacerdotal. Sempre que algum sacerdote aparecia na<br />

igreja para celebrar, <strong>Clemente</strong> ia-lhe ao encontro, recebia-o com demonstrações<br />

de contentamento, aju<strong>da</strong>ndo-o, em pessoa, a paramentar-se para o Santo<br />

Sacrifício. Aos padres gostava de <strong>da</strong>r o nome tão lindo quão significativo que<br />

encontrara na Escritura Sagra<strong>da</strong>: “pupilas de Deus”. E realmente esse nome<br />

quadra admiravelmente com o sacerdote, quando encarado à luz <strong>da</strong> fé. Como a<br />

pupila dos olhos, embora pequenina, pode abranger um mundo de coisas que<br />

nele se refletem, e exerce uma força admirável sobre homens, que se deixam<br />

prender, muitas vezes, por um olhar, diante do qual tremem ou choram, assim o<br />

padre é, diante de Deus, uma pobre criatura, mas possui uma força sobrehumana,<br />

leva em suas mãos o Criador dos céus e <strong>da</strong> terra, com uma palavra<br />

faz baixar do céu o Filho de Deus, encerrando-o em uma hóstia, e com a mesma<br />

facili<strong>da</strong>de restitui a graça e a amizade de Deus ao coração arrependido. O<br />

sacerdócio é uma maravilha do poder e bon<strong>da</strong>de de Deus. O homem preza a<br />

menina dos seus olhos mais do que to<strong>da</strong>s as riquezas terrenas; assim Deus<br />

ama os seus ministros e quer vê-los amados e obedecidos por todos. “Quem<br />

vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza”. Não permite que<br />

alguém os maltrate ou ofen<strong>da</strong> “Nolite tangere Christos meos”, isto é, “não toqueis<br />

os meus sacerdotes”, e raras vezes deixa sem castigo, já neste mundo, a quem<br />

ofende a pessoa do padre, que lhe é consagrado.<br />

Mesmo quando um ou outro sacerdote, por fragili<strong>da</strong>de humana, se desviara<br />

do cumprimento do dever, tornando-se talvez uma pupila inflama<strong>da</strong>, ou encoberta<br />

por densa catarata, <strong>Clemente</strong> o venerava e pedia a Deus, se dignasse<br />

iluminá-lo e convertê-lo. Em 1816 apareceu no quarto do Santo um indivíduo<br />

maltrapilho, que <strong>da</strong>va aparência de um vagabundo de botas rotas, calças esquáli<strong>da</strong>s,<br />

paletó esburacado, chapéu amarrotado: era um sacerdote francês, que,<br />

seduzido pelos revolucionários, prestara o juramento à constituinte francesa, o<br />

que o papa proibira sob pena de suspensão. Pobre sacerdote! esperava grandes<br />

coisas <strong>da</strong> revolução, talvez uma colocação rendosa no novo governo, uma<br />

vi<strong>da</strong> flautea<strong>da</strong> como lhe tinha sido prometido. Mas o contrário se dera. Desprezado<br />

pelos seus e atormentado pelos remorsos <strong>da</strong> consciência, o pobrezinho<br />

não teve sossego desde aquele dia infeliz; peregrinava de um lugar para o outro<br />

sem descanso e definhava a olhos vistos. Não suportando mais a vi<strong>da</strong> em sua<br />

pátria, dirigiu-se ao Núncio Apostólico de Viena, a quem, arrependido, narrou<br />

sua triste história, a página negra <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, pedindo remédio para seus grandes<br />

males. O Núncio compadeceu-se do infeliz e enviou-o a <strong>Clemente</strong>, a quem<br />

dera poder de o absolver <strong>da</strong> excomunhão em que incorrera. O Servo de Deus<br />

recebeu-o com amor, hospedou-o, matou-lhe a fome, cortou-lhe os cabelos,<br />

fez-lhe a tonsura e pregou-lhe durante uns dias o santo retiro preparatório para<br />

a execução <strong>da</strong> sentença, que era a absolvição <strong>da</strong> excomunhão e o perdão dos<br />

95<br />

pecados que cometera em sua vi<strong>da</strong>.<br />

Amor é <strong>Congregação</strong>. Entre to<strong>da</strong>s as coisas <strong>da</strong> terra o que lhe ficava mais<br />

perto do coração, a receber as suas cáli<strong>da</strong>s pulsações, era, sem dúvi<strong>da</strong>, a <strong>Congregação</strong>.<br />

<strong>Clemente</strong> era Redentorista e gloriava-se dessa honra; pela <strong>Congregação</strong><br />

estava pronto a <strong>da</strong>r seu sangue e sua vi<strong>da</strong>. Não se esquecia jamais do<br />

momento em que, pobre padeiro de Viena, fora em Roma recebido no noviciado<br />

de <strong>São</strong> Julião, onde se preparou para a vi<strong>da</strong>, emitindo, depois do noviciado, os<br />

santos votos que o prenderam para sempre à <strong>Congregação</strong>. Em Roma bebera,<br />

em largos tragos, o espírito de Sto. Afonso, que não é outro senão o espírito de<br />

oração e de amor ardente a Jesus e a Virgem Santíssima. A <strong>Congregação</strong> ficou<br />

sendo sua mãe espiritual, e as santas Regras, o livro santo, que lhe interpretava<br />

a vontade divina , o código pelo qual seria julgado um dia pelo Juiz eterno.<br />

Lia e decorava esse complexo de leis e avisos, observava-os com o maior<br />

escrúpulo, não só nos pontos capitais e de maior importância, mas em todos os<br />

pormenores e no espírito, com que foram confeccionados. Embora nos últimos<br />

anos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> não pudesse residir em um convento propriamente dito, mas só<br />

em uma casa particular, nunca deixou de observar o horário prescrito pela Regra,<br />

mesmo nos dias de maior trabalho e ocupação. Com seus Superiores em<br />

Roma entretinha a mais exata correspondência epistolar, pondo-os sempre ao<br />

par de tudo quanto se passava na Áustria e na Suíça, ou consultando-os a<br />

respeito dos mais importantes projetos. Isso é tanto mais admirável, quanto<br />

mais difíceis eram as circunstâncias do tempo, em que o josefismo procurava<br />

impedir to<strong>da</strong> e qualquer comunicação com Roma.<br />

Quanto à observância regular era ele de uma exatidão admirável. Aos<br />

Redentoristas é proibido, pela Regra, o uso <strong>da</strong> se<strong>da</strong>, por ser esta objeto de luxo<br />

e não ficar bem a um simples Religioso. Aconteceu ficar <strong>Clemente</strong> atacado na<br />

laringe de um incômodo, proveniente dos esforços feitos na pregação <strong>da</strong> palavra<br />

de Deus. Embora vítima de dores atrozes por causa dessa enfermi<strong>da</strong>de,<br />

nem por isso deixava de pregar oferecendo esses sofrimentos a Nosso Senhor<br />

pela conversão dos pecadores. Uma nobre senhora de Viena, notando que a<br />

voz lhe saia com dificul<strong>da</strong>de, teve compaixão e comprou-lhe um cache-nez de<br />

se<strong>da</strong>, para o defender do frio e <strong>da</strong> constipação. <strong>Clemente</strong> meneou a cabeça, a<br />

sorrir, e disse: “Minha filha, a um Redentorista não é permitido o uso de objetos<br />

de se<strong>da</strong>”. Notando que a pobre senhora se entristecera com essa palavra, não<br />

querendo magoá-la, acrescentou: “Se a senhora deseja obsequiar-me e faz<br />

questão disso, eu aceito um cache-nez de lã”. Em outro lugar desta obra temos<br />

já considerado o Santo como Superior, e visto o seu zelo pela observância<br />

regular entre os confrades, mormente em se tratando do amor à pobreza, que é<br />

a essência <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> religiosa. <strong>Clemente</strong> não deixava de repreender qualquer<br />

defeito ou falta contra a santa obediência. O Pe. Sabelli era um tanto voluntarioso,<br />

e não poucas vezes gostava de seguir a sua opinião com prejuízo <strong>da</strong> observância<br />

e <strong>da</strong> ordem; estando ele um dia já paramentado para começar a missa,<br />

o Santo, querendo provar-lhe a obediência, entrou na sacristia e sem outros<br />

preâmbulos mandou-o desparamentar-se. Sabelli que estava então de bom<br />

humor, tirou os paramentos sem nem franzir a fronte em sinal de desaprovação.<br />

O Santo ficou satisfeito com a obediência do padre e permitiu-lhe celebrar. Em<br />

outra ocasião mandou chamar à sacristia o padre Martinho Stark, que estava


ouvindo confissões na igreja. Como perto do confessionário se achava ain<strong>da</strong><br />

uma pessoa esperando a sua vez, Martinho não obedeceu prontamente e atendeu<br />

mais aquele último penitente. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> esperou-o com paciência, na<br />

sacristia; quando o súdito chegou, perguntou-lhe secamente: “Onde é que ficou<br />

tanto tempo?” O padre deu a explicação que julgava justificar o seu procedimento,<br />

ao que o santo acrescentou com certo azedume: “Isso o Sr. não fez para<br />

Deus, mas para o demônio”. Uma outra vez, esse mesmo padre, não se sabe<br />

bem por que, não chegou a tempo como devia; <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> desejando chamar-lhe<br />

a atenção e fornecer-lhe uma bela ocasião de se humilhar, mandou-o<br />

ajoelhar-se e passou-lhe uma tremen<strong>da</strong> descompostura, de sorte que o padre<br />

tremia como se tivesse chegado para ele a hora do juízo. Dr. Madlener achavase<br />

presente, e ao ouvir semelhante trovoa<strong>da</strong>, encheu-se de compaixão e pôsse<br />

a desculpá-lo; o Santo, fitando-lhe os olhos, disse com laconismo: “Isso não<br />

é <strong>da</strong> sua conta, o sr. não entende na<strong>da</strong> disso; por ele não, o sr., mas eu tenho de<br />

prestar contas a Deus”.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> procedia dessa forma, não para se mostrar grande ou fazer<br />

sentir sua autori<strong>da</strong>de, mas única e exclusivamente em prol <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> e<br />

<strong>da</strong> observância regular. Se, às vezes, parecia um trovão de severi<strong>da</strong>de, logo em<br />

segui<strong>da</strong> se transformava em cordeiro de mansidão e bon<strong>da</strong>de personifica<strong>da</strong>, de<br />

sorte que ninguém levava a mal essa sua energia e firmeza. <strong>Clemente</strong> não<br />

queria caracteres efeminados na <strong>Congregação</strong>, padres sem energia e incapazes<br />

de ação firme, mas só homens de resolução e força de vontade, heróis na<br />

observância regular, caracteres lídimos e amantes <strong>da</strong> virtude e do trabalho.<br />

Mesmo a seus Superiores em Roma escrevia, com respeito sim, mas com<br />

franqueza, quando se tratava <strong>da</strong> observância regular. Aconteceu que na Itália<br />

alguns padres Redentoristas, sentindo demasiado o rigor <strong>da</strong> pobreza e não<br />

querendo romper de vez com a Regra, encontraram um meio termo, decretando<br />

que ca<strong>da</strong> padre pudesse ter algum dinheiro, à sua disposição, na gaveta do<br />

Reitor; isso chegou a ser aprovado por um Capítulo Geral. O Santo, compreendendo<br />

que isto era inteiramente incompatível com o voto de pobreza, emitido na<br />

<strong>Congregação</strong>, escreveu a Roma protestando contra semelhante determinação,<br />

“que dizia ele, é prejudicial ao voto de pobreza, multiplica os desgostos, prepara<br />

a ruína completa <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> pelos inúmeros abusos e perturbações <strong>da</strong><br />

ordem, a qual se abre a porta com esse decreto”.<br />

Consoli<strong>da</strong>ndo interiormente o bom espírito dos seus padres e preparandoos<br />

para a prática de to<strong>da</strong>s as virtudes religiosas, pensava <strong>Clemente</strong> em engrandecer<br />

a sua queri<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> e difundi-la pelo mundo inteiro para a maior<br />

glória de Deus e para o bem <strong>da</strong>s almas. Concebeu os mais arrojados planos,<br />

percorreu, a pé, em viagens de fun<strong>da</strong>ção, numerosos países <strong>da</strong> Europa, sondou<br />

inúmeros lugares, onde pudesse encontrar um ponto tranqüilo para o desenvolvimento<br />

<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> e para a fun<strong>da</strong>ção de novos conventos.<br />

A Alemanha, a Áustria, a França, a Suíça, a Rússia fizeram parte de seus<br />

projetos, porém em parte alguma viu luzir esperança de resultado para os seus<br />

planos; volveu seu pensamento para a América, e tinha já destacado dois padres<br />

para início <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção nessa terra nova, onde se aspiravam as auras<br />

risonhas <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de religiosa, quando apareceu em Viena Mons. Ercolani,<br />

bispo <strong>da</strong> Valachia, e pediu ao Santo, desistisse <strong>da</strong> América e man<strong>da</strong>sse para a<br />

96<br />

sua diocese os padres Redentoristas que tanto se distinguiam pelo bom espírito<br />

e amor ao trabalho. Ponderando os motivos apresentados pelo bispo e considerando,<br />

que em Bucareste havia muitos mil alemães desprovidos de socorro<br />

espiritual, sem nem um padre sequer, que lhes pudesse quebrar o pão <strong>da</strong> palavra<br />

divina, em iminente perigo de se tornarem luteranos ou calvinistas mandou<br />

o Servo de Deus três de seus padres e um irmão leigo, que começassem lá<br />

uma fun<strong>da</strong>ção. Com a sua bênção deu-lhes os necessários conselhos e instruções,<br />

e mais uma boa soma de dinheiro, que lhes deveria facilitar o trabalho nos<br />

primeiros anos. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> achava-se animado <strong>da</strong> mais fagueira esperança<br />

pela nova fun<strong>da</strong>ção, chegando a escrever a um amigo: “A seara é grande, lá<br />

existem gregos cismáticos e seitas de to<strong>da</strong>s as nações, que é preciso conduzir<br />

ao redil <strong>da</strong> Igreja de Cristo; a Ásia não dista muito de lá”. Uma outra vez desabafou<br />

o seu coração no de seu amigo Frederico Schlosser escrevendo-lhe: “Bucareste<br />

é o escoadouro de to<strong>da</strong>s as nações; muitos moços — até de 18 anos —<br />

não sabem nem a que religião pertencem, porque não há instrução religiosa<br />

nas escolas; nas povoações rurais as igrejas estão caindo por não haver quem<br />

delas se compadeça”. As primeiras notícias eram em extremo consoladoras; os<br />

triunfos dos seus padres e <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> enchiam seu nobre coração de<br />

alegria e satisfação. Após o recebimento dessas novas escreveu a um seu amigo:<br />

“O bom Pe. José faz milagres naquela terra selvagem, prega em alemão; e,<br />

em caso de necessi<strong>da</strong>de ouve confissões também em valacho; essa ci<strong>da</strong>de<br />

(Bucareste) é o valhacoito de todos os foragidos, uma mata virgem por onde<br />

correm to<strong>da</strong>s as feras; lá reina a mais crassa ignorância em coisas do céu... os<br />

pais só tratam de <strong>da</strong>r de comer a seus filhos e de trabalhar; o bom Pe. José<br />

precisa correr de um lado para o outro, pedindo aos pais que permitam aos<br />

filhos freqüentarem a escola, que lá erigiu em casa aluga<strong>da</strong>, e Deus tem-se<br />

servido dele para operar uma transformação maravilhosa de costumes”. Notícias<br />

tristes e alarmantes, porém, não tar<strong>da</strong>ram também a chegar aos ouvidos do<br />

Vigário Geral <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> em Viena. Ao ouvir que os seus caros confrades<br />

eram perseguidos injustamente pelos sacerdotes cismáticos, e que se achavam<br />

reduzidos à maior miséria, não tendo teto sob que se abrigassem, por o<br />

bispo não haver sustentado sua palavra nem cumprido o trato, <strong>Clemente</strong> chorou,<br />

arrependido de haver causado, embora involuntariamente, esses desgostos<br />

e sofrimentos a seus confrades.<br />

Confiando sempre na Providência que tudo governa, deixou seus padres<br />

na Valachia, esperançoso de que melhorassem as condições de vi<strong>da</strong>, e afinal,<br />

se encontrasse um lugar favorável ao desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>. — Em<br />

1818 um dos padres <strong>da</strong> nova fun<strong>da</strong>ção foi a Viena ter com o Santo e <strong>da</strong>r-lhe as<br />

necessárias informações.<br />

É fácil imaginar-se o interesse com que <strong>Clemente</strong> o recebeu; tornava a ver<br />

o seu querido José Forthuber, jovem de seus trinta anos, bela e robusta figura,<br />

adorna<strong>da</strong> de uma barba longa e espessa que mais ain<strong>da</strong> o recomen<strong>da</strong>va. As<br />

narrações dos trabalhos empreendidos animaram a <strong>Clemente</strong>, mormente quando<br />

ouviu que em to<strong>da</strong> a parte os missionários eram recebidos como anjos do céu.<br />

“Quando os missionários chegam a um povoado qualquer, conta o Pe. José,<br />

e se alojam em algum albergue ou casa de pau a pique coberta de sapé, onde<br />

homens e animais habitam conjuntamente, ouvem, ain<strong>da</strong> à noite, as confissões


dos homens, e no outro dia de manhã, depois de enxotados <strong>da</strong> habitação os<br />

animais e feito o necessário e possível asseio, levantam um altar provisório,<br />

confessam as mulheres e, em segui<strong>da</strong>, celebram a missa e distribuem a comunhão.<br />

Depois dão aula de catecismo aos presentes, visitamos doentes, põem<br />

em ordem os diversos negócios e decidem todos os litígios, porque nessa terra<br />

os padres devem ser tudo, até juízes”.<br />

Não obstante tudo isso, o Servo de Deus estava pouco resolvido a deixar<br />

os seus padres partir novamente para a Valachia; temia que o excesso de trabalhos<br />

arruinasse os seus caros confrades. Como, porém, os jovens redentoristas<br />

se sentiam com força e coragem, sedentos <strong>da</strong>s almas abandona<strong>da</strong>s e sem<br />

nenhum receio ou medo <strong>da</strong>s perseguições, que são geralmente inevitáveis nos<br />

grandes empreendimentos, deixou-os partir provisoriamente; porém, o seu coração<br />

se enchia de sérias apreensões e lhe dizia que aquela fun<strong>da</strong>ção não<br />

havia de durar muito tempo. E de fato, já em 1821, um ano depois <strong>da</strong> morte do<br />

Santo, o Pe. Passerat, que lhe sucedeu no governo <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> transalpina,<br />

recolheu para Viena os padres, que o tomaram depois direções diversas.<br />

<strong>Clemente</strong>, no meio de tantos trabalhos e preocupações, não podia esquecer-se<br />

de sua queri<strong>da</strong> Polônia, onde experimentara tantas consolações, onde<br />

encetara sua vi<strong>da</strong> apostólica; nutria ain<strong>da</strong> esperança de fun<strong>da</strong>r na Polônia conventos<br />

<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>. “Dai-me os cânticos polacos tão simples, e na sua<br />

simplici<strong>da</strong>de mais lindos do que os que aqui se cantam”, gostava de repetir<br />

freqüentemente. Queria essa fun<strong>da</strong>ção, de cuja conveniência e possibili<strong>da</strong>de se<br />

convencera não obstante as guerras e as revoluções que dilaceravam esse<br />

pobre país. No congresso de Viena deu para isso os passos necessários, porém,<br />

sem resultado. Para lá enviou seu grande amigo Zacharias Werner, a pessoa<br />

mais competente para esse negócio por seus conhecimentos como por<br />

suas virtudes, com o fim de son<strong>da</strong>r o terreno e ver, se se poderia conseguir<br />

algum resultado favorável. As negociações pareciam bem encaminha<strong>da</strong>s e o<br />

Pe. Martinho Stark pôde escrever a Roma: “As coisas vão bem na Alemanha:<br />

também na Polônia acabam de nos oferecer um convento, e o Pe. <strong>Clemente</strong> já<br />

aceitou a proposta; parece que no verão deste ano ele mesmo irá à Polônia”.<br />

Circunstâncias imprevistas vieram desfazer as belas esperanças do Santo. O<br />

plano que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> se propusera de operar grandes coisas por Deus e de<br />

imolar a sua vi<strong>da</strong> pela religião, transparecia certamente de to<strong>da</strong>s as suas ações<br />

e em to<strong>da</strong>s as frases <strong>da</strong> sua existência, mas sobretudo e de um modo particular<br />

dos esforços sobre-humanos pela consoli<strong>da</strong>ção interna e externa <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>;<br />

por ela sacrificou os 34 anos do seu trabalhoso apostolado, passados<br />

em Varsóvia, em Viena e em outros lugares onde procurara estabelecer a <strong>Congregação</strong><br />

Redentorista. Embora o céu não lhe tivesse querido conceder a doce consolação<br />

de ver, com seus próprios olhos, o fruto abençoado <strong>da</strong> sua operosa ativi<strong>da</strong>de,<br />

conseguiu, graças aos seus ingentes esforços, a aprovação <strong>da</strong> sua <strong>Congregação</strong>,<br />

a formação dos primeiros Redentoristas transalpinos, a difusão <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

em diversos países <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong> América. O sonho dourado <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> era,<br />

enviar a to<strong>da</strong>s as partes do globo, uma legião de operários evangélicos, e ele o<br />

realizou maravilhosamente. Os cinco mil Redentoristas do mundo veneram-no não<br />

só como confrade, mas também como seu segundo Fun<strong>da</strong>dor.<br />

CAPÍTULO XXII<br />

97<br />

No combate com os maçons<br />

Sabelli imprudente — A causa <strong>da</strong> perseguição — As acusações — Aqui<br />

não é bom estar... — É ci<strong>da</strong>dão austríaco — A busca na residência — A intimação<br />

— A palavra do monarca — Esperanças desfeitas.<br />

O crepúsculo <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> de <strong>Clemente</strong> foi bem diverso do que se imaginara;<br />

não foi o céu tranqüilo, repleto de bonança como nos meses inolvidáveis passados<br />

nos poéticos e arrebatadores bosques do Tívoli, mas a tempestade furiosa<br />

dos derradeiros anos de <strong>São</strong> Beno. Um ano antes <strong>da</strong> morte, cansado já e alquebrado<br />

pelos trabalhos exaustivos de um ativo apostolado, por pouco não foi<br />

expulso <strong>da</strong> sua pátria, como outrora de <strong>São</strong> Beno. A Providência, que queria<br />

fazê-lo passar grandes tribulações, nos últimos momentos interveio ain<strong>da</strong>, não<br />

só permitindo-lhe passar seus últimos dias na Pátria, que tanto amava, mas<br />

também realizando, de um momento para o outro, o sonho que o afagava nos<br />

dias do seu noviciado. O que parecia impossível, realizou-se: a Áustria josefista<br />

abriu, em par, as portas à <strong>Congregação</strong>. Mas não precipitemos os fatos.<br />

Ocasião imediata para os últimos desgostos do Servo de Deus, deu-a o Pe.<br />

Sabelli, que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> denominava “a cruz <strong>da</strong> casa”. Aborrecido e contrariado,<br />

Sabelli dirigiu-se ocultamente a Roma, pedindo transferência para um dos<br />

conventos <strong>da</strong> Itália, a qual lhe foi naturalmente concedi<strong>da</strong>. Mas a viagem? eralhe<br />

necessário obter o passaporte e o governo austríaco fazia as maiores dificul<strong>da</strong>des<br />

em conceder passaportes para a Itália. Devido a esses obstáculos<br />

Sabelli recebeu ordem de se dirigir ao convento de Valsainte na Suíça. Ao tratar<br />

do passaporte para lá, parece que o bom do padre, sem o pensar, comunicou à<br />

polícia o fato de ele pertencer a uma <strong>Congregação</strong> não aprova<strong>da</strong> na Áustria<br />

bem como a sua transferência por ordem dos Superiores de Roma, a Valsainte.<br />

Desde esse dia a polícia abriu ain<strong>da</strong> mais os olhos para observar o confessor<br />

<strong>da</strong>s Ursulinas, de quem Sabelli era súdito.<br />

Procuraram um motivo, ou um pretexto para o acusar, porém não o encontraram.<br />

Os maçons queriam ver-se livres <strong>da</strong>quele sacerdotes molesto, que revolucionava<br />

pacificamente a ci<strong>da</strong>de de Viena. Que ele se sentasse no confessionário<br />

e se interessasse pelos pobres e pelos enfermos, ain<strong>da</strong> passava; também<br />

perdoavam-lhe o levar à Igreja os protestantes, pois que se tratava quase<br />

só de estrangeiros que os vienenses desprezavam, mas a influência exerci<strong>da</strong><br />

sobre os jovens, maxime sobre os acadêmicos, não podiam os maçons permitir.<br />

O modo de pregar do Servo de Deus era suspeito, mas o seu auditório consistia<br />

em grande parte de gente simples sem perigo algum para os maçons. O que<br />

eles não podiam absolutamente perdoar era, que o espírito de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>


começava a invadir a universi<strong>da</strong>de, em cujo corpo docente encontrava já três<br />

grandes amigos e admiradores, a saber: o professor do Antigo Testamento, o <strong>da</strong><br />

teologia dogmática e o do Novo Testamento; eram justamente essas as matérias<br />

mais importantes <strong>da</strong> universi<strong>da</strong>de. Dois dentre eles, imitando o modo de<br />

pregar do Santo, procuravam corrigir a pregação usual em Viena e instruir apostolicamente<br />

o povo. Alguns dos alunos do Servo de Deus, dia a dia, enchiam-se<br />

de mais coragem na universi<strong>da</strong>de protestante, às vezes, contra os professores<br />

em plena preleção; formavam um como partido sempre crescente na universi<strong>da</strong>de.<br />

O próprio <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> não ignorava que com isso havia de crescer<br />

também a ira dos adversários. Ele escreveu, um ano antes, à família Schlosser.<br />

“A graça divina age sobretudo nos jovens, que se dedicam ao estudo <strong>da</strong>s ciências.<br />

Se alguém pudesse e quisesse, efetuaria logo aqui uma grande mu<strong>da</strong>nça<br />

na moci<strong>da</strong>de estudiosa; os estu<strong>da</strong>ntes já sentem asco <strong>da</strong>s doutrinas ensina<strong>da</strong>s<br />

na universi<strong>da</strong>de. Já tenho sido acusado muitas vezes de desencaminhar os<br />

rapazes”.<br />

Os maçons sentiam as forças que se levantavam cheias de vi<strong>da</strong>, e temiam<br />

pelo futuro; recorreram à polícia, acusando a <strong>Clemente</strong> de virar a cabeça dos<br />

estu<strong>da</strong>ntes. A universi<strong>da</strong>de de Viena era o foco <strong>da</strong> iluminação intelectual; catolizar<br />

a universi<strong>da</strong>de seria o mesmo que desfechar o golpe de morte aos hereges.<br />

A coisa era pois do maior interesse e <strong>da</strong>i a luta; uma série de atas públicas<br />

bem mostraram, que na Áustria se trabalhava para fechar a boca ao Servo de<br />

Deus e, se possível, expatriá-lo para longe.<br />

É interessante ouvir as acusações feitas contra o pobre sacerdote que não<br />

possuía outra arma senão a oração e a boa vontade. Em 1817 aparecem as<br />

seguintes acusações contra a sua pregação: “Esse homem velho não condiz<br />

mais como tempo; é necessário afastá-lo do púlpito e man<strong>da</strong>r espiões para<br />

escutarem as pregações”. Mas porque tudo isto? as acusações são motiva<strong>da</strong>s:<br />

“<strong>Clemente</strong> apoia-se com as duas mãos sobre o púlpito, abaixa muito cabeça<br />

para seus ouvintes... subitamente levanta-se e inclina-se para trás, grita, às<br />

vezes, desumanamente e bate com as mãos no púlpito”. Apresentaram essas<br />

acusações ao Arcebispo, que era um grande amigo pessoal de <strong>Clemente</strong>, e que<br />

para combater a pregação <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> em Viena publicara uma circular, louvando<br />

o procedimento e o modo de pregar do Servo de Deus. — Os inimigos não se<br />

cansaram. Acusaram-no de não observar as leis do império, mormente na liturgia,<br />

pois que se atrevia a fazer procissões proibi<strong>da</strong>s, excitava o povo às romarias,<br />

espalhava entre as massas escritos supersticiosos de indulgências, recomen<strong>da</strong>va<br />

o rosário, a freqüente recepção dos Sacramentos, o culto <strong>da</strong>s imagens,<br />

livros de pie<strong>da</strong>de etc, relacionava-se demais com os Núncios, combatia os professores<br />

liberais de teologia, correspondia-se com Roma, procurava iludir os<br />

jovens a saírem <strong>da</strong> Pátria para entrarem em conventos estrangeiros. Um fato<br />

merece especial menção por sua originali<strong>da</strong>de.<br />

Um belo dia desapareceu de Viena a filha de um senhor muito conhecido; a<br />

suspeita recaiu imediatamente sobre o Servo de Deus, que na<strong>da</strong> tinha que ver<br />

com o caso. A polícia interveio e <strong>Clemente</strong> teve que comparecer perante o tribunal<br />

eclesiástico para responder sobre isso e mais outras acusações.<br />

O consistório compunha-se de pessoas sem fé como Gruber, cônego e<br />

diretor <strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de de filosofia, e de outros sem religião como ele. Os capitula-<br />

98<br />

res sentados ao redor <strong>da</strong> mesa formavam o tribunal; o Arcebispo, ancião venerando<br />

e amigo de <strong>Clemente</strong>, não tinha força para impedir as exigências do seu<br />

Cabido. <strong>Clemente</strong> teve de comparecer e, não obstante sua digni<strong>da</strong>de sacerdotal<br />

e a inocência <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, deve permanecer em pé diante de seus juízes. O<br />

interrogatório começou com to<strong>da</strong>s as formali<strong>da</strong>des de um tribunal.<br />

“Qual o seu nome? onde nasceu? donde vem? a que religião pertence?” A<br />

esta última interrogação <strong>Clemente</strong> sentiu-se ofendido e respondeu com calma<br />

sim, porém com to<strong>da</strong> a expressão do tratamento indigno: “Ora essa? todo o<br />

mundo sabe que eu sou um padre católico!” A isso naturalmente seguiu uma<br />

forte repreensão. Percebendo a ira e a indignação com que procediam contra<br />

ele, <strong>Clemente</strong> inclinou-se respeitosa e cortesmente diante dos juízes dizendo:<br />

“Aqui não é bom estar; retiro-me”, e serenamente foi saindo pela porta fora.<br />

Ninguém esperava por aquilo e o tribunal viu-se repentinamente privado do seu<br />

réu. O velho e nobre Arcebispo, longe de se desgostar, aprovou o procedimento<br />

do Santo dizendo: “Ele procedeu bem indo-se embora, fez como os Apóstolos;<br />

sacudiu a poeira dos seus sapatos”. Essa expressão compreende-se facilmente,<br />

considerando-se que aquele julgamento não procedera <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de eclesiástica,<br />

mas fora imposto pela polícia contra a vontade do digno Arcebispo,<br />

que naqueles tempos lutuosos não podia agir contra a força bruta do governo.<br />

Os capitulares de sentimentos religiosos olharam-se reciprocamente e riram-se,<br />

não do ancião que com tão bela resposta se retirara, mas <strong>da</strong> situação<br />

cômica em que ficaram colocados. As pesquisas sobre o desaparecimento <strong>da</strong><br />

menina ficaram sem efeito.<br />

Nos meses seguintes permaneceu <strong>Clemente</strong> debaixo <strong>da</strong> vigilância <strong>da</strong> polícia.<br />

O Santo, embora não se deixasse intimi<strong>da</strong>r por coisa alguma, achou mais<br />

prudente pôr-se de sobreaviso. <strong>Clemente</strong> era perseguido até por parte do clero.<br />

— O perigo era grande, mas ninguém tinha coragem de agir abertamente contra<br />

ele devido à amizade que gozava junto do Arcebispo e <strong>da</strong> cotação e estima<br />

em que era tido por homens de peso e valor público como Pilat, secretário de<br />

Metternich, A<strong>da</strong>m Müller, Frederico Schlegel, arquiduque Maximiliano, barão<br />

Penkler e semelhantes.<br />

Os maçons recorreram ao conde Saurau. chanceler <strong>da</strong> corte <strong>da</strong> Boêmia e<br />

Morávia, e josefino consumado, denunciando-lhe <strong>Clemente</strong> como fanático, espião<br />

de Roma, o qual punha os italianos ao par de tudo quanto se passava em<br />

Viena. Saurau encheu-se de cólera, foi ter com o Monarca, pedindo-lhe ou antes<br />

exigindo a expatriação de <strong>Clemente</strong>, que era um ver<strong>da</strong>deiro perigo para a<br />

nação. O Imperador, porém, respondeu-lhe com o laconismo que lhe era próprio:<br />

“Isso não, não posso expatriá-lo, porque ele é ci<strong>da</strong>dão austríaco”.<br />

Desfeita a primeira tentativa, era necessário achar um ponto legal, sobre o<br />

qual eles se pudessem apoiar para se apoderar <strong>da</strong> pessoa do humilde<br />

Redentorista. Como não encontrassem pretexto algum por mais que in<strong>da</strong>gassem<br />

dos conhecidos e amigos de <strong>Clemente</strong>, lembraram-se <strong>da</strong>s palavras de<br />

Sabelli que acabava de ser transferido para a Suíça por ordem dos Superiores<br />

em Roma. Numa busca na residência de <strong>Clemente</strong> talvez pudessem descobrir<br />

qualquer motivo de fun<strong>da</strong><strong>da</strong> acusação.<br />

Em janeiro de 1819 apareceram inespera<strong>da</strong>mente três homens na residência<br />

do Santo numa hora, em que ain<strong>da</strong> se achava ocupado na Igreja de Sta.


Úrsula; no quarto de <strong>Clemente</strong> achava-se somente o professor Dr. Madlener,<br />

seu discípulo predileto, que recebeu os três, a saber: o professor do direito<br />

canônico no Theresianum, o ex-beneditino Braig, vice-diretor dos estudos, e um<br />

outro sacerdote, relator do governo austríaco; com eles foi também um aju<strong>da</strong>nte<br />

ou secretário.<br />

Esperaram que o Santo chegasse, man<strong>da</strong>ram Madlener ausentar-se e fecharam<br />

a porta. Quatro horas inteiras ficou lá a comissão inspecionando tudo,<br />

remexendo to<strong>da</strong>s as gavetas, abrindo os armários, revistando to<strong>da</strong>s as cartas<br />

— mas não acharam coisa alguma em que se estribar para as suas acusações.<br />

Desesperados de suas pesquisas interrogaram o Santo, que não negou ser<br />

Redentorista, e como tal, súdito de um Superior na Itália. “Ipsi audivimus<br />

blasphemiam”. Os senhores estavam contentes, não era necessário mais na<strong>da</strong>;<br />

exclamaram: “A ordem não é reconheci<strong>da</strong> na Áustria, e superiores estrangeiros<br />

são proibidos pela lei; ele deve ou renunciar à Ordem ou abandonar a Áustria”.<br />

Procederam ao protocolo, e, termina<strong>da</strong> a revista, chamaram a <strong>Clemente</strong><br />

que em seu genuflexório rezava o rosário <strong>da</strong> Virgem, suplicando a sua proteção<br />

para aquela hora tão sinistra. Seguiu-se o interrogatório e a intimação, feitos a<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> por Braig, o ex-beneditino.<br />

— O Senhor deve renunciar a sua Ordem ou abandonar os Estados austríacos.<br />

— A minha Ordem não renuncio, respondeu <strong>Clemente</strong>.<br />

— O senhor pode secularizar-se.<br />

— Nunca o farei.<br />

— Então abandone a Áustria.<br />

— Antes isso.<br />

— Mas para onde vai?<br />

— Para a América, somente peço que se adie a viagem para depois do<br />

inverno por causa <strong>da</strong> minha avança<strong>da</strong> i<strong>da</strong>de (<strong>Clemente</strong> tinha então 68 anos).<br />

Por fim o Santo teve de escrever tudo, de próprio punho, e prometer que<br />

abandonaria a sua Pátria.<br />

Depois de obedecer à comissão e assinar à sua expatriação, o Santo perguntou,<br />

se tinha mais alguma coisa a fazer, ao que responderam negativamente.<br />

— Ain<strong>da</strong> resta uma coisa, disse o Santo.<br />

— Qual? perguntou curioso o primeiro comissário.<br />

Levantando o dedo para o alto <strong>Clemente</strong> exclamou:<br />

— O juízo final.<br />

To<strong>da</strong> essa farsa não passava de uma detestável intriga; os comissários não<br />

tinham sido delegados por ninguém, nem pelo consistório nem pela polícia. O<br />

presidente do juízo de apelação declarou ser tudo isso uma vil e ilegal usurpação<br />

do poder.<br />

Os comissários retiraram-se pouco antes do almoço. <strong>Clemente</strong>, como de<br />

costume, deu o sinal para o exame particular e as la<strong>da</strong>inhas. À mesa, na palidez<br />

do rosto do Servo de Deus suspeitaram alguma coisa de anormal, mas de seus<br />

lábios não conseguiram arrancar palavra alguma; só depois <strong>da</strong> morte de <strong>Clemente</strong><br />

é que os discípulos souberam o que se passara dentro <strong>da</strong>s portas fecha<strong>da</strong>s.<br />

O Santo via aniquila<strong>da</strong> a esperança que há tempo, nutria de ver a sua<br />

99<br />

<strong>Congregação</strong> introduzi<strong>da</strong> na Áustria.<br />

Sendo a expatriação um direito imperial, era para isso necessária a licença<br />

do monarca, e por isso to<strong>da</strong> a história foi leva<strong>da</strong> ao conhecimento do Imperador,<br />

que declarou por intermédio de seu chanceler, que a expatriação só poderia se<br />

concedi<strong>da</strong> a pedido de <strong>Clemente</strong>, a quem deu liber<strong>da</strong>de de fazer o que bem<br />

entendesse. O chanceler, que estava inteiramente de acordo com os inimigos<br />

do Santo, participou ao Arcebispo o decreto, como tratando de uma ordem do<br />

monarca que exilava o Servo de Deus.<br />

Chamado pelo Arcebispo, <strong>Clemente</strong> compreendeu que não devia nem podia<br />

calar-se ocultando a ver<strong>da</strong>de, narrou-lhe todo o ocorrido. Enquanto isso se<br />

passava, de Santa Úrsula chegou ao palácio arquiepiscopal um pedido insistente<br />

pela conservação do Santo como Reitor <strong>da</strong> igreja. O Arcebispo foi ter com<br />

o Imperador declarando-lhe que com <strong>Clemente</strong> perderia o melhor sacerdote <strong>da</strong><br />

sua diocese, e o Monarca, ciente do ocorrido, confirmou a permanência do<br />

Santo... que não obstante ficou intimamente amargurado com o procedimento<br />

de seus adversários. “O Pe. <strong>Clemente</strong> está tão desgostoso e contrariado, escreveu<br />

um dos padres a Passerat, e tão aborrecido em Viena, que já por esse<br />

motivo se decidiu fazer sua viagem em maio”. Mas para onde? O Servo de Deus<br />

estava ain<strong>da</strong> indeciso, se para Friburgo ou para Roma. Nesse interim entregouse<br />

<strong>Clemente</strong> a seus trabalhos habituais. O jejum <strong>da</strong> quaresma enfraqueceu-o<br />

devido ao aumento do trabalho pela saí<strong>da</strong> de Sabelli; adoeceu tão gravemente<br />

que o Pe. Martinho, ao participar a Passerat a doença do Santo acrescentou<br />

recear muito pela vi<strong>da</strong> dele. Felizmente pôde resistir devido a sua forte e robusta<br />

constituição. Depois dessa doença recebeu o Santo a visita de uma senhora,<br />

que muito se congratulou pelo restabelecimento do Servo de Deus, que a sorrir<br />

exclamou: “Ora muito bem, como são bons os meus amigos, que nem sequer<br />

me desejam o a posse do céu”, e acrescentou em tom solene: “Desta vez eu<br />

quisera morrer, ah! seria esse o meu maior prazer; mas Deus não o quis, está<br />

bom assim”.<br />

A primeira metade do ano 1819 foi para o nosso Santo uma <strong>da</strong>s épocas<br />

mais penosas <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>; em to<strong>da</strong> a parte, para onde dirigia seus olhares, via<br />

esperanças desmorona<strong>da</strong>s, planos abatidos, cui<strong>da</strong>dos prementes, dificul<strong>da</strong>des<br />

e contrarie<strong>da</strong>des.<br />

É que Deus o preparava para o último e decisivo combate...


CAPÍTULO XXIII<br />

A <strong>Congregação</strong> na Áustria<br />

O Imperador visita o Papa — O memorandum — Começa com os jovens —<br />

Eu não o verei — Previsões — Resignação.<br />

A questão referente a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> ficou indecisa, mas a vigilância policial<br />

continuou. Tentaram conseguir do arquiduque Maximiliano a expatriação de<br />

<strong>Clemente</strong>, porém debalde; esse grande amigo do Santo disse em resposta:<br />

“Viena não precisa só de um <strong>Clemente</strong>; seria para desejar que houvesse lá<br />

ain<strong>da</strong> seis outros homens como ele para reformar a religião”. Entretanto o Núncio<br />

Apostólico, Mons. Leardi, partiu para Roma a fim de informar o papa Pio VII<br />

sobre o estado <strong>da</strong> Igreja na Áustria, e narrou ao Sumo Pontífice as perseguições<br />

de que estava sendo alvo o Pe. <strong>Clemente</strong>, tido pelos maus como espião<br />

romano. Pouco depois chegou a Roma também o Imperador que foi congratular-se<br />

pessoalmente com o Papa pela libertação que acabava de conseguir <strong>da</strong><br />

escravidão francesa. Com fina diplomacia soube Pio VII interceder por <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>,<br />

<strong>da</strong>ndo a sua Majestade os parabéns pelos sacerdotes zelosos que possuía<br />

em Viena, mormente por <strong>Clemente</strong>, “homem ver<strong>da</strong>deiramente apostólico,<br />

adorno do clero e coluna <strong>da</strong> Igreja”. Como o Papa não ignorava que o maior<br />

crime, atribuído a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, era a sua dedicação e amor à Santa Sé, mencionou<br />

o que <strong>Clemente</strong> muitas vezes dissera a Muzzi, auditor <strong>da</strong> nunciatura:<br />

“Vós, romanos, não sabeis tratar os alemães; entre eles poderíeis conseguir<br />

muito mais, se os compreendêsseis e os soubésseis tratar”. Essa observação<br />

agradou imensamente ao Imperador; a palavra do Papa causou-lhe impressão<br />

e a sinceri<strong>da</strong>de do Servo de Deus mais ain<strong>da</strong>. Ao retirar-se <strong>da</strong> audiência, havi<strong>da</strong><br />

com o Chefe <strong>da</strong> cristan<strong>da</strong>de, o Monarca narrou tudo a seu confessor, Pe. Darnaut,<br />

e ao capelão Pe. Job, que o acompanharam a Roma e acrescentou com majestosa<br />

benevolência: “Ofenderam e magoaram o bom Pe. <strong>Clemente</strong>, estou sentido<br />

com isso, se eu soubesse como reparar tanto desgosto a ele causado...!”<br />

Darnaut conhecia e estimava profun<strong>da</strong>mente o Servo de Deus, e desde há<br />

muito ouvira que ele não tinha maior desejo do que conseguir um lugar seguro<br />

para a <strong>Congregação</strong> na Áustria, e por isso pôde dizer ao Monarca: “O Pe. <strong>Clemente</strong><br />

só tem um desejo: o de ver a <strong>Congregação</strong> aprova<strong>da</strong> na sua Pátria; se V.<br />

Majestade realizasse esse seu desejo, ele ficaria inteiramente satisfeito”.<br />

A 26 de abril o Imperador partiu para o Sul em visita a Nápoles, onde provavelmente<br />

se informou sobre a <strong>Congregação</strong> Redentorista que lá tivera o seu<br />

berço, e sobre o grande fun<strong>da</strong>dor dela, Sto. Afonso de Ligório. Que o Imperador<br />

se interessou vivamente pelo pobre perseguido de Viena deduz-se do fato de<br />

ter ele, no meio <strong>da</strong>s festas e outras manifestações de regozijo, escrito de Nápo-<br />

100<br />

les uma carta ao Santo, pedindo-lhe apresentar à corte as Regras <strong>da</strong> sua <strong>Congregação</strong>,<br />

e indicar o modo como se poderia introduzir também na Áustria o<br />

Instituto do napolitano Afonso de Ligório. É fácil compreender a alegria e a consolação<br />

de <strong>Clemente</strong>, grato em tudo aquilo ao dedo <strong>da</strong> Providência. Salutem ex<br />

inimicis nostris. — O que ele não conseguira diretamente com seus trabalhos e<br />

sofrimentos, desgostos e cui<strong>da</strong>dos, obteve-o por meio dos inimigos que o perseguiam.<br />

Grande <strong>Clemente</strong>! por ele interessaram-se os maiores poderes sobre<br />

a terra: o Papa e o Imperador!<br />

Sem mais detença pôs-se o Santo ao trabalho, compôs o Memorandum,<br />

em que expôs com prudência o fim <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>. Como a palavra “missão”<br />

era detesta<strong>da</strong> em Viena e facilmente irritaria os nervos dos burocratas, <strong>Clemente</strong><br />

suprimiu-a escrevendo simplesmente que a <strong>Congregação</strong> se ocupava em<br />

ministrar a instrução aos ignorantes e o socorro espiritual aos necessitados,<br />

sendo assim útil à Igreja e ao Estado.<br />

O Imperador ao voltar de Roma, mandou chamar o Servo de Deus para<br />

uma audiência especial, ficando agra<strong>da</strong>velmente impressionado com a aparência<br />

enérgica, firme e jovial do nobre ancião, a quem tratou com benevolência; o<br />

Monarca deu-lhe permissão de fazer mais algum pedido; <strong>Clemente</strong> somente<br />

acrescentou o desejo de obter a Igreja de N. Sra. <strong>da</strong> Esca<strong>da</strong> em Viena para a<br />

<strong>Congregação</strong>, e a permissão de se poder interessar pelos Boêmios <strong>da</strong> Capital<br />

com um culto especial na língua deles.<br />

Esse pediu encheu to<strong>da</strong>s as medi<strong>da</strong>s dos desejos do Imperador.<br />

A 29 de outubro de 1819 o Santo apresentou o Memorandum com a Regra,<br />

que o Monarca entregou a uma comissão especial, composta de amigos do<br />

Santo e de pessoas <strong>da</strong> confiança do Imperador. Tudo parecia sorrir esperançosamente<br />

ao Santo, mas a coisa não deixava de ter suas dificul<strong>da</strong>des devido às<br />

circunstâncias desfavoráveis <strong>da</strong> época e ao fato de exigir tempo demasiado<br />

longo para pôr o novo Instituto em acordo com as leis vigentes.<br />

Enquanto a comissão gastava tempo em examinar a Regra, os bons e os<br />

maus trabalhavam, todos com a certeza <strong>da</strong> vitória; os amigos de <strong>Clemente</strong> não<br />

perderam vasa de agir ativamente em prol <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> <strong>da</strong>ndo as melhores<br />

informações sobre ela, fazendo-lhe as mais lisonjeiras referências e, mais que<br />

tudo pedindo a Deus com fervorosas orações pelo feliz resultado <strong>da</strong>s negociações.<br />

Os maus não desistiram, embora se sentissem bem humilhados e não se<br />

atrevessem a contrariar abertamente os desejos do Imperador; procuravam protelar<br />

o an<strong>da</strong>mento <strong>da</strong> revisão esperando do tempo o arrefecimento do entusiasmo<br />

do Monarca, ou algum caso imprevisto que desfizesse os planos. O Servo<br />

de Deus não duvi<strong>da</strong>va <strong>da</strong> aprovação, contava até com o resultado consolador e<br />

dispunha as coisas para não haver retar<strong>da</strong>mento de espécie alguma, quando<br />

chegasse o decreto imperial. O Santo tinha apenas consigo o Pe. Martinho Stark,<br />

jovem de seus 33 anos, confiava porém no zelo dos seus discípulos, com os<br />

quais queria <strong>da</strong>r início à sua grande obra. Alguns dentre eles eram teólogos,<br />

outros já haviam terminado os estudos, e outros até já haviam recebido o<br />

presbiterado, exercendo o cargo de coadjutores para passar o tempo, até a<br />

admissão no Instituto. Nesse interim <strong>Clemente</strong> dedicou-se ain<strong>da</strong> com mais carinho<br />

à formação esmera<strong>da</strong> dos seus jovens, que eram para ele o futuro <strong>da</strong><br />

<strong>Congregação</strong>, e sentia-se feliz por encontrar em todos a maior boa vontade.


Aos jovens poupava paternalmente, como vemos do caso narrado por Pajalich.<br />

Uma vez, escreveu ele, o Servo de Deus humilhou publicamente, não sei por<br />

que motivo, a um dos seus confrades; um penitente e discípulo de <strong>Clemente</strong>,<br />

“Dr. Madlener”, estranhou a severi<strong>da</strong>de com que o Santo tratava seus congregados,<br />

e atreveu-se a perguntar-lhe, porque é que não procedia com a mesma<br />

severi<strong>da</strong>de, mas antes com tanto carinho, para com os outros penitentes e discípulos,<br />

ao que o Santo respondeu: “Vós ain<strong>da</strong> não me pertenceis e por isso<br />

não terei de prestar a Deus contas tão rigorosas de vós, como por ele que é<br />

meu súdito”. Isso está inteiramente de acordo com o que ele uma vez disse a<br />

um dos seus estu<strong>da</strong>ntes e futuros Redentoristas: “Quando estivermos uma vez<br />

no nosso posto, deveremos começar seriamente a fazer penitência e a santificar-nos<br />

antes de pregar aos outros”; e em outra ocasião: “É preciso começar<br />

com os jovens, porque com os velhos pouco se poderá fazer”. Essas repeti<strong>da</strong>s<br />

expressões do Santo mostram o desejo que nutria de abrir em breve o noviciado<br />

para ensinar aos jovens to<strong>da</strong>s as virtudes e introduzi-los e consolidá-los na<br />

vi<strong>da</strong> interior do convento.<br />

Não menos se preocupava o Santo com o lado material, isto é, com a<br />

aquisição do necessário à comuni<strong>da</strong>de a instalar-se confortavelmente no novo<br />

convento. “Quando a <strong>Congregação</strong> estiver aprova<strong>da</strong> na Áustria, disse ele, man<strong>da</strong>rei<br />

o Pe. Martinho para a Suíça, porque ele ain<strong>da</strong> não presta para Superiores”.<br />

Em outra ocasião afirmou que chamaria o Pe. José Passerat, homem santo<br />

e excelente Diretor de almas. Num dos seus armários, na gaveta mais larga e<br />

fun<strong>da</strong>, havia grande quanti<strong>da</strong>de de doces, pacotes de café etc. que lhe tinham<br />

sido ofertados por alguns amigos; apontando para esses objetos, tão agradáveis<br />

ao pala<strong>da</strong>r, disse a um dos seus discípulos: “Isso tudo é para os nossos<br />

confrades em N. Sra. <strong>da</strong> Esca<strong>da</strong>”.<br />

Entretanto a aprovação diferia-se mais do que se supunha, e <strong>Clemente</strong><br />

percebia que Deus, provavelmente, não lhe queria conceder a alegria de introduzir<br />

a <strong>Congregação</strong> na Áustria; o que ele semeara a custo de abun<strong>da</strong>ntes<br />

suores, outros deveriam colher. Como outrora Moisés só pôde avistar de longe<br />

a terra <strong>da</strong> promissão sem ter o prazer de levar lá o povo que dirigira e governara<br />

quarenta anos na travessia do deserto, repartindo com ele alegrias e dores,<br />

assim <strong>Clemente</strong> antegozava, sim, a aprovação <strong>da</strong> sua Ordem, mas percebia<br />

também que não seria ele o escolhido por Deus para organizar o primeiro noviciado<br />

e introduzir firme e definitivamente, além dos Alpes, a <strong>Congregação</strong> que<br />

tanto amava.<br />

Teria <strong>Clemente</strong> sentido no princípio esse duro golpe <strong>da</strong> Providência? Uma<br />

Irmã Ursulina contava que, quando no convento deram ao Servo de Deus os<br />

parabéns pelo decreto imperial, que em breve garantiria legalmente a subsistência<br />

<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> na Áustria, ele suspirando exclamou: “Mas eu não o<br />

verei”, disse-o com precisão, embora se esperasse a ca<strong>da</strong> momento a aprovação,<br />

e <strong>Clemente</strong> não apresentasse propriamente nenhum sintoma de enfermi<strong>da</strong>de<br />

grave. Os discípulos do Santo, as irmãs e, em geral, os amigos tinham a<br />

convicção certa de que <strong>Clemente</strong> viveria pelo menos ain<strong>da</strong> uns anos, pois que<br />

Deus não o podia tirar no momento em que ele mais necessário parecia ser à<br />

<strong>Congregação</strong>. O Servo de Deus, porém, era inabalável nas suas palavras, falava<br />

como profeta que contempla e conhece o futuro. Uma outra vez, conversan-<br />

101<br />

do com um amigo médico disse: “Enquanto eu viver, na<strong>da</strong> se fará, mas depois<br />

<strong>da</strong> minha morte conventos se erguerão”. Entretendo-se outra vez com a Irmã<br />

Jacoba que lhe expunha suas dúvi<strong>da</strong>s interiores etc. afirmou o Santo: “Primeiro<br />

é preciso que eu morra, só depois é que a <strong>Congregação</strong> se difundirá”. A uma<br />

outra irmã, falando familiarmente sobre o futuro <strong>da</strong> sua Ordem na Áustria e<br />

sobre o bem imenso que os Padres Redentoristas haviam de operar pela glória<br />

de Deus e o bem <strong>da</strong>s almas imortais e abandona<strong>da</strong>s naqueles tempos tão<br />

tristes, o Servo de Deus assegurou “que o Imperador não haveria de assinar o<br />

decreto aprovando a <strong>Congregação</strong> na Áustria, enquanto ele não tivesse <strong>da</strong>do<br />

sua alma ao Criador”. Expressões idênticas empregou o Servo de Deus em<br />

diversas ocasiões, de sorte que podemos afirmar, sem medo de erro, que Deus<br />

lhe manifestara essa disposição <strong>da</strong> sua vontade.<br />

De um lado exultava o Servo de Deus prevendo o futuro <strong>da</strong> obra, pela qual<br />

se batera, garantido e seguro, do outro sentia, humanamente falando, o golpe<br />

<strong>da</strong> Providência, que assim o provava e privava <strong>da</strong> maior consolação dos seus<br />

trabalhos. O Servo de Deus, porém, resignou-se com a vontade santíssima do<br />

Altíssimo, e em certo ponto sentia-se mesmo consolado, conforme se externou<br />

uma vez: “Devo morrer antes que a <strong>Congregação</strong> se propague, então poderei<br />

fazer mais para os meus junto do trono de Deus do que agora em vi<strong>da</strong>”.<br />

Como é próprio dos Santos, esquivar-se à vista dos homens, para que to<strong>da</strong><br />

a glória, nas grandes obras, recaia sobre o Autor de todo o bem, que é Deus,<br />

<strong>Clemente</strong>, prevendo a grandeza <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, desejava com to<strong>da</strong> a humil<strong>da</strong>de<br />

desaparecer do cenário <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>. Manifestou esse seu desejo com as palavras:<br />

“Grande honra se me está preparando dentro em breve, prefiro morrer já,<br />

antes que isso se realize”.


CAPÍTULO XXIV<br />

Suspirando pelo céu<br />

O cortejo <strong>da</strong>s Virgens — Sempre a trabalhar — O auxiliar enfermo — Desgraça<br />

é só o pecado — Missa por uma benfeitora — Bela profecia — Recebe a<br />

extrema-unção — Obediência edificante — Vou para o meu retiro — Morte santa<br />

— Na câmara ardente — Sepultamento magnífico.<br />

Na igreja dos Minoritas o Servo do Deus estava uma vez a ouvir confissões<br />

e a reconciliar os pecadores com Deus. Terminado o trabalho restava ain<strong>da</strong> no<br />

templo apenas um homem que viu abrir-se, subitamente, a porta <strong>da</strong> igreja e<br />

entrar um cortejo de virgens em uniforme branco, todo adereçado de ricas flores,<br />

empunhando magníficas guirlan<strong>da</strong>s, que agitavam no compasso, e assim<br />

caminharam até perto de <strong>Clemente</strong> que se achava sentado no confessionário;<br />

quando as Virgens passaram, o Servo de Deus inclinou-se profun<strong>da</strong>mente com<br />

as palavras: “Sim, eu vou logo”, e elas desapareceram. Admirado de tão estranha<br />

cena o homem aproximou-se do Santo perguntando-lhe, qual a significação<br />

<strong>da</strong>quilo. “Fique quieto, disse <strong>Clemente</strong>, e não o conte a ninguém”. —<br />

Já havia algum tempo que <strong>Clemente</strong> se achava mal, o seu estado, porém,<br />

piorou consideravelmente no inverno de 1820. Embora atacado de fortes e violentas<br />

dores hemorroi<strong>da</strong>is não cedia, atirando-se sempre ao trabalho; a febre<br />

tornou-se tão agu<strong>da</strong> que o pulso acusava 150 pulsações por minuto; no delírio<br />

<strong>Clemente</strong> recitava trechos inteiros dos Santos Padres, passagens <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong><br />

Escritura, sem omitir uma única palavra nas citações. Passa<strong>da</strong> a crise <strong>Clemente</strong><br />

continuava seus trabalhos. No caminho que ia <strong>da</strong> sua residência a Santa<br />

Úrsula, encontravam-se por vezes, copiosas gotas de sangue; na igreja, embora<br />

sofresse dores atrozes, permanecia sentado no confessionário para não incomo<strong>da</strong>r<br />

as irmãs. Os discípulos, tendo ante os olhos a constituição robusta e a<br />

energia indomável do Santo, julgaram-no fora de qualquer perigo; <strong>Clemente</strong>,<br />

porém, não se iludia sobre a proximi<strong>da</strong>de de seu fim; a quem dizia que a vi<strong>da</strong><br />

lhe era necessária e que por isso ele não podia morrer, respondia com laconismo:<br />

“Deus não precisa de ninguém!” Entretanto o Santo definhava dia a dia; diminuíram-se<br />

as forças, mas não cessaram os trabalhos, que se lhe tornaram uma<br />

segun<strong>da</strong> natureza.<br />

Deus sabe provar as almas, e quando as quer fazer passar pelo crisol <strong>da</strong>s<br />

tribulações não envia apenas uma cruz, mas uma multidão delas a oprimir o<br />

corpo e a alma. Enquanto <strong>Clemente</strong> gemia ao peso <strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong>de, enviou<br />

Deus uma doença grave ao Pe. Martinho Stark, único auxiliar de <strong>Clemente</strong> em<br />

que a igreja <strong>da</strong>s Ursulinas; como em casa não havia empregados e nem irmãos<br />

leigos que o pudessem assistir, o pobre <strong>Clemente</strong> teve que fazer o papel de<br />

102<br />

enfermeiro, subindo e descendo constantemente as esca<strong>da</strong>s para atender ao<br />

padre enfermo e ao povo que o reclamava.<br />

A um amigo disse uma vez o Santo referindo-se à enfermi<strong>da</strong>de do Pe.<br />

Martinho Stark: “Não sei qual de nós está mais doente!” É escusado dizer que o<br />

trabalho de <strong>Clemente</strong> se duplicou com a doença do seu auxiliar.<br />

A 4 de março, sábado, achavam-se, à noite, reunidos os discípulos no quarto<br />

do Santo, para a conferência; <strong>Clemente</strong> ouviu-os de confissão; depois desse<br />

serviço começou a sentir o peso <strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong>de que o levaria ao túmulo. Nesse<br />

estado de prostração mandou ain<strong>da</strong> fazer a leitura, à mesa, com as observações<br />

que costumava entremear ao texto, porquanto o seu espírito conservavase<br />

vivo e fresco como nos outros dias.<br />

Durante a leitura dessa tarde, por exemplo, perguntou aos discípulos, qual<br />

o motivo porque no Antigo Testamento não se imolavam os peixes a Javé; como<br />

ninguém soubesse responder, ele mesmo disse: “É porque o peixe não tem voz<br />

para anunciar os louvores de Deus”, e tirou logo a conclusão, que para ele era<br />

sempre a coisa principal: “... os homens devem com mais razão louvar a Deus,<br />

porque não possuem só a voz, mas também o entendimento, e esses louvores<br />

manifestam-se sobretudo na oração em comum”. Os discípulos, notando a fraqueza<br />

física do Santo, quiseram ausentar-se um pouco mais cedo, mas ele os<br />

deteve dizendo: “Pouco se me dá, que eu vá dormir mais tarde”.<br />

No dia seguinte, 3.º domingo <strong>da</strong> quaresma, o Santo fez ain<strong>da</strong> um esforço e<br />

pregou pela última vez em sua vi<strong>da</strong>; tomou por tema as contas, que ca<strong>da</strong> um<br />

deve prestar a Deus, de to<strong>da</strong>s as suas ações, dos favores e graças recebi<strong>da</strong>s;<br />

uma sentença calou profun<strong>da</strong>mente no ânimo de todos impressionando-os fortemente:<br />

“Se durante to<strong>da</strong> a minha vi<strong>da</strong> eu tivesse sempre correspondido à<br />

graça, quanto bem Deus não poderia ter operado por mim!” Foi essa a sua<br />

palavra de despedi<strong>da</strong> do alto do púlpito. Nesse dia e nos dois que se seguiram,<br />

o Santo trabalhou como se na<strong>da</strong> houvesse de anormal; apesar do frio extraordinário<br />

ia de manhã à igreja dos Minoritas e depois à <strong>da</strong>s Ursulinas, ouvia as<br />

confissões, recebia as visitas, fazia, à noite, as reuniões e entretinha os rapazes.<br />

No dia 8, quarta-feira, celebrou pela última vez em Sta. Úrsula, e <strong>da</strong>s 9 às<br />

11 horas ouviu as confissões <strong>da</strong>s religiosas. Antes de retirar-se chamou a Irmã<br />

Thadéa e disse-lhe: “Reze bastante por mim, que estou muito doente”, e deixou<br />

o convento para nunca mais voltar. “Em segui<strong>da</strong>, conta a Irmã, olhei para ele<br />

com o coração repassado de dor e pus-me a chorar, pois que não podia familiarizar-me<br />

com a idéia de que não o tornaria a ver; aquelas palavras eram as <strong>da</strong><br />

despedi<strong>da</strong>; o Servo de Deus parecia um cadáver, e a minha consternação tornou-se<br />

tanto maior, quando me recordei do que, há um mês atrás, ele me garantira<br />

que morreria brevemente... Pedi então ao Santo que me permitisse orar<br />

de modo especial pela cura do Pe. Martinho. “Sim, sim, disse ele, o Pe. Martinho<br />

sara logo, mas eu morrerei em breve”. Eu então continuei: “pedirei a Deus se<br />

digne conceder a V. Revma ain<strong>da</strong> muitos anos de vi<strong>da</strong> e saúde”, ao que ele<br />

respondeu: “Não se faça a nossa vontade, mas a de Deus assim na terra como<br />

no céu”; mas, continuei, seria para nós grande desgraça, se tivéssemos de<br />

perder a V. Revma., e ele: — “Desgraça é só o pecado”.<br />

Para o dia 9 estava marca<strong>da</strong> na igreja dos Italianos uma missa solene de


Requiém pela princesa Jablonowska, que o Santo venerava como benfeitora<br />

generosa do convento de S. Beno em Varsóvia; em homenagem a essa insigne<br />

benfeitora <strong>Clemente</strong> fez um esforço heróico e foi a pé a dita igreja e cantou o<br />

Requiem; abateu-se, porém, de tal modo, que necessitou de um carro para<br />

voltar à sua residência.<br />

Entretanto Pe. Martinho sentia-se melhor e achava-se já fora de perigo; o<br />

próprio Pe. <strong>Clemente</strong> parecia restabelecer-se e recuperar as forças... mas infelizmente<br />

eram só aparências; o estado não tardou a agravar-se espantosamente<br />

desde a missa <strong>da</strong> princesa Jablonowska. O Servo de Deus jazia em seu leito<br />

de dores, longe dos seus confrades e quase fora <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>; o único<br />

confrade que o acompanhava estava guar<strong>da</strong>ndo o leito, e ele sem um criado ou<br />

Irmão leigo que o assistisse! Os amigos, discípulos e penitentes do Santo não<br />

lhe podiam prestar seus serviços, por se acharem também ocupados fora. O<br />

Servo de Deus pouco se entretinha com os homens, porque se conservava<br />

sempre recolhido em oração aos pés de Jesus Crucificado, a quem oferecia as<br />

dores e sofrimentos, que o acabrunhavam.<br />

Foi numa dessas ocasiões que um dos discípulos do Santo, pensando no<br />

futuro <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, expôs ao Servo de Deus as ingentes dificul<strong>da</strong>des que<br />

haveriam de ter para construir os conventos, devido à grande falta de recursos<br />

materiais; o Santo olhando para ele disse com gravi<strong>da</strong>de: “Quereis edificar igrejas<br />

e construir conventos, e não tendes força para combater e refrear as paixões;<br />

tende paciência, Deus nos <strong>da</strong>rá bastante conventos; pobre eu fui a Varsóvia,<br />

onde não encontrei mora<strong>da</strong> nem recurso de quali<strong>da</strong>de alguma; um ano<br />

depois, possuía já tanto dinheiro que me foi possível distribuir diariamente esmolas<br />

aos pobres e matar a fome aos necessitados; — enquanto eu estiver<br />

vivo, não tereis conventos, mas depois <strong>da</strong> minha morte, te-los-eis em abundância”.<br />

Foi por essa época, que tomando a mão de Madlener, seu discípulo predileto,<br />

lhe disse “que consigo levava ao túmulo muitos segredos, que quisera comunicar-lh’os,<br />

mas não o fazia porque Madlener não podia guar<strong>da</strong>r segredos”.<br />

As Ursulinas tinham uma emprega<strong>da</strong> muito boa e fiel, por nome <strong>Maria</strong>na;<br />

man<strong>da</strong>ram-na a S. <strong>Clemente</strong> para se informar do estado de sua saúde; quando<br />

a pobrezinha viu o Servo de Deus em tão triste estado e em perigo de vi<strong>da</strong>,<br />

desatou em pratos: “<strong>Maria</strong>na não chores, disse, em breve me acompanharás”.<br />

A emprega<strong>da</strong> era robusta e não apresentava nenhum vestígio de enfermi<strong>da</strong>de,<br />

e não obstante — poucos dias depois era um cadáver.<br />

Durante a última enfermi<strong>da</strong>de o Servo de Deus recebeu relativamente poucas<br />

visitas; os amigos supunham que a enfermi<strong>da</strong>de não fosse de morte e por<br />

isso não o queriam molestar; somente os penitentes, que desejavam algum<br />

conselho particular, iam ter com ele; mesmo no leito o Santo os reconciliava<br />

com Deus.<br />

Aos 13 de março o Dr. Veith achou conveniente <strong>da</strong>r-lhe a extrema-unção; o<br />

Pe. Madlener, depois de muito hesitar, aproximou-se de <strong>Clemente</strong> com a pergunta:<br />

“V. Revma. quer receber o seu Deus?” ao que o Santo respondeu corrigindo<br />

a expressão pouco dogmática: “A santa comunhão? sim, sim”. Chamaram<br />

o confessor, e durante a absolvição <strong>Clemente</strong> delirou, um pouco, repetindo<br />

as palavras <strong>da</strong> absolvição, como se ele fosse o confessor e não o penitente. A<br />

comunhão o Santo a recebeu com tocante devoção, permanecendo longo tem-<br />

103<br />

po de mãos postas, com o rosto voltado para o lado <strong>da</strong> parede, para maior<br />

recolhimento. Antes <strong>da</strong> sua morte teve o Santo algumas horas de sossego, e<br />

satisfeito pôs-se a cantar o seu hino predileto: “Tudo para a glória de Deus”. Ao<br />

entrar o Santo em agonia, que durou 2 horas, o seu rosto, aliás tranqüilo e<br />

sereno, cobriu-se de palidez <strong>da</strong>ndo sinais de indizíveis dores; <strong>Clemente</strong> pela<br />

veemência <strong>da</strong> dor erguia do leito quase continuamente, procurando alívio. Aquele<br />

espetáculo enchia de consternação e de compaixão os assistentes, que amargurados<br />

viam o Santo sofrer indizivelmente sem poderem aliviá-lo. Madlener na<br />

certeza de que aqueles movimentos, longe de <strong>da</strong>r ao Santo algum alívio, serviam<br />

apenas para aumentar os seus sofrimentos, aproximando-se do leito disselhe<br />

aos ouvidos: “Pe. <strong>Clemente</strong>, por obediência fique sossegado na cama”. O<br />

Santo obedeceu como uma criança; chamaram o confessor e, momentos depois,<br />

a tranqüili<strong>da</strong>de estampou-se novamente no rosto do Servo de Deus, cujos<br />

lábios se puseram outra vez em movimento para a oração.<br />

Chegou enfim o dia 15 de março. — Nesse dia sucedeu em Viena um fato<br />

singular. A família Biringer, cujo pai falecera há tempo, era dirigi<strong>da</strong> do Santo,<br />

que a socorrera em muitos casos difíceis; a mãe mandou sua filha perguntar<br />

pela saúde do Santo; enquanto esta executava as ordens <strong>da</strong> mãe, teve a viúva<br />

uma visão clara: o Servo de Deus apareceu-lhe, sentou-se como de costume<br />

no sofá, queixou-se <strong>da</strong> falta de fé no mundo, mormente entre os funcionários e<br />

pessoas altamente coloca<strong>da</strong>s, acrescentando três vezes: “vou para o meu retiro”<br />

e desapareceu.<br />

No correr <strong>da</strong> manhã reuniram-se diversos discípulos do Servo de Deus em<br />

sua residência; o Santo silencioso rezava de mãos postas. Chegou o meio-dia,<br />

e de to<strong>da</strong>s as torres de Viena começaram os sinos a soar festivamente o Angelus<br />

Domini. <strong>Clemente</strong> fez um esforço para recolher as forças e disse aos presentes:<br />

“Rezai, estão batendo o Angelus”. Enquanto os presentes ajoelhados sau<strong>da</strong>vam<br />

a Mãe de Deus, <strong>Clemente</strong> expirou placi<strong>da</strong>mente para sau<strong>da</strong>r no céu sua<br />

inesquecível e estremeci<strong>da</strong> Mãe. No momento <strong>da</strong> morte um leve sorriso veio<br />

estampar-se em seu rosto, antes convulsionado pelo excesso <strong>da</strong> dor.<br />

Providência divina! — Nesse mesmo dia à tarde o Imperador assinou o<br />

decreto permitindo e aprovando a <strong>Congregação</strong> para a Áustria. Realizou-se<br />

com pontuali<strong>da</strong>de a profecia do Santo.<br />

A impressão <strong>da</strong> morte de <strong>Clemente</strong> nos assistentes foi diversa: uns choravam,<br />

outros enchiam-se de uma santa alegria. As irmãs Ursulinas, reunidos<br />

para a refeição, ao ouvirem a notícia <strong>da</strong> morte do Servo de Deus, chorosas<br />

abandonaram o refeitório e dirigiram-se à igreja a fim de rezar pelo santo confessor.<br />

Os discípulos, que não contavam com aquele desfecho rápido, ficaram<br />

perplexos e confusos.<br />

O Núncio Leardi por sua vez escreveu a Gonsalvi: “O bom Pe. <strong>Clemente</strong><br />

passou, ao meio-dia, à eterni<strong>da</strong>de; todos os bons estão consternados com a<br />

per<strong>da</strong> dessa coluna <strong>da</strong> boa causa; ele é simplesmente insubstituível”.<br />

Aprontaram o quarto vazio do coadjutor no primeiro an<strong>da</strong>r térreo e expuseram<br />

o corpo do Santo, vestido do hábito redentorista com uma bela estola roxa,<br />

em que estavam ricamente bor<strong>da</strong>dos os instrumentos <strong>da</strong> paixão e a imagem de<br />

Nossa Senhora <strong>da</strong>s Dores. O rosto do Santo, que recuperara sua cor natural e<br />

os traços de sereni<strong>da</strong>de com o sorriso admirável nos lábios, causava a todos a


melhor e mais santa impressão. A notícia <strong>da</strong> morte de <strong>Clemente</strong> espalhou-se<br />

com a rapidez do relâmpago para tristeza dos bons e contentamento dos maus.<br />

No dia seguinte uma multidão imensa, na expressão do Pe. Rinn, veio visitar o<br />

corpo do Santo, pois que todos queriam beijar-lhe as mãos pela última vez e<br />

receber por relíquia algum objeto que lhe tivesse pertencido. A condessa<br />

Szecheny osculava, entre lágrimas, as mãos do Santo, não podendo ausentarse<br />

de perto do seu antigo Diretor espiritual, que tanto a confortara em seus<br />

sofrimentos e angústias. Quando alguém se lembrou de avisá-la que tivesse<br />

cui<strong>da</strong>do para não contrair, por contágio, a moléstia do Santo (supunham que ele<br />

tivesse sofrido o tifo abdominal), a condessa respondeu: “Não tenho medo porque<br />

os Santos não infeccionam a ninguém”. O desejo de levar relíquias do Santo<br />

era tamanho, que foi mister vigiar o caixão, porque uns cortavam pe<strong>da</strong>ços <strong>da</strong><br />

batina e do cabelo, outros levavam fragmentos quebrados ao caixão, enquanto<br />

que outros limpavam a casa levando tudo o que sabiam ter pertencido ao Servo<br />

de Deus. A voz geral que se faziam ouvir em Viena era: “Temos um Santo no<br />

céu”.<br />

No dia seguinte iam ser entregues à terra os despojos mortais do grande<br />

Apóstolo de Viena. Como a morte fora simples e assisti<strong>da</strong> apenas pelos amigos<br />

do Santo, supunha-se que <strong>da</strong> mesma simplici<strong>da</strong>de se revestiria também o seu<br />

sepultamento. Encarregado dos funerais era o Pe. Martinho que, adoentado<br />

ain<strong>da</strong>, se achava distante na fazen<strong>da</strong> de um nobre senhor; dos estranhos nenhum<br />

se lembrou disso. A um ou outro que perguntava pelo enterro, respondiase<br />

que tudo seria feito com simplici<strong>da</strong>de. Uns dias antes havia o Pe. Martinho<br />

interrogado ao Santo, que é que se deveria fazer caso ele viesse falecer, ao que<br />

o Santo respondeu: “Fique sossegado, Deus há de providenciar”. E aquela palavra<br />

foi uma profecia. “Naquela quinta-feira, escreve Pajalich, houve um certo<br />

sossego, do meio-dia às 2 horas, sem que pessoa alguma se lembrasse do<br />

sepultamento; parece que o padre Martinho dera ordem de se fazer tudo do<br />

modo mais simples e oculto possível... Mas Deus providenciou para que o enterro<br />

se tornasse pomposo. Os admiradores do Servo de Deus sentiram um<br />

desejo irresistível de contribuir para o realce do sepultamento do Apóstolo de<br />

Viena.<br />

Desde as 2 horas começaram a chegar homens e mais homens, vindos de<br />

to<strong>da</strong>s as direções para a Igreja de Sta. Úrsula, onde agradeceram ao Senhor os<br />

inúmeros benefícios recebidos por intermédio do falecido; pouco depois apareceu<br />

na residência de <strong>Clemente</strong> um caixão de madeira consistente, destinado<br />

ao Santo; era presente do conde Szecheny. Na medi<strong>da</strong> que se aproximava a<br />

hora do enterro crescia o número de penitentes, amigos e admiradores que lhe<br />

vinham prestar as últimas honras. Chega<strong>da</strong> a hora do préstito fúnebre as duas<br />

ruas que conduzem a Sta. Úrsula, achavam-se apinha<strong>da</strong>s de povo; <strong>da</strong> mesma<br />

forma chegou grande número de sacerdotes, e enfim precedidos <strong>da</strong> cruz apareceram<br />

em nobre cortejo os clérigos e padres do seminário arquiepiscopal,<br />

sem que para isso tivessem recebido ordem ou permissão; atrás dessa procissão<br />

caminhava o célebre Zacharias Werner de pluvial rico ao lado de numerosa<br />

assistência. Pobres e ricos, nobres e plebeus, pessoas de todos os estados e<br />

posição, até sol<strong>da</strong>dos, compareceram ao acompanhamento do cadáver. Termina<strong>da</strong>s<br />

as orações prescritas e entoado o Miserere, pôs-se o magnífico préstito<br />

104<br />

em movimento. Os discípulos de <strong>Clemente</strong>, futuros Redentoristas, pegaram as<br />

alças do caixão, que carregaram com profundo respeito e devoção, acompanhados<br />

por outros que empunhavam velas. Coisa admirável! ninguém havia<br />

convi<strong>da</strong>do o povo, e a multidão apareceu empunhando velas acesas; uma multidão<br />

incalculável, no maior recolhimento, formando a guar<strong>da</strong> de honra do cadáver!<br />

Não sendo Sta. Úrsula igreja matriz, devia o préstito dirigir-se à catedral de<br />

Sto. Estevam. Era tocante e emocionante aquele cena! a multidão se desfazia<br />

em prantos e, às vezes, soluçava; senhoras com os filhinhos nos braços choravam<br />

como crianças. Em frente ao convento <strong>da</strong>s Ursulinas fez-se uma segun<strong>da</strong><br />

encomen<strong>da</strong>ção entre as lágrimas <strong>da</strong>s Irmãs que pranteavam seu pai espiritual<br />

e insigne benfeitor; nas exéquias revezaram-se o Pe. Zacharias Werner e o Pe.<br />

Schmid, confessor do Santo. A tarde era magnífica, o ar tranqüilo, o ruído habitual<br />

dos carros de praça cessara naquelas ruas, por onde ia passar o préstito<br />

fúnebre até a catedral. Reinava silêncio profundo, em que tanto mais se ouviam<br />

os dobres, as marchas fúnebres e os sons plangentes <strong>da</strong> ban<strong>da</strong> musical bem<br />

como os hinos e as orações, entrecorta<strong>da</strong>s de soluços, que se elevavam ao céu<br />

pelo falecido. Era um ver<strong>da</strong>deiro triunfo; o préstito movia-se vagaroso por causa<br />

<strong>da</strong> multidão de povo e dos inúmeros carros que acompanhavam o cadáver.<br />

Obstupefação geral causou o fato de se achar aberta, em par, a porta principal<br />

de Sto. Estevam, a qual nunca se abre por ocasião dos enterros, a não ser<br />

que se trate de pessoas altamente coloca<strong>da</strong>s, ou de muita influência na socie<strong>da</strong>de,<br />

mediante o pagamento de cem florins de prata. E ninguém sabia quem<br />

tinha aberto, ain<strong>da</strong> mais que o capelão havia <strong>da</strong>do ordens terminantes em contrário.<br />

Ao chegar o préstito em o largo de Sto. Estevam começou a escurecer;<br />

isso só servir para <strong>da</strong>r ao enterro o aspecto de triunfo; as milhares de pessoas<br />

que enchiam a vastíssima praça e as ruas vizinhas, empunhavam velas, que<br />

acesas, formavam um como mar de luzes ondulantes no meio <strong>da</strong> multidão. Era<br />

uma coisa nunca vista! donde aquelas velas? quem tivera a idéia de comprá-las<br />

to<strong>da</strong>s? ninguém o poderia dizer. A catedral gigantesca ficou apinha<strong>da</strong>; depois<br />

do Libera-me o Pe. Zacharias Werner com o coração comovido e a voz a tremer<br />

cantou a absolvição e as orações prescritas. Por ser já noite fecha<strong>da</strong>, os restos<br />

mortais do Santo foram depositados no necrotério por aquela noite.<br />

Viena jamais vira enterro tão comovente e magnífico como aquele; foi uma<br />

ver<strong>da</strong>deira apoteose em que tomou parte a Capital <strong>da</strong> Áustria em sua quase<br />

totali<strong>da</strong>de, e o que é mais admirável ain<strong>da</strong>, tudo isto sem convite algum. No dia<br />

seguinte o corpo foi levado ao cemitério de Enzersdorf, ao cargo dos Padres<br />

Franciscanos. Sobre o túmulo humilde de <strong>Clemente</strong> colocaram simples epitáfio:<br />

“Fidelis servus et prudens, isto é, Servo fiel e prudente”.<br />

Nesse dia apareceu uma notícia sobre o Servo de Deus, publica<strong>da</strong> pelo<br />

célebre cientista A<strong>da</strong>m Müller no mais afamado órgão de imprensa vienense,<br />

nos termos seguintes: “A 15 de março de 1820 faleceu aqui, pelo meio-dia, na<br />

i<strong>da</strong>de de 69 anos o R. Pe. <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong> <strong>Hofbauer</strong>, Vigário geral <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

do Santíssimo Redentor, fun<strong>da</strong><strong>da</strong> pelo bem-aventurado Afonso de Ligório,<br />

e confessor do convento <strong>da</strong>s Ursulinas. A ativi<strong>da</strong>de fecun<strong>da</strong> e estupen<strong>da</strong>, que<br />

só ele pôde desenvolver em circunstâncias difíceis e posições arrisca<strong>da</strong>s, confirmam-nos<br />

os muros de <strong>São</strong> Beno em Varsóvia, além dos milhares de testemunhas<br />

que ele alimentou, vestiu e conduziu a Deus por meio de uma vi<strong>da</strong> cristã.


Dissolvi<strong>da</strong> lá a <strong>Congregação</strong> pelo dominador dos franceses (Napoleão)<br />

dirigiu-se ele a sua Pátria onde viveu desde 1808 em Viena. Os frutos de sua<br />

vi<strong>da</strong> ativa, ver<strong>da</strong>deiramente apostólica, os pósteros os hão de colher. Nobres e<br />

plebeus, sábios e ignorantes deploram a per<strong>da</strong> irreparável do seu pai e guia, e<br />

mesmo os mais afastados, que só o conheciam de nome, sentem-lhe a morte,<br />

porque com ele esmoronou-se mais uma coluna <strong>da</strong> fé e <strong>da</strong> religião, e por isso,<br />

também <strong>da</strong> Pátria. Só o pensamento de que ele continua a viver no gozo infinitamente<br />

grande, pode mitigar a amargura causa<strong>da</strong> por seu passamento”.<br />

105<br />

CAPÍTULO XXV<br />

Retrato do Servo de Deus<br />

Testemunho de um dos discípulos — do Dr. Veith — do cônego Greif — de<br />

um amigo do Santo — de Jacoba de Welschenau — de Luiza Pilat — de um exjesuíta<br />

— do cardeal Rauscher.<br />

Diversos amigos e admiradores de <strong>Clemente</strong> têm-nos descrito o Servo de<br />

Deus tanto no seu físico como em sua vi<strong>da</strong> íntima, no seu modo de agir e no<br />

seu caráter másculo. Quanto ao exterior descreve-nos um dos seus primeiros<br />

discípulos: “O Servo de Deus era de tamanho regular, de constituição forte e<br />

boa estatura; fortes eram sobretudo os ombros e o peito; o pescoço era um<br />

tanto curto, a cabeça redon<strong>da</strong> e bem forma<strong>da</strong>, o rosto antes redondo que oval.<br />

Embora cheio de digni<strong>da</strong>de eram sempre amável e sorridente. Nunca o vi rir,<br />

mas sempre sorrir-se levemente, os olhos ele os tinha sempre semicerrados;<br />

quando porém falava com entusiasmo de alguma ver<strong>da</strong>de <strong>da</strong> fé, via-se um como<br />

resplendor irradiar-se deles; an<strong>da</strong>va sempre reto, inclinando apenas a cabeça.<br />

Embora se alimentasse pouco e se sobrecarregasse de muitos e pesados trabalhos,<br />

não era magro. Homem enérgico não manifestava nenhum vestígio de<br />

orgulho. An<strong>da</strong>va sempre com o hábito <strong>da</strong> ordem, no verão usava um manto<br />

preto e leve, debaixo do qual escondia o terço, que lhe não saía <strong>da</strong> mão. No<br />

inverno vestia um manto azulado. À cabeça ele tinha sempre coberta por um<br />

gorro, mesmo quando an<strong>da</strong>va pelas ruas. Os cabelos do Servo de Deus eram<br />

escuros e, nos últimos tempos <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>, um tanto grisalhos”.<br />

O retrato do seu caráter descreve-o admiravelmente o Dr. Veith, grande<br />

amigo do Santo e preclaro médico e cientista do seu tempo. “Ao Servo de Deus<br />

tenho antes os meus olhos, agora depois de 44 anos, tão vivo e fiel como nos<br />

dias <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> mortal, homem extremamente amável, manso, simples, humilde,<br />

prudente, profun<strong>da</strong>mente arraigado na cari<strong>da</strong>de, ardendo em amor de Deus<br />

e do próximo, inabalável como um rochedo em sua fé, extraordinariamente compassivo,<br />

esquecido de si e ávido <strong>da</strong> glória divina, ver<strong>da</strong>deiro apóstolo, procurando<br />

ser tudo para todos e possuidor <strong>da</strong>s riquezas <strong>da</strong> graça. Não duvido colocá-lo<br />

ao lado de <strong>São</strong> Filippe de Nery e de <strong>São</strong> Vicente de Paulo. Tive sempre a convicção<br />

de que ele praticou as virtudes cristãs em grau heróico no emprego de<br />

to<strong>da</strong>s as energias com extraordinária abnegação própria, com a maior pureza<br />

de intenção, ânimo inquebrantável tanto nos trabalhos como nos sofrimentos<br />

suportados por Nosso Senhor e pela Igreja, com aquela comiseração denomina<strong>da</strong><br />

na Escritura viscera misericordiae. Que ele praticava to<strong>da</strong>s essas virtudes<br />

posso atestar ao menos quanto aos últimos anos de sua vi<strong>da</strong>”.<br />

Um outro amigo do Santo, cônego Greif escreve: “<strong>Clemente</strong> era um homem


segundo o coração de Deus, cheio de simplici<strong>da</strong>de e amor, um modelo de virtudes<br />

para todos; conhecia a arte de atrair todos os corações e de tratá-los segundo<br />

as propensões de ca<strong>da</strong> um. Qual pastor vigilante corria atrás <strong>da</strong>s almas<br />

para convertê-las; a sua cari<strong>da</strong>de desarmava os próprios inimigos. Não tinha<br />

em conta alguma a sua pessoa; distribuía tudo o que tinha: essa era a sua vi<strong>da</strong>”.<br />

Eu admirei nele, escreve outro, a agudeza <strong>da</strong> inteligência, a sobrie<strong>da</strong>de do<br />

espírito, a oração contínua, a firmeza inabalável, a sede de perfeição, a gentileza<br />

de trato tanto com os nobres e ricos como com os pobres, a grande prudência,<br />

a sincera gratidão pelos benefícios recebidos, a inquebrantável intrepidez<br />

nas perseguições, a modéstia nas palavras e ações, a delica<strong>da</strong> brandura e<br />

mansidão em instruir e repreender, a inesgotável cari<strong>da</strong>de para com os pobres,<br />

a extraordinária temperança, o cui<strong>da</strong>do pela conservação <strong>da</strong> pureza de coração,<br />

a prudência na direção <strong>da</strong>s almas, a ativi<strong>da</strong>de abençoa<strong>da</strong> pelo céu, o amor<br />

e a dedicação à Santa Sé, a vigilância pela pureza <strong>da</strong> doutrina católica, a fé viva<br />

e constância inabalável, o amor de Deus e do próximo, pronto a qualquer sacrifício,<br />

a resignação <strong>da</strong> sua vontade em todos os sofrimentos físicos ou morais, a<br />

fortaleza em to<strong>da</strong>s as contrarie<strong>da</strong>des de vi<strong>da</strong>, a fideli<strong>da</strong>de imutável em o exercício<br />

de to<strong>da</strong>s as virtudes até o fim <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>”.<br />

Uma outra testemunha, Jacoba de Welschenau, que conhecia muito bem o<br />

Servo de Deus, escreve: “Ele nunca se mostrava enfa<strong>da</strong>do nem entristecido,<br />

nem exagera<strong>da</strong>mente alegre; nos traços do seu rosto podia-se ler a paz interior<br />

e a união com Deus”.<br />

“Da sua fisionomia”, escreve Luiza Pilat, “irradiava-se a pureza <strong>da</strong> alma e a<br />

paz, fruto <strong>da</strong> santa alegria que provinha <strong>da</strong> sua íntima união com Deus; em seu<br />

rosto estampava-se uma serie<strong>da</strong>de amável, pacata joviali<strong>da</strong>de, paz não perturba<strong>da</strong><br />

por nenhuma paixão, e um perfeito recolhimento de espírito”.<br />

Todos esses testemunhos, depostos por pessoas inteiramente fidedignas,<br />

foram extraídos do processo de beatificação do Servo de Deus. As pessoas,<br />

que depuseram no processo, não unânimes em chamá-lo “serafim”, anjo de<br />

consolação e de paz, apóstolo infatigável e ardoroso, bom odor de Cristo pelas<br />

acrisola<strong>da</strong>s virtudes, mártir <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Igreja, pai dos pobres, modelo de<br />

virtudes etc.<br />

Um ex-jesuíta, que logo depois <strong>da</strong> morte do Servo de Deus, publicou em<br />

Augsburgo uma história eclesiástica, fala de <strong>Clemente</strong> com os maiores elogios;<br />

denomina-o “homem apostólico, trabalhador incansável na vinha do Senhor,<br />

pregador <strong>da</strong> penitência”; afirma que a sua ativi<strong>da</strong>de em Viena era a de um<br />

grande apóstolo, tornando-se o refúgio dos pecadores e modelo de penitência,<br />

convertendo milhares de pessoas, conduzindo outras tantas à perfeição, sendo<br />

um outro João Batista, munido de força especial para operar conversões estupen<strong>da</strong>s<br />

e converter os pecadores mais obstinados”. — <strong>Clemente</strong> era desprezado<br />

e até perseguido por muitos, acrescenta o historiador, mas herói de virtudes,<br />

amava o desprezo sem jamais descerrar seus lábios para a queixa, procurava<br />

só a glória de Deus e o bem <strong>da</strong>s almas; luzia como uma estrela de primeira<br />

grandeza no meio <strong>da</strong>s trevas, combatia constantemente a impie<strong>da</strong>de do século”.<br />

O cardeal Rauscher, encarando o Santo em seu papel providencial, afirma<br />

ter sido <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> o restaurador <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>da</strong> Igreja na Áustria: “O Pe. <strong>Clemente</strong><br />

tornou possível a conclusão <strong>da</strong> concor<strong>da</strong>ta e deu uma nova e melhor<br />

direção ao espírito do tempo”.<br />

CAPÍTULO XXVI<br />

106<br />

O Santo na glória<br />

Declaração de João Pilat — de Zacharias Werner — <strong>da</strong>s Irmãs Ursulinas.<br />

No capítulo anterior vimos a descrição dos traços físicos do Santo e <strong>da</strong><br />

formosura de sua alma que foi heróica na prática <strong>da</strong>s virtudes teologais e morais.<br />

Ora uma vi<strong>da</strong> tão exemplar e virtudes tão heróicas não podiam ficar sem a<br />

mereci<strong>da</strong> recompensa. Aprouve a Deus manifestar-nos um raio <strong>da</strong> glória, que<br />

goza S. <strong>Clemente</strong> no céu, como vemos nas três declarações abaixo, feitas sob<br />

juramento por pessoas incapazes de engano.<br />

A primeira declaração procede de João Pilat, moço correto e inteligente,<br />

nomeado preceptor dos alunos no colégio nobre fun<strong>da</strong>do por Klinkowström,<br />

que já conhecemos de outro lugar desta biografia. Demos-lhe a palavra: “Era<br />

pouco depois <strong>da</strong> morte de <strong>Clemente</strong>... eu morava então no instituto de<br />

Klinkowström. Já de há muito tempo tinha resolvido não só deixar o emprego<br />

<strong>da</strong>s finanças, mas consagrar-me inteiramente ao serviço de Deus no sacerdócio.<br />

Educado no espírito do Pe. <strong>Clemente</strong> procurei levar uma vi<strong>da</strong> ver<strong>da</strong>deiramente<br />

cristã e piedosa e consagrar-me a Deus no sacerdócio. Contra esse<br />

plano de me enfileirar entre os levitas do Senhor, só encontrei oposição no<br />

Governo que me fazia as maiores dificul<strong>da</strong>des por eu não haver cursado filosofia<br />

na universi<strong>da</strong>de de Viena, mas só priva<strong>da</strong>mente na Hungria. Essa má vontade<br />

<strong>da</strong> facul<strong>da</strong>de filosófica abateu-me tanto que quase sucumbi; julguei dever<br />

desistir do intento de me tornar Redentorista. Justamente naqueles dias o Pe.<br />

Passerat chegou a Viena. Numa <strong>da</strong>quelas tardes estava eu ajoelhado perto do<br />

meu leito a fazer a minha meditação costuma<strong>da</strong>, para a qual me servia do livro<br />

do Pe. Crasset, se me não engano; na minha frente achava-se um quadro de<br />

<strong>São</strong> José com o menino Jesus no braço. Sei com to<strong>da</strong> a certeza que naquele<br />

momento não me lembrei do Pe. <strong>Clemente</strong>, nem de Santo Afonso e muito menos<br />

do Pe. Passerat: os olhos conservei-os fixos no quadro de <strong>São</strong> José. Posso<br />

ain<strong>da</strong> declarar que nunca em minha vi<strong>da</strong> me deixei alucinar nem física, nem<br />

moralmente, pois tenho uma aversão natural a to<strong>da</strong> a sorte de visões.<br />

Nessa disposição corporal e física vi repentinamente o seguinte: Na minha<br />

frente achava-se Santo Afonso em sua figura característica, circun<strong>da</strong>do de uma<br />

luz bran<strong>da</strong> e celestial; lançou para mim um olhar de bon<strong>da</strong>de.<br />

A seu lado reconheci o Pe. <strong>Clemente</strong> que também me olhava, estava todo<br />

transfigurado, irradiando a mesma luz celestial como o santo Fun<strong>da</strong>dor. Sem<br />

proferir palavra, parecia que ambos me apontavam o Pe. Passerat que se mostrava<br />

à esquer<strong>da</strong> de Sto. Afonso; em segui<strong>da</strong> vi como misteriosa e espiritualmente<br />

o Pe. Passerat se transformou na pessoa do santo Fun<strong>da</strong>dor.


Sem mais detença veio-me o pensamento de que Deus me <strong>da</strong>va a entender<br />

que no céu S. <strong>Clemente</strong> goza a mesma glória como Santo Afonso, e que<br />

cui<strong>da</strong> ain<strong>da</strong> agora dos seus filhos, enviando-me, os dois, para o Pe. Passerat,<br />

que com certeza desfaria todos os obstáculos à minha entra<strong>da</strong> na <strong>Congregação</strong>.<br />

E de fato assim foi. O Pe. Passerat foi comigo ao Imperador, que com grande<br />

bon<strong>da</strong>de, baixou o decreto declarando válidos os meus estudos, para eu me<br />

tornar um dos filhos espirituais do Pe. <strong>Clemente</strong>. Já lá se foram 40 anos desde<br />

então, e essa visão ain<strong>da</strong> me paira tão viva ante os olhos, que dela me lembro<br />

como se fosse ontem”.<br />

Isso narra com juramento o Pe. Pilat, que, devido a essa aparição entrou na<br />

<strong>Congregação</strong> professando em 1823; ordenado dois anos depois foi a Lisboa e à<br />

Bélgica; em Bruxelas foi o confessor de Leão XIII, então Núncio Apostólico dos<br />

Países Baixos, o qual duas vezes por semana ia ao convento dos Redentoristas.<br />

Uma segun<strong>da</strong> manifestação <strong>da</strong> sua glória no céu, fê-la <strong>Clemente</strong> a seu<br />

grande amigo, o Pe. Zacharias Werner, que a narrou ao povo do alto do púlpito,<br />

como nô-lo transmitiu, com juramento, a Irmã Thadéa de Sta. Úrsula: “Era o<br />

primeiro domingo do advento de 1822; Zacharias Werner deu início a seu sermão<br />

em nossa igreja com as palavra que ain<strong>da</strong> retenho na memória com to<strong>da</strong> a<br />

exatidão: ‘Já não viverei muito tempo, porque o Pe. <strong>Clemente</strong> m’o disse. Estava<br />

eu deitado depois <strong>da</strong> oração <strong>da</strong> noite, quando subitamente vi o quarto aclarado<br />

por uma luz mais viva que a do sol, e no meio do resplendor contemplei o Pe.<br />

<strong>Clemente</strong>, meu pai, amigo e mestre; tinha em suas mãos um lírio, um ramo de<br />

oliveira e uma palma, apostrofou-me com as palavras: Zacharias vem, vem,<br />

vem logo, e desapareceu em segui<strong>da</strong>. Essa aparição não é fantástica, pois eu<br />

não estava dormindo; é tão certo que vi o Pe. <strong>Clemente</strong>, como é certo que vivo<br />

e aqui estou na igreja na presença do meu Deus no Santíssimo Sacramento.<br />

Desde essa hora senti-me fraco e sei, sem dúvi<strong>da</strong> alguma, que morrerei em<br />

breve’. E de fato sucedeu tudo quanto Zacharias Werner afirmou; morreu poucas<br />

semanas depois, se me não engano, depois <strong>da</strong> festa <strong>da</strong> epifania de 1823”.<br />

Todos consideram típica essa aparição, mormente por causa dos três símbolos:<br />

o lírio representa a pureza virginal do Santo, jamais mancha<strong>da</strong> com o<br />

labéu <strong>da</strong> culpa; o ramo de oliveira é o símbolo <strong>da</strong> paz interior, que gozava constantemente,<br />

e dos trabalhos que empreendeu pela paz <strong>da</strong> Igreja e do mundo; a<br />

palma simboliza o martírio que suportou, à vi<strong>da</strong> inteira, pela difusão <strong>da</strong> religião<br />

e <strong>da</strong> fé.<br />

O Servo de Deus queria, com isso, preparar o seu amigo para o último<br />

combate e para a despedi<strong>da</strong> deste mundo. Zacharias Werner morreu como um<br />

Santo, conforme as palavras de Bruner: “Werner sabia de antemão que se aproximava<br />

a sua dissolução, pois que a tuberculose já se lhe apoderara dos pulmões;<br />

morreu e foi sepultado ao lado de seu amigo e mestre <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>.<br />

Mais um fato desse gênero encontramo-lo no convento de Santa Úrsula.<br />

“No nosso convento, assim escrevem, tínhamos uma Irmã conversa muito piedosa,<br />

por nome Sebastiana, que edificava a to<strong>da</strong>s com a sua vi<strong>da</strong> exemplar. O<br />

Pe. <strong>Clemente</strong> estimava-a também por causa de sua sincera e profun<strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de,<br />

e uma vez, gracejando, chegou até a <strong>da</strong>r-lhe o apelido de ‘Santa’. Ela, porém,<br />

protestou logo com delicadeza dizendo: ‘Quem sou eu? um vermezinho<br />

miserável, — V. Revma. sim, converte grandes pecadores, batiza judeus, ensina<br />

107<br />

o povo, leva Nosso Senhora aos moribundos em suas casas, aconselha a outros<br />

padres que façam o mesmo: é isso que santifica a gente’. Com sorriso nos<br />

lábios disse <strong>Clemente</strong>, ‘agora fui eu que tomei’, e olhando para a Irmã acrescentou::<br />

‘Eu te aju<strong>da</strong>rei a morrer e te levarei ao céu’, ao que Sebastiana replicou:<br />

‘Pois bem, quando eu morrer tomarei V. Revma. pela palavra’. Muitos anos<br />

depois <strong>da</strong> morte do Servo de Deus, estava a Irmã Sebastiana em seu leito de<br />

dores; lembrando-se <strong>da</strong> promessa de <strong>Clemente</strong> invocou-o pedindo-lhe auxílio.<br />

Num <strong>da</strong>do momento prorrompe nas palavras: “o padre <strong>Clemente</strong>! o Pe. <strong>Clemente</strong>!<br />

o Pe. <strong>Clemente</strong>!” e expirou deixando estampa<strong>da</strong> no rosto a tranqüili<strong>da</strong>de<br />

dos justos.


CAPÍTULO XXVII<br />

O bondoso Taumaturgo<br />

As profecias do Santo — Conversões miraculosas — Protege nas vocações<br />

— Em grande falta de recursos — Mesmo em negócio de cozinha — O<br />

padroeiro dos enfermos: Ignez Fiath — Livra <strong>da</strong> morte — Paralisia e trismo —<br />

Chlorose complicado — Hidropisia — Tumores perigosos — Dores de garganta<br />

— Artrite — Varizes — Hemorragia — Escrofulas — Artroflogose — Reumatismo<br />

— Peritonite.<br />

No decorrer desta biografia temos tido ocasião de apreciar diversos e estupendos<br />

milagres que Deus operou por meio do seu Servo. <strong>Clemente</strong> não era<br />

desses Santos que brincavam com os milagres como v. g. um S. Geraldo, cuja<br />

vi<strong>da</strong> já era em si mesma uma maravilha do céu. A humil<strong>da</strong>de sincera e profun<strong>da</strong><br />

de <strong>Clemente</strong> fazia-o fugir de tudo quanto pudesse <strong>da</strong>r na vista, e — feito o<br />

milagre — sabia disfarçá-lo com engenho e arte.<br />

O leitor lembra-se ain<strong>da</strong> do ocorrido com a Irmã Jacoba, Ursulina, que por<br />

ser muito doentia, temia ser expulsa do noviciado por inútil; <strong>Clemente</strong>, porém,<br />

com a maior convicção e firmeza afirmou-lhe que faria os votos religiosos, sararia<br />

e sobreviveria a muitas que tinham então as faces rosa<strong>da</strong>s. Poucos dias<br />

antes <strong>da</strong> profissão a Irmã caiu novamente enferma; quiseram expulsá-la, <strong>Clemente</strong><br />

porém disse com clareza: “Tu farás profissão, quando tiveres 28 anos de<br />

i<strong>da</strong>de sararás e ficarás ain<strong>da</strong> uma bruaca velha”. A essa palavra a noviça foi<br />

aceita; dentre as Ursulinas foi ela uma <strong>da</strong>s três que viveram até a época <strong>da</strong><br />

beatificação do Servo de Deus.<br />

Vimos também como a comi<strong>da</strong> se aumentava e multiplicava em suas mãos;<br />

muitos amigos do Santo contam isto com todos os pormenores.<br />

O leitor não terá ain<strong>da</strong> esquecido o caso miraculoso, narrado pelo Dr. Veith,<br />

que longe de ser crédulo era conhecido como cético, explicando tudo de modo<br />

natural e humano. “Na casa de um dos amigos de <strong>Clemente</strong> reinava tristeza<br />

inconsolável por causa <strong>da</strong> doença mortal de um dos filhos <strong>da</strong> casa, o menino<br />

Afonso; tinha um ano de i<strong>da</strong>de e já se achava frio, de cor ca<strong>da</strong>vérica, inclinado<br />

sobre os joelhos <strong>da</strong> inconsolável mãe; o médico, depois de examinar a criança,<br />

não sabia outra prognose senão que à noite ela seria cadáver. Inespera<strong>da</strong>mente<br />

entra <strong>Clemente</strong> que sabia <strong>da</strong> amargura <strong>da</strong> família. A pobre mãe corre para<br />

ele desespera<strong>da</strong>, mostrando-lhe, entre prantos, o filhinho desenganado do<br />

médico. <strong>Clemente</strong>, porém, diz-lhe tranqüilamente: “Não é na<strong>da</strong>, não é na<strong>da</strong>;<br />

hoje à tarde a criança terá fome e comerá”; em segui<strong>da</strong> deu uma leve pancadinha<br />

na face <strong>da</strong> criança e virou-se para o outro lado apoiando-se no salto do sapato,<br />

o que costumava fazer em semelhantes ocasiões para desviar a atenção. A<br />

108<br />

predição do Servo de Deus realizou-se à risca.<br />

A uma senhora <strong>da</strong> sua amizade, que mostrava muito medo de perder seus<br />

filhinhos, disse o Servo de Deus: “A senhora não perderá nenhum dos seus<br />

filhos”, e de fato, ela morreu pouco tempo depois deixando viva to<strong>da</strong> a sua<br />

prole.<br />

Um outro milagre de <strong>Clemente</strong> com meios tão insignificantes pôde conseguir<br />

resultados tão extraordinários. Um jovem libertino entrando, uma vez, na<br />

igreja <strong>da</strong>s Ursulinas, que se achava repleta de povo, maliciosamente foi abrindo<br />

caminho por entre o povo, para <strong>da</strong> frente melhor ver as mulheres e as moças.<br />

Nesse mesmo instante <strong>Clemente</strong> ia com o Santíssimo <strong>da</strong> capela lateral<br />

para a capela-mor, a cabeça inclina<strong>da</strong> segundo o seu costume; ao chegar perto<br />

do moço lançou-lhe um olhar semelhante ao que Jesus lançou a Pedro no átrio<br />

<strong>da</strong> casa de Caifás; o rapaz não pôde resistir, e saiu desfeito em lágrimas de<br />

arrependimento. Bastava, por vezes, fitar energicamente as pessoas para lhes<br />

infiltrar a fé. O seu olhar tinha um quê de extraordinário e indefinível.<br />

Depois <strong>da</strong> sua morte o Servo de Deus não se esqueceu dos amigos e<br />

devotos. <strong>São</strong> inúmeros os favores e as graças que Deus tem operado por sua<br />

intercessão.<br />

Em todos os transes difíceis <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>, em to<strong>da</strong>s as amarguras, o Santo tem<br />

manifestado a força do seu braço, o poder que goza junto do Altíssimo. Para o<br />

aumento <strong>da</strong> nossa confiança em seu poder e bon<strong>da</strong>de, citemos apenas alguns<br />

favores obtidos por novenas, devoções e orações a ele feitas.<br />

Protege nas vocações: Um jovem piedoso desejava ardentemente entrar<br />

na <strong>Congregação</strong> Redentorista, pois que se sentia chamado por Deus ao estado<br />

religioso, e ardia em desejos de pregar missões, converter os pecadores, tornar-se<br />

um apóstolo a exemplo de Jesus, que passou os três anos de sua vi<strong>da</strong><br />

pública a pregar e a doutrinar as massas. Ser Redentorista era o ideal <strong>da</strong> sua<br />

vi<strong>da</strong>, mas na realização dessa sua nobre aspiração encontrava a mais declara<strong>da</strong><br />

oposição dos pais e irmãos; fez o possível para convencer os seus; vendo,<br />

porém, que eram bal<strong>da</strong>dos os seus esforços, lembrou-se de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e<br />

fez-lhe uma novena. Poucas semanas depois, sem que ele tornasse a insistir,<br />

os parentes inteiramente mu<strong>da</strong>dos em sua opinião, deram unanimemente o<br />

consentimento para a sua entra<strong>da</strong> no convento. José Horny — assim se chamava<br />

ele — entrou para a <strong>Congregação</strong>, onde, depois de trabalhar dezoito anos,<br />

faleceu santamente.<br />

Em grande falta de recursos — achavam-se uma vez as duas irmãs Ana e<br />

Rosalina Biringer, como nos conta uma delas: “Estávamos em grandes apuros;<br />

era preciso pagar o aluguel do quarto, o tempo urgia, e nós não tínhamos o<br />

dinheiro necessário nem de quem tomá-lo emprestado. Subitamente veio-nos a<br />

lembrança de invocar o Pe. <strong>Clemente</strong>, fazer-lhe uma visita à seu túmulo e expor<br />

as nossas necessi<strong>da</strong>des. Fomos ao seu sepulcro, abrimos-lhe o nosso coração,<br />

***<br />

***


lembrando-lhe que tínhamos sido suas filhas espirituais e rogando<br />

encareci<strong>da</strong>mente o seu socorro. Consola<strong>da</strong>s e cheias de esperança voltamos<br />

para a casa, e — ó milagre — já no dia seguinte recebemos uma carta que<br />

absolutamente não esperávamos, e onde se lia: “Talvez as senhores precisem<br />

do dinheiro que vai junto para o pagamento do aluguel”. Eram justamente os<br />

cinqüenta florins que faltaram para se inteirar a conta.<br />

Mesmo em os negócios de cozinha tem-se implorado o auxílio de <strong>Clemente</strong>.<br />

Embora não sejam milagres, mas simples favores, mostram a grande confiança<br />

que os devotos depositam na proteção do bondoso Pe. <strong>Clemente</strong>, que<br />

aju<strong>da</strong> até em coisas pequenas e insignificantes.<br />

Eram justamente passa<strong>da</strong>s sete semanas depois <strong>da</strong> morte de <strong>Clemente</strong>;<br />

aproximava-se a festa do Sagrado Coração de Jesus, que naquele ano de 1820<br />

caiu no dia 9 de junho. Querendo a Superiora <strong>da</strong>s Ursulinas, que suas súditas<br />

celebrassem essa festa também no refeitório, mandou que a cozinheira se esforçasse<br />

por alegrar e contentar as irmãs apresentando-lhes alguma coisa especial,<br />

não faltando a sopa de bolos de farinha, prato muito apreciado pelos<br />

vienenses. A cozinheira, que não era outra senão a Irmã Thadéa, fez o possível,<br />

mas debalde, justamente naquele dia na<strong>da</strong> lhe saia bem, nomea<strong>da</strong>mente os<br />

bolos que não queriam formar-se. A pobre cozinheira quase perdeu a cabeça;<br />

por fim lembrou-se do Pe. <strong>Clemente</strong>; ajoelhou-se na cozinha e rezou um Padre<br />

Nosso com as palavras: “Pe. <strong>Clemente</strong>, agora é tempo de me valerdes, não<br />

consigo na<strong>da</strong> hoje na cozinha”. Levantou-se e, <strong>da</strong>quele momento em diante<br />

tudo lhe correu às mil maravilhas. A Superiora durante a refeição chamou a<br />

cozinheira ao refeitório — caso virgem no convento — e perguntou-lhe como é<br />

que conseguira preparar tão apetitosa refeição, ao que Thadéa respondeu: “Ah!<br />

hoje foi o Pe. <strong>Clemente</strong> que cozinhou!” As irmãs sorriram-se ao ouvirem o que<br />

se passara na cozinha. O mais curioso é que a comi<strong>da</strong> prepara<strong>da</strong> em porção<br />

costuma<strong>da</strong>, apesar de repetidos os pratos por to<strong>da</strong>s as irmãs, sobrou em grande<br />

quanti<strong>da</strong>de, podendo ser servi<strong>da</strong> também ao jantar.<br />

Também com as Visitandinas deu-se um caso semelhante. A cozinheira<br />

ficou uma vez bastante incomo<strong>da</strong><strong>da</strong> com a fumaça que não queria absolutamente<br />

sair pela chaminé. No desespero invocou o Pe. <strong>Clemente</strong>, que lhe despertou<br />

uma lembrança singular: a de examinar, se talvez na parede houvesse<br />

uma outra chaminé; bate na parede que responde com um som oco; abrem-na<br />

e encontram uma outra chaminé, <strong>da</strong> qual não tinham conhecimento nem as<br />

irmãs mais idosas do convento; desde então a fumaça nunca mais molestou a<br />

pobre cozinheira.<br />

Caso semelhante deu-se no convento do Bom Pastor em Viterbo. A praga<br />

<strong>da</strong> fumaça era tal, que quase cegava as irmãs. Fizeram-se as possíveis reparações<br />

na chaminé, porém, debalde. Por acaso achava-se no convento uma Irmã,<br />

que mais de uma vez, experimentara de modo maravilhoso o valimento do Servo<br />

de Deus; invocou-o com grande confiança, pendurando a imagem de <strong>Clemente</strong><br />

ao lado de fora <strong>da</strong> chaminé, e incontinenti a ordem estava restabeleci<strong>da</strong>:<br />

a fumaça encontrou o caminho para fora sem ser necessário outro expediente.<br />

***<br />

109<br />

Favores semelhantes contam-se aos milhares, mormente em Viena, onde<br />

se conhecia bem a bon<strong>da</strong>de proverbial do Pe. <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong> <strong>Hofbauer</strong>. Ora é<br />

um operário que procura trabalho, ora um rapaz que procura colocação, ora<br />

uma professora que deseja uma cadeira etc etc. etc.<br />

To<strong>da</strong>via existem ain<strong>da</strong> sinais mais estupendos e extraordinários, que mostram<br />

o poder e a força do valimento do nosso Santo junto de Deus.<br />

O padroeiro dos enfermos. O primeiro e principal depoente no processo de<br />

beatificação do Pe. <strong>Clemente</strong> declara: “A cura <strong>da</strong> pequena baronesa Ignez Fiath<br />

causou grande sensação, <strong>da</strong>ndo muito que falar em Viena; também em Praga<br />

ocuparam-se pormenoriza<strong>da</strong>mente do fato sem nenhuma contestação.<br />

Ignez Fiath, filha de um conhecido barão húngaro, vivia desde 1863 no<br />

instituto <strong>da</strong>s Visitandinas em Viena. Adoecendo por ocasião <strong>da</strong> festa de Natal foi<br />

recolhi<strong>da</strong> à enfermaria. No exame o médico verificou uma úlcera e pequenas<br />

feri<strong>da</strong>s na região inguinal; as feri<strong>da</strong>s desapareceram, mas as dores localizaram-se<br />

nas pernas e nos joelhos, de sorte que a menina an<strong>da</strong>va só com muita<br />

dificul<strong>da</strong>de, manquejando por não poder levantar, sem grande esforço, o pé<br />

esquerdo; já no ano anterior havia ela sentido semelhantes dores em casa, ao<br />

cair dentro de um valo, que queria atravessar de um salto; as dores <strong>da</strong> perna<br />

esquer<strong>da</strong> aumentavam-se dia a dia. O médico <strong>da</strong> casa consultou o célebre cirurgião<br />

Dr. Schuh, que declarou temer um resultado mau caso não desaparecessem<br />

as dores no prazo de três semanas mediante repouso absoluto, compressas<br />

de água fria e homeopáticas doses de ferro carbônico. Pouco depois foi<br />

consultado também o célebre homeopata Dr. Fleischmann. Já o fato de se reunirem<br />

para a consulta três tão abalizados médicos, mostra a gravi<strong>da</strong>de do caso.<br />

Os doutores man<strong>da</strong>ram que a menina tentasse caminhar um pouco, mas<br />

as dores tornaram-se horríveis. Prescreveram novamente repouso absoluto, e<br />

verificaram inflamações nas juntas. Em lugar do ferro carbônico receitaram<br />

beladona e prescreveram banhos quentes com sal de ossos.<br />

Entretanto o pé virava-se todo para fora; não havia dúvi<strong>da</strong>, formara-se a<br />

coxalgia.<br />

A 5 de fevereiro de 1864 — uma sexta-feira — levaram a pequena ao banho,<br />

do qual saiu quase morta. Nesse mesmo dia Ignez começou uma novena<br />

com as outras meninas em louvor do Pe. <strong>Clemente</strong>, cuja relíquia a pequena<br />

conservava junto ao leito.<br />

Até domingo ao meio-dia ain<strong>da</strong> não se notara na enferma melhora alguma,<br />

porém, nesse mesmo dia à tarde, 7 de fevereiro, Ignez sentiu que se podia<br />

mover sem dor.<br />

Em chegando a enfermeira a pequena baronesa declarou que estava cura<strong>da</strong>,<br />

pôs-se em pé, e como não lhe permitissem levantar-se, andou sobre o leito<br />

e saltou de contente não sentindo dor alguma.<br />

Na manhã seguinte ninguém a pôde reter na cama, levantou-se... e quando<br />

a viram caminhar exclamaram estupefatos: “Milagre, milagre!” Nesse mesmo<br />

dia o médico examinou a menina e verificou que estava completamente cura<strong>da</strong>,<br />

e declarou a um Padre Redentorista, que nem o melhor remédio do mundo<br />

***


poderia operar aquela cura em tão curto espaço de tempo. A cura foi radial e<br />

duradoura. Esse acontecimento causou enorme sensação; a própria Imperatriz<br />

Carolina Augusta foi ao convento <strong>da</strong>s Visitandinas para ver a pequena baronesa;<br />

o mesmo fez também o Núncio Apostólico. Esse milagre foi examinado e<br />

aprovado para a beatificação do Servo de Deus.<br />

Livra <strong>da</strong> morte. <strong>Maria</strong> Hofmann, senhora de seus 40 anos, casa<strong>da</strong>, mãe de<br />

onze filhos, tinha de sujeitar-se aos mais pesados e rudes trabalhos para a<br />

sustentação dos seus. Caindo gravemente doente foi recolhi<strong>da</strong> ao hospital;<br />

muni<strong>da</strong> de sóli<strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de a enferma, embora ataca<strong>da</strong> de dores agu<strong>da</strong>s, não<br />

<strong>da</strong>va o menor sinal de impaciência. A hérnia, que a pobre senhora padecia,<br />

teimava em não admitir cura; por isso o médico a enviou ao hospital sem esperança<br />

alguma. Passados 12 anos a pobre mulher ain<strong>da</strong> sofria sem alívio; era<br />

necessária uma operação, mas os médicos não a queriam fazer devido ao adiantado<br />

<strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong>de. No hospital ninguém contava com a cura <strong>da</strong> senhora,<br />

que tinha ain<strong>da</strong> contra si a i<strong>da</strong>de avança<strong>da</strong> de 52 anos, entretanto os médicos e<br />

as enfermeiras tentaram o possível. A enferma vomitava constantemente não<br />

retendo alimento algum no estômago; no 5.º dia declarou-se a cólica ilíaca, e na<br />

manhã seguinte apareceu a inflamação. À noite, como o caso era desesperado,<br />

um dos médicos chamados à última hora, perguntou-lhe se não queria ser opera<strong>da</strong>;<br />

a mãe lembrando-se dos seus filhinhos que necessitavam dela, submeteu-se<br />

de boa vontade e resigna<strong>da</strong> à vontade de Deus; preparou-se tudo para a<br />

operação. No dia destinado à operação, chegou a ela, de manhã, uma Irmã,<br />

contou-lhe o milagre operado pelo Pe. <strong>Clemente</strong> no convento <strong>da</strong>s Visitandinas,<br />

e perguntou, se não queria também experimentar a intercessão do bondoso<br />

Santo; a senhora naturalmente anuiu prometendo uma novena ao Pe. <strong>Clemente</strong>;<br />

as pessoas presentes acompanharam-na na recitação dos 9 Padres Nossos<br />

e do Credo. Essa boa conselheira era a primeira <strong>da</strong>s enfermeiras, em cujo quarto<br />

se faziam quase to<strong>da</strong>s as operações; lá estava pendurado um quadro do<br />

Santo. Ao chegarem os médicos tentaram mais uma vez empurrar para dentro<br />

a hérnia, porém debalde. “Corri, diz a enfermeira que narra o fato, e trouxe um<br />

pano; ao chegar notei que a ruptura estava completamente mole e ouvi um<br />

ruído coo se despejasse água de uma garrafa, e num instante a hérnia estava<br />

fecha<strong>da</strong>; apalpei o lugar <strong>da</strong> ruptura, e não encontrando vestígio algum do mal<br />

exclamei: “<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> valeu”. Os médicos abanaram a cabeça, não sabendo<br />

o que dizer em tal circunstância. Um católico, Dr. Lervinsky, contentou-se em<br />

dizer “Isto é milagre”. A enferma afirmou não sentir mais dor alguma e pediu de<br />

comer, levantando-se em segui<strong>da</strong>. Essa cura deu-se de manhã, quando a operação<br />

devia ser feita à tarde. Esse milagre foi examinado e aprovado no processo<br />

de beatificação.<br />

Paralisia e trismo. Ana Berger, cura<strong>da</strong> miraculosamente pelo Santo, conta<br />

o fato do modo seguinte: “Sou de constituição bastante forte e de natural alegre<br />

***<br />

***<br />

110<br />

mesmo nos sofrimentos; até a i<strong>da</strong>de de 13 anos fui forte e sacudi<strong>da</strong>; dessa<br />

i<strong>da</strong>de em diante comecei a vomitar sangue; aos 17 anos sofri convulsões horríveis<br />

de sorte que quatro homens não me podiam segurar nessas ocasiões;<br />

para isso era bastante um susto, um barulho, uma surpresa. Os médicos verificaram<br />

que a minha doença provinha <strong>da</strong> inflamação <strong>da</strong> espinha dorsal e prescreveram-me<br />

sangrias, sanguessugas etc., que me proporcionaram certo alívio,<br />

mas me enfraqueceram consideravelmente, obrigando-me a guar<strong>da</strong>r o leito<br />

muitas vezes. Em 1844 estive dez semanas no hospital de Linz. A 2 de fevereiro<br />

a fraqueza me fez perder os sentidos, e dois dias depois, para cúmulo de infelici<strong>da</strong>de,<br />

sobreveio-me o trismo, os lábios separaram-se-me com violência, ficando<br />

os dentes cerrados; não recebia então alimentação alguma a não ser um<br />

pouco de sopa pelo vão dos dois dentes <strong>da</strong> frente. Perdi completamente a fala.<br />

Dai por diante ia de mal a pior. Na i<strong>da</strong>de de 32 anos tive uma forte hemorragia<br />

que me paralisou o pé esquerdo; pouco depois fui ataca<strong>da</strong> de inflamação intestinal,<br />

que me causou dores indizíveis; os remédios acalmaram as dores, mas<br />

conservaram-me no leito, onde me não pude mover; pelo corpo todo espalhouse<br />

um tumor em extremo doloroso. Nesse estado miserável, fizeram-me a sangria<br />

que não deu resultado, porque o sangue não correu, o braço direito entorpeceu<br />

completamente. Esse estado durou um ano inteiro, pelo que os médicos<br />

me desenganaram, declarando incurável a minha enfermi<strong>da</strong>de. Resolvi então<br />

recorrer ao céu, lembrei-me <strong>da</strong> Santíssima Virgem prometendo uma romaria a<br />

seu Santuário de Schmolln, e manifestei essa minha promessa a um Padre<br />

Redentorista, que me aconselhou dirigir-me primeiro com uma novena ao Pe.<br />

<strong>Clemente</strong>, para poder depois, com saúde, fazer a romaria prometi<strong>da</strong>; e ele tinha<br />

razão. Fiz a novena com to<strong>da</strong> a confiança; no oitava dia fiquei completamente<br />

sã, levantei-me e a pé fui visitar o meu Diretor espiritual, que morava numa<br />

distância de cinco quartos de hora e voltei, também a pé, sem maior novi<strong>da</strong>de;<br />

dias depois fui a Schmolln, an<strong>da</strong>ndo dez horas a pé; a voz voltou-me também<br />

com a mesma força de outrora. Oh! como sou grata ao Pe. <strong>Clemente</strong>! os médicos<br />

todos afirmaram que minha cura foi um ver<strong>da</strong>deiro milagre!<br />

Clorose complicado. A condessa Ana <strong>Maria</strong>, Visitandina, conta o milagre<br />

seguinte: “Aloísia, filha do conde A<strong>da</strong>m Revicky <strong>da</strong> Hungria, era alta, porém de<br />

natureza franzina, professou no convento <strong>da</strong> Visitação, sendo em segui<strong>da</strong> nomea<strong>da</strong><br />

professora no Instituto. Por causa <strong>da</strong> sua constituição fraca sofria muito<br />

a neo-professa, sendo necessário poupá-la o mais possível, e atender a seu<br />

temperamento melancólico. Desde a profissão a Irmã começou a definhar a<br />

olhos vistos; parecia ataca<strong>da</strong> <strong>da</strong> tuberculose acompanha<strong>da</strong> de horríveis dores<br />

de cabeça e asma tão declara<strong>da</strong>, que quase não podia an<strong>da</strong>r; além disso sofria<br />

fastio e insônia. Incapaz de qualquer serviço na comuni<strong>da</strong>de, tinha a certeza de<br />

uma morte prematura, lamentando só não haver prestado nenhum serviço à<br />

Ordem em que professara. Embora trata<strong>da</strong> por um bom médico, não apresentava<br />

melhoras de quali<strong>da</strong>de alguma. Sem esperança <strong>da</strong> terra, a pobre neo-professa<br />

lembrou-se do Pe. <strong>Clemente</strong>. Invocou-o e começou em seu louvor uma<br />

novena de três Ave-<strong>Maria</strong>s e Gloria Patri, levando ao peito uma relíquia do cai-<br />

***


xão em que foi sepultado o Santo. Pelo fim <strong>da</strong> novena, durante a meditação,<br />

Aloísia sentiu-se anima<strong>da</strong> de uma nova vi<strong>da</strong>, embora nos dias anteriores não se<br />

tivesse manifestado nenhum sinal de melhora nem alívio. Levantou-se completamente<br />

forte, tornou-se uma <strong>da</strong>s mais laboriosas no convento, cantando sempre<br />

com voz estentórica, quando preciso; desde então nunca mais encontrou<br />

dificul<strong>da</strong>de nos trabalhos <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de. Coisas que nunca conseguira fazer<br />

em sua vi<strong>da</strong>, executa-as agora com a maior facili<strong>da</strong>de; lava roupas horas e<br />

horas a fio, e imediatamente depois canta no coro ou dá aulas às meninas”.<br />

Hidropisia. Demos também aqui a palavra à testemunha jura<strong>da</strong>: “Um tal<br />

Vicente Felber de seus 23 anos, solteiro, contraiu a moléstia hidropisia em conseqüência<br />

<strong>da</strong> qual se inflamou o peito de forma a não permitir-lhe a respiração;<br />

a moléstia não tardou a difundir-se por todo o corpo. Tão assustadoras foram as<br />

proporções toma<strong>da</strong>s pela enfermi<strong>da</strong>de, que os médicos aconselharam a imediata<br />

recepção dos últimos sacramentos; o especialista chamado na ocasião,<br />

examinou o doente e depois de um diagnóstico, que parecia exatíssimo, receitou<br />

um remédio que não produziu efeito. Apareceram umas manchas na região<br />

estomacal, que começaram logo a gangrenar. Em vista disso o especialista não<br />

<strong>da</strong>va ao doente mais de dois dias de vi<strong>da</strong>. Nessa situação desespera<strong>da</strong>, em que<br />

a medicina humana o desamparava condenando-o à morte, o enfermo lembrou-se<br />

do Pe. <strong>Clemente</strong>, pendurou ao pescoço uma relíquia do Santo e com a<br />

Irmã começou uma novena ao grande amigo dos doentes. Já depois do primeiro<br />

dia <strong>da</strong> novena, viu em sonho o Santo que o abençoava derramando um pó<br />

sobre ele; ao acor<strong>da</strong>r sentiu-se muito melhor, podendo respirar com facili<strong>da</strong>de;<br />

depois de três dias tornou a ver <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> em sonho; desta vez o Santo<br />

despejou água sobre ele; ao acor<strong>da</strong>r percebeu que a hidropisia tinha cedido, a<br />

água escorria com presteza enchendo diariamente quatro vasos, apresentando<br />

sempre cor diversa, sem que o médico soubesse <strong>da</strong>r a isso explicação. No fim<br />

<strong>da</strong> novena a hidropisia estava completamente cura<strong>da</strong>.<br />

Tumores perigosos. Adelia Hennlein, aluna do colégio <strong>da</strong> Visitação, levou<br />

uma que<strong>da</strong> no pavimento do corredor, e em conseqüência viu formar-se um<br />

tumor no joelho direito. O médico, depois de examinar a menina, verificou que a<br />

feri<strong>da</strong>, embora não fosse perigosa, requeria tempo para se fechar e teria por<br />

conseqüência a debili<strong>da</strong>de natural do joelho. Aplicaram compressas frias com<br />

arnica e certas fricções que hoje já não se conhecem. A pobre menina teve de<br />

guar<strong>da</strong>r o leito, pois que lhe não era possível <strong>da</strong>r um passo sem sentir dores<br />

agu<strong>da</strong>s. Como a pequena piorava dia a dia, a Superiora do colégio mandou-lhe<br />

fazer uma novena ao Pe. <strong>Clemente</strong>, colocou-lhe perto do leito um quadro do<br />

Servo de Deus com uma relíquia <strong>da</strong> sua batina; durante a novena a enfermi<strong>da</strong>de<br />

não cedeu e os remédios aplicados não produziram resultado algum. No<br />

último dia, porém, quando a pequena acordou de manhã, percebeu que os<br />

tumores e as dores haviam desaparecido; estava completamente cura<strong>da</strong> , sem<br />

***<br />

***<br />

111<br />

que na véspera se tivesse <strong>da</strong>do crise alguma para a melhora. O Dr. Eichhorn,<br />

quando, no dia seguinte, viu a menina an<strong>da</strong>r e correr sem empecilho, ficou<br />

admiradíssimo e reconhecendo que aquilo só se poderia <strong>da</strong>r por um milagre,<br />

exclamou: “Com certeza tornastes a invocar o Pe. <strong>Clemente</strong>”. A enferma, cujo<br />

tio era inteiramente descrente, recebeu deste uma visita poucos dias antes de<br />

se operar miraculosamente a cura; vendo ele que a menina estava cura<strong>da</strong> tão<br />

repentinamente, exclamou: “Isto é realmente um milagre e ninguém me convencerá<br />

do contrário, porque eu mesmo o vi com os meus olhos”. Desde essa<br />

ocasião a família to<strong>da</strong>, cheia de gratidão, consagrou devoção e amor ao Servo<br />

de Deus.<br />

Uma Irmã conversa do convento <strong>da</strong> Visitação lesou a mão direita numa<br />

lâmina de ferro; tomando aquilo por um ferimento insignificante não se medicou<br />

como devia; à tarde, porém, começou a sentir dores agu<strong>da</strong>s e a noite inteira<br />

passou senta<strong>da</strong> no leito sem poder conciliar o sonho, devido à veemência <strong>da</strong>s<br />

dores; na manhã seguinte formou-se na mão inflama<strong>da</strong> um tumor de mau caráter,<br />

que crescia a todo o instante, não permitindo à Irmã nenhum movimento<br />

com o braço. O médico declarou, que o mal era um extremo perigoso, e temeu<br />

uma periostite, sendo então necessária a operação, prescreveu uns ungüentos<br />

que nenhum alívio proporcionaram. Vendo que a enferma sofria horrivelmente,<br />

entre gemidos e suspiros disse-lhe uma Irmã: “Porque é que te não serves <strong>da</strong><br />

relíquia do Pe. <strong>Clemente</strong>? ele te valerá”. A enferma tomou a relíquia, mas também<br />

os ungüentos, porém, sem alívio algum até às 6 horas <strong>da</strong> tarde.<br />

Quase no desespero lançou fora os ungüentos, invocou o Servo de Deus e<br />

as dores desapareceram como por encanto. No dia seguinte não havia nem dor<br />

nem tumor, mas só uma pequena mancha vermelha que se mostrava no lugar<br />

<strong>da</strong> antiga feri<strong>da</strong>.<br />

Dores de garganta. Foi no dia de Nossa Senhora <strong>da</strong>s Candeias de 1862<br />

que se operou o seguinte milagre: A senhora Josefa Dallinger, que há oito anos<br />

sofria fortes dores de garganta, sentiu formarem-se-lhe no céu <strong>da</strong> boca tumores<br />

que se transformaram em cárie. Várias vezes foi necessário arrancar pe<strong>da</strong>ços<br />

de ossos com grande perigo de ela morrer sufoca<strong>da</strong>; o mal agravou-se<br />

tanto que a pobre senhora não pôde mais tomar alimento de quali<strong>da</strong>de alguma.<br />

A conselho do seu confessor fez uma novena a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e mandou dizer<br />

uma missa. O dia 2 de fevereiro era justamente o terceiro dia <strong>da</strong> novena; e a<br />

enferma, sem aplicar remédio algum, ficou repentinamente livre <strong>da</strong>s dores e <strong>da</strong><br />

enfermi<strong>da</strong>de, levantou-se cura<strong>da</strong>, não deixando a doença nenhum vestígio de<br />

sua passagem.<br />

Artrite. O Pe. Pilat narra, sob juramento, que na França em Boulogne sur<br />

Mer, uma Irmã <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> de <strong>São</strong> José sofria desespera<strong>da</strong>mente de artrite;<br />

depois de aplicar, em vão, todos os medicamentos conhecidos <strong>da</strong> ciência<br />

humana, recorreu ao Servo de Deus com uma novena que terminou justamente<br />

***<br />

***


no dia 15 de março, aniversário <strong>da</strong> morte do Santo; o que os meios humanos<br />

não puderam conseguir, conseguio-o a devoção e a invocação do Servo de<br />

Deus. A Irmã no fim <strong>da</strong> novena estava completamente restabeleci<strong>da</strong>, sem remédio<br />

especial.<br />

Manquejava a pobre Catarina, menina de oito anos, desde a procissão <strong>da</strong><br />

festa do Corpo de Deus. O defeito passou de um pé para o outro ficando a<br />

pequena impossibilita<strong>da</strong> de caminhar; foi-lhe forçoso guar<strong>da</strong>r o leito. As pernas<br />

inflamaram-se por cima dos joelhos e viraram-se, um pouco, para trás; o pé<br />

esquerdo, pela contração dos nervos, ficou mais curto do que o outro, e o que é<br />

ain<strong>da</strong> pior, a menina gritava de dor que fazia pena. Não consultaram nenhum<br />

médico, porque os escassos recursos, de que dispunham, não <strong>da</strong>vam para isso.<br />

Ouvindo falar de um curador por nome Bauer, os pais levaram-lhe a menina<br />

com indizíveis dificul<strong>da</strong>des. Depois de lhe <strong>da</strong>r um ungüento para esfregar e um<br />

pó para tomar, o tal curador prometeu aos pais que a menina havia de sarar,<br />

contanto que ca<strong>da</strong> dia rezassem durante a aplicação do remédio 5 Padre-Nossos<br />

a Jesus padecente. Os pais não rezaram essas orações, porque durante a<br />

fricção a menina gritava que cortava o coração. A mãe esfregou o ungüento por<br />

todo o corpo, porque todo ele estava dolorido, porém debalde. Alguns dias depois<br />

a menina estende os braços e os pés e ouve um estalo no corpo. Assusta<strong>da</strong><br />

pergunta-lhe a mãe: “Catarina que tens?” ao que a menina respondeu: “Mamãe,<br />

estou boa, não sinto dor nenhuma, quero levantar-me”. Meia hora depois<br />

apareceu o pai, e como de costume ia já perguntar pelo estado <strong>da</strong> filha, quando<br />

a mãe, fora de si de contentamento, lhe cortou a palavra contando-lhe o ocorrido.<br />

O pai exclamou: “Louvado seja Deus, foram atendi<strong>da</strong>s as minhas súplicas,<br />

há meia hora estive junto ao túmulo do Pe. <strong>Clemente</strong> pedindo pela menina”. No<br />

dia seguinte a pequena continuou a freqüentar a escola.<br />

Varizes. A costureira Ma<strong>da</strong>lena Kunz sofria varizes no pé esquerdo, havia<br />

já 26 anos. Em agosto de 1862 pela acumulação do sangue as veias rebentaram<br />

por dentro. Os médicos examinaram a paciente e verificaram o perigo de<br />

vi<strong>da</strong>. Chamaram um especialista <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de, o qual declarou incurável o<br />

mal por o sangue já se haver espalhado pelo interior do corpo, mas assim mesmo<br />

prescreveu compressas frias e repouso absoluto para os pés, porém debalde,<br />

as dores tornaram-se sempre mais agu<strong>da</strong>s. No auge <strong>da</strong> dor a enferma,<br />

desiludi<strong>da</strong> do poder humano, lembrou-se do bondoso Pe. <strong>Clemente</strong>; começou<br />

uma novena, rezando ca<strong>da</strong> dia 9 Padre Nossos e Gloria Patri, com a promessa<br />

de ir em romaria ao cemitério, onde o Servo de Deus se achava sepultado e de<br />

lhe adornar o túmulo. Já no primeiro dia <strong>da</strong> novena a costureira começou a<br />

experimentar sensíveis melhoras, e no último dia estava completamente cura<strong>da</strong>.<br />

Cumpriu sua promessa indo a pé quatro horas de caminho até Enzersdorf e<br />

voltando no mesmo dia.<br />

***<br />

***<br />

112<br />

Hemorragia. Em Roma no convento do Bom Pastor, achava-se no noviciado<br />

uma donzela por nome <strong>Maria</strong>, que havia um ano, sofria hemorragia muito<br />

forte, que a enfraquecera a ponto de não poder mais subir as esca<strong>da</strong>s do convento.<br />

A pobre noviça estava já lívi<strong>da</strong> e páli<strong>da</strong> como a cera; embora a Mestra de<br />

noviças a estimasse sobremaneira por causa <strong>da</strong>s suas muitas e grandes habili<strong>da</strong>des<br />

e profun<strong>da</strong> pie<strong>da</strong>de, declarou, que a donzela não podia continuar no<br />

noviciado, visto não haver remédio que desse esperança de estancar o mal.<br />

Como a noviça desejasse ardentemente unir-se a seu divino Esposo pelos santos<br />

votos religiosos, o confessor aconselhou-lhe uma novena a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>,<br />

<strong>da</strong>ndo-lhe uma estampa com uma relíquia do caixão do Santo. A noviça começou<br />

a novena, sendo atendi<strong>da</strong> imediatamente; em poucos dias restabeleceu-se<br />

completamente e as suas faces tornaram-se rosa<strong>da</strong>s; o que é mais admirável<br />

ain<strong>da</strong>, nunca mais recaiu na antiga enfermi<strong>da</strong>de. Desde essa ocasião consagrou<br />

a mais sincera devoção a seu insigne Benfeitor.<br />

Escrófulas. A menina <strong>Maria</strong> Assumpta Vanini sofria escrófulas, que se manifestavam<br />

de diversos modos; às vezes inflamavam-se-lhe as amíg<strong>da</strong>las, outras<br />

vezes apareciam tumores pelo corpo inteiro, sobretudo o joelho esquerdo<br />

inflamava-se muito e supurava. Aparecendo por fim a cárie, o médico assistente,<br />

Dr. Ignacio Greco, desenganou-a declarando, por escrito, que o mal era incurável.<br />

Leva<strong>da</strong> a Roma, recebeu do seu confessor uma estampa e uma relíquia<br />

do Servo de Deus, em cujo louvor começou uma novena. Em poucos dias, sem<br />

outro medicamento, a pequena sarou completamente.<br />

Antroflogose, isto é inflamação <strong>da</strong>s juntas. No Instituto <strong>da</strong>s Irmãs de<br />

Vöklabruck na Áustria, uma emprega<strong>da</strong> por nome Eva estava sendo atormenta<strong>da</strong>,<br />

desde há muito, por tumores no joelho, que os médicos diagnosticaram de<br />

antroflogose reumática crônica. O joelho contraiu-se tanto que só as pontas dos<br />

dedos podiam tocar o chão; além disso o pé inchara-se todo tornando dolorido<br />

o corpo inteiro. Essa enfermi<strong>da</strong>de é impertinente, cura-se raramente e só depois<br />

de muito tempo. Já havia sete meses que a pobrezinha gemia sem esperança<br />

alguma de cura, não obstante os esforços e a boa vontade dos médicos.<br />

Desespera<strong>da</strong>, por fim, dos socorros humanos, começou Eva uma novena ao<br />

Servo de Deus, que sempre foi o protetor dos pobres e enfermos. Já antes de<br />

terminá-la, a emprega<strong>da</strong> ficou completamente cura<strong>da</strong>, podendo sem dificul<strong>da</strong>des<br />

fazer os seus trabalhos costumados.<br />

Reumatismo. Uma senhora de 67 anos, chama<strong>da</strong> Ma<strong>da</strong>lena, sofria reumatismo<br />

agudo, havia já dois anos, no braço esquerdo, que pela violência <strong>da</strong> dor<br />

***<br />

***<br />

***<br />

***


se havia curvado, impossibilitando-a de trabalhar. Essa senhora idosa foi tão<br />

infeliz que, ao entrar um dia em casa, levou uma que<strong>da</strong> desastra<strong>da</strong> na esca<strong>da</strong>,<br />

quebrando-se o braço que ficou preso ao corpo somente pela pele e pela pouca<br />

carne que ain<strong>da</strong> restava. Chamaram o cirurgião, que em vista <strong>da</strong> avança<strong>da</strong><br />

i<strong>da</strong>de <strong>da</strong> senhora declarou impossível uma cura em regra. Tentou porém o possível,<br />

foi na<strong>da</strong> menos de trinta e duas vezes à residência <strong>da</strong> enferma sem to<strong>da</strong>via<br />

conseguir resultado algum. Como essa senhora conhecera pessoalmente o<br />

Pe. <strong>Clemente</strong> e duas vezes se reconciliara com ele na ausência do seu confessor<br />

ordinário, invocou com confiança o seu auxílio e começou em seu louvor<br />

uma novena, colocando a relíquia do seu caixão sobre o lugar dolorido. Durante<br />

a novena o braço ficou completamente curado. A fratura e o reumatismo desapareceram<br />

de uma vez para sempre, deixando no coração <strong>da</strong> anciã o mais<br />

profundo sentimento de gratidão para com seu insigne Benfeitor.<br />

Peritonite e parto difícil. A senhora <strong>Maria</strong> <strong>Hofbauer</strong> sentia sempre dores<br />

atrozes por ocasião do parto; no último recebera até os sacramentos dos moribundos.<br />

Já de há sete meses estava ela em estado interessante quando sobreveio<br />

a peritonite, que a deixou sem movimento e sem esperança de salvação. O<br />

médico, a parteira e todos os que a conheciam, contavam certo com a morte <strong>da</strong><br />

padecente. Depois de empregar todos os recursos humanos a seu alcance,<br />

desampara<strong>da</strong> pela medicina, pediu conselho a seu pai espiritual que lhe apontou<br />

o grande amigo dos doentes, cujo coração se sacrificara tantas vezes para<br />

não ver ninguém padecer; aconselhou-a fazer uma novena ao Pe. <strong>Clemente</strong>,<br />

<strong>da</strong>ndo-lhe uma relíquia do Servo de Deus. Tão grande foi a sua fé e a sua<br />

confiança ao começar a novena, que deixou de lado todos os remédios. E —<br />

coisa estupen<strong>da</strong> — o seu estado foi melhorando dia a dia, e depois de catorze<br />

dias já pôde ir trabalhar com os seus na colheita do trigo; teve, a seu tempo, um<br />

parto muito feliz, o mais feliz de to<strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> conjugal, não sendo preciso, para<br />

ele, nem sequer chamar a parteira, que habitava a casa contígua à <strong>da</strong> parturiente.<br />

Fraturou um braço. Num dos conventos <strong>da</strong>s Elisabetinas na Áustria uma<br />

donzela de 22 anos de i<strong>da</strong>de, por nome Francisca, tendo de pregar na parede<br />

um quadro um tanto pesado, caiu desastra<strong>da</strong>mente rolando pela esca<strong>da</strong> e lesando<br />

o cotovelo do braço direito. O médico julgou tratar-se apenas duma<br />

deslocação do osso, mas não, tardou a descobrir que havia fraturação do braço.<br />

Um mês depois a moça foi leva<strong>da</strong> a Viena, onde os médicos julgaram necessário<br />

proceder à operação para a extração de umas lascas de osso. Feita a operação<br />

sobreveio uma febre fortíssima apesar <strong>da</strong>s unções, fricções, compressas<br />

etc.; o braço ficou amortecido, imóvel, insensível e a chaga não se cicatrizou.<br />

Para as necessárias sensações no braço foram emprega<strong>da</strong>s on<strong>da</strong>s elétricas,<br />

porém debalde. Em vista de tudo isso os médicos deram o caso por perdido,<br />

ain<strong>da</strong> mais que na operação foram cortados os nervos. No hospital, o médico,<br />

***<br />

***<br />

113<br />

ouvindo suas lamentações e gemidos, disse-lhe com clareza: “Mesmo que eu<br />

caísse do céu, não a poderia curar, pois que tirado, uma vez, o nervo eu não o<br />

poderei repor”. Para a convencer <strong>da</strong> insensibili<strong>da</strong>de completa do médico introduziu<br />

uma agulho do dedo até o cotovelo, sem que a enferma tivesse a menor<br />

sensação de dor. Francisca teve um sonho, pareceu-lhe estar ajoelha<strong>da</strong> diante<br />

<strong>da</strong> imagem <strong>da</strong> Virgem Santíssima em atitude de súplica, e pedia que lhe restituísse<br />

a saúde, mas a Virgem parecia dizer-lhe: “Não precisas que eu te cure,<br />

porque tens um Santo que te pode valer, vai ter com o teu confessor, pede-lhe<br />

uma relíquia e faze a oração”. No dia seguinte contou o sonho a seu confessor,<br />

que lhe deu uma relíquia do Pe. <strong>Clemente</strong> e a 12 de dezembro de 1876 começou<br />

a novena depois de afixar a relíquia do Servo de Deus sobre o braço; já no<br />

quarto dia <strong>da</strong> novena sentiu entrar-lhe no braço uma vi<strong>da</strong> nova, pôde movê-lo,<br />

levantá-lo e <strong>da</strong>i a poucos dias até erguer pesos consideráveis. No cotovelo,<br />

donde extraíram as três lascas de osso, notava-se um vácuo qualquer, mas a<br />

chaga estava cura<strong>da</strong> e o braço direito tornara-se tão forte como o esquerdo.<br />

Milhares de casos semelhantes, ver<strong>da</strong>deiros milagres operados pela invocação<br />

devota de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e pelo uso <strong>da</strong>s suas relíquias, poderiam aqui<br />

ser alegados e descritos com todos os pormenores para a edificação dos leitores.<br />

Bastam, porém, os que aqui deixamos descritos para moverem os corações<br />

dos brasileiros e dos que nesta terra hospitaleira procuraram um torrão<br />

amigo, e invocaram com devoção e confiança o grande taumaturgo nas suas<br />

necessi<strong>da</strong>des corporais e espirituais, merecendo assim sua valiosa proteção.<br />

Ca<strong>da</strong> um que ler estas linhas, experimente em suas dificul<strong>da</strong>des o poder e a<br />

bon<strong>da</strong>de de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, o humilde e operoso Redentorista, e procure imitar<br />

as suas virtudes consuma<strong>da</strong>s. <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> tem valido a todos indistintamente,<br />

a moços e velhos, a ricos e pobres, a seculares e a religiosos, a casados e<br />

solteiros, a homens e mulheres; e se os favores concedidos pelo Santo têm sido<br />

mais numerosos para as mulheres do que para os homens, não se atribua isto<br />

ao pouco amor de <strong>Clemente</strong> aos homens, mas só ao fato de que, em geral, as<br />

mulheres tem mais pie<strong>da</strong>de e mais confiança no poder de Deus e <strong>da</strong> religião. O<br />

contrário poderíamos esperar do Santo que, como temos visto em sua vi<strong>da</strong>,<br />

trabalhava indefesamente de preferência para os homens, consagrava sua vi<strong>da</strong><br />

aos moços e aos meninos abandonados. O nosso desejo é ver os homens,<br />

espíritos fortes, agrupados ao redor <strong>da</strong> imagem do grande <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, que<br />

é o Santo <strong>da</strong> fé prática, o defensor <strong>da</strong> religião, que deve entusiasmar os homens<br />

todos <strong>da</strong> nossa Pátria.<br />

***


Alguns axiomas aconselhados pelo Santo<br />

1. Ao entrar ou sair de casa, ao levar algum objeto de um quarto ao outro,<br />

faça-se sempre a boa intenção, tudo depende dela; por uma boa intenção até<br />

as coisas mais insignificantes tornam-se grandes diante de Deus.<br />

2. Depois <strong>da</strong> que<strong>da</strong> original, o homem é imensamente mais feliz do que<br />

antes dela; por Jesus Cristo ele conseguiu direito sobre o próprio Deus, que lhe<br />

pertence. Por isso canta a Igreja: “Ó culpa feliz de Adão!” Os anjos do céu admiram<br />

os homens, que revestiram <strong>da</strong> sua carne o próprio Deus, e ter-lhes-iam<br />

inveja, se isso não repugnasse a sua natureza. Se Satanás tivesse podido supor<br />

que Deus salvaria o homem por um milagre tão espantoso, não teria tentado<br />

a Adão.<br />

3. Procuremos em to<strong>da</strong>s as coisas agra<strong>da</strong>r só a Deus; é bom tudo quanto<br />

fazemos por Deus.<br />

4. Para baixo rola a pedra facilmente, para cima só com trabalho se leva.<br />

5. Quem observa as coisas pequenas na vi<strong>da</strong> espiritual, em breve se torna<br />

perfeito; muitos gostariam de executar coisas maravilhosas e sensacionais, e<br />

desprezam as coisas insignificantes quem despreza as coisas pequenas não é<br />

digno <strong>da</strong>s grandes.<br />

6. Se os Santos pudessem sentir arrependimento no céu, tê-lo-iam por não<br />

haverem aproveitado mais <strong>da</strong> fonte inesgotável dos méritos de Jesus Cristo.<br />

Santa Teresa apareceu um dia a uma <strong>da</strong>s suas religiosas e afirmou-lhe que<br />

com gosto suportaria to<strong>da</strong>s as penas dos mártires até o dia do juízo final, se<br />

pudesse aumentar no céu a sua glória o quanto corresponde ao merecimento<br />

de uma Ave <strong>Maria</strong>.<br />

7. Quem julga ter caído, humilhe-se diante de Deus, peça perdão e continue<br />

tranqüilo; os nossos defeitos devem conservar-nos humildes, não pusilânimes.<br />

8. Com sua morte dolorosa Jesus nos quis remir e prestar satisfação tão<br />

copiosa, a fim de nos mostrar o excesso do seu amor, pois que nos ama com<br />

cari<strong>da</strong>de eterna. Deus não pôde fazer mais do que fez para salvar o homem, e<br />

todos os condenados deverão confessar que se perderam por própria culpa.<br />

9. Na oração devemos ser como os judeus ao construírem os muros de<br />

Jerusalém: ter a espa<strong>da</strong> em uma <strong>da</strong>s mãos e a trolha na outra.<br />

10. Para se conseguir a santi<strong>da</strong>de, o melhor meio é lançar-se, como uma<br />

pedra, no oceano <strong>da</strong> vontade divina, e como uma bola deixar-se jogar por Deus<br />

segundo a sua vontade.<br />

11. Os maus pensamentos devemos compará-los a uma folha que cai, ou a<br />

uma mulher que grita: não nos incomo<strong>da</strong>r nem deter-nos neles, caminhar sem<br />

lhes ligar importância: eis o nosso dever.<br />

12. A graça divina não pode ser força<strong>da</strong>, tudo deve ser feito com mansidão;<br />

a Mãe divina sofreu mais do que todos os mártires e entretanto permaneceu<br />

sempre tranqüila e serena.<br />

13. No momento <strong>da</strong> morte haveremos de ver o que fizemos, falamos, pensamos,<br />

e o que poderíamos ter feito, falado e pensado, se tivéssemos<br />

correspondido à graça; veremos quais os efeitos causados aos outros por nossas<br />

palavras e obras; mesmo nas nossas próprias ações boas seremos julga-<br />

114<br />

dos pela intenção com que as fizemos. “Examinarei Sião com tochas e Jerusalém<br />

com lanternas”.<br />

14. É sempre bom fazer alguma pequena mortificação, porém oportunamente<br />

e sem coação; gosto de ver alguma coisa, não me deterei nela, sinto<br />

prazer em alguma comi<strong>da</strong>, tomarei uma garrafa menos e pronto.<br />

15. A tristeza é nociva ao corpo e à alma; não presta para na<strong>da</strong>.<br />

16. Ninguém se esforce demais para ter sempre a intenção mais perfeita;<br />

faça-a de manhã do melhor modo possível; e ponha-se a trabalhar sem preocupações,<br />

como uma criança que an<strong>da</strong> sossega<strong>da</strong> o seu caminho até encontrar<br />

algum empecilho — só então é que grita por sua mãe. Deus mesmo nos <strong>da</strong>rá os<br />

meios de avançarmos na perfeição se o quiser.<br />

17. Devemos tratar com Deus como uma criança com sua mãe.<br />

18. No púlpito é preciso derrubar, com força, as nozes e no confessionário,<br />

colhê-las com vagar e calma.<br />

19. Não permaneças sem temos por causa dos pecados perdoados; os<br />

pensamentos que nos causaram a que<strong>da</strong> podem voltar facilmente; o hábito<br />

deu-lhes grande força sobre nós; se lhes dermos inteiro consentimento teremos<br />

feito no pensamento o mesmo pecado como outrora na ação.<br />

Caminhemos com prudência porque levamos um tesouro em vasos frágeis.<br />

20. Devemos imprimir-nos profun<strong>da</strong>mente a Paixão de Nosso Senhor; depois<br />

<strong>da</strong> comunhão e <strong>da</strong> missa, não pode haver para nós devoção mais útil do<br />

que essa meditação, que nos mostra o valor <strong>da</strong> alma humana, e nos convi<strong>da</strong> a<br />

santificar-nos. Façamos isto sempre com calma, como quando pensamos em<br />

um amigo ou em um prado sorridente e verde.<br />

21. Quando Satanás tentou a Jesus não sabia ser Ele o Filho de Deus; isso<br />

só ficou sabendo quando Jesus expirou na cruz; to<strong>da</strong>via reconheceu em Jesus<br />

um homem que antes nunca vira, sem pecado e imperfeições; e começou a<br />

temer que Ele fosse talvez o Messias prometido, mas em seu orgulho não pôde<br />

capacitar-se de que o humilde filho do carpinteiro, que trabalhava até cansar-se<br />

na sujeição completa a <strong>Maria</strong> e a José, pudesse ser o Filho de Deus. Satanás é<br />

mais prudente do que todos os homens, sabe e compreende tudo menos a<br />

humil<strong>da</strong>de e a obediência.<br />

22. A todo o instante celebram-se missas no universo; uma única missa<br />

seria suficiente para remir mil mundos e esvaziar o inferno, se pudesse ser<br />

ofereci<strong>da</strong> pelos condenados; até a própria morte de Jesus teria sido desnecessária,<br />

se antes dela pudesse ser oferecido esse sacrifício augustíssimo dos<br />

nossos altares; todos os que se acham na amizade de Deus tornam-se participantes<br />

de to<strong>da</strong>s as missas, e com elas, de todos os merecimentos de Jesus<br />

Cristo.<br />

23. O mundo existe por causa dos eleitos; os maus são os instrumentos de<br />

que Deus se serve para provar e purificar os bons.<br />

24. Deus não precisa de ninguém. — Louvor se dá somente às crianças e<br />

aos loucos; podem os homens louvar-nos ou censurar-nos; por isso não ficamos<br />

nem melhores nem piores diante de Deus.<br />

25. Nunca nos será lícito expor-nos ao perigo de pecar mortalmente, mesmo<br />

que com isso pudéssemos despovoar o inferno e salvar o mundo inteiro.


26. Se virmos as ruas regurgitar de povo, lembremo-nos do rumor <strong>da</strong>s ruas<br />

de Jerusalém, no momento em que Jesus foi arrastado ao palácio de Pilatos ou<br />

Herodes.<br />

27. É melhor que se fale com Deus do pecador, do que de Deus com o<br />

pecador.<br />

28. Deus não necessita <strong>da</strong> nossa adoração e do nosso serviço, mas nós<br />

precisamos de Deus.<br />

29. To<strong>da</strong>s as criaturas foram feitas por causa do homem, o homem só para<br />

Deus.<br />

115<br />

CAPÍTULO XXVIII<br />

Na memória <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

e <strong>da</strong> Igreja<br />

As reuniões dos rapazes — Os primeiros noviços — Ativi<strong>da</strong>de do Pe.<br />

Passerat — Difusão <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> — A província do Rio — A província de S.<br />

Paulo — Apareci<strong>da</strong>, Campinas, Penha, Perdões, Araraquara, Cachoeira —<br />

Quadro sinótico.<br />

A morte de <strong>Clemente</strong> causou impressão profun<strong>da</strong> em todos os que conheciam<br />

os seus trabalhos e a significação e importância <strong>da</strong> sua ativi<strong>da</strong>de para a<br />

sua terra natal, e em geral para a Santa Igreja. Sebastião Job terminava um<br />

curso de retiro espiritual às irmãs <strong>da</strong> Visitação no dia em que se realizou o<br />

sepultamento de <strong>Clemente</strong>. Na alocução final admoestou as religiosas a que<br />

pedissem ao Senhor, se dignasse man<strong>da</strong>r operários à sua vinha..., “pois que<br />

ontem — disse — o Senhor nos fez passar por uma dura provação tirando-nos<br />

o Apóstolo de Viena, a coluna <strong>da</strong> nossa diocese”.<br />

Ao receber a notícia do passamento de <strong>Clemente</strong> o Imperador exclamou:<br />

“Isto é duplamente doloroso para mim e meu povo, bem como para to<strong>da</strong> a cristan<strong>da</strong>de,<br />

porque ele era a coluna <strong>da</strong> Igreja”.<br />

Depois <strong>da</strong> morte do Mestre, os discípulos agruparam-se ao redor de<br />

Madlener, amigo e confidente de <strong>Clemente</strong>, que o estimava por seu caráter<br />

franco e resoluto, por sua pie<strong>da</strong>de esclareci<strong>da</strong>, por sua formação intelectual e<br />

por sua energia prudente. As reuniões dos moços continuavam como <strong>da</strong>ntes na<br />

casa de Madlener, e depois na residência de Darnaut, capelão imperial, que se<br />

edificou sobremaneira com o bom espírito que reinava entre aqueles jovens,<br />

formados na escola de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>.<br />

No princípio temeu-se pela <strong>Congregação</strong>, porque o decreto imperial visava<br />

um favor pessoal ao Pe. <strong>Clemente</strong>; felizmente esse temor logo desapareceu por<br />

uma declaração autêntica do Monarca que mostrava vivo interesse pela prosperi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> a que pertencera <strong>Clemente</strong>, e à qual queriam pertencer<br />

tão distintos jovens. Com permissão imperial 32 apresentaram seus nomes<br />

para o começo do noviciado: 9 coadjutores, 15 teólogos, quase todos formados<br />

em jurisprudência, medicina etc., 1 estu<strong>da</strong>nte de filosofia, 3 funcionários<br />

públicos, 1 oficial e 3 operários.<br />

No sábado de Pentecostes, que esse ano caiu a 19 de maio, devia começar<br />

o noviciado; como a residência ofereci<strong>da</strong> pelo Imperador ain<strong>da</strong> não se achava<br />

ultima<strong>da</strong>, os Padres Franciscanos cederam parte do seu convento para se<br />

instalar provisoriamente a nascente comuni<strong>da</strong>de redentorista. Os primeiros 6


noviços entraram como candi<strong>da</strong>tos; dias depois o Pe. Martinho, devi<strong>da</strong>mente<br />

autorizado pelo Superior Geral, deu o hábito provisório aos noviços, pois que o<br />

noviciado começou propriamente a 2 de agosto, que é o dia do Santo Fun<strong>da</strong>dor.<br />

O Pe. Martinho escreveu ao Pe. Passerat que se achava ain<strong>da</strong> na Suíça: “... Os<br />

nossos noviços são humildes, obedientes e piedosos, mostram muito amor e<br />

afeição à <strong>Congregação</strong>, de modo a servirem de modelo a qualquer Redentorista<br />

mais velho; Deus recompense ao nosso querido Pai todos os seus trabalhos e<br />

esforços pela <strong>Congregação</strong>; a ele devemos esta obra; mesmo que ele estivesse<br />

agora vivo, a coisa não poderia ir melhor... V. Revma. com certeza se alegrará<br />

em ver esses seus bons filhinhos”.<br />

Entretanto o Superior Geral nomeara o Pe. Passerat para suceder a <strong>São</strong><br />

<strong>Clemente</strong> no cargo de Vigário Geral <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> transalpina. Felizmente<br />

essa nomeação não encontrou nenhum obstáculo por parte do Governo. Só em<br />

dezembro é que puderam entrar em sua residência própria. Eram então 15<br />

noviços sob a direção do Pe. Passerat, que passaram a Nossa Senhora <strong>da</strong><br />

Esca<strong>da</strong>.<br />

Bem depressa desenvolveu-se a comuni<strong>da</strong>de de Viena, pois que os<br />

Redentoristas, até então desconhecidos do povo, caíram na simpatia geral. Um<br />

ano depois a casa nova já contava 40 religiosos. Sete anos mais tarde Viena<br />

mandou seus padres para Lisboa, Mautern, Innsbruck, Alsacia e Suíça. Como<br />

as leis austríacas muito embaraçavam a <strong>Congregação</strong> impedindo a comunicação<br />

com Roma, o Pe. Passerat, que sentia a premente necessi<strong>da</strong>de de entrar<br />

em contato com a <strong>Congregação</strong>-mãe, mandou a Nápoles o Pe. Springer, para<br />

que estu<strong>da</strong>sse, nas diversas residências redentoristas, o espírito e os usos <strong>da</strong><br />

<strong>Congregação</strong>. Para o Capítulo Geral de 1832 em Nápoles já foi possível ao Pe.<br />

Passerat man<strong>da</strong>r seis padres transalpinos.<br />

A <strong>Congregação</strong> desenvolveu-se rapi<strong>da</strong>mente, abençoa<strong>da</strong> por seu segundo<br />

fun<strong>da</strong>dor, <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> <strong>Maria</strong>, que do alto do céu olhava para a sua obra predileta,<br />

a obra principal <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong>. O Pe. Passerat governou a parte transalpina<br />

<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> quase trinta anos, viu realiza<strong>da</strong> a profecia de <strong>Clemente</strong>, de<br />

que a <strong>Congregação</strong> se espalharia pelo mundo. Nos primeiros anos de seu governo<br />

o Pe. Passerat introduziu a <strong>Congregação</strong> na Bélgica, Holan<strong>da</strong>, América<br />

do Norte, Baviera, Inglaterra e França.<br />

Em 1848 Passerat depôs o seu pesado cargo; pouco depois foi abolido o<br />

vigariado geral transalpino, sendo a <strong>Congregação</strong> dividi<strong>da</strong> em Províncias, governa<strong>da</strong>s<br />

por superiores provinciais, que dependem direta e imediatamente ao<br />

Reitor-mor, que desde 1855 fixou sua residência em Roma.<br />

Em poucos anos a <strong>Congregação</strong> estendeu os ramos vigorosos ain<strong>da</strong> mais<br />

longe, para a Irlan<strong>da</strong>, Escócia, Espanha, Austrália. Ultimamente fun<strong>da</strong>ram-se<br />

casas na Dinamarca, Índia Ocidental, México, Congo Belga, África Meridional e<br />

Filipinas. No último ano <strong>da</strong> guerra mundial fundou-se no Canadá uma segun<strong>da</strong><br />

Província, e nas Antilhas uma segun<strong>da</strong> Vice-Província. Em 1918 — justamente<br />

110 anos depois <strong>da</strong> expulsão — entraram os Redentoristas outra vez em Varsóvia.<br />

Há atualmente na <strong>Congregação</strong> Redentorista 21 Províncias e 15 Vice-Províncias<br />

com 310 residências e mais de 5.000 religiosos.<br />

Com exceção <strong>da</strong>s casas que pertencem às Províncias romana, napolitana<br />

e siciliana, to<strong>da</strong>s devem a sua origem ao apostolado de S. <strong>Clemente</strong>. <strong>São</strong> to<strong>da</strong>s<br />

116<br />

filhas <strong>da</strong> casa-mãe de Viena, autoriza<strong>da</strong> em 1820.<br />

As províncias <strong>da</strong> Itália tem sido incansáveis em a pregação de numerosas<br />

missões, de abençoados retiros frutificados pelas virtudes acrisola<strong>da</strong>s dos missionários<br />

e dos demais sacerdotes que, dentro dos claustros, vivem na prática<br />

<strong>da</strong>s mais heróicas virtudes, observando, com religioso escrúpulo os menores<br />

pontos <strong>da</strong> santa Regra, como desejava o grande Fun<strong>da</strong>dor Santo Afonso. Mas<br />

essas Províncias não saíram <strong>da</strong> Itália nem propagaram, fora dela, a <strong>Congregação</strong>.<br />

Somente uma tentativa foi feita pelos padres italianos em 1853, a de abrir<br />

na América do Sul uma residência, que pouco durou, porque dos três padres<br />

que vieram, um faleceu afogado num rio, dois meses depois, outro foi consumido<br />

por uma febre perniciosa e o terceiro foi expulso a viva força. — Os<br />

Redentoristas <strong>da</strong> Itália têm desenvolvido a <strong>Congregação</strong> na sua Pátria, mas<br />

não fora dela.<br />

A <strong>Congregação</strong> transalpina, porém, bebeu o temperamento de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

e herdou dele o desejo ardente de espalhar, o mais possível, os seus<br />

conventos e de penetrar em todos os países. Humanamente falando, se não<br />

fôra a Providência que mandou <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> a Roma fazendo-o entrar, como<br />

que por milagre, na <strong>Congregação</strong>, os Redentoristas talvez existissem apenas<br />

na Itália e não abarcassem o mundo como o vemos agora. Para que o leitor<br />

possa fazer uma idéia <strong>da</strong> expansibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> transalpina, e admirar<br />

a grande obra do Santo, cuja vi<strong>da</strong> vimos descrevendo, pomos aqui um quadro<br />

do desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> transalpina, segundo o último catálogo<br />

de 1927.<br />

A Província Austríaca, <strong>da</strong> qual to<strong>da</strong>s as outras saíram: depois <strong>da</strong>s muitas<br />

divisões possui ain<strong>da</strong> 12 casas com numerosos missionários.<br />

A Província Belga possui 31 casas: 12 na Bélgica, 3 nas Antilhas, 10 no<br />

Congo, 2 no Canadá-rutheno, e 4 na Galícia polaca.<br />

A Província de Baltimore — na América do Norte — uma <strong>da</strong>s maiores <strong>da</strong><br />

<strong>Congregação</strong>, possui 29 casas sendo: 23 nos Estados Unidos e 6 nas Antilhas.<br />

A Província de Lion possui 22 casas: 15 na França, 5 no Chile e 2 no Peru.<br />

A Província Bávara possui 15 asas: 9 na Baviera, 6 no Brasil.<br />

A Província Holandesa possui 15 casas: 8 na Holan<strong>da</strong>, 2 no Suriname —<br />

Guiana Holandesa — e 6 no Brasil.<br />

A Província Rhenana possui 20 casas: 15 na Prússia e 5 na Argentina.<br />

A Província Inglesa possui 9 casas e não tem Vice-Província.<br />

A Província de <strong>São</strong> Luiz — na América do Norte — 22 casas: 16 nos Estados<br />

Unidos e 6 na Oaklandia.<br />

A Província Irlandesa possui 7 casas: 5 na Irlan<strong>da</strong> e 2 nas Filipinas.<br />

A Província Parisiense possui 21 casas: 14 na França e 7 na Colômbia.<br />

A Província Espanhola possui 25 casas: 14 na Espanha, 9 no México e 2<br />

na Venezuela.<br />

A Província de Praga possui 16 casas — não tem Vice-Província.<br />

A Província Polaca possui 6 casas — não tem Vice-Província.<br />

A Província Alsaciana possui 11 casas: 9 na Alsacia-Lorena e 2 na Bolívia.<br />

***


A Província do Canadá possui 8 casas com uma Vice-Província em Annam.<br />

A Província de Toronto possui 11 casas sem Vice-Província.<br />

A Vice-Província autônoma de Zwittau possui 4 casas.<br />

A Província <strong>da</strong> Austrália, há pouco tempo separa<strong>da</strong> <strong>da</strong> Província Irlandesa,<br />

possui 7 casa.<br />

Quando em 1904 a “Vi<strong>da</strong> de S. <strong>Clemente</strong>”, escrita pelo Pe. Saint-Omer, foi<br />

traduzi<strong>da</strong> em português, a <strong>Congregação</strong> contava com 14 Províncias com 160<br />

casas e 3.000 membros. — Vinte anos depois subiu o número a 21 Províncias,<br />

310 casas e cerca de 5.300 religiosos.<br />

Há poucos meses realizou-se também um dos mais ardentes votos de Sto.<br />

Afonso e de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>: a Província Canadense atravessou os mares e fundou<br />

uma nova Vice-Província em Annam, com esperanças de penetrar ain<strong>da</strong><br />

mais longe no interior <strong>da</strong> Ásia.<br />

No Brasil<br />

Até fins do século passado o Brasil permanecia fechado à <strong>Congregação</strong><br />

Redentorista, enquanto que as outras repúblicas sul-americanas já de há muito<br />

sentiam o fogo do zelo apostólico dos filhos de Sto. Afonso.<br />

A primeira Província que se moveu, além dos Alpes, para a América do Sul<br />

foi a holandesa que em 1866 se dirigiu a Guiana Holandesa e fundou residências<br />

no Suriname. Catorze anos mais tarde, dez deno<strong>da</strong>dos Redentoristas franceses<br />

penetraram o Pacífico e instalaram-se em Cuenca e Riobamba, e poucos<br />

anos depois <strong>da</strong> morte do inesquecível Garcia Moreno, procuraram um seguro e<br />

garantido abrigo nas hospitaleiras terras do Chile.<br />

Em 1883 os padres <strong>da</strong> Província Rhenana entraram em Buenos Aires e no<br />

ano seguinte, a Província de Paris enviou os seus missionários para a Colômbia,<br />

levando-lhe as bênçãos <strong>da</strong> Redenção.<br />

O Brasil, a maior <strong>da</strong>s repúblicas sul-americanas, consagrado desde o seu<br />

descobrimento ao mistério sublime <strong>da</strong> cruz, ain<strong>da</strong> estava por receber os filhos<br />

do Redentor, os Redentoristas. É certo que já em 1844 e outra vez em 1857 o<br />

exmo. sr. D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de <strong>Maria</strong>na, se dirigiu por cartas ao<br />

Superior Geral dos Redentoristas, pedindo missionários para a sua vasta diocese;<br />

não pôde porém ser atendido pela falta absoluta de pessoal. Quem primeiro<br />

conseguiu missionários para o Brasil foi o exmo. D. Silvério Gomes Pimenta,<br />

saudoso bispo e mais tarde Arcebispo de <strong>Maria</strong>na. Cinco sacerdotes e três<br />

irmãos leigos <strong>da</strong> Província Holandesa fun<strong>da</strong>ram aos 26 de abril de 1894 a primeira<br />

casa redentorista em Juiz de Fora. Seis anos mais tarde dirigiram suas<br />

vistas para a Capital do Estado edificando o belo convento de Belo Horizonte.<br />

Em 1903, reforçados por um forte contingente que lhes veio <strong>da</strong> Província-mãe,<br />

abriram mais uma residência no Rio de Janeiro, onde levantaram magnífico<br />

templo a Santo Afonso, que se tornou um centro de grandioso movimento religioso<br />

e uma <strong>da</strong>s igrejas preferi<strong>da</strong>s <strong>da</strong> elite carioca: é essa igreja a mãe <strong>da</strong>s numerosas<br />

Ligas Católicas espalha<strong>da</strong>s nos diversos Estados <strong>da</strong> União. Com o sempre<br />

crescente desenvolvimento <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>, foi-lhes possível uma fun<strong>da</strong>ção<br />

na distante ci<strong>da</strong>de de Curvelo, onde se levantou um belo Santuário ao grande<br />

Taumaturgo <strong>São</strong> Geraldo. Há pouco tempo os padres <strong>da</strong> Província do Rio,<br />

117<br />

desejosos de aumentar suas fileiras com sacerdotes nacionais, abriram uma<br />

casa em Congonhas do Campo, onde se acha a escola apostólica; recentemente<br />

fun<strong>da</strong>ram a casa de Campos, no Estado do Rio.<br />

No mesmo ano em que os Padres <strong>da</strong> Província Holandesa chegaram ao<br />

Brasil, dois distintíssimos representantes do episcopado brasileiro fizeram em<br />

Roma a vista ad limina.<br />

Como eram bispos segundo o coração de Deus e queriam sinceramente o<br />

bem espiritual <strong>da</strong>s suas ovelhas, insistiram com o Superior Geral dos<br />

Redentoristas, para que se dignasse enviar alguns dos seus súditos para as<br />

suas respectivas dioceses na Terra de Santa Cruz. Eram eles: D. Joaquim<br />

Arcoverde, então bispo-coadjutor de S. Paulo, e D. Eduardo Duarte Silva, bispo<br />

de Goiás. A Província Bávara gemia sob o peso <strong>da</strong> perseguição do Kulturkampf 10 ;<br />

comendo de há muito o pão do exílio e sem esperança de voltar tão cedo para<br />

a cara Pátria. O Superior Geral dirigiu-se ao Provincial, expondo-lhe o pedido<br />

dos srs. bispos, mostrando a necessi<strong>da</strong>de e a conveniência de atendê-los e<br />

aconselhando-os a man<strong>da</strong>r alguns dos seus padres, os mais intrépidos e animados,<br />

para que, transpondo o Oceano, fossem quebrar o pão <strong>da</strong> palavra divina<br />

aos filhos <strong>da</strong> Santa Cruz e propagar a <strong>Congregação</strong> nessa terra rica e futurosa.<br />

Os missionários bávaros receberam a insinuação do Superior Geral como uma<br />

ordem vin<strong>da</strong> do céu; resolutos despendem-se <strong>da</strong> Europa, para sempre, e confiados<br />

na Providência e na proteção de Santo Afonso e <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, aprontam<br />

sua modesta bagagem, e em companhia do Sr. D. Eduardo, partem para o Novo<br />

Mundo. Eram seis padres e sete irmãos, destinados às duas futuras asas de<br />

Campinas de Goiás e de Apareci<strong>da</strong> do Norte no Estado de <strong>São</strong> Paulo. Depois<br />

de visitarem o Santuário de Nossa Senhora de Lourdes, cuja bênção imploraram<br />

para o futuro apostolado, embarcaram-se em Bordeaux a 5 de outubro de<br />

1894.<br />

Embora repletos de otimismo, o coração, o coração trepi<strong>da</strong>va-lhes dentro<br />

do peito na longa e arrisca<strong>da</strong> travessia de mares, nunca <strong>da</strong>ntes navegados por<br />

eles. A 29 do mesmo mês de outubro formaram em Apareci<strong>da</strong> a pequena comuni<strong>da</strong>de,<br />

destina<strong>da</strong> a tornar-se grande, bem grande pelo número de confrades<br />

e pelo apostolado que deveriam exercer sobre não pequena parte do Brasil. A<br />

pedido do Exmo. Sr. Bispo de S. Paulo e com a devi<strong>da</strong> permissão do Superior<br />

Geral os padres aceitaram a direção espiritual <strong>da</strong> paróquia e do Santuário de<br />

Nossa Senhora Apareci<strong>da</strong>, tratando desde logo de <strong>da</strong>r ao serviço espiritual o<br />

desenvolvimento que exigia um Santuário tão importante. O número dos padres<br />

na comuni<strong>da</strong>de de Apareci<strong>da</strong> foi crescendo de ano para ano, atingindo ultimamente<br />

o número de quinze sacerdotes que mourejam no Santuário e no colégio<br />

de Sto. Afonso. De Apareci<strong>da</strong> pode-se dizer, que se tornou, mais ou menos um<br />

segundo <strong>São</strong> Beno: o trabalho apostólico na Apareci<strong>da</strong> é uma missão continua<strong>da</strong>,<br />

que começa de manhã e termina à noite sem conhecer interrupção; em<br />

breve tornou-se Apareci<strong>da</strong> o Santuário mais querido e célebre em todo o Brasil<br />

não só porque lá se encontra a Virgem, Mãe dos brasileiros, mas também porque<br />

lá se acham sempre à disposição dos romeiros sacerdotes que se dedicam,<br />

com carinho, ao cui<strong>da</strong>do <strong>da</strong>s almas, mostrando a todos o caminho do céu.<br />

É voz geral na boca de todos, que Apareci<strong>da</strong> se tornou uma paróquia modelo: o<br />

Apostolado, a Pia União <strong>da</strong>s donzelas, a União dos Moços Católicos, a Liga


Católica, a Irman<strong>da</strong>de do Rosário e <strong>Congregação</strong> <strong>da</strong> Doutrina Cristã fazem<br />

<strong>da</strong>quele abençoado recanto do Brasil um ver<strong>da</strong>deiro mimo de pie<strong>da</strong>de sóli<strong>da</strong> e<br />

esclareci<strong>da</strong>. Já mais de uma vez os protestantes têm tentado lá introduzir-se<br />

com o fim de arrancar ao povo o amor à sua Mãe Santíssima, mas em vão; o<br />

povo católico até a medula dos ossos não permitiu nem há de permitir em seu<br />

meio a seita que ofende e desrespeita a Mãe dos brasileiros. Com soleni<strong>da</strong>de<br />

superior a qualquer descrição, na presença do Núncio Apostólico, de todos os<br />

bispos do Sul do Brasil, dos representantes do Episcopado do Norte, de inúmeros<br />

dignatários eclesiásticos: monsenhores, cônegos catedráticos, superiores<br />

de dez congregações religiosas, com assistência de sacerdotes de todos os<br />

cantos do Brasil e de umas vinte mil pessoas, a 8 de setembro de 1904 a imagem<br />

<strong>da</strong> Virgem foi coroa<strong>da</strong> em nome do Santo Padre, e à Virgem foi consagrado<br />

o povo do Brasil.<br />

Pouco mais tarde, devido ao desenvolvimento sempre crescente o Santuário<br />

foi elevado à categoria de Basílica menor, a primeira <strong>da</strong> Terra <strong>da</strong> Santa Cruz.<br />

Lugar de destaque em todos esses empreendimentos teve o vulto venerando<br />

do Pe. Gebardo Wiggermann, a quem foi confia<strong>da</strong> a dificultosa empresa que ele<br />

soube dirigir com mão de mestre, <strong>da</strong>ndo-lhe firme orientação durante os nove<br />

anos que a governou.<br />

Logo nos primeiros anos reconheceram os Redentoristas a necessi<strong>da</strong>de<br />

<strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção de uma escola apostólica para a formação intelectual e moral de<br />

meninos inclinados à vi<strong>da</strong> sacerdotal e dedicados à obra <strong>da</strong>s Missões na <strong>Congregação</strong><br />

Redentorista, garantindo assim o futuro do Instituto, que haveria de<br />

criar profun<strong>da</strong>s raízes no solo novo e exuberante <strong>da</strong> Terra <strong>da</strong> Cruz. A 3 de<br />

outubro de 1898 entraram os primeiros alunos, que foram entregues à direção<br />

do santo e sábio Pe. Valentim Riedl, êmulo do grande <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, por sua fé<br />

profun<strong>da</strong>, humil<strong>da</strong>de exemplar e amor à <strong>Congregação</strong>. As dificul<strong>da</strong>des do começo<br />

não eram pequenas: foi necessário sacrificar alguns sacerdotes que se<br />

prenderam ao magistério, despender quantias que não existiam em caixa, lutar<br />

com os embaraços de uma língua estranha; felizmente tudo foi superado pela<br />

vontade de ferro dos fun<strong>da</strong>dores <strong>da</strong> escola apostólica. Conheciam perfeitamente<br />

que <strong>da</strong> solução dessa questão magna dependeria o futuro <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

no Brasil e em parte a grandeza e o desenvolvimento <strong>da</strong> religião em nossa<br />

Pátria. — Oxalá tivessem dela a mesma compreensão tantos católicos que existem<br />

no Brasil! nesses sentimentos nobres muitos pais e mães de família, sentirse-iam<br />

ufanos em <strong>da</strong>r a Deus um ou mais de seus filhos que mostrassem vocação<br />

religiosa! educá-los-iam para isso afastando-o o mais possível <strong>da</strong> corrupção<br />

do mundo e não regateariam o óbulo <strong>da</strong> cari<strong>da</strong>de tão necessário para a formação<br />

desses futuros trabalhadores pela causa santa <strong>da</strong> Igreja em nossa Pátria!<br />

Hoje vinte e três brasileiros, formados lá na escola apostólica, já se consagraram<br />

a Deus pelos santos votos religiosos e vinte sacerdotes trabalham com<br />

denodo nas missões e em todos os ramos <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de apostólica. Como, porém,<br />

o Colégio Sto. Afonso em Apareci<strong>da</strong> já não comportasse maior número de<br />

alunos, o governo <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> aceitou a generosa dádiva de uma chácara<br />

de dedicados amigos em Pin<strong>da</strong>monhangaba, para nela instalar a nova Escola<br />

Apostólica (Juvenato) de N. Sra. do Perpétuo Socorro.<br />

A exemplo de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> começaram os padres de Apareci<strong>da</strong>, em mui-<br />

118<br />

to boa hora a exercer o apostolado <strong>da</strong> imprensa: é o meio mais profícuo para a<br />

conversão nos tempos modernos, porque o jornal e o livro penetram em todos<br />

os lares, falam a to<strong>da</strong>s as classes de pessoas, corrigem as faltas com brandura<br />

e instruem com perseverança. As massas ávi<strong>da</strong>s de leitura, pela imprensa aprendem<br />

aquilo que não podem ou não querem ouvir nos templos. Por esses motivos<br />

fundou-se na Apareci<strong>da</strong> o jornal semanário “Santuário de Apareci<strong>da</strong>” que<br />

instrui nos artigos de fundo, agra<strong>da</strong> na parte noticiosa e edifica na enumeração<br />

<strong>da</strong>s graças concedi<strong>da</strong>s pela Virgem Apareci<strong>da</strong>. — Diversos livros de pie<strong>da</strong>de e<br />

obras ascéticas têm sido publica<strong>da</strong>s e difundi<strong>da</strong>s pelos padres Redentoristas.<br />

Quem é que não conhece o “Manual de N. Sra. Apareci<strong>da</strong>” que já apareceu na<br />

duodécima edição com cerca de 150.000 exemplares? As “Meditações de Sto.<br />

Afonso” — A Oração — As mais belas orações de Sto. Afonso — As visitas ao<br />

Ss. Sacramento e a Nossa Senhora — as diversas publicações de biografias de<br />

<strong>São</strong> Geraldo — a Esposa de Cristo — o Sagrado Coração — a Biografia do Sto.<br />

Afonso — o Almanaque de N. Sra. Apareci<strong>da</strong> — os milhões de exemplares <strong>da</strong>s<br />

Orações cotidianas etc. etc? Além disso diversas outras obras estão sendo prepara<strong>da</strong>s<br />

para a instrução e edificação como meio de apostolado.<br />

Campinas. Dos primeiros padres bávaros vindos em companhia do Exmo.<br />

Sr. D. Eduardo, quatro foram destacados para o distante Estado de Goiás: eram<br />

heróis, desbravadores do sertão e abnegados pioneiros do bem no longínquo<br />

Estado. Em Uberaba, onde terminava a estra<strong>da</strong> de ferro, pela primeira vez montaram<br />

a cavalo experimentando as doçuras dos socos dos animais, <strong>da</strong>s que<strong>da</strong>s<br />

repeti<strong>da</strong>s, e <strong>da</strong>quilo que costuma maltratar os que cavalgam muito tempo sem<br />

estarem a isso habituados. Em doze dias venceram a distância de 480 km que<br />

vão de Uberaba a Campinas. A 12 de dezembro, debaixo de uma chuva torrencial,<br />

fizeram os padres sua entra<strong>da</strong> em Campinas, lugar aprazível pela topografia,<br />

porém paupérrimo em prédios e meios de vi<strong>da</strong>. A primeira mora<strong>da</strong> dos filhos<br />

de Santo Afonso não era em na<strong>da</strong> superior à de Varsóvia quando lá chegou o<br />

Pe. <strong>Clemente</strong> acompanhado de seu digno confrade o Pe. Thadeu Hübl: um casebre<br />

velho com paredes de pau a pique, já ameaçando ruínas, sem outra mobília<br />

além de três catres toscos e um banco de carpinteiro. No ano seguinte já foi<br />

possível construir um prédio novo, modesto, mas apropriado e decente no meio<br />

de um vasto campo. No princípio não eram poucas nem pequenas as provações,<br />

porque a comuni<strong>da</strong>de de Campinas teve de passar pela falta do necessário,<br />

que não se encontrava no arraial e que não se podia man<strong>da</strong>r vir de fora pela<br />

escassez dos meios de condução e transporte; em compensação gozaram os<br />

padres o clima salubérrimo, que lhes conservou a saúde e a disposição para o<br />

trabalho.<br />

As paróquias de Goiás, em sua grande maioria, estavam vagas quando os<br />

padres lá chegaram; a falta de clero era lastimável. O bispo não hesitou em<br />

confiá-las aos cui<strong>da</strong>dos dos Redentoristas. Era um trabalho insano, pois que as<br />

paróquias goianas são, em geral, pouco povoa<strong>da</strong>s, mas ocupam áreas enormes,<br />

algumas até 10.000 km 2 . Essas almas tão dóceis e de boa vontade achavam-se<br />

então quase completamente abandona<strong>da</strong>s de socorro espiritual; eram<br />

por conseguinte as que Santo Afonso tinha em vista quando fundou a <strong>Congregação</strong>,<br />

é esse o campo de trabalho genuinamente afonsiano. Na paróquia de<br />

Campinas estabeleceu-se a missa cotidiana, a pregação aos domingos, a aula


de catecismo às crianças etc. As Associações religiosas: a Confraria de N. Sra.<br />

do Perpétuo Socorro e de S. Afonso, o Apostolado, as Conferências de S. Vicente,<br />

a Liga Católica introduziram, aos poucos, intensa vi<strong>da</strong> de pie<strong>da</strong>de. Os exercícios<br />

religiosos estenderam-se também às capelas filiais; em poucos anos a nova<br />

Matriz de Campinas tornou-se uma <strong>da</strong>s mais belas do Estado inteiro; o convento<br />

por causa dos muitos cômodos de que dispõe e <strong>da</strong> colocação favorável, em<br />

que se acha no centro <strong>da</strong> diocese, foi escolhido para casa de retiro do clero. As<br />

Missões começaram a fazer-se regularmente todos os anos, de acordo com as<br />

determinações do bispo diocesano, que sempre se mostrou amigo dos<br />

Redentoristas. Os enfermos, não só <strong>da</strong> paróquia, mas até de bem longe — vinte<br />

ou mais léguas, man<strong>da</strong>m chamar — para a sua última hora — os padres de<br />

Campinas, nos quais depositam inteira confiança. Pelas continua<strong>da</strong>s missões<br />

em to<strong>da</strong> a vasta diocese de Goiás, numa extensão de 747.311 km 2 , são conhecidos,<br />

estimados e quase adorados os padres Redentoristas, que não olhando<br />

para as dificul<strong>da</strong>des nem número <strong>da</strong>s intérminas viagens percorrem o Estado<br />

em to<strong>da</strong>s as direções difundindo em to<strong>da</strong> a parte a semente <strong>da</strong> palavra divina,<br />

corrigindo os costumes, onde necessário, legalizando as uniões matrimoniais,<br />

fazendo os batizados, instruindo, confortando e chamando todos para Deus.<br />

Dentro dos limites <strong>da</strong> paróquia de Campinas, acha-se o Santuário mais<br />

célebre do Estado de Goiás, chamado pelo povo: “Divino Padre Eterno <strong>da</strong> Ss.<br />

Trin<strong>da</strong>de”. Para a festa que se celebra anualmente no primeiro domingo de julho<br />

acodem os romeiros de oitenta ou mais léguas em número, às vezes, superior a<br />

20.000, a maior parte a cavalo, em carros de bois ou a pé. Não havendo casas<br />

para hospe<strong>da</strong>r tanta gente formam-se no patrimônio arruamentos compridos<br />

de to<strong>da</strong>s e de ranchos cobertos de folhagem, outros acomo<strong>da</strong>m-se com to<strong>da</strong> a<br />

família dentro e debaixo dos carros de bois. Durante os últimos dias <strong>da</strong> novena,<br />

no dia <strong>da</strong> festa e alguns dias depois a igreja regurgita de povo desde a manhã<br />

até alta noite; entram no templo em grupos para cumprir suas promessas cantando,<br />

ca<strong>da</strong> um a seu modo, a la<strong>da</strong>inha de Nossa Senhora e outros hinos. Nessas<br />

ocasiões o confessionário fica assediado de romeiros que aproveitam a<br />

ocasião para se reconciliar com Deus. Esse movimento religioso, porém, não<br />

<strong>da</strong>ta desde o princípio <strong>da</strong> romaria; foi necessário pregar muito no Santuário e<br />

fora dele, missionar as ci<strong>da</strong>des e as roças, difundir objetos de devoção em<br />

grande quanti<strong>da</strong>de, introduzir a irman<strong>da</strong>de de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro<br />

e de Sto. Afonso etc. etc.<br />

Fora <strong>da</strong> paróquia os trabalhos são hercúleos não tanto pelo dispêndio de<br />

força intelectual, como pelo consumo de forças físicas. Durante três anos as<br />

paróquias vizinhas, numa distância de 240 km foram anexa<strong>da</strong>s à de Campinas.<br />

To<strong>da</strong>via, por causa dos trabalhos paroquiais não foram descura<strong>da</strong>s as missões,<br />

trabalho principal dos Redentoristas; e elas são penosíssimas naquelas paragens<br />

por deverem os padres fazer a viagem a cavalo, acompanhados de um<br />

camara<strong>da</strong> e de um animal de carga, que leva os objetos mais indispensáveis,<br />

além dos parâmetros de missa. Geralmente saem por ano duas turmas de missionários;<br />

uma logo depois <strong>da</strong> semana santa e a outra depois <strong>da</strong> grande festa<br />

em julho até o mês de novembro mais ou menos, porque <strong>da</strong>i em diante é impossível<br />

a pregação de missões devido às grandes enchentes dos rios que se<br />

tornam inatravessáveis pela falta de pontes.<br />

119<br />

Nessas excursões apostólicas, repletas de perigos de to<strong>da</strong> a sorte, faz-se<br />

um bem espiritual imenso ao povo disperso pelos caminhos, por onde passam<br />

os missionários; no fim de uma penosa viagem de muitas horas, debaixo de um<br />

sol abrasador, alcança-se, geralmente, um pouso previamente avisado <strong>da</strong> chega<strong>da</strong><br />

dos missionários. A notícia corre logo, e as pessoas dos arredores, os<br />

agregados começam a chegar para a reza. Ao anoitecer há a recitação canta<strong>da</strong><br />

do terço, pregação, audição <strong>da</strong>s confissões, o que se prolonga, às vezes, até<br />

alta noite; na manhã seguinte em um altar improvisado celebram a santa missa,<br />

dão a comunhão, fazem os batizados, casamentos etc. e continuam a viagem<br />

até chegarem ao lugar, onde devem pregar a missão propriamente dita. — No<br />

meio de to<strong>da</strong>s essas fadigas, desconheci<strong>da</strong>s dos homens, sente-se a bênção<br />

divina: O missionário exulta de contentamento vendo o respeito e a veneração<br />

que o povo espontaneamente lhe tributa; em to<strong>da</strong> a parte recebe acolhimento e<br />

agasalho, opera as mais consoladoras conversões e tem o prazer de ver todos<br />

contentes, repletos de gratidão para como ministro de Deus.<br />

Desde 1909 um dos padres tem acompanhado, anualmente, durante cinco<br />

ou seis meses o bispo diocesano em visita pastoral partilhando com ele as<br />

mesmas fadigas e privações, e pregando de manhã e à noite, <strong>da</strong>ndo aula de<br />

catecismo, confessando e aju<strong>da</strong>ndo em todos os trabalhos <strong>da</strong> visita pastoral;<br />

são dias cheios e exaustivos.<br />

Não obstante tudo isso, a missão goiana é uma <strong>da</strong>s mais queri<strong>da</strong>s dos<br />

Redentoristas, que lá se consideram em seu campo de trabalho longe dos elogios<br />

humanos e dos louros <strong>da</strong> história, porém, mais perto de Deus e do céu.<br />

Penha. Dez anos depois de labutar em Apareci<strong>da</strong> e Campinas, foi possível<br />

aos padres aceitar mais uma fun<strong>da</strong>ção gentilmente ofereci<strong>da</strong> por D. José de<br />

Camargo Barros. Aos 15 de março de 1905 dois padres e um irmão leigo abriam,<br />

a título de experiência, a casa <strong>da</strong> Penha em um dos mais aprazíveis arrabaldes<br />

<strong>da</strong> Paulicéia. A igreja <strong>da</strong> Penha sempre foi o santuário mais conhecido<br />

<strong>da</strong> Capital e o preferido do povo paulistano, que aos domingos e dias santos<br />

para lá se dirige em grande número. Essas excursões, porém, não passavam<br />

antigamente de passeios mais ou menos agradáveis, muitas vezes sem motivos<br />

religiosos. Pelo ensino constante do catecismo, pelas pregações, instituição<br />

de diversas associações religiosas: Apostolado, Pia União, União dos M. Católicos,<br />

Corte de S. José, Damas de Cari<strong>da</strong>de, Conferências Vicentinas, Liga Católica,<br />

Cruza<strong>da</strong> Eucarística, Liga do Menino Jesus etc. pouco a pouco derreteuse<br />

o gelo do indiferentismo; de ano em ano aumenta-se o número <strong>da</strong>s comunhões,<br />

crescendo também proporcionalmente o número de padres. A casa <strong>da</strong><br />

Penha é procura<strong>da</strong> por sacerdotes e pelos seminaristas que nela fazem seu<br />

retiro espiritual. Além <strong>da</strong> sede <strong>da</strong> paróquia os padres percorrem apostolicamente<br />

mais seis populosas capelas filiais e mais duas paróquias anexas à estola <strong>da</strong><br />

Penha; durante muitos anos tiveram a direção espiritual do Hospital de Cari<strong>da</strong>de<br />

do Brás e do Asilo de <strong>São</strong> José do Belém, prestando todos os serviços<br />

espirituais aos enfermos e às órfãs do Asilo, bem como às religiosas dos dois<br />

estabelecimentos. Até hoje exercem o ofício de confessores ordinários em cin-<br />

***


co ou seis conventos de irmãs na Capital. <strong>São</strong> inúmeros os trabalhos dos padres<br />

<strong>da</strong> Penha nas diversas paróquias <strong>da</strong> Capital. Como nas escolas públicas<br />

não se ensina a Religião, os Redentoristas fun<strong>da</strong>ram escolas paroquiais, onde<br />

por intermédio <strong>da</strong>s Irmãs Vicentinas e outras professoras fornecem instrução a<br />

muitas centenas de crianças, às quais procuram <strong>da</strong>r uma educação genuinamente<br />

cristã.<br />

O leitor pode observar no prospecto abaixo que é grande e consolador o<br />

número de missões, tríduos, retiros e outros trabalhos apostólicos, feitos pelos<br />

padres não só na arquidiocese de S. Paulo, mas também em outras dioceses<br />

do Estado e fora dele. Em 1907 as irmãs de S. Vicente de Paulo adquiriram uma<br />

residência na Penha e lá estabeleceram o noviciado de sua <strong>Congregação</strong>, abriram<br />

um externato para o ensino elementar e mais tarde uma escola profissional<br />

para moças; são ótimas auxiliares na instrução <strong>da</strong>s crianças, que estão, como<br />

as irmãs, entregues à direção dos padres Redentoristas.<br />

Perdões. Em 1913 o Exmo. Sr. Arcebispo de S. Paulo, D. Duarte Leopoldo e<br />

Silva, ofereceu aos padres Redentoristas o Santuário do Bom Jesus dos Perdões.<br />

Dos edifícios que existem no lugar pertencentes à igreja e destinados à<br />

hospe<strong>da</strong>gem dos romeiros uma parte foi cedi<strong>da</strong> aos padres e transforma<strong>da</strong> em<br />

convento. Por ser Perdões um lugar excepcionalmente saudável e retirado dos<br />

grandes centros, foi escolhido para casa de noviciado, os três padres que formavam<br />

a pequena comuni<strong>da</strong>de poucas missões puderam pregar; assim mesmo<br />

auxiliavam os vigários <strong>da</strong>s paróquias vizinhas, e tomavam parte nos trabalhos<br />

apostólicos <strong>da</strong>s casas maiores, como Penha e Apareci<strong>da</strong>. Tendo os Superiores<br />

opinado pelo abandono <strong>da</strong> casa de Perdões, entregaram o Santuário ao<br />

Sr. Arcebispo em 1920.<br />

Araraquara. Em 1920 mais uma época risonha raiou para a Vice-Província<br />

de S. Paulo. A convite do Sr. Arcebispo de <strong>São</strong> Carlos, D. José Marcondes Homem<br />

de Mello, os padres Redentoristas levantaram o vôo e foram a Araraquara,<br />

a Princesa do Oeste paulista, ci<strong>da</strong>de bela, rica e sadia, brinco de asseio no ouro<br />

dos corações generosos dos habitantes e na pérola <strong>da</strong> administração pública,<br />

que é exemplar. É mais um campo vastíssimo de ativi<strong>da</strong>de apostólica, que se<br />

abriu aos filhos de Santo Afonso. Livres <strong>da</strong> paróquia podem eles dedicar-se<br />

exclusivamente ao fim principal <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong>. Cinco padres válidos e ardorosos,<br />

desde então, têm percorrido as ci<strong>da</strong>des do Oeste, cuja população composta<br />

de to<strong>da</strong> a sorte de imigrantes se achava, religiosamente falando, insuficientemente<br />

cui<strong>da</strong><strong>da</strong>, enquanto que materialmente se avantajava a to<strong>da</strong>s as outras<br />

zonas do rico Estado de <strong>São</strong> Paulo. Lá construíram os padres um belo<br />

convento, muito cômodo para o descanso dos missionários: um esplêndido pomar<br />

ameniza-lhes os poucos dias de repouso que passam em casa.<br />

Ao lado dos estafantes labores apostólicos nas Missões etc. têm os padres<br />

o múnus sacerdotal na Igreja de Santa Cruz, doa<strong>da</strong> pelo Exmo. Sr. Arcebispo<br />

***<br />

***<br />

120<br />

de <strong>São</strong> Carlos ao uso dos padres Redentoristas. A Igreja de Santa Cruz é procura<strong>da</strong><br />

por to<strong>da</strong>s as pessoas piedosas, que lá vão reconciliar-se com Deus,<br />

ouvir as pregações aos domingos, assistir as tocantes festas que lá se celebram<br />

e <strong>da</strong>r expansões à sua devoção a <strong>São</strong> Geraldo, que também em Araraquara<br />

conseguiu captar a simpatia popular. Os padres tomam conta <strong>da</strong> Santa Casa<br />

onde atendem aos chamados dos doentes e moribundos de dia e de noite; são<br />

confessores <strong>da</strong>s Irmãs e aju<strong>da</strong>m quanto possível o vigário <strong>da</strong> paróquia. A fun<strong>da</strong>ção<br />

<strong>da</strong> residência de Araraquara foi providencial, não só por ser essa ci<strong>da</strong>de<br />

o centro <strong>da</strong> mais importante zona paulista, mas principalmente por ser essa<br />

parte do Estado a mais desprovi<strong>da</strong> de Ordens ou Congregações religiosas.<br />

Cachoeira. Com intuito de alargar ain<strong>da</strong> mais o raio de ativi<strong>da</strong>de e de<br />

arregimentar com mais facili<strong>da</strong>de maior número de missionários Redentoristas,<br />

os Superiores resolveram a título de experiência fun<strong>da</strong>r uma casa no Sul do<br />

Brasil. A primeira escolha coube a Pelotas para onde em 1919 seguiram dois<br />

sacerdotes, onde, recebidos de braços abertos pelo povo e mais ain<strong>da</strong> pelo<br />

Exmo. Sr. D. Francisco de Campos Barreto, então bispo dessa ci<strong>da</strong>de, começaram<br />

a desenvolver uma ativi<strong>da</strong>de digna de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>. A nova paróquia,<br />

cria<strong>da</strong> nessa ocasião e confia<strong>da</strong> aos cui<strong>da</strong>dos dos Redentoristas, prosperava a<br />

olhos vistos, os padres coadjuvavam os outros vigários no confessionário e no<br />

púlpito, e tudo prometia o mais brilhante futuro quando os Superiores, por motivos<br />

poderosos, acharam melhor transferir a residência para Cachoeira, situa<strong>da</strong><br />

no bispado de Santa <strong>Maria</strong> e mais no centro do Estado do Rio Grande do Sul,<br />

donde com mais facili<strong>da</strong>de poderiam os padres sair para a evangelização <strong>da</strong><br />

vasta vinha do Senhor. Supera<strong>da</strong>s as primeiras dificul<strong>da</strong>des, lançaram-se os<br />

padres aos trabalhos <strong>da</strong> sua vocação, percorrendo incansáveis as colônias italianas<br />

e alemãs e missionando as ci<strong>da</strong>des. Os cinco sacerdotes, que desde<br />

1921 lá trabalham, têm-se dedicado quase que exclusivamente ao apostolado<br />

nas diversas dioceses do Estado.<br />

Com os padres estavam, no princípio, muito mal alojados, começaram já a<br />

construção de um convento em regra que possa agasalhar decentemente os<br />

confrades e servir de escola apostólica para instrução dos meninos que mostrarem<br />

vocação para a <strong>Congregação</strong> Redentorista. —<br />

<strong>São</strong> esses os trabalhos que os padres vindos <strong>da</strong> Baviera e <strong>da</strong> Holan<strong>da</strong>,<br />

portanto oriundos <strong>da</strong> casa-mãe fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>, têm feito na Terra<br />

de Santa Cruz, e continuam a fazer, graças a Deus, com a melhor vontade e<br />

animação. Os Estados de S. Paulo, Minas, Goiás, Rio, Bahia, Espírito Santo, Rio<br />

Grande, Paraná, Sta. Catarina e até Mato Grosso, já viram em sua operosi<strong>da</strong>de<br />

apostólica os filhos de Santo Afonso. Em Minas, <strong>São</strong> Paulo, Rio e Goiás talvez<br />

não se encontre uma ci<strong>da</strong>de que não tenha sido missiona<strong>da</strong>, uma ou mais<br />

vezes, pelos padres Redentoristas. E Deus tem abençoado visivelmente os seus<br />

trabalhos; as bênçãos do episcopado também os acompanham em to<strong>da</strong> parte<br />

animando-os ain<strong>da</strong> mais e garantindo-lhes o melhor resultado. Os pedidos feitos<br />

pelos vigários e pelo povo são tão numerosos que lhes é impossível satisfazer<br />

a todos. Messis quidem multa, operarii autem pauci.<br />

A fim de o leitor possa fazer uma pequena idéia <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de apostólica dos<br />

padres <strong>da</strong> Vice-Província de <strong>São</strong> Paulo e <strong>da</strong> Vice-Província do Rio, pomos aqui<br />

uma pequena resenha desses trabalhos desde o ano <strong>da</strong> fun<strong>da</strong>ção de ca<strong>da</strong>


casa até o ano santo de 1925. Não pode ser uma computação completa, porque<br />

faltam muitos <strong>da</strong>dos, mormente dos primeiros anos; em todo o caso pomos<br />

aqui o mínimo em algarismos.<br />

[...]<br />

Nesse quadro não estão registrados os 100.452 batizados e as 150.000<br />

crismas que os missionários fizeram nesse lapso de tempo, nem os milhares de<br />

pequenos trabalhos, que a ca<strong>da</strong> hora ocupam os sacerdotes, mormente os que<br />

têm a direção espiritual de paróquias ou de Santuários.<br />

Ai estão os números em to<strong>da</strong> a sua eloqüência. Quantas confissões ouvi<strong>da</strong>s!<br />

quantas comunhões administra<strong>da</strong>s! quantos doentes sacramentados! E se<br />

fosse possível aqui enumerar ao menos as conversões estupen<strong>da</strong>s realiza<strong>da</strong>s<br />

nesses 30 anos de apostolado!... quantos corações recuperaram a paz perdi<strong>da</strong>!<br />

e quantos estão agora salvos eternamente por to<strong>da</strong>s essas fadigas e suores!<br />

Ora tudo isto <strong>da</strong>ta, em sua origem, <strong>da</strong>quele dia memorável em que <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong><br />

conseguiu a aprovação <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> na Áustria depois de haver em<br />

pessoa educado segundo o espírito de Sto. Afonso os discípulos que foram a<br />

coluna do Instituto além dos Alpes. Eis o que pode alcançar um só homem,<br />

quando é movido do Espírito de Deus!<br />

Se aqui quiséssemos enumerar todos os trabalhos feitos pelos Redentoristas<br />

de to<strong>da</strong>s as Províncias forma<strong>da</strong>s além dos Alpes, não haveria livro que os pudesse<br />

conter, nem língua que os conseguisse pronunciar. Milhões e milhões de<br />

almas encontraram a salvação, milhões de outras elevaram-se à mais alta perfeição,<br />

em conseqüência dos esforços e <strong>da</strong> ativi<strong>da</strong>de dos filhos de Sto. Afonso e<br />

de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>. Isto tudo fica aqui documentado para a glória do Fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong><br />

<strong>Congregação</strong> e do seu insigne Propagador nas cinco partes do mundo.<br />

CAPÍTULO XXIX<br />

121<br />

As Irmãs Redentoristas<br />

Em Scala — A Ordem <strong>da</strong>s Irmãs Redentoristas — O seu fim principal — O<br />

seu hábito atraente — Sua propagação na Europa — Sua vin<strong>da</strong> ao Brasil —<br />

Seus progressos.<br />

Além <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> de Missionários de vi<strong>da</strong> apostólica fundou Santo<br />

Afonso, em Scala, uma Ordem de Religiosas, que na Bula de aprovação receberam<br />

o nome de Irmãs do Santíssimo Redentor ou Redentoristas. <strong>São</strong> ver<strong>da</strong>deiras<br />

monjas no sentido canônico <strong>da</strong> palavra; dedicam-se à vi<strong>da</strong> contemplativa<br />

distribuindo o tempo entre a oração e o trabalho. Têm por fim principal o mesmo<br />

que os padres Redentoristas, isto é, a imitação mais perfeita possível <strong>da</strong> vi<strong>da</strong><br />

do Redentor e de suas virtudes. Os seus votos são perpétuos e solenes. A vi<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong> Redentorista, menos austera que a <strong>da</strong>s Carmelitas e Clarissas, é uma vi<strong>da</strong><br />

de imolação pela submissão inteira <strong>da</strong> própria vontade, pela sujeição a to<strong>da</strong>s as<br />

exigências <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> comum e pelas austeri<strong>da</strong>des corporais, que são regula<strong>da</strong>s<br />

com discrição não ultrapassando as forças de uma saúde mesmo medíocre,<br />

uma vi<strong>da</strong> apostólica pelas abnegações e orações em prol <strong>da</strong>s santas Missões,<br />

uma vi<strong>da</strong>, às vezes, penosa e dura à natureza corrompi<strong>da</strong> que deve ser domina<strong>da</strong><br />

e sujeita ao espírito, porém satura<strong>da</strong> de merecimentos e de alegrias serenas,<br />

fruto <strong>da</strong> união íntima com Deus. As Redentoristas são as maiores auxiliares<br />

dos seus confrades na evangelização dos povos por meio <strong>da</strong>s suas orações<br />

fervorosas e dos seus trabalhos contínuos. Como Moisés conservam seus braços<br />

estendidos para a oração, enquanto os batalhadores terçam as armas no<br />

campo <strong>da</strong> luta, e de Deus imploram para eles a vitória e o triunfo sobre os<br />

inimigos <strong>da</strong>s almas: são os pára-raios <strong>da</strong> vingança do Eterno por seu espírito de<br />

humil<strong>da</strong>de e oração. Ocultas aos olhos do mundo permanecem como <strong>Maria</strong> aos<br />

pés do divino Mestre ouvindo a sua voz e voando no caminho <strong>da</strong> perfeição.<br />

Em seu hábito característico composto de uma túnica vermelha-escura com<br />

escapulário azul-celeste, ao qual se conserva afixa<strong>da</strong> a imagem do Redentor<br />

num me<strong>da</strong>lhão oval, adorna<strong>da</strong>s do véu de linho frisado, de uma faixa e um véu<br />

branco encoberto por um outro preto, com um rosário pendurado ao cinto, e —<br />

no coro — com um amplo manto de cor azul-celeste — as Redentoristas —<br />

formam, no ofício, um grupo empolgante, celestial e atraente aos olhos dos<br />

anjos e do divino Esposo.<br />

As Irmãs Redentoristas viviam contentes em seu convento de Scala sem<br />

outra aspiração que a de ali ficar para sempre, longe dos homens e só uni<strong>da</strong>s a<br />

Deus; mas a Providência teve outros desígnios a seu respeito, reservou-lhes a<br />

sorte dos seus irmãos no apostolado. Já em Varsóvia fizera <strong>Clemente</strong> repeti<strong>da</strong>s


tentativas para levá-las à Polônia. Em Viena procurou debalde, como temos<br />

visto, uma residência estável para os seus confrades. A Providência preparara<br />

para os dois ramos <strong>da</strong> Ordem Redentorista o mesmo destino, as mesmas abraçarem<br />

a Regra do Ss. Redentor e receberem noviças depois de estabeleci<strong>da</strong> a<br />

clausura. Sob a direção firme do Pe. Passerat, amigo e modelo <strong>da</strong>s almas interiores,<br />

o convento prosperou admiravelmente em Viena, sendo possível fun<strong>da</strong>r,<br />

poucos anos depois, uma outra residência no sul <strong>da</strong> Áustria. Na medi<strong>da</strong> que os<br />

padres Redentoristas se espalhavam pela Europa, tendo grande aceitação em<br />

to<strong>da</strong> a parte, despertavam, com suas pregações, o desejo em muitas donzelas<br />

de se consagrar a Deus na Ordem Redentorista. Assim, aos poucos, entraram<br />

as Irmãs do Santíssimo Redentor em diversos países <strong>da</strong> Europa e <strong>da</strong> América,<br />

possuindo presentemente na<strong>da</strong> menos de vinte e cinco conventos povoados<br />

por cerca de setecentas religiosas.<br />

Logo depois <strong>da</strong> grande conflagração européia quatro intrépi<strong>da</strong>s Irmãs<br />

Redentoristas — entre elas duas brasileiras — deixaram seu confortável mosteiro<br />

em Bruges na Bélgica, e transpondo o Atlântico, lançaram as bases de um<br />

novo mosteiro na ci<strong>da</strong>de de Vassouras no Estado do Rio. Desde 1924 essas<br />

Irmãs, devido às prementes necessi<strong>da</strong>des de ordem material, transferiram a<br />

residência para a ci<strong>da</strong>de de Itú, célebre em todo o Estado de <strong>São</strong> Paulo por<br />

seus sentimentos religiosos e pela fi<strong>da</strong>lguia dos seus costumes cavalheirescos.<br />

Tornando-se o prédio um tanto acanhado por causa <strong>da</strong>s muitas vocações que<br />

Deus tem suscitado no coração <strong>da</strong>s donzelas brasileiras, as Irmãs Redentoristas,<br />

contando com a generosi<strong>da</strong>de dos corações nobres, aumentaram e pretendem<br />

ampliar ain<strong>da</strong> mais o mosteiro de Itú, que será o berço viçoso e sadio <strong>da</strong>s futuras<br />

residências <strong>da</strong>s Irmãs Redentoristas na grandiosa Terra <strong>da</strong> Santa Cruz,<br />

onde há corações nobres, amantes <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> interior e <strong>da</strong> união com Deus 11 .<br />

CAPÍTULO XXX<br />

122<br />

O seu sepulcro glorioso<br />

O seu sepulcro — Exumação — Beatificação — O seu triunfo no mundo —<br />

Canonização — O ofício e missa do Santo — Observação final.<br />

Já não será necessário acrescentar mais um juízo sobre a vi<strong>da</strong> íntima de<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>. A Igreja Católica, infalível pela assistência do Espírito Santo em<br />

matéria de fé e moral, já declarou solenemente que o Apóstolo de Viena possuía<br />

em grau heróico as virtudes teologais e morais, e que agora goza no céu<br />

<strong>da</strong> visão de Deus. Desde o dia do seu sepultamento em o cemitério de Enzersdorf,<br />

onde o Santo quis se inhumado em atenção a seu grande amigo o Pe. Diesbach<br />

S. J., tornou-se o seu sepulcro um lugar de romaria piedosa; homens e mulheres<br />

de to<strong>da</strong>s as classes sociais, e até sacerdotes, para lá têm ido implorar o<br />

auxílio do Santo, julgando-se felizes por poderem levar consigo alguma florzinha<br />

cresci<strong>da</strong> à beira do seu túmulo, ou um pouco de terra do seu sepulcro.<br />

Em 1847, foi aberto o túmulo de <strong>Clemente</strong> a pedido insistente dos seus<br />

admiradores e devotos que desejavam <strong>da</strong>r-lhe uma sepultura mais digna. Os<br />

ossos estavam ain<strong>da</strong> bem conservados, o barrete e a estola na<strong>da</strong> haviam sofrido,<br />

enquanto que o rosto já havia desaparecido. Deus queria assim <strong>da</strong>r a entender<br />

o quanto abençoara a estola e o barrete do Santo, insígnias, aquela do<br />

confessor e este do pregador, funções essas em que se distinguira o grande<br />

Apóstolo de Viena. Essas preciosas relíquias foram conserva<strong>da</strong>s como um tesouro<br />

precioso; sobrevindo, porém, a perseguição de 6 de abril de 1848, tiveram<br />

os padres de abandonar os seus conventos <strong>da</strong> Áustria, e com a precipitação<br />

<strong>da</strong> saí<strong>da</strong> e com as dificul<strong>da</strong>des do exílio perderam-se essas relíquias preciosas.<br />

Com enorme acompanhamento, ao som festivo dos sinos de Viena e com a<br />

assistência do Núncio Apostólico, do representante do arquiduque Maximiliano<br />

e de outras pessoas altamente coloca<strong>da</strong>s foram os restos mortais de <strong>Clemente</strong><br />

transportados para a igreja de Nossa Senhora <strong>da</strong> Esca<strong>da</strong> (em alemão: <strong>Maria</strong><br />

Stiegen). Perto <strong>da</strong> parede <strong>da</strong> capela-mor ao lado do evangelho foi colocado o<br />

precioso sarcófago, sobre o qual se levantou o monumento em forma de altar,<br />

no alto a imagem do Santo, em fino mármore branco, tendo sobre a fronte o<br />

barrete e sobre a batina do Redentorista o manto <strong>da</strong> profissão. É uma ver<strong>da</strong>deira<br />

obra de arte que honra o Apóstolo de Viena. Desde esse dia a romaria, que<br />

se fazia a Enzersdorf, transferiu-se para a Virgem <strong>da</strong> Esca<strong>da</strong> e tem-se aumentado<br />

constantemente com os milagres estupendos operados pelo Santo à invocação<br />

do seu nome e ao tributo de veneração prestado às suas sagra<strong>da</strong>s relíquias.


Em 1864 teve início o processo para a beatificação do Servo de Deus. As<br />

trinta testemunhas chama<strong>da</strong>s a depor, eram to<strong>da</strong>s amigos e discípulos dele, e<br />

por isso podiam depor com segurança e de ciência, ain<strong>da</strong> mais que eram homens<br />

santos e de inteira confiança.<br />

Declarado venerável em 1867 foi beatificado em 1888 na grande basílica<br />

de <strong>São</strong> Pedro. A beatificação do Servo de Deus fora pedi<strong>da</strong> pelo próprio Imperador<br />

<strong>da</strong> Áustria, por D. Miguel de Bragança, <strong>Maria</strong> Adelaide de Bragança,<br />

arquiduquesa <strong>Maria</strong> Tereza, seis cardeais, quarentas bispos de diversos países,<br />

oitenta e duas Ordens e Congregações religiosas, inúmeros dignatários<br />

eclesiásticos, dez Superiores Gerais de Ordens e Congregações, muitos professores<br />

de universi<strong>da</strong>des etc etc. Leão XIII determinou o dia 29 de janeiro de<br />

1888 para a soleni<strong>da</strong>de <strong>da</strong> beatificação do Apóstolo de Viena. Como de costume<br />

nessas ocasiões, uma multidão incalculável esperava a abertura <strong>da</strong> Porta<br />

de bronze à direita <strong>da</strong> porta principal de S. Pedro. Já muito antes <strong>da</strong>s 10 horas<br />

estava o povo apinhado no grande largo <strong>da</strong> basílica à espera que se desse o<br />

sinal <strong>da</strong> abertura <strong>da</strong> porta. Dado o sinal encheu-se a vasta e magnífica sala <strong>da</strong>s<br />

beatificações. Numeroso clero, secular e regular, estava presente; os<br />

Redentoristas ocupavam uma tribuna especial; na tribuna dos diplomatas achava-se<br />

o embaixador austríaco junto a Santa Sé com os secretários <strong>da</strong> legação.<br />

A iluminação era feérica e cerca de 4.000 velas ardiam nos lustres. Sobre o<br />

altar-mor de uma grande abertura oval, rodea<strong>da</strong> de nuvens e encoberta por um<br />

véu, salientava-se a imagem do novo Bem-aventurado irradia<strong>da</strong> de luz.<br />

Acompanhados <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> suíça apareceram os cardeais <strong>da</strong> Sagra<strong>da</strong> <strong>Congregação</strong><br />

dos Ritos com seus prelados e consultores e tomam, ca<strong>da</strong> um, seu<br />

lugar. Ladeado por seu secretário, o postulador <strong>da</strong> causa <strong>da</strong> beatificação aproxima-se<br />

do prefeito <strong>da</strong> <strong>Congregação</strong> e pede licença para ler em voz alta o Breve<br />

que declara Bem-aventurado o Servo de Deus. A essa leitura segue o Te-Deum<br />

cantado pela Capela Julia alternando com o povo. Durante o hino ambrosiano<br />

puxa-se o véu do altar-mor, e rodeado de um mar de luzes apresenta-se a<br />

imagem do Bem-aventurado <strong>Clemente</strong> em atitude triunfal, circun<strong>da</strong>do de anjos.<br />

Todos os corações pulsaram com força, as lágrimas de comoção e gratidão<br />

alagaram os olhos enquanto os sinos de <strong>São</strong> Pedro festejavam o novo Bemaventurado.<br />

À tarde às três horas estava o templo outra vez repleto: era o momento em<br />

que o Santo Padre ia prestar suas homenagens ao Bem-aventurado. Às 3 horas<br />

e 15 minutos começa um zum-zum entre o povo; aos poucos calam-se todos:<br />

aproxima-se um préstito longo de prelados e cardeais, brilham os capacetes<br />

dourados <strong>da</strong> guar<strong>da</strong> nobre, e o representante de Deus, Leão XIII, aparece abençoando<br />

as massas. Perante o altar reza o Papa uns 12 minutos, conservando<br />

sua fronte inclina<strong>da</strong> na almofa<strong>da</strong> de se<strong>da</strong> branca; ele ora e um silêncio sepulcral<br />

apodera-se <strong>da</strong> igreja, só se ouvem as ba<strong>da</strong>la<strong>da</strong>s compassa<strong>da</strong>s do grande sino<br />

de <strong>São</strong> Pedro. O venerando Superior Geral dos Redentoristas, depois de meia<br />

hora de oração, aproxima-se do Santo Padre para lhe agradecer o favor prestado<br />

a to<strong>da</strong> a <strong>Congregação</strong>, e em sinal de gratidão oferece-lhe um bouquet e um<br />

relicário precioso e magnificamente fabricado, relíquias do novo Bem-aventurado.<br />

Depois de breves palavras de animação o Papa deixa a igreja e retira-se<br />

abençoando o povo.<br />

123<br />

A Igreja com esse ato levou <strong>Clemente</strong> aos altares, permitindo o culto de<br />

Bem-aventurado ao simples padeiro de outrora e mais tarde, pobre, porém<br />

zelosíssimo sacerdote, que libertou a Áustria <strong>da</strong>s garras do josefismo racionalista,<br />

despertando mas massas sentimentos de ver<strong>da</strong>deira pie<strong>da</strong>de.<br />

Viena exultou com esse memorável acontecimento e com festas esplêndi<strong>da</strong>s<br />

procurou glorificar o seu santo Apóstolo. Para imortalizar a recor<strong>da</strong>ção<br />

desse dia fez ain<strong>da</strong> mais.<br />

O arrabalde operário de Hernals que contava mais de oitenta mil almas,<br />

não possuía em 1888 senão uma única igreja paroquial, que mal podia conter<br />

umas seiscentas pessoas. Os vienenses lembraram-se de perpetuar a memória<br />

de <strong>Clemente</strong>, erigindo naquele bairro tão abandonado um templo monumental<br />

e um convento de Redentoristas. Esse templo tem a insigne honra de possuir<br />

hoje as relíquias sagra<strong>da</strong>s de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>. É lá e na igreja de Nossa<br />

Senhora <strong>da</strong> Esca<strong>da</strong> que o Santo continua o seu ministério apostólico em Viena<br />

atraindo as almas para Deus por meio de contínuos prodígios.<br />

Com a beatificação começou a marcha triunfal do Servo de Deus pelo<br />

mundo; em todos os conventos redentoristas foi esse acontecimento celebrado<br />

com to<strong>da</strong> a pompa e soleni<strong>da</strong>de; em as numerosas igrejas redentoristas levantaram-se,<br />

com indulto pontifício, altares ao Bem-aventurado; muitas dioceses<br />

imploraram a Santa Sé permissão de comemorar com ofício e missa própria as<br />

glórias do novo Bem-aventurado, e na Áustria, Alemanha, França e Bélgica,<br />

bem poucos Santos conseguiram tanta populari<strong>da</strong>de como o humilde <strong>Clemente</strong><br />

que viveu com o povo e para ele. O nome de <strong>Clemente</strong> foi escrito com caracteres<br />

de ouro numa placa riquíssima que adorna o salão <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de Viena.<br />

Vinte anos depois fez-se novo exame sobre os mais recentes milagres operados<br />

pelo Bem-aventurado, ficando pronto o processo em poucos anos. Em<br />

1909 o Papa Pio X, na festa <strong>da</strong> Ascensão do Senhor aos 20 de maio, canonizou<br />

solenemente o grande Apóstolo de Viena.<br />

Desde então cresce, dia a dia, o número dos devotos de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>. Em<br />

todos os países católicos difundiu-se a sua devoção: altares, capelas, igrejas,<br />

conventos, casas de estudos, estabelecimentos de cari<strong>da</strong>de, levam o seu nome.<br />

Entusiasmado, que quase atingiu as raias do delírio, apoderou-se de Tasswitz,<br />

terra natal de <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong>; de 26 a 29 de junho de 1909 mais de oito mil<br />

peregrinos visitaram a pobre casa em que <strong>Clemente</strong> viu pela primeira vez a luz<br />

do dia. O quarto onde ele nasceu transformou-se em bela capela devota. Na<br />

véspera <strong>da</strong> conflagração européia Pio X declarou <strong>Clemente</strong> padroeiro <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de<br />

de Viena. A guerra impediu a realização <strong>da</strong>s soleni<strong>da</strong>des que se haviam<br />

preparado para a condigna comemoração desse acontecimento. Em 1926 os<br />

bispos <strong>da</strong> Alemanha e <strong>da</strong> Áustria impetraram na Santa Sé, o Ofício e Missa em<br />

louvor do novo Santo, sob rito de duplex maior, de sorte que anualmente a festa<br />

de S. <strong>Clemente</strong> é celebra<strong>da</strong> com soleni<strong>da</strong>de nesses dois países a 15 de março.<br />

<strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> é como nenhum outro, o Santo dos nossos tempos.<br />

A nossa época distingue-se tristemente por uma vi<strong>da</strong> sem fé, uma ativi<strong>da</strong>de<br />

sem virtudes e um desejo ilimitado de gozos proibidos. A fé vacila, a incredu-<br />

***


li<strong>da</strong>de apodera-se dos espíritos alastrando-se até pelas roças; ca<strong>da</strong> qual pretende<br />

formar a sua religião desdenhando os princípios sacrossantos do Evangelho.<br />

Os homens consideram o trabalho não como uma virtude e uma honra<br />

para o homem, mas sim como uma dura necessi<strong>da</strong>de, um jugo pesado que<br />

querem afastar de seus ombros, produzindo as tremen<strong>da</strong>s greves e lutas <strong>da</strong>s<br />

massas contra os proprietários. Os homens ávidos de gozo, chafur<strong>da</strong>m-se miseravelmente<br />

na lama dos vícios e <strong>da</strong>s diversões que maculam o corpo e matam<br />

a alma.<br />

Em contraste com tudo isso mostra-se <strong>Clemente</strong> o Santo <strong>da</strong> época. Sua fé<br />

inconcussa e inabalável e seu amor ardente à Santa Igreja fizeram dele o apóstolo<br />

impertérrito que converteu a ci<strong>da</strong>de de Viena e dissipou as trevas do erro<br />

do racionalismo josefino. É <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> que também nos nossos dias há de<br />

despertar a consciência católica, atear nos corações o ver<strong>da</strong>deiro amor para<br />

com a Santa Igreja, mestra infalível <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de, para com o Santo Padre, Vigário<br />

de Jesus sobre a terra, e para com os bispos que sãos os nossos pastores e<br />

guias na fé.<br />

A ativi<strong>da</strong>de de <strong>Clemente</strong> era grande, e to<strong>da</strong> inspira<strong>da</strong> pela luz <strong>da</strong> fé; a<br />

intenção única que o movia, era trabalhar sem descanso pela glória de Deus e<br />

a salvação <strong>da</strong>s almas, e não menos pela sua própria santificação. Também<br />

nesse particular é ele o modelo para os nossos tempos, em que muito se trabalha;<br />

a devoção a <strong>São</strong> <strong>Clemente</strong> e a imitação <strong>da</strong> sua vi<strong>da</strong> far-nos-ão amar o<br />

trabalho e fazer dele uma oração constante pela boa intenção e pelo desejo de<br />

agra<strong>da</strong>r a Deus.<br />

Reconhecendo que somente em Deus é que o coração encontra a ver<strong>da</strong>deira<br />

felici<strong>da</strong>de, <strong>Clemente</strong> detestava a vai<strong>da</strong>de mun<strong>da</strong>na, os divertimentos que<br />

só servem para tornar superficiais os corações, infiltrando neles o veneno do<br />

desespero e a ruína eterna. Como tal, <strong>Clemente</strong> chama os corações, mormente<br />

os homens, arranca-os do lodo ensinando-lhes a mortificação modera<strong>da</strong> mas<br />

constante, o desapego <strong>da</strong>s coisas passageiras e o desejo dos gozos celestiais.<br />

Admiremos pois o grande Apóstolo <strong>Clemente</strong> que foi a coluna <strong>da</strong> Igreja,<br />

imitemos os seus exemplos; peçamos a Deus queira <strong>da</strong>r à sua Igreja homens<br />

como <strong>Clemente</strong>, e procuremos difundir a sua devoção, como remédio contra os<br />

males modernos e preservativo <strong>da</strong> catástrofe a cujo encontro caminhamos. Dessa<br />

forma teremos cooperado para a restauração <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de, o triunfo <strong>da</strong> ver<strong>da</strong>de<br />

e a salvação <strong>da</strong>s almas.<br />

124<br />

NOTAS DE RODAPÉ<br />

1. Enciclopedistas são os autores <strong>da</strong> Enciclopédia e em geral todos os que<br />

comungam com as idéias expostas pelos filósofos franceses. Os chefes foram<br />

Diderot e D’Alembert; houve notáveis colaboradores: Rousseau, Grimm, Voltaire<br />

etc. O intuito principal dos enciclopedistas era combater, por todos os modos, a<br />

religião revela<strong>da</strong>, implantando a religião <strong>da</strong> razão humana.<br />

2. <strong>Congregação</strong> de Missionários fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por S. Vicente de Paula em 1624;<br />

tira o nome de S. Lázaro, que é a casa mãe de Paris; tem prestado os mais<br />

relevantes serviços à Igreja tanto pelas missões prega<strong>da</strong>s como pelas escolas<br />

manti<strong>da</strong>s e pela direção de seminários. Em 1904 havia 31 províncias. Conta<br />

numerosos oradores, cientistas, educadores, alguns mártires e alguns santos<br />

canonizados. Muitos bispos brasileiros foram escolhidos dentre os Lazaristas.<br />

3. Maçom quer dizer “pedreiro” a construir o templo espiritual do Altíssimo.<br />

Há três classes: aprendizes, oficiais e mestres. As condições de admissão: rito,<br />

distintivos (avental, martelo, trolha etc.), auxílio mútuo, expulsão de irmãos estranhos,<br />

juramento de guar<strong>da</strong>r os segredos <strong>da</strong> maçonaria etc.<br />

4. Josefismo (de José II) é um sistema político-religioso, que submete a<br />

Igreja inteiramente ao Estado em todos os seus interesses não puramente espirituais,<br />

e procura influir, segundo a doutrina de Febronio, na esfera religiosa <strong>da</strong><br />

Igreja. O intuito do josefismo era fun<strong>da</strong>r uma igreja nacional austríaca.<br />

5. Racionalismo, no sentido teológico, é o erro sistemático <strong>da</strong>queles que<br />

têm a razão humana por única norma do ver<strong>da</strong>deiro e do falso, e por isso mesmo<br />

rejeitam inteiramente a fé, quer como contrária à razão, quer ao menos<br />

como inútil e carecendo de fun<strong>da</strong>mento racional.<br />

6. Ordem religiosa fun<strong>da</strong><strong>da</strong> por Mechitar, sacerdote armênio, que nasceu<br />

em 1676 em Sebaste e faleceu em 1749 em S. Lázaro perto de Veneza. De<br />

monge cismático converteu-se em 1696 e ordenou-se presbítero nesse mesmo<br />

ano. Em 1701 fundou a <strong>Congregação</strong> sob a regra de S. Bento. A casa principal<br />

era em S. Lázaro, <strong>da</strong>li o nome de Lazaristas armênios. Em 1773 foram a Trieste<br />

e em 1810 a Viena. Divididos em duas províncias têm trabalhado muito pela<br />

causa de Deus, maxime pela difusão de bons livros.<br />

7. Maçonaria é uma seita oculta, proibi<strong>da</strong> pela Igreja. O segredo primitivo<br />

<strong>da</strong> maçonaria era construir o deísmo sobre as ruínas do catolicismo, como se<br />

vê no livro <strong>da</strong> Constituição publicado pela Grande Loja <strong>da</strong> Inglaterra em 1723.<br />

No princípio havia apenas os três graus de S. João: aprendiz, oficial e mestre.<br />

Na França fun<strong>da</strong>ram-se mais os que veneram S. João, Sto. André e Jesus. Esse<br />

novo sistema compunha-se outrora de 25 graus que pelos judeus foram elevados<br />

a 33. <strong>Clemente</strong> XII anatematizou a maçonaria em 1738 na constituição In<br />

eminenti. Essa condenação foi renova<strong>da</strong> por Bento XIV, Pio VII, Leão XII, Gregório<br />

XVI, Pio IX, Leão XIII. Não se pode <strong>da</strong>r uma estatística certa por causa do<br />

silêncio dos maçons. Talvez existam cerca de 170 uniões maçônicas com umas<br />

20.000 lojas e um milhão de maçons. A divisa é a do liberalismo: liber<strong>da</strong>de,<br />

igual<strong>da</strong>de, fraterni<strong>da</strong>de; é pois o combate à autori<strong>da</strong>de representa<strong>da</strong> pelo trono<br />

e pelo altar.<br />

8. Essa lei <strong>da</strong> abstinência <strong>da</strong> carne às sextas-feiras do ano foi entre nós<br />

dispensa<strong>da</strong> pela Igreja permanecendo apenas a abstinência nas sextas-feiras


<strong>da</strong> quaresma.<br />

9. O Santo compara o protestantismo às meias pretas por motivos fáceis<br />

de compreender. Para alguém ir ao céu deve fazer-se violência e penitenciar-se<br />

porque o caminho do céu é uma subi<strong>da</strong>, que deve ser feita a pé e descalço sem<br />

temor dos espinhos. Lutero, proclamando a vi<strong>da</strong> cômo<strong>da</strong>, pôs de lado to<strong>da</strong> a<br />

dificul<strong>da</strong>de, formou-se meias teci<strong>da</strong>s dos princípios comodistas, para não se<br />

molestar no caminho. <strong>São</strong> pretas porque inspira<strong>da</strong>s pelo demônio.<br />

10. Kulturkampf é a opressão e perseguição <strong>da</strong> Igreja na Alemanha pelo<br />

poder civil de 1871 a 1894; tinha por fim a fun<strong>da</strong>ção de uma igreja nacional,<br />

inteiramente subordina<strong>da</strong> ao governo, foi causa<strong>da</strong> pelo descontentamento dos<br />

protestantes, que não podiam ver os progressos <strong>da</strong> Igreja na Prússia. Em 21 de<br />

março de 1871 manifestaram-se no Parlamento os primeiros indícios do descontentamento<br />

contra os católicos; pouco depois seguiu-se a supressão <strong>da</strong> seção<br />

católica do ministério do culto, apareceram leis contra a influência <strong>da</strong> Igreja<br />

nas escolas, na instrução religiosa, na formação e colocação de sacerdotes, na<br />

administração dos bens eclesiásticos, contra as ordens religiosas etc. Mu<strong>da</strong>ram<br />

os parágrafos <strong>da</strong> Constituição prussiana que garantiam a liber<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Igreja. O<br />

plano de Bismark de tornar a luta internacional fracassou. Os bispos e sacerdotes<br />

que não se sujeitavam às leis iníquas eram perseguidos com multas, prisões<br />

e exílio.<br />

11. Informações minuciosas sobre a Ordem encontram-se na monografia<br />

“As Irmãs Redentoristas, sua vi<strong>da</strong>, sua história, sua oportuni<strong>da</strong>de”. — Pedidos<br />

ao mosteiro de Itu.<br />

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