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Mangá feminino, Revolução Francesa e feminismo - História ...

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<strong>História</strong>, imagem e narrativas<br />

N o 5, ano 3, setembro/2007 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br<br />

<strong>Mangá</strong> <strong>feminino</strong>, <strong>Revolução</strong> <strong>Francesa</strong> e <strong>feminismo</strong>:<br />

um olhar sobre a Rosa de Versalhes<br />

Valéria Fernandes da Silva<br />

Doutoranda em <strong>História</strong> na UnB<br />

valeria.historia@uol.com.br<br />

Resumo:<br />

No Ocidente os quadrinhos têm mantido um diálogo intenso com a <strong>História</strong>, como pano de fundo, recurso para a<br />

ação, fonte de inspiração. No Japão não é diferente. Tradicionalmente os quadrinhos para rapazes, shounen mangá,<br />

recorrem à história local como fonte de inspiração para suas narrativas. No caso do quadrinho <strong>feminino</strong>, ou shoujo<br />

mangá, o primeiro mangá histórico foi buscar na <strong>Revolução</strong> <strong>Francesa</strong> a ambientação para contar a história da Rosa<br />

de Versalhes, uma moça criada como homem e que se torna chefe da guarda da Rainha. Em nosso artigo<br />

pretendemos discutir o caráter didático quadrinho <strong>feminino</strong> japonês como veículo de discussão da inserção das<br />

mulheres no mercado de trabalho e de questões sociais urgentes, como as demandas feministas, além, de meio de<br />

informação sobre uma história que não era tão próxima do cotidiano das meninas japonesas. Atentaremos também<br />

para a importância da Rosa de Versalhes como marco cultural importante dentro da história dos quadrinhos<br />

japoneses.<br />

Palavras-chave: <strong>Revolução</strong> <strong>Francesa</strong>, <strong>História</strong>s em Quadrinhos, <strong>Mangá</strong>, Feminismo<br />

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N o 5, ano 3, setembro/2007 – ISSN 1808-9895 - http://www.historiaimagem.com.br<br />

Os quadrinhos sempre mantiveram um diálogo criativo e produtivo com a <strong>História</strong>. A<br />

aproximação se dá de várias formas: há a releitura heróica de um passado mítico, como no caso<br />

do Príncipe Valente; há projeção de discussões contemporâneas em uma realidade histórica<br />

idealizada, como em Asterix; há também a narrativa autobiográfica, como em Persépolis. As<br />

possibilidades são infinitas, e vários autores e autoras têm oferecido obras que combinam de<br />

forma didática e inventiva o saber historiográfico com a ficção.<br />

Figura 1: Oscar François e a Maria Antonieta na visão de Riyoko Ikeda. Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 2,<br />

1987. Ilustração avulsa especial sem número de página.<br />

Mesmo assim, aqui no Brasil, estamos bem defasados em publicações quando o assunto<br />

são quadrinhos japoneses, os chamados mangás, com pano de fundo histórico. A questão é ainda<br />

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mais evidente quando se trata daqueles produzidos para o público <strong>feminino</strong>, os shoujo mangá.<br />

Nesse sentido, decidi escrever este artigo focando em uma das obras mais bem sucedidas dessa<br />

área no Japão e que em 2007 está completando 35 anos, trata-se de Berusaiyu no Bara ou, em<br />

nossa língua, a Rosa de Versalhes. 1<br />

Pretendo ressaltar a importância desta obra e o diálogo da autora com a historiografia<br />

além da influência do pensamento e das demandas feministas dentro dos shoujo mangá nos anos<br />

70. Fatos considero que foram fundamentais para tornar a Rosa de Versalhes um marco dos<br />

mangás e da cultura pop japonesa.<br />

MANGÁ<br />

O Japão tem o maior mercado de quadrinhos do mundo e aproximadamente 30% do que é<br />

impresso no país é mangá e a quantidade de revistas é gigantesca para os padrões Ocidentais ou<br />

de qualquer outra região do mundo. Os formatos e periodicidades podem variar, mas em geral as<br />

revistas em quadrinhos são bem grossas, no mínimo 150 páginas, monocromáticas, e feitas em<br />

papel ordinário, o que as torna descartáveis. Dessa maneira, boa parte dos japoneses coleciona<br />

suas histórias favoritas somente quando elas saem encadernadas em separado. (GRAVETT,<br />

2006, p. 17)<br />

No Japão, todos lêem quadrinhos – meninos e meninas, homens e mulheres – e há revistas<br />

para todas as faixas etárias, desde as crianças em idade pré-escolar até adultos de mais de 40 anos.<br />

2<br />

Neste país, a idéia de que HQs são material infantil ou do sexo masculino nunca criou raízes,<br />

assim o território permaneceu aberto para todos. Deste modo, enquanto no Ocidente o discurso<br />

virulento contra os quadrinhos ganhou corpo impulsionado pelo livro A Sedução dos Inocentes,<br />

do psicólogo Frederick Werthan, publicado nos 50 nos EUA, no Japão a indústria de mangá<br />

começou a crescer exatamente no mesmo momento. O fato é que os mangás ajudavam a<br />

desanuviar as pressões resultantes do grande esforço de recuperação do pós-guerra, divertiam,<br />

informavam e davam esperança.<br />

1<br />

Ou ainda, Lady Oscar como a série ficou conhecida na maioria dos países ocidentais, como França, Itália, Espanha<br />

e, mesmo o Brasil.<br />

2<br />

Há toda uma nomenclatura ligada aos quadrinhos japoneses. Os mangás para o público infanto-juvenil são<br />

chamados de shounen quando para o público masculino e shoujo, quando para o público <strong>feminino</strong>. Os quadrinhos<br />

para jovens do sexo masculino são chamados de seinen, os para o público <strong>feminino</strong> com o mesmo corte etário são<br />

chamados de josei ou de lady’s comics.<br />

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Nos EUA, o Dr. Werthan identificou nos quadrinhos, em especial os de super-heróis e<br />

terror, uma ameaça à juventude. O autor argumentava que os comics estavam impregnados de<br />

violência, imoralidade, apologia ao crime e mesmo um incentivo à prática homossexual.<br />

(ROBINSON, 2004, p. 40-46 e 76-80) Essas investidas deram origem, ainda nos anos 50, ao<br />

rígido código de ética que passou a controlar a produção norte-americana de quadrinhos,<br />

limitando a criatividade, infantilizando as personagens e temáticas, enfim, impondo um<br />

conservadorismo que quase imobilizou roteiristas, desenhistas e estúdios. Tal fenômeno nunca<br />

ocorreu no Japão, onde qualquer tema pode aparecer nos mangás.<br />

Outra singularidade do país é que há uma grande fatia desse mercado voltada<br />

exclusivamente para o público <strong>feminino</strong>, são os chamados shoujo mangá. 3 Não somente uma<br />

quantidade imensa de títulos é voltada para as meninas e mulheres, que no Ocidente representam<br />

uma parcela muito pequena dos consumidores declarados de quadrinhos, como a maioria das<br />

autoras são, também, mulheres. (FUJINO, 1997, p. 15-18) Nem sempre foi assim, e a autora da<br />

Rosa de Versalhes, Riyoko Ikeda, foi uma das muitas quadrinistas que ajudaram a consolidar a<br />

participação das mulheres nesse campo de trabalho.<br />

QUADRINHOS FEMININOS?<br />

Nos anos 1940 e 1950 nos Estados Unidos havia quadrinhos para meninas com<br />

títulos como Flaming Love, Romantic Thrill, e Teenage Diary Secrets. Eles eram<br />

criados por homens, e tiveram vida curta. Quadrinhos como a Mulher Maravilha,<br />

populares hoje, são extensão do fenômeno do super-herói masculino, e muitos dos<br />

leitores são garotos. (SCHODT, 1983, p. 88) 4<br />

É assim que Frederick L. Schodt, um dos maiores especialistas em quadrinhos japoneses<br />

dos Estados Unidos, inicia seu capítulo sobre shoujo mangá. O autor deixa claro que houve uma<br />

série de quadrinhos para o público <strong>feminino</strong> nos Estados Unidos, material feito em geral por<br />

3<br />

De acordo com o antropólogo americano Matt Thorn, mais da metade das mulheres japonesas com menos de 40<br />

anos lêem mangá e mais de três quartos das adolescentes lêem quadrinhos com regularidade. Ainda segundo este<br />

autor, há cerca de 100 publicações de quadrinhos para o publico <strong>feminino</strong> em publicação no Japão atualmente.<br />

(THORN, 2001)<br />

4<br />

“In the 1940s and 1950s in the United States there were comic books for girls with titles like Flaming Love,<br />

Romantic Thrills, and Teenage Diary Secrets. They were all created by men, and all were short-lived. Comics like<br />

Wonder Woman popular today are an extension of the male superhero phenomenon, and most of their readers are<br />

young boys.” (SCHODT, 1983, p. 88)<br />

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homens. Seu objetivo não era investigar esse fenômeno, mas falar de shoujo mangá, marcar a<br />

diferença em relação a um quadrinho que morreu, entre outras coisas por que não fez a transição<br />

para mãos femininas.<br />

Trina Robbins, estudiosa dos quadrinhos <strong>feminino</strong>s norte americanos, tem outra versão.<br />

Houve quadrinhos <strong>feminino</strong>s feitos por homens nos EUA, e eles eram a maioria, mas houve<br />

mulheres no mesmo país que fizeram quadrinhos, não só para público <strong>feminino</strong>, não só com<br />

recorte romântico, e isso desde o século XIX. O mapeamento feito pela autora em seu livro The<br />

Great Women Catoonists é extenso, (ROBBINS, 2001) mas aponta para o mesmo caminho: os<br />

quadrinhos <strong>feminino</strong>s nos EUA, praticamente desapareceram depois dos anos 50 e as mulheres<br />

quadrinistas se tornaram uma raridade, a ponto de nem serem citadas, como bem ilustra o<br />

comentário de Schodt.<br />

Houve um processo de exclusão, e é o que Trina Robbins defende em seus livros. Um<br />

fenômeno que se acentuou particularmente com o fim da II Guerra Mundial e o retorno dos<br />

homens aos seus postos de trabalho, que algumas mulheres haviam ocupado. (ROBBINS, 2001, p.<br />

79-105.) As mulheres tiveram que abandonar os empregos e retornar aos lares, esse backlash, 5<br />

junto com a campanha anti-quadrinhos movida nos anos 50, fez com que os quadrinhos,<br />

produzidos por e para mulheres, fossem progressivamente asfixiados, marcando os comics como<br />

masculinos e fazendo com que as leitoras migraram para outras mídias, como as novelas de TV e<br />

os romances populares.<br />

É verdade que algumas resistiram, mas as leitoras escassearam, mesmo aquelas que<br />

amavam a Mulher Maravilha. No mesmo período, ocorreu o inverso no Japão, as mulheres<br />

começaram a se tornar quadrinistas e criaram um mercado tão importante que esta talvez seja a<br />

única profissão no Japão na qual as mulheres podem efetivamente ganhar salários maiores que os<br />

dos homens.<br />

Desde o final do século XIX, de acordo com pesquisadora Yoko Fujino, houve revistas<br />

femininas no Japão que traziam alguns quadrinhos. (FUJINO, 2002, p. 31-53) Eram em<br />

quantidade menor que os contos e geralmente episódicos. Já as gravuras dessas revistas se<br />

utilizavam de alguns signos visuais que irão marcar a estética do shoujo mangá como, por<br />

5<br />

“Backlash” é uma palavra que em língua inglesa significa retrocesso, em especial, aquele que implica em perda de<br />

direitos, de espaço, em uma virada conservadora.<br />

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exemplo, as figuras delgadas, os grandes olhos. (FUJINO, 2002, p. 70-71) O primeiro passo para<br />

o formato atual se deu com a revista Shoujo Club (Clube das Meninas), fundada em 1923 nos<br />

moldes antigos, e que foi reestruturada depois da II Guerra para se tornar uma revista de<br />

quadrinhos para meninas. (FUJINO, 2002, p. 51)<br />

Se a estética já estava mais ou menos estruturada, coube Osamu Tezuka, considerado o<br />

maior autor de mangás de todos os tempos, criar o shoujo mangá através da série A Princesa e o<br />

Cavaleiro (Ribon no Kishi, literalmente, O Cavaleiro da Fita – 1953-1956). (SATO, 2007, p.<br />

128-129) Foi Tezuka quem introduziu no universo dos quadrinhos japoneses os recursos<br />

cinematográficos e colocou fim ao modelo de histórias curtas e fechadas, dando início o sistema<br />

de longas séries publicadas em capítulos e acompanhadas com ansiedade durante meses, até anos,<br />

pelos leitores e leitoras.<br />

Figura 2: Osamu Tezuka. A Princesa e o Cavaleiro, JBC, 2002. Capa da edição brasileira.<br />

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A Princesa e o Cavaleiro é uma série de fantasia que mostra a história de uma princesa,<br />

que por erro de um anjo recebeu dois corações, um de menina e outro de menino. A garota,<br />

chamada Safiri, foi obrigada a viver como príncipe, pois só assim poderia reinar. Publicada pela<br />

primeira vez em 1953 na revista Shoujo Club, a série foi um sucesso imediato. Além disso,<br />

inaugurou a discussão sobre papéis de gênero e a força das convenções sociais questões que se<br />

fazem presentes nos quadrinhos <strong>feminino</strong>s japoneses até os nossos dias. E que são algumas das<br />

discussões que Riyoko Ikeda feitas na sua obra A Rosa de Versalhes.<br />

Com o fenômeno “Osamu Tezuka” muitos jovens passaram a se dedicar a produção de<br />

mangás e a marca principal dessa primeira geração é a quase ausência de mulheres na profissão.<br />

Assim, os primeiros shoujo mangá eram escritos por homens para meninas que estavam<br />

principalmente no primário e a temática girava em torno dos conflitos familiares, em especial a<br />

relação mãe e filha, e dos romances idealizados.<br />

Mas as meninas crescem, e os homens não estavam conseguindo dar conta das suas<br />

demandas. As editoras temiam perder o seu público e começaram a abrir espaço para que um<br />

maior número de mulheres pudesse atuar na área. A mudança começou realmente em 1966 com<br />

uma jovem de 16 anos chamada Machiko Satonaka que ganhou um concurso de mangá e abriu<br />

caminho para uma nova geração de mulheres quadrinistas. Satonaka definiu assim as suas<br />

motivações para se tornar autora de mangá:<br />

Eu achava que poderia fazer um trabalho melhor eu mesma, e que as mulheres<br />

eram mais capacitadas para entender o que as meninas queriam ler do que os<br />

homens. Desenhar quadrinhos era também uma forma de ganhar liberdade e<br />

independência sem ter que ficar na escola por longos anos. Era alguma coisa que<br />

eu poderia fazer por mim mesma, era um tipo de trabalho que permitia que as<br />

mulheres fossem iguais aos homens. (SCHODT, 1983, p. 97) 6 (Grifo meu)<br />

A entrada em massa das mulheres no mercado de quadrinhos japoneses é fruto de vários<br />

fatores, mas aponta para uma espécie de empowerment, isto é, uma tomada de poder, no caso da<br />

consciência de suas próprias capacidades e da busca por um espaço profissional que permitisse a<br />

igualdade com os homens. Tais questões não eram estranhas nos anos 60, pois a igualdade era<br />

6<br />

"I thought 1 could do a better job myself, and that women were more capable of understanding what girls want<br />

than men. Drawing comics was also a way of getting freedom and independence without having to go to school for<br />

years. It was something I could do by myself, and it was a type of work that allowed women to be equal to men."<br />

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uma das bandeiras do movimento feminista e de outros movimentos de direitos civis. (LOURO,<br />

1997, p. 14-15)<br />

Riyoko Ikeda, autora da Rosa de Versalhes, entrou no mercado no ano seguinte, 1967, e<br />

tornou-se parte do grupo de quadrinistas, conhecido como Nijûyonen Gumi, grupo do ano 24,<br />

pois a maioria delas era nascida no ano 24 da Era Showa, 7 o nosso ano de 1949. Essas autoras<br />

introduziram uma série de inovações nos shoujo mangá tanto no campo da estética, quanto no<br />

quadro de temáticas. (THORN, 2001) Homossexualidade, gravidez na adolescência, estupro,<br />

conflitos raciais, a lutas das mulheres por um lugar no mundo público e no mercado de trabalho.<br />

Não havia fronteira e as ambientações iam desde o romance escolar até a ficção científica,<br />

dramas históricos e quadrinhos de esporte.<br />

Coube à Riyoko Ikeda inaugurar essa nova fase dos quadrinhos <strong>feminino</strong>s no Japão em<br />

1972 com a publicação, na revista Margaret, da série A Rosa de Versalhes (Berusayiu no Bara).<br />

Foi o primeiro shoujo mangá com uma temática histórica tratada com certa seriedade e riqueza de<br />

detalhes. Os editores não acreditavam que a série poderia ser um sucesso, mas ela foi um hit<br />

instantâneo que persiste como referência, inclusive utilizada em cursos universitários sobre<br />

mangá e cultura pop japonesa, até os dias de hoje.<br />

O QUE É A ROSA DE VERSALHES<br />

A Rosa de Versalhes, desenhada e escrita, por uma ex-estudante de filosofia chamada<br />

Ryoko Ikeda, tinha como proposta contar a trágica história de Maria Antonieta, última rainha da<br />

França antes da <strong>Revolução</strong> de 1789. Esse foi o ponto de partida, no entanto, havia outra mulher,<br />

Oscar François, que terminou se tornando a verdadeira “Rosa de Versalhes”. Esta personagem,<br />

filha caçula do General de Jarjayes, 8 que foi educada como homem para satisfazer as ansiedades<br />

do pai, transformando-se em capitã da guarda da Rainha.<br />

7 A Era Showa corresponde ao governo do Imperador Hiroito e se estendeu de 1926 até 1989.<br />

8<br />

François Régnier de Jarjayes é uma figura histórica que tentou salvar a rainha Maria Antonieta às vésperas de sua<br />

execução na guilhotina. (FRASER, 2006, p. 452)<br />

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Figura 3: Oscar François, uma mulher comandante dos guardas reais. Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, 1972.<br />

O tema da moça travestida de homem – por vontade própria, ou não – na ficção ou mesmo<br />

na vida real, lembremos de nossa Maria Quitéria, não é incomum e no início da série, que contou<br />

com 10 volumes, 9 Oscar não deveria ser a protagonista. Riyoko Ikeda pretendia fazer uma<br />

biografia de Maria Antonieta, enfocando desde a sua educação na Áustria, sob a tutela da mãe, a<br />

Imperatriz Maria Teresa, até a guilhotina, mostrando seus anos em Versalhes, as intrigas dentro e<br />

fora da corte e a deterioração da sua popularidade, além do romance com o sueco Conde Fersen<br />

que Stefan Zweig, a fonte maior de Ikeda, e outros autores consultados por ela davam como certa.<br />

Oscar aparece pouco no primeiro volume e toda a atenção está sobre Antonieta, só que<br />

rapidamente a personagem ganhou popularidade entre as leitoras, é fundado um fã-clube, as<br />

cartas se multiplicam. Oscar acaba tornando-se a heroína da série, uma mulher que serve<br />

fielmente e protege sua senhora, apesar de sofrer por amar o mesmo homem que a rainha, o<br />

Conde Fersen. Com o tempo, a personagem acorda para a situação miserável em que vivia boa<br />

parte da população francesa, trava contato com gente como Robespierre e Saint-Just. Lê os<br />

9<br />

A edição que estamos usando como fonte para as imagens é uma republicação de 1987 em dois volumes, mas a<br />

série já foi publicada em vários formatos.<br />

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iluministas mesmo contra a vontade de seu pai. E, por fim, escolhe se juntar aos revolucionários<br />

no 14 de julho.<br />

Acima de tudo, Oscar luta para conseguir que os homens que comanda reconheçam a sua<br />

competência, que não é somente um bibelô, um capricho de um pai frustrado. O interessante é<br />

que ao contrário de personagens que escondem sua condição feminina, todos sabem que Oscar é<br />

uma mulher, e ela se comporta como um oficial como outro qualquer.<br />

Acredito ser importante ressaltar que houve uma matéria recente do New York Times<br />

intitulada Tradição é obstáculo para carreira das trabalhadoras japonesas, mostrando um<br />

caso semelhante ao do quadrinho de Riyoko Ikeda. Eis o trecho da matéria:<br />

Takado Ariishi, 36, conheceu uma versão radical desse fenômeno ao crescer como<br />

a única filha do presidente da Daiya Seiki, a pequena fábrica da sua família que<br />

fornece peças para a Nissan. No início, o seu pai, desapontado, cortou o cabelo<br />

dela como o de um garoto e proibiu que ela brincasse com bonecas. Quando ela<br />

teve o primeiro filho, dez anos atrás, o pai a despediu da companhia e nomeou<br />

como seu sucessor o neto recém-nascido. Mesmo assim, Ariishi assumiu o cargo<br />

de presidente três anos atrás, após a morte do pai (o filho dela era ainda muito<br />

novo). Ela afirma ser a única mulher em um grupo de cerca de 160 diretores de<br />

empresas fornecedoras da Nissan. A primeira vez em que Ariishi participou das<br />

reuniões bianuais do grupo, pediram que ela aguardasse em uma sala junto com as<br />

secretárias. "Ainda tenho que provar o tempo todo que uma mulher pode ser<br />

presidente", lamenta Ariishi, uma engenheira que no seu escritório usa o mesmo<br />

uniforme azul unissex dos operários. (FACLER, 2007)<br />

Até que ponto Oscar é obra de ficção ou retrata casos que a autora conheceu? A Senhora<br />

Ariishi nasceu um ano antes do início da quadrinização da Rosa de Versalhes e sua vida é muito<br />

próxima daquela da personagem de Riyoko Ikeda. Aproxima-se de Oscar na educação, nas<br />

imposições de papéis de gênero masculinos. Também a personagem de Ikeda terá que resistir ao<br />

pai quando este se arrepende da criação que lhe deu e decide que ela deve passar por um reenquadramento,<br />

abrindo mão da vida militar a abraçando o casamento e a maternidade. Oscar<br />

não se dobra e ela representa para suas leitoras um modelo, alguém que se torna sujeito de sua<br />

própria <strong>História</strong> e lute por um lugar no “mundo dos homens”. Já Maria Antonieta é apresentada<br />

na série como alguém que está prisioneira de um papel que lhe conduz a um fim trágico.<br />

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Figura 4: Maria Antonieta, prisioneira do seu papel de Rainha (detalhe).<br />

Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 2, 1987, p. 5.<br />

Quando falamos de “gênero” estamos nos remetendo a categoria criada pelas teóricas<br />

feministas e, em especial, Joan Scott que diz:<br />

(...) gênero significa saber a respeito das diferenças sexuais. Uso saber, seguindo<br />

Michel Foucault, com o significado de compreensão produzida pelas culturas e<br />

sociedades sobre as relações humanas, no caso, relações entre homens e mulheres.<br />

Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo. (...) O saber não se<br />

relaciona apenas a idéias, mas a instituições e estruturas, práticas cotidianas e<br />

rituais específicos, já que todos constituem relações sociais. O saber é um modo de<br />

ordenar o mundo e, como tal, não antecede a organização social, mas é inseparável<br />

dela. (SCOTT, 1994, p. 12)<br />

A categoria gênero é uma categoria relacional, isto é, se refere à construção dos papéis<br />

<strong>feminino</strong> e masculino em uma dada sociedade, pressupondo-se, num primeiro momento, que essa<br />

organização binária seria incontornável. Neste caso, Jane Flax acrescenta que o gênero é uma<br />

relação social prática e devemos nos propor a fazer um exame daquilo que significa o “<strong>feminino</strong>”<br />

e o “masculino” em uma determinada sociedade. (FLAX, 1991, p. 230) Assim, através do gênero<br />

“(...) dois tipos de pessoas são criadas” e que dessa construção histórico-social decorrem “(...)<br />

divisões e atribuições diferenciadas e (por enquanto) assimétricas de traços e capacidades<br />

humanas.” (FLAX, 1991, p. 228).<br />

Ikeda deixa bem claro através de sua protagonista que é o gênero que cria a diferença.<br />

Oscar tem um corpo <strong>feminino</strong>, moldado por uma criação “masculina” que não tolheu suas<br />

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capacidades, como ocorreu com suas irmãs mais velhas ou com uma Maria Antonieta. A<br />

frustração do pai não produziu uma mulher infeliz, mas alguém que toma o destino em suas<br />

próprias mãos. Oscar não se vê como inferior a homem algum, nem aceita um papel passivo,<br />

nem se dobra à autoridade do pai porque é a tradição. Talvez por esses e outros motivos, as<br />

meninas passaram a admirar tanto a personagem, mas do que a figura de Antonieta, a heroína<br />

romântica e trágica.<br />

Uma característica interessante da personagem de Ikeda é que ela também não abre mão<br />

do amor e, nesse sentido, a autora se coaduna com aquilo que era o esperado de um quadrinho<br />

voltado para o público <strong>feminino</strong>. Só que Ikeda dá à sua protagonista a possibilidade de viver um<br />

romance entre iguais, coisa que para a maioria das mulheres japonesas seria um sonho impossível.<br />

O corpo <strong>feminino</strong> de Oscar, moldado por comportamentos de gênero masculinos, não<br />

deixou de manifestar uma sexualidade feminina. Ikeda rompe assim com o sistema sexo-gênero<br />

que estava sendo discutido nos anos 70, abandona o binarismo e nos oferece a estrutura que<br />

admite a relação entre sexo-gênero-sexualidade que se constroem e se relacionam. (BENTO,<br />

2003)<br />

Os papéis de gênero incorporados por Oscar, o fato de ter assumido uma identidade que<br />

em todos os sentidos é masculina, não a obriga a ter uma sexualidade (desejo) homossexual.<br />

Alguém poderia dizer que Ikeda ainda não estava pronta para tamanha ousadia, que manter sua<br />

personagem como heterossexual foi uma incoerência, ou uma tentativa de satisfazer suas leitoras,<br />

mas o fato é que ela também rompeu com um arranjo simplista, e não transformou a<br />

personalidade de sua personagem; não a despiu de seus comportamentos de gênero quando ela<br />

descobre o verdadeiro amor nos braços do amigo de infância, André.<br />

Na verdade, Ikeda flerta com a homossexualidade. Em um dado momento do mangá,<br />

antes de admitir sua paixão por André ou se livrar do fantasma de Fersen, Oscar lamenta não<br />

poder retribuir o amor de uma moça que a ama, exatamente por não ser um homem. Ikeda<br />

também oferece à suas leitoras uma heroína masculinizada – ou andrógina, no entender de alguns<br />

– que encontra o amor nos braços de um homem que, na verdade é seu igual, não alguém que<br />

complete o binômio masculino-<strong>feminino</strong>. E é Oscar quem escolhe a quem amar, não seu pai; e<br />

escolhe de acordo com seu coração, e não de acordo com as convenções sociais. Ela não ama<br />

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conforme a sua classe, nem como as heroínas tradicionais costumavam amar. Como diz Cristiane<br />

Sato:<br />

(...) embora o enredo de Berusaiyu no Bara ocorresse séculos no passado, Oscar e<br />

André representavam um relacionamento moderno idealizado para suas leitoras,<br />

no qual papéis socialmente pré-determinados entre homens e mulheres estavam<br />

sendo discutidos. (SATO, 2007, p. 52)<br />

HISTORICAMENTE VEROSSÍMEL<br />

Mas a Rosa de Versalhes era também um quadrinho histórico, o primeiro mangá desse<br />

tipo feito para o público <strong>feminino</strong> no Japão. A escolha do contexto da <strong>Revolução</strong> <strong>Francesa</strong> como<br />

pano de fundo representou uma novidade, pois mesmo entre os quadrinhos feitos para o público<br />

masculino a escolha era sempre o próprio passado japonês, em especial o período dos grandes<br />

samurais. Foi uma proposta arriscada e a série poderia ser cancelada, mas encontrou acolhida<br />

entre as leitoras e não decepcionou a editora Kodansha. Nas palavras da própria autora:<br />

O mais duro foi convencer o meu editor a respeito da publicação da Rosa de<br />

Versalhes, e não por ser mulher, mas sim porque ele considerava que minhas<br />

leitoras não iriam se interesar por uma história tão complicada ambientada em um<br />

contexto histórico tão complexo e, ao mesmo tempo, tão distante. 10<br />

O temor do editor estava ligado ao possível estranhamento das leitoras em relação a algo<br />

muito estranho à sua realidade. Eis outro ponto de ruptura da obra de Ikeda, pois até então a<br />

maioria das histórias tinha um recorte intimista e estava ligada ao cotidiano, à escola, à vida<br />

familiar, ou tinha um tom de fantasia assumido com reinos distantes ou colégios internos<br />

europeus idealizados.<br />

Há fantasia na Rosa de Versalhes, personagens, como a protagonista, saídas da<br />

imaginação da autora, mas a matéria histórica, as personagens reais, da nobreza, do povo,<br />

estavam presentes com um realismo até então nunca visto em quadrinhos <strong>feminino</strong>s. O romance,<br />

os bailes, as belas roupas, os atrativos tradicionais, estão lá, mas os sansculottes, a miséria dos<br />

camponeses e trabalhadores urbanos, a prostituição, a violência contra os mais fracos, a etiqueta<br />

10<br />

“No, creo que no. Lo más duro fue convencer a mi editor de la publicación de La Rosa de Versalles, y no porque<br />

yo fuera mujer, sino porque él consideraba que mis lectoras no tendrían interés en una historia tan complicada<br />

ambientada en un contexto histórico tan complejo y a la vez lejano”.<br />

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sufocante de Versalhes, a imprensa que difamava a Rainha, e, por fim, a guilhotina, também<br />

estão no mangá.<br />

Figura 5: Napoleão Bonaparte é uma das figuras históricas que faz uma aparição na Rosa de Versalhes (detalhe).<br />

Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 2, 1987, p. 280.<br />

A fonte principal utilizada pela autora foi a biografia de Maria Antonieta escrita por<br />

Stefan Zweig, acadêmico austríaco judeu, falecido no Brasil em 1942. 11 É uma biografia famosa,<br />

traduzida para várias línguas, e foi referência para o filme hollywoodiano Marie Antoinette de<br />

1938 com Norma Shearer que foi muito elogiado. 12 Ikeda foi detalhista ao extremo e buscou o<br />

máximo de referências visuais e bibliografia para recriar Versalhes e a França das vésperas da<br />

<strong>Revolução</strong>. 13<br />

O sucesso da série fez com que muitas japonesas se interessassem por <strong>História</strong> Ocidental,<br />

pela <strong>História</strong> da França, visitassem o país de Oscar, seguissem carreira como professoras ou<br />

pesquisadoras. Além disso, quando a versão em desenho animado da série chegou à Europa,<br />

11<br />

“Estando en el instituto, a los 17 o 18 años, cayó en mis manos una biografía de Maria Antonieta escrita por<br />

Stefan Zweig, elaño 1933.Se titulaba. Marie Antoinette: The portrait of an ordinary woman. A partir de entonces se<br />

comenzó a formar en mi cabeza la idea de escribir una historia sobre la vida de Maria Antonieta”.<br />

12<br />

Marie Antoinette in The Internet Movie Database. http://imdb.com/title/tt0030418/, 01 de setembro de 2007.<br />

13<br />

Nem todas as referências estavam corretas, como ela mesma confessa: “(...) Por ejemplo, en mi obra dibujo la<br />

Basílica del Sagrado Corazón, en Montmartre, que es posterior a la Revolución <strong>Francesa</strong>. Fue construida en el<br />

siglo XX, concretamente en 1910. Mis asistentes la vieron en fotos y la reprodujeron, y cuando nos dimos cuenta ya<br />

se estaba publicando el comic en todo Japón y no había marcha atrás .De todas formas no ha llegado ninguna<br />

crítica de Francia. No se habrán dado cuenta…”.<br />

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incluindo aí a França, onde recepção foi positiva, e possibilitou que o mangá tivesse boa acolhida,<br />

não somente por causa das personagens ou da beleza do traço, mas pela sua grande relevância<br />

enquanto leitura ficcional bem fundamentada da <strong>Revolução</strong> <strong>Francesa</strong>. (SATO, 2007, p. 53)<br />

Sato ressalta que Ikeda também agrega à sua série padrões de comportamentos japoneses.<br />

Assim, Oscar é na verdade um samurai, guerreiro fiel ao seu senhor, no seu caso, senhora, a<br />

Rainha Maria Antonieta. Só que conforme seus olhos vão se abrindo para as misérias do povo<br />

francês, Oscar rompe com sua classe e seus deveres, tornando-se um ronin, um samurai sem<br />

mestre, um proscrito, e é assim que morre lutando ao lado do povo na Queda da Bastilha. (SATO,<br />

2007, p. 52)<br />

Figura 6: Oscar, um samurai na corte de Versailles, interrompe o primeiro encontro do Conde Fersen com Maria<br />

Antonieta (detalhe). Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 1, 1987, p. 195.<br />

No Japão, o sucesso da série atravessa três décadas sem perder o fôlego. Além das muitas<br />

republicações, há o desenho animado com 40 capítulos de 1979 e um filme feito na França, em<br />

1978, 14 com atores europeus, algo inédito até então. Um filme animado estreará em breve no<br />

Japão para comemorar os 35 anos da série. Mas talvez o produto mais duradouro e significativo<br />

14 Lady Oscar in the Internet Movie Database. http://imdb.com/title/tt0077827/, 01 de setembro de 2007.<br />

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ligado à Rosa de Versalhes sejam os espetáculos musicais encenados pelo Teatro Takarazuka,<br />

que é formado somente por mulheres. O Takarazuka, que é o primeiro teatro de revista japonês,<br />

foi fundado em 1914 e encena tanto peças ocidentais, quanto japonesas, além de adaptações de<br />

mangás famosos, especialmente shoujo mangás.<br />

A primeira peça da Rosa de Versalhes foi encenada pelo Takarazuka em 1974, e o teatro,<br />

cuja audiência é basicamente feminina, que na época vinha perdendo importância frente novas<br />

formas de divertimento, voltou a ser popular. (SATO, 2007, p. 142) Desde a primeira montagem<br />

já ocorreram mais de 1400 apresentações, com duas peças baseadas na série, apresentadas<br />

inclusive fora do Japão. Foram duas temporadas, 1974-76 e 1989-91, mas novas apresentações<br />

foram feitas para comemorar os 250 anos de nascimento de Maria Antonieta e nas celebrações de<br />

aniversário do mangá. A Rosa de Versalhes é o maior sucesso do Takarazuka depois da II Guerra.<br />

(ROBERTSON, 1998, p. 74-75)<br />

UMA OBRA FEMINISTA?<br />

Como estudante de Filosofia na segunda metade dos anos 60, Riyoko Ikeda não podia<br />

estar alheia às discussões feministas. Cristiane Sato enfatiza, em seu capítulo sobre a Rosa de<br />

Versalhes, que o início dos anos 70 foi uma época grande agitação social no Japão, com várias<br />

manifestações estudantis e dos movimentos feministas. Foi também o momento em que muitas<br />

jovens começaram a sonhar com uma carreira, mesmo que temporária, e com o amor romântico<br />

em substituição aos casamentos arranjados. (SATO, 2007, p. 50-51) A própria Riyoko Ikeda<br />

comentou em uma entrevista a respeito das ansiedades das mulheres de sua geração:<br />

(...) as pessoas da minha geração que queriam expressar um sentimento ou contar<br />

uma história e até esse momento só haviam podido fazer isso através dos romances<br />

ou da poesia, descobriram um novo modo de expressão igualmente válido: o<br />

mangá. As mulheres também descobriram o mangá e se interessaram por esse<br />

novo meio. (...) Finalmente, ao terminar a guerra as mulheres japonesas já não<br />

podiam continuar sendo donas de casa e cuidando dos filhos: sentiam que<br />

precisavam trabalhar para levantar o país e contribuir para manter a família. As<br />

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que puderam buscaram um trabalho que as compensasse não só economicamente,<br />

mas também psicologicamente, um trabalho ao qual se dedicar por toda a vida. 15<br />

A experiência social como mulher, compreendida como o percurso de sua construção<br />

pessoal em uma dada sociedade, é algo profundamente histórico e cultural. As experiências da<br />

autora terminaram por conduzi-la a reflexões sobre a condição das mulheres na sociedade<br />

japonesa de sua época e, talvez, em outras épocas e lugares. É possível perceber isso claramente<br />

na Rosa de Versalhes.<br />

Enquanto feministas de vários países teorizavam nas academias e em grupos políticos,<br />

quadrinistas japonesas da geração de Ikeda colocavam em suas obras de ficção suas inquietações<br />

sobre os papéis de gênero e a rigidez com que os espaços estavam demarcados em sua sociedade.<br />

Assim, as discussões de ponta do <strong>feminismo</strong> eram adaptadas para os quadrinhos e<br />

disponibilizadas para a grande massa de leitoras, a maioria na puberdade.<br />

Como pontuei anteriormente, Ikeda rompe com o binômio sexo-gênero, além de<br />

desnaturalizar a idéia de que o corpo seria uma realidade pré-discursiva. Nesse sentido, ela<br />

precede Judith Butler para quem “não se pode dizer que os corpos tenham uma existência<br />

significável anterior à marca de seu gênero”. (BUTLER, 2003, p. 27) Na obra de Ikeda é o<br />

gênero que constrói os corpos, atribuindo-lhes sentidos, um destino, uma função social.<br />

Há uma passagem da série que ilustra bem isso que é quando Oscar decide vestir-se como<br />

“uma dama” pela primeira vez, movida pela atração que sente pelo Conde Fersen. Ikeda mostra<br />

com humor o drama da personagem que não está acostumada às disciplinas do corpo <strong>feminino</strong>.<br />

O espartilho a sufoca, a barra do vestido restringe seus movimentos, o salto alto a faz<br />

desequilibrar e ela cai e jura que nunca mais se submeterá a tal tortura.<br />

Nesse sentido, Ikeda antecede também Teresa de Lauretis, pois acaba construindo uma<br />

situação onde fica claro que o gênero é “o conjunto de efeitos produzidos em corpos”, de forma<br />

15<br />

“(…) la gente que quería expresar un sentimiento o explicar una historia y que hasta ese momento solo había<br />

podido hacerlo a través de la novela o la poesía, descubrió un nuevo modo de expresión igualmente valido: el<br />

manga. Las mujeres también descubrieron el manga y se interesaron por este nuevo medio. Finalmente, al terminar<br />

la guerra las mujeres japonesas ya no se podían quedar haciendo de amas de casa y cuidando a sus hijos: sentían<br />

que tenían que trabajar para levantar el país y contribuir a mantener la familia. Las que pudieron buscaron un<br />

trabajo que las compensara no solo económicamente, sino también psicológicamente, un trabajo al cual dedicarse<br />

de porvida.”<br />

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que Oscar não poderia tornar-se automaticamente uma dama perfeita como em um passe de<br />

mágica e, mais, ela também não o desejava. (LAURETIS, 1994, p. 208). Interessante é que na<br />

animação, que funciona como uma releitura masculina do quadrinho, Oscar consegue dominar<br />

todo o aparato de feminilidade sem problema algum, é como se seu eu interior <strong>feminino</strong> se<br />

manifestasse, afinal, ela estaria dando vazão à sua natureza. Assim, ela desliza linda e loura sem<br />

nenhum incômodo.<br />

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Figura 7: Oscar sofre ao tentar se vestir como uma dama. Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 1, 1987, p. 712.<br />

Esta idéia não está presente no original, nem a frase dita por André em outra parte da série<br />

animada para lembrar a Oscar que não adianta lutar contra a sua “natureza” feminina: “Uma<br />

Rosa será sempre uma rosa, uma rosa nunca poderá ser um lilás”. Muitos fãs ocidentais<br />

consideram tal frase extremamente romântica, mas ela somente expressa de novo a ênfase na<br />

naturalização dos comportamentos, na idéia de destino biológico. São as expectativas culturais<br />

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em torno do desempenho de certos papéis que possibilitam que os corpos sejam moldados como<br />

<strong>feminino</strong>s ou masculinos, e não há nada de natural nisso, não na Rosa de Versalhes de Riyoko<br />

Ikeda.<br />

Sonia Bibe Luyten é muito crítica a respeito dos shoujo mangá e os vê como instrumento<br />

de reforço dos papéis tradicionais <strong>feminino</strong>s. Assim, a autora diz em seu livro <strong>Mangá</strong> – O<br />

Poder dos Quadrinhos Japoneses que o fato das mulheres fazerem quadrinhos de massa no<br />

Japão poderia despertar inveja nas colegas de outros países, porém o que “(...) poderia ser um<br />

passo, uma condição especial para que a mulher construísse sua imagem e até fosse um agente<br />

modificador”, nada produz, porque as autoras “de posse da ferramenta (...) ainda martelam no<br />

mesmo lugar” (LUYTEN, 2000, p. 85).<br />

Pergunto-me se tal pessimismo procede quando nos deparamos com obras como a Rosa<br />

de Versalhes, ou é fruto da estranheza em relação aos shoujo mangá, algo totalmente japonês,<br />

com estruturas próprias e contraditório, como qualquer outra mídia. Aliás, qual veículo de massa<br />

não oscila entre o revolucionário e o já dito? O novo e o tradicional? Será que realmente isso<br />

indica que se martela em um mesmo lugar? É possível pensar assim depois de falas como as de<br />

Machiko Satonaka e Riyoko Ikeda?<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

A Rosa de Versalhes de Riyoko Ikeda representa um marco tanto em termos de<br />

representação histórica dentro dos quadrinhos japoneses quanto em relação à construção das<br />

personagens femininas nos shoujo mangá. A série é um testemunho da capacidade das autoras<br />

de mangá de colocar dentro de suas obras tanto as questões imediatas ligadas ao seu campo de<br />

experiências, vivências e demandas, e também, de articular questões de cunho mais amplo,<br />

histórico, social, e apresentá-las de maneira didática e acessível mesmo ao público infanto-juvenil.<br />

Considero que a Rosa de Versalhes é uma obra que incorpora consciente ou<br />

inconscientemente as discussões feministas que estavam ocorrendo nos anos 60 e 70, além de<br />

antecipar discussões que são muito caras às teóricas feministas atuais, como a naturalização do<br />

corpo ou o binarismo sexo-gênero. Partindo da experimentação e da ousadia, a Rosa de<br />

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Versalhes abriu caminho para toda uma série de mangás que desconstruíram as relações de<br />

gênero e discutiram o desejo e os lugares sociais <strong>feminino</strong>s e masculinos na sociedade japonesa,<br />

em outras épocas históricas, ou mesmo em outros planetas e universos.<br />

Figura 8: Oscar participa da <strong>Revolução</strong> <strong>Francesa</strong> e é desenhada por Ikeda incorporando os símbolos desse<br />

movimento, como a bandeira tricolor. Riyoko Ikeda, A Rosa de Versalhes, vol. 2.<br />

Ilustração avulsa especial sem número de página.<br />

Nesse sentido, mesmo que Ikeda pareça tímida em abordar algumas questões, como a<br />

homossexualidade feminina, ela é exemplar em outras e oferece para suas leitoras de uma só vez<br />

o sonho de um relacionamento equitativo entre homens e mulheres, e o incentivo para que as<br />

meninas tomassem as rédeas de seu destino, como a personagem fez ao lutar por sua carreira<br />

militar, e ao decidir-se contra sua classe e seus deveres por André e, também, pela <strong>Revolução</strong><br />

<strong>Francesa</strong>.<br />

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