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Luciane Alves. TRAVESTIS, TRAVESSÕES E COLIBRÍ - WWLivros

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<strong>TRAVESTIS</strong>, <strong>TRAVESSÕES</strong> E <strong>COLIBRÍ</strong>: O NEOBARROCO<br />

DE SEVERO SARDUY<br />

<strong>Luciane</strong> <strong>Alves</strong> *<br />

Três travestis<br />

Três colibris de raça<br />

Deixam o país<br />

E enchem París de graça<br />

(Caetano Veloso – Três travestis)<br />

RESUMEN: El análisis busca presentar algunos aspectos relevantes y diferenciales en la<br />

producción neobarroca de Severo Sarduy que ocasionan la problematización de cuestiones<br />

identitarias, de género y alteridad, a través de personajes travestis y de la representación de<br />

universos homosexuales. El travesti en la obra de Sarduy es una metáfora de la escrita y de<br />

los cambios sociales en el mundo de desequilibrio del neobarroco, además de presentarse<br />

como cuestionamiento a las diferentes representaciones de género: heterogéneas y<br />

fragmentadas. El travesti es un personaje de importancia para que se repiense la dicotomía<br />

masculino/femenino, pues él representa el fin de la oposición de género, mientras los<br />

transexuales acentuarían esta posición. Al hacernos el análisis de la obra Colibrí, otros<br />

aspectos sociales son discutidos, como el poder y la violencia que silencian y marginalizan la<br />

diferencia. En los juegos sexuales realizados en la Casona, el vencedor de la pelea tiene el<br />

dominio y el vencido es subyugado, postura comandada por la Regente, una travesti exigente<br />

e impiedosa. La búsqueda del poder aparece incluso en la escritura, donde diferentes guiones<br />

anuncian la inserción de otras voces entre la narración: desde las que ayudan a contar la<br />

historia hasta la representante del padre de Sarduy, quien pretende mantener el orden e<br />

impedir que el narrador asuma una identidad homosexual.<br />

PALAVRAS CLAVE: Severo Sarduy – Travestis – Homosexualidad – Neobarroco – Colibrí<br />

RESUMO: A análise procura apresentar alguns aspectos relevantes e diferenciais na<br />

produção neobarroca de Severo Sarduy que levam a problematização de questões<br />

identitárias, de gênero e alteridade, através das personagens travestis e da representação de<br />

universos homossexuais. O travesti na obra de Sarduy é uma metáfora da escrita e das<br />

mudanças sociais no mundo de desequilíbrio do neobarroco, além de se apresentar como<br />

questionamento às diferentes representações de gênero: heterogêneas e fragmentadas. O<br />

travesti é uma figura de importância para se repensar a dicotomia masculino/feminino, pois<br />

ele representa o fim da oposição de gênero, enquanto os transexuais acentuariam tal<br />

oposição. Ao analisarmos a obra Colibri, outros aspectos sociais são discutidos, como o<br />

poder e a violência que silenciam e marginalizam a diferença. Nos jogos sexuais realizados<br />

no casarão, o vencedor da luta tem o domínio e o vencido é subjugado, postura comandada<br />

da Regente, uma travesti exigente e impiedosa. A busca de poder aparece até mesmo na<br />

escrita, onde diversos “travessões” anunciam a inserção de outras vozes entre a narração:<br />

desde as que ajudam a contar a história até a representante do pai de Sarduy, quem pretende<br />

manter a ordem e impedir que o narrador assuma uma identidade homossexual.<br />

* Mestranda UFRGS – Literatura Comparada


PALAVRAS-CHAVE: Severo Sarduy – Travestis – Homossexualidade – Neobarroco –<br />

Colibri<br />

Nos textos dos autores neobarrocos, em convergência com os debates sobre a pósmodernidade,<br />

se revela o mal-estar da cultura moderna, suas crises e sua desordem. Enfatizase<br />

o desequilíbrio, a tensão e a fragmentação da sociedade moderna e sua diversidade, assim<br />

como a crítica aos valores e concepções tradicionais na procura de uma forma de<br />

desmascaramento da sociedade e da cultura. No caso do cubano Severo Sarduy, a linguagem<br />

neobarroca expressa, entre outras questões, as contradições e a diversidade do indivíduo, que,<br />

embora marcadas por um contexto cultural cubano e latino-americano, problematizam o<br />

sujeito pós-moderno da cultura ocidental de forma mais ampla, apresentando através de seus<br />

personagens a complexidade dos modelos identitários e das figurações de gênero e<br />

sexualidade. Em um mundo de rupturas e mudanças e, principalmente, de inversões, como o<br />

neobarroco pretende mostrar, as questões apontadas passam pelo mesmo processo de crise e<br />

ressignificação que os demais elementos sociais.<br />

Para Sarduy, a melhor expressão do neobarroco é encontrada na figura dos travestis.<br />

Com seus artifícios, simulações, excessos e mascaramento, o travesti é aproximado à<br />

linguagem literária, pois os planos de intersexualidade seriam análogos aos de<br />

intertextualidade que constituem o objeto literário. O travesti na obra de Sarduy é uma<br />

metáfora da escrita e das mudanças sociais no mundo de desequilíbrio do neobarroco, além de<br />

se apresentar como questionamento às diferentes representações de gênero: heterogêneas e<br />

fragmentadas. O travesti é uma figura de importância para se repensar a dicotomia<br />

masculino/feminino, pois ele representa o fim da oposição de gênero, enquanto os transexuais<br />

acentuariam tal oposição.<br />

Na obra Colibrí, de 1983, Sarduy descreve um ambiente no qual impera a busca pelo<br />

poder e a dominação do outro que, vencido, é humilhado de todas as formas possíveis. Nos<br />

jogos sexuais realizados no casarão, o vencedor da luta tem o domínio e o vencido é<br />

subjugado, agindo sob o comando da Regente, uma travesti exigente e impiedosa. A busca de<br />

poder aparece até mesmo na escrita, onde diversos “travessões” anunciam a inserção de outras<br />

vozes entre a narração: desde as que ajudam a contar a história até a representante do pai de<br />

Sarduy, quem pretende manter a ordem e impedir que o narrador assuma uma identidade<br />

homossexual.<br />

Ao problematizar o gênero e mostrar personagens marginalizados socialmente, Sarduy<br />

traz uma renovação temática ao neobarroco, antes voltado para questões nacionalistas e<br />

americanistas, como é possível ver nas obras de Alejo Carpentier. Mostra-se, assim, que o


“outro” não se apresenta somente na relação Europa- América, mas é criado dentro de uma<br />

mesma sociedade, através do silenciamento e da marginalização da diferença, que vem a<br />

emergir em um jogo de ironia e paródia na obra de Severo Sarduy.<br />

SEVERO<br />

Ainda pouco conhecido no Brasil Severo Sarduy foi autor de um número bastante<br />

considerável de obras divididas entre romances, poemas, ensaios, teatro e pintura. Nascido em<br />

1937, em Camaguey, província localizada no centro de Cuba, já por volta dos vinte anos<br />

colaborava com textos para periódicos locais. Na época do triunfo da revolução cubana,<br />

Sarduy trabalhava no jornal “Revolución” onde pode publicar textos de sua autoria no<br />

suplemento literário.<br />

Em 1959, recebe uma bolsa de estudos para ir a Europa formar-se Crítico de Arte. No<br />

entanto, em 1960, devido a um incidente político entre Cuba e Espanha, local onde cursava<br />

seus estudos, precisa sair do país. É dessa forma que Sarduy chega a Paris, sua residência até<br />

o fim da vida. Em setembro do mesmo ano o governo de Cuba pede aos bolsistas que<br />

regressem ao país de origem, Sarduy pede a prorrogação da bolsa para poder concluir o curso,<br />

mas nunca obtêm resposta. Em 1963 é publicado seu primeiro romance, Gestos, com sucesso<br />

no exterior, traduzido para o francês, italiano, danes, polonês e alemão pouco tempo depois da<br />

publicação. Mas ao que parece não foi bem aceito pelo governo de Fidel Castro, já que o texto<br />

não enaltece a revolução, colocada em segundo plano na trama que privilegia a vida cotidiana<br />

e o trabalho doméstico em detrimento dos feitos revolucionários. O texto de Sarduy, autor<br />

assumidamente homossexual, situação inaceitável no contexto social da época, é silenciado<br />

pela imprensa local e o escritor não é mencionado nas antologias dedicadas a autores cubanos.<br />

No mesmo ano tem problemas com a renovação do visto e seu passaporte cubano nunca é<br />

devolvido. Em 1968, finalmente regulariza sua situação obtendo a nacionalidade francesa.<br />

Desde sua partida em 1959 Sarduy jamais pode regressar a Cuba. Em raríssimas<br />

oportunidades em que seus pais e sua irmã puderam sair do país ele voltou a ver sua família,<br />

não podendo sequer assistir ao enterro do pai, falecido em 1991. Sarduy tornou-se assim<br />

cidadão francês e um viajante incansável, seu interesse por outras culturas o levou a conhecer<br />

grande parte da Europa e da Ásia, além de alguns países da América e da África. As mesclas<br />

culturais estão presentes em sua obra e recentemente uma exposição dedicada aos aspectos do


oriente em sua produção, foi apresentada em sedes do Instituto Cervantes de diferentes<br />

cidades, entre elas Madri, Tetuán e Nova Delhi. 1<br />

Afastado físicamente de seu país, Sarduy ainda assim continuou olhando o mundo<br />

com olhos cubanos. Em meio às alegorias e às máscaras de sua linguagem neobarroca se<br />

encontra como pano de fundo a herança da cultura caribenha. Escreveu praticamente todos os<br />

seus textos em espanhol e mostrou uma alma eternamente estrangeira dentro do meio literário<br />

francês, sentimento cortazariano de estar entre “el lado de acá y de allá”. Aluno e amigo de<br />

Roland Barthes, e com intenso convívio com outros estudiosos e escritores , participando de<br />

Tel Quel e dialogando com os membros da Oulipo, a teoria literária e o meio cultural europeu<br />

marcaram sua formação intelectual. Mas é de Cuba que Sarduy está falando quando escreve<br />

ficção, é a sua paisagem e sua mistura que está presente no cenário de seus textos, mas é Cuba<br />

ao avesso, o outro lado que misturado com a cara oficial já não permite distinguir um plano<br />

do outro. Na Cuba de Sarduy, teatralizada e carnavalesca, os seres “outros” aparecem,<br />

ressurgem do vazio da opressão e nas cores e lantejoulas do universo sarduyano a cultura<br />

latino-americana é reinventada.<br />

<strong>TRAVESTIS</strong><br />

O personagem mais recorrente na obra de Severo Sarduy é o travesti. O autor<br />

desenvolve em alguns de seus ensaios a análise da figura do travesti e do processo de<br />

travestimento. Além disso, esta figura aparece em grande parte de sua obra ficcional. As<br />

análises de Sarduy vão desde uma questão ligada à natureza até a relação com a escrita. Em<br />

seus estudos Sarduy trabalha com a idéia de que o travesti não imita ou procura ser a mulher,<br />

pois ela é apenas uma aparência, que ele não copia, mas simula, sem, no entanto, estarem<br />

reduzidos a um simples simulacro ou “a un fetichismo de la inversión: no ser percibido como<br />

hombre, convertirse en la apariencia de la mujer. Su búsqueda su compulsión de ornamento,<br />

su exigencia de lujo, va más lejos. La mujer no es el límite donde se detiene la simulación.”<br />

1 A exposição “El oriente de Severo Sarduy”, organizada por Gustavo Guerrero, pretende mostrar a interculturalidade na obra<br />

de Sarduy através das relações do autor com o Oriente, desde sua infância em Cuba até suas viagens pela índia, Marrocos e<br />

outros países. A exposição mostra fotos tiradas durante as viagens, pinturas de Sarduy e objetos de coleção particular. Em<br />

Madrid as visitas aconteceram de 09/04/2008 a 25/05/2008.<br />

Para mais informações: http://www.cervantes.es/FichasCultura/Ficha48262_00_1.htm


(SARDUY, 1999, p.1298 2 ). O travesti se torna um tipo de “super-mulher”, ao ponto em que<br />

as mulheres o imitam. Mas justamente pelo exceso ele se denuncia, se mostra como ser não<br />

feminino, como comenta Sarduy “Lacan diría que se trata de una fantasía si se intenta ser toda<br />

la mujer, ya que según él la mujer no existe, justamente, más que por el hecho de no ser ese<br />

todo” (SARDUY, 1999, p.1298)<br />

Sarduy comenta que “[r]elacionar al trabajo corporal de los travestis a la simple<br />

manía cosmética, al afeminamiento o a la homosexualidad es simplemente ingenuo: ésas no<br />

son más que las fronteras aparentes de una metamorfosis sin límites, su pantalla “natural””<br />

(SARDUY, 1999, p.1298). Ele compara a imagem dos travestis à alguns insetos,<br />

principalmente as borboletas,travestis naturais pelo excesso de ornamentos, o luxo e o<br />

exagero das cores. Partindo da idéia de mimetismo de Roger Callois, dividida em travestismo,<br />

camuflagem e intimidação, Sarduy atribui ao “travesti-humano” a convergência das três<br />

possibilidades desse mimetismo.<br />

O travesti propriamente dito, através de uma pulsão ilimitada de metamorfose e de<br />

transformação não se reduz à imitação de um modelo real, mas se apresenta como busca de<br />

uma irrealidade infinita e aceitada como tal, fugidia e inalcançável, de ser cada vez mais<br />

mulher até ultrapassar os limites da mulher. (SARDUY, 1999, p 1267) Em relação à<br />

camuflagem, Sarduy diz que “nada asegura que la conversión cosmética – o quirúrgica – del<br />

hombre en mujer no tenga como finalidad oculta una especie de desaparición, de<br />

invisibilidad” (SARDUY, 1999, 1268). Busca da anulação do macho, sua separação deste<br />

“clan”, marcação da diferença, deficiência ou excesso que o afastam também das mulheres<br />

levando à desaparição ou anulação. Por fim, aponta a idéia de intimidação, argumentando que<br />

é freqüente o desajuste, a falta de cuidado no barbear, os artifícios visíveis e suas máscaras<br />

que paralisam ou assustam. (SARDUY, 1999, p. 1268). E acrescenta: “El animal-travesti no<br />

busca una apariencia amable para atraer (ni una apariencia desagradable para disuadir), sino<br />

una incorporación de la fijeza para desaparecer.” (SARDUY, 1999, p 1269).<br />

Ainda seguindo o modelo de Callois e a analogia com os insetos, Sarduy conclui que<br />

mesmo na natureza a camuflagem é inútil e<br />

2 Ensaio La Simulación do livro La Simulación.<br />

“no representa más que un deseo irrefrenable de gasto, de lujo peligroso, de<br />

fastuosidad cromática, una necesidad de desplegar, aun si no sirven para nada (...)<br />

colores, arabescos, filigranas, transparencias y texturas, tendremos que aceptar al<br />

proyectar este deseo de barroco en la conducta humana, que el travesti confirma<br />

solo” (SARDUY, 1999, p.1269).


Comenta que existe na natureza a necessidade de disfarce, de se passar por outro, sem<br />

derivar necessariamente da competição entre espécies ou da seleção natural.<br />

Outro tema abordado por Sarduy em relação ao travestis é sua comparação com os<br />

transexuais, que estabelece uma perspectiva interessante para se (re)pensar as questões de<br />

gênero. O travesti tem assim um lado “avesso e contrario”, que é o transexual, que através da<br />

correção e do sacrifício do corpo, remodela o físico e realiza o imaginário. O autor diz que a<br />

dicotomia e oposição dos sexos é abolida ou reduzida a critérios “inoportunos ou<br />

arqueológicos” no caso do travesti (SARDUY, 1999, p.1300 3 ), enquanto no caso do<br />

transexual além de mantida é acentuada, ele aceita passar ao “outro lado”, sua busca é a troca<br />

de um sexo pelo outro, associando sua identidade de gênero ao órgão sexual. Sarduy comenta<br />

que “[e]l travesti remite a la arqueología, a otro mito complementario y reconfortante, el del<br />

andrógino, que se sitúa en un tiempo adánico, en un tiempo antes del tiempo y de la<br />

separación física de los sexos”, porque não pertence a um lado nem ao outro, é<br />

indiferenciável. O transexual por sua vez, “se sitúa al final de la parábola de los sexos: en su<br />

oscilación, en ese punto en que su contradicción es a la vez mantenida, acentuada y borrada.”<br />

(SARDUY, 1999, p.1300).<br />

<strong>TRAVESTIS</strong>MO E ESCRITA<br />

Severo Sarduy aproxima o travesti e a escrita literária ao apresentar como centro a<br />

inversão. Um mundo “ao contrário”, uma inversão que está além da sexual, inversão de<br />

papéis, de modelos e inversão da realidade, que se apresenta como simulação escondida atrás<br />

da máscara da maquiagem e do exagero. Ao analisar o romance El lugar sin limites de José<br />

Donoso, cuja protagonista é a travesti Manoela, Sarduy apresenta um plano de inversões<br />

possíveis no texto e na personagem: “[e]l significado de la novela, más que el travestismo, es<br />

decir, la apariencia de la inversión sexual, es la inversión en si” (SARDUY, 1999, p.1148 4 ).<br />

Manoela, segundo Sarduy, se significa como mulher, mas funciona como homem, pois<br />

é seu lado masculino que atrai a personagem Japonesa. No entanto, no ato sexual, Manuela é<br />

passiva, marcando assim uma outra inversão no interior da inversão. “No femenino – por eso<br />

se trata de una inversión dentro de otra y no de un simple regreso al travestismo inicial –, sino<br />

3 Ensaio II Pintado sobre um cuerpo do livro La Simulacion.<br />

4 Ensaio Escritura/Travestismo do livro Escrito sobre un cuerpo.


de hombre pasivo, que engendra a su pesar.” (SARDUY, 1999, p.1148). O autor estabelece o<br />

seguinte esquema:<br />

1º um homem se traveste em mulher<br />

2º que atrai pelo que de home há nela<br />

3º que é passivo no ato sexual<br />

Este esquema de inversões é, para Sarduy, o esquema do texto literário, pois “[e]s lo<br />

que constituye la supuesta exterioridad de la literatura – la página, los espacios en Blanco, lo<br />

que de ellos emerge entre las líneas, la horizontalidad de la escritura, la escritura misma, etc. –<br />

lo que nos engaña” (SARDUY, 1999, p.1149). A aparência e as relações entre os significantes<br />

que se criam no plano da página “son los que un prejuicio persistente ha considerado como la<br />

faz exterior, como el anverso de algo que sería lo que esa faz expresa: contenidos, ideas,<br />

mensajes, o bien una “ficción”, un mundo imaginario, etecétera.” (SARDUY, 1999, p.1150).<br />

Sarduy teoriza a respeito da suposição, do pré-conceito de que existe uma realidade<br />

exterior ao texto. O autor comenta que os mais ingênuos supõem que essa realidade que o<br />

autor se limitaria a expressar, a traduzir, e que seria responsável pela materialidade da<br />

escritura, é a realidade do mundo que nos rodeia e que os mais astutos propõem uma entidade<br />

imaginária, um mundo fantástico. Mas para Sarduy, qualquer uma destas hipóteses estaria<br />

ligada ao mito de uma origem, de algo primitivo e verdadeiro que o autor levaria ao branco da<br />

página. No entanto, a aparente exterioridade do texto, a superfície, seria uma máscara que nos<br />

engana, mas se existe uma máscara ela não esconde mais que a si mesma, como uma<br />

superfície que impede que a consideremos como tal, por nos fazer acreditar que há algo por<br />

trás. “La máscara nos hace creer que hay profundidad, pero lo que ésta enmascara es ella<br />

misma: la máscara simula la disimulación para disimular que nos es más que simulación”<br />

(SARDUY, 1999, p.1150).<br />

O travestismo seria a melhor metáfora da escrita por mostrar a coexistencia em um só<br />

corpo de significantes masculinos e femininos: a tensão, a repulsão e o antagonismo que se<br />

cria entre eles. Sarduy afirma que os planos de intersexualidade são análogos aos de<br />

intertextualidade que compõem o objeto literário. “Planos que dialogan en un mismo exterior,<br />

que se responden y completan, que exaltan y definen uno al otro: esa interacción de texturas<br />

lingüísticas, de discursos, esa danza, esa parodia es la escritura.” (SARDUY, 1999, p.1151).


O processo de escrita é, para Sarduy, semelhante ao processo da tatuagem, pois a<br />

linguagem literária cifra na linguagem informativa os verdadeiros signos da significação. Mas<br />

assim como em uma tatuagem, isso só é possível através de uma ferida e de uma perda. “Para<br />

que una masa informativa se convierta en texto, para que la palabra comunique, el escritor<br />

tiene que tatuarla, que insertar en ella sus pictogramas” (SARDUY, 1999, p.1154 5 ).<br />

O autor acredita em uma nova literatura onde a linguagem seja o espaço para a ação de<br />

cifrar, lugar de transformações ilimitadas. “El travestismo, las metamorfosis continuas de<br />

personajes, la referencia a otras culturas, la mezcla de idiomas, la división del libro en<br />

registros (o voces) serían, exaltando el cuerpo – danza, gestos, todos los significados<br />

somáticos –, las características de esa escritura.” (SARDUY, 1999, p.1154) Para Sarduy os<br />

cenários perfeitos para esse tipo de ficção seriam o carnaval, o circo ou os teatros eróticos.<br />

Além das censuras e do pensamento comum, a literatura dialogaria com textos<br />

contemporâneos a ela e também com todos os anteriores. “Literatura en que todas las<br />

corrientes, no del pensamiento sino del lenguaje que nos piensa, se harían visibles,<br />

confrontarían sus texturas en el ámbito de la página” (SARDUY, 1999, p.1154). Esse tipo de<br />

texto, além de evidenciar o próprio fazer literário, pensando na simulação e na idéia de<br />

literatura como “travestismo”, estaria colocando em destaque a intertextualidade, já citada<br />

como plano análogo à intersexualidade. Onde o deslocamento, as vozes e as citações<br />

estabeleceriam a ponte com toda a literatura no interior de uma mesma língua e dai até o nível<br />

do universal.<br />

<strong>TRAVESSÕES</strong> E <strong>COLIBRÍ</strong><br />

A obra Colibrí, lançada em 1984, considerada a obra de regresso de Severo Sarduy ao<br />

tema hispano-americano, parece cumprir com muitas das teorias propostas pelo autor em seus<br />

ensaios. Nas diferentes vozes que narram a trama e no ir e vir dentro do plano do texto de uma<br />

suposta realidade além da história do bailarino Colibrí, o leitor se depara com um incessante<br />

jogo de simulação e mascaramento, estabelecido através de uma escritura em abismo. As<br />

afetadas vozes que em diversos momentos interrompem o narrador principal, se encarregam<br />

de mostrar outras perspectivas das cenas ou até mesmo acrescentar ou corrigir as informações<br />

relatadas. O tom exagerado e teatral das narradoras insolentes permite ver que não estão fora<br />

5 Ensaio La aventura (textual) de un coleccionista de pieles (humanas) do libro Escrito sobre un cuerpo.


do contexto da trama, mas pertencem ao mesmo universo de plumas e afetações do bordel da<br />

travesti Regente.<br />

Entre gays e travestis, surge no meio da narração uma palavra de ordem. No capítulo<br />

intitulado Regresso ao país natal, durante uma das “saídas” do plano narrado, na realidade<br />

do narrador aparece seu pai, empenhado em impedir que o filho se torne “pássaro”. Em<br />

primeira pessoa, o narrador vai descrevendo a chegada do pai ao pátio no momento em que<br />

queima as partes do texto que foram acrescentadas pelas demais vozes, que lhe haviam<br />

roubado o relato: “sacrifico as páginas mais igminiosas que me impuseram essas bandoleiras,<br />

as que registram, com toscos achados de estilo, o cativeiro e a afronta de Colibri” (SARDUY,<br />

1989, p.105). A queima dos papéis representa um ato de censura. O texto vai para o fogo, para<br />

que a figura de ordem, o pai, não possa ver a identidade gay contida nele. O progenitor<br />

intervém: “– Outra vez queimando papéis! Que mania essa tua, menino! Como se já não<br />

perdesses bastante tempo escrevendo-os; depois os passas pelo fogo.” (SARDUY, 1989,<br />

p.105) E reclamando da fumaça que inunda o pátio segue: “vou te falar com todas as letras. Já<br />

és um homem, e dos Sarduy, até agora, não houve nenhum pássaro. E eu não quero que<br />

ninguém me aponte na rua.” (SARDUY, 1989, p.106) E, se referindo as frutas de plástico que<br />

são descritas na cena em que se encontra Colibrí e que na mudança de plano narrativo<br />

aparecem na mesa do narrador, conclui: “Assim sendo, agora mesmo vais queimar também<br />

essas quatro merdas. Onde já se viu um homem brincar com frutinhas de purpurina”<br />

(SARDUY, 1989, p.106).<br />

A ordem e a censura também fazem parte da trajetória de Colibrí. O exótico<br />

personagem, chega ao casarão, “num meio dia ardente, dormindo na proa de uma barcaça de<br />

carvão cinzenta e achatada, sem clarabóias nem bandeiras, dos povoados lamacentos do<br />

estuário” 6 (SARDUY, 1989, p.11). Provindo de outro povoado, Colibrí canta em um dialeto<br />

“florestal e rouco”. Seus volumosos e longos cabelos louros, quase albinos, contrastavam com<br />

suas espessas sobrancelhas negras e unidas “como se pertencessem a outro corpo” (SARDUY,<br />

1989, p.11). Completam “a população” do bordel homossexual, as baleias, “velhotes<br />

libidinosos e solventes” (SARDUY, 1989, p.11) e os caçadores, jovenzinhos desempregados,<br />

mas ambiciosos, que chegavam ao local, provindos da mesma região de Colibrí, prontos a<br />

satisfazer os desejos e caprichos dos velhos.<br />

Os espetáculos perversos e sádicos, não tinham hora para começar, bastava que algum<br />

caçador “decretasse, com voz sobressaltada pela proximidade de uma submissão voluptuosa, a<br />

abertura dos jogos” (SARDUY, 1989, p.13). Coordenados pela Regente, uma baleia travestida<br />

6 ambiente aquático de transição entre um rio e o mar.


de matrona, e seus seguidores, a Anã e Gigantinho, as lutas representam momentos de<br />

humilhação e subjugação do próximo, através da violência física e moral.<br />

“Quando alguma chave mestra inclinava para frente um corpo débil e o derrubava de<br />

bruços sob o peso autoritário de seu rival – que um olha de aceitação promovia<br />

agora à posição de amo –, o vencedor caia por sua vez, joelho a terra, e fechava as<br />

garras em torno dos punhos bloqueados e do pescoço do subjugado. A boca muito<br />

perto do ouvido, azorragava-o então com as ofensas – sempre as mesma – de sua<br />

lavra.” (SARDUY, 1989, p.14)<br />

A cena termina com mais humilhações para o vencido, que têm a boca aberta a força<br />

pelo amo, que lhe cospe na cara as folhas de hortelã mastigadas durante o jogo para manter a<br />

excitação dos pares. Para desafiar Colibri, novo na casa, é escolhido o mais feroz atacante, o<br />

Japonesão. Contrariando a expectativa do público, Colibri se defende dos golpes do japonês e<br />

o lutador nipônico em uma tentativa de golpear o pássaro, acaba estatelado na parede onde<br />

estava pintada uma paisagem invernal, enquanto o belo loiro desaparece da luta.<br />

A vitória de Colibrí lhe da um status quase sagrado diante das baleias, que já começam<br />

a leiloá-lo. Ao voltar à cena, Colibri aceita com desdém os elogios e os dólares dos velhacos<br />

libidinosos. É neste momento, em que o pássaro está rodeado pela aura da vitória que a<br />

Regente começa a desejar o dançarino para si, sentimento que a manterá até o fim em uma<br />

busca incansável pela possessão do pássaro fugidio. Para dissimular sua febre, chega a<br />

oferecer o novato para clientes que já sabia comprometidos.<br />

Colibrí acaba fugindo e leva consigo o corpo do enorme Japonesão ainda desmaiado<br />

pelo choque contra a parede. É a partir daí que o desejo da Regente ganha uma força insana<br />

que entre fugas e enganos a levará a uma obsessão descontrolada pela posse do bailarino, que<br />

se verá inatingível e ocasionará o seu fim: a perda do estabelecimento para o próprio Colibrí.<br />

No grande final do loiro dançarino, este mostrará como mudam as perspectivas dos que<br />

atingem o poder. Como novo gerente do bordel, Colibrí antes caça, se transforma no algoz de<br />

seus próprios companheiros, autoritário e impiedoso até mesmo com o Japonesão com quem<br />

vive momentos de prazer e aparente afeto. A trama de Colibrí aparece como espelho do<br />

desejo e da posse e as conseqüências advindas destes. A chegada do dançarino ao poder,<br />

possível metáfora da revolução cubana, mostra como aquele que antes foi vítima assume<br />

facilmente o lugar de ditador, frustrando as esperanças das baleias que viam sua vitória como<br />

uma possibilidade de mudança positiva nas atividades do bordel.<br />

A crueldade do novo administrador se mostra já de inicio, quando manda colocar fogo<br />

no casarão para que os inertes viventes saiam do recinto: “– Para que saiam da toca, como


saúvas – gritou Colibrí ao acender a pira” (SARDUY, 1989, p.140). Quando finalmente<br />

entram na casa para tomar posse do que sobrou em meio ao incêndio armado pelo pássaro, o<br />

Japonesão explora o terreno conquistado e encontra em um dos armários uma “tentadora<br />

garrafinha de gim, herméticamente fechada e virgem” (SARDUY, 1989, pp.143-4) mas é<br />

surpreendido por Colibrí que enérgico repreende e castiga “com uma contundente bofetada,<br />

depois de se aproximar com passos marciais, o benigno atrevimento de seu companheiro”<br />

(SARDUY, 1989, p.144). E com voz firme anuncia as novas regras do lugar: “– Acabaram-se<br />

para sempre, ouviram bem? – acrescentou vociferando em torno de si, como se o escutasse<br />

uma multidão mansa –, para sempre nesta casa o álcool e a erva. Acabou-se tudo que<br />

corrompe e debilita” (SARDUY, 1989, p.144). Espatifando a garrafa contra os espelhos,<br />

Colibri se dirige ao nipônico dando mais uma ordem: “Além disso – arrancou-lhe com uma<br />

chicotada as frutinhas – deixe de frescura. O poder é coisa de macho. Senão te mando sozinho<br />

para o lamaçal. Para que apodreças.” Fazendo alusão à figura do pai que manda Sarduy<br />

queimar as frutas purpurinadas que se encontram no pátio.<br />

Como comandante, Colibrí afirma uma identidade enérgica, de “macho”, pois o poder<br />

não é coisa para quem não tem essa postura. Anula assim qualquer possibilidade de<br />

reconhecimento de seu companheiro Japonesão, como seu par amoroso ou como figura<br />

igualitária no poder. Mesmo ele, o fiel companheiro de toda a jornada contra a Regente é<br />

passível de abandono, afirmando assim seu lugar de subjugado diante de Colibrí. No entanto,<br />

quando se vê sozinho na intimidade do mezanino, Colibrí se olha no espelho e se preocupa<br />

com a aparência, atitude não condizente com a estereotipada imagem do macho.<br />

Foi com gesto de assombro que, a seus próprios olhos, o identificou.<br />

- Meu Deus - se disse, quanto cabelo perdido.<br />

E com a ponta dos dedos acariciou suas entradas; alisou a gaforinha: uma mecha<br />

clara ficou-lhe entre as mãos.<br />

- As comissuras dos lábios desceram. Os olhos já não têm brilho. A pele está<br />

morrendo. E estas sobrancelhas, que não combinam com o resto. (SARDUY, 1989,<br />

p.145)<br />

Como último recurso da anulação de sua antiga identidade, Colibrí acaba com sua<br />

marca física: as negras sobrancelhas são tingidas com água oxigenada. Já com novo visual e<br />

batendo palmas, Colibrí desce as escadas e ordena: “– É preciso dar uma boa mão de tinta<br />

vermelha. E colocar lâmpadas. Vamos ver se trazem dois ou três rapagões do estuário, que<br />

dancem um pouco, para animar isto.” (SARDUY, 1989, p.146). Mostrando que a exploração<br />

dos jovens corpos e as danças não estão proibidas em sua administração, não sendo, portanto,<br />

consideradas por ele como fatores de corrupção ou debilidade. Na hipocrisia de sua postura


machista, Colibrí ainda pretende divertir-se com os shows dos jovens dançarinos, como uma<br />

vez a velha Regente se extasiou com o dele, se transformando assim em uma mera<br />

continuação ou duplo da velha matrona.<br />

Na trama onde não há nenhuma mulher é possível ver que as relações de dominação se<br />

estabelecem não apenas na dicotomia masculino/feminino. As diferentes representações de<br />

sexualidade apresentadas no texto mostram que entre homens, gays ou travestis, são impostas<br />

com a mesma violência as subjugações e o poder dos mais fortes. Da mesma forma<br />

reaparecem, ainda que sob o traço da ironia e da paródia, a relação entre a sexualidade gay e a<br />

violência, por tanto tempo aparentadas. E na complexidade das figurações de gênero,<br />

diferentes identidades da sexualidade e da postura homossexual são mostradas através do<br />

protagonista e de seus coadjuvantes assim como a censura que tenta obscurecer suas<br />

manifestações.<br />

Embora não tenha sido um manifestante das causas de gênero e homossexuais, esses<br />

temas estão presentes na obra de Sarduy o que leva inevitavelmente a um questionamentos<br />

das posições sociais. Como argumenta em sua tese Antônio Francisco de Andrade Júnior 7 , na<br />

comparação entre Sarduy e Nestor Perlonguer, “as propostas poéticas de Perlongher e de<br />

Sarduy não solicitam uma nova reconstrução do gênero e da sexualidade através da literatura,<br />

e sim a abertura às tensões entre a linguagem e a exterioridade, a partir das manifestações da<br />

experiência homossexual que já estavam presentes em seu tempo.” (ANDRADE JUNIOR,<br />

2011, p.56).<br />

Essas manifestações, no entanto, sufocadas pelos regimes repressivos emergem na<br />

literatura ocupando um lugar no meio social, ganhando existência e visibilidade. O que só se<br />

torna possível em um contexto de exílio, se levarmos em conta que os homossexuais foram<br />

duramente perseguidos pelo regime cubano, ocasionando no meio literário a ausência do<br />

nome de Severo Sarduy e outros escritores no cânone da literatura nacional do país. A<br />

homossexualidade, considerada como uma doença, precisava ser curada, estes indivíduos<br />

necessitavam ser “endireitados”, perder a frescura como o Japonesão de Colibrí e não luzirem<br />

nos textos ficcionais. Ainda que Sarduy criticasse a busca da “verdade” na trama do texto, a<br />

literatura se mostra também como espaço de significação daquilo que é silenciado na<br />

realidade extra-textual. Lugar de representação do outro, da emergência da heterogeneidade<br />

identitária e do reconhecimento da alteridade.<br />

7<br />

Por uma comunidade desejante: Um estudo sobre néstor perlongher e severo sarduy. Tese defendida em 2011 na<br />

Universidade Federal Fluminense (UFF)


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

ANDRADE JÚNIOR, Antônio Francisco de. Por uma comunidade desejante: Um estudo<br />

sobre néstor perlongher e severo sarduy. (Tese de doutorado) Niterói: na Universidade<br />

Federal Fluminense (UFF), 2011.<br />

SARDUY, Severo. Colibri. Tradução de Sieni de M. Campos. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.<br />

______ Escrito sobre um cuerpo. In___. Obra completa. Vol. 2 Colección Archivos. Madri:<br />

ALLCA XX,1999.<br />

______ La Simulación. In___. Obra completa. Vol. 2 Colección Archivos. Madri: ALLCA<br />

XX,1999.

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