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Entrevista com a Magdalena

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<strong>Entrevista</strong> <strong>com</strong> a <strong>Magdalena</strong><br />

Éuládo Clímax - Caros ouvintes da Rádio Difusão Parvónia, sejam bemvindos<br />

a mais um programa semanal “conta-me <strong>com</strong>o foi”. Hoje tenho<br />

<strong>com</strong>igo em estúdio, uma menina especial. Ela irá expor a todos os nossos<br />

ouvintes, a sua história <strong>com</strong>ovente, capaz de tocar no fundo do coração, até<br />

à pessoa mais insensível e cruel deste mundo. Vai-nos contar todos os<br />

momentos de angústia e amargura, por que passou. Para tal, vamos utilizar<br />

um nome fictício, de modo que a menina não seja reconhecida, nem venha a<br />

sofrer futuras represálias. Sem mais delongas, vamos dar início à<br />

entrevista... Olá!<br />

<strong>Magdalena</strong> – Olá.<br />

EC – Então estás boa?<br />

M – Sim.<br />

EC – Então diz-me lá, <strong>com</strong>o te chamas?<br />

M – Madalena.<br />

EC – Mau. Então o que foi que nós <strong>com</strong>binámos?<br />

M – Hm... aaa... Não me lembro.<br />

EC – Nós tínhamos <strong>com</strong>binado que não ias usar o teu nome verdadeiro, foi<br />

ou não foi?<br />

M – Sim.<br />

EC – Portanto, quando eu perguntar o teu nome, tu respondes <strong>Magdalena</strong>,<br />

percebeste?<br />

M – Sim.<br />

EC – Ou queres que os meninos e meninas saibam quem tu és, e gozem<br />

contigo lá na escola e digam: “Olhá Madalena! Perdeu os pais, mas que<br />

cena! Nhenha nhenha! Toma toma!”.<br />

M – Não.<br />

EC – Então vamos lá outra vez: <strong>com</strong>o te chamas?<br />

M – <strong>Magdalena</strong>.<br />

EC – E quantos anos tens?<br />

M – Sete.<br />

EC – Então e ainda estás muito abalada pelo que passaste?<br />

M – Não sei.<br />

EC – Não sabes ou não queres contar?<br />

M – Não sei. Não sei o que quer dizer abalada...<br />

EC – Ah, então eu faço a pergunta de outra forma: <strong>com</strong>o te sentes <strong>com</strong> tudo<br />

o que te aconteceu?<br />

M – Assim-assim.<br />

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EC – Queres-me contar <strong>com</strong>o tudo se passou?<br />

M – Sim.<br />

EC – Então vá, conta-me <strong>com</strong>o é que tudo aconteceu...<br />

M - Então... Eu fui <strong>com</strong> os meus papás passar férias... Eu não queria, mas<br />

eles obrigaram-me...<br />

EC – Quer dizer que eles te obrigaram?<br />

M – Sim. Eu não gosto muito de férias... a maior parte do tempo não se faz<br />

nada... Prefiro estar na escola e aprender... Fazer desenhos... Brincar <strong>com</strong> os<br />

meus amigos... Mas os meus papás não gostam de trabalhar, e eu, para não<br />

ficar sozinha em casa, acabei por ir <strong>com</strong> eles.<br />

EC – Eles costumavam obrigar-te a fazer coisas que não querias?<br />

M – Sim.<br />

EC – Que coisas?<br />

M – Eles obrigavam-me a <strong>com</strong>er coisas que não gosto, <strong>com</strong>o peixe cozido e<br />

alface, enquanto eles <strong>com</strong>iam coisas boas que eu também gosto... Do tipo<br />

pizzas e hambúrgueres.<br />

EC – Estou a ver... E que mais coisas é que eles te obrigavam?<br />

M – Obrigavam-me a deitar mais cedo, enquanto eles saíam à noite, para se<br />

divertir.<br />

EC – Ok. Então e conta-me lá... Quando é que chegaram ao local para as<br />

férias?<br />

M- Foi há uns dias.<br />

EC – Uma semana?<br />

M – Não sei... Só sei contar até sete.<br />

EC – Então! Pareces parva! Uma semana tem sete dias.<br />

M – Não sei...<br />

EC – Então e sabes ao menos quanto tempo vinham de férias?<br />

M – Não sei... Só me lembro da minha mamã falar em quizena ou quinzena,<br />

e que era muitos dias.<br />

EC – Ah, ok. E os teus pais costumam ir de férias muitas vezes?<br />

M – Sim.<br />

EC – E costumas ir <strong>com</strong> eles?<br />

M – Não.<br />

EC – Então quando eles vão de férias, tu ficas sozinha?!<br />

M – Não, fico <strong>com</strong> os meus avós.<br />

EC – E porque não ficaste desta vez?<br />

M – Porque os meus avós também foram de férias.<br />

EC – Estou a <strong>com</strong>preender... E assim, tiveste de ir <strong>com</strong> os teus pais.<br />

M – Sim.<br />

EC – Então e pressagiaste algo inusitado nas suas posturas e aprestos para o<br />

intuito deste interregno laboral?<br />

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M - … Hã?<br />

EC – Perguntei-te se viste alguma coisa diferente nos teus pais, quando<br />

faziam os preparativos para as férias?<br />

M – Sim.<br />

EC – A sério? O quê?<br />

M – Como disseram que íamos ficar muitos dias, achei que eles levaram<br />

pouca roupa para eles.<br />

EC – Para eles? Então e para ti?<br />

M – Para mim levaram a minha roupa toda. Até levaram as minhas bonecas<br />

preferidas: a Lili Cacá e a Babá Pipi.<br />

EC – Por acaso não serão essas bonecas que tens aí?<br />

M – São.<br />

EC – Mas se são as tuas bonecas preferidas, porque é que estão tão sujinhas<br />

e porquinhas? E <strong>com</strong> as cabeças machucadas... Essa aí nem tem pernas!?<br />

M – Sim.<br />

EC – Mas podes explicar porque é que as bonecas estão assim?<br />

M – Então, a Lili Cacá deu o meu papá, e a Babá Pipi deu a minha mamã...<br />

EC – Sim, mas e porque estão nesse estado?<br />

M – Já não gosto delas. E vão ficar mais porcas e malcheirosas, para dá-las<br />

de volta aos meus papás, quando os ver.<br />

EC – Ainda não <strong>com</strong>preendi muito bem, mas continuando... Ficaram num<br />

hotel, não foi?<br />

M – Sim.<br />

EC – E <strong>com</strong>o foram os primeiros dias?<br />

M – Foram bons. Diverti-me muito, corri e brinquei, fui para a piscina,<br />

gostei muito. Os meus papás é que não. Tavam sempre a embirrar <strong>com</strong>igo e<br />

a dizer para estar quieta.<br />

EC – Foi assim até ao dia do desaparecimento?<br />

M – Sim.<br />

EC – Queres-me contar <strong>com</strong>o foi o desaparecimento?<br />

M – Sim... Eu já estava um pouco cansadita, depois de ter brincado muito o<br />

dia todo. Quando chegou a hora do jantar, eu não tinha fome, e fiquei no<br />

quarto. Foi a primeira vez que não jantei. Lembro que os meus papás<br />

ficaram contentes por eu não ir. Na altura não percebi. Eles depois<br />

arranjaram-se rápido, e disseram que iam jantar a um restaurante ali perto,<br />

e que não se iam demorar.<br />

EC – Quer dizer que os teus pais ficaram contentes por não ires?<br />

M – Sim.<br />

EC – Muito estranho, não achas?<br />

M – Sim.<br />

EC – Então e notaste mais alguma coisa estranha?<br />

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M – Sim.<br />

EC – Então conta!<br />

M – Quando a minha mamã veio deitar-me e dar um beijo, eu perguntei<br />

qual era o nome do restaurante, e ela disse “O Azular”. Depois quando já<br />

estavam os dois à porta, o meu papá diz adeus, e diz que vão jantar ao “De<br />

Mansinho”. Achei ali uma grande incongruência.<br />

EC – Desculpa? Incongruquê?<br />

M – Incongruência. Foi uma palavra nova que aprendi na escola. Quer dizer<br />

quando uma pessoa diz uma coisa, e depois diz outra. Eu aprendi bem,<br />

porque isso é o que os meus papás fazem <strong>com</strong>igo.<br />

EC – Ah... Então quer dizer que eles te mentem, ou neste caso, mentiam?<br />

M – Sim. Lembro-me várias vezes a minha mamã dizer: “vá, <strong>com</strong>e lá a<br />

<strong>com</strong>ida, que tu gostas de batata frita”, mas no prato não havia nenhuma<br />

batata frita, mas sim peixe. Ou outra vez que a minha mamã me quis vestir<br />

uma blusa suja, e eu não queria, porque estava suja, e ela ainda teve o<br />

descaramento de dizer que já a tinha lavado. Ou outra vez <strong>com</strong> o meu papá,<br />

que disse que vinha brincar <strong>com</strong>igo, mas que eu tinha de esperar, pois<br />

estava muito ocupado a ver televisão, mas no entanto só estava a dar<br />

novelas, e eu sei que ele não gosta de ver novelas, mas fingiu que estava a<br />

gostar, só pra não brincar <strong>com</strong>igo, e só quando me deu sono e fui dormir, é<br />

que parou de ver televisão. Ou outra vez no Natal em que o meu papá me<br />

disse pra não <strong>com</strong>er chocolates, pois já estavam fora de prazo e que faziam<br />

mal, e depois mais tarde vi ele acabar <strong>com</strong> os chocolates, e estava todo<br />

satisfeito, e depois viu-me eu olhar pra ele e fez cara feia e fingiu estar<br />

doente... Até se levantou a correr <strong>com</strong> a mão na barriga, mas não foi prà<br />

casa de banho, foi para o quarto, e foi só alguns minutos. Quando voltou de<br />

lá, já estava normal outra vez. Quer que continue?<br />

EC – Não, já chega de exemplos! Existe aí um certo padrão. E assim, eles<br />

foram para o restaurante, e tu foste dormir, certo?<br />

M – Não, não foi bem assim, e ainda bem que me faz essa pergunta, pois<br />

permite que eu responda a certos energúmenos da <strong>com</strong>unicação social, e<br />

mesmo de um certo zunzum que se tem vindo a disseminar pelas ruas, e<br />

mesmo em alguns sites na internet.<br />

EC – Estou surpreso Madalena! Estás a falar <strong>com</strong>o uma mulher adulta!<br />

M – Sim, eu também estou surpresa <strong>com</strong>igo. Deve ser de escutar o canal<br />

parlamento, e de estar a ler diversas obras filosóficas. Enfim... Estou a seguir<br />

os conselhos do meu advogado. O canal parlamento é para aprender a<br />

mentir e omitir informação, duma forma convincente. As obras filosóficas<br />

são para desenvolver um raciocínio lógico, rápido e encadeado. No fundo é<br />

uma preparação, para não dar barraca quando for à audiência em tribunal.<br />

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EC – Estou a perceber... Então se assim é, continua a falar dessa forma, por<br />

favor! O que é que querias esclarecer?<br />

M – Eu queria deixar aqui bem claro, na Rádio Difusão Parvónia, que não é<br />

de todo verdade, que eu tenha deixado os meus pais abalar, sem tomar<br />

quaisquer precauções. Quer isto dizer que, antes de eles saírem, eu disselhes<br />

especificamente, para levarem um telemóvel, o do meu pai, e o<br />

telemóvel da minha mãe ficou em minha posse. Depois, quero aqui afirmar,<br />

que é totalmente falso, que eu não tenha telefonado para eles, nessa noite.<br />

Também é manifestamente enganador, que eu tenha estado mais de uma<br />

hora, sem lhes telefonar. É uma calúnia injuriosa, que eu tenha estado sem<br />

telefonar mais de meia-hora. É uma absoluta aleivosia que eu tenha estado<br />

sem telefonar mais de quinze minutos. Por fim, é uma ignóbil infâmia, que<br />

eu tenha estado mais de cinco minutos sem telefonar. A verdade é esta e<br />

mais nenhuma: eu telefonei aos meus pais, no mínimo, uma vez, em cada<br />

trinta segundos. Foram sempre dez segundos para marcar o número e<br />

esperar a minha mãe atender, mais dez segundos, para ela me contar onde<br />

estavam, e depois mais dez segundos, em que eu pousava o telemóvel ao<br />

lado da minha almofada, e dormia um pouco. Portanto, eu mantive sempre<br />

um reporte meticuloso e actualizado dos seus paradeiros, até,<br />

evidentemente, ter-me deixado dormir.<br />

EC – Quando foi a última vez que telefonaste para eles?<br />

M – Já era bem perto da uma da manhã.<br />

EC – Uma da manhã? E o que eles responderam?<br />

M – Ora, disseram-me que ainda se encontravam no restaurante, e que<br />

estavam a pedir a sobremesa.<br />

EC – E tu acreditaste?<br />

M – Óbvio que não! Se estivessem no café, ainda acreditava, mas nas<br />

sobremesas, nem pensar.<br />

EC – Então e o que fizeste?<br />

M – Eu pensei para mim “Quando vocês chegarem, logo vos dou <strong>com</strong> as<br />

sobremesas nas cabeças” e pousei o telefone. Lembro-me ainda, durante a<br />

conversa, de me parecer ouvir um avião, em pano de fundo. Como achei<br />

essa conjuntura algo irregular, decidi para mim, em esclarecer essa situação<br />

toda, no próximo telefonema, mas foi precisamente aí, que me deixei<br />

adormecer.<br />

EC – E quando foi que deste pela falta deles?<br />

M – Foi quando acordei por volta das seis da manhã.<br />

EC – Algo fez-te acordar? Algum pesadelo? Ou pressentimento?<br />

M – Não, eu estava a dormir muito bem, a sonhar que era uma princesa, e<br />

que estava a marchar no meu pónei e que dirigia-me para a floresta<br />

encantada, apanhar umas amoras, para fazer um bolinho, mas enquanto<br />

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apanhava amoras, apanhei a Babá Pipi ao estalo e aos puxões de orelhas<br />

<strong>com</strong> a Lili Cacá, e depois tive de separar as duas, e aí a Pipi dá-me um<br />

pontapé, e eu aí arranquei a cabeça à puta da Pipi...<br />

EC – MADALENA! Por favor!? Que linguagem é essa?<br />

M – Desculpe, senhor Clímax. Eu queria dizer prostituta...<br />

EC – Assim está bem. Porque este programa merece respeito, assim <strong>com</strong>o os<br />

nossos ouvintes, percebeste?<br />

M – Desculpe, senhor Clímax. Oh senhor Clímax, você chamou-me<br />

Madalena!<br />

EC – Eu?! Ah.. hm, não, eu disse <strong>Magdalena</strong>... Tenho a certeza que disse...<br />

ah... Mas estamos a desviar-nos do assunto... Faz favor de continuares...<br />

Estavas a sonhar, e...<br />

M – E depois acordei, pois estava <strong>com</strong> vontade de fazer chichi, e assim,<br />

levantei-me da cama e fui até à casa de banho. Só depois quando regressei<br />

aos meus aposentos, passei pelo dos meus pais, para saber se já tinham<br />

chegado, e foi aí que notei algo discrepante.<br />

EC – O quê?<br />

M – O meu pai não estava a ribombar. Foi aí que acendi a luz, e constatei<br />

que não tinham chegado.<br />

EC – Como foi a tua reacção? O que sentiste?<br />

M – Achei aquela situação excessivamente invulgar. Eles nunca chegavam<br />

de forma tão prorrogada, nem mesmo quando iam para a discoteca.<br />

EC – E o que fizeste?<br />

M – Fui prontamente a correr até ao telemóvel, para saber se me tinham<br />

ligado. Como não tinham, liguei-lhes, mas nada. Na altura pensei que<br />

deveriam ter ficado sem bateria no telemóvel.<br />

EC – E a seguir?<br />

M – A seguir, enverguei uma camisa e uma calcinha, e fui à procura deles. O<br />

restaurante <strong>com</strong>o é óbvio já se encontrava encerrado, então dirigi-me à<br />

recepção, para inquirir se alguém os tinha visto. Só passados alguns<br />

minutos, houve um senhor que apareceu por lá, e me informou tê-los<br />

observado no restaurante, e posteriormente abalado num táxi, <strong>com</strong> outro<br />

casal.<br />

EC – Só um aparte Madalena, quero dizer, <strong>Magdalena</strong>... Não tinhas dito há<br />

pouco, que não sabias o que queria dizer a palavra abalada, e agora estás a<br />

usá-la, no masculino?!<br />

M – Tem de facto razão em enunciar esse ponto, senhor Clímax. Como estou<br />

em modo automático, nem sequer noto.<br />

EC – Ok, estava só a verificar. Então e <strong>com</strong>o foi que te sentiste?<br />

M – Malissimamente. A primeira coisa que me veio à cabeça foi que tinham<br />

sido sequestrados. Por isso liguei à polícia.<br />

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EC – E depois?<br />

M – Depois peva.<br />

EC – Como assim, peva?<br />

M – Eles não convergiram até mim.<br />

EC – Mas porquê?<br />

M – Porque das primeiras vezes que liguei, ninguém creu em mim.<br />

Inclusivamente, proferiram para eu cessar os telefonemas para lá, pois caso<br />

contrário, iriam ter <strong>com</strong>igo, e iriam autuar os meus pais. Eu aí instiguei-os<br />

para que viessem passar essa coima, e ainda lhes contrapus, que os meus<br />

pais achavam que eles eram totós, e mais ainda, que eram os meus pais que<br />

me estavam a <strong>com</strong>pelir a ligar para eles, para grande júbilo de meus pais.<br />

EC – E assim já apareceram!?<br />

M – Mesmo assim ainda não. Em determinada altura só me perguntavam<br />

qual era a raça, e eu respondia-lhes que não eram canídeos, que eram<br />

pessoas, os meus pais. Só depois de ligar mais umas vezes, mencionei que<br />

pelo facto dos meus pais terem sido raptados, podiam já se encontrar a<br />

caminho de Espanha. Eles aí perguntaram se eram ingleses, e eu já não<br />

estava em mim, de tão nervosa e desesperada, que acabei respondendo<br />

afirmativamente.<br />

EC – E eles assim já vieram?<br />

M – Sim, passados dois minutos. Só mais tarde tive acesso à tabela de<br />

prioridades deles, <strong>com</strong> os respectivos tempos de resposta: inglês – dois<br />

minutos; americano – dois minutos e trinta segundos; francês – cinco<br />

minutos; espanhol – dez minutos; português branco – meia hora; português<br />

preto – trinta e um minutos; cigano/Europa de leste – não fazer<br />

nada/fugir/<strong>com</strong>er donuts. Se soubesse disto antes, tinha dito logo que os<br />

meus pais eram ingleses. Até tinha posto um sotaque. Quérres ouvirrr meu<br />

sôtáaque?<br />

EC – Não precisa, obrigado. Então e <strong>com</strong>o foram as primeiras impressões?<br />

M – Más. Primeiro, porque olharam para mim <strong>com</strong> desdém, desconfiados, e<br />

vieram <strong>com</strong> umas falinhas mansas, <strong>com</strong>o se eu fosse uma bebé, e na<br />

verdade já vou fazer oito anos, daqui a onze meses e alguns dias. Depois,<br />

quando lhes disse a verdade, que os meus pais eram portugueses,<br />

passaram-se <strong>com</strong>igo, e houve um que jogou a mão ao cacetete. Ainda<br />

cheguei a temer pela minha saúde.<br />

EC – Que vergonhoso...<br />

M – Também pensei isso... Depois ainda me disseram que não havia<br />

desaparecimento nenhum, que só havia desaparecimento, quarenta e oito<br />

horas depois do facto consumado.<br />

EC – Sinceramente, é preciso um grande descaramento...<br />

M – Tirou-me as palavras da boca, senhor Clímax.<br />

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EC – E aí foram-se embora?<br />

M – Correcto. Tive de me resignar às nossas leis, e voltei para o quarto do<br />

hotel.<br />

EC – Então e o que fizeste nas quarenta e oito horas seguintes?<br />

M – Ora, o que fiz? Tive de arranjar forma do tempo passar. Ficar fechada<br />

no quarto não adiantava nada. Assim, decidi aproveitar o tempo para<br />

relaxar, e fui para a piscina. Mas andei sempre <strong>com</strong> um objecto da minha<br />

mãe e do meu pai, na mão, para me lembrar deles.<br />

EC – Quais foram os objectos que escolheste?<br />

M – Da minha mãe já tinha o telemóvel. Do meu pai, escolhi o corta-unhas,<br />

pois na verdade, não tinha mais escolha.<br />

EC – Como assim, não tinhas mais escolha?<br />

M – Pois, é que na verdade não havia mais nada deles, no quarto. Nada de<br />

roupa, nem objectos pessoais, nada. Só estavam as minhas coisas. Penso que<br />

o corta-unhas deve ter caído da bolsa dele, na fuga.<br />

EC – Meu Deus, então isso foi premeditado!<br />

M – Sim, apesar de na altura eu não ter pensado nessa hipótese.<br />

EC – Então e o que é que te passou pela cabeça, durante esse tempo?<br />

M – Passou-me tudo pela cabeça...Será que ainda estavam vivos? Ou será<br />

que estavam no céu? Será que tinham sido violados? Será que tinham sido<br />

raptados? Se sim, ainda estariam no país? Ou será que se tinham perdido?<br />

EC – E entretanto, a polícia não fez nada...<br />

M – Nada... Nadinha... Só depois dessas quarenta e oito horas é que me<br />

dirigi à polícia, apresentar o desaparecimento.<br />

EC – Foste sozinha?<br />

M – Sim.<br />

EC – Então e porque não foste <strong>com</strong> alguém da tua família?<br />

M – Ainda tentei entrar em contacto <strong>com</strong> os meus avós, mas estranhamente,<br />

nunca consegui chegar à fala <strong>com</strong> eles.<br />

EC – Então e <strong>com</strong>o correram as investigações?<br />

M – A partir dessa altura, as investigações decorreram bem, à excepção de<br />

um ou outro pormenor que não gostei.<br />

EC – Como assim?<br />

M – Então, não é que a polícia ao princípio, desconfiou de mim? Pensou que<br />

eu é que os tinha raptado, ou que lhes tinha feito alguma coisa!<br />

EC – E tinhas?<br />

M – Óbvio que não! Inclusivamente obrigaram-me a fazer testes de ADN,<br />

para saber se eles eram realmente meus pais, ou se eu os tinha adoptado.<br />

EC – E confirmas que és?<br />

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M – Exacto! E todas as teses, cabalas e conjunturas da polícia, para me<br />

incriminar, caíram pela base, pois nunca houve provas para tal. Como aliás,<br />

se veio a <strong>com</strong>provar uns dias mais tarde.<br />

EC – O que sentiste durante esses dias de desaparecimento dos teus pais?<br />

M – Na verdade, senti-me aliviada.<br />

EC – Aliviada? Como assim?<br />

M – Bem, o facto é que eles davam muito trabalho. Tinha de andar<br />

constantemente de olho neles, a lhes dizer para não fazerem isto ou aquilo,<br />

para não beberem tanto, para não fumarem lá em casa, para se afastarem<br />

das drogas, mas era difícil. Eles só pensavam em manter as suas vidas de<br />

adolescentes, <strong>com</strong> idas aos bares, festas e discotecas.<br />

EC – Sabes muito para quem só tem sete anos, Madalena... Perdão,<br />

<strong>Magdalena</strong>.<br />

M – Obrigado.<br />

EC – Quando é que voltaste a saber deles?<br />

M – Pouco mais de duas semanas depois.<br />

EC – E <strong>com</strong>o?<br />

M – Por intermédio da polícia. Parece que eles tinham abalado daqui para<br />

Cancun, no México, juntamente <strong>com</strong> os meus avós, e passaram lá duas<br />

semanas de férias. Só depois regressaram a casa, onde voltaram à<br />

normalidade, sem nunca se terem lembrado de mim. Inclusivamente,<br />

segundo o que a polícia me disse, quando foram inquiridos sobre mim,<br />

negaram que eu fosse filha deles. Mais, quando inquiriram os meus avós,<br />

também eles disseram que não tinham nenhuma neta.<br />

EC – Santo Deus. E tu?<br />

M – Eu aí resolvi recorrer a um advogado, que aceitou o meu caso, e entrei<br />

<strong>com</strong> um processo litigioso de separação dos meus pais. E a seguir são os<br />

meus avós, que não vão ficar a rir, ai não ficam, não!<br />

EC – Então e quem é que vai financiar o advogado?<br />

M – Tenho um acordo <strong>com</strong> ele. Eu não lhe pago nada, e caso ganhe, ele<br />

recebe metade do que conseguir extorquir aos meus pais. Vou chupar-lhes<br />

até ao tutano. Senhor Clímax, importa-se que eu volte a falar normalmente?<br />

É que já estou um bocadinho cansadita.<br />

EC – Com certeza Madal... madame! Então e quais são as conjecturas para o<br />

teu triunfo?<br />

M – O quê?<br />

EC – Achas que tens hipóteses de ganhar?<br />

M – Sim.<br />

EC – Então e quem albergará no seu seio, e alumiará o trilho dos teus<br />

ascendentes?<br />

M – .. Hã?<br />

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EC – Quem é que vai tratar dos teus pais?<br />

M – Não sei.<br />

EC – Experimentas no todo ou em parte, quaisquer sentimentos de<br />

remorsos ou de contrição, para <strong>com</strong> suas figuras?<br />

EC - .. Hã?<br />

EC – Não tens pena deles?<br />

M – Não.<br />

EC – Há quão tempo não tens uma elocução <strong>com</strong> os teus progenitores?<br />

M – .. Não percebi.<br />

EC – Então mas estás a ficar surda? É preciso repetir tudo duas vezes?! Há<br />

quanto tempo não falas <strong>com</strong> eles?<br />

M – Desde ontem.<br />

EC – Ontem? Então?<br />

M – Queriam pedir desculpas.<br />

EC – Mas <strong>com</strong> que vero propósito haverá, de eles manifestarem<br />

conveniência em atingir tua absolvição?<br />

M – .. Hã??<br />

EC – Porque é que pedem desculpa?<br />

M – Querem que desista da acção em tribunal.<br />

EC – Indubitavelmente, encontrar-se-ão receosos, não?<br />

M – .. Hã?<br />

EC – Porra pá! E continuas!! Isto assim não há condições... Fora daqui já, que<br />

a entrevista acabou. E se te apanho na rua algum dia, dou-te uma traulitada<br />

e ainda gozo contigo e digo “Olhá Madalena, perdeu os pais, mas que<br />

cena!”. Daqui foi Éuládo Clímax, <strong>com</strong> a entrevista da fedelha que perdeu os<br />

pais, e que agora vai pô-los em tribunal, entupindo um pouco mais, o nosso<br />

sistema judicial. É mais uma história para causar tédio e aborrecimento nos<br />

nossos media. Não vamos perder mais tempo nem dar importância a este<br />

caso. Daqui é tudo, até à próxima semana.<br />

Carlos Januário - Soubeapouco.<strong>com</strong><br />

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