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A Primeira Parte de O Romance da Rosa (c ... - História Medieval

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A <strong>Primeira</strong> <strong>Parte</strong> <strong>de</strong> O <strong>Romance</strong> <strong>da</strong> <strong>Rosa</strong> (c. 1225) 1<br />

Guilherme <strong>de</strong> Lorris (c. 1200-1230)<br />

Trad.: Sonia Regina Peixoto, Eliane Ventorim e Ricardo <strong>da</strong> Costa2 Notas: Eliane Ventorim e Ricardo <strong>da</strong> Costa<br />

Revisão: Larissa Brommonschenkel Soares<br />

Alguns dizem que nos sonhos não existem senão engano e mentira, mas às vezes se po<strong>de</strong>m ter<br />

sonhos que não mentem e que, com o passar do tempo, revelam-se ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iros. Para <strong>de</strong>monstrar isso,<br />

apresento um autor que se chamava Macróbio: ele não tomou os sonhos como brinca<strong>de</strong>iras, pelo<br />

contrário, escreveu uma obra sobre o sonho que teve o rei Cipião. 3<br />

Apesar <strong>de</strong> tudo, se alguém pensa ou diz que é loucura e ignorância acreditar naquilo que sonhou,<br />

quem assim consi<strong>de</strong>ra, que me tenha por louco, pois sei que o sonho adverte o bem e o mal que<br />

acontecerá às gentes. Além disso, são muitos os que durante a noite sonham coisas obscuras, as quais<br />

<strong>de</strong>pois se apresentam com clareza.<br />

No vigésimo ano <strong>de</strong> minha vi<strong>da</strong>, i<strong>da</strong><strong>de</strong> em que o amor cobra imposto aos jovens, uma noite me<br />

<strong>de</strong>itei, como <strong>de</strong> costume, e dormi profun<strong>da</strong>mente. E tive um sonho formosíssimo que muito me agradou:<br />

não houve na<strong>da</strong> que <strong>de</strong>pois não tenha ocorrido tal e qual o sonho me mostrara. Agora <strong>de</strong>sejo contá-lo em<br />

versos para agra<strong>da</strong>r aos corações 4 , pois assim me pe<strong>de</strong> e or<strong>de</strong>na o Amor.<br />

Se alguém <strong>de</strong>seja saber como <strong>de</strong>ve ser chamado o Livro que agora inicio, ele se chamará O <strong>Romance</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>Rosa</strong>, e nele estão conti<strong>da</strong>s to<strong>da</strong>s as artes do Amor. O assunto é bom e novo; Deus queira que o receba<br />

com gosto aquela por quem inicio essa obra: ela vale tanto e é tão digna <strong>de</strong> ser ama<strong>da</strong> que <strong>de</strong>ve se chamar<br />

<strong>Rosa</strong>. 5<br />

Parecia maio, faz cinco anos pelo menos. Sonhei que era maio, tempo <strong>de</strong> amor e <strong>de</strong> prazer, tempo<br />

em que tudo se alegra: os arbustos e as sebes 6 se cobrem <strong>de</strong> folhas nesse mês. Os bosques recobram seu<br />

verdor, pois se mantiveram secos durante o inverno; e a mesma terra sente orgulho pelo orvalho que a<br />

molha, esquecendo a pobreza em que ficara durante o inverno. A terra se torna tão vaidosa que <strong>de</strong>seja usar<br />

um vestido novo, e isso não é difícil, pois ela dispõe <strong>de</strong> cem pares <strong>de</strong> cores: a erva, as flores violetas, azuis<br />

e <strong>de</strong> muitos tons distintos – tal é o vestido que vejo que utiliza a terra para embelezar-se. Os pássaros que<br />

haviam permanecido calados enquanto fazia frio e quando o tempo era hostil e rigoroso, com a chega<strong>da</strong> <strong>de</strong><br />

1 A primeira parte do Roman <strong>de</strong> la Rose é um poema <strong>de</strong> 3.975 versos escritos por volta <strong>de</strong> 1225. Nossa tradução foi feita a<br />

partir <strong>da</strong> edição GUILLAUME DE LORRIS, JEAN DE MEUNG. El Libro <strong>de</strong> la <strong>Rosa</strong> (introd. <strong>de</strong> Carlos Alvar, trad. <strong>de</strong><br />

Carlos Alvar y Julián Muela, lectura iconográfica <strong>de</strong> Alfred Serrano i Donet). Barcelona: Ediciones Siruela, 2003.<br />

2 Ricardo <strong>da</strong> Costa é medievalista <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong><strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (Ufes). Acadèmic correspon<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> Reial Acadèmia<br />

<strong>de</strong> Bones Lletres <strong>de</strong> Barcelona. Site: www.ricardocosta.com<br />

3 Macróbio, Ambrósio Teodósio (c. 400) – Juntamente com Caio Mário Vitorino, foi um dos chamados “cristãos<br />

neoplatônicos”. Macróbio exerceu consi<strong>de</strong>rável influência na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média pela transmissão e elaboração <strong>de</strong> uma parte <strong>da</strong><br />

tradição filosófica grega. A ele se <strong>de</strong>ve uma compilação chama<strong>da</strong> Saturnalia (Saturnaliorum libri VII) e um comentário<br />

intitulado In Somnium Scipionis do célebre Sonho <strong>de</strong> Cipião, <strong>de</strong> Cícero. Nesse comentário, Macróbio tomou como base a visão<br />

do cosmos e a doutrina <strong>da</strong> imortali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> alma apresenta<strong>da</strong> por Cícero para elaborar idéias proce<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Platão, Plotino<br />

e Porfírio.<br />

A tría<strong>de</strong> neoplatônica (o Uno, a Inteligência e a Alma do mundo) foi apresenta<strong>da</strong> por Macróbio na seguinte forma: o<br />

Bem, a Inteligência e a Alma. O Bem é o princípio e a fonte <strong>da</strong> Inteligência, a qual é o princípio e a fonte <strong>da</strong> Alma. A<br />

Inteligência contém as idéias e os nomes; a Alma as almas individuais. Em um sentido semelhante às religiões <strong>de</strong> mistérios<br />

e aos Oráculos cal<strong>de</strong>us, Macróbio também concebeu as almas individuais como espíritos caídos <strong>da</strong>s esferas superiores para<br />

a matéria, e, que ao passarem pelas esferas, adquiriram suas facul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a razão até o impulso <strong>da</strong> nutrição. Estes<br />

espíritos estão ligados em sua parte superior às esferas celestes, que constituem sua pátria e para a qual ascen<strong>de</strong>m após<br />

terem sido libera<strong>da</strong>s <strong>da</strong> prisão do corpo – FERRATER MORA, José. Dicionário <strong>de</strong> Filosofia. Internet:<br />

http://www.ferratermora.org/ency_filosofo.html<br />

4 O texto original foi escrito em versos rimados.<br />

5 A <strong>Rosa</strong> simboliza o dom do amor e a sua pureza. “A rosa tornou-se um símbolo do amor e, mais ain<strong>da</strong>, do dom do amor,<br />

do amor puro (...) a do <strong>Romance</strong> <strong>da</strong> <strong>Rosa</strong>, <strong>de</strong> Guillaume <strong>de</strong> Lorris e Jean <strong>de</strong> Meung transformaram no misterioso tabernáculo<br />

do Jardim <strong>de</strong> Amor <strong>da</strong> Cavalaria, rosa mística <strong>da</strong>s litanias <strong>da</strong> Virgem, rosas <strong>de</strong> ouro que os papas oferecerão às princesas<br />

dignas, enfim a imensa flor simbólica que Beatriz mostra a seu fiel amante, quando este chega ao último círculo do Paraíso,<br />

rosa e rosácea ao mesmo tempo.” – CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos. Rio <strong>de</strong> Janeiro:<br />

Editora José Olympio, 1995, p. 789.<br />

6 Sebe (do latim sepe) – Cerca <strong>de</strong> arbustos, ramos, estacas ou ripas entrelaça<strong>da</strong>s, feita para ve<strong>da</strong>r os terrenos.<br />

1


maio, com o bom tempo, ficam tão contentes que mostram com seu canto o prazer que têm no coração, e<br />

se vêem impulsionados a cantar. Então, o rouxinol se esforça com seus silvos e gorjeios 7 e também o<br />

papagaio e a calhandra. 8 É o momento em que os jovens começam a ficar contentes e a se enamorar,<br />

graças ao suave e doce tempo. Pois aquele que em maio não ama, tem um coração muito duro, pois ouve<br />

em vão os pássaros que cantam nos ramos.<br />

Nessa época tão agradável, em que todo ser vivo se esforça para amar, certa noite sonhei que me<br />

encontrava. 9 Enquanto dormia, pareceu-me que era muito cedo. Levantei-me <strong>da</strong> cama, calcei-me e fui<br />

lavar as mãos. Depois, peguei uma agulha <strong>de</strong> prata <strong>de</strong> uma alfineteira formosa e bela, e me dispus a<br />

costurar. Então, me veio um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sair <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> para escutar os gorjeios dos pássaros que cantavam<br />

alegremente nos bosques pela chega<strong>da</strong> <strong>da</strong> nova estação. Assim, enquanto costurava o bor<strong>da</strong>do, <strong>de</strong>leitavame,<br />

escutando as avezinhas que cantavam nos jardins que começavam a florescer.<br />

Alegre, contente e cheio <strong>de</strong> prazer, dirigi-me a um rio que ouvia próximo <strong>da</strong>li, pois não me ocorria<br />

um lugar melhor para me distrair do que as margens <strong>da</strong>quele rio. A água caía <strong>de</strong> uma colina próxima com<br />

força e ímpeto. Era clara e tão fria como a do poço ou <strong>da</strong> fonte. O rio era um pouco menor que o Sena,<br />

porém mais largo. Até então, eu nunca vira este rio tão agradável. Sentei-me para contemplar aquele lugar<br />

aprazível, refresquei-me e lavei o rosto com aquela água transparente e clara. O fundo era coberto e<br />

empedrado por pequenos cascalhos e a margem banhava um prado formoso e belo. A manhã era<br />

ensolara<strong>da</strong>, tranqüila e luminosa. Fazia um dia agradável. Através do prado, junto à margem do rio, fui<br />

<strong>de</strong>scendo o curso <strong>de</strong> água.<br />

Em pouco tempo <strong>de</strong>parei-me com um gran<strong>de</strong> e alegre jardim completamente ro<strong>de</strong>ado por um muro<br />

alto. A parte externa <strong>da</strong> pare<strong>de</strong> tinha <strong>de</strong>senhos, esculturas e títulos ricamente pintados. Com gran<strong>de</strong> prazer<br />

contemplei essas figuras e imagens, que irei contar e <strong>de</strong>screver tal como as recordo.<br />

No centro vi a Malquerença. Ela <strong>da</strong>va a impressão <strong>de</strong> estar triste, aflita e <strong>de</strong> ser perversa; parecia<br />

evi<strong>de</strong>nte que <strong>de</strong>sejava provocar e molestar, porém se mantendo oculta a todos. Parecia uma mulher pobre,<br />

porque não estava bem vesti<strong>da</strong>. Tinha o semblante enrugado e franzido, e seu nariz era chato. Essa<br />

horrível e <strong>de</strong>preciável mulher cobria-se com um véu.<br />

Ao seu lado esquerdo havia uma figura <strong>de</strong> aspecto diferente; li o nome que tinha na cabeça:<br />

chamava-se Felonia.<br />

À direita, vi uma imagem que tinha o nome <strong>de</strong> Vilania: era semelhante às outras duas, tanto no<br />

aspecto quanto na forma. Como era insolente, <strong>da</strong>va a impressão <strong>de</strong> ser uma má e louca criatura, disposta a<br />

causar <strong>da</strong>nos e a falar mal <strong>de</strong> todos. Eu saberia pintar e retratar muito bem o que fazia tal imagem, pois ela<br />

parecia realmente uma coisa vil, como se estivesse cheia <strong>de</strong> injúrias e fosse uma mulher pouco disposta a<br />

prestar honra a quem <strong>de</strong>via.<br />

7 O rouxinol é um pássaro <strong>de</strong> cor marrom quase vermelha, tímido e muito apreciado por seu canto. “Ambrósio, em seu<br />

Hexaemeron, já <strong>de</strong>duzia seu nome latino luscinia <strong>de</strong> lucinia, que significa ‘a luz do dia’ (...) Os bestiários não alu<strong>de</strong>m às origens<br />

mitológicas do rouxinol, constando outro apelido latino, philomela, que em grego significa “amiga <strong>da</strong> música”: tratava-se <strong>de</strong><br />

uma princesa grega, exímia cantora metamorfosea<strong>da</strong> em ave cantora. Conforme Plínio, os rouxinóis às vezes <strong>de</strong>safiam um<br />

ao outro para produzir o canto mais bonito: aquele que per<strong>de</strong>, vendo-se <strong>de</strong>sonrado, cai morto do galho.” – VAN<br />

WOENSEL, Maurice. Simbolismo animal na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média: os bestiários: um safári literário à procura <strong>de</strong> animais fabulosos. João Pessoa:<br />

Ed. Universitária/UFPB, 2001, p. 216.<br />

Para os poetas, o rouxinol é o pássaro símbolo do amor e dos sentimentos, mas apresenta um íntimo laço entre o<br />

amor e a morte. Um bom exemplo se encontra na cena V do 3º ato <strong>da</strong> obra <strong>de</strong> William Shakespeare, Romeu e Julieta, em que<br />

os amantes, na noite que fin<strong>da</strong>, ouvem o canto <strong>de</strong> um pássaro que, caso seja a cotovia, anuncia a separação <strong>de</strong>les e que<br />

continuarão vivos; porém, se for o canto do rouxinol, eles ficarão juntos e morrerão por esse amor. Ver CHEVALIER,<br />

Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, op. cit., p. 791. Para nós, brasileiros, é importante ressaltar a bela<br />

canção <strong>de</strong> Gilberto Gil (letra <strong>de</strong> Jorge Mautner), “O Rouxinol” (<strong>de</strong> 1974): “Joguei no céu o meu anzol / Pra pescar o Sol /<br />

Mas tudo que eu pesquei / Foi um rouxinol / Foi um rouxinol / Levei-o para casa / Tratei <strong>da</strong> sua asa / Ele ficou bom /<br />

Fez até um som / Ling, ling, leng / Ling, ling, leng ling / Cantando um rock com um toque diferente / Dizendo que era<br />

um rock do Oriente pra mim / Depois foi embora / Na boca <strong>da</strong> aurora / Pássaro <strong>de</strong> se<strong>da</strong> / Com cheiro <strong>de</strong> jasmim /<br />

Cheiro <strong>de</strong> jasmim”. In: Gilberto Gil. To<strong>da</strong>s as letras. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1996, p. 151. O Pássaro <strong>de</strong> se<strong>da</strong> com cheiro<br />

<strong>de</strong> jasmim é, mesmo que sem que os compositores o soubessem, uma alusão, uma reminiscência <strong>da</strong> idéia medieval que<br />

associava a ave ao mundo onírico do amor cortês.<br />

8 A calhandra (do grego kalandra, pelo latim calandra), pássaro <strong>de</strong> costas escuras com manchas claras, ventre quase branco,<br />

resto do corpo cinza e bico gran<strong>de</strong> e grosso, é uma espécie <strong>de</strong> cotovia, <strong>de</strong> sabiá do campo.<br />

9 “...sonhei que me encontrava”, no sentido <strong>de</strong> ver ou <strong>de</strong>scobrir algo que já se buscava.<br />

2


A seguir, estava pinta<strong>da</strong> a Cobiça, aquela que incita as gentes a tomar, a não <strong>da</strong>r na<strong>da</strong>, a juntar<br />

gran<strong>de</strong>s riquezas; é quem faz com que muitos emprestem com usura, pois está sempre querendo reunir e<br />

juntar bens; é quem aconselha aos ladrões e aos malfeitores para que se ponham em movimento. Ela é um<br />

gran<strong>de</strong> erro e uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça, pois através <strong>de</strong>la muitos acabam sendo enforcados. A Cobiça é quem<br />

faz tomar as coisas dos outros, roubar, usurpar e ven<strong>de</strong>r mal, diminuir e enganar nas contas; é a criadora<br />

dos trapaceiros, dos charlatães que, seguindo seu conselho, privam donzelas e jovens <strong>de</strong> suas justas<br />

heranças. Esta imagem tinha as mãos encurva<strong>da</strong>s e retorci<strong>da</strong>s – é lógico ser assim, pois a Cobiça sempre<br />

se esforça em tomar o bem alheio sem escutar razões, já que gosta <strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente do que é dos outros.<br />

Ao lado <strong>da</strong> Cobiça havia outra figura, chama<strong>da</strong> Avareza: era feia, suja, magra, fraca e <strong>de</strong> má<br />

aparência, ver<strong>de</strong> como um alho-poró 10 , tão páli<strong>da</strong> que parecia doente e morta <strong>de</strong> fome ou que vivia<br />

somente <strong>de</strong> pão amassado com água sanitária forte e abrasadora. Além <strong>de</strong> estar fraca, vestia-se<br />

pobremente: trazia uma cota velha, <strong>de</strong>stroça<strong>da</strong> e cheia <strong>de</strong> remendos, como se houvesse sido joga<strong>da</strong> aos<br />

cachorros. 11 Ao seu lado, pendura<strong>da</strong> em uma fraca presilha, estava seu manto e uma cota par<strong>da</strong>. O manto<br />

não era <strong>de</strong> boa linhagem: era <strong>de</strong> má quali<strong>da</strong><strong>de</strong>, <strong>de</strong>sgastado, <strong>de</strong> lã negra, avelu<strong>da</strong><strong>da</strong> e pesa<strong>da</strong>. A cota <strong>de</strong>via ter<br />

mais <strong>de</strong> vinte anos, mas a Avareza não se preocupava com suas vestes. Ela não sentiria muito por esse<br />

traje, ou porque estava usado, ou porque já não lhe servia, já que necessitaria <strong>de</strong> um vestido novo; pois a<br />

Avareza, aquela que não gosta <strong>de</strong> gastar, prefere passar gran<strong>de</strong> penúria a fazer isso.<br />

Ela havia escondido na mão uma bolsa costura<strong>da</strong> e fecha<strong>da</strong> com tanta força, que se passaria um bom<br />

tempo antes <strong>de</strong> se tirar algo <strong>de</strong>la, embora isso lhe importasse pouco, pois ela não tinha a intenção <strong>de</strong> tirar<br />

na<strong>da</strong> <strong>da</strong> bolsa.<br />

A seguir, estava pinta<strong>da</strong> a Inveja, que nunca havia sorrido em to<strong>da</strong> a sua vi<strong>da</strong> e nunca havia se<br />

alegrado por na<strong>da</strong>, a não ser por ter visto ou escutado alguém contar uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça: na<strong>da</strong> a<br />

agra<strong>da</strong>va tanto quanto a dor e a calami<strong>da</strong><strong>de</strong>. O que ela mais gosta é <strong>de</strong> ver que um gran<strong>de</strong> infortúnio caiu<br />

sobre uma pessoa próxima. Então, ela alegra seu coração <strong>da</strong> mesma forma quando vê uma gran<strong>de</strong><br />

linhagem ser <strong>de</strong>struí<strong>da</strong> ou insulta<strong>da</strong>. Contudo, se contempla alguém que cresce em honra graças ao seu<br />

bom senso e por seus próprios méritos, isso é o que mais lhe fere, pois se entristece quando acontece algo<br />

bom.<br />

A Inveja é tão cruel que não mantém a leal<strong>da</strong><strong>de</strong> com seus companheiros e não admite<br />

companheirismo; ela é inimiga <strong>de</strong> todos os seus familiares, pois certamente não <strong>de</strong>seja o bem nem para o<br />

seu pai. Contudo, é certo que ela paga caro por sua mal<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois sofre tanto e sente tanta dor quando as<br />

pessoas fazem o bem, que pouco falta para se <strong>de</strong>smanchar. Desse modo, seu coração traidor a golpeia, e<br />

então Deus e os homens po<strong>de</strong>m se vingar.<br />

A Inveja nunca <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> falar mal dos outros: se conhecesse o mais nobre <strong>de</strong> todos que existe <strong>de</strong>sse<br />

lado do mar ou do outro, ela tentaria ofendê-lo; e se fosse um homem tão íntegro que ela não conseguisse<br />

fazê-lo cair <strong>de</strong> seu mérito, nem <strong>de</strong>rrubá-lo, ao menos lhe agra<strong>da</strong>ria diminuir seu valor e sua honra, falando<br />

<strong>de</strong>le o menos possível.<br />

Na pintura vi que a Inveja tinha um olhar mau, pois não olhava <strong>de</strong> frente, somente <strong>de</strong> soslaio,<br />

dissimulando; esse era um mau costume seu, não contemplar na<strong>da</strong> abertamente, pelo contrário, só fechava<br />

um olho com <strong>de</strong>sprezo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhando e ar<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong> raiva ao ver alguém nobre, formoso ou gentil, querido<br />

e estimado por todos.<br />

Junto à Inveja, bem próxima <strong>de</strong>la, a Tristeza estava pinta<strong>da</strong> no muro: pela cor, parecia que levava<br />

luto no coração, e <strong>da</strong>va a impressão que pa<strong>de</strong>cia <strong>de</strong> icterícia. 12 A Avareza não a superava nem em pali<strong>de</strong>z,<br />

nem em fraqueza, pois a aflição e a pena, a preocupação e os enjôos que sofria dia e noite haviam feito<br />

com que per<strong>de</strong>sse a cor e ficasse magra e páli<strong>da</strong>. Ninguém nunca teve um sofrimento e uma dor<br />

semelhantes a que ela parecia ter. Acredito que ninguém seria capaz <strong>de</strong> fazer com que ela se alegrasse; ela<br />

tampouco queria se regozijar e aliviar com na<strong>da</strong> a dor que sentia em seu coração, pois o tinha<br />

<strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente triste, e seu penar havia se enraizado profun<strong>da</strong>mente.<br />

10 O alho-poró é uma planta pareci<strong>da</strong> com a cebola, que tem talo cilíndrico, flores rosa<strong>da</strong>s e uma parte <strong>da</strong>s folhas<br />

comestíveis. Em sentido figurado, representa uma pessoa torpe, tonta, um pateta.<br />

11 A cota a que o texto se refere era uma vestimenta que os cavaleiros usavam e que cobria o peito e o abdome. Podia ser<br />

feita <strong>de</strong> placas <strong>de</strong> metal ou <strong>de</strong> pequenas argolas metálicas entrelaça<strong>da</strong>s. Também era conheci<strong>da</strong> como loriga e era vesti<strong>da</strong><br />

sobre uma túnica acolchoa<strong>da</strong>.<br />

12 A icterícia é uma síndrome caracteriza<strong>da</strong> pelo excesso <strong>de</strong> bilirrubina no sangue e pela <strong>de</strong>posição do pigmento biliar na<br />

pele e nas membranas mucosas, o que resulta na coloração amarela apresenta<strong>da</strong> pelo paciente.<br />

3


Bem se via que estava aflita, pois há pouco tempo havia arranhado seu rosto, dilacerando-o em<br />

muitos lugares, como quem está triste. Tinha os cabelos <strong>de</strong>spenteados e soltos sobre o colo, revolvidos<br />

pela pena e pela aflição. Estou seguro que ela chorava amargamente: quem quer que a visse, por mais duro<br />

que fosse, sentiria uma gran<strong>de</strong> misericórdia por ela, que continuamente se arranhava, se golpeava e se<br />

maltratava com os punhos.<br />

A infeliz, a pobre, mostrava bem a sua dor e não se preocupava em se alegrar, em bailar ou <strong>da</strong>nçar,<br />

pois quem tem o coração aflito não tem vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>leitar com a <strong>da</strong>nça e com o baile. Aquele que está<br />

triste não se abran<strong>da</strong> com a alegria, pois o gozo e a aflição lhe são contrários.<br />

Logo <strong>de</strong>pois, estava retrata<strong>da</strong> a Velhice, um passo atrás do lugar que <strong>de</strong>veria ocupar, pois ela mal se<br />

mantinha em pé, <strong>de</strong> tão velha e maltrata<strong>da</strong>. Sua beleza havia murchado, tornara-se muito feia. Tinha a<br />

cabeça velha e branca, como se os cabelos tivessem florescido. Meu Deus, sua morte não seria uma gran<strong>de</strong><br />

per<strong>da</strong> nem uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça, pois todo o seu corpo havia secado e se enrugado pela i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Seu rosto,<br />

cheio <strong>de</strong> rugas, outrora fora suave e liso; agora estava repleto <strong>de</strong> cicatrizes. Suas orelhas eram cabelu<strong>da</strong>s e<br />

não lhe restava nenhum <strong>de</strong>nte, pois havia perdido todos. Era tão velha que parecia que não podia an<strong>da</strong>r<br />

quatro passos sem a aju<strong>da</strong> <strong>de</strong> muletas.<br />

O tempo, que corre noite e dia sem pausa nem repouso, passa por nós tão silenciosamente que por<br />

um momento acreditamos que ele se <strong>de</strong>teve, quando na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> nunca <strong>de</strong>scansa nem <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> correr, <strong>de</strong><br />

forma que não se po<strong>de</strong> pensar que existe o presente; e, se perguntares a um homem douto nas letras, antes<br />

que ele tenha respondido, haverá transcorrido três tempos. O tempo, aquele que não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>tido e que<br />

sempre avança sem voltar, como a água que flui sem que regresse uma gota; o tempo, a quem ninguém<br />

resiste, nem o ferro, nem qualquer outro objeto duro; o tempo, que faz com que as coisas cresçam<br />

<strong>de</strong>pressa, que rapi<strong>da</strong>mente cria e tudo <strong>de</strong>strói e faz apodrecer; o tempo, que envelheceu nossos pais, que<br />

envelheceu prematuramente reis e imperadores, e que todos nós tornará velhos e adiantará nossa morte; o<br />

tempo, que tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> envelhecer to<strong>da</strong>s as coisas, a havia envelhecido tanto que, em minha opinião,<br />

fez com que ela não pu<strong>de</strong>sse amparar-se sozinha, e assim, a fez retornar à infância, pois não tinha mais<br />

capaci<strong>da</strong><strong>de</strong>, nem força e juízo que um menino <strong>de</strong> um ano <strong>de</strong> i<strong>da</strong><strong>de</strong>. Embora, segundo creio, ela tivesse sido<br />

discreta e culta quando estava na i<strong>da</strong><strong>de</strong> madura, na<strong>da</strong> havia lhe restado e ficara atordoa<strong>da</strong>.<br />

Ela trazia uma capa forra<strong>da</strong> – se não me recordo mal – com a qual se abrigava muito bem e cobria<br />

seu corpo. Devia ser um manto quente, caso contrário, teria morrido, pois os velhos sentem frio, sabei-o,<br />

tal é sua natureza.<br />

Atrás <strong>de</strong>ssa imagem havia outra representa<strong>da</strong>, e que manifestava claramente sua falsi<strong>da</strong><strong>de</strong>: chamavase<br />

Hipocrisia. É ela que, mantendo-se oculta, quando ninguém po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, faz todo o tipo <strong>de</strong><br />

<strong>da</strong>no, sem nunca se preocupar. Externamente, parece mover-se pela compaixão, tem aspecto simples e<br />

piedoso, e parece uma santa criatura; porém, sob o céu não há <strong>de</strong>sgraça que em seu íntimo não tenha<br />

imaginado.<br />

A imagem que a representava se parecia muito com ela, pois tinha um aspecto simples: estava<br />

calça<strong>da</strong> e vesti<strong>da</strong> como uma mulher <strong>de</strong>vota; na mão levava um saltério e, sabei-o, esforçava-se em oferecer<br />

a Deus falsas orações, invocando santos e santas. Não estava alegre, nem contente, parecia inclina<strong>da</strong><br />

somente a fazer boas obras. Vestia um tecido áspero <strong>de</strong> lã e não era gor<strong>da</strong>, pelo contrário, <strong>da</strong>va a<br />

impressão <strong>de</strong> que estava cansa<strong>da</strong> <strong>de</strong> jejuar, por causa <strong>de</strong> sua cor páli<strong>da</strong> e moribun<strong>da</strong>.<br />

A ela e aos seus estava proibi<strong>da</strong> a entra<strong>da</strong> no Paraíso, pois segundo o Evangelho, este tipo <strong>de</strong> gente<br />

afina seu rosto para ser enaltecido na ci<strong>da</strong><strong>de</strong>. Por isso, por obterem um pouco <strong>de</strong> vanglória, serão privados<br />

<strong>de</strong> Deus e <strong>de</strong> Seu reino.<br />

Por último, estava retrata<strong>da</strong> a Pobreza, que carecia <strong>de</strong> bens e que havia sido pinta<strong>da</strong> <strong>de</strong>snu<strong>da</strong> como<br />

um verme, pois havia vendido seus vestidos. Se a estação fosse outra, penso que morreria <strong>de</strong> frio, pois<br />

tinha somente um saco velho forrado com pe<strong>da</strong>ços <strong>de</strong> pele – tal era sua cota e seu manto – não trazia mais<br />

na<strong>da</strong> para vestir e tiritaria muito <strong>de</strong> frio. Ela se mantinha um pouco afasta<strong>da</strong> <strong>da</strong>s <strong>de</strong>mais, como um pobre<br />

cão num canto; encolhia-se e se cobria, pois qualquer coisa miserável sempre sente vergonha e <strong>de</strong>speito,<br />

esteja on<strong>de</strong> estiver. Maldita seja a hora em que foi concebido um pobre! Ele nunca será bem alimentado,<br />

nem bem vestido e calçado, ninguém o quererá, e ele não receberá elogios!<br />

Tal como contei, essas eram as imagens que se viam por to<strong>da</strong> a pare<strong>de</strong>, pinta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> azul. O<br />

muro era alto e tinha uma forma quadra<strong>da</strong>; <strong>de</strong>ntro havia um jardim on<strong>de</strong> ninguém nunca havia entrado,<br />

nem mesmo um pastor. O lugar era magnífico. Eu ficaria muito agra<strong>de</strong>cido se alguém me levasse lá para<br />

4


<strong>de</strong>ntro mediante esca<strong>da</strong>s ou esca<strong>da</strong>rias, pois, em minha opinião, não se po<strong>de</strong>ria encontrar um gozo ou uma<br />

alegria semelhantes às que havia naquele jardim. O lugar não estava disperso nem era tacanho para abrigar<br />

aves. Nunca houve um espaço tão rico <strong>de</strong> árvores e <strong>de</strong> pássaros cantores – ali havia três vezes mais que em<br />

todo o reino <strong>da</strong> França.<br />

Era muito agradável ouvir a harmonia <strong>de</strong> seus cantos, pois alegravam todo o mundo. Regozijei-me<br />

tanto que, se estivesse livre, não aceitaria cem libras para não ver a reunião dos pássaros que ali <strong>de</strong>ntro<br />

cantavam <strong>da</strong>nças <strong>de</strong> amor e notas agradáveis, formosas e belas, com muito gozo. Que Deus os salve!<br />

Ao ouvir o cantar dos pássaros, comecei a pensar <strong>de</strong> que maneira ou com que astúcia eu po<strong>de</strong>ria<br />

entrar no jardim. Não encontrei nenhum lugar para passar: sabeis que ignorava se havia uma entra<strong>da</strong>, um<br />

caminho ou uma trilha; não havia ninguém que pu<strong>de</strong>sse me guiar, já que estava só. Encontrava-me<br />

<strong>de</strong>rrotado e muito triste, até que, por fim, entendi que em um pomar tão formoso como aquele não<br />

haveria uma porta, esca<strong>da</strong> ou qualquer outra forma <strong>de</strong> entra<strong>da</strong>. Então <strong>de</strong>i a volta muito <strong>de</strong>pressa ao redor<br />

<strong>da</strong> construção e do muro quadrado, até que encontrei um portão pequeno e estreito que estava bem<br />

fechado. Não havia nenhum outro lugar <strong>de</strong> entra<strong>da</strong>. Parei <strong>de</strong> procurar e chamei à porta. Chamei e bati<br />

bastante; muitas vezes prestei atenção se ouvia chegar alguém.<br />

Por fim, uma donzela nobre e formosa abriu o portão, que era <strong>de</strong> carpelo 13 . Essa donzela tinha os<br />

cabelos loiros como uma ban<strong>de</strong>ja <strong>de</strong> cobre, seu rosto era mais doce que um pequeno pintinho, sua fronte<br />

brilhava, tinha as sobrancelhas arquea<strong>da</strong>s e bem separa<strong>da</strong>s, amplas e bem proporcionais, seu nariz era<br />

bem-feito e seus olhos eram vivos como os <strong>de</strong> um falcão. Para <strong>da</strong>r inveja aos loucos, tinha um vigor doce<br />

e agradável, um rosto branco e escarlate, uma boca pequena e carnu<strong>da</strong> e uma pequena cova no queixo; seu<br />

colo era bem proporcional e a pele era mais suave que um velocino 14 , sem cravos ou espinhas – <strong>da</strong>qui até<br />

Jerusalém não havia mulher com o colo mais charmoso, pois o <strong>de</strong>la era reluzente e muito suave ao tato;<br />

seu pescoço era tão branco que parecia como a neve recém caí<strong>da</strong> sobre os galhos <strong>da</strong>s árvores.<br />

Seu corpo era elegante e esbelto: era inútil buscar em outras terras um corpo feminino mais belo.<br />

Trazia uma formosa auréola <strong>de</strong> se<strong>da</strong> e ouro. Nunca houve uma donzela tão elegante, nem que se vestisse<br />

melhor; bem a vi e a contemplei. Sobre a auréola <strong>de</strong> se<strong>da</strong> e ouro ela trazia uma guirlan<strong>da</strong> <strong>de</strong> rosas frescas 15 ;<br />

tinha na mão um espelho e na cabeça um rico fixador prendia seu cabelo trançado. Para <strong>da</strong>r maior<br />

elegância, as duas mangas <strong>de</strong> seu vestido estavam costura<strong>da</strong>s, e, para evitar que suas mãos brancas se<br />

sujassem, ela usava luvas também brancas. Vestia uma cota <strong>de</strong> rico tecido ver<strong>de</strong> <strong>de</strong> Gand 16 , com um<br />

cordãozinho bor<strong>da</strong>do em volta. Por seu aspecto, bem se via que tinha pouco o que fazer. Penteando-se,<br />

vestindo-se e preparando-se: era assim que passava o dia. Para ela, fazia sempre bom tempo e era sempre<br />

maio, pois na<strong>da</strong> a preocupava nem a inquietava, a não ser se arrumar com elegância.<br />

Quando a donzela <strong>de</strong> corpo formoso abriu o portão, com bons modos lhe <strong>de</strong>i graças e lhe perguntei<br />

como se chamava e quem era. Ela não se mostrou altiva nem <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhosa ao respon<strong>de</strong>r:<br />

– Sou chama<strong>da</strong> Ociosa por meus conhecidos. Sou uma mulher rica, afortuna<strong>da</strong>, e levo uma vi<strong>da</strong><br />

agradável, pois com na<strong>da</strong> me ocupo senão gozar e <strong>de</strong>sfrutar, pentear-me e fazer-me tranças. Sou amiga<br />

íntima <strong>de</strong> Lazer, o jovem, o agradável dono <strong>de</strong>ste formoso jardim: ele trouxe <strong>da</strong> terra <strong>de</strong> Alexandria as<br />

árvores que aqui estão planta<strong>da</strong>s. 17 Depois, quando elas cresceram, fez construir ao redor do pomar o<br />

muro que vistes e or<strong>de</strong>nou que pintassem na parte externa as imagens que há, que não são nem belas, nem<br />

agradáveis, mas dolorosas e tristes, tal como acabais <strong>de</strong> ver. Muitas vezes vêm aqui para se divertir e ficar à<br />

sombra Lazer e seus seguidores, que vivem em contínuo gozo e alegria. Agora Lazer <strong>de</strong>ve estar aqui<br />

13 Carpelo – Folha transforma<strong>da</strong> que entra na constituição do gineceu (habitação <strong>de</strong>stina<strong>da</strong> às mulheres).<br />

14 Velocino – Pele <strong>de</strong> carneiro, ovelha ou cor<strong>de</strong>iro, com lã. Aqui certamente há uma referência ao mitológico Velocino <strong>de</strong><br />

Ouro <strong>de</strong> Jasão e os Argonautas, carneiro <strong>da</strong> mitologia grega.<br />

15 A guirlan<strong>da</strong> (ornamento <strong>de</strong> flores) <strong>de</strong>corando os cabelos era um sinal indicativo <strong>da</strong> nobreza <strong>da</strong> donzela que o utilizava.<br />

16 Gand (ou Gent, Ghent) era uma importante ci<strong>da</strong><strong>de</strong> comercial na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, atualmente na Bélgica. Portanto, a<br />

passagem sugere que o tecido <strong>da</strong> <strong>da</strong>ma era muito fino.<br />

17 “Árvores <strong>da</strong> terra <strong>de</strong> Alexandria” – A planificação <strong>da</strong> ci<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> Alexandria, segundo a tradição, é atribuí<strong>da</strong> ao arquiteto<br />

Dinócrates <strong>de</strong> Ro<strong>de</strong>s (322 a.C.) que, no tempo <strong>de</strong> Alexandre Magno, projetou a reconstrução do Artemísio <strong>de</strong> Éfeso. Sua<br />

artéria principal, a Canópica, era ro<strong>de</strong>a<strong>da</strong> por árvores. Assim, Guilherme <strong>de</strong> Lorris busca na tradição antiga uma referência<br />

para as bases fun<strong>da</strong>cionais do Jardim <strong>de</strong> Lazer, associando o prazer e o <strong>de</strong>leite <strong>de</strong> estar no espaço do amor à tradição<br />

cultural <strong>da</strong> Antigüi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

5


<strong>de</strong>ntro, escutando o canto dos rouxinóis, dos melros 18 e <strong>de</strong> outros pássaros; ele se entretém e se distrai<br />

nesse pomar com suas gentes. Não po<strong>de</strong>ria encontrar um lugar mais belo, nem um lugar melhor para<br />

<strong>de</strong>sfrutar. Sabeis que as gentes mais formosas que po<strong>de</strong>ríeis ver são os companheiros <strong>de</strong> Lazer, que os traz<br />

a seu lado e os guia.<br />

Quando Ociosa terminou <strong>de</strong> falar, eu, que escutava com atenção, disse-lhe:<br />

– Senhora Ociosa, não me leve a mal: já que Lazer, o belo, o nobre, está aqui nesse pomar com suas<br />

gentes, gostaria, se pu<strong>de</strong>sse, <strong>de</strong> estar em sua reunião nessa mesma tar<strong>de</strong>. Tenho que ir, pois penso que a<br />

visão <strong>de</strong>ve ser agradável e creio que os participantes serão corteses e bem educados.<br />

Sem dizer mais na<strong>da</strong>, entrei no pomar pela porta que Ociosa abrira. Quando estive <strong>de</strong>ntro, senti-me<br />

alegre, contente e gozoso; encontrava-me como no Paraíso Terreno, estejais certo. O lugar era tão<br />

agradável que parecia coisa própria do espírito e, segundo me parecia, em nenhum paraíso se po<strong>de</strong>ria estar<br />

tão bem como naquele pomar que tanto me aprazia.<br />

Havia numerosos pássaros cantores reunidos por todo o jardim: em um lugar havia rouxinóis, em<br />

outro, gaios 19 e estorninhos 20 ; e, em outros lugares, havia bandos <strong>de</strong> pombas-rolas, <strong>de</strong> estrelinhas-<strong>de</strong>poupa<br />

21 , <strong>de</strong> pintassilgos 22 , <strong>de</strong> andorinhas, <strong>de</strong> cotovias e <strong>de</strong> chapins. 23 Mais adiante, havia muitas cotovias<br />

que já estavam cansa<strong>da</strong>s <strong>de</strong> competir no canto e, com elas, havia melros e tordos 24 que tentavam superar<br />

os outros pássaros com seus silvos. Em outro lugar, havia papagaios e muitas aves que, nos jardins e<br />

bosques que habitavam, <strong>de</strong>leitavam-se com seu belo canto. 25<br />

Os pássaros <strong>de</strong> que estou falando faziam um bom trabalho, pois cantavam como se fossem anjos<br />

espiritualizados e, ao ouvi-los, eu me alegrava, pois nenhum homem vivo ouviu antes uma melodia tão<br />

doce. Era um canto tão agradável e formoso que não parecia <strong>de</strong> pássaros, e sim com o canto <strong>da</strong>s sereias do<br />

mar, chama<strong>da</strong>s assim por suas vozes puras e doces.<br />

Os passarinhos estavam atentos ao canto, pois esteja seguro <strong>de</strong> que não eram nem aprendizes nem<br />

ignorantes. Ao ouvi-los e ao ver o verdor do lugar, fiquei muito alegre, mais do que havia ficado até então;<br />

e, pela ameni<strong>da</strong><strong>de</strong> do jardim, me enchi <strong>de</strong> gozo a tal ponto que me convenci <strong>de</strong> que Ociosa me havia<br />

servido bem, proporcionando-me tal bem-estar. Eu <strong>de</strong>via tê-la como amiga, já que me abriu a porta<br />

<strong>da</strong>quele bosque cheio <strong>de</strong> árvores.<br />

E agora, conforme meus conhecimentos contar-vos-ei tudo o que aconteceu. Mas antes <strong>de</strong> tudo, dirvos-ei<br />

o que Lazer estava fazendo e quem eram seus acompanhantes, mas sem me esten<strong>de</strong>r em <strong>de</strong>masia.<br />

Depois, <strong>de</strong>screver-vos-ei o bosque sem ocultar na<strong>da</strong>. Não posso fazê-lo todo <strong>de</strong> uma vez e, por isso, vou<br />

contar or<strong>de</strong>na<strong>da</strong>mente, para que não possam me censurar na<strong>da</strong>.<br />

18 Melros – Designação comum às aves passeriformes <strong>da</strong> família dos turdí<strong>de</strong>os, especialmente o Turdus merula L., cujo macho<br />

é preto, com bico amarelo-alaranjado, e cuja fêmea tem dorso preto, ventre pardo-escuro malhado <strong>de</strong> pardo-claro, e a<br />

garganta e a parte superior do peito par<strong>da</strong>s com malhas esbranquiça<strong>da</strong>s.<br />

19 Gaio – Trata-se do Jay Europeu (Garrulus glan<strong>da</strong>rius), pássaro <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>da</strong>s Passeriformes, também chamado no Brasil <strong>de</strong><br />

Pega-azul. Abun<strong>da</strong>nte na Europa, habita nos bosques espessos e se alimenta principalmente <strong>de</strong> frutos <strong>de</strong> diversas árvores.<br />

20 Estorninho – Pequeno pássaro conirrostro (Sturnus vulgaris), <strong>de</strong> plumagem negra, lustrosa, malhado <strong>de</strong> branco com<br />

reflexos ver<strong>de</strong>s e purpúreos.<br />

21 Estrelinha-<strong>de</strong>-poupa (Regulus regulus) – Pássaro comum na Europa, <strong>de</strong> nove a <strong>de</strong>z centímetros <strong>de</strong> comprimento, com asas<br />

curtas e arredon<strong>da</strong><strong>da</strong>s e plumagem vistosa pela varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> suas cores.<br />

22 Pintassilgo (Spimus magellanicus ictericus) – Ave passeriforme, fringilí<strong>de</strong>a, <strong>de</strong> dorso oliváceo, cabeça, garganta, asas e cau<strong>da</strong><br />

pretas, espelho, base <strong>da</strong> cau<strong>da</strong> e lado inferior amarelos.<br />

23 Chapim (Parus) – Tipo <strong>de</strong> canário-<strong>da</strong>-terra, ave que canta regularmente.<br />

24 Tordo europeu (Turdus philomelos) – Pássaro <strong>da</strong> família dos turdí<strong>de</strong>os semelhante ao sabiá.<br />

25 Repare que o autor selecionou propositalmente pássaros que possuem cantos muito melodiosos, envolvendo o locus<br />

amoenus com uma bela e harmoniosa música natural cria<strong>da</strong> por Deus. Os medievais tinham especial predileção pela idéia<br />

que o universo emitia notas musicais, especialmente o movimento <strong>da</strong>s estrelas. Em sua obra De Imagine mundi (séc. XII), o<br />

escritor Honório <strong>de</strong> Autun (provavelmente um monge que viveu nas proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Regensburg) escreveu que “a<br />

revolução <strong>da</strong>s sete esferas dá origem a sons maviosíssimos, cuja harmoniosa consonância produz a mais admirável <strong>da</strong>s<br />

melodias. Contudo, esta harmonia <strong>da</strong>s esferas não chega aos nossos ouvidos, por originar-se para além do ar, que é o único<br />

meio em que nós percebemos os sons. A<strong>de</strong>mais, ela é <strong>de</strong>masiado forte para ser perceptível ao ouvido humano.” Citado em<br />

BOEHNER, Philotheus e GILSON, Etienne. <strong>História</strong> <strong>da</strong> Filosofia Cristã. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 278. Por esse<br />

motivo, Guilherme <strong>de</strong> Lorris incorpora uma ver<strong>da</strong><strong>de</strong>ira revoa<strong>da</strong> melódica <strong>de</strong> pássaros para <strong>da</strong>r um toque ain<strong>da</strong> mais<br />

poético ao ambiente harmonioso e amoroso do locus amoenus.<br />

6


Os pássaros cumpriam seu <strong>de</strong>ver doce e agradável, cantando lais <strong>de</strong> amor e canções corteses, uns<br />

com voz alta, outros em tom baixo. 26 O canto não era na<strong>da</strong> <strong>de</strong>preciável, e a melodia conseguiu que a<br />

doçura voltasse a brotar em meu coração. Depois <strong>de</strong> escutar um pouco os pássaros, não pu<strong>de</strong> resistir aos<br />

meus <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> estar diante <strong>de</strong> Lazer para ver seu aspecto e contemplar sua pessoa. Sem <strong>de</strong>ter-me, fui à<br />

direita, por uma pequena trilha cheia <strong>de</strong> erva-doce e <strong>de</strong> menta, e não <strong>de</strong>morei em encontrar o Lazer, pois<br />

estava no bosquezinho em que me meti. Ali estava se distraindo com pessoas <strong>de</strong> tanta beleza que, ao vêlas,<br />

perguntei-me <strong>de</strong> on<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam ter vindo, pois eram como anjos com asas: nunca vi jovens mais<br />

belos. Puseram-se a bailar ao coro e ao som <strong>da</strong>s canções que lhes cantava uma <strong>da</strong>ma chama<strong>da</strong> Alegria.<br />

Alegria cantava bem e <strong>de</strong> forma muito agradável; ninguém entoaria os estribilhos melhor nem com<br />

mais elegância; ela cantava extraordinariamente bem, com voz clara e pura; e, além disso, movia-se com<br />

habili<strong>da</strong><strong>de</strong>, lançava os pés <strong>de</strong> forma educa<strong>da</strong> e surgia no momento oportuno: estava acostuma<strong>da</strong> a cantar<br />

sempre a primeira – e esse era o trabalho que fazia com mais gosto.<br />

Ali vós os veríeis <strong>da</strong>r voltas, <strong>da</strong>nçando com graça em belos círculos sobre a grama fresca. Ali, vários<br />

flautistas, menestréis e jograis cantavam ritornelos 27 e canções <strong>de</strong> Lorena, pois, <strong>de</strong> todos os reinos, é em<br />

Lorena on<strong>de</strong> se fazem as mais belas canções. Havia inúmeras mulheres que tocavam as castanholas e o<br />

pan<strong>de</strong>iro com habili<strong>da</strong><strong>de</strong>, que não paravam <strong>de</strong> lançar o pan<strong>de</strong>iro ao ar e o pegarem sem nunca errar. Lazer<br />

fazia com que as moças, muito formosas, <strong>da</strong>nçassem no meio <strong>da</strong> ro<strong>da</strong>. Elas vestiam somente a cota e<br />

tinham seus cabelos presos com uma trança. Não é necessário cantar a elegância com que <strong>da</strong>nçavam: uma<br />

se aproximava <strong>da</strong> outra e, quando estavam juntas, aproximavam suas bocas parecendo que se beijariam no<br />

rosto. Sabiam se mover muito bem.<br />

Não sei mais o que vos dizer; por mim, nunca sairia <strong>da</strong>li enquanto aquelas gentes continuassem com<br />

seus bailados e <strong>da</strong>nças.<br />

De pé, contemplei a ro<strong>da</strong> até que veio a mim uma alegre <strong>da</strong>ma: era Cortesia, apreciável e afável. Que<br />

Deus a livre <strong>de</strong> todo o mal!<br />

Docemente ela se dirigiu a mim:<br />

– Bom amigo que vós fazeis aqui? Venhais e tomais parte na <strong>da</strong>nça conosco, se assim quiser<strong>de</strong>s.<br />

Sem tar<strong>da</strong>nça nem <strong>de</strong>mora juntei-me à ro<strong>da</strong>, contente por Cortesia ter suplicado e pedido que<br />

bailasse, pois estava <strong>de</strong>sejoso e com vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>nçar, embora não me atrevesse a fazê-lo. Assim,<br />

contemplei os corpos, as formas, os rostos, o aspecto e as maneiras dos que estavam <strong>da</strong>nçando – e vou<br />

<strong>de</strong>screvê-los.<br />

Lazer era belo, alto, esguio: não encontrareis homem mais formoso. Seu rosto era como uma maçã,<br />

rosado e branco em volta; era elegante e <strong>de</strong> boa aparência; tinha os olhos ver<strong>de</strong>s, a boca formosa, o nariz<br />

bem feito, reto; seus cabelos eram louros, encaracolados; tinha os ombros largos e a cintura estreita:<br />

parecia uma pintura, <strong>de</strong> tão formoso e elegante que era e por ter os membros bem formados. Em seus<br />

movimentos era hábil e ágil; não conhecerás ninguém mais ligeiro; não tinha barba nem bigo<strong>de</strong>, mas um<br />

buço incipiente, pois era um jovem rapaz. Trazia seu corpo vestido com um tecido <strong>de</strong> se<strong>da</strong> bor<strong>da</strong>do com<br />

pássaros, todo lustrado <strong>de</strong> ouro; seu traje tinha muitos adornos, pois estava elegantemente alisado e<br />

cortado em vários lugares. Estava calçado com gran<strong>de</strong> perfeição, com sapatos <strong>de</strong> ca<strong>da</strong>rço, feitos sob<br />

medi<strong>da</strong>. Por amor e como uma forma <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimento, sua amiga lhe havia feito uma coroa <strong>de</strong> rosas que<br />

lhe caía muito bem. 28 Sabeis quem era sua amiga? Era Alegria, que não odiava ninguém, sempre estava<br />

contente e cantava muito bem; <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que tinha somente sete anos ela lhe havia <strong>de</strong>clarado seu amor.<br />

Lazer a segurava pelos <strong>de</strong>dos no meio <strong>da</strong> ro<strong>da</strong> e ela também o segurava. Faziam um bonito par, pois<br />

ele era formoso e ela também. Pela cor <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>lica<strong>da</strong> pele, que se po<strong>de</strong>ria ferir com um pequeno<br />

espinho, ela parecia uma jovem rosa. Tinha a fronte formosa e ampla, sem rugas; sobrancelhas morenas e<br />

arquea<strong>da</strong>s; olhos alegres e tão vivos que sempre começavam a sorrir antes <strong>de</strong> sua pequena boca. Não sei o<br />

que dizer <strong>de</strong> seu nariz: não se po<strong>de</strong>ria fazer um melhor com cera. Tinha a boca pequenina e sempre<br />

26 Os Lais eram contos em versos octossilábicos do século XII. Ver Lais <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> França (trad. e introd. <strong>de</strong> Antonio L.<br />

Furtado). Petrópolis: Vozes, 2001.<br />

27 Ritornelo – No francês antigo rotouange, correspon<strong>de</strong>nte ao francês mo<strong>de</strong>rno ritournelle (e em espanhol estribillo), o ritornelo<br />

era uma composição em verso para ser canta<strong>da</strong> com um estribilho que se repetia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> estrofe. Agra<strong>de</strong>cemos à<br />

eterna amabili<strong>da</strong><strong>de</strong> do Prof. Dr. Fernando Domínguez Reboiras, que sempre interrompe seu trabalho no Raimundus-Lullus-<br />

Institut (Freiburg im Breisgau, Alemanha) para respon<strong>de</strong>r às minhas eternas dúvi<strong>da</strong>s sobre os temas e a linguagem dos<br />

homens do passado.<br />

28 A amiga a que o texto se refere significa a amante <strong>de</strong> Lazer, isto é, a Alegria.<br />

7


disposta a beijar seu amigo; sua cabeça era loura e reluzente. Que mais vos posso dizer? Ela era bela e<br />

elegante; enfeitava-se com um fio <strong>de</strong> ouro, e trazia um chapéu novo, <strong>de</strong> se<strong>da</strong> e <strong>de</strong> ouro. Eu, que tenho<br />

visto muitos penteados, nunca vi um tão bem feito. Vestia seu corpo e o cobria com um tecido <strong>de</strong> se<strong>da</strong><br />

dourado: sentia-se orgulhosa por seu amigo usar um tecido igual.<br />

A seu lado estava o Deus do Amor, que a seu <strong>de</strong>sejo distribui paixões. É ele quem faz justiça com<br />

os enamorados, é ele quem abate o orgulho <strong>da</strong>s gentes, fazendo do senhor, servidor, e <strong>da</strong>s <strong>da</strong>mas, cria<strong>da</strong>s –<br />

quando as encontra <strong>de</strong>masiado soberbas.<br />

Por seu aspecto, o Deus do Amor não parecia um rapaz vulgar e era apreciado por sua beleza. Para<br />

contar como estava vestido, eu temo estar em dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s, pois não trazia traje <strong>de</strong> se<strong>da</strong>, mas <strong>de</strong> florzinhas,<br />

feitas por <strong>de</strong>licados amores. Era um vestido <strong>de</strong> xadrez adornado por to<strong>da</strong>s as partes com losângulos, aves,<br />

leões, leopardos e outras classes <strong>de</strong> animais; para maior abundância <strong>de</strong> cores, tinha muitos tipos <strong>de</strong> flores,<br />

que haviam sido coloca<strong>da</strong>s ali com gran<strong>de</strong> arte.<br />

Não havia flor que nascesse no verão e que não estivesse ali: giesta 29 e violeta, flores brancas e<br />

negras, amarelas, azuis e ver<strong>de</strong>s; to<strong>da</strong>s estavam ali, tal era sua varie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em algumas partes estavam<br />

mistura<strong>da</strong>s pétalas <strong>de</strong> rosas gran<strong>de</strong>s e cheias. Na cabeça trazia uma grinal<strong>da</strong> <strong>de</strong> rosas, mas os rouxinóis que<br />

voavam ao redor faziam cair as pétalas.<br />

Ele mesmo estava ro<strong>de</strong>ado <strong>de</strong> pássaros, oriolí<strong>de</strong>os 30 , rouxinóis, calhandras e chapins-reais 31 : parecia<br />

um anjo que acabara <strong>de</strong> cair do céu. Ao seu lado havia um jovenzinho que mantinha perto <strong>de</strong> si e que se<br />

chamava Doce Olhar.<br />

Esse rapaz contemplava a <strong>da</strong>nça guar<strong>da</strong>ndo para o Deus do Amor dois arcos turcos 32 : um era feito<br />

com a ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> uma árvore cujos frutos são amargos e estava cheio <strong>de</strong> nós e protuberâncias por to<strong>da</strong>s as<br />

partes; ain<strong>da</strong>, era mais negro que a amora. O outro era feito <strong>de</strong> uma ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>lica<strong>da</strong> e flexível; era largo e<br />

com uma bela forma; estava bem talhado e mol<strong>da</strong>do, e tinha abun<strong>da</strong>ntes adornos: nele havia pinturas que<br />

representavam <strong>da</strong>mas <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as categorias e jovens alegres e elegantes.<br />

Tais eram os arcos que carregava Doce Olhar. Além disso, ele não parecia um rapaz vulgar, já que<br />

guar<strong>da</strong>va <strong>de</strong>z flechas <strong>de</strong> seu senhor e tinha cinco <strong>de</strong>las na mão direita. Essas estavam pinta<strong>da</strong>s <strong>de</strong> cor ouro,<br />

tinham penas bem feitas e talhes perfeitos, pontas fortes, cortantes e agu<strong>da</strong>s que podiam cravar-se sem<br />

dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas não eram <strong>de</strong> ferro nem <strong>de</strong> aço, pois não havia na<strong>da</strong> nessas flechas que não fosse <strong>de</strong> ouro,<br />

com exceção <strong>da</strong>s penas e <strong>da</strong> haste, que haviam sido coloca<strong>da</strong>s em pontas cortantes com filetes.<br />

A melhor e mais rápi<strong>da</strong> <strong>de</strong>ssas flechas, a mais formosa, a que trazia a melhor pluma, chamava-se<br />

Beleza. Uma <strong>da</strong>s que feria com maior facili<strong>da</strong><strong>de</strong> recebera o nome <strong>de</strong> Simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, segundo creio. Havia<br />

outra chama<strong>da</strong> Franqueza, que tinha uma pluma feita com valor e cortesia. A quarta flecha era muito<br />

pesa<strong>da</strong> e não podia ir muito longe: chamava-se Companhia; se utiliza<strong>da</strong> em distâncias curtas, po<strong>de</strong>ria<br />

causar graves <strong>da</strong>nos. A quinta se chamava Boa Face; era a mais ligeira e produzia gran<strong>de</strong>s feri<strong>da</strong>s; é digno<br />

<strong>de</strong> compaixão aquele que é alcançado por essa flecha, pois antes que se passe muito tempo verá sua saú<strong>de</strong><br />

afeta<strong>da</strong> com uma dor na<strong>da</strong> pequena.<br />

Havia cinco flechas <strong>de</strong> outro tipo, que eram muito feias. As hastes e pontas eram mais negras que o<br />

diabo do Inferno. A primeira se chamava Orgulho; outra, que não era melhor, Vilania, que estava<br />

carrega<strong>da</strong> com o veneno <strong>da</strong> traição; a terceira recebia o nome <strong>de</strong> Vergonha; e a quarta, <strong>de</strong> Desespero. A<br />

última sem dúvi<strong>da</strong> se chamava Mu<strong>da</strong>nça no Pensamento. Essas cinco flechas eram to<strong>da</strong>s iguais em suas<br />

formas e pareci<strong>da</strong>s entre si. Caía-lhes muito bem um dos arcos, o que era feio, cheio <strong>de</strong> nós e <strong>de</strong> saliências:<br />

esse <strong>de</strong>via disparar tais flechas. Seguramente tinham proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s contrárias às outras, mas não vou dizer<br />

agora suas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s, nem seus po<strong>de</strong>res: contar-vos-ei to<strong>da</strong> a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, não esquecendo o significado <strong>de</strong><br />

ca<strong>da</strong> uma <strong>de</strong>las – pois isso é importante – e revelar-vos-ei antes <strong>de</strong> finalizar meu relato. Agora, voltarei ao<br />

que estava dizendo.<br />

Vou contar o aspecto, os modos e o comportamento <strong>da</strong>s nobres gentes que estavam <strong>da</strong>nçando. O<br />

Deus do Amor havia se aproximado muito <strong>de</strong> uma <strong>da</strong>ma <strong>de</strong> eleva<strong>da</strong> condição. Tinha escolhido bem sua<br />

29 Giesta (Genista tinctoria) – Subarbusto <strong>de</strong> até 1,5 metros <strong>de</strong> altura, muito ramoso, dotado <strong>de</strong> folhas unifoliola<strong>da</strong>s, oblongas,<br />

cilia<strong>da</strong>s, vernicosa e glabras, ou pouco pubescentes, e flores amarelas.<br />

30 Família <strong>de</strong> aves passeriformes do Velho Mundo, caracteriza<strong>da</strong>s pela cor brilhante, amarelo-preta, dos machos.<br />

31 Chapim-real – Parus major.<br />

32 Provavelmente oriundo do arco assírio, o arco turco era um arco composto, mais vergado e feito com diferentes materiais,<br />

tudo isso com a finali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>da</strong>r maior potência à flecha. Por isso, eles eram superiores ao arco inglês, já muito potente<br />

(ambos foram utilizados nas cruza<strong>da</strong>s).<br />

8


companhia: essa <strong>da</strong>ma se chamava Beleza, como uma <strong>da</strong>s cinco flechas. Tinha to<strong>da</strong>s as boas quali<strong>da</strong><strong>de</strong>s:<br />

não era <strong>de</strong> pele escura, nem <strong>de</strong>masiado morena, mas brilhava como a Lua, aquela frente a qual as estrelas<br />

parecem tími<strong>da</strong>s velas. Tinha a carne frágil como o orvalho, era cheia <strong>de</strong> pudor como uma recém casa<strong>da</strong> e<br />

branca como o lírio; seu rosto era suave e liso, estava um pouco <strong>de</strong>lga<strong>da</strong>, era ágil e não havia se maquiado<br />

nem se pintado, pois não tinha necessi<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> se arrumar nem <strong>de</strong> se enfeitar. 33 Tinha os cabelos lourinhos<br />

e longos até os calcanhares, um nariz bem feito, como os olhos e a boca. Em meu coração entra uma<br />

gran<strong>de</strong> doçura – que Deus me aju<strong>de</strong>! – quando me lembro do aspecto <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus membros, pois<br />

não houve ain<strong>da</strong> mulher mais formosa no mundo. Para ser breve, direi que ela era muito jovem e loura,<br />

agradável, afável, cortês e elegante, bem proporciona<strong>da</strong> e um pouco magra, gentil e alegre.<br />

Ao lado <strong>da</strong> Beleza estava a Riqueza, <strong>da</strong>ma <strong>de</strong> eleva<strong>da</strong> posição, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor e <strong>de</strong> reconhecido<br />

mérito. Aquele que se atrevesse a causar-lhe <strong>da</strong>no ou aos seus por meio <strong>de</strong> ações ou palavras, teria que ser<br />

muito valente e ousado, pois ela po<strong>de</strong>ria prejudicá-lo ou beneficiá-lo muito: não é <strong>de</strong> hoje nem <strong>de</strong> ontem<br />

que os ricos têm um gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r para aju<strong>da</strong>r ou para prejudicar.<br />

Todos – gran<strong>de</strong>s e pequenos – tributavam honras à Riqueza; todos se esforçavam em servi-la para<br />

merecer mais suas recompensas; ca<strong>da</strong> um a chamava <strong>de</strong> “sua <strong>da</strong>ma”, pois todos a temiam; o mundo inteiro<br />

estava sob seu domínio. Em sua corte há muitos aduladores, muitos traidores e muitos invejosos: são os<br />

que buscam o <strong>de</strong>sprezo e a afronta para os amantes. Os aduladores elogiam as gentes quando estão em sua<br />

presença e subornam todo mundo com palavras, mas logo cravam pelas costas suas mentiras até o fim, até<br />

os ossos: esses aduladores têm obrigado muitos a fugir, fazendo com que se mantenham longe <strong>da</strong> corte<br />

muitos que <strong>de</strong>veriam ser conselheiros particulares. Que sobrevenham abun<strong>da</strong>ntes males a esses<br />

fofoqueiros cheios <strong>de</strong> inveja! Nenhum homem nobre ama sua vi<strong>da</strong>.<br />

Riqueza trazia um vestido <strong>de</strong> púrpura: não consi<strong>de</strong>reis exagero se vos digo e afirmo que jamais<br />

houve outro assim tão belo, rico e elegante em todo o mundo. Estava cheio <strong>de</strong> adornos <strong>de</strong> passamanaria 34<br />

e tinha <strong>de</strong>senha<strong>da</strong>s estórias <strong>de</strong> duques e reis com fios <strong>de</strong> ouro; trazia no colo uma fita <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong><br />

esmaltes enriqueci<strong>da</strong> com abun<strong>da</strong>ntes pedras preciosas que irradiavam uma gran<strong>de</strong> clari<strong>da</strong><strong>de</strong>. Riqueza<br />

trazia um cinturão muito elegante: nenhuma <strong>da</strong>ma alguma havia colocado um tão rico. Seu broche era feito<br />

<strong>de</strong> uma pedra que tinha proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s e virtu<strong>de</strong>s extraordinárias, pois quem a levasse consigo não precisava<br />

temer nenhum veneno, nem ser envenenado com na<strong>da</strong>. Ela fazia bem estimar tal pedra, que valia para<br />

qualquer rico mais que todo o ouro <strong>de</strong> Roma. A fivela era <strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong> pedra, que curava a dor <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntes com a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> que quem a contemplasse, por mais jovem que fosse, ficaria salvo o resto <strong>da</strong> vi<strong>da</strong>.<br />

Os <strong>de</strong>talhes no tecido dourado eram <strong>de</strong> ouro puro: grossos e pesados, o valor <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les era, no<br />

mínimo, <strong>de</strong> um besante. 35<br />

Sobre as tranças louras ela trazia um dia<strong>de</strong>ma <strong>de</strong> ouro: até então nunca vira um tão formoso, em<br />

minha opinião. Era <strong>de</strong> ouro retorcido. Seria muito hábil na <strong>de</strong>scrição aquele que fosse capaz <strong>de</strong> vos contar<br />

ou <strong>de</strong>screver as gemas que havia nele: seria impossível calcular o valor <strong>da</strong>s pedras que estavam engasta<strong>da</strong>s<br />

no ouro. Ali havia rubis, safiras, jacintos e mais <strong>de</strong> duas onças <strong>de</strong> esmeral<strong>da</strong>s 36 ; o dia<strong>de</strong>ma tinha por to<strong>da</strong> a<br />

parte <strong>da</strong> frente um rubi engastado com gran<strong>de</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong>: esse emitia tanta luz que quando anoitecia podia<br />

ser visto a uma légua <strong>de</strong> distância, e saía tal clari<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>da</strong> pedra que Riqueza tinha seu rosto e sua face<br />

resplan<strong>de</strong>ci<strong>da</strong>, e ao seu redor tudo ficava iluminado.<br />

Ela estava <strong>de</strong> mãos <strong>da</strong><strong>da</strong>s com um rapaz extraordinariamente belo, que era seu ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro amigo.<br />

Era um homem que prazerosamente se entretinha em cui<strong>da</strong>r bem <strong>de</strong> seus pertences: calçava-se e se vestia<br />

com esmero, tinha valiosos cavalos, pois preferia ser acusado <strong>de</strong> assassinato ou latrocínio que ter<br />

33 Normalmente, nos textos medievais a pintura feminina é associa<strong>da</strong> à prostituição, especialmente nas pregações dos<br />

moralistas (o que, <strong>de</strong> fato, <strong>de</strong>staca ain<strong>da</strong> mais o fato <strong>de</strong> as mulheres medievais se pintarem, contrariando o discurso<br />

eclesiástico). Neste caso, Guilherme <strong>de</strong> Lorris literalmente subverte o sentido tradicional, pois <strong>de</strong>staca que Beleza não se<br />

pintava porque era naturalmente bela, o que ressalta ain<strong>da</strong> mais o caráter profano do texto e sua relação com a natureza, nova<br />

<strong>de</strong>scoberta dos medievais dos séculos XII-XIII. Para o primeiro caso (<strong>da</strong> pintura e <strong>da</strong> prostituição feminina), ver<br />

MACEDO, José Rivair. “A face <strong>da</strong>s filhas <strong>de</strong> Eva: os cui<strong>da</strong>dos com a aparência num manual <strong>de</strong> beleza do século XIII”, In:<br />

<strong>História</strong>. São Paulo: Unesp, 17/18, 1998/1999, p. 293-313.<br />

34 Passamanaria – Designação comum a certos tipos <strong>de</strong> tecido trabalhado ou entrançado com um fio grosso, em geral <strong>de</strong><br />

se<strong>da</strong> (passamanes, galões, franjas, borlas, etc.), e <strong>de</strong>stinado ao acabamento ou adorno <strong>de</strong> roupas. Havia ain<strong>da</strong> um ofício <strong>de</strong><br />

costureiro específico para esse tipo <strong>de</strong> trabalho: o passamaneiro, cuja loja chamava-se passamanaria.<br />

35 Besante – Antiga moe<strong>da</strong> bizantina <strong>de</strong> ouro e prata.<br />

36 “...mais <strong>de</strong> duas onças <strong>de</strong> esmeral<strong>da</strong>s” – A onça era uma uni<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> peso, equivalente a cerca <strong>de</strong> 28,691 g; entre os<br />

romanos, equivalia à décima-segun<strong>da</strong> parte <strong>da</strong> libra.<br />

9


ocinantes ruins em seu estábulo. 37 Por isso, estimava muito a elegância e a benevolência <strong>de</strong> Riqueza, pois<br />

estava sempre pensando em ter gran<strong>de</strong>s gastos: ela os mantinha e o sustentava, <strong>da</strong>ndo-lhe tantos bens<br />

como se os tirasse <strong>de</strong> um celeiro.<br />

A seguir vinha a Generosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, que era bem educa<strong>da</strong>, sabia agra<strong>da</strong>r as gentes e gastar muito. Era <strong>da</strong><br />

linhagem <strong>de</strong> Alexandre 38 e na<strong>da</strong> lhe causava maior prazer que dizer “toma”. Avareza, a pobre, não estava<br />

tão disposta a receber como Generosi<strong>da</strong><strong>de</strong> a <strong>da</strong>r. Deus fazia crescer suas riquezas, <strong>de</strong> modo que quanto<br />

mais <strong>da</strong>va, mais tinha. Gran<strong>de</strong>s eram os méritos e a fama <strong>de</strong> Generosi<strong>da</strong><strong>de</strong>: ela tinha à sua disposição<br />

tanto sábios quanto loucos, pois a todos havia conquistado com seus dons. E se houvesse alguém que a<br />

odiasse, com seus muitos favores ela conseguiria ganhá-lo como amigo. Por isso, os ricos e os pobres a<br />

amavam.<br />

Muito louco está o homem <strong>de</strong> eleva<strong>da</strong> condição que é tacanho, já que esse é o pior vício que se po<strong>de</strong><br />

ter: o avaro não conquistará nunca nem senhorios, nem gran<strong>de</strong>s terras, porque não tem amigos o<br />

suficiente para cumprir seus <strong>de</strong>sejos. Aquele que quiser ter amigos, não <strong>de</strong>ve apreciar muito seus bens, já<br />

que ganhará amigos com bons presentes, pois do mesmo modo que o ímã atrai o ferro com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>, o<br />

ouro e a prata atraem o coração <strong>da</strong>s gentes que se presenteia.<br />

Generosi<strong>da</strong><strong>de</strong> trazia um vestido novo, <strong>de</strong> púrpura sarracena. Seu rosto era formoso e bem feito;<br />

trazia o colo à mostra, pois acabara <strong>de</strong> presentear seu broche ali mesmo a uma <strong>da</strong>ma. Mas não lhe ficava<br />

mal ter seu colo <strong>de</strong>scoberto, pois <strong>de</strong>ixando a garganta à vista, por <strong>de</strong>baixo <strong>da</strong> camisa sua pele suave ficava<br />

às claras. Generosi<strong>da</strong><strong>de</strong>, a aprecia<strong>da</strong>, a pru<strong>de</strong>nte, estava acompanha<strong>da</strong> por um cavaleiro <strong>da</strong> linhagem do bom<br />

rei Artur <strong>da</strong> Bretanha. 39 Esse cavaleiro sustentava um estan<strong>da</strong>rte <strong>de</strong> valor e uma ban<strong>de</strong>ira; e tinha tal fama<br />

que suas histórias eram e continuam sendo canta<strong>da</strong>s diante <strong>de</strong> reis e <strong>de</strong> con<strong>de</strong>s. O cavaleiro acabava <strong>de</strong><br />

regressar <strong>de</strong> um torneio em que havia realizado gran<strong>de</strong>s proezas e numerosos combates por sua amiga;<br />

<strong>de</strong>struíra muitos elmos ver<strong>de</strong>s, tinha atravessado inumeráveis escudos com seu brocal e <strong>de</strong>rrubado muitos<br />

cavaleiros, vencendo-os graças à sua força e ao seu valor. 40<br />

A seguir estava a Franqueza, que não era nem morena, nem <strong>de</strong> cor amarela<strong>da</strong>; era mais branca que a<br />

neve. Não tinha o nariz chato como os <strong>de</strong> Orléans, pelo contrário, possuía um nariz longo e reto; seus<br />

olhos eram ver<strong>de</strong>-claros, alegres, com sobrancelhas arquea<strong>da</strong>s, cabelos louros e longos; era mais singela do<br />

que uma pomba. Tinha um coração doce e cheio <strong>de</strong> amabili<strong>da</strong><strong>de</strong>: não se atrevia a dizer ou fazer na<strong>da</strong><br />

in<strong>de</strong>vido contra ninguém. Se conhecesse um homem que se sentisse atormentado e <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> tê-la como<br />

amiga, penso que não tar<strong>da</strong>ria em se compa<strong>de</strong>cer <strong>de</strong>le, pois seu coração era tão misericordioso, tão doce e<br />

tão amável, que se alguém sofresse por ela sem que ela lhe prestasse aju<strong>da</strong>, pensaria estar cometendo uma<br />

gran<strong>de</strong> vilania.<br />

Trazia um vestido que não era na<strong>da</strong> rústico: não havia outro tão rico até Arras 41 ; estava tão bem<br />

cortado e costurado que não havia uma só ponta que não estivesse em seu lugar certo. Muito bem vesti<strong>da</strong><br />

estava Franqueza, pois não havia vestido melhor para as donzelas do que o que ela usava: a mulher fica<br />

mais elegante e atraente com um vestido com cota como aquele. O vestido, que era branco, indicava que a<br />

pessoa que o vestia era doce e sincera.<br />

Ao seu lado havia um rapaz, não sei como se chamava, mas era belo e <strong>de</strong>via ser filho do senhor <strong>de</strong><br />

Windsor.<br />

Atrás <strong>de</strong>le estava Cortesia, que era muito estima<strong>da</strong> por todos, pois não era nem orgulhosa nem<br />

louca. Foi ela quem me chamou para <strong>da</strong>nçar quando chegara ali, e eu a agra<strong>de</strong>ço por isso. Ela não era<br />

37 Rocinante – Cavalo muito manso e obediente.<br />

38 “Era <strong>da</strong> linhagem <strong>de</strong> Alexandre” – Nessa passagem Guilherme se refere a Alexandre, o Gran<strong>de</strong>.<br />

39 Artur, rei lendário <strong>da</strong> Bretanha que aparece num círculo <strong>de</strong> romances medievais como o soberano dos cavaleiros <strong>da</strong> Távola<br />

Redon<strong>da</strong>. É mencionado na Historia Regum Britanniae <strong>de</strong> Geoffrey <strong>de</strong> Monmouth (1136-1138), obra posteriormente<br />

amplia<strong>da</strong> por Chrétien <strong>de</strong> Troyes (c. 1135-1138).<br />

40 O louvor à bravura <strong>de</strong>monstra<strong>da</strong> pelo cavaleiro nos torneios mostra uma vez mais o explícito caráter laico do texto, pois<br />

os clérigos medievais sempre se opunham a essas competições. Ver LE GOFF, Jacques. “Reali<strong>da</strong><strong>de</strong>s sociais e códigos<br />

i<strong>de</strong>ológicos no início do século XIII: um exemplum <strong>de</strong> Jacques <strong>de</strong> Vitry sobre os torneios”. In: LE GOFF, Jacques. O<br />

imaginário medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, p. 267-279.<br />

41 Como na nota 15, o texto indica outra importante ci<strong>da</strong><strong>de</strong> na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, Arras, localiza<strong>da</strong> atualmente na região <strong>de</strong> Nortepas-<strong>de</strong><br />

Calais, no norte <strong>da</strong> França, entre Lille e Amiens. Na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, além <strong>de</strong> ser um conhecido centro literário, Arras<br />

era conheci<strong>da</strong> por ser um importante centro comercial e financeiro. O século XIII é conhecido como o século <strong>de</strong> ouro <strong>de</strong><br />

Arras. A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> também era famosa pela quali<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> seus tecidos (a tapeçaria em Arras era muito estima<strong>da</strong>). Por esse<br />

motivo, na passagem do <strong>Romance</strong> <strong>da</strong> <strong>Rosa</strong>, o vestido <strong>da</strong> Franqueza era tão rico como os <strong>de</strong> Arras!<br />

10


ingênua nem sombria, era pru<strong>de</strong>nte e discreta, sem insolência, <strong>de</strong> boas respostas e palavras agradáveis;<br />

ninguém a contrariava e com ninguém se zangava. Tinha cabelos castanhos. Era gentil, formosa e elegante<br />

– não conheço outra <strong>de</strong> aspecto mais agradável; por sua beleza era digna <strong>de</strong> ser imperatriz ou rainha.<br />

Estava acompanha<strong>da</strong> por um cavalheiro <strong>de</strong> maneira afetuosa, palavras amenas e que honrava as pessoas<br />

como <strong>de</strong>via. Eram um cavalheiro belo e <strong>de</strong> nobre presença, hábil com as armas e amado por sua <strong>da</strong>ma.<br />

Depois vinha a bela Ociosa, que se mantinha ao meu lado. Já lhes disse, sem ocultar na<strong>da</strong>, qual era<br />

seu aspecto e sua imagem: não vos contarei na<strong>da</strong> mais. Ela foi a primeira a me tratar com bon<strong>da</strong><strong>de</strong>, ao<br />

abrir a porta do jardim, e lhe sou grato.<br />

Ao seu lado estava, se não me equivoco, Juventu<strong>de</strong>, <strong>de</strong> rosto claro e alegre e que me parecia ter<br />

pouco mais <strong>de</strong> doze anos. Era um pouco simples, não pensava em nenhum mal, nem em perfídia alguma,<br />

pelo contrário, estava alegre e contente, pois a jovem não se preocupava em na<strong>da</strong> mais do que brincar,<br />

como bem sabeis. Seu amigo era tão íntimo que a beijava sempre que quisesse na frente <strong>de</strong> todos que<br />

estavam <strong>da</strong>nçando. Ain<strong>da</strong> que alguém lhes houvesse dito duas palavras, não teriam se envergonhado, pois<br />

estavam se beijando como dois pombos. O rapaz era jovem e belo, <strong>de</strong>via ter a mesma i<strong>da</strong><strong>de</strong> que sua amiga<br />

e sentia a mesma coisa que ela.<br />

Assim bailavam aquelas pessoas, acompanha<strong>da</strong>s por outras <strong>de</strong> sua corte. To<strong>da</strong>s eram nobres,<br />

educa<strong>da</strong>s e <strong>de</strong> bom comportamento. Depois <strong>de</strong> ver a aparência dos que dirigiam as <strong>da</strong>nças, eu comecei a<br />

sentir um <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> contemplar e percorrer o jardim e <strong>de</strong>tive meu olhar nos formosos loureiros 42 ,<br />

pinheiros 43 , aveleiras 44 e nogueiras. 45 O baile estava acabando, pois a maioria se retirava com suas amigas<br />

para a sombra <strong>da</strong>s árvores a fim <strong>de</strong> cortejá-las. Deus, que boa vi<strong>da</strong> levam! Louco é quem não sente inveja!<br />

Aquele que pu<strong>de</strong>sse se permitir uma vi<strong>da</strong> semelhante suportaria com gosto a falta <strong>de</strong> outros bens menores,<br />

pois não há paraíso maior que estar à vonta<strong>de</strong> com sua amiga.<br />

Comecei a an<strong>da</strong>r, entretendo-me sozinho pelo jardim, indo <strong>de</strong> um lado para o outro. Então, o Deus<br />

do Amor chamou Doce Olhar, pois não queria continuar guar<strong>da</strong>ndo por mais tempo o arco <strong>de</strong> ouro. Sem<br />

<strong>de</strong>mora, or<strong>de</strong>nou-lhe que o esticasse, e este o fez imediatamente. Deu-lhe o arco já esticado e cinco flechas<br />

fortes e brilhantes, já prepara<strong>da</strong>s para serem lança<strong>da</strong>s. O Deus do Amor começou a seguir-me à distância,<br />

com o arco na mão. Que Deus me proteja <strong>da</strong> feri<strong>da</strong> mortal se ele dispara contra mim!<br />

Eu, que até então não <strong>de</strong>ra nenhuma importância àquilo, estava alegre, divertindo-me livremente<br />

pelo jardim, enquanto o outro me seguia. Não me <strong>de</strong>tive em lugar algum até que não houvesse percorrido<br />

tudo. Era um jardim perfeitamente quadrado, igual na largura e na altura. 46<br />

Não havia árvore carrega<strong>da</strong> <strong>de</strong> frutos – a não ser que fosse uma árvore <strong>de</strong>sprezível – que não<br />

houvesse dois ou três exemplares, ou até mais, no pomar. Havia macieiras, bem relembro, com abun<strong>da</strong>ntes<br />

maçãs vermelhas, que são uma boa fruta para os doentes; havia inúmeras nogueiras, que quando chegava a<br />

época se enchiam <strong>de</strong> nozes mosca<strong>da</strong>s, que não são nem amargas nem insípi<strong>da</strong>s; abun<strong>da</strong>vam as amêndoas<br />

planta<strong>da</strong>s no jardim; quem necessitasse, encontraria ali muitas figueiras e numerosas palmeiras <strong>de</strong> tâmaras.<br />

42 Os loureiros representam a imortali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois simbolizam to<strong>da</strong>s as plantas que permanecem ver<strong>de</strong>s durante o inverno.<br />

Ver CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, op. cit., p. 561.<br />

43 O pinheiro, assim como o loureiro, também representa a imortali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Era <strong>de</strong>dicado à Cibele, <strong>de</strong>usa <strong>da</strong> fecundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Em<br />

Roma, no culto a essa <strong>de</strong>usa, um pinheiro era abatido e transportado para o templo do Palatino pela confraria dos<br />

<strong>de</strong>ndróforos (carregadores <strong>de</strong> árvores). Esse pinheiro simbolizava Átis morto – esposo <strong>de</strong> Cibele. O pinheiro, <strong>de</strong>ssa forma,<br />

representava a alternância <strong>da</strong>s estações. CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, op. cit., p. 719.<br />

44 As aveleiras têm uma importante simbologia entre germânicos e nórdicos. Iduna, <strong>de</strong>usa <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> e <strong>da</strong> fertili<strong>da</strong><strong>de</strong>, é liberta<strong>da</strong><br />

por Loki, transformado em falcão, que a leva sob a forma <strong>de</strong> uma avelã. Num conto <strong>da</strong> Islândia, uma duquesa passeia por<br />

um bosque <strong>de</strong> aveleiras para consultar os <strong>de</strong>uses que a tornam fecun<strong>da</strong>. Pouco a pouco essa árvore se torna símbolo <strong>da</strong><br />

incontinência e <strong>da</strong> luxúria e, por fim, do diabo. CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, op. cit.,<br />

p. 103.<br />

45 As nogueiras, entre os gregos, eram associa<strong>da</strong>s ao dom <strong>da</strong> profecia. Um culto era prestado a Ártemis Cariáti<strong>de</strong>, que foi<br />

ama<strong>da</strong> por Dionísio, dota<strong>da</strong> <strong>de</strong> clarividência e transforma<strong>da</strong> em uma nogueira <strong>de</strong> frutos fecundos. CHEVALIER, Jean e<br />

GHEERBRANT, Alain. Dicionário <strong>de</strong> Símbolos, op. cit., p. 639.<br />

46 Não é aci<strong>de</strong>ntal o <strong>de</strong>staque que Guilherme <strong>de</strong> Lorris dá ao fato <strong>de</strong> a planta do Jardim do Amor ser “perfeitamente<br />

quadra<strong>da</strong>”. O valor simbólico <strong>da</strong> planta quadra<strong>da</strong> na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média remonta à visão <strong>da</strong> Jerusalém futura <strong>de</strong> João no Apocalipse:<br />

“A ci<strong>da</strong><strong>de</strong> é quadrangular: seu comprimento é igual à largura” (Ap 21, 16). No entanto, o quadrado espacial, que na mística<br />

medieval tem o valor simbólico <strong>da</strong> glória, laicizado no <strong>Romance</strong> <strong>da</strong> <strong>Rosa</strong>, simboliza a perfeição do amor.<br />

11


Havia no jardim diferentes especiarias: cravos, alcaçuz 47 , car<strong>da</strong>momos frescos 48 , erva-luiza 49 , anis, canela e<br />

muitas outras especiarias agradáveis que fazem com que a comi<strong>da</strong> seja boa na mesa.<br />

No jardim havia árvores frutíferas carrega<strong>da</strong>s <strong>de</strong> marmelos e <strong>de</strong> pêssegos, castanhas, nozes, maçãs,<br />

pêras, nêsperas 50 , ameixas cláudias 51 e pretas, cerejas vermelhas frescas, serbas 52 , amieiros 53 e avelãs. O<br />

jardim estava povoado <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s loureiros e <strong>de</strong> altos pinheiros; também eram abun<strong>da</strong>ntes no jardim as<br />

oliveiras e os ciprestes; havia frondosos e robustos ulmos 54 , loendros 55 , faias 56 , aveleiras compri<strong>da</strong>s,<br />

álamos 57 , freixos 58 , áceres 59 , altos abetos 60 e carvalhos. Que mais posso dizer? Havia tal varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

árvores que encontraria muita dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> para enumerá-las por completo. Saiba que as árvores estavam<br />

tão separa<strong>da</strong>s uma <strong>da</strong>s outras, como <strong>de</strong>veria ser, que distavam mais <strong>de</strong> cinco ou seis toesas. 61 Os galhos<br />

eram largos, altos e tão frondosos por cima, que impediam que o calor e o sol chegassem a bater no chão e<br />

<strong>da</strong>nificar a tenra erva.<br />

47 Alcaçuz (do latim liquiritĭa, <strong>de</strong> glycyrrhīza) – Indicado como expectorante e antiinflamatório <strong>da</strong>s vias aéreas superiores, nas<br />

alergias respiratórias, gripes e resfriados; e como anti-ulceroso, gastroprotetor e digestivo na gastrite e úlcera péptica. A<br />

complica<strong>da</strong> composição química do alcaçuz dá a ele um largo espectro <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Centenas <strong>de</strong> estudos já<br />

comprovaram sua ação no tratamento <strong>de</strong> doenças do fígado, supra-renais, <strong>de</strong>sequilíbrios hormonais e úlceras pépticas. Na<br />

China, on<strong>de</strong> é uma <strong>da</strong>s ervas mais utiliza<strong>da</strong>s, é indicado para o baço, rins e para proteger o fígado <strong>de</strong> doenças. No Japão<br />

um preparado <strong>de</strong> alcaçuz é utilizado para tratar a hepatite. Estudos mostram que o uso do alcaçuz aju<strong>da</strong> o fígado a<br />

combater as toxinas produzi<strong>da</strong>s pela difteria, tétano, cocaína e estriquinina e também aumenta a estocagem <strong>de</strong> glicogênio.<br />

48 Car<strong>da</strong>momo (do latim car<strong>da</strong>mōmum) – Árvore <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, <strong>da</strong> família do gengibre, com folhas gran<strong>de</strong>s, flores brancas e<br />

frutos <strong>de</strong> formato elíptico. As sementes secas são usa<strong>da</strong>s como condimento e têm sabor picante. O car<strong>da</strong>momo apresenta<br />

proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s anti-séptica, digestiva, diurética, expectorante e laxante. As sementes <strong>de</strong> car<strong>da</strong>momo são consumi<strong>da</strong>s no café<br />

nos países árabes e na Índia, além <strong>de</strong> fazer parte do baharat, uma mistura <strong>de</strong> condimentos usa<strong>da</strong> para temperar pratos. O<br />

condimento também é aproveitado para aromatizar pães, carnes, pastéis, pudins, doces e licores. Não <strong>de</strong>ve ser consumido<br />

em altas doses, pois po<strong>de</strong> provocar vômitos.<br />

49 Erva-luiza (ou erva oubena) – Planta <strong>da</strong> família <strong>da</strong>s Verbenáceas, com folhas elípticas e ásperas na parte superior, flores<br />

pequenas em forma <strong>de</strong> espiga, brancas por fora e azula<strong>da</strong>s no interior, e fruto seco com sementes negras. É cultiva<strong>da</strong> nos<br />

jardins, tem cheiro <strong>de</strong> limão e é aprecia<strong>da</strong> como tônico estomacal e anti-espasmódico.<br />

50 Nêspera (Nespereira – Eriobotrya japonica, Nespilus Germanica) – Nome popular: ameixa amarela, ameixinha, nêspera-pera<br />

ou nêspera-maçã. Tem efeito diurético e exerce nos catarros intestinais uma ação energética antiinflamatória, don<strong>de</strong><br />

provém a sua influência reguladora intestinal. A polpa <strong>da</strong> nêspera contém 0,35% <strong>de</strong> proteínas, 11,5% <strong>de</strong> hidrocarbonatos<br />

(dos quais 9,5 são açúcares), 75% <strong>de</strong> água, 13,2% <strong>de</strong> celulose, 56 calorias, 0,44% <strong>de</strong> cinzas e também contém pectina e<br />

tanino; ácidos cítrico, málico, tartárico e uma pequena quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> ácido bórico. A semente contém 2,5% <strong>de</strong> óleos<br />

gordurosos. O conteúdo em tanino e pectina justifica o seu efeito antidiarréico e regulador do intestino, assim como a sua<br />

ação adstringente e tonificadora <strong>da</strong> mucosa intestinal.<br />

51 Ameixa-cláudia – Ameixa <strong>de</strong> cor ver<strong>de</strong> clara, muito doce e com muito sumo.<br />

52 Serba – Fruto <strong>da</strong> árvore serbal (família <strong>da</strong>s <strong>Rosa</strong>ceae). As amoras e morangos também são frutas <strong>da</strong> família <strong>da</strong>s <strong>Rosa</strong>ceae.<br />

53 Amieiro (Alnus glutinosa) – Árvore ornamental <strong>da</strong> família <strong>da</strong>s Betuláceas. Proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s medicinais: adstringente<br />

(antidiarréico, hemostático local), analgésico local, antipirético, catártica, colerético, <strong>de</strong>scongestionante, emética, febrífuga,<br />

hemostático, mucilaginoso, tônico amargo.<br />

54 Ulmo (Ulmus minor) – O ulmo também chamado muermo, toz ou voyencum, é uma árvore sempre ver<strong>de</strong> que po<strong>de</strong> alcançar até<br />

40 metros <strong>de</strong> altura, e a base <strong>de</strong> seu tronco, aproxima<strong>da</strong>mente 2 metros <strong>de</strong> diâmetro. O Ulmo é <strong>de</strong> crescimento<br />

relativamente rápido e a casca, cinza-marrom e com fissuras longitudinais, não cai facilmente. O córtex do ulmeiro<br />

escorregadio tem uma reputação como medicamento para a bronquite, pleurisia e tosses. Seu córtex interno é conhecido<br />

pelas suas proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>mulcentes, diuréticas e emolientes.<br />

55 Loendro (Rhodo<strong>de</strong>ndron ponticum) – Arbusto <strong>da</strong> família <strong>da</strong>s apocináceas. Também conhecido como rodo<strong>de</strong>ndro.<br />

56 Faia (do latim fagea, <strong>de</strong> faia) – Árvore fagácea do sul e do centro <strong>da</strong> Europa, muito cultiva<strong>da</strong> por ser ornamental.<br />

57 Álamos (do latim alnu, influenciado por ulmu) – Espécie <strong>de</strong> olmo ou choupo <strong>da</strong> família <strong>da</strong>s salicíneas.<br />

58 Freixos (Fraxinus excelsior L.) – Aproxima<strong>da</strong>mente 65 espécies <strong>de</strong> árvores <strong>de</strong>cíduas, principalmente robustas, compõem o<br />

gênero Fraxinus, que ocorre ao longo <strong>da</strong>s partes tempera<strong>da</strong>s do hemisfério norte. Fraxinus ornus é encontrado em bosques<br />

<strong>da</strong> Europa meridional e <strong>da</strong> Ásia oci<strong>de</strong>ntal. A maioria dos freixos cresce rapi<strong>da</strong>mente e tolera uma gran<strong>de</strong> varie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

condições ambientais. Eles têm folhas penatissectas e flores insignificantes, com a exceção dos freixos <strong>de</strong>nomina<strong>da</strong>s<br />

“florescentes”. Esses incluem várias espécies ornamentais, como Fraxinus ornus, que produz vistosas panículas <strong>de</strong> flores<br />

brancas.<br />

59 Ácer – O Acer palmatum é uma árvore cujas folhas caem no inverno, originária <strong>da</strong>s regiões frias do hemisfério norte.<br />

Existem numerosas varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong>sta espécie.<br />

60 Abeto é o nome popular <strong>de</strong> diversas espécies dos gêneros Picea e Abies. São árvores coníferas <strong>da</strong> família Pinaceae, nativas <strong>de</strong><br />

florestas tempera<strong>da</strong>s <strong>da</strong> Europa e Ásia. Os abetos, <strong>de</strong> maneira geral, possuem folhas pequenas e aromáticas e produzem<br />

pólen abun<strong>da</strong>nte durante o período <strong>de</strong> reprodução.<br />

61 Toesa (do fr. toise) – Antiga medi<strong>da</strong> francesa <strong>de</strong> longitu<strong>de</strong> equivalente a 1,946 metros (seis pés).<br />

12


No pomar havia gamos 62 , corços 63 e muitos esquilos que subiam nas árvores; havia coelhos que<br />

entravam e saíam <strong>de</strong> suas tocas sem cessar; uns corriam atrás dos outros <strong>de</strong> infinitas formas pela fresca<br />

grama ver<strong>de</strong>.<br />

Havia ali não sei quantas fontes claras à sombra <strong>da</strong>s árvores, sem insetos ou rãs. A água corria com<br />

um murmúrio doce e agradável por pequenos regatos que Lazer havia man<strong>da</strong>do fazer. Ao redor dos<br />

riachos e à margem <strong>da</strong>s fontes claras e vivas, brotava com força a erva fresquinha. Ali se podia recostar na<br />

sua amiga como em um leito, pois a terra era bran<strong>da</strong> e suave. Graças aos mananciais, crescera erva<br />

suficiente. Entretanto, o lugar também estava embelezado pela abundância <strong>de</strong> flores que sempre havia ali,<br />

tanto no inverno quanto no verão: lin<strong>da</strong>s violetas recém abertas, frescas e macias; flores brancas,<br />

vermelhas e muitas varie<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> flores amarelas. Aquela terra era belíssima, adorna<strong>da</strong> e salpica<strong>da</strong> <strong>de</strong> flores<br />

<strong>de</strong> distintas cores e <strong>de</strong> extraordinário perfume.<br />

Não falarei por mais tempo <strong>da</strong>quele agradável e aprazível lugar. Vou me calar, pois seria impossível<br />

contar to<strong>da</strong> a beleza e a formosura do pomar.<br />

Fui <strong>de</strong> um lado a outro até que percorri e contemplei o jardim em sua totali<strong>da</strong><strong>de</strong>. Enquanto isso, o<br />

Deus do Amor me seguia atento, como um caçador que espera o animal entrar no lugar a<strong>de</strong>quado para<br />

então lançar a flecha. Cheguei a um lugar belíssimo, um pouco distante, no qual encontrei uma fonte<br />

<strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um pinheiro. Des<strong>de</strong> os tempos <strong>de</strong> Carlos Magno e <strong>de</strong> Pepino não se vira uma árvore tão<br />

formosa 64 : crescera tanto que em todo o jardim não havia árvore mais alta.<br />

Com gran<strong>de</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong>, a natureza havia situado a fonte em uma pedra <strong>de</strong> mármore que tinha<br />

pequenas letras escritas na parte superior e que diziam: “Aqui morreu o belo Narciso”.<br />

Narciso foi um rapaz que o amor capturou em suas re<strong>de</strong>s. O amor o atormentou tanto e tanto fez,<br />

que ele chorava e se lamentava; ao final entregou sua alma, pois Eco, <strong>da</strong>ma <strong>de</strong> eleva<strong>da</strong> posição, o amava<br />

mais que qualquer ser vivo, mas foi tão maltrata<strong>da</strong> por ele, que acabou dizendo que obteria seu amor ou<br />

morreria. Porém, Narciso era tão belo, que por sua gran<strong>de</strong> formosura estava cheio <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém e <strong>de</strong><br />

orgulho, e não a quis aceitar por mais que ela lhe pedisse e suplicasse. Ao ver-se rejeita<strong>da</strong>, Eco sentiu<br />

tamanha dor e tristeza e consi<strong>de</strong>rou seu <strong>de</strong>sprezo tão gran<strong>de</strong> que caiu morta instantaneamente. Mas antes<br />

<strong>de</strong> morrer suplicou e rogou a Deus que Narciso, por seu coração fugidio e sua in<strong>de</strong>cisão para amar, fosse<br />

um dia atormentado e <strong>de</strong>struído por um amor pelo qual ele não pu<strong>de</strong>sse encontrar médico que o curasse:<br />

assim ele saberia e conheceria o sofrimento que os fiéis amantes sentem quando rejeitados <strong>de</strong> forma tão<br />

vil.<br />

Esta súplica era razoável e, por isso, Deus a aceitou. Assim, um dia, casualmente, Narciso chegou<br />

àquela fonte <strong>de</strong> águas puras e cristalinas, pôs-se à sombra do pinheiro no dia que regressava <strong>da</strong> caça e que<br />

havia se esforçado correndo para cima e para baixo, até que se sentiu se<strong>de</strong>nto pela dureza do calor e pelo<br />

cansaço que lhe privara <strong>de</strong> alento.<br />

Quando chegou à fonte que o pinheiro cobria com seus galhos, pensou beber <strong>de</strong>la: abaixou-se<br />

disposto a saciar a se<strong>de</strong> e então viu na água limpa e clara seu próprio rosto, seu nariz e sua doce boquinha.<br />

Ficou surpreso, atraído por seu reflexo, pois pensava estar vendo o rosto <strong>de</strong> um jovem<br />

extraordinariamente formoso. Bem se vingou o Amor do gran<strong>de</strong> orgulho e <strong>da</strong> altivez que Narciso tinha.<br />

Foi então que recebeu a recompensa que merecia: passou tanto tempo na fonte que se enamorou por seu<br />

próprio reflexo e ao fim morreu – assim terminou a estória. Com efeito, quando se <strong>de</strong>u conta <strong>de</strong> que não<br />

podia levar adiante seus <strong>de</strong>sejos e que estava tão bem apanhado que não po<strong>de</strong>ria voltar a estar satisfeito em<br />

nenhum lugar e em nenhuma circunstância, per<strong>de</strong>u a cabeça pela gran<strong>de</strong> dor e morreu em pouco tempo.<br />

Desse modo, ele recebeu a recompensa e o merecido pela pobre que havia <strong>de</strong>sprezado.<br />

Damas, apren<strong>da</strong>m com esse exemplo, vós que tratais mal a vossos amigos: se os <strong>de</strong>ixais morrer,<br />

Deus vos fará pagar caro.<br />

Quando graças àquele título eu soube que aquela era certamente a fonte do belo Narciso, retrocedi<br />

sem me atrever a olhar para <strong>de</strong>ntro e me acovar<strong>de</strong>i, por lembrar <strong>de</strong> Narciso e <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sgraça. Porém,<br />

62 Gamo (do latim gammu) – Espécie <strong>de</strong> veado, <strong>de</strong> cau<strong>da</strong> compri<strong>da</strong> e galhos achatados na parte superior.<br />

63 Corço – Filho ou macho <strong>da</strong> corça.<br />

64 Ao citar Carlos Magno e Pepino, Guilherme <strong>de</strong> Lorris certamente faz uma alusão à literatura <strong>de</strong>senvolvi<strong>da</strong> na escola<br />

palatina, pois a proposta do renascimento carolíngio, nas palavras <strong>de</strong> Alcuíno <strong>de</strong> York, era fazer renascer a Aca<strong>de</strong>mia<br />

grega: “Surgirá na terra franca uma nova Atenas mais esplêndi<strong>da</strong> que a antiga, pois nobilita<strong>da</strong> pelo ensinamento <strong>de</strong> Cristo,<br />

nossa Atenas superará a sabedoria <strong>da</strong> Aca<strong>de</strong>mia”. Portanto, o formoso e alto pinheiro do romance po<strong>de</strong> ser interpretado<br />

como uma metáfora do cultivo e <strong>da</strong> preservação do pensamento clássico.<br />

13


consi<strong>de</strong>rei que me assustava sem motivo e que podia me aproximar <strong>da</strong> fonte sem temor, já que distanciara<br />

sem razão.<br />

Então me aproximei, inclinei-me para contemplar a água que brotava e o cascalho que reluzia ao<br />

fundo mais branco que a prata pura. Tal era essa fonte, e não há outra igual em todo o mundo: sua água<br />

era sempre fresca e nova, pois dia e noite jorrava com gran<strong>de</strong>s borbulhas <strong>de</strong> dois mananciais cristalinos e<br />

profundos.<br />

Ao redor a erva crescia espessa, graças àquela abun<strong>da</strong>nte e generosa água, que sequer morre no<br />

inverno, e à fonte que nunca seca, nem escasseia.<br />

No fundo <strong>da</strong> fonte havia duas pedras <strong>de</strong> cristal que contemplei com atenção. Vou lhes dizer uma<br />

coisa que, acredito, irá surpreendê-los quando ouvirem. Quando o Sol, que tudo vê, lança seus raios na<br />

fonte e a clari<strong>da</strong><strong>de</strong> chega ao fundo, aparecem mais <strong>de</strong> cem cores no cristal que, graças ao Sol, torna-se<br />

violeta, amarelo e vermelho. É um cristal <strong>de</strong> proprie<strong>da</strong><strong>de</strong>s maravilhosas: nele se refletem as árvores, as<br />

flores ao redor e tudo que enfeita o jardim.<br />

Para que enten<strong>da</strong>is melhor, vou lhes explicar isso por meio <strong>de</strong> um exemplo: do mesmo modo que o<br />

espelho mostra tudo o que tem na sua frente, que se vê sem dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> inclusive com sua cor e forma, o<br />

mesmo ocorre com o cristal do qual vos falo, que mostra a quem olha na água tudo o que há no jardim.<br />

Esteja on<strong>de</strong> estiver, sempre se verá a meta<strong>de</strong> do jardim e, se <strong>de</strong>r a volta, po<strong>de</strong>rá contemplar o resto. Não<br />

há na<strong>da</strong>, por menor que seja ou por mais distante e escondido que esteja, que não apareça como se<br />

estivesse pintado no cristal. 65<br />

Este é o espelho perigoso no qual Narciso, cheio <strong>de</strong> orgulho, contemplou seu próprio rosto e seus<br />

olhos ver<strong>de</strong>s claros, caindo morto imediatamente. Quem se olhar nesse espelho não encontrará salvador<br />

nem médico que possa impedir que veja em seus olhos algo que o impulsione imediatamente a amar.<br />

Muitos homens valorosos têm sido vencidos pelo espelho, pois mesmo os mais sábios, os mais nobres e<br />

os mais bem dispostos não tar<strong>da</strong>m a serem agarrados e aprisionados. Aqui, um novo tipo <strong>de</strong> raiva<br />

surpreen<strong>de</strong> as gentes; aqui mu<strong>da</strong>m os sentimentos; aqui não é necessário o bom sentido nem a discrição;<br />

aqui só há vonta<strong>de</strong> pura <strong>de</strong> amar; aqui não há ninguém que possa ser aconselhado, pois Cupido, filho <strong>de</strong><br />

Vênus, espalhou a semente do Amor que guar<strong>da</strong> a fonte, e fez com que fossem coloca<strong>da</strong>s armadilhas e<br />

alçapões ao redor <strong>da</strong>s donzelas e dos rapazes para prendê-los, pois o Amor não quer outras aves.<br />

Por causa <strong>da</strong> semente nela semea<strong>da</strong>, essa fonte recebeu o justo nome <strong>de</strong> Fonte do Amor; e muitos<br />

têm falado <strong>de</strong>la em numerosos lugares, em novelas e em estórias. Porém, não ouvireis melhor <strong>de</strong>scrição do<br />

assunto que a que eu vos fareis, <strong>de</strong>scobrindo para vocês todos os seus mistérios.<br />

Contemplei cui<strong>da</strong>dosamente a fonte e os cristais do fundo, que me revelavam mil coisas que existiam<br />

ao redor. Porém, infeliz <strong>de</strong> mim, o fiz em má hora e tanto suspirei <strong>de</strong>pois! O espelho me enganou: se<br />

tivesse antes conhecido seu po<strong>de</strong>r e suas virtu<strong>de</strong>s, não haveria olhado para ele, pois naquele momento caí<br />

na armadilha que tem aprisionado e traído a tantos homens.<br />

No espelho, entre outras mil coisas, vi roseiras carrega<strong>da</strong>s <strong>de</strong> flores que estavam em um lugar<br />

afastado e ro<strong>de</strong>ado por uma cerca. Então, senti um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ir contemplar o grupo maior e não<br />

<strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> fazê-lo em troca <strong>de</strong> to<strong>da</strong> riqueza <strong>de</strong> Pavia e <strong>de</strong> Paris. Tomado por tal fúria que já surpreen<strong>de</strong>u a<br />

muitos outros, dirigi-me <strong>de</strong> imediato até os roseirais. Ao me aproximar, a fragrância <strong>da</strong>s rosas me<br />

atravessou até as entranhas, como se eu tivesse acabado <strong>de</strong> ter sido embalsamado.<br />

Temendo que me censurassem ou me chamassem a atenção, não me atrevi a colher nenhuma rosa,<br />

mesmo que fosse só uma para ter na mão e sentir seu perfume. Temia me arrepen<strong>de</strong>r, pois podia molestar<br />

o senhor do jardim.<br />

As rosas abun<strong>da</strong>vam em gran<strong>de</strong>s grupos <strong>de</strong> tal forma que não se encontrariam mais belas sob o céu.<br />

Havia botões pequenos e fechados, outros um pouco maiores e outros, já quase no ponto i<strong>de</strong>al <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sabrocharem. Esses não eram na<strong>da</strong> <strong>de</strong>sprezíveis, pois as rosas abertas e alegres murcham em um dia,<br />

enquanto os botões se mantêm frescos por, pelo menos, dois ou três dias. Senti-me encantado, pois em<br />

65 A metáfora do espelho é muito recorrente na literatura medieval. Como bem observou Jacques Le Goff, a imagem do espelho<br />

nos conduz ao mais profundo do imaginário medieval (Jacques LE GOFF, São Luís. Biografia, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Record,<br />

1999, p. 360). Por sua vez, Herbert Grabes propõe uma tipologia para o sentido do espelho, na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média e na<br />

Renascença inglesa: 1) o espelho reflete as coisas exatamente como são; 2) reflete as coisas como <strong>de</strong>veriam (ou não) ser; 3)<br />

reflete as coisas como serão no futuro e 4) reflete as coisas como são na imaginação (Herbert GRABES, The Mutable Glass.<br />

Mirror Imagery in Titles and Texts of the Middle Ages and English Renaissance, Cambridge, 1983).<br />

14


nenhum lugar eles crescem tão formosos: quem pu<strong>de</strong>sse arrancar um <strong>de</strong>veria estimá-lo muito. De minha<br />

parte, na<strong>da</strong> me satisfaria mais que fazer uma grinal<strong>da</strong> com eles.<br />

Dentre todos, escolhi um botão belíssimo; ao seu lado me pareceram inferiores os <strong>de</strong>mais que vi.<br />

Tinha a cor vermelha mais perfeita que a Natureza pô<strong>de</strong> criar e estava ro<strong>de</strong>ado por quatro pares <strong>de</strong> pétalas,<br />

coloca<strong>da</strong>s com habili<strong>da</strong><strong>de</strong> pela Natureza, umas nas outras. O talo era reto como um junco e sobre ele a<br />

flor se assentava sem pen<strong>de</strong>r nem se inclinar. Seu aroma se espalhava ao redor e o perfume que produzia<br />

enchia todo lugar. Ao cheirá-lo, perdi a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> abandonar aquele lugar e me aproximei para colhê-lo,<br />

mas não me atrevi a esten<strong>de</strong>r as mãos: os cardos afiados 66 e os pontudos espinhos me impediram e assim<br />

não me <strong>de</strong>ixei avançar, por medo <strong>de</strong> me causar <strong>da</strong>no – afinal, eram espinhos cortantes e sutis, além <strong>de</strong><br />

urtigas e sarças <strong>de</strong> pontas finas como chifres.<br />

O Deus do Amor que, com o arco retesado havia <strong>de</strong>cidido me seguir e me espiar, se <strong>de</strong>teve <strong>de</strong>baixo<br />

<strong>de</strong> uma figueira. Ao ver que eu havia escolhido aquele botão, que me agra<strong>da</strong>va mais que qualquer outro,<br />

pegou uma flecha, a empunhou na cor<strong>da</strong> e esticou o arco, que era muito resistente, até a altura <strong>da</strong> orelha e,<br />

apontando-a, fez com que a flecha entrasse em um olho e chegasse com violência até meu coração. Senti<br />

tamanho frio que muitas vezes <strong>de</strong>pois ain<strong>da</strong> tremo só <strong>de</strong> lembrar, mesmo envolto em um manto quente.<br />

Atingido <strong>de</strong>ssa maneira, caí <strong>de</strong> costas, o coração falhou, mentiu para mim e então eu permaneci<br />

<strong>de</strong>sfalecido durante muito tempo. Ao recobrar os sentidos e a razão, encontrei-me <strong>de</strong>bilitado e pensei ter<br />

perdido gran<strong>de</strong> quanti<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sangue. Contudo, a flecha crava<strong>da</strong> não me fez <strong>de</strong>rramar uma só gota e a<br />

feri<strong>da</strong> estava completamente seca. Peguei a flecha com as mãos e comecei a tirá-la com força e suspirar <strong>de</strong><br />

dor. Esforcei-me tanto que consegui arrancar a haste com o penacho, mas a ponta pelu<strong>da</strong>, que se chamava<br />

Beleza, estava tão profun<strong>da</strong>mente crava<strong>da</strong> em meu coração, que eu não pu<strong>de</strong> arrancá-la. Assim, ela ficou<br />

ali, sem que brotasse nem uma gota <strong>de</strong> sangue.<br />

Senti-me angustiado e cheio <strong>de</strong> preocupação, pois o perigo havia se duplicado e eu não sabia o que<br />

fazer, nem o que <strong>de</strong>cidir. Ignorava se encontraria algum médico para a minha feri<strong>da</strong>, pois não esperava que<br />

nenhuma <strong>da</strong>quelas ervas ou raízes me curasse. Enquanto isso, meu coração não se ocupava com outra<br />

coisa que não fosse me levar até a rosa: se a tivesse em meu po<strong>de</strong>r, sem dúvi<strong>da</strong>, me <strong>de</strong>volveria a vi<strong>da</strong>,<br />

porque a mim bastava vê-la e sentir seu perfume para que a dor se aliviasse <strong>de</strong> forma consi<strong>de</strong>rável.<br />

Comecei a me aproximar <strong>da</strong> flor <strong>de</strong> suave aroma, enquanto o Amor pegava outra flecha <strong>de</strong> ouro. Era<br />

a segun<strong>da</strong>, e se chamava Simplici<strong>da</strong><strong>de</strong>, que faz com que muitos homens e muitas <strong>da</strong>mas no mundo se<br />

enamorem. Quando o Amor viu que me aproximava, sem fazer ameaças disparou em minha direção a<br />

flecha, que não tinha aço; e a ferina flecha chegou ao meu coração através dos olhos. Não consegui sarar<br />

com na<strong>da</strong>, pois ao tentar arrancá-la, sem gran<strong>de</strong> esforço retirei a haste, mas a ponta não saiu. Estou seguro<br />

<strong>de</strong> que se antes <strong>de</strong>sejava alcançar a rosa, agora minha vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> obtê-la era muito maior. Ao aumentar<br />

meu sofrimento, crescia em mim o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> ir em busca <strong>da</strong> flor que cheirava mais que uma violeta.<br />

Melhor teria sido retirar-me, mas não podia recusar as or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> meu coração: à força tinha que ir até<br />

on<strong>de</strong> ele se dirigia.<br />

O arqueiro, que se esforçava e tentava me causar <strong>da</strong>no, não me <strong>de</strong>ixava ir sem motivo; e, para me<br />

enlouquecer, fez com que a terceira flecha voasse contra meu corpo. Essa flecha era a que se chamava<br />

Cortesia. A feri<strong>da</strong> foi profun<strong>da</strong> e larga, e me fez cair <strong>de</strong>smaiado sob uma frondosa oliveira. Durante muito<br />

tempo estive ali sem me mover. Quando voltei a ter forças, peguei a flecha e imediatamente arranquei-a <strong>de</strong><br />

meu flanco, mas não pu<strong>de</strong> retirar a ponta, por mais que tivesse tentado.<br />

Senti-me angustiado e pensativo. Essa feri<strong>da</strong> me atormentava, obrigando-me a ir até a flor que tanto<br />

me agra<strong>da</strong>va. Porém, o arqueiro me infundia medo – e com razão – pois aquele que se escaldou <strong>de</strong>ve fugir<br />

<strong>da</strong> água.<br />

Gran<strong>de</strong> coisa é a necessi<strong>da</strong><strong>de</strong>: ain<strong>da</strong> que eu tivesse visto caírem flechas e pedras mescla<strong>da</strong>s tão<br />

abun<strong>da</strong>ntemente como se fossem granizo, eu não teria <strong>de</strong>ixado <strong>de</strong> me dirigir até ali, pois o Amor – que<br />

tudo supera – <strong>da</strong>va-me valor e ousadia para cumprir suas or<strong>de</strong>ns.<br />

Pus-me <strong>de</strong> pé, mesmo débil e <strong>de</strong>sfalecido como se estivesse ferido. Sem me preocupar com o<br />

arqueiro, procurei caminhar até a rosa que tinha meu coração, mas havia tantos espinhos, cardos e sarças,<br />

que não consegui avançar o suficiente para chegar até a flor.<br />

66 Cardo (do latim cardu) – Planta <strong>da</strong> família <strong>da</strong>s compostas (Centaurea melitensis), consi<strong>de</strong>ra<strong>da</strong> praga <strong>de</strong> lavoura, <strong>de</strong> flores<br />

amarelas, folhas com espinho e acinzenta<strong>da</strong>s, caule ereto e revestido <strong>de</strong> pêlos. Portanto, a presença do cardo nessa<br />

passagem significa que a rosa escolhi<strong>da</strong> pelo poeta estava protegi<strong>da</strong> e resguar<strong>da</strong><strong>da</strong> pelos cardos e pelos espinhos.<br />

15


Tive que ficar junto à cerca que ro<strong>de</strong>ava as rosas e que tinha espinhos pontiagudos. Contudo, era<br />

muito agradável estar tão próximo e notar o doce aroma que saía <strong>da</strong> flor; agra<strong>da</strong>va-me tudo o que via, a<br />

recompensa era gran<strong>de</strong> e me provocava gozo e alegria suficientes para esquecer os sofrimentos. Eu estava<br />

contente e gozoso, pois não havia na<strong>da</strong> que eu <strong>de</strong>sejasse tanto quanto ficar ali, <strong>de</strong> forma que nunca me<br />

afastaria.<br />

Após um breve momento, o Deus do Amor – que estava <strong>de</strong>struindo meu coração, pois o tinha feito<br />

<strong>de</strong> alvo – voltou a me atacar e, para minha <strong>de</strong>sgraça, disparou outra flecha que me fez uma nova feri<strong>da</strong><br />

<strong>de</strong>baixo do peito. A seta se chamava Companhia: nenhuma outra vence mais rápido as <strong>da</strong>mas e as<br />

donzelas. Ela imediatamente renovou a dor <strong>da</strong>s feri<strong>da</strong>s e eu <strong>de</strong>smaiei três vezes em um instante.<br />

Ao voltar a mim, chorei e suspirei, pois meu sofrimento aumentava e piorava, <strong>de</strong> forma que eu<br />

perdia to<strong>da</strong> a esperança <strong>de</strong> cura e alívio. Preferia estar morto ao invés <strong>de</strong> continuar vivo, pois<br />

<strong>de</strong>finitivamente – segundo me parece – o Amor faria <strong>de</strong> mim um mártir e eu não po<strong>de</strong>ria escapar.<br />

Entretanto, pegou outra flecha que apreciava muito, mas que eu consi<strong>de</strong>ro muito pesa<strong>da</strong>: a Boa<br />

Cara, que não consente que nenhum enamorado se arrepen<strong>da</strong> <strong>de</strong> servir ao Amor, à margem <strong>de</strong> seus<br />

próprios sentimentos. É uma flecha pontu<strong>da</strong> – que atravessa com facili<strong>da</strong><strong>de</strong> qualquer coisa – e cortante,<br />

como a lâmina <strong>de</strong> cortar <strong>da</strong> espa<strong>da</strong>. Amor havia untado muito bem aquela ponta com um bálsamo<br />

precioso para que não causasse gran<strong>de</strong> <strong>da</strong>no, pois não <strong>de</strong>sejava que eu morresse, somente que recebesse<br />

algum alívio com o ungüento que estava cheio <strong>de</strong> consolo. Amor a havia preparado com suas mãos para<br />

reconfortar os leais amantes. Para aliviar meus males disparou em minha direção essa flecha, produzindo<br />

uma gran<strong>de</strong> feri<strong>da</strong>.<br />

O ungüento correu por minhas feri<strong>da</strong>s e me <strong>de</strong>volveu a força do coração que eu havia perdido: eu<br />

estaria mal e teria morrido se não fosse pelo bálsamo. Arranquei a haste, mas a ponta <strong>da</strong> nova flecha<br />

também ficou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

Se em mim haviam ficado crava<strong>da</strong>s as cinco, dificilmente po<strong>de</strong>riam ser arranca<strong>da</strong>s. O ungüento<br />

aliviou a dor <strong>da</strong>quelas feri<strong>da</strong>s que me faziam empali<strong>de</strong>cer.<br />

Esta última flecha tinha uma curiosa virtu<strong>de</strong>: produzia doçura e amargura. Tenho sentido e notado o<br />

auxílio que me prestou, mas também seu prejuízo: ao se cravar produziu angústia, <strong>de</strong>pois seu bálsamo me<br />

aliviou. Por um lado me untava, por outro me feria: assim me aju<strong>da</strong>va, assim me causava mal.<br />

Não <strong>de</strong>morou para que o Amor se aproximasse <strong>de</strong> mim, saltando com to<strong>da</strong> a rapi<strong>de</strong>z.<br />

Ao chegar ao meu lado, disse-me em voz alta:<br />

– Vassalo, consi<strong>de</strong>ra-te preso, pois não po<strong>de</strong>s fugir nem te <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r; não ofereças resistência, entrega-te a<br />

mim. Quanto mais <strong>de</strong> bom grado o fizeres, logo encontrarás pie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Está louco quem preten<strong>de</strong> resistir ao<br />

que <strong>de</strong>ve louvar e ao que tem que suplicar clemência. Não po<strong>de</strong>s te esforçar contra mim. Quero te mostrar<br />

como não ganharás na<strong>da</strong> com o orgulho e a soberba. Ren<strong>da</strong>-te sem lutar e <strong>de</strong> bom grado, pois assim o<br />

<strong>de</strong>sejo.<br />

Eu lhe respondi:<br />

– Por Deus, com gosto o farei, não vou me <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r. Não me permita Deus pensar que posso resistir<br />

frente a vós, pois não seria justo nem razoável. Po<strong>de</strong>is fazer comigo o que quiser<strong>de</strong>s, enforcai-me ou <strong>da</strong>ime<br />

a morte: sei eu que não posso impedir-vos, pois minha vi<strong>da</strong> está em vossas mãos. Não viverei até<br />

amanhã se não for essa a vossa vonta<strong>de</strong>. De vós espero alegria e saú<strong>de</strong>, pois ninguém as <strong>da</strong>rá sem que<br />

vossa mão, que me feriu, me cure. Se vós quiser<strong>de</strong>s fazer <strong>de</strong> mim vosso prisioneiro, não me causareis<br />

nenhum <strong>da</strong>no e eu não ficarei <strong>de</strong>cepcionado. E sabeis que não sinto nenhuma aflição, pois tenho ouvido<br />

falar tantas coisas boas <strong>de</strong> vós, que <strong>de</strong>sejo colocar todo o meu corpo e todo o meu coração à vossa<br />

disposição; já que se cumpro vossa vonta<strong>de</strong>, não po<strong>de</strong>rei me queixar <strong>de</strong> na<strong>da</strong>. E mais: penso que, em<br />

algum momento, chegarei a merecer o que espero e, com essa condição, rendo-me.<br />

Após falar assim, quis beijar-lhe os pés. Porém, pegou minhas mãos, dizendo-me:<br />

– Estimo-te muito e te aprecio por ter respondido assim. Nunca, certamente, tal resposta saiu <strong>da</strong> boca <strong>de</strong><br />

vilão mal-educado; ganhastes tanto em minha consi<strong>de</strong>ração que quero que agora mesmo me jures<br />

fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> em teu beneficio. Beijar-me-ás na boca, a qual nenhum vilão é permitido tocar; não <strong>de</strong>ixo que o<br />

façam nem as pessoas ru<strong>de</strong>s, nem os porqueiros. Há <strong>de</strong> ser cortês e livre para entrar em meu serviço. Sem<br />

dúvi<strong>da</strong> é duro e pesado servir-me, porém te faço uma honra muito gran<strong>de</strong> ao te aceitar, e <strong>de</strong>ves sentir-te<br />

muito contente por ter um senhor tão bom e tão formoso, pois o Amor é o porta-estan<strong>da</strong>rte <strong>da</strong> Cortesia<br />

16


e carrega sua ban<strong>de</strong>ira, ao passo que possui tão bons modos, é tão doce, tão franco e tão gentil, que quem<br />

entra a seu serviço disposto a honrá-lo per<strong>de</strong> to<strong>da</strong> a vilania, to<strong>da</strong> a mal<strong>da</strong><strong>de</strong> e qualquer má educação.<br />

Então, me fez seu vassalo juntando as mãos; e me alegrei muito quando sua boca beijou a minha –<br />

esse foi o momento em que tive maior alegria. 67 A seguir, me pediu provas <strong>de</strong> minha fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

– Amigo, tenho recebido a vassalagem <strong>de</strong> muitos, e a maioria tem mentido. Os que cometem felonia,<br />

cheios <strong>de</strong> falsi<strong>da</strong><strong>de</strong>, muitas vezes têm me traído e, por sua culpa, tenho ouvido numerosas queixas. Porém,<br />

já saberão como o sinto: se posso aprisioná-los <strong>de</strong> forma justa, ven<strong>de</strong>r-lhes-ei caro sua traição. Agora,<br />

<strong>de</strong>sejo, pelo amor que te tenho, estar seguro <strong>de</strong> ti, e quero que estejas tão unido a mim que não possas me<br />

negar nenhuma promessa, nenhuma condição, nem te opor a na<strong>da</strong> que eu te peça <strong>de</strong> agora em diante. Se<br />

fizeres trapaça, será uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sgraça, pois me pareces leal.<br />

– Senhor – respondi – escuta-me. Não sei por que me pedis garantia e fianças. Já sabeis que realmente me<br />

haveis privado <strong>de</strong> meu coração <strong>de</strong> tal modo que, mesmo que <strong>de</strong>sejasse, não po<strong>de</strong>ria cumprir minha<br />

vonta<strong>de</strong>, a não ser com vossa intercessão. Meu coração é vosso, não meu, e, para o bem ou para o mal,<br />

tenho que fazer vossos <strong>de</strong>sejos, pois ninguém po<strong>de</strong> escapar <strong>de</strong> vós. Pusestes tal vigilância, que ele é<br />

custodiado pela consciência. Mas se apesar <strong>de</strong> tudo temeis algo, trancai-o com uma chave, e levai-a como<br />

fiança.<br />

– Por minha cabeça, isso não é uma brinca<strong>de</strong>ira – respon<strong>de</strong> o Amor – por isso, aceito. É senhor do corpo<br />

quem tem o coração sob o seu domínio: ultrajante seria pedir mais.<br />

Ele então tirou <strong>de</strong> sua bolsa uma pequena chave, muito bem feita, trabalha<strong>da</strong> com ouro puro:<br />

– Com esta chave trancarei seu coração e não quero outra garantia. Embaixo <strong>de</strong>sta chave tenho guar<strong>da</strong><strong>da</strong>s<br />

minhas jóias. Por minha alma te digo que ela é realmente a senhora do meu cofre e que tem um gran<strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r.<br />

Então me tocou com ela no flanco e trancou meu coração com tal suavi<strong>da</strong><strong>de</strong> que quase não notei a<br />

chave.<br />

Assim, ele cumpriu seu <strong>de</strong>sejo. Depois <strong>de</strong> tranqüilizá-lo, lhe disse:<br />

– Senhor, eu estou disposto a levar adiante vossa vonta<strong>de</strong> e aceito com gosto meu serviço, pela fé que me<br />

<strong>de</strong>veis. Não o digo por covardia ante minhas tarefas, pois um servidor se esforça em vão para realizar<br />

obras dignas <strong>de</strong> encômio, se tais obras não agra<strong>da</strong>m ao senhor ao qual as apresenta.<br />

O Amor respon<strong>de</strong>u:<br />

– Não te preocupes. Já que entrastes em minha mesna<strong>da</strong>, recebo teu serviço com gosto. 68 Colocar-te-ei em<br />

um lugar alto, se te privares <strong>da</strong> mal<strong>da</strong><strong>de</strong>. Porém, creio que não será logo, pois os gran<strong>de</strong>s bens não chegam<br />

<strong>de</strong> forma repentina: é necessário esforçar-te e esperar. Sofre e suporta a angústia que agora te prejudica e te<br />

fere, pois conheço o medicamento que te curará. Se te manténs leal, <strong>da</strong>r-te-ei um bálsamo que curará tua<br />

feri<strong>da</strong>. Contudo, por minha cabeça, já veremos se servirás <strong>de</strong> bom grado e como cumprirás dia e noite os<br />

man<strong>da</strong>mentos que dou aos leais amantes.<br />

– Senhor, por Deus, antes que vás, diga-me quais são. Estou disposto a cumpri-los, mas antes <strong>de</strong>vo<br />

conhecê-los, caso contrário, po<strong>de</strong>ria errar o caminho facilmente. Por isso quero conhecê-los para não<br />

infringi-los <strong>de</strong> nenhuma maneira.<br />

– Falastes bem. Escuta e relembra, pois o mestre <strong>de</strong>sperdiça todo o seu esforço quando o discípulo que o<br />

está escutando não se preocupa em reter para <strong>de</strong>pois recor<strong>da</strong>r.<br />

67 Na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média o voto <strong>de</strong> vassali<strong>da</strong><strong>de</strong> era dividido em três partes: 1) a Homenagem (tornar-se homem <strong>de</strong> outro<br />

homem), 2) a Fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> (juramento feito sobre a Bíblia e relíquias <strong>de</strong> santos) e 3) a Investidura (recebimento por parte<br />

do vassalo <strong>de</strong> um objeto – punhado <strong>de</strong> terra, folhas, ramo <strong>de</strong> árvore, simbolizando o feudo recebido). Ver FRANCO JR.,<br />

Hilário. A I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média. Nascimento do Oci<strong>de</strong>nte. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 92. Particularmente na França e na Alemanha,<br />

a homenagem e a fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong> eram acompanha<strong>da</strong>s por um terceiro ato, o beijo (osculum): “Encontramo-lo na Alemanha<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XI; Ekkehard, monge <strong>de</strong> Saint-Gall (falecido, sem dúvi<strong>da</strong>, pouco <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1057), conta que em 971<br />

Notker foi eleito aba<strong>de</strong> na presença <strong>de</strong> Otão I e que entrou para a vassalagem imperial (...): ‘finalmente tu serás meu, disse<br />

o imperador, e, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o ter recebido pelas mãos, beijou-o; em segui<strong>da</strong>, tendo sido trazido um evangeliário, o aba<strong>de</strong><br />

jurou fi<strong>de</strong>li<strong>da</strong><strong>de</strong>’ (...) O osculum não é elemento essencial (...) constitui um meio <strong>de</strong> confirmar as obrigações contraí<strong>da</strong>s pelas<br />

partes (...) é qualquer coisa <strong>de</strong> análogo ao aperto <strong>de</strong> mão que os camponeses ain<strong>da</strong> usam quando <strong>da</strong> realização <strong>de</strong> ven<strong>da</strong>s <strong>de</strong><br />

gado. Acto materializado pelo gesto (...) o osculum <strong>de</strong>via (...) impressionar o espectador.” – GANSHOF, F. L. Que é o<br />

Feu<strong>da</strong>lismo? Lisboa: Publicações Europa-América, s/d, p. 107-108.<br />

68 Mesna<strong>da</strong> (do latim mansionāta, particípio passado <strong>de</strong> mansionāre [alojar]) – Companhia forma<strong>da</strong> por cavaleiros que, a soldo,<br />

serviam a um rei, a um rico-homem ou a um cavaleiro, e viviam em sua casa.<br />

17


Então, o Deus do Amor explicou seus man<strong>da</strong>mentos tal como vais ouvir, palavra por palavra: este<br />

Livro os enumera sem erros. Quem <strong>de</strong>seja amar, que preste atenção, pois o Livro se ocupa <strong>de</strong>les a partir <strong>de</strong><br />

agora.<br />

Começam agora boas razões para escutar, se aquele que as conta o sabe fazer <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>,<br />

pois o final do sonho é extraordinário e seu conteúdo é totalmente novo. Aquele que ouvir até o fim<br />

apren<strong>de</strong>rá bastante sobre os jogos do Amor; assim espere até que eu comece a explicar-lhe o significado<br />

do sonho. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, que está encoberta, mostrar-se-á <strong>de</strong> forma evi<strong>de</strong>nte quando me ouvir interpretar o<br />

sonho, pois nele não há uma só palavra que seja mentira.<br />

– Primeiro – diz o Amor – quero e or<strong>de</strong>no que abandones imediatamente a Vilania, e que não voltes a<br />

ela, se não queres inimiza<strong>de</strong> comigo, pois maldigo e excomungo todos que a amam. A Vilania pertence<br />

aos vilões, por isso não a quero: o vil é traidor, sem pie<strong>da</strong><strong>de</strong>, infiel e inimigo. Guar<strong>da</strong>-te <strong>de</strong> contar às gentes<br />

coisas que se <strong>de</strong>vem manter em silêncio. Não é nenhuma proeza falar mal; espelha-te em Kay 69 , o<br />

senescal 70 , que por suas zombarias teve má fama e foi odiado no passado. Enquanto Gawain, o discreto 71 , era<br />

estimado por sua cortesia, Kay era <strong>de</strong>sprezado por ser mais vaidoso, cruel, insolente e <strong>de</strong> má língua que os<br />

<strong>de</strong>mais cavalheiros.<br />

– Sê cortês e afável, <strong>de</strong> doces e sensatas palavras tanto com os gran<strong>de</strong>s quanto com os pequenos. Pela rua,<br />

acostuma-te a ser o primeiro a sau<strong>da</strong>r as gentes. Se alguém te saú<strong>da</strong> primeiro, não mantenhas tua boca<br />

mu<strong>da</strong>, procura <strong>de</strong>volver a sau<strong>da</strong>ção sem tar<strong>da</strong>r nem <strong>de</strong>morar.<br />

– Depois, procura não dizer palavras sujas e grosseiras: tua boca não <strong>de</strong>ve se abrir para nomear coisas vis.<br />

Não consi<strong>de</strong>ro cortês quem alu<strong>de</strong> a vulgari<strong>da</strong><strong>de</strong>s e a coisas feias.<br />

– Serve e honra a to<strong>da</strong>s as mulheres, esforça-te em fazê-lo; se ouvires algum <strong>de</strong>sbocado se meter com elas,<br />

repreen<strong>de</strong>-o e diz-lhe que se cale. Se pu<strong>de</strong>res, faça algo que agra<strong>de</strong> às <strong>da</strong>mas e às donzelas, <strong>de</strong> forma que<br />

ouçam falar bem <strong>de</strong> ti: <strong>de</strong>ste modo ganharás prestígio.<br />

– A seguir, evita o Orgulho, pois para qualquer um que esteja em seu juízo, o Orgulho é uma loucura e<br />

um pecado, e quem cai nele, é incapaz <strong>de</strong> dominar seu próprio coração para que sirva e suplique. O<br />

orgulhoso faz o contrário do que <strong>de</strong>ve fazer o leal enamorado.<br />

– Aquele que quer se <strong>de</strong>dicar ao amor <strong>de</strong>ve se comportar com elegância, caso contrário, valerá pouco. A<br />

Elegância não é igual ao Orgulho: o que é elegante sem orgulho vale mais se não for um louco<br />

presunçoso. Veste-te e calça-te bem, <strong>de</strong> acordo com tuas ren<strong>da</strong>s: um vestido formoso e belos adornos são<br />

gran<strong>de</strong>s vantagens. Confia teu vestido a um bom costureiro, que faça com que as pontas lhe caiam bem e<br />

que as mangas sejam elegantes e bem ajusta<strong>da</strong>s. Tem sapatos com laços e botinas, sempre novos e<br />

recentes, e procura que se te ajustem tão bem que as vilãs discutam <strong>de</strong> que modo os pusestes e como.<br />

Enfeita-te com luvas, bolsa <strong>de</strong> se<strong>da</strong> e cinturão; e se não fores suficientemente rico para fazê-lo, arranja-as<br />

como pu<strong>de</strong>res, mas procura sempre sair o melhor vestido possível, sem que isso te cause a ruína.<br />

– Utiliza grinal<strong>da</strong>s <strong>de</strong> flores, que custam pouco, ou <strong>de</strong> rosas em Pentecostes: isso está ao alcance <strong>de</strong><br />

qualquer um, não é necessário ser muito rico.<br />

– Não toleres nenhuma mancha em teu traje; lava as mãos, limpa os <strong>de</strong>ntes. Se nas unhas aparece uma<br />

mancha <strong>de</strong> sujeira, não permitas sua presença. Costura as mangas, penteia os cabelos, mas não te maquies<br />

nem te pintes, pois isso é próprio <strong>da</strong>s <strong>da</strong>mas e <strong>de</strong> homens <strong>de</strong> má fama, que se ocupam <strong>de</strong> amores tortos. 72<br />

69 Nos <strong>Romance</strong>s <strong>da</strong> Távola Redon<strong>da</strong>, <strong>de</strong> Chrétien <strong>de</strong> Troyes, Kay (ou Kai) é filho <strong>de</strong> Antor, que criou também Artur como se<br />

ambos fossem irmãos. Kay foi inicialmente companheiro <strong>de</strong> Artur, <strong>de</strong>pois senescal <strong>da</strong> corte. Ver CHRÉTIEN DE<br />

TROYES. <strong>Romance</strong>s <strong>da</strong> Távola Redon<strong>da</strong>. São Paulo: Martins Fontes, 1991.<br />

70 Senescal – Espécie <strong>de</strong> supervisor <strong>da</strong>s terras <strong>de</strong> um senhor feu<strong>da</strong>l, mordomo-mor que dirigia os alcai<strong>de</strong>s dos domínios <strong>de</strong><br />

seu senhor. Na Alta I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média merovíngia, o senescal também abastecia a mesa real: “O senescal – sinis kalk, em alto<br />

alemão antigo – o mais velho dos criados, podia ser qualificado <strong>de</strong> alto funcionário? Certamente não, se o vemos aplicar-se<br />

em suas tarefas <strong>de</strong> abastecer a mesa real.” – ROUCHE, Michel. “Alta I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média Oci<strong>de</strong>ntal”. In: ARIÈS, Philippe e<br />

DUBY, Georges (dir.). <strong>História</strong> <strong>da</strong> Vi<strong>da</strong> Priva<strong>da</strong> I. Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Companhia <strong>da</strong>s Letras, 1991, p.<br />

411.<br />

71 Gawain – Filho <strong>de</strong> Lot, rei <strong>da</strong> Orcânia (reino <strong>da</strong>s ilhas Órca<strong>da</strong>s). Narra<strong>da</strong>s por diversos romancistas, as aventuras <strong>de</strong><br />

Gawain constituiriam um <strong>Romance</strong> <strong>de</strong> Gawain. Ver El Cuento <strong>de</strong>l grial <strong>de</strong> Chrétien <strong>de</strong> Troyes y sus Continuaciones. Barcelona:<br />

Ediciones Siruela, 2000.<br />

72 “...<strong>da</strong>mas e homens <strong>de</strong> má fama, que se ocupam <strong>de</strong> amores tortos” – Interessantíssima passagem em que provavelmente<br />

Guilherme <strong>de</strong> Lorris alu<strong>de</strong> aos homossexuais, “homens que se pintam e são <strong>de</strong> má fama”. Segundo John Boswell<br />

(Christianity, Social Tolerance, and Homosexuality: Gay People in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth<br />

Century, Chicago, 1980). Na cristan<strong>da</strong><strong>de</strong>, uma tolerância inicial <strong>de</strong>u lugar, posteriormente, a uma intolerância, ou seja, à<br />

18


– A seguir, lembra que <strong>de</strong>ves estar sempre contente: procura ser alegre e vivaz, pois o Amor não se ocupa<br />

<strong>da</strong>s pessoas sombrias. É uma enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong> muito própria <strong>da</strong> cortesia, rir e alegra-se continuamente. Mas às<br />

vezes resulta que os enamorados alternem o gozo e o sofrimento, pois sentem que os males do amor são<br />

ora doces, ora amargos. O mal <strong>de</strong> amor é caprichoso: o enamorado ora está alegre, ora abatido, ou se<br />

lamenta; em um momento chora, pouco <strong>de</strong>pois canta.<br />

– Se sabes fazer algo que agra<strong>de</strong> às gentes, or<strong>de</strong>no-te que o faças. Ca<strong>da</strong> qual <strong>de</strong>ve fazer em todos os lugares<br />

o que consi<strong>de</strong>ra que faz melhor, pois a partir disso receberás fama, mérito e vantagens. Se crês que és ágil e<br />

ligeiro, não resistas em saltar; se montas bem, não pares <strong>de</strong> cavalgar para cima e para baixo; se és hábil<br />

quebrando lanças, po<strong>de</strong>s conseguir que te apreciem muito; se és hábil com as armas, serás <strong>de</strong>z vezes mais<br />

amado. Se tens voz clara e afina<strong>da</strong>, se te pe<strong>de</strong>m, não <strong>de</strong>ves eximir-te na hora <strong>de</strong> cantar, pois o bom canto é<br />

muito apreciado. O mesmo ocorre com o rapaz que sabe <strong>da</strong>nçar e tocar a viola ou a cítara: assim se po<strong>de</strong><br />

obter gran<strong>de</strong>s progressos.<br />

– Evita que te consi<strong>de</strong>rem avaro, pois isso te seria prejudicial: é normal que os enamorados dêem o que é<br />

seu com mais generosi<strong>da</strong><strong>de</strong> que os vilãos néscios e ordinários. Quem não quer <strong>da</strong>r presentes, ignora o que<br />

é amar. Aquele que <strong>de</strong>seja se esforçar no amor <strong>de</strong>ve cui<strong>da</strong>dosamente evitar a avareza: se por um olhar ou<br />

um sorriso doce e sereno entrega seu coração inteiro, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar seus bens abandonados, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter<br />

feito tão rico dom.<br />

– Vou lembrar tudo o que até agora te disse, pois é muito mais fácil reter a lição quando ela é breve: quem<br />

<strong>de</strong>sejar fazer do Amor seu senhor, <strong>de</strong>ve ser cortês e humil<strong>de</strong>, vestir-se com elegância, ser alegre e<br />

conseguir que o apreciem por sua generosi<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

– Como penitência, digo que não <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> pensar no Amor dia e noite, e não te envergonhes por isso.<br />

Pensa sem cessar nele e lembra <strong>da</strong> doce hora que tanto te <strong>de</strong>mora. E para que sejas um leal enamorado,<br />

quero e or<strong>de</strong>no que tenhas todo o teu coração em um só lugar, <strong>de</strong> forma que não estejas dividido, mas<br />

inteiro e sem enganos, pois não gosto <strong>da</strong>s divisões. Quem tem seu coração em vários lugares <strong>de</strong> uma vez,<br />

sempre levará a pior parte. Não temo pelo que põe seu coração inteiro em um só lugar e, por isso, te<br />

or<strong>de</strong>no que faças assim, mas procura não entregá-lo, pois se agires <strong>de</strong>ssa maneira, consi<strong>de</strong>rarei uma<br />

perfídia <strong>de</strong> tua parte.<br />

– Entrega teu coração como um presente, livre, e com ele alcançarás maior mérito, pois para compensar<br />

uma coisa presentea<strong>da</strong>, <strong>de</strong>ve se <strong>da</strong>r um alto prêmio. Assim entrega-o sem reticências, <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong>,<br />

porque se <strong>de</strong>ve estimar muito o que se dá com feições alegres, e eu não aprecio na<strong>da</strong> que se dá contra a<br />

própria vonta<strong>de</strong>.<br />

– Depois <strong>de</strong> entregar teu coração <strong>de</strong> acordo com os conselhos acima, começarão a chegar aventuras<br />

difíceis e graves <strong>de</strong> suportar para os enamorados. Freqüentemente, ao recor<strong>da</strong>r teu amor, te verás obrigado<br />

a afastar-te <strong>da</strong>s gentes, para que não se dêem conta <strong>da</strong> dor que sofres. Retirar-te-ás para um lado, só, e<br />

então virão suspiros e lamentos, temores e muitos outros males. Sentir-te-ás atacado <strong>de</strong> muitas formas<br />

distintas: terás calor e logo sentirás o frio; estarás ruborizado e <strong>de</strong>pois pálido, pois nunca houve febres tão<br />

más, nem as diárias, nem as quartas. 73 Assim terás provado os sofrimentos amorosos antes <strong>de</strong> ir.<br />

– Em outras ocasiões, ficarás meditativo e permanecerás imóvel durante muito tempo, como se fosses<br />

uma estátua mu<strong>da</strong>, que nem se move, nem se agita: não moverás um pé, nem as mãos ou os <strong>de</strong>dos, não<br />

virarás os olhos para nenhum lugar, tampouco falarás. Ao final, voltarás a ti, sobressaltar-te-ás<br />

estremecendo, como quem tem medo, e lançarás profundos suspiros do coração, pois assim o têm feito<br />

todos os que provaram esses males que te preocupam.<br />

– É justo que, a seguir, recor<strong>de</strong>s que tua amiga está longe. Então dirás: “– Ai, Deus! Que mal suporto não<br />

indo ao encontro <strong>de</strong> meu coração! Por que meu coração se foi só? Agora penso e não encontro resposta,<br />

posso enviar os olhos para que acompanhem o coração, mas se não o fazem, não valorizo na<strong>da</strong> do que<br />

medi<strong>da</strong> que a I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média caminhava para seu fim, a intolerância cresceu. No período <strong>de</strong> re<strong>da</strong>ção do <strong>Romance</strong> <strong>da</strong> <strong>Rosa</strong>,<br />

houve um recru<strong>de</strong>scimento do sentimento anti-homossexual. Ver também, RICHARDS, Jeffrey. Sexo, <strong>de</strong>svio e <strong>da</strong>nação. As<br />

minorias na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 1993, p. 151.<br />

73 Na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média, a febre era classifica<strong>da</strong> em graus <strong>de</strong> calor e esses graus eram relacionados aos graus <strong>de</strong> um dos quatro<br />

elementos e aos graus <strong>da</strong>s plantas que serviam no preparo dos ungüentos para que o médico pu<strong>de</strong>sse aplicar a medicina<br />

a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong>. Ver COSTA, Ricardo <strong>da</strong>. Las <strong>de</strong>finiciones <strong>de</strong> las siete artes liberales y mecánicas en la obra <strong>de</strong> Ramón Llull. USP/Univ. do<br />

Porto, 2005, e SOUSA, Jorge Prata <strong>de</strong>, e COSTA, Ricardo <strong>da</strong>. “Corpo & alma, vi<strong>da</strong> & morte na medicina ibérica medieval:<br />

o Regimento proveitoso contra a pestilência (c. 1496)”. In: <strong>História</strong>, Ciência, Saú<strong>de</strong> - Manguinhos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Casa <strong>de</strong> Oswaldo<br />

Cruz/Fun<strong>da</strong>ção Oswaldo Cruz, volume XII, número 3, 2005.<br />

19


vêem. Devem ficar aqui? Não, absolutamente. Devem visitar o objeto dos apaixonados <strong>de</strong>sejos do<br />

coração. Bem posso pensar que sou preguiçoso ao manter-me tão afastado <strong>de</strong> meu próprio coração. Que<br />

Deus me aju<strong>de</strong>! Devo estar louco. Vou embora logo, não <strong>de</strong>morarei mais, pois não voltarei a estar<br />

satisfeito, até ter notícias.”<br />

– Então te colocarás a caminho, dirigindo-te até lá <strong>de</strong> tal forma que várias vezes equivocar-te-ás, e em vão<br />

<strong>da</strong>rás teus passos: o que buscarás não verás, e terás que regressar sem conseguir na<strong>da</strong>, cabisbaixo e<br />

meditativo.<br />

– Voltarás a te encontrar mal. De novo sentirás suspiros, ponta<strong>da</strong>s e tremores mais agudos que os<br />

espinhos do ouriço; aquele que os <strong>de</strong>sconhece, que pergunte aos leais enamorados. Não conseguirás<br />

acalmar teu coração e uma vez mais irás tentar ver o que tanta atenção te causa. Por fim, se conseguires<br />

conquistá-la, te ocuparás somente <strong>de</strong> saciar e satisfazer teus olhos. Terás uma gran<strong>de</strong> alegria em teu<br />

coração pela beleza que estarás contemplando. Porém, <strong>de</strong> tanto admirar, teu coração se queimará e se<br />

<strong>de</strong>sfará, pois farás com que se excite o fogo ar<strong>de</strong>nte: aquele que mais olha a quem quer, mais incen<strong>de</strong>ia seu<br />

coração e o expõe às chamas como se o envolvesse com toucinho. Esse toucinho é o que ar<strong>de</strong> e faz ar<strong>de</strong>r<br />

o fogo que enamora as gentes. Os enamorados estão acostumados a seguir essa chama, que os queima e os<br />

consome. Ao sentir o fogo mais perto, vão até ele com maior ímpeto. As chamas são tamanhas que fazem<br />

com que se consuma nelas aquele que se <strong>de</strong>têm para contemplar sua amiga. Assim acontece quando se<br />

aproxima muito <strong>de</strong>la, quando se está mais disposto a amar. Todos o sabem, sábios e estúpidos: o mais<br />

próximo do fogo ar<strong>de</strong> com maior facili<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

– Enquanto te encontras alegre não <strong>de</strong>sejarás te afastar <strong>de</strong> seu lado. Mas quando não te restar outro<br />

remédio, recor<strong>da</strong>rás sem cessar o que vistes, e pensarás que cometestes um gran<strong>de</strong> equívoco ao não se<br />

atrever a dirigir-lhe a palavra, pois não tivestes valor nem ousadia para fazê-lo e ficastes ao seu lado sem<br />

dizer na<strong>da</strong>, como louco e torpe. Consi<strong>de</strong>rarás um grave erro não ter chamado a formosa antes <strong>de</strong> ela ir.<br />

Voltarás muito contrariado, pois se tivesses conseguido obter pelo menos uma gentil sau<strong>da</strong>ção, a<br />

estimarias em cem marcos.<br />

– Começarás a maldizer-te e buscarás uma oportuni<strong>da</strong><strong>de</strong> para ir novamente à rua on<strong>de</strong> viste aquela a quem<br />

não atrevestes a dirigir a palavra. Com muito prazer te encaminharias à sua casa se tivesses um motivo. A<br />

partir <strong>de</strong>sse momento, todos os caminhos e to<strong>da</strong>s as tuas i<strong>da</strong>s e vin<strong>da</strong>s passarão por aqueles arredores. Mas<br />

te oculta <strong>da</strong>s gentes com cui<strong>da</strong>do e busca um motivo diferente do que na ver<strong>da</strong><strong>de</strong> te faz ir por ali, pois é<br />

prova <strong>de</strong> bom senso saber ocultar-se.<br />

– Se por casuali<strong>da</strong><strong>de</strong> te encontras com a formosa em tal situação que não te resta outro remédio a não ser<br />

saudá-la e falar com ela, te mu<strong>da</strong>rás a cor, te estremecerás o sangue, te falharás a palavra e o entendimento<br />

quando fores começar a falar; e, se conseguires avançar o suficiente para atrever-te a falar, não conseguirás<br />

dizer duas coisas <strong>da</strong>s três que pensavas, pela vergonha que sentirás diante <strong>de</strong>la. Não há ninguém tão seguro<br />

que ao chegar a essa situação não esqueça muitas coisas, a não ser que minta: os falsos amantes empregam<br />

palavras a seu gosto, sem medo. São muito mentirosos: pensam uma coisa e dizem outra.<br />

– Quando tiveres terminado <strong>de</strong> falar sem ter dito uma palavra má, pensarás que te equivocastes, pois<br />

esquecestes <strong>de</strong> dizer algo que po<strong>de</strong>ria ser conveniente. Então te sentirás martirizado: é o combate, é a<br />

fogueira, é a batalha que nunca termina. Não haverá nenhum enamorado que tenha buscado falar com sua<br />

<strong>da</strong>ma e tenha encontrado a paz ou o fim <strong>de</strong>ssa guerra, a não ser que eu o queira.<br />

– Ao cair a noite, sentirás mais <strong>de</strong> mil náuseas. Deitarás em tua cama, mas não po<strong>de</strong>rás <strong>de</strong>scansar, pois<br />

quando começares a dormir, tremerás, tiritarás e estremecerás. Virarás <strong>de</strong> lado, <strong>de</strong> boca para cima, <strong>de</strong> boca<br />

para baixo, como quem pa<strong>de</strong>ce <strong>de</strong> dor <strong>de</strong> <strong>de</strong>nte. Recor<strong>da</strong>rás o rosto e as maneiras <strong>da</strong>quela que não tem<br />

par. E ain<strong>da</strong> te digo mais: chegarás a pensar que tens entre os braços aquela <strong>de</strong> rosto claro, completamente<br />

<strong>de</strong>snu<strong>da</strong>, como a houvesse convertido em amiga e companheira. Serão vãs imaginações, alegrias sem<br />

sentido, resultado do enlouquecimento por agradáveis lembranças, nas quais há somente mentiras e<br />

fábulas. Pouco tempo po<strong>de</strong>rás permanecer em tal estado; logo começarás a chorar, dizendo: “– Deus, o<br />

que tenho sonhado? O que é isso? On<strong>de</strong> me encontrava? De on<strong>de</strong> me vem tal pensamento? Gostaria que<br />

voltasse a ocorrer <strong>de</strong>z ou vinte vezes diárias: isso me saciou e me encheu <strong>de</strong> alegria e gozo, mas sua<br />

brevi<strong>da</strong><strong>de</strong> vai me causar a morte. Deus! Conseguirei me ver em tal situação? Agra<strong>da</strong>r-me-ia que assim o<br />

fosse, ain<strong>da</strong> que morresse ao final. A morte não me preocuparia se viesse entre os braços <strong>de</strong> minha amiga.<br />

O Amor me atormenta e me martiriza sem cessar. Por isso me queixo e lamento freqüentemente. Mas, se<br />

conseguir obter a alegria total <strong>de</strong> minha amiga, terei conseguido uma boa recompensa por meus males. Ai<br />

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<strong>de</strong> mim, peço em <strong>de</strong>masia! Não <strong>de</strong>vo ser muito rápido, pois aspiro a tanto: aquele que pe<strong>de</strong> uma estupi<strong>de</strong>z<br />

é normal que tenha seu pedido negado. Não sei como me atrevi a dizê-lo! Muito mais nobres e valiosos<br />

que eu se sentiriam honrados com uma recompensa menor, mas se a bela me conce<strong>de</strong>sse o prazer <strong>de</strong> um<br />

só beijo, seria uma recompensa mais que suficiente pelas penas que tenho sofrido. É coisa difícil <strong>de</strong><br />

conseguir. Devo consi<strong>de</strong>rar-me um louco, pois coloquei meu coração em um lugar on<strong>de</strong> não conseguirei<br />

gozo nem proveito. Só digo loucuras e estupi<strong>de</strong>z, pois mais vale um olhar seu que todo o <strong>de</strong>leite que outra<br />

possa <strong>da</strong>r. Com muito prazer a veria, que Deus me aju<strong>de</strong>, pois ela curaria quem a visse só um breve<br />

instante. Ai, Deus! Quando amanhecerá? Há muito que estou nessa cama. Não aprecio esse <strong>de</strong>scanso, pois<br />

não tenho o que <strong>de</strong>sejo. Estar <strong>de</strong>itado é um tédio se não se dorme ou <strong>de</strong>scansa. Incomo<strong>da</strong>-me e<br />

<strong>de</strong>sagra<strong>da</strong>-me que não <strong>de</strong>sponte o alvorecer e termine a noite. Se fosse dia, não <strong>de</strong>moraria em levantar-me.<br />

Ah, Sol! Por Deus, tem pressa, não <strong>de</strong>mores nem te atrases, faz com que se vá a noite escura, com seus<br />

pesares que já duram <strong>de</strong>masia<strong>da</strong>mente.”<br />

– Deste modo, se chegar a conhecer o mal <strong>de</strong> amar, passarás a noite com pouco repouso. Quando já não<br />

pu<strong>de</strong>res suportar continuar velando na cama, arrumar-te-ás, vestir-te-ás e até te calçarás antes que tenha<br />

amanhecido. Escon<strong>de</strong>ndo-te, com chuva ou com gelo, dirigir-te-ás à casa <strong>de</strong> tua amiga, que estarás<br />

dormindo, sem pensar em ti.<br />

– Primeiro irás à porta <strong>de</strong> trás, para ver se ficou aberta. Permanecerás ali fora, sozinho, sob a chuva e o<br />

vento. Depois irás à porta <strong>da</strong> frente: se encontrares uma fresta numa janela ou numa fechadura, aproxima<br />

o ouvido e escuta se os <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro dormem. Se a bela estiver acor<strong>da</strong><strong>da</strong>, aconselho-te e recomendo que<br />

procures que ela ouça tuas queixas e lamentos, para que se inteire <strong>de</strong> quanto te custa não po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>scansar<br />

pelos <strong>de</strong>sejos que tens <strong>de</strong> que seja tua amiga. To<strong>da</strong> mulher, se não é muito dura, <strong>de</strong>ve apie<strong>da</strong>r-se <strong>de</strong> quem<br />

suporta tais sofrimentos por ela.<br />

– Agora vou te dizer o que é que farás por amor do santo lugar que não te permite nenhum repouso:<br />

quando regressares, vai à porta e, para que ninguém te veja diante <strong>da</strong> casa ou pela rua, volta antes que<br />

tenha amanhecido.<br />

– Estas i<strong>da</strong>s e vin<strong>da</strong>s, estas vigílias e meditações fazem com que as peles dos enamorados emagreçam sob<br />

as roupas, como po<strong>de</strong>rás comprovar por ti mesmo: o amor não <strong>de</strong>ixa ao leal amante nem cor, nem<br />

gordura. Nisso se distinguem sem dificul<strong>da</strong><strong>de</strong> aqueles que traem suas <strong>da</strong>mas: para homenageá-las, dizem<br />

que têm perdido a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> comer e beber, mas eu vejo esses embusteiros mais gordos que aba<strong>de</strong>s ou<br />

priores.<br />

– Vou te <strong>da</strong>r e impor mais outra or<strong>de</strong>m: para que a cria<strong>da</strong> <strong>da</strong> casa te tenha por generoso e diga que vales<br />

muito, dê-lhe qualquer adorno. Deves honrar e querer tua amiga e a todos os que a acompanham, pois<br />

através <strong>de</strong>les po<strong>de</strong>s receber gran<strong>de</strong> proveito. Quando aqueles em quem ela mais confia mais lhe contam<br />

que te encontraram valente, cortês e <strong>de</strong> trato afável, terás conseguido que a <strong>da</strong>ma te queira muito mais.<br />

– Procura não sair <strong>de</strong> tua terra, mas se não tens outro remédio senão fazê-lo, procura que teu coração<br />

fique, e pensa em regressar o quanto antes. Não <strong>de</strong>ves tar<strong>da</strong>r muito: mostra que tens gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong><br />

ver aquela que possui a custódia <strong>de</strong> teu coração.<br />

– Com isso já te disse tudo o que <strong>de</strong>ve fazer o enamorado que entra em meu serviço. Cumpre com minhas<br />

or<strong>de</strong>ns, a partir <strong>de</strong> agora, se queres obter os favores <strong>de</strong> tua bela.<br />

Depois <strong>da</strong>s recomen<strong>da</strong>ções que me fez o Amor, eu lhe perguntei:<br />

– Senhor, <strong>de</strong> que maneira, como po<strong>de</strong>m os enamorados suportar esses sofrimentos que haveis contado?<br />

Sinto um autêntico pavor. Como po<strong>de</strong> viver, como resiste quem está continuamente entre dores e chamas,<br />

entre lamentos, suspiros e lágrimas, que a todo o momento e a ca<strong>da</strong> instante se encontra preocupado e<br />

com insônias? Que Deus me aju<strong>de</strong>; admira-me que um homem, ain<strong>da</strong> que fosse <strong>de</strong> ferro, pu<strong>de</strong>sse viver um<br />

ano em tal inferno.<br />

O Deus do Amor me respon<strong>de</strong>u, <strong>da</strong>ndo uma boa resposta à minha pergunta:<br />

– Bom amigo, pela alma <strong>de</strong> meu pai, ninguém tem um bem sem pagá-lo; mais se estima uma proprie<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

quanto mais cara custou, e com maior gosto se recebem os bens pelos quais mais sofreu. É certo que não<br />

há na<strong>da</strong> comparável ao que passam os enamorados. Do mesmo modo que não se po<strong>de</strong> esvaziar o mar, é<br />

impossível contar os males do amor em um livro ou em uma estória.<br />

– Em qualquer caso, os enamorados sobrevivem, pois lhes é necessário; todos fugimos <strong>da</strong> morte. O que<br />

está recluso em um sombrio cárcere cheio <strong>de</strong> vermes e imundícies, que não tem mais que um pão <strong>de</strong><br />

ceva<strong>da</strong> ou aveia, não morre <strong>de</strong> aflição: a Esperança lhe dá consolo, e ele pensa em se ver livre por alguma<br />

21


afortuna<strong>da</strong> casuali<strong>da</strong><strong>de</strong>. O mesmo acontece ao prisioneiro do Amor. Espera se salvar e tal esperança o<br />

reconforta, lhe dá ânimo e forças suficientes para entregar seu corpo ao martírio. A Esperança o aju<strong>da</strong> a<br />

suportar os inumeráveis males em troca <strong>de</strong> uma alegria que vale cem vezes mais. A Esperança vence o<br />

sofrimento e faz com que os enamorados sobrevivam. Bendita seja a Esperança, que assim os mantém! A<br />

Esperança é muito cortês: até o fim não abandona o homem honrado, apesar dos perigos e <strong>da</strong>s aflições; e<br />

faz com que o ladrão que vão enforcar espere misericórdia a todo o momento. Ela te protegerá e não sairá<br />

do teu lado sem ter te socorrido se for necessário. Além disso, te presenteio outros três bens que fornecem<br />

um gran<strong>de</strong> alívio aos que se encontram em meus laços.<br />

– O primeiro dos bens que aliviam os que caem nos laços do Amor é Doce Pensamento, que lhes<br />

recor<strong>da</strong> as concessões <strong>da</strong> Esperança. Quando o enamorado se lamenta e suspira, entre dores e martírios,<br />

não <strong>de</strong>mora muito em aparecer Doce Pensamento, que <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>ça a tristeza e a dor, e, com sua chega<strong>da</strong>,<br />

faz com que o enamorado recor<strong>de</strong> a alegria que lhe prometeu Esperança. Depois, lhe mostra os olhos<br />

sorri<strong>de</strong>ntes, o belo nariz que não é nem muito gran<strong>de</strong> nem pequeno, a boquinha <strong>de</strong> uma cor viva, cujo<br />

sopro é tão apreciado. Então, lhe alegra em recor<strong>da</strong>r a beleza <strong>de</strong> ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus membros. O <strong>de</strong>leite se<br />

duplica com a lembrança <strong>de</strong> um sorriso, <strong>de</strong> um bom rosto ou <strong>de</strong> um doce olhar que sua queri<strong>da</strong> amiga<br />

tenha lhe <strong>de</strong>dicado. Assim, Doce Pensamento alivia as dores e as tristezas do Amor. Presenteio-te. E vou<br />

te <strong>da</strong>r outro que não é menos agradável: se o rechaças, parece-me que serás difícil <strong>de</strong> contentar. Trata-se <strong>de</strong><br />

Doce Conversação, que em muitas ocasiões socorreu a numerosos jovens e <strong>da</strong>mas, pois aquele que ouve<br />

falar <strong>de</strong> seu amor, imediatamente se alegra. Recordo que por isso uma <strong>da</strong>ma muito enamora<strong>da</strong> dizia estas<br />

corteses palavras em uma canção: “Sinto-me afortuna<strong>da</strong> / Quando me falam <strong>de</strong> meu amigo / Por Deus!<br />

Cura-me / Quem <strong>de</strong>le me fala, diga o que disser”. Esta <strong>da</strong>ma sabia quem era Doce Conversação e a havia<br />

conhecido sob diversos aspectos.<br />

– Aconselho-te e <strong>de</strong>sejo que busques um companheiro pru<strong>de</strong>nte e discreto, a quem possas revelar seus<br />

pensamentos e <strong>de</strong>scobrir teu sentir. Ele te aju<strong>da</strong>rá muito. Quando o mal <strong>de</strong> amor te causar profun<strong>da</strong>s<br />

angústias, recorrerás a ele para te reconfortar; falareis juntos <strong>da</strong> bela que te roubou o coração. Contar-lheás<br />

tua situação e lhe pedirás que te aconselhe <strong>de</strong> que modo po<strong>de</strong>rias fazer algo que seja agradável à tua<br />

amiga. Se aquele que vai ser teu amigo entregou seu coração a um bom amor, então sua companhia será<br />

muito mais valiosa. É razoável que te diga se sua amiga é donzela ou não; e que te indique quem é e como<br />

se chama. Assim não <strong>de</strong>verás temer o que pensas <strong>de</strong> tua amiga ou que te enganes, mas terão confiança<br />

mútua, já que é muito agradável contar com um homem a quem nos atrevemos a dizer segredos e<br />

confidências. Receberás com muito prazer tal <strong>de</strong>leite e te consi<strong>de</strong>rarás bem recompensado quando o<br />

provares.<br />

– O terceiro bem proce<strong>de</strong> <strong>da</strong> visão: é Doce Olhar, que permite que possam resistir aqueles que têm<br />

amores distantes. Aconselho-te que te mantenhas próximo <strong>de</strong> tua <strong>da</strong>ma com Doce Olhar; assim, seu<br />

consolo não tar<strong>da</strong>rá em chegar, pois é agradável e prazeroso aos enamorados.<br />

– Os olhos têm um encontro muito bom pela manhã quando Deus lhes mostra o santuário precioso que<br />

tanto <strong>de</strong>sejam: o dia que po<strong>de</strong>m ver. Não lhes ocorre nenhuma <strong>de</strong>sgraça digna <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração; não<br />

temem nem o pó, nem o vento, nem alguma outra coisa difícil <strong>de</strong> suportar. E quando os olhos <strong>de</strong>sfrutam<br />

<strong>de</strong> tal prazer, estão tão bem educados e acostumados, que não gozam sozinhos, mas procuram que o<br />

coração também se regozije, <strong>de</strong> modo que o aliviam <strong>de</strong> suas penas; pois os olhos, como autênticos<br />

mensageiros, enviam imediatamente ao coração as notícias do que vêem e, graças à alegria que produzem,<br />

o coração esquece suas aflições e sai <strong>da</strong>s trevas nas quais se encontrava. Do mesmo modo que a luz faz<br />

com que fuja a escuridão, Doce Olhar afasta as trevas em que jaz o coração que languesce dia e noite por<br />

culpa do amor, e as dores terminam quando os olhos contemplam o que o coração <strong>de</strong>seja. 74<br />

– Segundo me parece, já te expliquei o que tanto te assustava e contei sem mentir na<strong>da</strong> quais são os bens<br />

que po<strong>de</strong>m proteger os enamorados, salvando-os <strong>da</strong> morte. Agora sabes quem po<strong>de</strong> te <strong>da</strong>r certo valor,<br />

pois ao menos terás a Esperança e não te faltarão Doce Pensamento, Doce Conversação e Doce<br />

Olhar. Quero que ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong>les te proteja até que possas aspirar a algo melhor, pois mais adiante obterás<br />

outros bens que não são menores que esses, e sim muito maiores. Por enquanto, te dou estes.<br />

74 “...as dores terminam quando os olhos contemplam o que o coração <strong>de</strong>seja” – Alusão à abertura do Tratado do Amor Cortês<br />

<strong>de</strong> André Capelão: “Amor é uma paixão natural que nasce <strong>da</strong> visão <strong>da</strong> beleza do outro sexo e <strong>da</strong> lembrança obse<strong>da</strong>nte<br />

<strong>de</strong>ssa beleza” (São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 5).<br />

22


Quando o Amor terminou <strong>de</strong> dizer-me o que quis, fui incapaz <strong>de</strong> pronunciar uma só palavra antes<br />

que <strong>de</strong>saparecesse. Fiquei assustado ao ver que junto a mim não havia ninguém. Sentia uma gran<strong>de</strong> dor em<br />

minhas feri<strong>da</strong>s e me <strong>de</strong>i conta <strong>de</strong> que não po<strong>de</strong>ria curar-me se não fosse com a rosa à qual havia entregue<br />

meu coração e todo meu ser. Para obtê-la, não confiava em ninguém além do Deus do Amor e estava<br />

seguro <strong>de</strong> que seria impossível consegui-la sem a sua aju<strong>da</strong>.<br />

Os roseirais estavam cercados por uma cerca, como era normal. Eu estava disposto a entrar em<br />

busca <strong>da</strong> flor, cuja fragrância era superior a qualquer bálsamo, mas tinha medo <strong>de</strong> que alguém me<br />

chamasse a atenção. Parecia que os roseirais <strong>de</strong>sejavam me levar.<br />

Assim, enquanto pensava se atravessaria a cerca, vi que se aproximava <strong>de</strong> mim um jovem rapaz, belo<br />

e elegante, sem nenhuma imperfeição. Chamava-se Doce Abrigo, filho <strong>da</strong> esplêndi<strong>da</strong> Cortesia. Com<br />

<strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, ele <strong>de</strong>ixou-me livre o caminho e disse-me amavelmente:<br />

– Meu bom amigo, por favor, passai esta cerca para sentir o perfume <strong>da</strong>s rosas. Asseguro-te que não<br />

receberás nenhum <strong>da</strong>no por isso e que não enfrentarás nenhuma baixeza, contanto que te guar<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

cometer loucuras. Se pu<strong>de</strong>r te aju<strong>da</strong>r em algo, não discutirei, pois estou disposto a servir-te: digo isso com<br />

to<strong>da</strong> franqueza.<br />

– Senhor – disse a Doce Abrigo – aceito tua oferta com muito prazer e dou graças pelo favor que me<br />

ofereceste, pois fê-lo movido por uma gran<strong>de</strong> nobreza. E já que assim o <strong>de</strong>sejas, estou disposto a aceitar<br />

teu serviço.<br />

Assim, atravessei a cerca entre sarças e espinhos, que eram abun<strong>da</strong>ntes e, acompanhado por Doce<br />

Abrigo, comecei a an<strong>da</strong>r até a rosa que exalava o melhor perfume <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s as <strong>de</strong>mais. Asseguro-vos que<br />

me agradou muito aproximar-me tanto <strong>da</strong> flor. Quase pu<strong>de</strong> alcançá-la com a mão.<br />

Doce Abrigo serviu-me bem ao fazer com que visse a rosa <strong>de</strong> tão perto, ain<strong>da</strong> que naquele lugar<br />

estivesse escondido um vilão – que a má vergonha lhe alcance! Chamava-se Rejeição e era vigilante e<br />

guardião <strong>de</strong> todos os roseirais. O covar<strong>de</strong> se ocultava num canto, coberto pela erva e pela folhagem, para<br />

espiar e surpreen<strong>de</strong>r quem esten<strong>de</strong>sse as mãos até as rosas. 75<br />

Esse cão não estava só, tinha como companheiros a Má Língua, a murmuradora, a Vergonha e o<br />

Medo. De todos eles, era Vergonha a que mais valia: sabe-se, segundo contam os que conhecem bem o<br />

seu parentesco e a sua linhagem, que era filha <strong>da</strong> pru<strong>de</strong>nte Razão e que seu pai se chamava Azarento, um<br />

diabo tão odioso e feio que a Razão não chegou a se <strong>de</strong>itar com ele, mas concebeu a Vergonha pelo<br />

olhar. Quando Deus a fez nascer, a Casti<strong>da</strong><strong>de</strong> – senhora <strong>da</strong>s rosas e <strong>de</strong> seus botões – viu-se ataca<strong>da</strong> por<br />

malvados ladrões, necessitando <strong>de</strong> aju<strong>da</strong>, pois Vênus havia entrado em suas possessões para levar as flores<br />

e os botões, como costumam fazer dia e noite. Então, a Casti<strong>da</strong><strong>de</strong>, que se encontrava persegui<strong>da</strong> por<br />

Vênus, pediu à Razão que lhe <strong>de</strong>sse a sua filha. Como se encontrava <strong>de</strong>sampara<strong>da</strong>, pediu à mesma, que<br />

não tardou em fazer-lhe um favor emprestando-lhe sua filha Vergonha, que é honra<strong>da</strong> e honesta. E para<br />

proteger melhor os roseirais, fez com que o Zelo e o Medo a socorressem, pois eles obrigam a cumprir<br />

seus <strong>de</strong>sejos.<br />

Assim, eram quatro os guardiões <strong>da</strong>s rosas, os quais preferiam ser golpeados antes que alguém<br />

levasse alguma rosa ou botão. Eu teria chegado bem perto dos meus propósitos se não estivessem me<br />

vigiando, pois Doce Abrigo, nobre e agradável, esforçava-se em cumprir o que havia dito e, assim, em<br />

fazer o que via que podia agra<strong>da</strong>r-me. Incessantemente, ele me impulsionou para que me aproximasse do<br />

botão e tocasse o roseiral, que estava carregado <strong>de</strong> flores.<br />

Deu-me permissão para fazer tudo isso, pois pensava que esse era o meu <strong>de</strong>sejo. De sua parte,<br />

tomou uma folha ver<strong>de</strong> que crescia perto <strong>da</strong> rosa e me presenteou, pois ela havia nascido junto à flor.<br />

75 A tradição literária medieval representava os camponeses – os rústicos, os vilões – como pessoas semi-animalescas,<br />

bestiais, sujas. “Isto fica claro quando se analisa a evolução dos termos aplicados ao camponês: pouco a pouco, um sentido<br />

pejorativo tomou conta do universo semântico que <strong>de</strong>finia o homem <strong>da</strong> terra, especialmente as palavras rusticus –<br />

camponês, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século VI como sinônimo <strong>de</strong> ignorante, iletrado; em suma, a massa <strong>de</strong>sprovi<strong>da</strong> <strong>de</strong> cultura – e villani<br />

(vilão) – originalmente apenas o resi<strong>de</strong>nte <strong>da</strong> villa, mas no século XIV já com o sentido <strong>de</strong> feal<strong>da</strong><strong>de</strong> moral. Os rustici também<br />

eram retratados pelos letrados com profundo <strong>de</strong>sprezo, ridicularizados na literatura e na arte, nas chansons <strong>de</strong> geste, nos<br />

contos satíricos e nos poemas goliárdicos – os goliardos (ou vagants) eram clérigos marginais e urbanos que escreviam<br />

poesias criticando asperamente a socie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong> sua época.” – COSTA, Ricardo <strong>da</strong>. “Revoltas camponesas na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média.<br />

1358: a violência <strong>da</strong> Jacquerie na visão <strong>de</strong> Jean Froissart”. In: CHEVITARESE, André (org.). O campesinato na <strong>História</strong>. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Relume Dumará / FAPERJ, 2002, p. 97-115.<br />

23


Tive uma gran<strong>de</strong> alegria ao receber essa folha, pois, a partir <strong>de</strong>ste momento, me consi<strong>de</strong>rei amigo<br />

íntimo e confi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> meu companheiro e, por isso, pensava que já havia chegado à minha meta. Então,<br />

senti o valor suficiente e o atrevimento necessário para dizer-lhe que o Amor havia me aprisionado e<br />

ferido:<br />

– Senhor – disse-lhe – nunca voltarei a ter alegria se não for por uma coisa: no coração tenho fixa uma<br />

pesa<strong>da</strong> enfermi<strong>da</strong><strong>de</strong>, mas não sei como explicar-lhe, pois temo que vos enfa<strong>de</strong>is; preferiria ser <strong>de</strong>spe<strong>da</strong>çado<br />

em pe<strong>da</strong>ços com facas <strong>de</strong> aço antes <strong>de</strong> causar-vos qualquer <strong>de</strong>sgosto.<br />

– Dizei-me teus <strong>de</strong>sejos, pois não me molestará na<strong>da</strong> do que digas.<br />

– Bom senhor, sabes que o Amor me atormenta com dureza. Não vou mentir para ti: ele tem me causado<br />

cinco feri<strong>da</strong>s no corpo e a dor não cessará até que eu consiga a rosa mais perfeita <strong>de</strong> to<strong>da</strong>s - é minha morte<br />

e é minha vi<strong>da</strong>; na<strong>da</strong> <strong>de</strong>sejo tanto.<br />

Doce Abrigo se assustou e então me disse:<br />

– Irmão, pensas algo impossível. Como? Queres minha <strong>de</strong>sonra? Haverias me feito passar por estúpido se<br />

tivesses colhido o botão do roseiral; não é razoável tirá-lo <strong>de</strong> seu lugar. Cometes uma vilania pedindo-o!<br />

Deixa que cresça e que se torne mais formoso, pois nenhum homem vivo arrancá-lo-ia do roseiral que o<br />

tem sustentado, tanto o quero!<br />

Nesse momento, saltou a infame Rejeição do lugar em que estava escondi<strong>da</strong>. Era gran<strong>de</strong>, negra e<br />

pelu<strong>da</strong>, tinha os olhos acesos como brasas, o nariz enrugado e o rosto abominável. Então, ela começou a<br />

gritar como uma louca:<br />

– Doce Abrigo, porque trouxeste este jovem próximo aos roseirais? Por Deus, fizeste mal, pois ele pensa<br />

em prejudicá-los. Maldito sejas não tu, mas quem o trouxe a este jardim! Aquele que serve a um traidor<br />

tem a recompensa que merece. Pensavas fazer-lhe um favor enquanto ele te <strong>de</strong>sejava afrontas e<br />

<strong>de</strong>savenças. An<strong>da</strong> jovem, vá <strong>da</strong>qui! Com gosto <strong>da</strong>r-te-ia a morte! Doce Abrigo conhecia-te mal e se<br />

esforçava em servir-te, enquanto tentavas enganá-lo. Não confiarei em ti, pois manifestaste a traição que<br />

guar<strong>da</strong>vas oculta.<br />

Não me atrevi a permanecer naquele lugar por culpa do odioso vilão negro que me ameaçava atacar<br />

<strong>da</strong>quela maneira. Rapi<strong>da</strong>mente ele me obrigou a retroce<strong>de</strong>r com muito medo para o outro lado <strong>da</strong> cerca,<br />

enquanto o malvado movia a cabeça dizendo que se eu voltasse a entrar, me faria uma má ação.<br />

Então, Doce Abrigo fugiu e eu fiquei amedrontado, aflito e cheio <strong>de</strong> vergonha: estava arrependido<br />

<strong>de</strong> ter dito o que pensava. Recor<strong>de</strong>i minha loucura e vi meu corpo livre <strong>da</strong> dor, <strong>da</strong> pena e do suplício, mas<br />

o que mais me entristecia era não ter me atrevido a passar a cerca.<br />

Quem não amou não conhece a dor, pois quando se ama pa<strong>de</strong>ce-se gran<strong>de</strong>s sofrimentos. O Amor<br />

me fez provar a pena que me prometera. O coração seria incapaz <strong>de</strong> pensar e a boca não po<strong>de</strong>ria dizer a<br />

quarta parte <strong>da</strong> dor que eu sentia. Quando recordo que tive que me afastar assim <strong>da</strong> rosa, meu coração<br />

quase se <strong>de</strong>stroça.<br />

Por muito tempo permaneci nesse estado, até que a <strong>da</strong>ma do lugar, que estava me olhando do alto<br />

<strong>de</strong> sua torre, me viu aflito. Chamava-se Razão. Desceu <strong>de</strong> lá e veio até a mim. Não era jovem, nem<br />

grisalha, nem alta, nem baixa, nem muito magra, nem excessivamente gor<strong>da</strong>. Seus olhos brilhavam como<br />

duas estrelas e tinha na cabeça uma coroa; parecia ser uma pessoa <strong>de</strong> eleva<strong>da</strong> condição. Por sua aparência e<br />

seu rosto parecia ter sido feita no Paraíso, pois a Natureza seria incapaz <strong>de</strong> realizar obra comparável.<br />

Se o texto não mente, saibais que Deus a criou no firmamento à Sua imagem e semelhança, e lhe<br />

conce<strong>de</strong>u o po<strong>de</strong>r e a força para manter o homem distante <strong>de</strong> to<strong>da</strong> a loucura, contanto que lhe prestasse<br />

atenção.<br />

Enquanto eu estava assim me lamentando, a Razão começou a falar:<br />

– Meu bom amigo, tua insensatez e tua juventu<strong>de</strong> fazem com que te aflijas e te entristeças. Em má hora<br />

conheceste o bom tempo <strong>de</strong> maio, que fez com que teu coração se alegrasse em <strong>de</strong>masia; em má hora<br />

foste buscar uma sombra no jardim cuja chave é guar<strong>da</strong><strong>da</strong> por Ociosa, a qual lhe abriu a porta. Está louco<br />

quem trava contato com ela, pois sua companhia é muito perigosa; ela traiu-te e mentiu para ti: o Amor<br />

nunca teria te encontrado se Ociosa não tivesse te conduzido ao formoso jardim do Lazer. Trabalhaste<br />

como um louco e agora tens que agir para que tudo seja reparado; procura não crer novamente em um<br />

conselho que te leve a cometer loucuras, mesmo que em boa hora as faz quem <strong>de</strong>pois se corrige. Não <strong>de</strong>ve<br />

se surpreen<strong>de</strong>r que os jovens se precipitem a isso.<br />

24


– Agora quero dizer-te e aconselhar-te a esquecer o Amor, por cuja culpa te vejo fraco, abatido e<br />

atormentado. Não sei como po<strong>de</strong>rás te curar ou sarar se não o fizeres, pois a cruel Rejeição quer<br />

combater contra ti sem <strong>de</strong>ixar-te repousar: não te confrontes com ela. A Rejeição é pouco importante se<br />

compara<strong>da</strong> à minha filha Vergonha, que é a que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> e guar<strong>da</strong> as rosas com gran<strong>de</strong> habili<strong>da</strong><strong>de</strong>: <strong>de</strong>ves<br />

ter medo <strong>de</strong>la, pois será a que pior se comportará contigo.<br />

– Com elas está a Má Língua, que não permite a ninguém tocar as flores. Antes que dê tempo <strong>de</strong> fazê-lo,<br />

consi<strong>de</strong>re trezentos lugares diferentes, pois vais encontrar com gente temível. Pense o que é melhor:<br />

abandonar teu propósito ou continuar atrás do que te faz viver com tal sofrimento, que é o mal que se<br />

chama amor e no qual há somente loucura. Loucura, sim, por Deus! O enamorado não po<strong>de</strong> fazer<br />

nenhum bem, nem prestar atenção em ninguém: se é clérigo, per<strong>de</strong> seu saber; se se ocupa <strong>de</strong> outro ofício,<br />

mal po<strong>de</strong> concluí-lo. E, sobretudo, pa<strong>de</strong>ce mais que um ermitão 76 ou que um monge branco. 77 Seu<br />

sofrimento é <strong>de</strong>smedido e sua alegria dura pouco. Para o enamorado, alcançar a alegria é uma aventura,<br />

pois, conforme vejo, muitos se esforçam para consegui-la e fracassam totalmente no final. Não quiseste<br />

escutar meus conselhos quando te entregaste ao Deus do Amor: teu coração volúvel te impulsionou a<br />

cometer semelhante loucura, ou então fizestes sem refletir; mas ao abandoná-lo mostrarias uma gran<strong>de</strong><br />

sabedoria. Portanto, <strong>de</strong>spreza e rejeita o amor que assim te faz viver, pois a loucura cresce sem cessar se<br />

não é <strong>de</strong>ti<strong>da</strong> a tempo. Coloca um freio firmemente nos <strong>de</strong>ntes, doma e freia teu coração, esforça-te e<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-te dos pensamentos que nascem em teu peito, pois aquele que crê em seu coração não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong><br />

cometer loucuras.<br />

Ao ouvir tais conselhos, respondi irado:<br />

– Senhora, suplico-te que <strong>de</strong>ixes <strong>de</strong> <strong>da</strong>r-me conselhos. Disse-me para frear meu coração para que o Amor<br />

não se apo<strong>de</strong>re <strong>de</strong>le, mas por acaso crês que o Amor o consentirá e permitirá que eu domine meu coração,<br />

que lhe pertence por completo? Não posso fazer o que pe<strong>de</strong>s, pois o Amor tem domado meu coração tão<br />

bem, que esse só obe<strong>de</strong>ce à suas or<strong>de</strong>ns, não às minhas; e o governa com tal firmeza que fez uma chave<br />

para mantê-lo trancado. Deixa-me tranqüilo agora, pois em vão estás gastando o teu francês. Preferiria<br />

morrer que ser acusado <strong>de</strong> falsi<strong>da</strong><strong>de</strong> e traição pelo Amor. Ao fim <strong>de</strong> tudo, quero louvar-me por ter sido<br />

um leal amante ou lamentar-me. Por isso, me incomodo com quem me dá conselhos.<br />

Diante <strong>de</strong> tais palavras, a Razão se foi, pois viu que suas recomen<strong>da</strong>ções não me fariam mu<strong>da</strong>r <strong>de</strong><br />

idéia. De minha parte, fiquei cheio <strong>de</strong> tristeza e <strong>de</strong> dor; chorava e me lamentava com freqüência, pois não<br />

sabia como encontrar um remédio. Então, recor<strong>de</strong>i que o Amor dissera para buscar um companheiro para<br />

quem eu pu<strong>de</strong>sse revelar todos os meus pensamentos, pois isso aliviaria a minha dor.<br />

Então me lembrei que tinha um companheiro muito fiel: chamava-se Amigo e era o melhor<br />

companheiro <strong>de</strong> todos que tive.<br />

Fui rapi<strong>da</strong>mente à sua procura. Mostrei-lhe, conforme os conselhos do Amor, os obstáculos que me<br />

mantinham imóvel e, assim, queixei-me <strong>de</strong> Rejeição, que quase me <strong>de</strong>vorou, que pôs Doce Abrigo em<br />

fuga quando me viu falar com ele <strong>da</strong> <strong>de</strong>seja<strong>da</strong> flor, e que me disse que se eu voltasse a ultrapassar a cerca,<br />

pelo motivo que fosse, pagaria caro.<br />

Depois <strong>de</strong> conhecer a ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, Amigo não me assustou, mas me disse:<br />

– Companheiro, ficai tranqüilo, não te preocupes. Faz muito tempo que conheço Rejeição: ela sabe<br />

injuriar, afrontar e ameaçar os enamorados que estão começando; sei disso há muito tempo. Se tiver se<br />

comportado mal convosco, o fará <strong>de</strong> outra forma mais adiante. Conheço-a como se fosse uma moe<strong>da</strong>:<br />

suaviza-se com boas palavras e com súplicas. Vou lhe dizer o que <strong>de</strong>ves fazer: aconselho que peças que te<br />

perdoe <strong>de</strong> coração e também, por favor, sua crítica: promete-lhe que a partir <strong>de</strong> agora não farás na<strong>da</strong> que a<br />

<strong>de</strong>sagra<strong>de</strong>. Isso é uma coisa que muito a apazigua, a acalma e a agra<strong>da</strong>.<br />

76 O “pa<strong>de</strong>cer mais que um ermitão” mostra o quanto os medievais consi<strong>de</strong>ravam os eremitas, um dos tipos i<strong>de</strong>ais <strong>da</strong> I<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

Média e topos literário muito utilizado nos textos. Mas a figura do eremita não era somente literária: o século XII assistiu a<br />

um ver<strong>da</strong><strong>de</strong>iro florescimento do movimento eremítico, fenômeno social semelhante ao monaquismo do século IX. Entre<br />

1095 e 1110 célebres personagens adotaram a vi<strong>da</strong> eremítica, como, por exemplo, Robert <strong>de</strong> Arbrissel, Bernardo <strong>de</strong> Tiron<br />

e, é claro, o famoso, Pedro, o eremita. Ver MOLLAT, Michel. Pobres, humil<strong>de</strong>s y miserables en la E<strong>da</strong>d Media. México: Fondo <strong>de</strong><br />

Cultura Econômica, 1998, p. 72-78, e especialmente VAUCHEZ, André. A Espirituali<strong>da</strong><strong>de</strong> na I<strong>da</strong><strong>de</strong> Média Oci<strong>de</strong>ntal (séculos<br />

VIII a XIII). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p. 77-82.<br />

77 Os monges brancos aos quais o texto alu<strong>de</strong> são os <strong>da</strong> or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> Cister, famosos por viverem uma vi<strong>da</strong> austera. Sem<br />

dúvi<strong>da</strong>, um dos melhores trabalhos já escritos (inclusive para o eremitismo) é o <strong>de</strong> M. COLOMBÁS, García. La tradición<br />

benedictina. Ensayo histórico. Tomo cuarto: el siglo XII. Zamora, Ediciones Monte Casino, 1993.<br />

25


Amigo me reconfortou com suas palavras, <strong>de</strong>u-me valor e <strong>de</strong>sejou que eu fosse me apaziguar com<br />

Rejeição. Assim, cheguei timi<strong>da</strong>mente à presença <strong>de</strong>la, <strong>de</strong>sejoso <strong>de</strong> conseguir a paz, mas não passei a<br />

cerca, pois ele me havia proibido a entra<strong>da</strong>. Encontrei-a <strong>de</strong> pé, com um aspecto enfadonho e irado,<br />

segurando na mão um bastão <strong>de</strong> espinho. Inclinei a cabeça e lhe disse:<br />

– Senhora, venho para pedir-te pie<strong>da</strong><strong>de</strong>. Sinto ter te aborrecido antes, mas estou disposto a reparar isso <strong>de</strong><br />

acordo com teus <strong>de</strong>sejos. O Amor me obrigou a fazer o que fiz; eu não pu<strong>de</strong> retirar <strong>de</strong> meu coração a<br />

vonta<strong>de</strong> do Amor, mas prometo que nunca mais voltarei a <strong>de</strong>sejar na<strong>da</strong> que te incomo<strong>de</strong>: prefiro antes<br />

suportar meus sofrimentos que fazer qualquer coisa que te <strong>de</strong>sagra<strong>de</strong>. Suplico-te que tenhas pie<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

mim e que aplaques vossa cólera, que me produz gran<strong>de</strong> temor; juro e prometo que sempre me<br />

comportarei <strong>de</strong> tal forma contigo, que não vos causarei nenhum outro pesar. Por isso, rogo-te para que me<br />

conce<strong>da</strong>s o que não po<strong>de</strong>s me proibir: permite-me amar, não te peço outra coisa. Cumprirei todos os teus<br />

<strong>de</strong>sejos se me consentir isso; não po<strong>de</strong>s me impedir e não quero enganar-te a respeito, pois continuarei<br />

amando, já que isso me agra<strong>da</strong>, incomo<strong>de</strong> a quem incomo<strong>de</strong> ou goste quem goste. Contudo, nem mesmo<br />

por meu peso em prata queria <strong>de</strong>sagra<strong>da</strong>r-te.<br />

Rejeição mostrou-se dura e reticente na hora <strong>de</strong> me perdoar e <strong>de</strong> extirpar sua cólera, mas no fim me<br />

perdoou graças às minhas abun<strong>da</strong>ntes súplicas, e me disse com breves palavras:<br />

– Seu pedido não me incomo<strong>da</strong> e não <strong>de</strong>sejo te rejeitar: fica seguro <strong>de</strong> que não estou aborrecido contigo;<br />

se amas, o que me importa? Isso não me produz nem frio, nem calor. Continua amando, mas mantenha-se<br />

distante <strong>de</strong> minhas rosas a todo o momento, pois não terei nenhuma compaixão se tu atravessares a cerca.<br />

Assim, me conce<strong>de</strong>u o que havia pedido e eu fui imediatamente contar ao Amigo, que ao ouvir se<br />

alegrou como um bom companheiro.<br />

– Agora, disse-me, teu assunto será melhor. Rejeição se mostrará mais doce, pois assim costuma fazer<br />

com muitos, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter manifestado sua arrogância. Se a encontrares em um bom momento, ela se<br />

compa<strong>de</strong>cerá <strong>de</strong> vossas penas; enquanto isso, tem paciência e espera até o momento oportuno. Sei pela<br />

prática que com paciência se vence e se domina a qualquer malvado.<br />

Doce foi o consolo que me <strong>de</strong>u o Amigo, pois <strong>de</strong>sejava meus progressos tanto quanto eu mesmo. A<br />

seguir, separei-me <strong>de</strong>le e retornei à cerca protegi<strong>da</strong> pela Rejeição, pois já <strong>de</strong>morava a ver a rosa, única<br />

alegria que podia ter.<br />

A Rejeição comprovava incessantemente se eu mantinha a promessa; enquanto eu, que temia suas<br />

ameaças, não me atrevia a fazer na<strong>da</strong> que a incomo<strong>da</strong>sse e me esforçava para cumprir suas or<strong>de</strong>ns, alegrála<br />

e atraí-la para o meu lado. Porém, me contrariava muito sua <strong>de</strong>mora em me perdoar: viu-me muitas<br />

vezes chorar, lamentar e suspirar porque <strong>de</strong>ixava que eu me consumisse esperando junto à cerca, que eu<br />

não me atrevesse a passar para ir em busca <strong>da</strong> rosa, e se mantinha firme até que estivesse segura, por meu<br />

comportamento, <strong>de</strong> que Amor estava me tratando com dureza e <strong>de</strong> que não existia em mim o menor<br />

engano nem <strong>de</strong>sleal<strong>da</strong><strong>de</strong>. Mas ela era tão cruel, que ain<strong>da</strong> assim não se dignava em suavizar seu trato,<br />

apesar <strong>da</strong>s minhas queixas e lamentos.<br />

Enquanto me encontrava nestas penas, Deus me trouxe a Franqueza acompanha<strong>da</strong> pela Pie<strong>da</strong><strong>de</strong>.<br />

Sem mais <strong>de</strong>mora se dirigiram à Rejeição, pois as duas estavam dispostas a me aju<strong>da</strong>r com muito prazer,<br />

já que viam que era necessário.<br />

A primeira a tomar a palavra foi a Franqueza, e lhe dou graças por isso, que disse:<br />

– Rejeição, e que Deus me aju<strong>de</strong>, és injusta com este enamorado que estás maltratando. O que fazes é<br />

próprio dos vilões, pois, que eu saiba, ele ain<strong>da</strong> não pecou em na<strong>da</strong>. Se Amor o obriga a amar à força, é<br />

isso um motivo para que o critiques? Mais per<strong>de</strong> ele que ti, pois já suportou muitos sofrimentos. O Amor<br />

não consente que se arrepen<strong>da</strong>: ain<strong>da</strong> que isso lhe custe ser queimado vivo, untado com gordura, não<br />

po<strong>de</strong>ria impedir <strong>de</strong> se enamorar. Boa senhora, que proveito terás em lhe causar aborrecimentos e pesares?<br />

Haveis iniciado a guerra contra ele porque o teme, o aprecia e porque ele está sob teu po<strong>de</strong>r? Se o Amor o<br />

tem preso em seus laços e faz com que o obe<strong>de</strong>ça, por isso o o<strong>de</strong>ias? Deverias conce<strong>de</strong>r-lhe teu perdão<br />

como se fosse um orgulhoso insolente. É cortesia socorrer a quem está abaixo <strong>de</strong> nós; tem o coração duro<br />

aquele que não se ren<strong>de</strong> às súplicas.<br />

Pie<strong>da</strong><strong>de</strong> acrescentou:<br />

– É certo que a humani<strong>da</strong><strong>de</strong> vence a cólera e quando dura muito tempo, torna-se malva<strong>da</strong> e cruel. Por<br />

isso, rogo-te, Rejeição, para que <strong>de</strong>ponhas tua guerra com o infeliz que está ali se enfraquecendo por não<br />

ter sido seduzido em nenhum momento pelo Amor. Parece-me que o castigas mais que o <strong>de</strong>vido: ele está<br />

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suportando uma dura penitência <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que lhe privaste <strong>de</strong> Doce Abrigo, que era a companhia que ele<br />

mais <strong>de</strong>sejava. Antes, estava perturbado, mas agora sua perturbação se duplicou. Agora se dá por morto e<br />

se consi<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>sprotegido, pois lhe falta Doce Abrigo. Porque lhe causas tristeza, quando o Amor já o<br />

maltrata? Ele suporta tantos sofrimentos que não necessita <strong>de</strong> outros piores: não o faças pa<strong>de</strong>cer, por<br />

favor. Não continue maltratando-o, pois na<strong>da</strong> ganhas com isso. Permita que Doce Abrigo lhe ofereça<br />

alguma graça a partir <strong>de</strong> agora; misericórdia para o pecador. Já que a Franqueza está <strong>de</strong> acordo, rogo-te e<br />

peço-te para que não rejeites seu pedido: <strong>de</strong>masiado duro e cruel é quem se nega a fazer algo por nós duas.<br />

Rejeição não pô<strong>de</strong> resistir por mais tempo e teve que ce<strong>de</strong>r:<br />

– Senhoras – disse – não me atrevo a me opor a vós neste assunto, pois seria vilania. Aceito que tenhais a<br />

companhia <strong>de</strong> Doce Abrigo, já que assim o <strong>de</strong>sejais, não me oporei.<br />

Então, Franqueza, a do bem falar, foi a Doce Abrigo e lhe disse com cortesia:<br />

– Doce Abrigo, por muito tempo te mantiveste afastado <strong>de</strong>ste amante, sem se dignar sequer a olhá-lo.<br />

Des<strong>de</strong> quando não o visitas, está pensativo e triste. Procura alegrá-lo e cumprir sua vonta<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong><br />

agora, se queres gozar do meu amor. Eu e Pie<strong>da</strong><strong>de</strong> convencemos Rejeição, que os mantinha afastado.<br />

– Farei o que queres – contestou – pois é legítimo, já que Rejeição conce<strong>de</strong>u.<br />

Então, Franqueza o enviou para ficar a meu lado. A princípio, Doce Abrigo me saudou com<br />

afabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e, mostrando-me o melhor semblante até então, pegou-me pela mão para acompanhá-lo para<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>da</strong> cerca que Rejeição tinha proibido.<br />

Desse modo, me senti com permissão para an<strong>da</strong>r por to<strong>da</strong>s as partes. Parecia que tinha passado do<br />

gran<strong>de</strong> Inferno ao Paraíso, pois Doce Abrigo me levava <strong>de</strong> um lado para outro, esforçando-se para<br />

cumprir meus <strong>de</strong>sejos.<br />

Então, quando vi a rosa, tive a impressão <strong>de</strong> que havia engor<strong>da</strong>do e crescido um pouco, e agra<strong>da</strong>vame<br />

ver que não se havia aberto tanto e <strong>de</strong>scoberto seu coração cor grená, pelo contrário, ele se mantinha<br />

ain<strong>da</strong> fechado entre as abun<strong>da</strong>ntes pétalas <strong>da</strong> flor que se erguiam ao seu redor, impedindo que se visse seu<br />

interior. Deus a abençoe! Para minha gran<strong>de</strong> admiração, aberta assim, era muito mais formosa e vermelha<br />

que antes. O Amor me atou enquanto contemplava como havia se embelezado, e apertou suas amarras<br />

quanto mais me <strong>de</strong>leitava nessa visão.<br />

Estive muito tempo naquele lugar, pois havia encontrado afeto e companheirismo em Doce Abrigo.<br />

Quando já estava certo que ele não me negaria nem seu consolo, nem seu serviço, lhe pedi uma coisa que<br />

<strong>de</strong>ve ser relembra<strong>da</strong>:<br />

– Senhor – eu disse – tu sabes que tenho gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> obter um precioso beijo <strong>da</strong> rosa que cheira tão<br />

suavemente; se não o <strong>de</strong>sagra<strong>da</strong>r, pedir-lhe-ia que me concedêsseis isso como um dom. Senhor, por Deus,<br />

diz-me se parece correto que eu a beije, pois não o farei se não lhe aprouver.<br />

– Amigo – e que Deus me aju<strong>de</strong> – se a Casti<strong>da</strong><strong>de</strong> não me odiasse por isso, eu não o impediria. Porém,<br />

não me atrevo a conseguir esse dom, pois não quero cometer nenhuma falta contra a Casti<strong>da</strong><strong>de</strong>. Ela<br />

sempre me proibiu <strong>de</strong> <strong>da</strong>r permissão aos enamorados para se beijarem, por mais que suplicassem, pois<br />

quem consegue um beijo dificilmente se conforma, sempre <strong>de</strong>seja mais. Saibas que aquele a quem se<br />

conce<strong>de</strong> um beijo, obtém o melhor e o mais agradável do botim, <strong>de</strong>ixando seu sinal para o resto.<br />

Quando ouvi sua resposta não quis insistir mais, pois temia que se aborrecesse. Não se <strong>de</strong>ve<br />

encurralar <strong>de</strong>mais ninguém, nem fustigar além <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>. Já sabeis que não se corta o carvalho ao<br />

primeiro golpe, não se obtém o vinho do lagar enquanto a prensa aperta. Contudo, <strong>de</strong>morava muito a<br />

permissão para <strong>da</strong>r o beijo que eu tanto <strong>de</strong>sejava. Vênus, que mantém incessante guerra contra a<br />

Casti<strong>da</strong><strong>de</strong>, veio ao meu socorro. Ela é a mãe do Deus do Amor, quem auxilia a muitos enamorados. Em<br />

sua mão direita, trazia uma tocha ar<strong>de</strong>nte, cujo fogo tem incendiado numerosas <strong>da</strong>mas. Era tão bela e<br />

elegante que parecia uma <strong>de</strong>usa ou fa<strong>da</strong>. Pelos ricos adornos que trazia, um simples olhar possibilitaria ver<br />

que ela não vivia como uma monja. Não vou <strong>de</strong>screver agora o seu vestido, nem seu véu, nem suas tranças<br />

doura<strong>da</strong>s, nem o broche ou a cinta, pois passaria muito tempo nisso. Basta que saibas que ela era muito<br />

elegante e que não <strong>de</strong>monstrava o menor orgulho.<br />

Vênus se dirigiu até Doce Abrigo e começou a dizer-lhe:<br />

– Bom senhor, porque colocas tantas dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s para que este enamorado obtenha um doce beijo? Não<br />

<strong>de</strong>veria impedi-lo, pois bem sabes que ele serve e ama com leal<strong>da</strong><strong>de</strong>, e que é suficientemente belo para ser<br />

amado. Vê como é elegante, vê sua formosura e contempla como é gentil, doce e sincero com to<strong>da</strong>s as<br />

gentes. Além disso, não é velho, mas muito jovem, o que é mais apreciável. Não há <strong>da</strong>ma ou senhora <strong>de</strong><br />

27


castelo que eu não teria por vilã se lhe colocasse dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Não há na<strong>da</strong> em seu corpo que <strong>de</strong>va mu<strong>da</strong>r.<br />

Se conseguires para ele esse beijo, estará bem empregado, pois a mim parece ter hálito doce. A<strong>de</strong>mais, sua<br />

boca não é feia, pelo contrário, dá a impressão <strong>de</strong> que foi feita justamente para agra<strong>da</strong>r e provar, pois seus<br />

lábios são vermelhos e seus <strong>de</strong>ntes são tão brancos e limpos que não se vê neles nem limo, nem sujeira.<br />

Creio que é justo que lhe conce<strong>da</strong>s um beijo.<br />

– Consegue, dá-me atenção, pois quanto mais espero, mais tempo perco, tem certeza.<br />

Sem mais <strong>de</strong>mora, Doce Abrigo, que sentiu o sopro abrasador <strong>da</strong> tocha, conce<strong>de</strong>u-me um beijo<br />

como dom. Isso foi o que conseguiram Vênus e sua tocha. Assim, não me <strong>de</strong>tive e rapi<strong>da</strong>mente tomei <strong>da</strong><br />

rosa um beijo doce e saboroso. Que ninguém pergunte se me alegrei, pois entrou em meu corpo um<br />

aroma que conseguiu expulsar minhas dores e adoçar os sofrimentos que o Amor me causava e que<br />

costumavam ser amargos. Nunca estive tão à vonta<strong>de</strong>: cura-se bem quem beija uma flor semelhante, tão<br />

agradável e perfuma<strong>da</strong>. Por mais dores que sofra, to<strong>da</strong> vez que a relembrar, voltarei a transbor<strong>da</strong>r <strong>de</strong><br />

alegria e <strong>de</strong> gozo. E, no entanto, tenho pa<strong>de</strong>cido muitos aborrecimentos e muitas más noites <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> têla<br />

beijado. O mar nunca está tão calmo que não se altere com um pouco <strong>de</strong> vento, pois o Amor mu<strong>da</strong> com<br />

facili<strong>da</strong><strong>de</strong>: é o mesmo que acaricia e que espeta, pois nunca se mantém fixo em um ponto.<br />

Agora vou lhes contar como tive que enfrentar a Vergonha, que me atormentou com gran<strong>de</strong><br />

cruel<strong>da</strong><strong>de</strong>; e contar-vos-ei como construíram fortes e resistentes a muralha e a torre que o Amor <strong>de</strong>pois<br />

tomou com esforço. Quero continuar com to<strong>da</strong> a história e não sinto preguiça em escrevê-la, porque<br />

penso que servirá <strong>de</strong> elogio à formosa – que Deus a proteja – que, quando quiser, me conce<strong>de</strong>rá o<br />

galardão melhor que ninguém.<br />

Má Língua, aquela que pensa e advinha o que ocorre no coração <strong>de</strong> muitos enamorados e difun<strong>de</strong><br />

todo o mal que sabe, se <strong>de</strong>u conta do afeto que Doce Abrigo me tinha. Como não podia se calar, pois era<br />

filha <strong>de</strong> uma velha malva<strong>da</strong> – com quem se parecia – <strong>de</strong> boca fedorenta e língua afia<strong>da</strong> e amarga, começou<br />

a acusar-me e a dizer que tinha certeza que entre Doce Abrigo e eu havia maus acordos. A odiosa disse<br />

tantas loucuras <strong>de</strong> mim e do filho <strong>da</strong> Cortesia que, por fim, conseguiu que o Ciúme <strong>de</strong>spertasse. Fazendo<br />

um gran<strong>de</strong> barulho, esse se levantou ao ouvir tão perversas palavras. Logo <strong>de</strong>pois, correu enlouquecido até<br />

Doce Abrigo, pois estava cheio <strong>de</strong> cólera, e começou a atacá-lo, dizendo:<br />

– Inútil, porque te faltas o bom sentido a ponto <strong>de</strong> ficar bem com um jovem do qual tenho más suspeitas?<br />

Vejo que facilmente acreditas nas adulações <strong>de</strong> qualquer moço. Não posso continuar confiando em ti; farei<br />

com que te pren<strong>da</strong>m ou te tranquem em uma torre, pois não vejo outra solução. A Vergonha se afastou<br />

<strong>de</strong>mais <strong>de</strong> ti sem se esforçar em te vigiar e te ter preso por perto; parece que presta má aju<strong>da</strong> à Casti<strong>da</strong><strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ixando que um jovenzinho <strong>de</strong>senfreado entre em nosso reino para afrontar-nos, a ela e a mim.<br />

Doce Abrigo não soube o que contestar e teria se escondido se o Ciúme não o tivesse encontrado<br />

ali, comigo, em plena ação. Quando vi que aquela odiosa pessoa vinha disposta a discutir e repreen<strong>de</strong>r,<br />

fugi, pois não gosto <strong>de</strong> discussões.<br />

A Vergonha avançou um pouco, temendo ter cometido alguma falta. Mostrou-se humil<strong>de</strong> e simples:<br />

trazia um véu ao invés <strong>de</strong> uma touca, como se fosse uma monja <strong>de</strong> uma abadia. Como estava assusta<strong>da</strong>,<br />

começou a falar em voz baixa:<br />

– Por Deus, não acredites na maldizente Má Língua, pois é uma mulher que mente com facili<strong>da</strong><strong>de</strong>; assim<br />

enganou a numerosos homens. Ela agora acusou Doce Abrigo, mas ele não é sua primeira vítima, pois<br />

Má Língua está acostuma<strong>da</strong> a contar falsas notícias <strong>de</strong> jovens e <strong>de</strong> donzelas. Sem dúvi<strong>da</strong>, e isso não é<br />

mentira, Doce Abrigo tem uma correia muito larga e foi-lhe permitido trazer aqui gentes alheias. Mas<br />

certamente não creio que tenha feito isso com má intenção ou como se fosse loucura. A ver<strong>da</strong><strong>de</strong> é que<br />

Cortesia, que é sua mãe, lhe ensina a conhecer sem medo diferentes gentes, pois ela mesma nunca amou<br />

pessoas fecha<strong>da</strong>s.<br />

– Doce Abrigo não tem outro <strong>de</strong>feito nem outra falta a não ser a sua joviali<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois se diverte e fala<br />

com as gentes. Sem dúvi<strong>da</strong> tem sido muito con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte na hora <strong>de</strong> custodiá-lo e <strong>de</strong> <strong>da</strong>r-lhe conselhos.<br />

Por isso te peço perdão; sinto se tenho sido muito lenta em obrigá-lo a fazer o bem; arrependo-me <strong>de</strong> meu<br />

erro e, a partir <strong>de</strong> agora, me esforçarei para cui<strong>da</strong>r <strong>de</strong> Doce Abrigo, não vou <strong>de</strong>ixar isso para <strong>de</strong>pois.<br />

– Vergonha, Vergonha – disse o Ciúme – temo que me atraiçoes, pois Desenfreio tem visto como<br />

aumentou seu po<strong>de</strong>r e assim logo po<strong>de</strong>rá me envergonhar.<br />

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– Meus temores não <strong>de</strong>vem surpreen<strong>de</strong>r, pois a Luxúria reina por to<strong>da</strong>s as partes e a sua influência não<br />

pára <strong>de</strong> crescer; a Casti<strong>da</strong><strong>de</strong> não se encontra a salvo nem nas abadias, nem nos claustros. Por isso, vou<br />

fazer com que estes roseirais e estas rosas fiquem escondi<strong>da</strong>s <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma nova muralha; não vou <strong>de</strong>ixálas<br />

<strong>de</strong>sprotegi<strong>da</strong>s, pois não confio mais em vossa vigilância, já que pu<strong>de</strong> ver e sei que mesmo com uma<br />

melhor custódia as coisas se per<strong>de</strong>m; antes que o ano termine me terão por estúpido se eu não tomar essas<br />

precauções. É importante que me preocupe. Vou fechar o caminho àqueles que vierem espiar minhas<br />

rosas para me afrontar. Não terei preguiça em construir uma fortificação que ro<strong>de</strong>ie os roseirais. No meio,<br />

levantarei uma torre on<strong>de</strong> Doce Abrigo ficará prisioneiro, pois temo seus erros. Vou vigiá-lo tão bem que<br />

ele não po<strong>de</strong>rá sair para buscar a companhia <strong>de</strong>sses jovenzinhos que, para causar-me todo tipo <strong>de</strong> afrontas,<br />

lhe dirigem palavras aduladoras. Esses maliciosos viram que era muito fácil enganar. Se viver, quero estar<br />

seguro que em má hora os recebi com boa cara.<br />

Ao dizer tais palavras, o Medo se aproximou com muito temor; porém estava tão assustado com o<br />

que disse Ciúme que não se atreveu a pronunciar uma só palavra, pois sabia que ele estava encolerizado.<br />

Colocou-se <strong>de</strong> pé e se retirou lentamente; enquanto isso, Ciúme foi embora, <strong>de</strong>ixando a sós a Vergonha e<br />

o Medo, que tremiam até o cú. Medo, cabisbaixo disse à sua prima:<br />

– Vergonha, me pesa ouvir uma reprimen<strong>da</strong> por algo que não po<strong>de</strong>mos solucionar. Muitas vezes passam<br />

abril e maio sem que tenhamos reprovado na<strong>da</strong>. No entanto, Ciúme, que <strong>de</strong>sconfia agora <strong>de</strong> nós, nos<br />

<strong>de</strong>spreza e nos insulta. Vamos em busca <strong>de</strong> Rejeição para lhe explicarmos tudo e lhe dizermos que<br />

cometeu uma falta grave por não ter se aplicado com mais esmero na perfeita vigilância <strong>de</strong>ste lugar; e por<br />

ter permitido que Doce Abrigo fizesse sua vonta<strong>de</strong> sem nenhum tipo <strong>de</strong> impedimento. Por isso, terá que<br />

corrigir-se ou se verá obriga<strong>da</strong> a abandonar esta terra, pois não po<strong>de</strong>ria resistir à guerra <strong>de</strong> Ciúme, nem à<br />

sua fúria, se chega a ter-lhe ódio.<br />

A Vergonha e o Medo então <strong>de</strong>cidiram assim: foram em busca <strong>de</strong> Rejeição e a encontraram<br />

<strong>de</strong>ita<strong>da</strong> sob uma acácia branca. Como almofa<strong>da</strong>, tinha embaixo <strong>da</strong> cabeça um monte <strong>de</strong> erva e já começava<br />

a dormir. Vergonha a <strong>de</strong>spertou, dizendo-lhe insultos e ataques:<br />

– Com estás dormindo a essa hora, <strong>de</strong>sgraça<strong>da</strong>? Louco está quem acredita que irás guar<strong>da</strong>r as rosas e seus<br />

brotos melhor do que se fossem rabos <strong>de</strong> cor<strong>de</strong>iro. És folga<strong>da</strong> e covar<strong>de</strong>, quando <strong>de</strong>veria ser feroz e capaz<br />

<strong>de</strong> maltratar todo mundo. Loucura fez com que conce<strong>de</strong>sses permissão a Doce Abrigo para colocar aqui<br />

o homem que nos tem afrontado. E estás dormindo enquanto nós temos que suportar censuras até não<br />

po<strong>de</strong>rmos mais! Estavas <strong>de</strong>itado há pouco? Levanta <strong>de</strong> imediato e tapa todos os buracos <strong>da</strong> cerca; não<br />

tenhas compaixão, pois não cai bem para o teu nome tudo o que não se refere às moléstias; <strong>de</strong>ixai para<br />

Doce Abrigo a amabili<strong>da</strong><strong>de</strong> e a doçura e ficai com a felonia e a dureza, com os insultos e os ultrajes.<br />

Desatina o vilão que se comporta com cortesia; pelo menos tenho ouvido dizer isso em um refrão, e <strong>de</strong><br />

nenhuma maneira se po<strong>de</strong> converter um falcão <strong>de</strong> caça em um gavião. Quando são amáveis, são<br />

consi<strong>de</strong>rados estúpidos. Assim, queres continuar agra<strong>da</strong>ndo às gentes com tua bon<strong>da</strong><strong>de</strong> e teus bons<br />

serviços? Isso se <strong>de</strong>ve à tua preguiça. Desse modo ganharás em to<strong>da</strong>s as partes a fama <strong>de</strong> covar<strong>de</strong>, <strong>de</strong> débil<br />

e <strong>de</strong> que acreditas nos mentirosos.<br />

A seguir, o Medo tomou a palavra:<br />

– Certamente, Rejeição, me estranha que não te mantenhas bem <strong>de</strong>sperto para guar<strong>da</strong>r o que <strong>de</strong>ves. Logo<br />

serás reprovado se a cólera do Ciúme aumentar, pois ele costuma ser feroz, cruel e sempre disposto a<br />

repreen<strong>de</strong>r as gentes. Hoje ele se ocupou <strong>da</strong> Vergonha e, com suas ameaças, conseguiu que Doce Abrigo<br />

fosse expulso do lugar e jurou que não tar<strong>da</strong>rá em fazer que o empare<strong>de</strong>m vivo. Tudo isso aconteceu por<br />

causa <strong>de</strong> tua mal<strong>da</strong><strong>de</strong>, pois em vós não falta disposição para criar dificul<strong>da</strong><strong>de</strong>s. Penso que te tem faltado<br />

valor, e isso aconteceu em má hora, pois recebereis afrontas e <strong>de</strong>sonras, se conheço bem o Ciúme.<br />

O vilão retirou seu capuz, esfregou os olhos, se espreguiçou, torceu o nariz, piscou os olhos, se<br />

encheu <strong>de</strong> cólera e se aborreceu ao ouvir as ameaças:<br />

– Com motivo me encho <strong>de</strong> ira, pois me consi<strong>de</strong>rais vencido. Já vivi em <strong>de</strong>masia se não sou mais capaz <strong>de</strong><br />

vigiar o jardim! Que me queime vivo se alguém voltar a entrar aqui! Tenho meu coração no peito repleto<br />

<strong>de</strong> cólera, porque houve quem pusesse seus pés aqui; preferiria ver-me atravessado por duas lanças. Agora<br />

me dou conta <strong>de</strong> que certamente me comportei como um louco. Estou disposto a reparar isso com a<br />

vossa aju<strong>da</strong>. Não voltarei a mostrar-me preguiçoso na hora <strong>de</strong> tomar conta <strong>de</strong>ssa cerca; se pegar alguém<br />

aqui <strong>de</strong>ntro, é melhor que ele esteja em Pavia. Nunca mais, para o resto <strong>de</strong> minha vi<strong>da</strong>, pensarão que sou<br />

preguiçoso; isso vos juro e prometo.<br />

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A seguir, Rejeição se pôs <strong>de</strong> pé. Parecia estar enfa<strong>da</strong><strong>da</strong>; pegou um pe<strong>da</strong>ço <strong>de</strong> pau e foi procurar os<br />

buracos na cerca, os caminhos ou as fen<strong>da</strong>s que <strong>de</strong>via tapar. Foi a partir <strong>de</strong> então que a situação mudou,<br />

pois Rejeição ficou pior e mais cruel do que antes. Senti-me morto por tê-la encolerizado <strong>de</strong>ssa maneira,<br />

pois nunca mais voltarei a ter a tranqüili<strong>da</strong><strong>de</strong> para contemplar o que quero. Triste está o coração em meu<br />

peito pela <strong>de</strong>sgraça <strong>de</strong> Doce Abrigo; todos os meus membros se estremecem ao lembrar <strong>da</strong> rosa que <strong>de</strong><br />

perto contemplava quando queria. E quando me lembro do beijo que inundou meu corpo com um<br />

perfume mais doce que o bálsamo, sinto que falta pouco para <strong>de</strong>sfalecer, pois ain<strong>da</strong> mantenho trancado no<br />

coração o doce sabor <strong>da</strong> rosa. Sabei que quando me vem à mente a idéia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>vo renunciar à rosa,<br />

tenho vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> morrer, <strong>de</strong> não continuar vivendo. Parece-me que em má hora toquei a rosa com meu<br />

rosto, com meus olhos e com a minha boca, se o Amor não me permitir logo voltar a tocá-la outra vez;<br />

provei seu aroma e, por isso, é maior o <strong>de</strong>sejo que incen<strong>de</strong>ia e queima meu coração. Agora voltarão os<br />

prantos e os suspiros, os longos pensamentos em vigília, os tremores, as queixas e as lamentações; terei<br />

muitos males e <strong>de</strong> todos os tipos, pois caí em um inferno. Maldita seja a Má Língua! Sua língua <strong>de</strong>sleal e<br />

falsa é a causa <strong>de</strong> minha situação.<br />

Já é hora <strong>de</strong> contar o que fez o Ciúme, impulsionado por suas suspeitas. Em to<strong>da</strong> aquela terra não<br />

restou um construtor ou peão que não fosse convocado. Assim, ele or<strong>de</strong>nou que começassem a construir<br />

fossas ao redor dos roseirais; custaram muito dinheiro, pois eram largas e profun<strong>da</strong>s. Os construtores<br />

levantaram junto às fossas uma muralha com blocos bem cortados, cimenta<strong>da</strong> não sobre escombros, mas<br />

sobre uma rocha dura. A base se inclinava <strong>de</strong> forma a<strong>de</strong>qua<strong>da</strong> até o pé <strong>da</strong>s fossas e <strong>de</strong>pois crescia reta,<br />

para cima, <strong>de</strong> modo que a obra era muito mais resistente. A muralha estava tão bem traça<strong>da</strong> que formava<br />

um quadrado perfeito; ca<strong>da</strong> um <strong>de</strong> seus lados media cem toesas 78 e o conjunto era igual tanto na largura<br />

quanto na profundi<strong>da</strong><strong>de</strong>. Os torreões estavam uns ao lado dos outros, com numerosas ameias, e estavam<br />

cheios <strong>de</strong> blocos talhados <strong>de</strong> pedra. Nos quatro cantos havia outros torreões difíceis <strong>de</strong> tomar. Havia ain<strong>da</strong><br />

quatro portas protegi<strong>da</strong>s por muros largos e altos; uma estava na facha<strong>da</strong> e era fácil <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, duas dos<br />

lados e outra na parte traseira. Nenhuma <strong>de</strong>ssas temeria os possíveis golpes <strong>de</strong> uma catapulta. Tinham<br />

ancinho para causar mais <strong>da</strong>nos aos <strong>de</strong> fora, para prendê-los e <strong>de</strong>tê-los caso se atrevessem a avançar.<br />

No meio do recinto, os que souberam fazê-lo construíram uma torre com maestria; seria impossível<br />

uma mais formosa, maior, mais profun<strong>da</strong> ou mais alta. Seus muros não ce<strong>de</strong>riam diante <strong>de</strong> nenhum tipo<br />

<strong>de</strong> engenho que lançasse pedras, pois mesclaram suas bases com vinagre forte e cal viva. A pedra <strong>da</strong><br />

cimentação era uma rocha maciça tão dura como o diamante. A torre era completamente redon<strong>da</strong>; não<br />

havia existido no mundo outra mais rica nem melhor dividi<strong>da</strong> por <strong>de</strong>ntro. Por fora, estava ro<strong>de</strong>a<strong>da</strong> por<br />

uma vala, <strong>de</strong> forma que entre a vala e a torre estavam planta<strong>da</strong>s os abun<strong>da</strong>ntes roseirais com suas<br />

numerosas rosas.<br />

No castelo havia catapultas e outros tipos <strong>de</strong> engenhos e máquinas <strong>de</strong> guerra. Viam-se os<br />

manganéis 79 por cima <strong>da</strong>s ameias; nas fen<strong>da</strong>s dos muros havia incontáveis balestras fixas as quais não havia<br />

armadura que pu<strong>de</strong>sse resistir. Aquele que se aproximasse <strong>da</strong> muralha cometeria uma gran<strong>de</strong> estupi<strong>de</strong>z.<br />

Além dos fossos, havia barreiras construí<strong>da</strong>s com fortes muros e ameias baixas, <strong>de</strong> modo que os<br />

cavalos não podiam se aproximar a galope até os fossos sem que antes acontecesse um combate.<br />

O Ciúme colocou uma guarnição nesse castelo do qual estou falando. Parece-me que Rejeição<br />

tinha a chave <strong>da</strong> primeira porta, que se abria na parte oriental. Com ele havia – conforme creio – pelo<br />

menos trinta servidores. A Vergonha guar<strong>da</strong>va a porta do Meio-Dia; era pru<strong>de</strong>nte e tinha numerosos<br />

criados dispostos a cumprir suas vonta<strong>de</strong>s. O Medo mandou um gran<strong>de</strong> exército e estava encarregado <strong>de</strong><br />

vigiar a outra porta, que ficava à esquer<strong>da</strong>, pelo lado do vento norte. O Medo não se encontraria seguro se<br />

a porta não estivesse fecha<strong>da</strong> com chave; ele não a abria muito, pois se assustava quando soprava um<br />

pouco <strong>de</strong> vento ou quando saltavam um par <strong>de</strong> grilos.<br />

A Má Língua – que Deus a maldiga! – tinha mercenários <strong>da</strong> Normandia. Ela custodiava a porta<br />

traseira e não parava <strong>de</strong> ir e vir às outras três. Ao interar-se <strong>de</strong> que tinha que fazer a guar<strong>da</strong> noturna, ao<br />

entar<strong>de</strong>cer ela subiu as ameias para afinar as trombetas, as trompas e os chifres; algumas vezes entoava<br />

78 Ver nota 60.<br />

79 Manganéis (Manganel ou Mangonel) – Também conhecido como Almanjanech (do latim medieval manganellum,<br />

diminutivo <strong>de</strong> manganum. Os árabes <strong>de</strong>vem ter adotado o nome latino, convertendo-o para almanzaník, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> proveio a<br />

forma catalã almanjanech). Máquina <strong>de</strong> guerra semelhante a uma catapulta, porém reforça<strong>da</strong> com cor<strong>da</strong>s trança<strong>da</strong>s, e que<br />

lançava gran<strong>de</strong>s pedras, tinha um contrapeso fixo e uma vara inclina<strong>da</strong> em repouso.<br />

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canções, <strong>de</strong>scorts e composições novas <strong>da</strong> mo<strong>da</strong>, imitando as gaitas <strong>da</strong> Cornualha; outras vezes –<br />

acompanhando-se com a flauta – disse que nunca encontrou uma mulher honesta: “não há nenhuma que<br />

não ria ao ouvir falar <strong>de</strong> excessos: esta é uma puta, a outra se maquia, aquela olha luxuriosamente; uma é<br />

vilã, outra é louca e outra fala <strong>de</strong>mais”.<br />

Má Língua não perdoa a ninguém, pois encontra algum <strong>de</strong>feito em to<strong>da</strong>s.<br />

Entretanto, o Ciúme – que Deus o confun<strong>da</strong>! – protegia a torre redon<strong>da</strong> e nela colocava seus<br />

amigos mais íntimos, até formar uma guarnição numerosa.<br />

Doce Abrigo estava trancado, prisioneiro no alto <strong>da</strong> torre, cuja porta estava tão bem tranca<strong>da</strong> que<br />

ele não po<strong>de</strong>ria sair. Uma velha – que Deus a humilhe! – estava com ele, vigiando-o e não fazendo outra<br />

coisa além <strong>de</strong> espiar para que ele não se comportasse <strong>de</strong> forma louca. Ninguém po<strong>de</strong>ria enganá-la fazendo<br />

sinais ou piscando os olhos, pois não havia artimanha que ela não conhecesse, já que em sua juventu<strong>de</strong><br />

teve a parte que lhe correspondia dos bens e dos pesares que o Amor divi<strong>de</strong> entre suas gentes.<br />

Doce Abrigo permanecia em silêncio e atento, temendo a velha, e não se atrevia a mover-se, pois ela<br />

po<strong>de</strong>ria pensar que se tratava <strong>de</strong> uma conduta louca, já que conhecia bem a antiga <strong>da</strong>nça.<br />

Enquanto isso, o Ciúme se apo<strong>de</strong>rou <strong>de</strong> Doce Abrigo e o pren<strong>de</strong>u, ficando assim mais seguro. O<br />

castelo o tranqüilizou, já que lhe parecia bem forte e não o preocupava mais a i<strong>da</strong> <strong>de</strong> preguiçosos que<br />

queriam roubar rosas ou botões; os roseirais estavam bem protegidos e ele se sentia tranqüilo quando<br />

dormia ou quando velava.<br />

De minha parte, eu, que estava fora <strong>da</strong> muralha, havia me entregue ao pranto e à tristeza; qualquer<br />

um que se inteirasse <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> que eu levava se compa<strong>de</strong>ceria. O Amor ven<strong>de</strong>u caro os bens que havia me<br />

emprestado. Eu pensava tê-los comprado, mas ele voltou a vendê-los para mim e, pela alegria que eu<br />

perdi, minha dor era maior do que se nunca a tivesse alcançado. Que mais posso contar-vos? Parecia-me<br />

com o camponês que jogava a semente no campo e sentia uma gran<strong>de</strong> alegria quando ela começava a<br />

crescer como uma erva forte e formosa, mas <strong>de</strong>pois, antes <strong>de</strong> colher um feixe, uma má nuvem que surgia<br />

quando as espigas <strong>de</strong>veriam florescer, fazia per<strong>de</strong>r tudo e o frustrava, matando o grão e acabando com as<br />

esperanças que o camponês tinha.<br />

Da mesma forma, temia ter perdido minhas ilusões e esperanças; o Amor havia me colocado em um<br />

lugar tão alto que eu havia começado a contar meus segredos a Doce Abrigo, que estava disposto a aceitar<br />

meus jogos. Mas o Amor é tão caprichoso que me privou <strong>de</strong> tudo em um momento, quando eu pensava<br />

ter triunfado.<br />

O mesmo ocorre com a Fortuna, pois ela enche o coração <strong>da</strong>s gentes <strong>de</strong> amargura e logo <strong>de</strong>pois os<br />

acaricia e afaga; rapi<strong>da</strong>mente mu<strong>da</strong> seu aspecto: ora ri, ora está triste. Ela tem uma ro<strong>da</strong> que gira e, quando<br />

assim o <strong>de</strong>seja, coloca acima, na parte mais alta, aquele que estava embaixo e, com uma volta, faz com que<br />

caia no barro aquele que estava acima na ro<strong>da</strong>. E eu fui <strong>de</strong>rrubado! Em má hora vi os muros e as fossas<br />

que não me atrevia passar – e nem po<strong>de</strong>ria fazê-lo. Não tive nenhuma alegria <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que Doce Abrigo foi<br />

encarcerado, pois todo o meu gozo e to<strong>da</strong> a minha cura <strong>de</strong>scansavam nele e na rosa que se encontrava<br />

presa entre os muros; seria necessário que ela saísse <strong>da</strong> torre se o Amor quisesse que eu fosse curado, pois<br />

<strong>de</strong> nenhum outro <strong>de</strong>sejo receberia honra, bem, saú<strong>de</strong> e alegria.<br />

– Ai, Doce Abrigo, meu doce amigo! Ain<strong>da</strong> que estejas prisioneiro, ao menos faz com que teu coração<br />

continue sendo-me favorável e não permitas por na<strong>da</strong> <strong>de</strong>sse mundo que o selvagem Ciúme faça <strong>de</strong> ti seu<br />

servidor, como tem feito com teu corpo; se ele o castiga por fora, tem por <strong>de</strong>ntro um coração <strong>de</strong> diamante<br />

para fazer frente a seus tormentos. Se o corpo cai prisioneiro, ao menos procura que teu coração me ame,<br />

já que o coração nobre não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> amar, mesmo que receba golpes ou seja <strong>de</strong>sprezado.<br />

Se o Ciúme se mostra duro contigo, causando-te aflições e moléstias, enfa<strong>da</strong>-te com ele; <strong>da</strong>s penas<br />

que te causa, vinga-te pensando, já que não po<strong>de</strong>s fazer outra coisa. Se obrares assim, estarei satisfeito.<br />

Porém, me preocupa que não faças <strong>de</strong>ssa maneira, pois talvez estejas aborrecido comigo, pois te<br />

encarceraram por minha culpa. Contudo, não foi por uma falta que eu tenha cometido contra ti, pois não<br />

te contei na<strong>da</strong> que tivesse que manter em silêncio. Assim, que Deus me aju<strong>de</strong>, pois tua <strong>de</strong>sgraça me pesa<br />

mais que a ti mesmo, já que estou sofrendo uma penitência maior que tudo. Pouco falta para eu me<br />

<strong>de</strong>smanchar <strong>de</strong> tristeza quando recordo minha gran<strong>de</strong> e evi<strong>de</strong>nte per<strong>da</strong>. Sinto tanto medo e estou tão<br />

incomo<strong>da</strong>do que penso que isso me causará a morte. Não <strong>de</strong>vo estar assustado em saber que os invejosos,<br />

os traidores e os falsos estão <strong>de</strong>sejando me prejudicar?<br />

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– Ah, Doce Abrigo, bem sei que querem nos enganar – e talvez já tenham conseguido. Não sei como<br />

estão as coisas, mas estou muito aflito, pois temo que tenhas se esquecido <strong>de</strong> mim e isso me causa dor e<br />

tristeza. Não há na<strong>da</strong> que possa me consolar se per<strong>de</strong>r teu afeto, pois em ninguém mais confio.<br />

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