No Compasso da História - MultiRio
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conjunto da obra, considerada por muitos críticos a primeira produção artística brasileira autêntica. Uma arte afro-brasileira, mestiça. 7 . Cristo no Passo do Horto, escultura em madeira, da série Passos da Paixão, de Aleijadinho Percebemos, então, que a arte negra, em seus primeiros momentos, andou abrigada em sua religião. O sincretismo religioso com o catolicismo foi uma estratégia absolutamente vitoriosa para o escravo defender sua identidade em ambiente hostil. Dessa forma, ele podia manter sua prática religiosa, apesar da repressão ideológica e política. Para o antropólogo Kabengele Munanga, os escravos “encontraram no Brasil condições ecológicas semelhantes às do ecossistema de suas origens, oferecendo, entre outras coisas, as mesmas essências vegetais. O que teria facilitado a continuidade de uma religião cuja relação entre o homem, a sociedade e a natureza é primordial”. E, ao aproximar suas entidades da mitologia católica, abriram uma vereda por onde escapou ao controle dos senhores o mundo mágico e rítmico da cultura afro-brasileira. Dentro dessa estratégia, a conversão ao catolicismo era apenas formal. Não houve uma forma, um modelo único dentro desse processo. Algumas religiões mantiveram, e ainda mantêm, quase que totalmente suas raízes africanas, como o candomblé e o xangô do Nordeste. Outras se formaram através do sincretismo, que é o caso da umbanda. Mas a própria prática do catolicismo tradicional foi influenciada por essa matriz africana, conforme se vê no culto de santos com origem africana, como São Benedito e Santa Ifigênia. Ou na veneração a santos associados aos orixás africanos, como é o caso de São Cosme e Damião (Ibejis), São Jorge (Ogum) e Santa Bárbara (Iansã). Ou até mesmo na criação de novos santos populares – como a Escrava Anastácia. Incluem-se aí, também, as festas religiosas, como a lavagem das escadarias da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim pelas filhas de santo do candomblé. 8 . Lavagem do Bonfim, acrílica sobre tela de Aécio de Andrade É importante fazer uma menção a Exu, o orixá da comunicação e do movimento. Os primeiros missionários católicos na África o confundiram com Satanás, já que suas características incluem a sensualidade, a irreverência e a fertilidade. O que é um absurdo dentro da estrutura teológica iorubá, já que não está em oposição a Deus (Oxalá) e muito menos personifica o mal. Como destacou o sambista e estudioso Nei Lopes, na passagem para o Novo Mundo, “o Exu-Elegbara se transmutou em diversas entidades, as quais, mais próximas ao conceito cristão de demônio, agrupando-se em legiões ou falanges”. Ao que se podem acrescentar as palavras do pesquisador Pierre Verger, “nem Raízes africanas – Capoeira, mungunzá e valentia 31
Raízes africanas – Capoeira, mungunzá e valentia 32 totalmente bom, nem totalmente mau...”, com suas porções positiva e negativa, como qualquer ser humano. Como regra, pode-se dizer que no sincretismo não há formatos predeterminados, mas superposição, entrelaçamento e mestiçagem segundo impulsos sociais e psíquicos das populações. Quilombo! Ganga Zumba ei ei ei ei vai fugir Vai lutar tui tui tui tui com Zumbi E Zumbi falou ei ei ei ei meu irmão Mesmo céu tui tui tui mesmo chão Zumbi (Edu Lobo e Vinicius de Moraes) 9 . Pequeno Moinho de Açúcar, do pintor francês Jean-Baptiste Debret É da natureza humana a busca pela liberdade, por melhores condições de vida. Não poderia ser diferente entre os escravos africanos no Brasil: muitos deles conseguiram escapar para viver em comunidades (quilombos), onde plantavam em grupo e dividiam igualmente a colheita. Há relatos de quilombos espalhados por todos os estados onde a cana-de-açúcar ou a mineração exigiram o braço escravo: Bahia, Pernambuco, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso e Alagoas. Aliás, foi na terra alagoana que se fixou aquele considerado o maior quilombo de todos: Palmares. A invasão holandesa em Pernambuco (1630) causou, entre outros atropelos, o abandono de muitas terras pelos senhores de engenho, facilitando a fuga de um considerável contingente de escravos, que formaram o primeiro embrião do Quilombo dos Palmares, com quatro núcleos de povoamento: Macaco, Subupira, Zumbi e Tabocas. Não é possível precisar o número de quilombolas, mas os historiadores estimam que, por volta de 1670, eles tenham sido cerca de 20 mil. Também não há unanimidade com relação ao sistema político em Palmares. Uma corrente defende que se constituiu ali um verdadeiro Estado, nos moldes dos reinos africanos, sendo os diversos mocambos governados por oligarcas sob a chefia suprema de um líder. Para outros estudiosos, havia uma descentralização do poder entre os diferentes grupos pertencentes às diversas etnias, que formavam os núcleos de quilombos e delegavam esse poder a lideranças militares conforme o seu prestígio. Ganga Zumba e seu sobrinho, Zumbi, foram os mais famosos líderes do Quilombo dos Palmares. Em 1654, com a expulsão dos holandeses, o poder colonial voltou seus olhos para a questão dos quilombos. Não só pela necessidade de recuperar a mão de obra através da recaptura de seus integrantes, mas também pelo fato de que essa prosperidade constituía um acinte e uma ameaça ao seu poder na região. Mas não foi fácil: 18 expedições foram enviadas contra Palmares ao longo de 40 anos antes que o quilombo fosse definitivamente destruído. Quem chefiou a definitiva expedição foi o bandeirante Domingos Jorge Velho, com um exército de seis mil homens e algumas peças de artilharia. Em janeiro de 1654, Zumbi, a última liderança quilombola, foi encurralado
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conjunto <strong>da</strong> obra, considera<strong>da</strong> por muitos críticos<br />
a primeira produção artística brasileira<br />
autêntica. Uma arte afro-brasileira, mestiça.<br />
7 . Cristo no Passo do Horto, escultura em madeira,<br />
<strong>da</strong> série Passos <strong>da</strong> Paixão, de Aleijadinho<br />
Percebemos, então, que a arte negra, em<br />
seus primeiros momentos, andou abriga<strong>da</strong><br />
em sua religião. O sincretismo religioso com<br />
o catolicismo foi uma estratégia absolutamente<br />
vitoriosa para o escravo defender sua<br />
identi<strong>da</strong>de em ambiente hostil. Dessa forma,<br />
ele podia manter sua prática religiosa, apesar<br />
<strong>da</strong> repressão ideológica e política. Para<br />
o antropólogo Kabengele Munanga, os escravos<br />
“encontraram no Brasil condições ecológicas<br />
semelhantes às do ecossistema de<br />
suas origens, oferecendo, entre outras coisas,<br />
as mesmas essências vegetais. O que teria<br />
facilitado a continui<strong>da</strong>de de uma religião<br />
cuja relação entre o homem, a socie<strong>da</strong>de e a<br />
natureza é primordial”. E, ao aproximar suas<br />
enti<strong>da</strong>des <strong>da</strong> mitologia católica, abriram uma<br />
vere<strong>da</strong> por onde escapou ao controle dos senhores<br />
o mundo mágico e rítmico <strong>da</strong> cultura<br />
afro-brasileira. Dentro dessa estratégia, a<br />
conversão ao catolicismo era apenas formal.<br />
Não houve uma forma, um modelo único<br />
dentro desse processo. Algumas religiões<br />
mantiveram, e ain<strong>da</strong> mantêm, quase que<br />
totalmente suas raízes africanas, como o<br />
candomblé e o xangô do <strong>No</strong>rdeste. Outras<br />
se formaram através do sincretismo, que é<br />
o caso <strong>da</strong> umban<strong>da</strong>. Mas a própria prática<br />
do catolicismo tradicional foi influencia<strong>da</strong><br />
por essa matriz africana, conforme se vê no<br />
culto de santos com origem africana, como<br />
São Benedito e Santa Ifigênia. Ou na veneração<br />
a santos associados aos orixás africanos,<br />
como é o caso de São Cosme e Damião<br />
(Ibejis), São Jorge (Ogum) e Santa Bárbara<br />
(Iansã). Ou até mesmo na criação de novos<br />
santos populares – como a Escrava Anastácia.<br />
Incluem-se aí, também, as festas religiosas,<br />
como a lavagem <strong>da</strong>s esca<strong>da</strong>rias <strong>da</strong> Igreja<br />
de <strong>No</strong>sso Senhor do Bonfim pelas filhas<br />
de santo do candomblé.<br />
8 . Lavagem do Bonfim, acrílica sobre tela de Aécio de Andrade<br />
É importante fazer uma menção a Exu, o orixá<br />
<strong>da</strong> comunicação e do movimento. Os primeiros<br />
missionários católicos na África o<br />
confundiram com Satanás, já que suas características<br />
incluem a sensuali<strong>da</strong>de, a irreverência<br />
e a fertili<strong>da</strong>de. O que é um absurdo<br />
dentro <strong>da</strong> estrutura teológica iorubá, já que<br />
não está em oposição a Deus (Oxalá) e muito<br />
menos personifica o mal. Como destacou<br />
o sambista e estudioso Nei Lopes, na passagem<br />
para o <strong>No</strong>vo Mundo, “o Exu-Elegbara<br />
se transmutou em diversas enti<strong>da</strong>des, as<br />
quais, mais próximas ao conceito cristão de<br />
demônio, agrupando-se em legiões ou falanges”.<br />
Ao que se podem acrescentar as<br />
palavras do pesquisador Pierre Verger, “nem<br />
Raízes africanas – Capoeira, mungunzá e valentia<br />
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