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Comentário às Confissões de - Ordem dos Agostinianos Descalços

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INSTITUTO DE FILOSOFIA SANTO TOMÁS DE VILANOVA<br />

COMENTÁRIO ÀS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO<br />

JÚNIOR DA CUNHA DO VALE<br />

OURINHOS<br />

2009


INSTITUTO DE FILOSOFIA SANTO TOMÁS DE VILANOVA<br />

COMENTÁRIO ÀS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO<br />

JÚNIOR DA CUNHA DO VALE<br />

Trabalho apresentado à disciplina <strong>de</strong> Introdução ao pensamento agostiniano I como requisito<br />

parcial para obtenção <strong>de</strong> nota, sob a orientação do professor Frei A<strong>de</strong>lcio Vultuoso, oad.<br />

OURINHOS<br />

2009


SUMÁRIO<br />

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 3<br />

I. HISTÓRIA DA “VIDA” DE UMA “ALMA” .......................................................... 4<br />

1. Do nascimento aos quinze anos .......................................................................... 4<br />

2. Os peca<strong>dos</strong> da adolescência ................................................................................ 6<br />

3. Os estu<strong>dos</strong> ........................................................................................................... 9<br />

3.1 A “<strong>de</strong>scoberta” do Deus Amor no interior do homem ...................................... 11<br />

4. O professor ........................................................................................................ 12<br />

5. Em Roma e em Milão ........................................................................................ 14<br />

6. Entre amigos ...................................................................................................... 17<br />

7. A caminho <strong>de</strong> Deus ........................................................................................... 20<br />

8. A conversão ....................................................................................................... 21<br />

9. O batismo .......................................................................................................... 24<br />

10. O encontro <strong>de</strong> Deus ......................................................................................... 27<br />

10.1 “Palácios da memória” .................................................................................... 28<br />

11. O homem e o tempo ........................................................................................ 31<br />

12. A criação ......................................................................................................... 33<br />

13. A paz ............................................................................................................... 34<br />

CONCLUSÃO ........................................................................................................ 37<br />

BIBLIOGRAFIA ..................................................................................................... 38


INTRODUÇÃO<br />

Neste trabalho está apresentada a bela história <strong>de</strong> uma vida. Essa vida é a do gran<strong>de</strong><br />

doutor e santo católico Agostinho 1 . A vida <strong>de</strong> Agostinho é perpassada pela esperança na<br />

Verda<strong>de</strong>; o homem busca a Verda<strong>de</strong>. No entanto, o coração humano é terrível, indomável,<br />

inquieto; o indivíduo vive o caos da inquietu<strong>de</strong> que perpassa to<strong>dos</strong> os âmbitos da vida. A<br />

exposição da vida é incrível, transcorrida sobre uma verda<strong>de</strong>ira interiorida<strong>de</strong> refletida. O<br />

relato agostiniano é “extremamente” humano; o indivíduo é <strong>de</strong>spido frente ao Criador. Não há<br />

como “não-ser” frente a Deus. O encontro com Deus é <strong>de</strong>svelador; o homem como um todo se<br />

mostra perante o Amor. Não há mais confusão, nem intranqüilida<strong>de</strong>, mas somente liberda<strong>de</strong>,<br />

tranqüilida<strong>de</strong>, Amor.<br />

Agostinho olha para todo o curso <strong>de</strong> sua vida e percebe o Amor <strong>de</strong> Deus em to<strong>dos</strong> os<br />

momentos; Deus nunca abandona o homem, porém, graças ao livre-arbítrio (dom <strong>de</strong> Deus), o<br />

ser humano po<strong>de</strong> afastar-se do Sumo Bem. Des<strong>de</strong> o nascimento até a morte. É <strong>de</strong> gran<strong>de</strong><br />

importância um relato como o <strong>de</strong> Agostinho, pois mostra aos <strong>de</strong>mais indivíduos como a<br />

misericórdia divina está “marcando” as vidas.<br />

De certa forma, a obra <strong>de</strong> Agostinho relata ao mundo (isso já no século IV) 2 magnas<br />

realida<strong>de</strong>s humanas, que, muitas vezes, são atribuídas como relatos novos. Por exemplo, o<br />

cogito <strong>de</strong> Descartes ou mesmo o pensamento existencialista. 3 O cogito é ligado à pessoa <strong>de</strong><br />

Descartes 4 , porém, como negar sua “vivacida<strong>de</strong>” na obra <strong>de</strong> Agostinho? Como não lembrar o<br />

<strong>de</strong>sesperado humano <strong>de</strong> Kierkegaard já nas <strong>Confissões</strong>?<br />

Certamente a figura <strong>de</strong> Agostinho merece crédito e a figura <strong>de</strong> Agostinho nada mais é<br />

do que sua vida. Esta é o relato mais fiel da história entre o indivíduo (Agostinho) e Deus<br />

(Criador). Por isso, mostra-se aqui, nesse presente, trabalho a vida <strong>de</strong> um homem que busca<br />

respostas, 5 <strong>às</strong> vezes encontra, todavia, para tanto, sofre porque é humano. Será tão diferente<br />

do “humano” atual?<br />

1 Ao <strong>de</strong>correr do trabalho falar-se-á mais sobre a vida <strong>de</strong> Agostinho, no entanto, é interessante ressaltar duas<br />

datas: Agostinho nasceu em Tagaste no ano <strong>de</strong> 354 e morreu no ano <strong>de</strong> 430 em Hipona (on<strong>de</strong> era bispo).<br />

2 Agostinho escreve <strong>Confissões</strong> no ano <strong>de</strong> 399.<br />

3 Sobretudo o existencialismo religioso <strong>de</strong> Kierkegaard.<br />

4 Cogito, ergo sum.<br />

5 Busca mesmo que inconscientemente a Deus.


Capítulo I<br />

HISTÓRIA DA “VIDA” DE UMA “ALMA”<br />

1. Do nascimento aos quinze anos<br />

Agostinho inicia as <strong>Confissões</strong> louvando a Deus por toda a beleza da vida, por<br />

seu Amor. Tem a dúvida se <strong>de</strong>ve antes invocar ou louvar a Deus. Tudo se resume na<br />

vida humana, on<strong>de</strong>, por vários meios, o homem louva, invoca, crê e procura a Deus.<br />

Essa é a condição humana.<br />

Reconhece que Deus está no homem; este po<strong>de</strong> tentar fugir <strong>de</strong> Deus; “... se me<br />

<strong>de</strong>ito no Xeol, aí te encontro”. 6 Entretanto, mesmo assim encontra Deus, pois Ele<br />

“habita” <strong>de</strong>ntro do homem. Deus perscruta os corações humanos; portanto, quando o<br />

homem reporta-se ao coração, aí encontra Deus; Deus em si mesmo. 7<br />

Deus, para Agostinho, é tão amável e tão presente, que é incompreensível; por<br />

mais que se fale, que se louve, Deus não é totalmente compreensível. O homem se<br />

reconhece como minúscula parte da criação, no entanto, é criatura e, por isso, amado<br />

por Deus.<br />

A humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Agostinho é visível a ele; se vê como pecador limitado.<br />

Enten<strong>de</strong> que não é Deus e que necessita da misericórdia divina; por isso, suplica a Deus<br />

para que socorra sua alma, fale aos ouvi<strong>dos</strong> do seu coração: “Abri-os e dizei à minha<br />

alma: ‘Sou a tua salvação’”(Agostinho, 1987, p. 11).<br />

Vive-se numa “... vida mortal ou morte vital?” (Agostinho, 1987, p. 12). O<br />

homem ruma à salvação ou à con<strong>de</strong>nação? Essa é a pergunta proposta ao gênero<br />

humano, a fim <strong>de</strong> que a consciência alcance sua perfeita or<strong>de</strong>m para a vida futura; se<br />

necessário uma conversão, ou então, uma continuida<strong>de</strong> reta no caminho <strong>de</strong> Deus.<br />

Vê em Deus a causa do bem até na infância. Quando recebia leite das amas vê o<br />

dom <strong>de</strong> Deus em sua vida. Deus se usou das amas (instrumentos) para fazer o bem a<br />

Agostinho. Este reconhece Deus como fonte <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os bens somente após a<br />

conversão. Neste momento, Agostinho não sabe exatamente o que fazer; está inebriado<br />

6 Sl 138, 8<br />

7 Deus “no” homem. A célebre frase <strong>de</strong> Santo Agostinho: “In interiore homine habitat Veritas”.


com o Amor <strong>de</strong> Deus, só sabe encomiar a Deus. Para Agostinho, o conhecimento se dá<br />

boa parte por meio <strong>dos</strong> senti<strong>dos</strong>; tanto é que, quando criança, nota que as pessoas<br />

tentam enten<strong>de</strong>r as crianças, mas não conseguem. Não se po<strong>de</strong> penetrar a alma com os<br />

senti<strong>dos</strong> e, por conseguinte, não se enten<strong>de</strong> os <strong>de</strong>sejos infantis. A alma <strong>de</strong> Agostinho<br />

suspira por Deus, e é somente isso que ele <strong>de</strong>seja: “Exulte muito embora e prefira<br />

encontrar-Vos não Vos compreen<strong>de</strong>ndo, do que, compreen<strong>de</strong>ndo, não Vos encontrar”<br />

(Agostinho, 1987, p. 14).<br />

Até as crianças têm inveja, porém, Deus permite para que com o passar <strong>dos</strong> anos<br />

isso possa ser retirado <strong>de</strong>las e venha restar somente o bem:<br />

Vi e observei uma, cheia <strong>de</strong> inveja, que ainda não falava e já<br />

olhava, pálida, <strong>de</strong> rosto colérico, para o irmãozito colaço.<br />

(...) Indulgentemente se permitem estas más inclinações, não<br />

porque sejam ninharias sem importância, mas porque hão <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>saparecer com o andar <strong>dos</strong> anos. É este o único motivo, ...<br />

(Agostinho, 1987, p. 14-15).<br />

Agostinho apren<strong>de</strong> a falar e agra<strong>de</strong>ce a Deus pelo dom da inteligência que<br />

proporcionou tal aprendizado. Ouvia uma palavra e guardava na memória. Quando<br />

ainda criança, Agostinho reza a Deus que “é fortaleza”. 8 Rezava para que fossem<br />

atendi<strong>dos</strong> seus pedi<strong>dos</strong>, pois não queria ser açoitado na escola. Agostinho era<br />

negligente, pois não fazia as tarefas como <strong>de</strong>veria e, por isso, apanhava. Era preguiçoso<br />

porque inteligência como dom <strong>de</strong> Deus possuía, mas a severida<strong>de</strong> para consigo mesmo<br />

faltava-lhe. No entanto, muito se <strong>de</strong>ixava levar pelos jogos, nisso tinha prazer e,<br />

conseqüentemente, muito se empenhava; entrementes, era repreendido nisso também.<br />

Na infância, Agostinho quase morre. Atacado por uma dor no estômago pe<strong>de</strong> o<br />

batismo à Igreja <strong>de</strong> Cristo, mas pouco tempo antes do sacramento melhora e não mais se<br />

batiza por <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sua mãe Mônica. Ela não queria o batismo <strong>de</strong> Agostinho tão cedo,<br />

pois sabia que as penas públicas para pecadores eram <strong>de</strong>masiado cruéis e, portanto,<br />

Agostinho po<strong>de</strong>ria ser batizado mais adulto.<br />

Mesmo não querendo estudar, Agostinho era obrigado a tal. Vê nisso um bem,<br />

apesar <strong>de</strong> fazê-lo contragosto. Até nisso vê um bem. Todo bem <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> Deus. Gostava<br />

muito do latim e não gostava do grego. Tinha mais interesse nos contos do que na base<br />

da língua; pecava por isso, porém, com uma vida nova reconhece a importância da<br />

língua e não quer mais pecar.<br />

8 Sl 93, 22.<br />

5


Agostinho já convertido analisa seu tempo <strong>de</strong> aulas e vê que não entendia<br />

algumas coisas. Viu que não lhe serviu <strong>de</strong> nada alguns “vinhos” da<strong>dos</strong> pelos mestres.<br />

Não eram conhecimentos tão váli<strong>dos</strong>, mas sim vãs ilusões: “Que me aproveitou tudo<br />

aquilo? Que me aproveitou, ó Vida verda<strong>de</strong>ira e meu Deus, ter sido mais aclamado que<br />

os contemporâneos e condiscípulos, quando recitava? Não é tudo isso fumo e vento?<br />

Não havia outra coisa em que exercitar a língua e o talento?” (Agostinho, 1987, p. 23).<br />

A realida<strong>de</strong> humana é incrível. O homem, ao <strong>de</strong>srespeitar uma regra <strong>de</strong><br />

ortografia, gera <strong>de</strong>scontentamentos entre os homens, porém, se transgri<strong>de</strong> uma lei eterna<br />

(que é muito mais importante) não ocorre nada. Dói mais, ao homem, <strong>de</strong>srespeitar a<br />

língua do que outrem. Agostinho vê, sem dúvida, uma inversão <strong>de</strong> valores enorme; eis<br />

aí a realida<strong>de</strong> humana.<br />

Apesar <strong>de</strong> toda a condição pecadora da infância <strong>de</strong> Agostinho, este louva a Deus<br />

pelos bens ocorri<strong>dos</strong> nessa fase, pois estes são as melhores recordações infantis para<br />

Agostinho. O melhor sempre é Deus. Se vê cuidado aos olhos <strong>de</strong> Deus, Ele é o “reflexo<br />

da misteriosa unida<strong>de</strong>, fonte do meu ser” (Agostinho, 1987, p. 25). Já incutia, em<br />

Agostinho, o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> encontrar a Verda<strong>de</strong>. Isso é o que leva Agostinho para Deus<br />

novamente. Esse <strong>de</strong>sejo conduz sua vida. Reconhece a existência 9 em Deus. Existe<br />

porque recebe esse dom <strong>de</strong> Deus.<br />

2. Os peca<strong>dos</strong> da adolescência<br />

Agostinho escreve sobre as <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> sua juventu<strong>de</strong>, porque como pastor<br />

(bispo que é no momento que escreve <strong>Confissões</strong>), vê a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contar seus<br />

peca<strong>dos</strong>, tendo em vista o ensinamento pelo testemunho. Preten<strong>de</strong> mostrar quão ruim é<br />

o “lugar” do pecado na vida humana, e quão amável é a misericórdia divina. Escreve<br />

uma biografia e aí expõe toda sua vida, dando uma gran<strong>de</strong> conotação ao pecado.<br />

Continua ressaltando, como no primeiro livro, a <strong>de</strong>pendência humana da misericórdia<br />

<strong>de</strong> Deus.<br />

As ações <strong>de</strong> Agostinho o conduziam cada vez mais para longe <strong>de</strong> Deus, e Este<br />

no seu infinito respeito para com o homem <strong>de</strong>ixa-o fugir, pois respeita a liberda<strong>de</strong><br />

humana: “Afastava-me para mais longe <strong>de</strong> Vós, e permitíeis-mo” (Agostinho, 1987, p.<br />

9 Entenda-se aqui uma subsistência; o homem subsiste por graça <strong>de</strong> Deus.<br />

6


29). Essa fase da vida <strong>de</strong> Agostinho não se difere da <strong>de</strong> muitos adolescentes <strong>de</strong> hoje em<br />

dia. Qualquer adolescente a passar da infância para a adolescência <strong>de</strong>bate-se com neo-<br />

aspectos da vida. O adolescente reconhece para si mesmo a liberda<strong>de</strong> e vê nisso a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> agir conforme sua vonta<strong>de</strong>, <strong>de</strong>cidir por sua pessoa e, isso, algumas<br />

vezes, gera algumas transgressões. O adolescente <strong>de</strong>ixa se levar por falsas idéias e acaba<br />

vivendo uma vida funesta, exatamente como Agostinho. Nessa fase Agostinho<br />

adolescente afirma-se com veemência, abraça sua liberda<strong>de</strong> e peca; enxerga nos<br />

prazeres ilícitos sua felicida<strong>de</strong>, mas com o tempo reconhece que aí ela não está:<br />

On<strong>de</strong> me encontrava eu? Como me tinha exilado para longe<br />

das <strong>de</strong>lícias da vossa casa, aos <strong>de</strong>zesseis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />

segundo a carne, quando a loucura <strong>de</strong>ste prazer, que a nossa<br />

<strong>de</strong>gradação liberta <strong>de</strong> todo o freio, e que é proibido pela<br />

vossa lei, me fez aceitar o cetro que empunhei com ambas as<br />

mãos! (Agostinho, 1987, p. 30).<br />

Ninguém se preocupara com o futuro “prazeroso” <strong>de</strong> Agostinho, mas sim, com<br />

seu belo discurso oratório. Agostinho sente por não ter tomado consciência <strong>de</strong> tais erros<br />

anteriormente.<br />

Quando contava 16 anos, Agostinho volta à Tagaste (estava em Madaura<br />

estudando), preparando-se para ir a Cartago, que era uma cida<strong>de</strong> mais importante na<br />

época. Esse era o <strong>de</strong>sejo do pai, simples, mas muito impulsionado com tal idéia.<br />

Agostinho <strong>de</strong>ixa claro seu objetivo com o escrito das <strong>Confissões</strong>: quer ajudar o gênero<br />

humano a ver que mesmo no fundo do poço po<strong>de</strong>-se ainda clamar por Deus e ser<br />

auxiliado pelo Amor Dele.<br />

Mônica sempre aconselhava Agostinho para que não adulterasse, buscasse servir<br />

a Deus e trilhar os Seus caminhos; Agostinho, porém, não a ouve, pois acredita que são<br />

palavras <strong>de</strong> uma mulher e não as palavras do Criador: “Envergonhava-me <strong>de</strong> seguir tais<br />

conselhos, por me parecerem só próprios <strong>de</strong> mulheres. Porém eram vossos, e eu sem o<br />

saber! Julgava que nada me dizíeis, que só ela me falava; mas Vós dirigíeis-Vos a mim,<br />

por sua boca” (Agostinho, 1987, p. 31).<br />

Apesar <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os conselhos da<strong>dos</strong> a Agostinho, Mônica não cansa <strong>de</strong> pedir a<br />

Deus por esse seu filho, e vê nos estu<strong>dos</strong> tão incentiva<strong>dos</strong> pelo pai e por ela um meio <strong>de</strong><br />

aproximar Agostinho <strong>de</strong> Deus: “... estes tradicionais estu<strong>dos</strong> literários não me causariam<br />

dano, antes ajudariam a aproximar-me <strong>de</strong> Vós” (Agostinho, 1987, p. 32).<br />

7


A condição humana, em Agostinho, é tão cativante, pois é retratada no mais<br />

íntimo da consciência humana; o “homem <strong>de</strong> Agostinho” fica exposto a tal ponto que<br />

chega a esvanecer-se na presença do leitor; a intenção real humana se mostra e <strong>de</strong>svela-<br />

se o mais profundo do ser do homem. Agostinho expõe brilhantemente essa realida<strong>de</strong><br />

humana no conhecido furto das pêras, on<strong>de</strong> rouba pelo simples prazer <strong>de</strong> roubar: “Não<br />

pretendia <strong>de</strong>sfrutar do furto, mas do roubo em si e do pecado” (Agostinho, 1987, p. 32).<br />

O homem na sua condição pecadora mais acentuada, ama o pecado tão ilusoriamente<br />

que abraça-o <strong>de</strong> forma surpreen<strong>de</strong>nte: “Amei a minha morte, amei o meu pecado. Amei,<br />

não aquilo a que era arrastado, senão a mesma queda” (Agostinho, 1987, p. 33).<br />

O homem busca fora <strong>de</strong> Deus algo que lhe traga a Felicida<strong>de</strong>, no entanto, a<br />

procura é frívola, pois não acrescenta nada ao indivíduo. Porém, a realida<strong>de</strong> se<br />

modifica, porque se percebe on<strong>de</strong> a Felicida<strong>de</strong> não está; mas se isso traz tanto prazer<br />

aparente e a Felicida<strong>de</strong> aí não está, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> estar? O caminho do pecado é esse: “É<br />

assim que a alma peca, quando se aparta e busca fora <strong>de</strong> Vós o que não po<strong>de</strong> encontrar<br />

puro e transparente, a não ser regressando a Vós <strong>de</strong> novo” (Agostinho, 1987, p. 35). Eis<br />

aí o homem perdido, mas que sempre possui a possibilida<strong>de</strong> da “conversão”, mudar a<br />

direção e voltar a Deus, para assim rumar à Felicida<strong>de</strong>; <strong>de</strong>starte, <strong>de</strong>ixa-se as sombras e<br />

presencia-se a luz para iluminar a vida humana: “Eis-me ‘aquele escravo que, fugindo a<br />

seu senhor, seguiu uma sombra! Ó podridão, ó monstro da vida e abismo da morte!<br />

Como po<strong>de</strong> agradar-me o ilícito sem outro motivo que o <strong>de</strong> me ser proibido?”<br />

(Agostinho, 1987, p. 35). De fato, o pecado é atraente, aparenta ser valoroso, porém, é<br />

ilícito e, por isso, muitos indivíduos o cometem: pelo simples prazer <strong>de</strong> pecar.<br />

Agostinho proclama Deus como fonte da misericórdia e Pai que perdoou seus<br />

peca<strong>dos</strong>; fica perdido, pois tudo que possa fazer não é suficiente para agra<strong>de</strong>cer a tão<br />

sublime Amor. Vê, realmente, que todo o mal que fez foi perdoado. Agostinho mostra<br />

sua adolescência como um verda<strong>de</strong>iro afastar-se <strong>de</strong> Deus e, por isso, agora louva a Deus<br />

para agra<strong>de</strong>cer pelo Amor com que é amado.<br />

8


3. Os estu<strong>dos</strong><br />

O homem, mesmo pecador, 10 busca a Deus. Agostinho percebe essa tendência<br />

humana para Deus. Vê que o homem procura nos lugares erra<strong>dos</strong>, entrementes, quer<br />

Deus, mesmo que não O queira conscientemente.<br />

Na juventu<strong>de</strong> é encontrada essa tendência pelo gosto <strong>de</strong> correr riscos; o jovem é<br />

audacioso, gosta do perigo, do incerto. Então Agostinho peca cada vez mais na sua<br />

juventu<strong>de</strong> e alcança algumas coisas mundanas, entretanto, não se sente preenchido, mas<br />

sim enfastiado, porque quanto mais longe da Felicida<strong>de</strong> que é Deus, mais vazio se<br />

encontra: “Não tinha fome <strong>de</strong>sta fome, porque estava sem apetites <strong>de</strong> alimentos<br />

incorruptíveis, não porque <strong>de</strong>les transbordasse, mas porque, quanto mais vazio, tanto<br />

mais enfastiado me sentia” (Agostinho, 1987, p. 41).<br />

Constata que na sua vida <strong>de</strong> pecado ama a miséria humana; quando assiste a um<br />

espetáculo teatral sente-se encantado com o sofrimento alheio. O homem sente prazer<br />

no sofrimento; como explicar isso? Agostinho faz uma interessante distinção entre<br />

<strong>de</strong>sgraça e compaixão. Para ele, <strong>de</strong>sgraça é o próprio sofrimento e o sentimento <strong>de</strong><br />

participação na dor alheia é compaixão. A <strong>de</strong>sgraça não <strong>de</strong>ve ser querida, visto que não<br />

é algo bom. A compaixão, por sua vez, <strong>de</strong>ve ser admitida em alguns casos; <strong>às</strong> vezes<br />

<strong>de</strong>ve-se amar as dores, todavia, isso requer <strong>de</strong>masiada cautela e quem garante isso é<br />

Deus: “Convém, portanto, amar, alguma vez, as dores. Mas acautela-te da impureza, ó<br />

minha alma, ‘sob a proteção do meu Deus, ...” (Agostinho, 1987, p. 42).<br />

A vivência da carida<strong>de</strong> leva o homem a ter compaixão, no entanto, a mesma não<br />

quer que haja dor e, conseqüentemente, motivos para se condoer. Em alguns casos a dor<br />

é aprovada, mas nunca amada. Agostinho vê na procura errônea algo que nem po<strong>de</strong> ser<br />

chamado <strong>de</strong> vida; encontra no pecado a remexida na ferida existencial humana: “Tal era<br />

a minha vida! Mas isso, meu Deus, podia chamar-se vida?” (Agostinho, 1987, p. 43).<br />

Os estu<strong>dos</strong> levaram Agostinho à vaida<strong>de</strong>; por ser o mais adiantado da classe<br />

enchia-se <strong>de</strong> vaida<strong>de</strong>. Mesmo <strong>de</strong> algo bom (estu<strong>dos</strong>) o homem po<strong>de</strong> tirar algo <strong>de</strong> ruim;<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> somente da sua intenção na ação, isso é o que verda<strong>de</strong>iramente conta. Mesmo<br />

na mentira (graças à arte da retórica) era louvado; a cegueira tomava conta <strong>de</strong> to<strong>dos</strong>; se<br />

importavam com a forma bela e não com o conteúdo pobre.<br />

10 O homem está, na verda<strong>de</strong>, buscando no lugar errado a Felicida<strong>de</strong>. Todavia, tem se<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus e, por<br />

isso, tenta incessantemente encontrar Deus e, <strong>às</strong> vezes, procura-O no lugar errado, caindo na miséria do<br />

pecado.<br />

9


Esses mesmos estu<strong>dos</strong> que levaram Agostinho a tantos peca<strong>dos</strong> acabaram por<br />

levá-lo a uma obra, Hortênsio <strong>de</strong> Cícero, que o conduziu por caminhos novos. De um<br />

mal se po<strong>de</strong> tirar um bem maior. Nessa época, Agostinho volta seus olhos para Deus<br />

mesmo que ainda não conscientemente. Essa obra muda drasticamente a vida <strong>de</strong><br />

Agostinho; a partir daí suas buscas modificam-se e voltam-se para Deus (Sabedoria):<br />

Ele mudou o alvo das minhas afeições e encaminhou para<br />

Vós, Senhor, as minhas preces, transformando as minhas<br />

aspirações e <strong>de</strong>sejos. Imediatamente se tornaram vis, a meus<br />

olhos, as vãs esperanças. Já ambicionava, com incrível ardor<br />

do coração, a Sabedoria imortal. Principiava a levantar-me<br />

para voltar para Vós (Agostinho, 1987, p. 43-44).<br />

Agostinho contava 19 anos; há dois anos seu pai (Patrício) havia falecido.<br />

O <strong>de</strong>sejo pelo Transcen<strong>de</strong>nte se ar<strong>de</strong> em Agostinho novamente, ainda que numa<br />

busca filosófica. Para Agostinho, a filosofia po<strong>de</strong> conter uma parte da Verda<strong>de</strong>, mas não<br />

em plenitu<strong>de</strong>: “Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas<br />

especulações da ‘filosofia’, segundo a tradição <strong>dos</strong> homens, segundo os elementos do<br />

mundo, e não segundo Cristo. Pois nele habita corporalmente toda a plenitu<strong>de</strong> da<br />

divinda<strong>de</strong> e nele fostes leva<strong>dos</strong> à plenitu<strong>de</strong>”. 11 Agostinho queria a Sabedoria on<strong>de</strong> quer<br />

que ela estivesse, porém, isso o impulsionava a amar, buscar, conquistar. Se na obra <strong>de</strong><br />

Cícero o nome <strong>de</strong> Cristo estivesse presente certamente Agostinho teria sido arrebatado à<br />

Verda<strong>de</strong> cristã já nessa ocasião.<br />

Ao ler a Bíblia, Agostinho não acredita po<strong>de</strong>r compará-la à elegância<br />

ciceroniana; vê nela um livro qualquer que não possui a Verda<strong>de</strong>: “O que senti, quando<br />

tomei nas mãos aquele livro, não foi o que acabo <strong>de</strong> dizer, senão que me pareceu<br />

indigno compará-lo à elegância ciceroniana. A sua simplicida<strong>de</strong> repugnava ao meu<br />

orgulho e a luz da minha inteligência não lhe penetrava no íntimo” (Agostinho, 1987, p.<br />

45). A preferência por Cícero é um tanto quanto óbvia, pois Agostinho orgulhoso não<br />

<strong>de</strong>ixa o verda<strong>de</strong>iro espírito interpretar a Sagrada Escritura. O orgulho fecha-lhe o<br />

coração e não permite a ação <strong>de</strong> Deus.<br />

Agostinho <strong>de</strong>ixa-se seduzir pela heresia do maniqueísmo, 12 acreditando a<br />

Verda<strong>de</strong> estar contida nessa doutrina. Colocaram Jesus no meio da doutrina e isso muito<br />

11 Col 2, 8-10a.<br />

12 “Esta seita foi fundada por Maniqueu (ou Manés), o qual, perseguido pelo rei e magos do seu país, a<br />

Pérsia, teve <strong>de</strong> refugiar-se na Mesopotâmia. (...) O maniqueísmo misturava as doutrinas <strong>de</strong> Zoroastro com<br />

o cristianismo. (...) Des<strong>de</strong> toda a eternida<strong>de</strong> existem dois princípios, o do bem e o do mal. O primeiro que<br />

se chama Deus, (...) O segundo chama-se Satanás. (...) Ambos comunicam a sua substância a outros seres,<br />

10


atraía seguidores, porém, o que apresentavam como Verda<strong>de</strong> não satisfaz Agostinho,<br />

que com o “coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós” (Agostinho, 1987, p.<br />

9). O homem só se contenta com Deus; nada mais o po<strong>de</strong> preencher; o ser humano não<br />

po<strong>de</strong> criar o céu na terra e, por isso, <strong>de</strong>ve buscar a salvação até o fim da vida.<br />

Mostraram a Agostinho muitas criaturas (Sol, Lua, estrelas, etc...) que louvavam a<br />

Deus, mas não eram o próprio Deus e, portanto, não contentavam o “coração<br />

agostiniano”. Agostinho percebe que não é uma criatura; então, on<strong>de</strong> está? Estaria Deus,<br />

porventura, na alma? Não! Deus é mais do que isso: “Mas também não sois a alma que<br />

é vida <strong>dos</strong> corpos – esta vida <strong>dos</strong> corpos melhor e mais real do que os corpos –, porém<br />

sois a vida das almas, a Vida das vidas, que vive em razão <strong>de</strong> si mesma, e que não<br />

muda, ó Vida da minha alma!” (Agostinho, 1987, p. 46).<br />

3.1 A “<strong>de</strong>scoberta” do Deus Amor no interior do homem<br />

Deus está no homem e o conhece claramente: “Vós, porém, éreis mais íntimo<br />

que o meu próprio íntimo e mais sublime que o ápice do meu ser!” (Agostinho, 1987, p.<br />

47). Deus conhece o indivíduo muito melhor do que ele mesmo, pois é mais íntimo,<br />

perscruta as regiões mais profundas do ser humano; Agostinho percebe isso<br />

brilhantemente; Deus “habita” no interior do homem.<br />

O mal nada mais é do que uma privação do bem. O mal não existe a nível<br />

ontológico porque é somente essa ausência do bem; quando o bem não se faz presente o<br />

mal aparece; quando não se tem a luz tem-se as trevas.<br />

Agostinho não consegue enten<strong>de</strong>r como Deus po<strong>de</strong> ser espírito; sofre com isso e<br />

não <strong>de</strong>ixa a graça <strong>de</strong> Deus agir em sua vida. Essa é a dificulda<strong>de</strong> humana. O homem não<br />

se abre à Graça, não se <strong>de</strong>ixa conduzir por Deus. Transgri<strong>de</strong> as leis até por falta <strong>de</strong><br />

entendimento acerca das mesmas. A lei <strong>de</strong> Deus forma as culturas retas; o homem<br />

torna-se justo perante a lei divina. A paz <strong>de</strong> Deus é garantida pela própria lei; porém, a<br />

socieda<strong>de</strong> é injusta, algumas vezes, por conta da transgressão da lei tão sagrada e reta<br />

que é a lei divina.<br />

que são bons ou maus conforme a sua origem. (...) O homem compõe-se <strong>de</strong> três partes: <strong>de</strong> corpo oriundo<br />

do mal, <strong>de</strong> espírito, oriundo <strong>de</strong> Deus, e <strong>de</strong> alma insensível, cheia <strong>de</strong> maus apetites e dominada por<br />

Satanás” (apud, Agostinho, 1989, p. 46).<br />

11


A base <strong>de</strong> toda a lei é o Amor e Agostinho vê nisso algo imutável, algo que<br />

nunca será injusto: “Em que tempo ou lugar será injusto que ‘amemos a Deus com todo<br />

o nosso coração, com toda a nossa alma e com toda a nossa mente, e que amemos o<br />

próximo como a nós mesmos’?” (Agostinho, 1987, p. 48). O afastamento do homem <strong>de</strong><br />

Deus <strong>de</strong>ve-se ao não cumprimento <strong>dos</strong> mandamentos; o indivíduo abandona Deus e<br />

ruma para outros mares. No pecado, o ser humano prejudica-se a si mesmo e nunca a<br />

Deus; Deus é incorruptível, no entanto, mesmo na <strong>de</strong>vassidão humana, Ele esten<strong>de</strong> sua<br />

mão misericordiosa para perdoar e amar o homem.<br />

O próprio olhar divino é diferente do olhar humano perante a mesma ação;<br />

enquanto o ser humano acredita estar sendo cari<strong>dos</strong>o, Deus vê uma ação egoísta, pois<br />

perscruta os corações e, ao mesmo tempo, enquanto ao olhar <strong>de</strong> outros a ação humana é<br />

<strong>de</strong>vassa, po<strong>de</strong> ser acolhida ao olhar <strong>de</strong> Deus como carida<strong>de</strong>.<br />

Mônica relata um sonho muito interessante, on<strong>de</strong> pô<strong>de</strong> ver que Agostinho se<br />

converteria, pois on<strong>de</strong> ela estivesse aí ele estaria; bastava somente perseverança a ela.<br />

Mônica, nessa época, já via a morte na alma <strong>de</strong> Agostinho, porém, nunca <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

acreditar no po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus e, por isso, foi atendida. Quando Mônica contou o sonho a<br />

Agostinho, este temeu pela mãe virar maniqueísta, mas logo ela o corrigiu: “‘Não, não<br />

me foi dito: ‘on<strong>de</strong> ele está, aí estarás tu’, mas sim: ‘on<strong>de</strong> tu estás, aí estará ele também’”<br />

(Agostinho, 1987, p. 51). A resposta <strong>de</strong> Mônica abala consi<strong>de</strong>ravelmente Agostinho,<br />

porém, ela ainda tem que rezar mais nove anos pela conversão do filho.<br />

Outra resposta é dada a Mônica por meio do bispo <strong>de</strong> Cartago. Depois <strong>de</strong> tanto<br />

insistir com o bispo, para que este conversasse com Agostinho, o bispo diz-lhe: “‘Vai<br />

em paz e continua a viver assim porque é impossível que pereça o filho <strong>de</strong> tantas<br />

lágrimas’” (Agostinho, 1987, p. 52). Vê-se nesses dois relatos a ação consoladora <strong>de</strong><br />

Deus na vida <strong>de</strong> uma mãe que tanto rezou pelo filho. Ela não faz conta para rezar, só<br />

reza e confia Nele e, justamente por isso é atendida.<br />

4. O professor<br />

Durante um período <strong>de</strong> nove anos (19 aos 28 anos), Agostinho busca glórias e<br />

elogios, preocupado somente com o bem-estar terreno e a atenção <strong>dos</strong> amigos: “Ora<br />

corria atrás da futilida<strong>de</strong> da glória popular” (Agostinho, 1987, p. 55). Agostinho ainda<br />

12


não consegue visualizar o Amor <strong>de</strong> Deus em sua vida; falta-lhe ainda algo, falta-lhe um<br />

verda<strong>de</strong>iro encontro com Deus para que se <strong>de</strong>sapegue do pecado.<br />

Reconhece que no seu ensinamento retórico garante aos alunos a possibilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> “trapacearem” em alguns casos e isso não é algo muito bom. Nessa época, Agostinho<br />

possui uma mulher como companheira; não são reconheci<strong>dos</strong> em matrimônio e vivem<br />

sob o jugo do pecado. Dessa união nasce um filho 13 que Agostinho se vê obrigado a<br />

amar; sua obrigação como pai é amar o filho.<br />

Em dado momento da vida, Agostinho sente-se atraído pela astrologia; assim,<br />

começa a ler obras <strong>de</strong> tal “ciência”, todavia, encontrando um amigo, este explica-lhe<br />

que a astrologia não passa <strong>de</strong> uma enganação e, por isso, Agostinho não <strong>de</strong>ve pren<strong>de</strong>r-se<br />

a tais práticas adivinhatórias, ainda mais porque possuía a arte da retórica. Mesmo assim<br />

Agostinho insistiu no erro e teve que comprovar pessoalmente que se tratava <strong>de</strong> um<br />

erro: “... nem ele nem o meu queridíssimo Nebrídio, (...) me pu<strong>de</strong>ram persuadir a que a<br />

rejeitasse; ...” (Agostinho, 1987, p. 57).<br />

Dando aula em Tagaste Agostinho possui uma gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> com outro<br />

jovem, com quem compartilha os “prazeres” do estudo. A amiza<strong>de</strong> entre os dois<br />

consiste em possuírem em comum os estu<strong>dos</strong>. O amigo morre e Agostinho sente uma<br />

profunda dor pela perda: “Com tal dor, entenebreceu-se-me o coração” (Agostinho,<br />

1987, p. 58). Agostinho, mais tar<strong>de</strong>, percebe no que consiste a verda<strong>de</strong>ira amiza<strong>de</strong> e o<br />

mistério da morte; por isso, em fatos futuros encara <strong>de</strong> modo diverso tais situações. Já<br />

em Cícero tem-se a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> como a busca pelo Bem comum e, Agostinho<br />

usando-se <strong>de</strong> Cícero i<strong>de</strong>ntifica o Bem comum como Deus: “... só há verda<strong>de</strong>ira amiza<strong>de</strong><br />

quando sois Vós quem enlaça os que Vos estão uni<strong>dos</strong> ‘pela carida<strong>de</strong> difundida em<br />

nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado’” (Agostinho, 1987, p. 58).<br />

Sentindo extrema dor pela perda do amigo, Agostinho quer refugiar-se em algo;<br />

<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>, então, ir para Cartago, pois em Cartago o olhar não está acostumado a procurar<br />

o amigo como em Tagaste. Com o tempo a dor diminui, porém, Agostinho é ainda<br />

muito apegado aos amigos. Não que a amiza<strong>de</strong> seja um mal, mas na forma que<br />

Agostinho vivia não se tratava da verda<strong>de</strong>ira amiza<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira busca<br />

pelo prazer mundano: “... conversar e rir, prestar obséquios com amabilida<strong>de</strong> uns aos<br />

outros, ler em comum livros <strong>de</strong>leitosos, gracejar, ...” (Agostinho, 1987, p. 61). Não se<br />

trata <strong>de</strong> uma amiza<strong>de</strong> on<strong>de</strong> a busca seja Deus; ainda é algo apegado aos bens terrenos.<br />

13 O filho <strong>de</strong> Agostinho se chama A<strong>de</strong>odato. Sua vida foi muito breve morrendo ainda na adolescência.<br />

13


Quando Agostinho enten<strong>de</strong> a verda<strong>de</strong>ira amiza<strong>de</strong> consola-lhe o coração, pois vê a<br />

própria Verda<strong>de</strong> contida na relação <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e isso faz com que a própria perda <strong>de</strong><br />

um amigo, que é tão dolorosa, seja encarada <strong>de</strong> outra forma: “Só não per<strong>de</strong> nenhum<br />

amigo aquele a quem to<strong>dos</strong> são queri<strong>dos</strong> n’Aquele que nunca per<strong>de</strong>mos” (Agostinho,<br />

1987, p. 61).<br />

Agostinho se preocupa com o belo; para isso escreve um tratado: De Pulchro et<br />

Apto; este tratado é <strong>de</strong>dicado a Hiério, famoso orador <strong>de</strong> Roma. Define o belo como “‘o<br />

que agrada por si mesmo; e o conveniente ‘o que agrada pela sua acomodação a alguma<br />

coisa’” (Agostinho, 1987, p. 66). Agostinho volta a reafirmar que o mal não é<br />

substância, mas sim uma privação do Bem.<br />

Agostinho enten<strong>de</strong> varia<strong>dos</strong> filósofos, <strong>de</strong>strincha intrincadas obras, porém, vê<br />

que o que mais lhe interessa (Deus, Verda<strong>de</strong>) permanece encoberto a seus olhos; <strong>de</strong> que<br />

adianta, então, tudo isso? Mesmo assim Agostinho continua a se esforçar no caminho da<br />

Verda<strong>de</strong>; quer encontrá-la.<br />

5. Em Roma e em Milão<br />

Todas as criaturas louvam a Deus; são criadas e “refletem” o Criador; através<br />

das criaturas po<strong>de</strong>-se chegar a Deus (Criador).<br />

O homem através <strong>de</strong> sua vida tenta fugir <strong>de</strong> Deus, porém, não consegue; apenas<br />

consegue fugir <strong>de</strong> si mesmo, mas nunca <strong>de</strong> Deus:<br />

Na intimida<strong>de</strong> da consciência, o homem <strong>de</strong>scobre uma lei.<br />

Ele não dá a si mesmo. Mas a ela <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cer. Chamandoo<br />

sempre a amar e fazer o bem e a evitar o mal, no momento<br />

oportuno a voz <strong>de</strong>sta lei ressoa no íntimo <strong>de</strong> seu coração (...)<br />

É uma lei inscrita por Deus no coração do homem (...) A<br />

consciência é o núcleo secretíssimo e o sacrário do homem,<br />

on<strong>de</strong> ele está sozinho com Deus e on<strong>de</strong> ressoa sua voz (GS,<br />

16) 14 .<br />

Através <strong>de</strong> sua “labuta” pelo maniqueísmo Agostinho aguarda ansiosamente<br />

pela vinda do bispo Fausto, contudo, <strong>de</strong>cepciona-se ao vê-lo discursar. Percebe que<br />

Fausto é um bom orador, fala muito bem e <strong>de</strong> forma muito bela, no entanto, o conteúdo<br />

14 Esta sigla, GS, refere-se a “Gaudium et Spes” Documento Conciliar Vaticano II, promulgado pelo<br />

Papa Paulo VI. Essa citação é usada no Catecismo da Igreja Católica n. 1776.<br />

14


oferecido não era <strong>de</strong> tão gran<strong>de</strong> estima; era, certamente, apresentado em gran<strong>de</strong> estilo,<br />

porém, não satisfez as dúvidas <strong>de</strong> Agostinho. O conhecimento <strong>dos</strong> filósofos muito<br />

ajudou Agostinho, pois, através <strong>de</strong> tais conhecimentos, Agostinho pô<strong>de</strong> comparar tudo<br />

ao maniqueísmo, e isso fez com que, cada vez mais, o mesmo se tornasse obsoleto aos<br />

olhos <strong>de</strong> Agostinho.<br />

Agostinho afirma Manés como um charlatão, pois sua doutrina era baseada em<br />

falsas afirmações que não condiziam com a realida<strong>de</strong>, porém, essa doutrina por muito<br />

tempo convenceu os homens, tanto é que Agostinho a<strong>de</strong>re por um tempo a essa seita.<br />

Então fala abertamente sobre a pretensão <strong>de</strong> Manés ao pregar sua doutrina: “... ousou<br />

ensiná-las sem as conhecer, <strong>de</strong> modo algum po<strong>de</strong>ria alcançar a pieda<strong>de</strong>” (Agostinho,<br />

1987, p. 76).<br />

Depois <strong>de</strong> tanta espera, Agostinho tem a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver Fausto pregar a<br />

doutrina maniqueísta. Nessa oportunida<strong>de</strong>, percebe que ele é um ótimo orador, porém,<br />

só conhece das artes liberais a gramática. Numa chance reservada <strong>de</strong> questionar o<br />

maniqueísta não se contenta com as respostas <strong>de</strong> Fausto (tinha lido alguns discursos <strong>de</strong><br />

Cícero e Sêneca; alguns poemas e os poucos livros do maniqueísmo). Agostinho se viu<br />

<strong>de</strong>siludido, pois nada o contentava; nada o preenchia. A dificulda<strong>de</strong> em encontrar a<br />

Verda<strong>de</strong> corrói a esperança do homem que se vê “perdido” algumas vezes; e é<br />

justamente na retomada da esperança que o homem se supera e revigora as forças para a<br />

luta.<br />

Ao menos em uma coisa Agostinho louva Fausto grandiosamente. Fausto ao ser<br />

questionado sobre algumas questões que ignorava respon<strong>de</strong> ser ignorante no assunto<br />

não se fazendo <strong>de</strong> entendido na sua ignorância; isso é muito louvado por Agostinho em<br />

Fausto que reconhece não saber. Agostinho passa admitir um novo caminho para sua<br />

vida; não abandona o maniqueísmo, pois não tem algo melhor a seus olhos, porém,<br />

aguarda algo melhor para chegar à Verda<strong>de</strong>.<br />

Os alunos <strong>de</strong> Agostinho em Cartago são mal educa<strong>dos</strong> e cometem mil<br />

travessuras e isso muito o incomodava. Chegava a Cartago a notícia <strong>de</strong> que em Roma os<br />

alunos ouviam disciplinadamente todas as aulas e isso era o que Agostinho tanto<br />

<strong>de</strong>sejava para lecionar. Deci<strong>de</strong> ir para Roma. É o início da salvação <strong>de</strong> Agostinho; Deus<br />

dando mais uma vez a possibilida<strong>de</strong> da correção <strong>dos</strong> passos <strong>de</strong> Agostinho.<br />

A viagem começou com uma mentira à mãe. Mônica não <strong>de</strong>sejava <strong>de</strong> modo<br />

algum essa viagem, entrementes, Agostinho usando-se <strong>de</strong> algumas artimanhas foge<br />

durante a noite e vai a Roma, on<strong>de</strong> preten<strong>de</strong> respirar melhores dias; Mônica se<br />

15


<strong>de</strong>sespera ao ver que o filho se foi, porém, após muitas lágrimas volta a rezar pelo<br />

mesmo. A mãe apesar <strong>de</strong> tudo não abandona o filho; sofre com as complicações da vida,<br />

mas não o abandona.<br />

Em Roma, Agostinho é acometido por uma gran<strong>de</strong> doença que quase o leva à<br />

morte e, mesmo assim, o batismo não é <strong>de</strong>sejado. Prestes a terminar essa vida,<br />

Agostinho ainda não <strong>de</strong>seja o batismo. Agostinho nem consegue imaginar o coração da<br />

mãe mediante a notícia da morte do filho; o coração <strong>de</strong> sua mãe não agüentaria tal dor.<br />

Mãe que tanto rezou e lutou não po<strong>de</strong>ria terminar <strong>de</strong>ssa forma.<br />

Na época da doença, Agostinho se reconhece como soberbo, pois graças ao<br />

credo na doutrina maniqueísta acreditava não ter culpa na dor que sentia: “A minha<br />

soberba <strong>de</strong>leitava-se com não ter as responsabilida<strong>de</strong>s da culpa” (Agostinho, 1987, p.<br />

82).<br />

Na vida <strong>de</strong> Agostinho, vê-se um envolvimento breve com a doutrina <strong>dos</strong><br />

acadêmicos, 15 esse era um grupo <strong>de</strong> filósofos que não acreditavam em nada, isto é,<br />

céticos ao extremo. Agostinho está em busca da verda<strong>de</strong>, que, por final, encontrará na<br />

Igreja <strong>de</strong> Cristo; porém, até esse momento vê-se em busca da Verda<strong>de</strong> e, por isso, seu<br />

coração é inquieto. Gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Agostinho era tentar ver Deus como algo não<br />

corpóreo, pois atribuía sempre <strong>às</strong> coisas a materialida<strong>de</strong>: “... o principal e quase único<br />

motivo do meu erro inevitável era, quando <strong>de</strong>sejava pensar no meu Deus, não po<strong>de</strong>r<br />

formar uma idéia <strong>de</strong>le, se não lhe atribuísse um corpo, visto parecer-me impossível que<br />

houvesse alguma coisa que não fosse material” (Agostinho, 1987, p. 82-83). Disso<br />

Agostinho se baseava para acreditar numa substância do mal e, por conseguinte, tinha a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ver duas substâncias (princípios) que regiam as ações humanas: bem e<br />

mal. Devido a tais crenças, Agostinho chega a duvidar da pureza <strong>de</strong> Jesus Cristo, pois<br />

via a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cristo ter-se manchado na concepção em Maria; e isto muito<br />

dificultou o retorno à fé católica.<br />

Em Roma, Agostinho sofre com o “calote” <strong>dos</strong> alunos; os alunos amam o<br />

dinheiro e trocam constantemente <strong>de</strong> professor <strong>de</strong> tal forma que não pagam a nenhum:<br />

“... logo me afirmaram que os alunos conspiram e passam em gran<strong>de</strong> número dum<br />

professor para outro, a fim <strong>de</strong> não pagarem os mestres, ...” (Agostinho, 1987, p. 84).<br />

15 Entenda-se aqui os novos acadêmicos, pois os antigos acadêmicos acreditavam po<strong>de</strong>r chegar à<br />

verda<strong>de</strong>, porém, a doutrina “entenebrecida” por Arcesilau foi “reatualizada” por Carnéa<strong>de</strong>s, Antíoco e<br />

Marco Túlio a um nível <strong>de</strong> ceticismo rigoroso, on<strong>de</strong> não se po<strong>de</strong>ria afirmar nada, visto que não se po<strong>de</strong>ria<br />

chegar à verda<strong>de</strong>.<br />

16


Agostinho cansado <strong>dos</strong> “calotes”, tanto em Cartago quanto em Roma, quando<br />

escuta algo sobre um emprego <strong>de</strong> retórico no governo <strong>de</strong> Milão <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ir para lá. Em<br />

Milão, Agostinho escuta os discursos <strong>de</strong> Ambrósio e confirma a boa reputação que o<br />

Bispo possui entre o povo. Agostinho tem Ambrósio em gran<strong>de</strong> conta, graças ao gran<strong>de</strong><br />

retórico que o Bispo é. Aos poucos, através <strong>dos</strong> sermões <strong>de</strong> Ambrósio, Agostinho vai se<br />

reaproximando da doutrina católica.<br />

Nesses sermões <strong>de</strong>tém a atenção na eloqüência do Bispo, porém, ao longo da<br />

caminhada começa a incutir-lhe no coração algumas verda<strong>de</strong>s que geram reflexões. Vê<br />

na interpretação alegórica da Sagrada Escritura uma possibilida<strong>de</strong> real <strong>de</strong> se chegar à<br />

Verda<strong>de</strong>; Agostinho já está modificado pelas verda<strong>de</strong>s cristãs: “... a fé católica não me<br />

parecia vencida, mas também ainda se me não afigurava vencedora” (Agostinho, 1987,<br />

p. 86). Abandona o maniqueísmo e faz-se catecúmeno na Igreja Católica; volta-se para<br />

Cristo.<br />

6. Entre amigos<br />

Mônica vem ao encontro <strong>de</strong> Agostinho; a mãe quer ajudar Agostinho <strong>de</strong> muito<br />

perto, pois sabe da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu filho e quanto o cuidado da mãe é importante.<br />

Quando Mônica fica sabendo que Agostinho abandonara o maniqueísmo já se sente<br />

bem, visto que vê adiante o escopo do caminho <strong>de</strong> seu filho: “... <strong>de</strong>scobrindo-lhe que já<br />

não era maniqueísta, e que também ainda não era católico, não saltou <strong>de</strong> alegria, como<br />

quem ouve qualquer nova impressão, apesar <strong>de</strong> já estar sossegada por eu abandonar<br />

parte da minha miséria, ...” (Agostinho, 1987, p. 89). Por conta disso, Mônica vê em<br />

Ambrósio gran<strong>de</strong> homem, visto que levou Agostinho à dúvida, que Mônica sabia ser<br />

uma questão temporal, pois seu filho logo superaria.<br />

Quando Mônica levou aos mortos pão e vinho puro (antigo costume) e ficou<br />

sabendo da repreensão <strong>de</strong> Ambrósio a tal costume, imediatamente aceitou a or<strong>de</strong>m e<br />

pôs-se a reprovar seu hábito. Mônica fica agra<strong>de</strong>cida infinitamente a Ambrósio pela<br />

participação eficaz na vida do filho. Ambrósio igualmente via em Mônica uma gran<strong>de</strong><br />

mulher: mãe pie<strong>dos</strong>a.<br />

No coração <strong>de</strong> Agostinho, crescia ar<strong>de</strong>ntemente o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conversar com<br />

Ambrósio sobre to<strong>dos</strong> os problemas que o atormentavam, no entanto, sempre Ambrósio<br />

17


estava ocupado, e Agostinho procurando-o encontrava-lhe estudando e nem sequer<br />

ousava interrompê-lo. Mas, mesmo assim, com o passar do tempo <strong>de</strong>ixa-se levar pela<br />

verda<strong>de</strong> exposta por Ambrósio; cada vez mais Agostinho vê coerência na doutrina<br />

católica. Isso tudo graças a Ambrósio.<br />

Nesse momento da vida Agostinho passa a ver a Bíblia como fonte da Verda<strong>de</strong>;<br />

a autorida<strong>de</strong> da Sagrada Escritura é constatada por seus estu<strong>dos</strong>:<br />

A veracida<strong>de</strong> bíblica parecia-me tanto mais venerável e digna<br />

<strong>de</strong> fé sacrossanta quanto era claro que, possuindo a Escritura<br />

a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ser facilmente lida por to<strong>dos</strong> os homens,<br />

reservava a dignida<strong>de</strong> <strong>dos</strong> seus mistérios para uma percepção<br />

mais profunda (Agostinho, 1987, p. 94).<br />

Numa análise interessante sobre a vida <strong>de</strong> um mendigo bêbado, Agostinho vê<br />

sua pessoa como uma realida<strong>de</strong> complicada; muito mais complicada que a realida<strong>de</strong> do<br />

mendigo. O mendigo apesar <strong>de</strong> valorizar as coisas mundanas é aparentemente feliz<br />

(possui gran<strong>de</strong> alegria); em meio aos problemas consegue alegrar-se por pouca coisa;<br />

Agostinho, ao contrário, em meio aos problemas agarra-se a eles, não <strong>de</strong>ixando espaço<br />

<strong>às</strong> alegrias, mesmo que pequenas: “O ébrio curaria naquela noite a sua embriaguez, e eu<br />

já me <strong>de</strong>itara e erguera com a minha e com ela me havia <strong>de</strong> <strong>de</strong>itar e erguer. E reparai,<br />

Senhor, por quantos dias!” (Agostinho, 1987, p. 95).<br />

Alípio, gran<strong>de</strong> amigo <strong>de</strong> Agostinho, é companheiro das reflexões. Alípio teve<br />

Agostinho como mestre em Cartago. Por gostar muito <strong>dos</strong> jogos circenses e Agostinho<br />

bem sabendo disso, tomou <strong>de</strong> exemplo uma crítica aos jogos circenses (Agostinho<br />

morreu <strong>de</strong> medo <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r o aluno, pois tinha Alípio em gran<strong>de</strong> conta) que surtiu muito<br />

efeito na vida <strong>de</strong> Alípio, que aceitou para si aquela verda<strong>de</strong>, mudando sua conduta. Já<br />

aí, Deus se usava <strong>de</strong> Agostinho para guiar almas para Ele. Após tal episódio, Alípio<br />

pe<strong>de</strong> ao pai para que Agostinho seja seu mestre. Conce<strong>de</strong>ndo-lhe tal agrado Alípio<br />

também se tornará maniqueísta por gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> e conhecimento que ambos<br />

alcançaram conjuntamente.<br />

Posteriormente Alípio vai estudar direito em Roma, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ixou levar pelo<br />

prazer <strong>dos</strong> espetáculos <strong>dos</strong> gladiadores. Muito se conteve para não cair em tal tentação,<br />

porém, caindo em tentação não mais lhe bastou ir aos jogos, mas também, convidar a<br />

outros para tamanha festa. A fraqueza humana se vê claramente na pessoa <strong>de</strong> Alípio.<br />

Quando arrastado ao estádio segue relutante em não assistir aos espetáculos, contudo, a<br />

curiosida<strong>de</strong> o supera e, a partir daí, nada mais o segura.<br />

18


Outro fato muito curioso da vida <strong>de</strong> Alípio passou-se no Foro, on<strong>de</strong> este se<br />

preparava para um discurso. Neste mesmo tempo um ladrão tentou a<strong>de</strong>ntrar no Foro, e<br />

ao ser percebido <strong>de</strong>ixou para trás uma machadinha. Chegando Alípio por primeiro<br />

pegou a machadinha e chegam imediatamente após os guardas: o que fazer? Os guardas<br />

pren<strong>de</strong>m-no acreditando ser o verda<strong>de</strong>iro ladrão. Sorte <strong>de</strong> Alípio foi um arquiteto que<br />

cruzou o caminho seu e liberou-lhe da ca<strong>de</strong>ia. Logo acharam o verda<strong>de</strong>iro ladrão pela<br />

confissão <strong>de</strong> um escravo do ladrão. Alípio mais uma vez consegue escapar. Quanto a<br />

Nebrídio <strong>de</strong>ixou tudo o que possuía na tentativa <strong>de</strong> alcançar a Verda<strong>de</strong> ao lado <strong>de</strong><br />

Agostinho; era tenaz nas questões mais difíceis. Juntam-se, portanto, Agostinho, Alípio<br />

e Nebrídio em busca da verda<strong>de</strong>ira Sabedoria; através disso, buscam cada vez com<br />

maior perfeição a Sabedoria que tanto os preocupa.<br />

Agostinho já quer entregar-se totalmente a Deus, mas vai protelando a <strong>de</strong>cisão,<br />

pois possui muito medo do que po<strong>de</strong> acontecer:<br />

... enquanto os ventos alternavam e impeliam o meu coração<br />

para um e outro lado, o tempo fugia e eu tardava em<br />

converter-me ao Senhor. Adiava <strong>de</strong> dia para dia o viver em<br />

Vós, sem, contudo, diferir o morrer to<strong>dos</strong> os dias em mim<br />

mesmo. Desejando a vida feliz, temia buscá-la na sua<br />

morada. Procurava-a fugindo-lhe! (Agostinho, 1987, p. 101).<br />

A falta <strong>de</strong> fé em Deus e o medo da não-vivência da castida<strong>de</strong> ainda atormentam<br />

Agostinho que não consegue dar seu sim <strong>de</strong>finitivo a Deus; esse é o <strong>de</strong>sespero humano,<br />

on<strong>de</strong> o homem <strong>de</strong>ve confiar em Deus e “saltar” para Ele.<br />

Para Agostinho, o casamento era algo tido como necessário, pois não via a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manter a continência; chegou até a pedir a mão <strong>de</strong> uma moça em<br />

casamento, porém, ela não possuía a ida<strong>de</strong> mínima para o casamento e, por isso, teve<br />

que aguardar dois anos. Entretanto, no coração <strong>de</strong> Agostinho e seus amigos o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong><br />

viver em comunida<strong>de</strong> só se alargava e, por conseguinte, o <strong>de</strong>sejo do casamento<br />

esquecia-se. O <strong>de</strong>sejo da comunida<strong>de</strong> pelo Bem comum era enorme e envolvente; os<br />

amigos viam aí uma possibilida<strong>de</strong> real <strong>de</strong> se chegar à Verda<strong>de</strong> numa relação sadia.<br />

A continência era um gran<strong>de</strong> obstáculo para a santida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Agostinho. Este não<br />

conseguia ficar sem uma mulher. Era impaciente e cheio <strong>de</strong> ímpetos para com os<br />

prazeres mundanos.<br />

19


7. A caminho <strong>de</strong> Deus<br />

Contra o argumento <strong>dos</strong> maniqueístas, Agostinho só usa o argumento <strong>de</strong><br />

Nebrídio: “Que po<strong>de</strong>ria fazer contra Vós esta <strong>de</strong>sprezível raça <strong>de</strong> trevas – <strong>de</strong> que os<br />

maniqueístas se costumam servir como <strong>de</strong> massa hostil para Vos atacar – se não<br />

aceitásseis batalha contra ela?” (Agostinho, 1987, p. 108). Agostinho vai<br />

fundamentando racionalmente sua fé; percebe que a fé católica possui um claro<br />

embasamento racional; é a busca pela Verda<strong>de</strong>.<br />

Cada vez com maior força Agostinho tenta rebater as heresias; tenta assim,<br />

enten<strong>de</strong>r os problemas que tanto o afligem. A causa do mal muito o perturba; sabe que<br />

não po<strong>de</strong> ser Deus Criador doador <strong>de</strong> todo bem; don<strong>de</strong>, então, <strong>de</strong>riva o mal? Gran<strong>de</strong><br />

questão em Agostinho que, agora, confia em Deus e quer ver a realida<strong>de</strong> do Amor<br />

divino. Nenhuma alma po<strong>de</strong> conceber algo melhor que Deus: “... confessava que Vós,<br />

quem quer que fôsseis, não estáveis sujeito à corrupção” (Agostinho, 1987, p. 110).<br />

Deus é imutável, é o Bem Supremo. A fé <strong>de</strong> Agostinho cresce constantemente; a cada<br />

argumento, um <strong>de</strong>grau a mais na fé.<br />

Apesar <strong>de</strong> todas as indagações sobre o problema do mal, Agostinho abraça a fé<br />

com maior vigor a cada dia; vê na doutrina católica as possíveis respostas para seus<br />

questionamentos. Mesmo ainda não vivendo a doutrina com perfeição, quer, agora,<br />

vivê-la com autenticida<strong>de</strong> em busca da Sabedoria (Deus).<br />

O Amor <strong>de</strong> Deus vem em auxílio <strong>de</strong> Agostinho. A dor humana passa conforme a<br />

pessoa se abre ao Amor divino, que é refúgio e consolação: “O meu tumor <strong>de</strong>crescia ao<br />

contato da mão oculta da vossa medicina” (Agostinho, 1987, p. 115).<br />

Por influência <strong>de</strong> obras platônicas, Agostinho <strong>de</strong>para-se com a realida<strong>de</strong> do<br />

Verbo (Deus) que se fez homem e habitou no meio <strong>dos</strong> homens. Isto lhe fascina e faz<br />

com que sua vida sofra uma guinada, voltando-se, ainda mais, para Deus. Com a<br />

influência <strong>de</strong>ssas obras, Agostinho se vê impelido a continuar sua busca pelo Deus<br />

Criador Amor; suas dúvidas vão se dissipando; a Sabedoria está se revelando a<br />

Agostinho.<br />

Neste ponto da caminhada agostiniana talvez se trate <strong>de</strong> um <strong>dos</strong> pontos mais<br />

belos da conversão <strong>de</strong> Agostinho. Este se volta para o interior e encontra Deus: “...<br />

20


aconselhado a voltar a mim mesmo, recolhi-me ao coração, conduzido por Vós. Pu<strong>de</strong><br />

fazê-lo, porque Vos tornastes meu auxílio” (Agostinho, 1987, p. 117). O homem<br />

questiona-se a si mesmo, buscando em si mesmo a Deus, porque Deus habita no<br />

homem. Através <strong>de</strong>sse método o homem reflete sobre si e encontra Deus no mais<br />

íntimo; Deus que perscruta os corações humanos e dá-lhes a sua graça: “Vós<br />

respon<strong>de</strong>stes-me <strong>de</strong> longe: ‘Sim, Eu sou o que Sou’. E ouvi como se ouve no coração,<br />

sem ter motivo algum para duvidar. Mais facilmente duvidaria da minha vida do que da<br />

existência da Verda<strong>de</strong>, cujo conhecimento se apreen<strong>de</strong> por meio das coisas criadas”<br />

(Agostinho, 1987, p. 117). Agostinho encontra Deus claramente no seu coração e isso<br />

modifica profundamente todo seu ser; não há mais como voltar; a Verda<strong>de</strong> é clara.<br />

No problema do mal, Agostinho consegue perceber que não se trata <strong>de</strong> uma<br />

substância: “... aquele mal que eu procurava não é uma substância, pois, se fosse<br />

substância, seria um bem” (Agostinho, 1987, p. 118). O mal, na verda<strong>de</strong>, é uma<br />

dissonância para com o bem. O mal é a privação do bem.<br />

Quer Agostinho um caminho para chegar a Deus; um caminho seguro, um<br />

verda<strong>de</strong>iro mediador. Esse verda<strong>de</strong>iro mediador é Cristo Jesus. Agostinho ainda não<br />

possuía uma boa consciência acerca da realida<strong>de</strong> da encarnação do Cristo. Nas obras<br />

platônicas, Agostinho reconhece gran<strong>de</strong> semelhança com a doutrina católica, tanto é que<br />

acredita ter tido a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> chegar próximo <strong>de</strong> Deus pelos platônicos. Em São<br />

Paulo, Agostinho tem algumas dúvidas dissipadas, pois via na Bíblia algumas<br />

contradições. Vê através da Sagrada Escritura as faltas das obras platônicas. Falta aos<br />

platônicos o Deus Amor.<br />

8. A conversão<br />

Nesta etapa da vida Agostinho não se <strong>de</strong>leita mais com alguns prazeres da carne<br />

que antes o faziam encantar. Já se direcionava para Deus <strong>de</strong> tal forma que não podia<br />

mais voltar. Não consegue ainda ser casto; sofre muito por isso; sente-se muito ligado a<br />

uma figura feminina: “... estava tenazmente ligado à mulher” (Agostinho, 1987, p. 129).<br />

Porém, nesse momento, <strong>de</strong>seja livrar-se disso e ser totalmente entregue a Deus; um<br />

eunuco por escolha.<br />

21


Agostinho <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> ir falar com Simpliciano sobre seus erros; este lhe dá parabéns<br />

pela leitura das obras platônicas: “... sugerem, <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os mo<strong>dos</strong>, Deus e o seu Verbo”<br />

(Agostinho, 1987, p. 130). Durante a conversa Simpliciano conta-lhe a conversão <strong>de</strong><br />

Vitorino, gran<strong>de</strong> orador <strong>de</strong> Roma. Vitorino pesquisou muito sobre a Verda<strong>de</strong> na<br />

Revelação Cristã. Ao passo que a encontrou disse a si que era cristão, porém, receava as<br />

calúnias e zombarias <strong>dos</strong> amigos. Dizia Vitorino a Simpliciano: “‘Sabes que já sou<br />

cristão?’ E aquele respondia-lhe: ‘Não acreditarei em ti nem te contarei entre os cristãos<br />

enquanto te não vir na Igreja <strong>de</strong> Cristo’. Vitorino sorria, dizendo: ‘Portanto, são as<br />

pare<strong>de</strong>s da igreja que nos fazem cristãos?’” (Agostinho, 1987, p. 131). Com esse<br />

discurso Vitorino ia protelando sua real conversão; da mesma forma, Agostinho lutava<br />

para entregar-se totalmente a Deus. No entanto, com o passar do tempo, Vitorino<br />

temendo envergonhar-se <strong>de</strong> Deus na terra e ser rejeitado pelo mesmo no Céu, tornou-se<br />

cristão, proferindo a fórmula <strong>de</strong> fé na frente <strong>de</strong> toda a plebe romana. Passou a não ter<br />

vergonha <strong>de</strong> Deus.<br />

A <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> Deus já é presente; reconhece que o Bem advém <strong>de</strong> Deus e<br />

quer a graça <strong>de</strong> Deus na vida. Esse é o novo <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> Agostinho: “Vin<strong>de</strong> abrasar-nos e<br />

arrebatai-nos, inflamai-nos, enchei-nos <strong>de</strong> doçura: amemos, corramos” (Agostinho,<br />

1987, p. 133).<br />

A vida <strong>de</strong> Agostinho toma rumos complica<strong>dos</strong>. Vê-se agora em meio a duas<br />

vonta<strong>de</strong>s que perpassam seu coração. Ainda está ligado à luxúria e <strong>de</strong>seja ar<strong>de</strong>ntemente<br />

abraçar a vida cristã; porém, ainda tomado pela outra vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong>mora a se <strong>de</strong>cidir: “...<br />

enquanto se serve à luxúria, contrai-se o hábito; e, se não se resiste a um hábito, origina-<br />

se uma necessida<strong>de</strong>” (Agostinho, 1987, p. 134). As duas vonta<strong>de</strong>s coexistem em<br />

Agostinho e a <strong>de</strong>cisão é muita dolorosa, causando-lhe gran<strong>de</strong> luta no seu interior; o<br />

homem se vê frágil, pois não consegue ser reto e <strong>de</strong>cidir, encontra gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong><br />

em tal empreita:<br />

A vonta<strong>de</strong> nova, que começava a existir em mim, a vonta<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Vos honrar gratuitamente e <strong>de</strong> querer gozar <strong>de</strong> Vós, ó<br />

meu Deus, único contentamento seguro, ainda se não achava<br />

apta para superar a outra vonta<strong>de</strong>, fortificada pela<br />

concupiscência. Assim, duas vonta<strong>de</strong>s, uma concupiscente,<br />

outra dominada, uma carnal e outra espiritual, batalhavam<br />

mutuamente em mim. Discordando, dilaceravam-me a alma<br />

(Agostinho, 1987, p. 134-135).<br />

22


Nesse momento, Agostinho não tem dúvida que a escolha por Cristo é a melhor;<br />

sente que <strong>de</strong>ve levantar-se e ir para Cristo: “Também eu estava certo <strong>de</strong> que o entregar-<br />

se ao vosso amor era melhor que ce<strong>de</strong>r ao meu apetite” (Agostinho, 1987, p. 135).<br />

Agostinho reconhece que a graça <strong>de</strong> Deus é a única que po<strong>de</strong> salvar-lhe do pecado, pois<br />

não vê outra saída. O homem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus.<br />

Gran<strong>de</strong> influência na vida <strong>de</strong> Agostinho tem uma conversa com Ponticiano, este<br />

lhe conta a vida <strong>de</strong> Santo Antão, monge do Egito, que, até então, era <strong>de</strong>sconhecido a<br />

Agostinho e Alípio. Ponticiano fala sobre as maravilhas da vida <strong>de</strong> Antão e isso<br />

maravilha Agostinho. Alguns amigos <strong>de</strong> Ponticiano ao lerem a vida <strong>de</strong> Santo Antão<br />

convertem-se e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m morar em mosteiros; estes eram noivos, porém, não temem e<br />

confiam na graça <strong>de</strong> Deus; quando as noivas ficaram sabendo da <strong>de</strong>cisão consagraram-<br />

se também a Deus, guardando a virginda<strong>de</strong>.<br />

Durante a narrativa <strong>de</strong> Ponticiano, Agostinho reflete sobre sua vida tentando<br />

fugir <strong>de</strong> si mesmo; enxerga suas manchas; é posto frente a frente consigo mesmo; <strong>de</strong>ssa<br />

forma, encara o real homem que vive <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le mesmo:<br />

Isto me contava Ponticiano. Mas Vós, Senhor, enquanto ele<br />

falava, fazíeis-me refletir sobre mim mesmo, tirando-me da<br />

posição <strong>de</strong> costas em que me tinha posto para eu próprio me<br />

não po<strong>de</strong>r ver. Colocáveis-me perante o meu rosto, para que<br />

visse como andava torpe, disforme, sujo, manchado e<br />

ulceroso (Agostinho, 1987, p. 138).<br />

Agostinho possui consciência plena que não po<strong>de</strong> pedir imediatamente a graça<br />

<strong>de</strong> Deus, porque sabe que se pedir Deus a dará, e ele não a quer imediatamente: “‘Dai-<br />

me a castida<strong>de</strong> e a continência; mas não ma <strong>de</strong>is já’” (Agostinho, 1987, p. 138).<br />

A perturbação interior <strong>de</strong> Agostinho é nítida, pois seu coração ar<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejos<br />

pelo Deus vivificante, todavia, se vê em meio a tantas ninharias; é, <strong>de</strong> certa forma, até<br />

escrupuloso, porque não consegue admitir essa divisão que irrompeu no mais íntimo do<br />

seu coração; não quer mais viver dividido; precisa, nesse momento, optar: cá ou lá; este<br />

ou aquele. Reclama com Alípio e, em seguida, dirige-se a um jardim fora <strong>de</strong> casa.<br />

Alípio segue Agostinho, entretanto, a solidão <strong>de</strong> Agostinho permanece, pois sua luta<br />

interior o mantém concentrado. Agostinho precisa encontrar uma saída para seu dilema,<br />

e, por isso, a procura incessantemente no seu interior.<br />

A <strong>de</strong>cisão por Cristo começa a tomar conta <strong>de</strong> Agostinho; a <strong>de</strong>cisão tem que ser<br />

tomada e Agostinho pen<strong>de</strong> para Cristo impacientemente: “‘Vai ser agora, agora<br />

23


mesmo’. E pelas palavras caminhava para a <strong>de</strong>cisão final” (Agostinho, 1987, p. 142).<br />

Não via outro caminho senão o da castida<strong>de</strong>, pois Deus o chamava para tal vocação:<br />

“Do lado para on<strong>de</strong> voltava o rosto e por on<strong>de</strong> temia passar, abria-se diante <strong>de</strong> mim a<br />

casta dignida<strong>de</strong> da continência, serena, sem alegria <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada. Convidava-me,<br />

acariciando-me honestamente, para que viesse sem receios” (Agostinho, 1987, p. 143).<br />

Agostinho está realmente impelido a abraçar a vida casta, aceitando a graça <strong>de</strong> Deus na<br />

sua vida. Sua conversão está próxima.<br />

Toda a miséria <strong>de</strong> Agostinho “posta à vista” fez com que as lágrimas o<br />

abraçassem; para isso, afastou-se <strong>de</strong> Alípio, a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r chorar quietamente. Durante<br />

o pesado choro <strong>de</strong> Agostinho, eis que surge uma voz: “Não sei se era <strong>de</strong> menino, se <strong>de</strong><br />

menina. Cantava e repetia freqüentes vezes: ‘Toma e lê; toma e lê’” (Agostinho, 1987,<br />

p. 144). Enten<strong>de</strong> Agostinho que sua conversão <strong>de</strong>finitiva está muito próxima; busca,<br />

então, on<strong>de</strong> foi or<strong>de</strong>nado: na Palavra. Somente abre e lê: “Como <strong>de</strong> dia, an<strong>de</strong>mos<br />

<strong>de</strong>centemente; não em orgias e bebe<strong>de</strong>iras, nem em <strong>de</strong>vassidão e libertinagem, nem em<br />

rixas e ciúmes. Mas vesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis satisfazer os<br />

<strong>de</strong>sejos da carne”. 16 Isso bastou. Agostinho sente-se um novo homem; seu caminho<br />

volta-se somente a Deus; tudo na vida <strong>de</strong> Agostinho passa a conduzir a Deus. Em<br />

seguida, Alípio e Agostinho vão até Mônica contar-lhe tudo e: “Ela rejubila”<br />

(Agostinho, 1987, p. 144). Mônica só louva ao Pai, pois seus pedi<strong>dos</strong> foram atendi<strong>dos</strong>.<br />

A alegria é enorme. Filhos pródigos voltam ao Pai.<br />

9. O batismo<br />

Após a conversão Agostinho <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> abandonar a cátedra. Não quer mais<br />

propiciar peca<strong>dos</strong> aos alunos por suas aulas. Porém, precisa terminar o ano letivo (que já<br />

estava se encerrando) para que <strong>de</strong>ixe a cátedra sem alar<strong>de</strong>. Agora seria somente <strong>de</strong> Deus<br />

e nada mais. Seu olhar voltou-se completamente para Deus.<br />

Nesta nova vida <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>, Agostinho e seus amigos ganham uma<br />

proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Verecundo em Cassicíaco. Verecundo <strong>de</strong>sejava ar<strong>de</strong>ntemente morar na<br />

comunida<strong>de</strong>, porém, sua mulher o travava. Pouco tempo <strong>de</strong>pois Verecundo falece; a dor<br />

<strong>de</strong> Agostinho é gran<strong>de</strong>, todavia, encara a morte com o olhar cristão, aguardando e<br />

16 Rm 13, 13-14.<br />

24


esperando o Céu para ele. A vida é renovada; a alegria toma conta da nova comunida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Cassicíaco. Gran<strong>de</strong>s júbilos a Deus. Gran<strong>de</strong>s vivências. Gran<strong>de</strong> fé.<br />

Agostinho se liberta da profissão <strong>de</strong> retórico, porém, percebe-se nos seus<br />

primeiros escritos em Cassicíaco 17 um teor filosófico, repleto <strong>de</strong> práticas retóricas. O<br />

homem, para Agostinho, <strong>de</strong>ve buscar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si mesmo a Deus 18 através da reflexão:<br />

“Tremei e não pequeis, refleti no vosso leito e ficai em silêncio”; 19 através da reflexão o<br />

homem encontrar-se-á com Deus, verá o Deus que “habita” no seu íntimo: “Iahweh,<br />

levanta sobre nós a luz da tua face”. 20<br />

Num período <strong>de</strong> conveniência Agostinho e Alípio voltam a Milão para<br />

inscreverem-se entre os catecúmenos, a fim <strong>de</strong> receberem o Batismo. Junto <strong>de</strong>les estava<br />

também A<strong>de</strong>odato. Então chega o tão esperado momento: “Recebemos o batismo e<br />

abandonou-nos a preocupação da vida passada” (Agostinho, 1987, p. 156).<br />

A “comunida<strong>de</strong>” continuava a procurar um lugar a<strong>de</strong>quado para o convívio;<br />

estando em Óstia, prontos para retornar à África, morre Mônica: “... em Óstia, na foz do<br />

Tibre, faleceu minha mãe” (Agostinho, 1987, p. 157). Agostinho louva sua mãe, vendo<br />

nela gran<strong>de</strong>s dons <strong>de</strong> Deus; louva Deus através da vida <strong>de</strong> Mônica: “... pela carne, me<br />

concebeu para a vida temporal, e pelo coração me fez nascer para a eterna” (Agostinho,<br />

1987, p. 157). Mônica, conta Agostinho, na juventu<strong>de</strong>, não era permitida nem sequer <strong>de</strong><br />

beber água, a fim <strong>de</strong> repreen<strong>de</strong>r o possível vício da bebida. Porém, como era filha muito<br />

sóbria, os pais a mandavam tirar o vinho da a<strong>de</strong>ga, e Mônica sendo muito esperta: “...<br />

sorvia com a ponta <strong>dos</strong> lábios um poucochinho, ...” (Agostinho, 1987, p. 158). Com o<br />

tempo, escorregou para o hábito <strong>de</strong> beber copos <strong>de</strong> vinho. No entanto, certo dia a<br />

escrava que costumava acompanhá-la ao tonel, chamou-lhe <strong>de</strong> “bêbada!”. No mesmo<br />

instante, Mônica repreen<strong>de</strong>u-se para não mais cair no mesmo erro; reprovou<br />

imediatamente seu mau hábito. Agostinho percebe até aí a mão <strong>de</strong> Deus na vida <strong>de</strong> sua<br />

serva.<br />

Agostinho ressalta também a gran<strong>de</strong> paciência <strong>de</strong> Mônica no casamento, pois<br />

apesar <strong>de</strong> algumas infi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>s no casamento, mantinha-se firme na esperança <strong>de</strong> que<br />

Deus conseguisse fazer <strong>de</strong> Patrício um homem casto. Mônica aconselhava senhoras para<br />

que não falassem grosserias <strong>dos</strong> mari<strong>dos</strong>. Não havia dúvida <strong>de</strong> que se tratava <strong>de</strong> uma<br />

17 Contra os Acadêmicos; Da Vida Feliz; Da Or<strong>de</strong>m e Solilóquios.<br />

18 Na doutrina <strong>de</strong> Agostinho, a busca humana pelo encontro consigo mesmo e, conseqüentemente, com<br />

Deus é algo muito claro.<br />

19 Sl 4, 5.<br />

20 Sl 4, 7.<br />

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gran<strong>de</strong> mulher: humil<strong>de</strong>, pie<strong>dos</strong>a, “escrava” <strong>de</strong> cada um: “... meus filhos, por quem<br />

sofro <strong>de</strong> novo as dores do parto, até que Cristo seja formado em vós”. 21<br />

Estando Agostinho e Mônica numa janela da casa em Óstia, on<strong>de</strong> aguardavam<br />

para embarcar, começaram a falar sobre o Céu: algo que ninguém viu, ouviu ou sequer<br />

sentiu. Pouco a pouco a conversa <strong>de</strong> ambos foi se elevando a assuntos mais eleva<strong>dos</strong>:<br />

“Enquanto assim falávamos, anelantes pela Sabedoria, atingimo-la momentaneamente<br />

num ímpeto completo do nosso coração. Suspiramos e <strong>de</strong>ixamos lá agarradas ‘as<br />

primícias do nosso espírito’” (Agostinho, 1987, p. 161). Esse é o êxtase <strong>de</strong> Óstia, on<strong>de</strong><br />

Mônica percebe que para mais nada precisam <strong>de</strong>la em vida; entrega-se totalmente à<br />

vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus, para que assim, possa chegar à Felicida<strong>de</strong> Eterna: “Que faço eu, pois,<br />

aqui?” (Agostinho, 1987, p. 162).<br />

Logo Mônica cai em gran<strong>de</strong> febre. Num dia <strong>de</strong> sua doença repreen<strong>de</strong>u aos filhos<br />

sobre o cuidado para com o corpo, afirmando não ser necessário enterrá-la na pátria,<br />

pois o importante era estar ligada a Deus: “Só vos peço que vos lembreis <strong>de</strong> mim diante<br />

do altar do Senhor, on<strong>de</strong> quer que estejais” (Agostinho, 1987, p. 162). As dores<br />

aumentaram e, com isso: “... no nono dia da doença, aos cinqüenta e seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>,<br />

e no trigésimo terceiro <strong>de</strong> minha vida, aquela alma pie<strong>dos</strong>a e santa libertou-se do corpo”<br />

(Agostinho, 1987, p. 163).<br />

A dor e as lágrimas invadiram a alma <strong>de</strong> to<strong>dos</strong> os presentes, porém, Agostinho e<br />

seus amigos tiveram fé na ressurreição <strong>de</strong> Mônica. Assim, sabiam que não se tratava <strong>de</strong><br />

uma morte total (aniquilamento), mas sim, <strong>de</strong> uma separação momentânea. Agostinho<br />

sofre muito com o funeral da mãe, pois não consegue chorar e a dor contida no seu peito<br />

é oprimente. Somente sozinho após o funeral conseguirá chorar, on<strong>de</strong> as lágrimas<br />

rolaram livremente e um pouco da tristeza rolou juntamente.<br />

No final do Livro IX Agostinho faz gran<strong>de</strong> prece a Deus para que tenha sua mãe<br />

e seu pai em gran<strong>de</strong> conta na Jerusalém Celeste; tenta cumprir o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sua mãe para<br />

lembrar-lhe no altar do Senhor.<br />

21 Gal 4, 19.<br />

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10. O encontro <strong>de</strong> Deus<br />

Nesse momento da vida, Agostinho já anseia somente pelo conhecimento <strong>de</strong><br />

Deus; por isso, pe<strong>de</strong> a Deus a graça <strong>de</strong> conhecê-lo, pois seu maior <strong>de</strong>sejo é divulgar a<br />

gran<strong>de</strong> Verda<strong>de</strong> que é Deus.<br />

Deus conhece tudo no homem; nada no homem é oculto a Deus. As <strong>Confissões</strong><br />

<strong>de</strong> Agostinho são o gran<strong>de</strong> resultado das palavras da alma; palavras que Deus já<br />

conhece, visto que perscruta o recôndito <strong>dos</strong> corações. As <strong>Confissões</strong> são em silêncio e<br />

não são em silêncio: “É em silêncio quanto <strong>às</strong> palavras; mas é em clamor quanto aos<br />

afetos” (Agostinho, 1987, p. 171).<br />

Para Agostinho, o homem <strong>de</strong>ve escutar por si só a voz <strong>de</strong> Deus que ressoa no<br />

seu coração; não que por isso suas <strong>Confissões</strong> sejam inúteis aos homens, mas no sentido<br />

que lendo a vida <strong>de</strong> Agostinho os maus se arrependam e corram para Deus e os bons se<br />

lembrem do passado “torto” e louvem a Deus. Agostinho reconhece para si e para os<br />

<strong>de</strong>mais homens que o fato <strong>de</strong> se dizer a verda<strong>de</strong> e outro acreditar está intrinsecamente<br />

ligado à carida<strong>de</strong>, pois “É ela quem os faz acreditar em mim” (Agostinho, 1987, p. 172).<br />

A carida<strong>de</strong> transforma o coração humano; com isso, existe um ato <strong>de</strong> fé na palavra <strong>de</strong><br />

outrem.<br />

A preocupação <strong>de</strong> Agostinho ao longo do livro se modifica; agora, quer através<br />

<strong>de</strong> sua obra mostrar o que é, e o que ainda é. Deseja mostrar o homem em que se<br />

transformou pela misericórdia <strong>de</strong> Deus: “Revelarei, pois, àqueles a quem me mandais<br />

servir, não o que fui, mas o que já sou e o que ainda sou” (Agostinho, 1987, p. 173).<br />

As obras <strong>de</strong> Deus servem para louvá-lo, pois todas falam Dele; não O são,<br />

porém, falam Dele. Agostinho pergunta à terra, ao mar, aos abismos, aos répteis, ao ar e<br />

to<strong>dos</strong> dizem: “Não somos Deus; mas foi Ele quem nos criou”. Agostinho reconhece a<br />

gran<strong>de</strong> importância da alma e, por isso, a afirma como superior ao corpo: “Por isso te<br />

digo, ó minha alma, que és superior ao corpo, porque vivificas a matéria do teu corpo,<br />

dando-lhe vida, o que nenhum corpo po<strong>de</strong> fazer a outro corpo” (Agostinho, 1987, p.<br />

175).<br />

A alma, para Agostinho, é a ponte que o conduzirá até Deus. Libertar-se-á das<br />

forças físicas e chegará a Deus. Essa força espiritual tem que ser maior que a força<br />

física, caso contrário, alguns animais po<strong>de</strong>riam chegar a Deus.<br />

27


10.1 “Palácios da memória”<br />

Ao sair das forças naturais Agostinho <strong>de</strong>para-se com os vastos campos da<br />

memória, on<strong>de</strong> está tudo que se pensa; estão todas as imagens. Algumas imagens<br />

aparecem rapidamente, outras estão bem escondidas e requerem esforço para serem<br />

encontradas. Na memória são as imagens que ficam alojadas, nunca os objetos; nela<br />

ficam postas as sensações <strong>dos</strong> cinco senti<strong>dos</strong>. Ao recorrer à memória, é possível se<br />

lembrar <strong>de</strong> algo mesmo sem ter acesso a nenhum <strong>dos</strong> senti<strong>dos</strong> utiliza<strong>dos</strong> para o<br />

conhecimento do objeto: “Se me apetece chamá-los, imediatamente se apresentam.<br />

Então, estando a língua em repouso e a garganta em silêncio, canto o que me apraz”<br />

(Agostinho, 1987, p. 177). É até um ato humano muito estranho se admirar<br />

imensamente com as obras naturais e se esquecer da grandiosida<strong>de</strong> da memória, que,<br />

por sua vez, possibilita ao mesmo homem guardar tantas lembranças da vida.<br />

Na memória intelectual encontra-se também o apreendido nas artes liberais.<br />

Esses conhecimentos estão como que retira<strong>dos</strong>, num lugar mais reservado. Na memória<br />

tem-se: Ciência (está na memória sem imagens) e Imagens <strong>de</strong> objetos (estão na<br />

memória por uma imagem). Sobre algo, o homem sempre se faz três questionamentos:<br />

“a saber: ‘se uma coisa existe (an sit?), qual a sua natureza (quid sit?) e qual a sua<br />

qualida<strong>de</strong> (quale sit?)’, ...” (Agostinho, 1987, p. 179). Retém-se o significado <strong>de</strong>las,<br />

porém, não foi por meio <strong>de</strong> nenhum sentido que entraram na memória. Por on<strong>de</strong><br />

entraram? Respon<strong>de</strong> Agostinho: “Ignoro-o, ...” (Agostinho, 1987, p. 179). Existem no<br />

homem algumas idéias inatas, porém, só formam um saber se se as reunir no<br />

pensamento. Essas idéias precisam ser relembradas, pois já foram conhecidas certa vez.<br />

Agostinho, nesse ponto, faz uma divisão na memória: memória sensitiva (guarda a<br />

imagem) e memória intelectual (guarda a idéia). A memória <strong>dos</strong> números e das<br />

dimensões não foi proporcionada pelos senti<strong>dos</strong>. A memória também funciona como<br />

algo que se lembra <strong>de</strong> lembrar, pois é através disso que o “eu” é mantido; o homem<br />

lembra-se do “eu” constantemente para po<strong>de</strong>r assim reconhecer-se como o próprio “eu”<br />

e não como algo diferente.<br />

Na memória estão todas as lembranças <strong>dos</strong> afetos da alma; o corpo chega a<br />

sentir o afeto passado. Algo importante na exposição <strong>de</strong> Agostinho é que a memória se<br />

i<strong>de</strong>ntifica com o espírito: “... o espírito é a memória” (Agostinho, 1987, p. 181). A<br />

28


memória é como que o estômago da alma, on<strong>de</strong> os alimentos se fixam, porém, aí não<br />

ficam os sabores, somente os alimentos: “... a memória é como o ventre da alma”<br />

(Agostinho, 1987, p. 181). Para se falar das perturbações da alma (<strong>de</strong>sejo, alegria, medo<br />

e tristeza) recorre-se também à memória, pois é aí que se po<strong>de</strong> recordar-se <strong>de</strong>las. É<br />

necessário ao homem possuir a memória das coisas ausentes, pois é isso que garante a<br />

comparação e o próprio sonho. Recordo algo sem o ter presente. Lembra-se da saú<strong>de</strong><br />

quando está doente; não se tem saú<strong>de</strong> presente quando se está doente, no entanto, o<br />

homem quer a saú<strong>de</strong>, porque se recorda <strong>de</strong>la e sabe o quanto é melhor que a doença.<br />

Agostinho trata também do paradoxo memória-esquecimento. Se se tem esquecimento<br />

não se tem memória, porém, o próprio esquecimento é objeto da memória; como<br />

explicar isso? “... a memória retém o esquecimento” (Agostinho, 1987, p. 182). Quando<br />

se ouve a palavra esquecimento lembra-se do que ele é. Quando ele está na memória<br />

não é ele que está, mas uma imagem sua.<br />

Reconhece pelo próprio estudo da memória a grandiosida<strong>de</strong> humana; o homem<br />

navega pelos palácios da memória. Porém, tudo só tem sentido se conduz para Deus.<br />

Agostinho preten<strong>de</strong> subir pela memória até Deus. O próprio homem é maior que os<br />

animais; estes possuem memória, pois, por exemplo, voltam para os seus ninhos;<br />

contudo, o homem <strong>de</strong>ve subir além da memória para chegar a Deus, visto que é superior<br />

aos animais.<br />

Outro ponto importante da memória é a relação do objeto perdido. Quando se<br />

per<strong>de</strong> algo, conserva-se na memória sua imagem, porque é esta imagem que possibilita<br />

a procura do que está perdido, e também o que possibilita o reconhecimento no ato do<br />

encontro. Quando se esquece <strong>de</strong> algo, o homem começa a questionar a memória, a fim<br />

<strong>de</strong> encontrar o que está ausente presentemente. Gera-se um esforço para se lembrar.<br />

Agostinho acredita que o homem busca a Felicida<strong>de</strong> em Deus porque se lembra, no<br />

profundo íntimo, do ser <strong>de</strong> Deus e, por isso, <strong>de</strong>seja lembrar-se totalmente <strong>de</strong> Deus. O<br />

homem já <strong>de</strong>ve ter experimentado a Felicida<strong>de</strong> para buscá-la <strong>de</strong> maneira tão veemente.<br />

Todo ser humano busca a verda<strong>de</strong>, pois não se alegra com a falsida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>-se até<br />

querer enganar, mas nunca ser enganado. To<strong>dos</strong> buscam a verda<strong>de</strong>. O motivo da<br />

infelicida<strong>de</strong> humana está ligado, sobretudo, à recordação muito vaga da Felicida<strong>de</strong>, e,<br />

<strong>de</strong>vido a isso andar-se por caminhos <strong>de</strong>sgraça<strong>dos</strong>. A alma só se alegrará na Verda<strong>de</strong>. Na<br />

memória Agostinho chega a Deus; não se esquece Dele por conta da memória. A<br />

memória é dom da misericórdia divina. Agostinho procura por to<strong>dos</strong> os lugares da<br />

memória, on<strong>de</strong> Deus resi<strong>de</strong>, e não O encontra, porém, sabe que Deus ali está, pois se<br />

29


ecorda. Assim, conclui: é na memória que o homem <strong>de</strong>para-se com Ele. Entretanto,<br />

on<strong>de</strong> Agostinho encontrou Deus para lembrar-se Dele?<br />

Agostinho vê então que esteve tão longe <strong>de</strong> Deus porque quis; o homem só se<br />

afasta <strong>de</strong> Deus porque <strong>de</strong>seja; Ele nunca se afasta do homem. No entanto, Agostinho<br />

também vê que esteve tão próximo <strong>de</strong> Deus porque o mesmo habitava no seu interior. O<br />

novo homem Agostinho confia inteiramente em Deus: “Só na gran<strong>de</strong>za da vossa<br />

misericórdia coloco toda a minha esperança. Dai-me o que me or<strong>de</strong>nais, e or<strong>de</strong>nai-me o<br />

que quiser<strong>de</strong>s” (Agostinho, 1987, p. 191).<br />

As menores imperfeições da vida também são relatadas por Agostinho, visto que<br />

ainda sofre com algumas tentações e procura trabalhá-las, a fim <strong>de</strong> não mais se<br />

incomodar com elas; mostra o homem que se tornou após a conversão, porém, ainda é<br />

pecador, mas um pecador que confia em Deus para não mais pecar. Sofre muito durante<br />

o sono; muitas ações passadas o incomodam; advém pensamentos ina<strong>de</strong>qua<strong>dos</strong>. Durante<br />

o sono as ações que Agostinho relata são meio que inconscientes, entrementes, é sempre<br />

ele mesmo; como controlar o pensamento mesmo no sono? Travava também gran<strong>de</strong>s<br />

lutas contra a gula; o que basta à saú<strong>de</strong> é insuficiente ao prazer e com essa <strong>de</strong>sculpa da<br />

saú<strong>de</strong> busca-se o prazer. Agostinho se vê como um homem que caminha entre o Bem e<br />

o pecado; ora consegue fazer o Bem, ora não consegue. Sofre muito com as músicas,<br />

pois elas o levam a <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> lado a razão usando somente os senti<strong>dos</strong>, o que o leva a<br />

pecar algumas vezes. São nesses peca<strong>dos</strong> que Agostinho vê a dificulda<strong>de</strong> da santida<strong>de</strong>;<br />

eles o impe<strong>de</strong>m <strong>de</strong> ser mais santo, todavia, pe<strong>de</strong> a graça <strong>de</strong> Deus para que cada vez seja<br />

mais santo.<br />

O <strong>de</strong>sejo carnal <strong>de</strong> conhecer tudo toma, por vezes, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Agostinho. Quer<br />

conhecer tudo a fim <strong>de</strong> tudo dominar. Para isso, usa-se do artifício do conhecimento;<br />

com ele, camufla-se a “curiosida<strong>de</strong>”. Porém, Agostinho não esquece nunca: “A minha<br />

única esperança é a vossa infinita misericórdia” (Agostinho, 1987, p. 199). Reconhece<br />

suas misérias e sabe, portanto, que tem <strong>de</strong> confiar em Deus; não há outra possibilida<strong>de</strong><br />

ao homem senão confiar Nele. O homem quer ser Deus, no entanto, não é; e, por isso,<br />

<strong>de</strong>ve confiar somente em Deus; reconhecer que <strong>de</strong> Deus advém to<strong>dos</strong> os dons e, por<br />

isso, o homem louva a Deus pelo dom recebido por meio da graça.<br />

Na sua vida Agostinho reconhece Deus como o reduto da sua alma; passa a ver<br />

que tudo flui para Ele; mas, <strong>às</strong> vezes, <strong>de</strong>ixa-se levar pelas coisas baixas. Essa é a luta<br />

humana: ir para Deus com os pés no chão, lembrando-se que ainda é homem, isto é,<br />

sujeito ao pecado. Nesse ponto, Agostinho reconhece Cristo Jesus como verda<strong>de</strong>iro<br />

30


mediador entre o Pai e o homem, presente do Pai à humanida<strong>de</strong>: “Quem não poupou o<br />

seu próprio Filho e o entregou por to<strong>dos</strong> nós, como não nos haverá <strong>de</strong> agraciar em tudo<br />

junto com ele?”. 22<br />

11. O homem e o tempo<br />

O homem louva a Deus para po<strong>de</strong>r melhorar enquanto homem mesmo; o<br />

indivíduo necessita da oração a fim <strong>de</strong> se lembrar do Amor e louvar constantemente a<br />

Deus, criador <strong>de</strong> tudo: “Não é, certamente, para que os conheçais por mim, mas para<br />

excitar o meu afeto para convosco...” (Agostinho, 1987, p. 209).<br />

As coisas existem e estão sujeitas à mudança; por isso, Agostinho vê nas coisas<br />

novas, certa <strong>de</strong>pendência das antigas e, acredita que tudo já está contido na matéria<br />

criada por Deus a partir do nada; então, Deus <strong>de</strong>u “rationes seminales”, a fim da matéria<br />

po<strong>de</strong>r se modificar ao longo do tempo e, assim, surgirem novas coisas, porém: “Ainda<br />

mesmo o que não foi criado e todavia existe nada tem em si que antes não existisse”<br />

(Agostinho, 1987, p. 211).<br />

A matéria usada por Deus foi criada por Ele mesmo, porém, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem essa<br />

matéria? Como ela é criada? Agostinho muito se pergunta e chega a uma conclusão: “...<br />

falastes, e os seres foram cria<strong>dos</strong>. Vós os criastes pela vossa palavra!” (Agostinho,<br />

1987, p. 213). Deus cria pela palavra que é o Verbo: “... o qual é pronunciado por toda a<br />

eternida<strong>de</strong> e no qual tudo é pronunciado eternamente” (Agostinho, 1987, p. 213). E, por<br />

isso, não se trata <strong>de</strong> uma criação temporal, seqüência, mas sim, <strong>de</strong> algo simultâneo e<br />

eterno, pois: “Se assim não fosse já haveria tempo e mudança, ...” (Agostinho, 1987, p.<br />

214). Não po<strong>de</strong> haver modificação em Deus. Portanto, Deus cria, criando por meio da<br />

palavra que é o Verbo. Porém, <strong>de</strong>ve-se atenção a algo importante: “Nem tudo, porém, o<br />

que fazeis com a vossa palavra se realiza simultaneamente e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> toda a eternida<strong>de</strong>”<br />

(Agostinho, 1987, p. 214). Vê-se, com isso, que nem tudo sempre existiu, dando, assim,<br />

espaço para uma teoria evolucionista, on<strong>de</strong> algumas coisas passam a existir em<br />

<strong>de</strong>terminado período, e não <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre.<br />

Agostinho tenta elucidar bem a questão da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus. Esta é imutável,<br />

pois faz parte da sua substância, porque não po<strong>de</strong> ser uma vonta<strong>de</strong> nova, caso contrário,<br />

22 Rm 8, 32.<br />

31


Deus seria mutável, sujeito ao tempo, e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> Deus uma criatura. Portanto, não<br />

se trata <strong>de</strong> Deus antes da criação porque não existe tempo antes da criação, somente<br />

eternida<strong>de</strong>, que Deus é.<br />

O tempo não po<strong>de</strong> medir a eternida<strong>de</strong>, pois o tempo é constituído <strong>de</strong> sucessões<br />

entre o passado, presente e o futuro. Já a eternida<strong>de</strong> trata-se <strong>de</strong> um presente, todo<br />

presente, “... ao passo que o tempo nunca é todo presente” (Agostinho, 1987, p. 216).<br />

Mas então, que fazia Deus antes da criação do mundo? Agostinho respon<strong>de</strong> à altura,<br />

pois conhece as possibilida<strong>de</strong>s para tal resposta: “... antes <strong>de</strong> criar<strong>de</strong>s o céu e a terra não<br />

fazíeis coisa alguma” (Agostinho, 1987, p. 216). É um tanto quanto claro, porque não se<br />

aplica tempo a Deus, então não po<strong>de</strong>ria ter feito, para fazer, a fim <strong>de</strong> fazer. Deus<br />

simplesmente faz por meio do princípio que é o Verbo na eternida<strong>de</strong>. Para Deus não<br />

existe ontem ou amanhã, mas somente um eterno hoje: “o vosso ‘hoje’ é a eternida<strong>de</strong>.<br />

Por isso gerastes coeterno o vosso Filho, ...” (Agostinho, 1987, p. 217).<br />

O tempo como criatura <strong>de</strong> Deus po<strong>de</strong> ser afirmado como longo ou breve? Vê-se<br />

claramente que um ano, por exemplo, se po<strong>de</strong> dividir em meses, e os meses em dias, os<br />

dias em horas, as horas em segun<strong>dos</strong>, e assim sucessivamente. Assim, tudo que passou é<br />

passado, tudo que está por vir é futuro. Então o que é o presente? Agostinho explica:<br />

Se pu<strong>de</strong>rmos conceber um espaço <strong>de</strong> tempo que não seja<br />

suscetível <strong>de</strong> ser subdividido em mais partes, por mais<br />

pequeninas que sejam, só a esse po<strong>de</strong>mos chamar tempo<br />

presente. Mas este voa tão rapidamente do futuro ao passado,<br />

que não tem nenhuma duração. (...) Logo, o tempo presente<br />

não tem nenhum espaço (Agostinho, 1987, p. 219).<br />

Trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um tempo longo ou breve numa visão individual; cada<br />

indivíduo capta a sensação <strong>de</strong> tempo <strong>de</strong> uma forma diferente; enquanto alguns atestam<br />

rapi<strong>de</strong>z num evento, outros atestam lentidão, sendo que o tempo medido é o mesmo. A<br />

forma como cada um se põe frente a uma situação modifica sua percepção do tempo.<br />

Mesmo mediante uma dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagem, pois tempo é uma palavra<br />

polissêmica, Agostinho diz que são três os tempos: “... presente das coisas passadas,<br />

presente das presentes, presente das futuras” (Agostinho, 1987, p. 222). Importante<br />

também é saber que somente o presente possui existência; futuro e passado não<br />

possuem existência.<br />

Através <strong>de</strong>ssa longa reflexão acerca do tempo, Agostinho <strong>de</strong>para-se com uma<br />

nova problemática: como po<strong>de</strong> medir-se o tempo? O tempo medido é uma convenção.<br />

32


Sabe-se que a volta da Terra em torno do seu eixo dura um dia. Portanto, usa-se disso<br />

para guardarmos um dia. Contudo, o tempo não é isso. O tempo, na verda<strong>de</strong>, é a<br />

duração (espaço <strong>de</strong> tempo) <strong>de</strong> algo que começa a existir até a sua morte; o tempo é essa<br />

duração. Só se po<strong>de</strong> medir tempo em algo que possui início e fim. O “quanto” durou só<br />

se po<strong>de</strong> dizer por analogia, mas a medida <strong>de</strong> “muito” ou “pouco” por análise da coisa<br />

po<strong>de</strong>-se dizer. Agostinho encerra o livro XI pedindo a Deus pelos homens que não<br />

enten<strong>de</strong>m nem mesmo a linguagem acerca do tempo para que entendam cada vez mais<br />

sobre Deus e sobre o tempo, a fim <strong>de</strong> melhorarem enquanto seres humanos, a<strong>de</strong>ntrando<br />

um pouco mais nos mistérios divinos.<br />

12. A criação<br />

O mundo dado aos homens como presente <strong>de</strong> Deus é algo que, na pior das<br />

hipóteses, possui uma pequena aparência da beleza que é Deus. Po<strong>de</strong> não ser belo em si,<br />

porém, expressa a beleza <strong>de</strong> Deus: “ainda que todo este mundo, (...) não seja<br />

inteiramente belo em todas as suas facetas, contudo, recebeu uma aparência <strong>de</strong><br />

formosura, mesmo nos seus últimos elementos” (Agostinho, 1987, p. 235).<br />

Ao tratar da criação, Agostinho <strong>de</strong>ixa muito claro sua visão sobre o ato criador<br />

<strong>de</strong> Deus. A terra é invisível e informe: “... a terra estava vazia e vaga, ...”. 23 Nenhuma<br />

forma. Informe é ausência <strong>de</strong> forma. Antes da forma dada a terra não se trata <strong>de</strong> um<br />

nada absoluto, mas sim, <strong>de</strong> uma massa informe, criada por Deus a partir do nada: “...<br />

antes <strong>de</strong> formar<strong>de</strong>s e diferenciar<strong>de</strong>s esta matéria informe, nada existia, nem cor, nem<br />

figura, nem corpo, nem espírito? Não era, porém, o nada absoluto. Era antes a massa<br />

informe sem figura” (Agostinho, 1987, p. 236).<br />

É por meio <strong>de</strong>ssa matéria informe 24 que Deus faz toda a terra. Porém, essa<br />

matéria não é como qualquer outra matéria que se possui na terra; ela é diversa, única,<br />

informe: “... nem forma, nem nada, mas um ser informe próximo do não-ser”<br />

(Agostinho, 1987, p. 237). Agostinho chega a ser engraçado porque percebe o limite da<br />

linguagem e, por isso, muito sofre; quer dizer, mas não quer dizer, porque sabe da<br />

dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se atingir com a linguagem a perfeição da expressão; e chega até a<br />

23 Gn 1, 2.<br />

24 Criada por Deus a partir do nada (creatio ex nihil).<br />

33


incar: “Se pudéssemos dizer: ‘um certo nada, que é e não é’ – eis o nome que lhe<br />

daria” (Agostinho, 1987, p. 237). Deus cria do nada; e daí (do nada) cria duas coisas:<br />

“Deste nada fizestes o céu e a terra, duas coisas: uma perto <strong>de</strong> Vós, outra perto do nada;<br />

...” (Agostinho, 1987, p. 238).<br />

O céu do céu, criado por Deus, transcen<strong>de</strong> o tempo, está fora do tempo: “...<br />

apesar <strong>de</strong> não ser coeterna convosco, ó Trinda<strong>de</strong>, participa, contudo, da vossa<br />

eternida<strong>de</strong>” (Agostinho, 1987, p. 238). Conserva-se imóvel, sem sucessão ou<br />

modificação. A matéria informe também é criada fora do tempo, pois se houvesse<br />

tempo teria <strong>de</strong> haver sucessão e troca <strong>de</strong> forma, algo que é impossível, pois <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong><br />

ser matéria informe: “... não há tempo sem varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimentos; nem há<br />

varieda<strong>de</strong> alguma on<strong>de</strong> não há nenhuma forma” (Agostinho, 1987, p. 240). Portanto,<br />

duas criaturas <strong>de</strong> Deus prescin<strong>de</strong>m do tempo: céu e terra (matéria informe).<br />

Agostinho reafirma o papel da Lei como algo muito bom à socieda<strong>de</strong>. O homem<br />

<strong>de</strong>ve seguir a Lei, a fim <strong>de</strong> se encontrar com Deus na sua Felicida<strong>de</strong>: “... a Lei é boa<br />

para edificação, (...) a Lei tem por fim a carida<strong>de</strong> nascida dum coração puro, duma<br />

consciência reta e duma fé não fingida” (Agostinho, 1987, p. 245). Agostinho dá a<br />

enten<strong>de</strong>r novamente uma possibilida<strong>de</strong> para a teoria evolucionista, on<strong>de</strong> Deus é o<br />

criador <strong>de</strong> tudo, porém, Deus não cria tudo <strong>de</strong> uma vez, mas dá condições <strong>de</strong> que tudo<br />

se forme: “É verda<strong>de</strong> que Vós, origem <strong>de</strong> todas as coisas, fizestes não só o que foi<br />

criado e formado, mas também o que é criável e formável” (Agostinho, 1987, p. 246).<br />

Um gran<strong>de</strong> relato acerca das divergências <strong>de</strong> interpretações <strong>dos</strong> primeiros<br />

versículos da Bíblia é exposto por Agostinho. Mostra <strong>de</strong>talhadamente inúmeras<br />

interpretações e vê algumas como um tanto limitadas pela forma muito ligada à<br />

materialida<strong>de</strong>. Porém, no final <strong>de</strong> toda a exposição, Agostinho mostra gran<strong>de</strong> estima por<br />

to<strong>dos</strong>: “São porém ‘meninos’ <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s esperanças os que não temem estas palavras do<br />

vosso Livro, humil<strong>de</strong>mente sublimes e eloqüentemente breves” (Agostinho, 1987, p.<br />

255).<br />

13. A paz<br />

O homem existe por Bonda<strong>de</strong> divina; a vida humana é um dom <strong>de</strong> Deus. Por<br />

isso, a existência <strong>de</strong>ve ser tida em gran<strong>de</strong> conta, visto que é o gran<strong>de</strong> presente <strong>de</strong> Deus a<br />

34


cada indivíduo: “... eis que existo por um gesto <strong>de</strong> vossa Bonda<strong>de</strong>, ...” (Agostinho,<br />

1987, p. 259). Reconhece-se como homem verda<strong>de</strong>iro, que perante o Sumo Bem não é<br />

tão importante, mas o é por conta da graça divina. O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Deus não diminui sem o<br />

culto <strong>dos</strong> homens, porém, o homem <strong>de</strong>ve servir-Lhe, a fim <strong>de</strong> alcançar a Felicida<strong>de</strong>.<br />

As criaturas, na verda<strong>de</strong>, não existem, mas, por Bonda<strong>de</strong> divina subsistem<br />

amparadas em Deus: “Com a plenitu<strong>de</strong> da vossa Bonda<strong>de</strong> subsistem as criaturas”<br />

(Agostinho, 1987, p. 259). Agostinho afirma a superiorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um ser espiritual em<br />

relação a um ser material; o homem é um ser espiritual <strong>de</strong>caído ao nível material, no<br />

entanto, luta constantemente para retornar a Deus e, por conseguinte, a ser novamente<br />

um ser espiritual.<br />

Tudo que não é relativo à busca da Felicida<strong>de</strong>, isto é, que não conduz a Deus é<br />

miséria humana: “Toda a abundância que não é o meu Deus, é para mim indigência”<br />

(Agostinho, 1987, p. 263). Tudo se dirige para o lugar que lhe compete. O fogo ten<strong>de</strong><br />

para o alto; a pedra para baixo. Da mesma forma o homem; sua medida é o amor: “O<br />

meu amor é o meu peso. Para qualquer parte que vá, é ele quem me leva” (Agostinho,<br />

1987, p. 264). Até chegar ao Amor 25 o ser humano vive inquieto; essa é a gran<strong>de</strong><br />

questão da existência humana: o homem busca a Deus e só repousará quando o<br />

encontrar.<br />

Agostinho <strong>de</strong>monstra através <strong>de</strong> três faculda<strong>de</strong>s a “realida<strong>de</strong>” da Trinda<strong>de</strong>: “...<br />

existir, conhecer e querer. Existo, conheço e quero. Existo sabendo e querendo; e sei<br />

que existo e quero; e quero existir e saber” (Agostinho, 1987, p. 265). Vê-se aí algo<br />

muito interessante: trata-se <strong>de</strong> três diversas faculda<strong>de</strong>s; porém, percebe-se que as três<br />

estão intrinsecamente ligadas, formando a realida<strong>de</strong> humana numa consonância tão<br />

enorme que se po<strong>de</strong> até duvidar <strong>de</strong> uma divisão entre as próprias.<br />

O homem é luz, e o é pela fé. A salvação do homem advém da esperança; o<br />

homem espera em Deus, e por esperar confia e confiando espera. Entrementes, com essa<br />

ânsia humana por Deus a própria vida fica complicada, pois o indivíduo instruindo<br />

outrem no Amor acaba por instruir <strong>de</strong>vido ao <strong>de</strong>sejo ar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> seu coração em<br />

encontrar Deus. Todavia, quando o homem “encarar” Deus (face a face) tanto sua fé<br />

quanto sua esperança dissipar-se-ão, pois restará só o Amor.<br />

Agostinho quer que as boas obras conduzam o homem à contemplação do<br />

Verbo, mas sempre por meio da graça que eleva o homem a essa contemplação. As boas<br />

25 Entenda-se aqui a gran<strong>de</strong> questão <strong>de</strong> Agostinho: “... nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa<br />

em Vós” (Agostinho, 1987, p. 9).<br />

35


obras <strong>de</strong>vem conduzir a Deus; por isso, toda boa obra <strong>de</strong>ve ser constituída do amor<br />

caritas e não <strong>de</strong> simples aparência <strong>de</strong> amor.<br />

As ações humanas <strong>de</strong>vem ser guiadas para Deus a fim <strong>de</strong> controlar as paixões da<br />

alma; as ações <strong>de</strong>vem tornar-se dóceis à vonta<strong>de</strong> divina, <strong>de</strong> tal forma que a humilda<strong>de</strong><br />

possa ser medida pela própria ação; o homem conhecendo-se controla seus ímpetos,<br />

para que assim, tenha uma vida regrada: “Numerosas são as pessoas altivas e famosas,<br />

mas é aos humil<strong>de</strong>s que ele revela seus segre<strong>dos</strong>”. 26<br />

A obra da criação realmente é muito bela. Cada “membro” (criatura) reflete a<br />

beleza divina; porém, no conjunto isso se torna mais belo ainda: “Cada uma das<br />

criaturas separadamente era boa. Porém, consi<strong>de</strong>radas em conjunto, eram não só ‘boas’,<br />

mas até ‘muito boas’” (Agostinho, 1987, p. 283).<br />

Deus está fora do tempo; no entanto, como pô<strong>de</strong> contemplar a criação em sete<br />

dias? Agostinho ouve no seu íntimo a resposta divina: “‘Homem, o que a minha<br />

Escritura diz, Eu o digo. Mas ela di-lo no tempo, e este não atinge o meu Verbo, que<br />

subsiste comigo numa eternida<strong>de</strong> igual à minha” (Agostinho, 1987, p. 283).<br />

As criaturas são temporais, <strong>de</strong>cadência e, conseqüentemente, imperfeição; foram<br />

feitas a partir do nada, entretanto, a partir do Amor <strong>de</strong> Deus. Ele cria por Amor; a<br />

criação é um gran<strong>de</strong> ato <strong>de</strong> Amor divino para com os homens:<br />

Foram feitas por Vós do nada, não porém da vossa substância<br />

ou <strong>de</strong> certa matéria pertencente a outrem ou anterior a Vós,<br />

mas da matéria concriada, isto é, criada por Vós ao mesmo<br />

tempo que elas, e que, sem nenhum intervalo <strong>de</strong> tempo,<br />

fizestes passar da informida<strong>de</strong> à forma (Agostinho, 1987, p.<br />

286).<br />

É importante ressaltar o aspecto do tempo, pois não há espaço <strong>de</strong> tempo entre a<br />

informida<strong>de</strong> e a forma da matéria.<br />

O homem é impelido a praticar o Bem graças ao Espírito Santo que toma conta<br />

da vida. Os atos passam a ser guia<strong>dos</strong> para Deus. O homem anseia pelo repouso em<br />

Deus; chegar a Deus. O indivíduo busca o repouso e o repouso é Deus.<br />

26 Eclo 3, 19.<br />

36


CONCLUSÃO<br />

Uma “conclusão perfeita” para o final da história <strong>de</strong> uma vida, talvez fosse o<br />

encontro <strong>de</strong>finitivo com Deus. Para uma “perfeita conclusão” pense-se assim usando as<br />

palavras da própria “vida pulsante” 27 na sua obra Solilóquios: que “Deus, Sol <strong>dos</strong><br />

espíritos” ilumine a to<strong>dos</strong> os homens, para que, assim, “avistem” a Verda<strong>de</strong>, que é<br />

Cristo, verda<strong>de</strong>iro mediador entre Deus e o indivíduo.<br />

A veracida<strong>de</strong> da obra <strong>de</strong> Agostinho é comprovada pela vivência individual <strong>de</strong><br />

cada humano que pisa a terra. Não há como não “se encontrar” na obra do santo bispo.<br />

O fato do relato ser tão esclarecedor (sem máscaras), além <strong>de</strong> encantar, mostra a<br />

realida<strong>de</strong> humana nua e crua nas suas mais diversas dificulda<strong>de</strong>s.<br />

A reflexão agostiniana acerca do homem e <strong>de</strong> Deus é avassaladoramente<br />

complexa. Isso se quiser alegar-se pelo “argumentum ad baculum” só precisa se<br />

lembrar <strong>de</strong> quanta utilida<strong>de</strong> gera à Igreja até hoje: Catecismo da Igreja Católica, Código<br />

<strong>de</strong> Direito Canônico, <strong>Comentário</strong>s <strong>às</strong> passagens bíblicas, Documentos Conciliares,<br />

Cartas Encíclicas, além <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relato antropológico. Entrementes, basta a leitura da<br />

própria obra <strong>Confissões</strong> e sua reflexão no interior do homem, para que se “sinta” sua<br />

importância.<br />

O homem, portanto, não é diferente através das épocas, por mais que se<br />

modifique. 28 O ser humano, certamente, não é o mesmo do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> que seus<br />

meios se modificam e o campo <strong>de</strong> atuação, conseqüentemente, se alonga ou restringe-<br />

se. Todavia, o homem enquanto constituição <strong>de</strong> alma mais corpo, e a realida<strong>de</strong><br />

problemática que o cerca, não é diverso; é o mesmo; até os problemas são os mesmos; o<br />

que se modifica, na verda<strong>de</strong>, é a abordagem <strong>dos</strong> problemas e, <strong>às</strong> vezes, as respostas<br />

dadas <strong>às</strong> problemáticas.<br />

27 Santo Agostinho.<br />

28 Não se entenda aqui uma contradição.


BIBLIOGRAFIA<br />

AGOSTINHO, Santo. <strong>Confissões</strong>. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987 (Col. Os<br />

Pensadores) P. 01-288.<br />

BÍBLIA <strong>de</strong> Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.<br />

CATECISMO da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 1999.

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