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O rabo do macaco - ReservAer

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O <strong>rabo</strong> <strong>do</strong> <strong>macaco</strong><br />

E OUTRAS HISTÓRIAS<br />

Carlos Aníbal Pyles Patto


O <strong>rabo</strong> <strong>do</strong> <strong>macaco</strong><br />

E OUTRAS HISTÓRIAS<br />

Carlos Aníbal Pyles Patto<br />

Brasília • 2005


O autor<br />

O autor<br />

Carlos Aníbal Pyles Patto nasceu em Taubaté, esta<strong>do</strong> de<br />

São Paulo, em 1946. Passou toda a infância e a<strong>do</strong>lescência<br />

em Tremembé, cidade vizinha a Taubaté. Saiu de casa com<br />

dezoito anos, ao ingressar na carreira militar, durante a qual<br />

se deslocou por to<strong>do</strong> o território nacional e por diversos países<br />

estrangeiros.<br />

Nessas andanças conheceu e casou-se com Maria Laura<br />

Santos Germano, gaúcha de Rio Grande. Tiveram <strong>do</strong>is filhos,<br />

Cláudio Eduar<strong>do</strong> Germano Patto e Sérgio Augusto Germano<br />

Patto, nasci<strong>do</strong>s em Belém <strong>do</strong> Pará.<br />

Em 1998 foi diagnostica<strong>do</strong> como ten<strong>do</strong> Parkinson, ten<strong>do</strong><br />

passa<strong>do</strong> pelas fases de negação, da revolta, da depressão e<br />

de aceitação da <strong>do</strong>ença.<br />

Atualmente, já aposenta<strong>do</strong>, reside em Brasília com a mulher<br />

e com o filho mais novo e passa o tempo trabalhan<strong>do</strong> no<br />

con<strong>do</strong>mínio, escreven<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> pequenas esculturas em<br />

madeira e pedra-sabão.<br />

3


Agradecimentos <strong>do</strong> autor<br />

Agradeço ao meu Anjo da Guarda que, conforme poderão<br />

constatar no decorrer da leitura, trabalhou muito para<br />

me proteger.<br />

5


Apresentação<br />

Houve uma ocasião que decidi fazer terapia, talvez por<br />

influência da Laura, minha mulher, que é psicóloga. Como<br />

não sabia o que apresentar, fiz uma lista <strong>do</strong>s eventos que<br />

considerava marcantes em minha vida. Isso me fez resgatar<br />

episódios de vida diverti<strong>do</strong>s e interessantes, que passei<br />

a narrar para parentes e amigos, quan<strong>do</strong> a ocasião era<br />

oportuna.<br />

Recentemente uma amiga da Laura, que mora na França,<br />

esteve em Brasília e veio nos visitar. Conversan<strong>do</strong>,<br />

contei-lhe algumas de minhas histórias, que lhe despertaram<br />

vivo interesse. Solicitou-me, então, que as escrevesse<br />

e enviasse para ela, para serem publicadas em um site de<br />

sua autoria.<br />

Assim foi feito e as histórias se acumularam, resultan<strong>do</strong><br />

neste livro, de caráter auto-biográfico e conten<strong>do</strong>, na maioria<br />

<strong>do</strong>s relatos, fatos e episódios vivencia<strong>do</strong>s por mim e que<br />

considerei como de interesse para outras pessoas.<br />

Esses episódios estão organiza<strong>do</strong>s cronologicamente e<br />

por área geográfica, visan<strong>do</strong> facilitar o entendimento.<br />

Procurei, também, evitar os termos técnicos, o que nem<br />

sempre foi possível. Nesses casos, usei o recurso das notas<br />

de rodapé para esclarecer o significa<strong>do</strong>.<br />

Com essas palavras de apresentação convi<strong>do</strong> a você,<br />

leitor, para percorrer e curtir essas páginas, esperan<strong>do</strong> que<br />

sejam de seu agra<strong>do</strong>.<br />

E, haven<strong>do</strong> interesse de realizar contato, estarei à disposição<br />

no endereço puerta3@terra.com.br<br />

Carlos Aníbal Pyles Patto<br />

7


Prefácio<br />

9


Sumário<br />

O AUTOR 02<br />

AGRADECIMENTOS 03<br />

PREFÁCIO 05<br />

TREMEMBÉ-SP<br />

INFÂNCIA 11<br />

ADOLESCÊNCIA 13<br />

BARBACENA-MG<br />

CHEGADA NA ESCOLA 15<br />

CEMITÉRIO DA BOA MORTE 16<br />

GURU DO MÃO-DE-ONÇA 18<br />

MÃO DE MERDA 19<br />

BALALAICA 20<br />

O MATERIAL DA CLARABELA 21<br />

JUIZ DE BRIGA 22<br />

CACHORRADA 23<br />

EXAME DE FEZES 24<br />

RIO DE JANEIRO-RJ<br />

LUTANDO CARATÊ 25<br />

OUTRA DO MÃO-DE-ONÇA 26<br />

ACAMPAMENTO 27<br />

GOTEIRA 29<br />

TIRANDO FÉRIAS 30<br />

APROXIMAÇÃO SOLO 31<br />

AULA DE RESISTÊNCIA DOS MATERIAIS 32<br />

ANTI-HERÓI 33<br />

CALOTA 34<br />

PEGA 35<br />

11


PIRASSUNUNGA-SP<br />

SOLO EM AVIÃO À JATO 37<br />

SOBREVIVÊNCIA NO XINGU 38<br />

ALVORADA 40<br />

ORIENTAÇÃO NOTURNA 41<br />

CANOAS-RS<br />

COMEMORAÇÃO 43<br />

INCIDENTE NO TRÂNSITO 44<br />

ACIDENTE EM SÃO JERÕNIMO 45<br />

DE PIJAMA NO CASAMENTO 49<br />

COMPRANDO CACHIMBO 50<br />

PRIMEIRA DISCUSSÃO 51<br />

O JOGO DOS TRÊS COPINHOS 52<br />

ULTRAPASSAGEM 53<br />

AMAZÔNIA<br />

SEVERINO, UM BRASILEIRO 55<br />

REGULADOR XAVIER 58<br />

LAURA EM BELÉM 59<br />

SUPER-HOMEM 60<br />

A FORMAÇÃO DO UNIVERSO SEGUNDO OS IANOMÂMI 61<br />

PIADINHA AMAZÔNICA 62<br />

QUESTÃO DE NOME 63<br />

POLIGLOTA 64<br />

OUTRA GRÁVIDA 65<br />

A MÃO DECEPADA 66<br />

O RABO DO MACACO 67<br />

O MISTÉRIO DOS PEIXES 68<br />

O PARTO DA ÍNDIA IANOMÂMI 69<br />

AINDA IANOMÂMI 70<br />

COLHENDO CASTANHA 71<br />

PERNOITE NA CLAREIRA 72<br />

PLANTAS CARNÍVORAS 73<br />

CACHOEIRA DO ARACÁ 74<br />

PISTA EM UAI-UAI 75<br />

12


INCESTO 76<br />

CONVERSA 77<br />

POR FALAR EM CHEFE 78<br />

DESARMANDO BOMBA 79<br />

NUVEM DE TEMPESTADE 81<br />

QUEM ESTÁ PILOTANDO? 82<br />

VOANDO MONOMOTOR 83<br />

MORDENDO A ORELHA DO BURRO 84<br />

CHUPA-CHUPA 85<br />

AFRODISÍACO 86<br />

STRIKE 87<br />

GUERRA DE ÍNDIOS 88<br />

QUEM TIRA A CORDINHA 89<br />

NADANDO PELADO 90<br />

NOIVO 91<br />

PEGANDO 92<br />

CRÍTICA 93<br />

PATANÃO 94<br />

DESCENDO DE RAPEL 95<br />

BRASÍLIA-DF<br />

MOVIMENTOS INVOLUNTÁRIOS 97<br />

INTERFERÊNCIA ELETROMAGNÉTICA 98<br />

HURRICANE 99<br />

CAVALO DE PAU COM MINISTRO À BORDO 100<br />

MÍMICA 102<br />

O PIANO DA VIZINHA 103<br />

ENÓLOGO 104<br />

PASSEANDO DE BONDE 105<br />

DE FÉRIAS NA PRAIA 106<br />

TROTE INFANTIL 107<br />

FURTO NO ÔNIBUS 108<br />

PARKINSON 109<br />

URUGUAI<br />

OZUMA 111<br />

PILOTANDO HELICOPTERO 112<br />

13


TREMEMBÉ-SP<br />

Infância<br />

Passei a minha infância em um misto de ambiente urbano<br />

com ambiente rural.<br />

Desde ce<strong>do</strong> demonstrei gostar de alturas. Havia uma<br />

árvore com muita erva de passarinho. Subia nela, deitava<br />

naquele colchão de ervas e ficava lá, de papo pro ar, olhan<strong>do</strong><br />

as nuvens.<br />

Gostava, também, de me equilibrar. Não podia ver uma<br />

vala com uma prancha em cima – passava. Devagar, mas<br />

passava. Subia nas chaminés das fábricas e andava na borda.<br />

E, em dias de ventania, subia em um pé de eucalipto e<br />

ficava balançan<strong>do</strong> no topo.<br />

Também gostava de cavalos. Meu pai possuía alguns cavalos<br />

de raça, e eu costumava montá-los, em pêlo, sem<br />

sela e sem freio, apenas com uma corda passada sobre o<br />

focinho, como se fosse um cabresto. Certa vez, andan<strong>do</strong> a<br />

galope, perdi o controle e a égua passou por dentro de um<br />

bambual. Ela passou... Eu não. Fiquei trança<strong>do</strong> nos bambus.<br />

Era arteiro. Um dia, cortava algumas ramas de mandioca.<br />

O facão resvalou e decepou-me um de<strong>do</strong>. Um tio, que<br />

era cirurgião, colocou-o no lugar.<br />

Sempre gostei de armas. E de bombas. Fabriquei uma<br />

colocan<strong>do</strong> carbureto e água dentro de um vidro. Tampei<br />

bem e joguei longe, aguardan<strong>do</strong> estourar. Passou um tempo<br />

e, como não estourava, fui verificar. Foi levantar o vidro<br />

e ele estourou. Um pedaço bateu em minha costela e entrou<br />

por debaixo da pele. Saiu a caminho da farmácia.<br />

15


Certo dia, meu pai chamou a mim e ao caseiro para<br />

prendermos a Vaca Preta no curral. Cerca daqui, cerca de<br />

lá, e a vaca, sentin<strong>do</strong>-se acuada, escolheu o setor mais fraco<br />

para escapar – o meu. Já ia “bater em retirada”, quan<strong>do</strong><br />

meu pai deu um de seus famosos berros. Em uma fração<br />

de segun<strong>do</strong>, olhei para a vaca, olhei para o meu pai e decidi<br />

– enfrentei a vaca.<br />

Tive cinco irmãs. Como era o único varão, tinha um quarto<br />

só para mim. Minhas irmãs <strong>do</strong>rmiam em outro. O meu<br />

quarto era cheio de atrativos. Havia cobras conservadas<br />

em álcool, criação de escorpiões, arco voltaico. Fiz uma demonstração<br />

<strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> arco voltaico para uns<br />

amigos. To<strong>do</strong>s feriram a vista. Passamos dias sem poder<br />

enfrentar a luz <strong>do</strong> sol. Como minhas irmãs menores gostavam<br />

de mexer nas minhas coisas, liguei, com o auxílio de<br />

um transforma<strong>do</strong>r, uma armadilha na maçaneta. Era tocar e<br />

levar choque. Quem levou o choque foi a minha mãe.<br />

Nunca gostei que prendessem passarinhos. Como minha<br />

mãe achava que eu deveria ter alguma educação musical,<br />

colocou-me para ter aulas de piano com uma tia. Lá, na<br />

varanda de sua casa, havia dezenas de gaiolas com passarinhos.<br />

Um dia em que não havia mais ninguém por perto,<br />

abri todas as gaiolas e nunca desconfiaram de mim.<br />

Afinal, eu tinha a fama, perante as mães, de ser um menino<br />

educa<strong>do</strong>, atencioso e gentil. Um exemplo para os seus<br />

filhos – que sabiam que eu aprontava.<br />

O curioso é que vários passarinhos, já acostuma<strong>do</strong>s com<br />

a gaiola, permaneceram nos arre<strong>do</strong>res e foram facilmente<br />

recaptura<strong>do</strong>s.<br />

<br />

16


A<strong>do</strong>lescência<br />

Em outra ocasião, meu pai passou a andar de moto.<br />

Sempre que podia, eu a pegava, escondi<strong>do</strong>, e saía a passear.<br />

Foi com ela que aprendi alguns <strong>do</strong>s princípios da física<br />

– como quan<strong>do</strong>, inadvertidamente, “levantei vôo” numa<br />

rampa natural, na subida da ponte <strong>do</strong> Rio Paraíba.<br />

Gostava de trabalhar. Levantava ce<strong>do</strong>, às vezes ainda<br />

escuro, e ia tirar leite. Com duas vacas, tirava mais de trinta<br />

litros, em duas ordenhas: uma de manhã e outra à tarde.<br />

Seguia, depois, para uma leiteria, onde era entrega<strong>do</strong>r.<br />

Entregava leite até o meio dia, equilibran<strong>do</strong> uma caixa com<br />

dez litros sobre o gui<strong>do</strong>m de uma bicicleta. Quan<strong>do</strong> recebia<br />

meu pagamento, entregava to<strong>do</strong> o dinheiro para a minha<br />

mãe. Ela ficava emocionada. Depois, eu conseguia, aos<br />

poucos, mais <strong>do</strong> que havia da<strong>do</strong>.<br />

Não tinha armas. Usava, escondi<strong>do</strong>, as de meu pai – ou<br />

fabricava. Fiz uma garrucha que precisava de duas pessoas<br />

para atirar: uma apontava e o outro colocava fogo no<br />

estopim. Era difícil saber se acertara, pois produzia muita<br />

fumaça.<br />

Também fabriquei, com a ajuda de um amigo, uma espingarda,<br />

um garruchão. Ainda bem que resolvemos estreála<br />

amarran<strong>do</strong>-a em um mourão e pon<strong>do</strong> fogo à distância,<br />

usan<strong>do</strong> um bambu equipa<strong>do</strong> com uma tocha na ponta.<br />

Arrebentou tu<strong>do</strong>: arma, mourão e bambu.<br />

Cursava o ginasial. Havia um valentão que batia em to<strong>do</strong><br />

o mun<strong>do</strong>. Um dia, já não sei por quê, arranjei uma encrenca<br />

com ele e combinamos brigar depois das aulas. Como nunca<br />

fui de briga, tinha certeza de que iria apanhar. Mas fui.<br />

Tinha que ir. Já prontos para a briga, o valentão me disse:<br />

– Espera eu tirar o relógio.<br />

17


E, ato contínuo, deu-me um tapa na cara. Fiquei de tal<br />

forma indigna<strong>do</strong> que avancei de guarda aberta, atraqueime<br />

com ele e dei-lhe uma joelhada no estômago. O golpe<br />

foi tão certeiro que ele caiu de joelhos e não conseguiu<br />

levantar-se. Estava terminada a luta. Eu havia venci<strong>do</strong> o<br />

valentão. Mas o que eu não sabia é que eu herdara o título.<br />

Agora eu era o novo valentão. E a toda hora havia quem<br />

quisesse disputar o título.<br />

Demorei a aprender a nadar.<br />

Houve um dia em que não consegui companhia e fui, sozinho,<br />

nadar no Paraíba. O rio estava cheio e, como eu nadava<br />

mal, a correnteza me levava e eu não conseguia voltar.<br />

Resolvi parar no pilar da ponte. Estava cheio de paus,<br />

galhos e folhas, manti<strong>do</strong>s pela força da água. Tentei agarrar-me<br />

aos paus, mas, como estavam soltos, afundei com<br />

eles num turbilhão. Lá embaixo, senti, tatean<strong>do</strong>, a textura<br />

<strong>do</strong> concreto e subi por ele. Arrebentei as unhas e esfolei os<br />

de<strong>do</strong>s. Mas saí.<br />

Tempos depois, nadan<strong>do</strong> melhor, fui com três amigos tirar<br />

uma pessoa que estava com câimbras e pedia ajuda.<br />

Era um sujeito grande, bem mais forte que nós. Ficamos<br />

com me<strong>do</strong> que nos agarrasse, mas ele garantiu que se deixaria<br />

levar. Agarrou, no entanto, o primeiro que se aproximou.<br />

Foi preciso ir ao fun<strong>do</strong> para ele largar. Resolvemos,<br />

então, que era necessário nocauteá-lo. Começamos a esmurrá-lo,<br />

mas ele não cooperava. Não desmaiava. E a situação<br />

estava fican<strong>do</strong> crítica. De repente, avistei um tronco<br />

de bananeira boian<strong>do</strong> próximo e o reboquei até o afoga<strong>do</strong><br />

– que, a essa altura, já não sabia se ficava desespera<strong>do</strong><br />

ou furioso. Rebocamos, um pouco, o tronco de bananeira<br />

com o afoga<strong>do</strong> e, assim que constatamos que poderia sair<br />

sozinho, saímos d’água e nos mandamos.<br />

18


Tinha muitos amigos. Em especial, uns de uma mesma<br />

família, com os quais me identificava. Uma vez, a avó deles<br />

veio visitá-los e fizeram fila para pedir a bênção. Entrei<br />

na fila e tomei a bênção, quan<strong>do</strong> chegou minha vez. A avó<br />

disse para a mãe de meus amigos: “Maria, estou fican<strong>do</strong><br />

esquecida. Não me lembro <strong>do</strong> nome desse aí”!<br />

<br />

19


BARBACENA-MG<br />

Chegada na escola<br />

Cheguei à Escola Preparatória de Cadetes <strong>do</strong> Ar à noite.<br />

Apresentei-me no portão da guarda, e me arranjaram um<br />

lugar para <strong>do</strong>rmir.<br />

Já havia amanheci<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> acordei ao som de uma corneta<br />

– era o toque de alvorada. Vesti minha roupa, perguntei<br />

onde se tomava o café e segui a orientação.<br />

Próximo ao local indica<strong>do</strong>, encontrei uma porção de jovens,<br />

to<strong>do</strong>s enfileira<strong>do</strong>s e com uma expressão assustada. Em volta,<br />

outros jovens com uma postura arrogante. Achei estranhos<br />

esses novos colegas.<br />

Como ninguém me incomo<strong>do</strong>u, passei direto e desci as escadas<br />

em direção ao refeitório.<br />

Entrei numa fila, apanhei um prato de mingau, uma banana,<br />

uma caneca de café com leite e um pão com manteiga. Achei<br />

um lugar para sentar, em uma mesa de oito lugares onde havia<br />

seis “assusta<strong>do</strong>s”.<br />

Nem bem havia senta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se aproximou um “empomba<strong>do</strong>”.<br />

Não pediu licença e sentou-se ao meu la<strong>do</strong>. Já não gostei<br />

<strong>do</strong> cara. A seguir, ele descascou sua banana e – assombro<br />

– jogou a casca no meu prato de mingau. Ela mal havia toca<strong>do</strong><br />

o prato, e eu já o estava esfregan<strong>do</strong> na cara dele.<br />

Foi um tumulto.<br />

Apareceram dezenas de “empomba<strong>do</strong>s” a favor <strong>do</strong> maleduca<strong>do</strong>.<br />

Defendi-me com cadeiradas. Logo apareceu uma<br />

pessoa que, mais tarde, soube tratar-se <strong>do</strong> oficial de dia, e pôs<br />

fim ao imbróglio.<br />

<br />

20


Cemitério da Boa Morte<br />

Houve um ano, se não me engano 1966, em que o dia treze<br />

de agosto caiu em uma sexta-feira.<br />

O mês de agosto, o dia treze e a sexta-feira eram considera<strong>do</strong>s<br />

azara<strong>do</strong>s. Por isso mesmo, aquela data era tida como<br />

sen<strong>do</strong> especialmente azarada, como se multiplicássemos as<br />

respectivas cargas de azar.<br />

Travou-se uma discussão em que eu e mais <strong>do</strong>is colegas, o<br />

Mário Lúcio e o Costa Pinto, afirmávamos que isso era besteira,<br />

que azar não existia. Como não chegávamos a uma conclusão,<br />

fizemos uma proposta: nós três iríamos ao cemitério da<br />

Igreja da Boa Morte, à meia-noite dessa data, para desafiar o<br />

azar. E, para provar que estivemos lá, traríamos alguns ossos,<br />

uma cruz ou algo <strong>do</strong> gênero.<br />

Do planejamento, passamos à ação. Na data prevista, pouco<br />

antes da meia-noite, saltamos o muro (era comum fugirmos<br />

à noite) e nos dirigimos para o cemitério. Ao chegarmos na<br />

esquina da igreja, discutimos quem de nós faria um reconhecimento.<br />

Para continuar bancan<strong>do</strong> o valente, prontifiquei-me.<br />

Havia um pátio à frente da igreja e uma portinha que estava<br />

aberta. Passei por ela e contornei o pátio, em direção ao cemitério.<br />

Cheguei à grade que o cercava, porém não tive coragem<br />

de pular.<br />

A iluminação da rua já não alcançava aquela área, no entanto<br />

havia luar suficiente para distinguir as coisas. Aproximei-me<br />

da grade, estendi o braço e alcancei um copo-de-leite caí<strong>do</strong> no<br />

chão, pelo la<strong>do</strong> de dentro.<br />

Fiz o caminho de volta esforçan<strong>do</strong>-me para não correr.<br />

– Então? Como foi? – perguntaram.<br />

– Foi tranqüilo. Entrei e apanhei esse copo-de-leite – menti.<br />

Ao que Mario Lúcio retrucou:<br />

21


– Agora, vamos to<strong>do</strong>s.<br />

Costa Pinto negou-se a entrar. Eu tinha que ir. E lá fomos<br />

nós <strong>do</strong>is.<br />

Ao chegarmos na grade, Mário Lúcio perguntou:<br />

– Como é que você entrou?<br />

– Escalan<strong>do</strong> essa pilha de tijolos – menti novamente, apontan<strong>do</strong><br />

para uma pilha de tijolos que estava encostada na grade.<br />

Com cuida<strong>do</strong>, conseguimos escalar os tijolos, saltamos a<br />

grade e começamos a andar, procuran<strong>do</strong> o que levar. Já não<br />

pensávamos em ossos. Impossível consegui-los.<br />

Foi então que avistei duas velas sobre uma tumba – uma em<br />

pé e a outra deitada. Peguei a que estava em pé e a entreguei<br />

ao Mário Lúcio. Essa saiu com facilidade. Fui então apanhar a<br />

outra. Puxei-a, mas não saiu. Fiz mais força... e nada. Nervoso,<br />

apoiei o pé na lateral da tumba e puxei com toda a força.<br />

E a tampa da tumba cedeu, vin<strong>do</strong> em minha direção!!! Dei um<br />

pinote e tratei de alcançar Mário Lúcio que já havia dispara<strong>do</strong><br />

em direção à grade. Saltamos a grade não sei como. A portinha...<br />

levamos no peito.<br />

Costa Pinto, quan<strong>do</strong> viu aquilo, desapareceu. Era corre<strong>do</strong>r.<br />

Nunca o alcançaríamos.<br />

Corremos mais um pouco e paramos para analisar o ocorri<strong>do</strong>.<br />

Concluímos que eu havia puxa<strong>do</strong> alguma fenda ou saliência<br />

e, com o nervosismo, não percebi.<br />

Já mais calmos, prosseguimos rumo à Escola. Saltamos o<br />

muro em um <strong>do</strong>s locais que utilizávamos e fomos para o alojamento.<br />

Lá chegan<strong>do</strong>, notamos que havia uma aglomeração<br />

bem no centro. Fomos verificar e constatamos ser o Costa<br />

Pinto. Estava deita<strong>do</strong>, com os olhos arregala<strong>do</strong>s.<br />

Só dizia:<br />

– Ah... Ah... Ah...<br />

<br />

22


Guru <strong>do</strong> Mão-de-Onça<br />

Mão-de-Onça tinha-me por seu guru. Estava sempre<br />

procuran<strong>do</strong> conselho e fazia tu<strong>do</strong> que eu indicasse.<br />

Houve uma ocasião em que veio falar comigo, mas eu<br />

não estava com cabeça para dar conselhos.<br />

Perguntou-me:<br />

– Você acha que uma pessoa mais fraca pode bater em<br />

uma mais forte?<br />

– Lógico, Mão-de-Onça. É tu<strong>do</strong> uma questão de cabeça,<br />

de acreditar, de ter fé.<br />

E lá se foi ele, satisfeito.<br />

Não demorou muito e ouvi um barulho forte vin<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />

fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> alojamento. To<strong>do</strong>s corriam para lá. Fui verificar e<br />

cruzei com o Mão-de-Onça, to<strong>do</strong> sorridente, fazen<strong>do</strong>-me o<br />

sinal de positivo.<br />

Logo soube <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong>. O Rangel havia da<strong>do</strong> uns cascu<strong>do</strong>s<br />

no Mão-de-Onça, que, depois de falar comigo, dirigiu-se<br />

ao armário <strong>do</strong> Rangel, ganhou velocidade e jogou os<br />

<strong>do</strong>is pés contra a porta <strong>do</strong> armário, encaçapan<strong>do</strong> o Rangel<br />

lá dentro, desmaia<strong>do</strong>.<br />

Quan<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>u, deu o troco no Mão-de-Onça.<br />

<br />

23


Mão de merda<br />

Mão-de-Onça estudava na sala de aula até bem tarde.<br />

Quan<strong>do</strong> voltava ao alojamento para <strong>do</strong>rmir, procurava a<br />

chave <strong>do</strong> armário, embaixo <strong>do</strong> capacete (os capacetes ficavam<br />

sobre os armários). Levantava o capacete e tateava,<br />

ou melhor, batia com as mãos à procura da chave. Com o<br />

barulho, acordava aqueles que <strong>do</strong>rmiam nos arre<strong>do</strong>res.<br />

Várias vezes, pediram que parasse com isso, que não<br />

fizesse barulho.<br />

Não adiantou.<br />

Continuava.<br />

Para resolver o problema, um <strong>do</strong>s incomoda<strong>do</strong>s colocou,<br />

sob o capacete, um troço fresco.<br />

E o desfecho foi o espera<strong>do</strong>.<br />

O Mão-de-Onça chegou, levantou o capacete, bateu... E<br />

ficou com a mão cheia de merda.<br />

E ficou bravo. Acor<strong>do</strong>u quase to<strong>do</strong> o alojamento.<br />

<br />

24


Balalaica<br />

Ia haver uma demonstração e praticávamos balalaica 1<br />

na Praça de Esportes da Escola Preparatória de Cadetes<br />

<strong>do</strong> Ar.<br />

Acima de nós, entre a Escola e a Praça de Esportes, passava<br />

a estrada de ferro. Uma locomotiva fazia manobras, o<br />

que era comum. De repente, um de nós gritou:<br />

– Olhem aquela menina! Ela está na linha <strong>do</strong> trem, e a<br />

locomotiva vem vin<strong>do</strong>.<br />

Paramos a balalaica e começamos a berrar e a gesticular.<br />

Não adiantou. Ela não entendeu, e a locomotiva pegoua<br />

em cheio. Corremos para lá, com alguma esperança, mas<br />

só encontramos pedaços tritura<strong>do</strong>s e um cheiro característico<br />

de carne macerada.<br />

No almoço, to<strong>do</strong>s ainda estavam abala<strong>do</strong>s com a morte<br />

da guria. Então, um <strong>do</strong>s colegas que havia assisti<strong>do</strong> ao acidente<br />

fez um infeliz comentário:<br />

– O que lembra o cheiro desse picadinho de carne?<br />

Houve quem vomitasse.<br />

<br />

1 Ginástica com mosquetão, ou seja, com uma espécie de espingarda.<br />

25


O material<br />

O material da Clarabela<br />

Estávamos em uma aula prática de Biologia, com a professora<br />

Clarabela. Como explicava o processo da fecundação<br />

humana, comentou que, infelizmente, não dispúnhamos<br />

de material para observarmos o processo pelo microscópio.<br />

Nesse momento, um colega pediu licença para ir ao<br />

banheiro, voltan<strong>do</strong> com a mão cheia:<br />

– Pronto professora. Eis aqui o seu material.<br />

<br />

26


Juiz de briga<br />

Quase to<strong>do</strong> dia havia alguma briga. Eram marca<strong>do</strong>s: local,<br />

hora e juiz de briga.<br />

O local era, geralmente, atrás <strong>do</strong> almoxarifa<strong>do</strong> e o juiz<br />

de briga, um aluno convida<strong>do</strong> para assistir a briga e apartar,<br />

quan<strong>do</strong> necessário. Eu era escolhi<strong>do</strong> com freqüência<br />

para essa função.<br />

Deixava se estapearem um pouco e apartava, tentan<strong>do</strong><br />

fazer que considerassem empate.<br />

<br />

27


Cachorrada<br />

Havia um colega que detestava cachorros.<br />

Outro, valen<strong>do</strong>-se disso, colheu um pouco da secreção<br />

da genitália de uma cadela no cio e aplicou no sapato <strong>do</strong><br />

primeiro. Por onde ele andava, ia uma cachorrada atrás.<br />

E ele não entendia nada!<br />

<br />

28


Exame de fezes<br />

Havíamos recebi<strong>do</strong> uma latinha para colher fezes destinadas<br />

a serem examinadas.<br />

Como alguns não estavam com vontade de defecar, colocaram<br />

fezes de cachorro nas latinhas.<br />

Deu merda.<br />

<br />

29


RIO DE JANEIRO- RJ<br />

Lutan<strong>do</strong> caratê<br />

Já nos Afonsos, no Rio de Janeiro, como aluno <strong>do</strong> terceiro<br />

ano da Preparatória, senti necessidade de praticar uma<br />

luta e minha preferência era o caratê – modalidade que não<br />

havia na Escola de Aeronáutica.<br />

Solicitei e me concederam licença para treinar toda noite,<br />

em uma academia, em Madureira. Lá, fiz amizade com<br />

um carateca. Ao término da aula, costumávamos descer<br />

para tomar uma vitamina. Nessas ocasiões, meu amigo<br />

provocava as pessoas que estavam por ali.<br />

Perguntei-lhe por que procedia dessa forma, e ele me<br />

respondeu:<br />

– Lá em cima é a teoria; aqui, a prática.<br />

<br />

30


Outra <strong>do</strong> Mão-de-Onça<br />

Estava no Campo <strong>do</strong>s Afonsos, cursan<strong>do</strong> o terceiro ano<br />

da Preparatória.<br />

Vieram me falar que o Mão-de-Onça havia persegui<strong>do</strong><br />

o cadete de dia com uma faca na mão e que se encontrava<br />

baixa<strong>do</strong> à enfermaria.<br />

Fui até lá para ver como ele estava. Notei que vários<br />

baixa<strong>do</strong>s estavam sain<strong>do</strong>, assusta<strong>do</strong>s. Entrei e deparei-me<br />

com o Mão-de-Onça, com um bibico1 atravessa<strong>do</strong> na cabeça,<br />

uma mão no peito, enfiada no camisolão, e a outra mão<br />

às costas. Rin<strong>do</strong>, me dizia:<br />

– Estou fingin<strong>do</strong> que sou Napoleão, e eles pensam que<br />

eu sou <strong>do</strong>i<strong>do</strong>.<br />

– O que você tem na outra mão? – perguntei.<br />

– Não é nada, não.<br />

– Mão-de-Onça, mostra a outra mão.<br />

Tanto insisti que mostrou. Tinha uma faca na outra mão.<br />

Algum tempo após, o Mão-de-Onça pediu transferência<br />

para a Academia que forma os oficiais <strong>do</strong> exército. Um dia,<br />

estava para<strong>do</strong>, com aquele olhar distante que, às vezes,<br />

apresentava, quan<strong>do</strong> passou um oficial.<br />

Como ele não fez a continência, o oficial parou e perguntou:<br />

– Cadete, cadê o cumprimento <strong>do</strong> militar?<br />

E o Mão-de-Onça lá, sem responder, com aquele olhar<br />

distante.<br />

– Cadete! – repetiu o oficial, balançan<strong>do</strong> o de<strong>do</strong> à sua<br />

frente – Estou falan<strong>do</strong> com você.<br />

31


Mão-de-Onça não tolerava que lhe apontassem o de<strong>do</strong>.<br />

Caiu de dentadas no braço <strong>do</strong> oficial.<br />

1 Peça de fardamento. Espécie de chapéu.<br />

<br />

32


Acampamento<br />

Estava prevista a realização de um acampamento no<br />

próprio Campo <strong>do</strong>s Afonsos em que participariam a minha<br />

turma e a outra logo acima.<br />

Os cadetes seriam dividi<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is grupos: um que<br />

comporia e defenderia o acampamento, e outro – o <strong>do</strong>s<br />

guerrilheiros – que atacaria o acampamento. Eu pertencia<br />

aos que defenderiam o acampamento.<br />

Entusiasmei-me com o exercício. Andava de um posto<br />

para outro, fiscalizava tu<strong>do</strong>, bolava táticas e estratégias.<br />

Como sempre concordei com o adágio de que a melhor defesa<br />

é o ataque, sugeri aos outros passarmos à ofensiva.<br />

O acampamento ficava numa elevação, e metade de seu<br />

perímetro era barranco, o que se constituía numa proteção<br />

natural. O restante era mais vulnerável e, fatalmente, propiciaria<br />

o acesso <strong>do</strong>s guerrilheiros. Daí a importância de<br />

partirmos para a ofensiva.<br />

Tracei o seguinte plano: sabíamos que os guerrilheiros<br />

estavam rastejan<strong>do</strong> lá em baixo, em direção ao acampamento.<br />

A noite era escura e não era possível avistá-los a<br />

olho nu. Dispúnhamos, no entanto, de uma pistola de sinalização<br />

e de alguns cartuchos. Combinamos, então, que<br />

formaríamos uma fileira lá embaixo e que sairíamos corren<strong>do</strong><br />

em frente e berran<strong>do</strong>. Nesse momento, um <strong>do</strong>s nossos,<br />

posiciona<strong>do</strong> no morro, lançaria, em seqüência, uns três tiros<br />

com os sinaliza<strong>do</strong>res. Acreditávamos que os guerrilheiros<br />

se julgariam descobertos e se levantariam para fugir,<br />

dan<strong>do</strong>-nos a oportunidade de apanhá-los. Era a “Operação<br />

Levanta Perdizes”. Assim fizemos, e foi um sucesso.<br />

Várias “perdizes” tentaram levantar vôo.<br />

33


Ainda nessa noite, foram me chamar para ir a um determina<strong>do</strong><br />

posto, na beira <strong>do</strong> barranco. Lá chegan<strong>do</strong>, encontrei<br />

vários cadetes debruça<strong>do</strong>s no barranco, discutin<strong>do</strong>.<br />

Perguntei <strong>do</strong> que se tratava.<br />

– É esse vulto ali embaixo, cola<strong>do</strong> no barranco. Não sabemos<br />

se é pedra ou guerrilheiro.<br />

Ao que respondi:<br />

– Não tem problema. Quem está com vontade de mijar?<br />

Apresentaram-se vários voluntários.<br />

Chamei o mais próximo e disse:<br />

– Mija na pedra.<br />

E lá se foi a primeira mijada. E a pedra não se mexia.<br />

Chamei o próximo.<br />

– Mija na pedra.<br />

E nada. A pedra continuava imóvel.<br />

Chamei o terceiro e repeti:<br />

– Mija na pedra.<br />

Dessa vez, a “pedra” não agüentou. Levantou-se, xingou<br />

a mãe de to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ameaçou dar porrada...<br />

Era o Japonês.<br />

Agüentou três mijadas.<br />

<br />

34


Goteira<br />

Chovia muito no Campo <strong>do</strong>s Afonsos. E havia muito pernilongo.<br />

O Japonês era o único a possuir mosquiteiro, em to<strong>do</strong> o<br />

alojamento. Era daquele tipo quadrangular, arma<strong>do</strong> sobre<br />

a cama.<br />

Depois que o Japonês <strong>do</strong>rmiu, um outro colega foi até lá<br />

e colocou uma pedra de gelo sobre o mosquiteiro, à altura<br />

da cabeça. O gelo derretia e pingava no rosto <strong>do</strong> Japonês.<br />

Esse acordava e, julgan<strong>do</strong> ser uma goteira, arrastava a<br />

cama para outra posição. Voltava a deitar, a “goteira” continuava,<br />

e a cama era arrastada – até derreter to<strong>do</strong> o gelo.<br />

<br />

35


Tiran<strong>do</strong> férias<br />

Transcorria o ano de 1968. Eu estava conflita<strong>do</strong>, não sabia<br />

se continuava na Academia, nem o que fazer da vida.<br />

Resolvi que precisava de umas férias para pôr a cabeça<br />

no lugar e, como a tirada e o processamento das faltas estavam<br />

atrasa<strong>do</strong>s, demorariam a descobrir.<br />

Assim fiz.<br />

Levantava to<strong>do</strong>s os dias, colocava a farda, ia para o rancho<br />

tomar café, voltava, colocava o uniforme de Educação<br />

Física e ia para a quadra de esportes ou para a piscina. Na<br />

hora <strong>do</strong> almoço e <strong>do</strong> jantar, eu repetia o processo. Fiz isso<br />

por um mês. Ninguém me incomo<strong>do</strong>u durante esse perío<strong>do</strong>.<br />

Passa<strong>do</strong>s uns quinze dias <strong>do</strong> término das “férias”, fui<br />

chama<strong>do</strong> para justificar as faltas. O tenente chefe da esquadrilha<br />

começou a ler as fichas de controle:<br />

– Faltou à aula de Resistência <strong>do</strong>s Materiais <strong>do</strong> dia tal;<br />

faltou à aula de...<br />

Interrompen<strong>do</strong>, eu disse:<br />

– Pode parar, tenente. Foram trinta dias de faltas.<br />

– O que houve, Patto? Esteve baixa<strong>do</strong> ao hospital?<br />

– Não, senhor. Estava estressa<strong>do</strong> e resolvi tirar umas<br />

férias.<br />

– Como é?!<br />

– Sim, senhor. Passei trinta dias sem assistir às aulas.<br />

Ficava na praça de esportes ou na piscina.<br />

– Um momento – disse o tenente.<br />

E foi conversar com um colega meu que estava um pouco<br />

afasta<strong>do</strong>, voltan<strong>do</strong> logo a seguir.<br />

– Olhe, não sei o que faço com você. Seu colega garantiu<br />

que você não é louco, mas tenho minhas dúvidas. Vou<br />

36


lhe dar quatro dias de detenção e ficar de olho em você.<br />

Qualquer alteração e você estará a caminho da rua.<br />

Saiu barato.<br />

É como dizem: “não há crime de exceção”.<br />

<br />

37


Aproximação solo<br />

Corria o segun<strong>do</strong> ano de cadetes na Escola de Aeronáutica.<br />

Recebi o briefing 1 de meu instrutor de vôo e seguimos<br />

até o avião, um Fokker T-21, monomotor de treinamento<br />

básico.<br />

A missão consistia em um vôo solo de aproximação 2 . O<br />

instrutor permanecia no solo, na cabeceira da pista, e o<br />

aluno decolava e fazia aproximações de noventa, cento e<br />

oitenta e trezentos e sessenta graus. O instrutor avaliava<br />

cada aproximação.<br />

Dei a partida e taxiei até a cabeceira. Ali o instrutor desceu,<br />

com algumas almofadas. Havíamos combina<strong>do</strong> alguns<br />

códigos sinaliza<strong>do</strong>s com as almofadas.<br />

Em seguida, tomei posição e decolei para a primeira<br />

aproximação.<br />

Saiu perfeita. Toquei logo na cabeceira. Mas, para meu<br />

espanto, o tenente estava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> da cabeceira,<br />

deita<strong>do</strong> sobre as almofadas.<br />

Bateu o conflito. Como eu seria avalia<strong>do</strong> se ele continuasse<br />

<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>?<br />

Resolvi que teria que acordá-lo. E teria que ser com o<br />

avião.<br />

Fiz a outra aproximação como previsto, mas bem próxima<br />

ao tenente. Ao tocar, dei to<strong>do</strong> o motor para fazer barulho,<br />

na esperança de acordá-lo. Mas nada. Continuava<br />

<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.<br />

O pouso seguinte foi radical. Levei o avião a tocar a roda<br />

esquerda a uns <strong>do</strong>is ou três palmos <strong>do</strong> <strong>do</strong>rminhoco. E vim<br />

dan<strong>do</strong> rajadas de motor. Dessa vez, deu certo. Lá de cima,<br />

depois de fazer a volta, era possível enxergá-lo pulan<strong>do</strong> e<br />

38


gesticulan<strong>do</strong>. Mas não fazia nenhum <strong>do</strong>s sinais que havíamos<br />

combina<strong>do</strong>.<br />

<br />

1 Termo em inglês. Significa instrução ou orientação para executar um procedimento ou<br />

ação.<br />

2 Manobra que consiste em “tirar o motor” (desacelerar o avião) em posições preestabelecidas<br />

em relação ao local de pouso. Destina-se ao treinamento para pouso em<br />

emergência.<br />

39


Aula de Resistência <strong>do</strong>s Materiais<br />

Havia um major, no Campo <strong>do</strong>s Afonsos, que nos dava aulas<br />

de Resistência <strong>do</strong>s Materiais.<br />

Em uma de suas aulas, eu me distraía len<strong>do</strong> o livro de História,<br />

quan<strong>do</strong>, interrompen<strong>do</strong> a aula, veio falar comigo.<br />

– Patto, você não devia estudar outra matéria em minha<br />

aula. Mesmo que você já esteja com nota suficiente para passar<br />

na matéria, prestan<strong>do</strong> atenção à aula você vai tirar uma<br />

nota maior e isso vai melhorar a sua classificação. Eu sei que<br />

vocês não se preocupam com a classificação hoje, mas, amanhã,<br />

vão sentir falta...<br />

– Eu não tenho esse problema – argumentei.<br />

– Por que não?<br />

– Porque me considero o primeiro coloca<strong>do</strong> da turma que<br />

vem a seguir.<br />

To<strong>do</strong>s riram, menos o major. Resolvi, então, colocar uns panos<br />

quentes, antes que me desse mal.<br />

– Mas faço um acor<strong>do</strong> com o senhor: eu tiro a melhor nota<br />

na próxima prova, e o senhor deixa-me ler o que eu quiser.<br />

– Feito.<br />

E voltou a dar a aula.<br />

Em conseqüência, parei de estudar tu<strong>do</strong> o mais. Só estudava<br />

Resistência <strong>do</strong>s Materiais. Tirei a maior nota de toda a<br />

turma. E a prova foi de lascar. O major ficou supersatisfeito.<br />

Cumprimentou-me, elogiou-me, disse que eu podia fazer o que<br />

quisesse na sua aula...<br />

Mas é lógico que parei de estudar aquela matéria e tratei de<br />

me recuperar nas outras. E, na prova seguinte de Resistência<br />

de Materiais, tirei zero.<br />

O major nunca mais falou comigo.<br />

<br />

40


Anti<br />

Anti-herói<br />

Eu estava na praia, na Barra da Tijuca.<br />

O mar estava puxan<strong>do</strong>, e a bandeira vermelha estava<br />

hasteada.<br />

De repente, to<strong>do</strong>s começaram a apontar para o mar.<br />

Olhei na mesma direção e vi uma pessoa nadan<strong>do</strong> ao longe,<br />

aparentan<strong>do</strong> estar com problemas. Olhei para to<strong>do</strong>s os<br />

la<strong>do</strong>s e nada. Não havia salva-vidas, ninguém se movimentava<br />

para ajudar.<br />

Fiquei indigna<strong>do</strong>. E, sem mais pensar, entrei n’água e<br />

comecei a nadar, decidi<strong>do</strong> a socorrer aquela pessoa.<br />

À medida que avançava, as ondas ficavam maiores. Ora<br />

eu estava no topo da onda, ora lá embaixo. Logo perdi de<br />

vista o afoga<strong>do</strong>. Foi quan<strong>do</strong> olhei para a praia e constatei<br />

que me afastara demais e comecei a nadar de volta. Havia<br />

uma corrente que me desviava de onde havia saí<strong>do</strong>. Avançava<br />

pouco, o que me obrigou a um maior esforço. Nesse<br />

ínterim, avistei vários salva-vidas, uni<strong>do</strong>s por uma corda,<br />

entran<strong>do</strong> no mar em um ponto distante, alcançan<strong>do</strong> o afoga<strong>do</strong><br />

e tiran<strong>do</strong>-o d’água. E vi to<strong>do</strong>s na praia olhan<strong>do</strong> para<br />

mim, inclusive os salva-vidas. Agora, eu era o afoga<strong>do</strong>.<br />

A muito custo, consegui alcançar a praia... e um salvavidas<br />

me aju<strong>do</strong>u a sair d’água.<br />

<br />

41


Calota<br />

Um colega foi de Chevete assistir a um jogo no Maracanã.<br />

Enquanto estacionava, aproximou-se um “flanelinha” e<br />

perguntou:<br />

– Vai um polimento aí, <strong>do</strong>utor?<br />

E meu colega, depois de olhar para um la<strong>do</strong> e para o<br />

outro, respondeu:<br />

– Não. Mas você está ven<strong>do</strong> aquela roda dianteira, <strong>do</strong><br />

la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong>, sem calota?<br />

– Estou sim.<br />

– Pois quan<strong>do</strong> eu voltar, se estiver com uma calota igual<br />

às outras, você leva uma boa gorjeta.<br />

E o “flanelinha”:<br />

– Deixa comigo, <strong>do</strong>utor.<br />

Ao retornar <strong>do</strong> jogo, meu colega constatou que a roda<br />

estava com uma calota.<br />

Satisfeito, deu uma boa gorjeta para o “flanelinha” e foi<br />

para casa.<br />

Lá chegan<strong>do</strong>, desceu <strong>do</strong> carro, deu a volta para abrir o<br />

portão e, com surpresa, constatou que faltava uma calota<br />

<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>.<br />

<br />

42


Pega<br />

Somente um <strong>do</strong>s meus colegas de turma tinha carro<br />

novo.<br />

Era um Fuscão to<strong>do</strong> incrementa<strong>do</strong>: tinha kadron, suspensão<br />

rebaixada, tu<strong>do</strong>...<br />

Certo dia, andava pelo Rio, quan<strong>do</strong> um sinal fechou, e<br />

ele avançou um pouco a faixa. Engatou a ré e chegou o<br />

carro para trás.<br />

Nesse momento, parou, bem ao seu la<strong>do</strong>, um “boyzinho”,<br />

aceleran<strong>do</strong> para um “pega”. Meu colega aceitou o<br />

desafio e passou, também, a acelerar.<br />

Acelera daqui, acelera de lá, e eis que abre o sinal.<br />

Arrancaram ambos a toda velocidade – o “boyzinho”<br />

para a frente, e meu colega baten<strong>do</strong> no carro de trás.<br />

Havia esqueci<strong>do</strong> de tirar a marcha à ré.<br />

<br />

43


Solo<br />

PIRASSUNUNGA-SP<br />

Solo em avião à jato<br />

Já estava na Academia da Força Aérea.<br />

Taxiava para a cabeceira da pista com o T-37, um jatinho<br />

de treinamento avança<strong>do</strong> para os cadetes avia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> último<br />

ano. Faria meu primeiro vôo solo, no tráfego. O vôo<br />

consistia em cinco toques e arremetidas.<br />

O esquema de segurança era pesa<strong>do</strong>. Havia um instrutor<br />

na torre de controle, um na cabeceira da pista, numa<br />

Kombi que tinha uma bolha em cima e comunicação com os<br />

aviões, e mais um instrutor voan<strong>do</strong> no tráfego, juntamente<br />

com os outros três cadetes solos.<br />

Quan<strong>do</strong> autoriza<strong>do</strong>, entrei na pista, tomei posição para<br />

decolagem e, ao ser libera<strong>do</strong>, dei cem por cento de potência<br />

e disparei pista afora. Ao atingir a velocidade prevista,<br />

tirei o avião <strong>do</strong> solo, recolhi o trem de pouso e desci, aceleran<strong>do</strong><br />

cada vez mais. Voava tão baixo que alguns colegas<br />

que assistiam <strong>do</strong> pátio me disseram que eu quase sumia,<br />

tapa<strong>do</strong> pela grama alta. Ao final da pista, dava uma puxada<br />

no manche, observan<strong>do</strong> o avião à frente e, num relance,<br />

já me encontrava na “perna com o vento” 1 . Foi então que<br />

o instrutor que estava na cabeceira da pista entrou na freqüência<br />

e disse:<br />

– Patto, não foi isso que combinamos no briefing. Não<br />

faça mais isso.<br />

Mas ele falou de uma forma tão gentil e educada que<br />

pensei que estava gostan<strong>do</strong>. E continuei repetin<strong>do</strong> aquilo<br />

que chamávamos de “americana”.<br />

Quan<strong>do</strong> terminou o vôo, to<strong>do</strong>s os instrutores estavam<br />

44


furiosos comigo. Uns queriam me bater, outros prender e<br />

alguns queriam me levar a Conselho.<br />

Felizmente, com o decorrer <strong>do</strong>s dias, os ânimos se acalmaram.<br />

Não sei se fui a Conselho, mas se fui, passei. Tanto é<br />

que estou aqui – já aposenta<strong>do</strong>.<br />

<br />

1 Voan<strong>do</strong> paralelo à pista, normalmente a mil pés de altura.<br />

45


Sobrevivência<br />

Sobrevevência no Xingu<br />

Ainda como cadetes, fomos realizar um curso de sobrevivência<br />

na selva, ministra<strong>do</strong> pelo Parasar. O curso seria<br />

prático, às margens <strong>do</strong>s rios Ronuro e Kolueno, forma<strong>do</strong>res<br />

<strong>do</strong> Xingu. Fomos de avião até o Posto Leonar<strong>do</strong> Villas Boas<br />

e, de lá, prosseguimos de lancha.<br />

Já no primeiro dia, nosso grupo deu uma bobeada. Passamos<br />

o dia limpan<strong>do</strong> a área e fazen<strong>do</strong> a barraca com lona<br />

de pára-quedas e não designamos ninguém para providenciar<br />

comida. Já estávamos no pôr-<strong>do</strong>-sol, quan<strong>do</strong> um tucano,<br />

inadvertidamente, pousou bem acima de nossas cabeças.<br />

Saquei a pistola quarenta e cinco e, com sinais, pedi<br />

silêncio. Fiz pontaria e atirei. O tucano caiu num ro<strong>do</strong>pio.<br />

Mistério! Não estava feri<strong>do</strong>!<br />

A partir de então, fui designa<strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r <strong>do</strong> grupo.<br />

Mas tucano só tem bico... e penas. Depois de limpo, tinha<br />

o corpo de um passarinho. Mesmo assim, foi para a<br />

panela. Deu um pedacinho para cada um, que foi comi<strong>do</strong><br />

com ossos e tu<strong>do</strong>.<br />

O exercício durou cinco dias, como previsto. Voltamos<br />

para o Posto Leonar<strong>do</strong> e ficamos aguardan<strong>do</strong> o avião que<br />

nos levaria de volta para a Academia.<br />

Enquanto isso conversava com um índio Yualapiti. Era<br />

um índio forte, bem maior que qualquer um de nós. Como<br />

eu era bom de braço-de-ferro – ninguém me ganhava na<br />

Academia –, o pessoal queria que eu jogasse com o índio.<br />

Expliquei para ele como era, e jogamos. Não era de nada.<br />

Ganhei fácil. A pressão, agora, era para jogar de<strong>do</strong>. Eu não<br />

queria, pois esse jogo pode quebrar o de<strong>do</strong>. Mas tanto insistiram<br />

que resolvi jogar. Expliquei ao índio, com detalhes,<br />

como era o jogo, e o avisei:<br />

46


– Se eu falar para parar, pare. Esse jogo quebra o de<strong>do</strong>.<br />

Entrelaçamos os de<strong>do</strong>s e apertei bastante.<br />

O índio não apertou e torceu a mão.<br />

Deu para ouvir o estalo. O de<strong>do</strong> dele quase que fica em<br />

minha mão. Queríamos levá-lo para nosso médico, mas ele<br />

não quis. Sem mudar de expressão, colocou o osso no lugar<br />

e ficou massagean<strong>do</strong>, enquanto o de<strong>do</strong> inchava. Pergunteilhe<br />

como faria, e ele me explicou:<br />

– Fico raspan<strong>do</strong> por vários dias (não me lembro quantos),<br />

com dentes de piranha, e pronto. Fica bom.<br />

A técnica consistia em manter o inchaço, que servia de<br />

gesso.<br />

Perguntei-lhe se faziam assim para qualquer osso quebra<strong>do</strong><br />

e me explicou que servia para vários. Alguns eram<br />

mais difíceis, como os ossos da clavícula. Outros, como os<br />

da coluna, não tinham solução. Quebrou, morreu.<br />

<br />

47


Alvorada<br />

To<strong>do</strong>s os dias acordávamos ao som <strong>do</strong> toque de alvorada.<br />

Logo a seguir, o cadete de dia colocava para tocar<br />

um disco de sua preferência (havia um sistema de avisos e<br />

música ambiente nos apartamentos).<br />

E to<strong>do</strong>s os dias tocavam a mesma música: “Meu violão<br />

caiu de cima <strong>do</strong> armário...”. E to<strong>do</strong>s os dias era aquela gritaria:<br />

– Arrego aí ô...<br />

– Desliga essa...<br />

– Enfia...<br />

Até que um dia, um cadete mais irrita<strong>do</strong> desceu até a<br />

Sala <strong>do</strong> cadete de dia e, usan<strong>do</strong> a própria agulha <strong>do</strong> tocadisco,<br />

arranhou to<strong>do</strong> o disco.<br />

No dia seguinte, logo após o toque de alvorada, começou<br />

a música: “Meu violão... crik... de cima... cruoque... armário...<br />

crunch...<br />

<br />

48


Orientação noturna<br />

Realizávamos um exercício de orientação noturna em um<br />

bosque localiza<strong>do</strong> dentro da própria Academia.<br />

Eram vários grupos, cada um identifica<strong>do</strong> por uma cor.<br />

O exercício consistia em localizar, com o auxílio de uma<br />

bússola e de uma lanterna, uma primeira placa de sinalização,<br />

colorida, posicionada a uma determinada distância<br />

e num determina<strong>do</strong> rumo. Nessa placa, havia o rumo e a<br />

distância para a próxima, e assim por diante.<br />

Como o nosso grupo não encontrou a primeira placa,<br />

passamos a andar rápi<strong>do</strong>, em qualquer direção, recolhen<strong>do</strong><br />

todas as placas que encontrávamos.<br />

Foi uma confusão.<br />

Ninguém conseguia encontrar o caminho.<br />

<br />

49


Comemoração<br />

CANOAS-RS<br />

Comemoração<br />

Era dia de festa.<br />

Íamos comemorar o milésimo pouso de instrução sem<br />

nenhum acidente.<br />

O evento ocorreria no 1º Esquadrão Misto de Reconhecimento<br />

e Ataque, sedia<strong>do</strong> na Base Aérea de Canoas, no Rio<br />

Grande <strong>do</strong> Sul, onde eu fazia estágio de piloto de ataque.<br />

Voávamos o NA T-6, um avião em “tandem” 1 , monomotor,<br />

à época utiliza<strong>do</strong> como avião de ataque ao solo.<br />

Estava tu<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>. A banda já estava a postos, os<br />

salgadinhos já estavam à mesa, e o comandante da base já<br />

se encontrava no pátio de manobras, onde seria realizada<br />

a cerimônia.<br />

Eu estava voan<strong>do</strong>. Recebi a incumbência de permanecer<br />

no tráfego e realizar quatro pousos, em “toque e arremetida”<br />

2 , para que um outro colega realizasse o milésimo<br />

pouso.<br />

Fiz o primeiro pouso sem utilizar “flaps” 3 e arremeti; fiz<br />

o segun<strong>do</strong> com flaps, arremeti e recolhi os flaps após a<br />

decolagem; entrei na final para realizar o terceiro pouso e,<br />

para variar, resolvi fazê-lo com flaps e recolhê-los durante a<br />

arremetida (o que era proibi<strong>do</strong> aos estagiários, pela pouca<br />

experiência, pois havia uma tendência a olhar para dentro,<br />

o que, normalmente, resultava na perda de controle da aeronave).<br />

Assim planejei e assim fiz. E não deu outra. Perdi o controle<br />

da aeronave, saí da pista e fui parar dentro de uma<br />

vala de drenagem, com o avião pilona<strong>do</strong> 4 . Sempre de pron-<br />

50


tidão, logo estavam, ao meu la<strong>do</strong>, o carro <strong>do</strong>s bombeiros e<br />

a ambulância. Como eu estava bem, levaram-me para o local<br />

da cerimônia, onde, logo em seguida, a banda começou<br />

a tocar. Meu colega havia completa<strong>do</strong> o milésimo pouso<br />

de instrução. O comandante da base foi ao microfone e<br />

anunciou:<br />

– Comemoramos hoje o milésimo pouso de instrução <strong>do</strong><br />

1º EMRA e o primeiro acidente. Aspirante Patto venha cá.<br />

E lá fui eu, envergonha<strong>do</strong>, para aquele palanque improvisa<strong>do</strong>.<br />

<br />

1 Outra palavra em inglês. Na aviação significa “avião de <strong>do</strong>is lugares, sen<strong>do</strong> um atrás<br />

<strong>do</strong> outro.”<br />

2 Pousa, mas não pára o avião. Acelera o motor e decola novamente.<br />

3 Extensão da asa que propicia um aumento de sustentação.<br />

4 De ponta-cabeça, apoia<strong>do</strong> na hélice e nas rodas <strong>do</strong> trem de pouso.<br />

51


Incidente no trânsito<br />

Caía uma chuva fina sobre Porto Alegre.<br />

Naquela época, o calçamento das ruas <strong>do</strong> centro era de<br />

pedras polidas, muito escorregadias quan<strong>do</strong> molhadas.<br />

Éramos aspirantes. O Pontes, andan<strong>do</strong> pelo centro com<br />

seu Karmann Ghya, sem saber que o calçamento estava<br />

escorregadio, freou um pouco em cima, deslizou e bateu no<br />

carro da frente. Desceu para conversar com o motorista,<br />

que aparentava estar furioso:<br />

– Olha o que você fez. Não sabe dirigir?<br />

Ao que o Pontes respondeu:<br />

– Calma. Se houver algum estrago, eu pago.<br />

– Calma coisa alguma. Pessoas como você não deveriam<br />

dirigir...<br />

Perden<strong>do</strong> a paciência, o Pontes retrucou:<br />

– Quer saber de uma coisa? Se não quer conversar, então<br />

vá à merda.<br />

– O quê? Sabe com quem está falan<strong>do</strong>? – retrucou o<br />

outro.<br />

– Não – respondeu o Pontes.<br />

– Pois saiba que eu sou capitão da Polícia Militar.<br />

Ao que o Pontes prontamente respondeu:<br />

– Bem feito. Quem man<strong>do</strong>u não estudar?<br />

<br />

52


Acidente em São Jerônimo<br />

Estávamos no fim <strong>do</strong> ano. A pilonagem havia si<strong>do</strong> esquecida,<br />

e to<strong>do</strong>s já haviam acumula<strong>do</strong> experiência.<br />

Minha função era coordenar a construção da nova pista,<br />

em São Jerônimo, em terras <strong>do</strong> Exército, onde tínhamos<br />

um stand de tiro aéreo.<br />

Como sempre, decolei de Canoas e rumei para São Jerônimo.<br />

A pista em uso era crítica. Era de cascalho, tinha seiscentos<br />

metros de comprimento, uma cerca de arame farpa<strong>do</strong><br />

em uma cabeceira, uma depressão na outra e uma<br />

ribanceira num <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s.<br />

Havia, também, um tambor posiciona<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is terços <strong>do</strong><br />

comprimento da pista, destina<strong>do</strong> a marcar o ponto limite<br />

para arremeter, no caso de não estar com o avião <strong>do</strong>mina<strong>do</strong><br />

e com a bequilha 1 no chão. O vento estava forte, de través.<br />

Entrei alto na final, o que me custaria alguns metros a<br />

mais de corrida pós-pouso.<br />

Ao chegar no tambor, ainda estava com a bequilha no ar,<br />

mas não arremeti (afinal, eu era um <strong>do</strong>s poucos que nunca<br />

havia arremeti<strong>do</strong> nessa pista). Em conseqüência, precisei<br />

frear muito. Derrapei no cascalho, e o avião saiu da pista,<br />

descen<strong>do</strong> a ribanceira. Voltei a dar motor e colei o manche<br />

para evitar uma pilonagem. Pretendia parar o avião<br />

no pasto, logo abaixo. Entretanto, eu não sabia que ali era<br />

um charco, camufla<strong>do</strong> pela vegetação. Ao atingir o charco,<br />

o avião capotou. Não me recor<strong>do</strong> da pancada. Devo ter<br />

desmaia<strong>do</strong> por algum tempo. Quan<strong>do</strong> acordei, estava de<br />

cabeça para baixo, a cadeira estava quebrada na base, o<br />

capacete estava racha<strong>do</strong> devi<strong>do</strong> à pancada no painel, eu<br />

estava com o topo da cabeça dentro d’água (um olho estava<br />

dentro d’água) e com os braços presos, imobiliza<strong>do</strong>s.<br />

53


Havia cheiro de gasolina e dava para ver a “luz da bruxa” 2<br />

acesa. No início, desesperei-me. Fazia força para soltar os<br />

braços, tentava erguer o avião.<br />

Aos poucos, consegui me acalmar. Foi então que percebi<br />

que um braço podia movimentar-se para frente. Foi só<br />

esticá-lo, dar uma torção, e ele estava livre. Num instante,<br />

soltei o outro, livrei-me <strong>do</strong> pára-quedas e passei a apalpar<br />

a fuselagem, com a faca na outra mão, procuran<strong>do</strong> um local<br />

para romper a lataria. A impressão que eu tinha era de que<br />

a aeronave estava parcialmente enterrada no charco, e que<br />

o único meio de sair era rompen<strong>do</strong> a fuselagem. Foi então<br />

que ouvi passos.<br />

Perguntei:<br />

– Tem alguém aí?<br />

E alguém respondeu.<br />

Voltei a perguntar:<br />

– Está com alguma ferramenta?<br />

E a pessoa informou que estava com uma enxada.<br />

– Cutuca com a enxada por aqui para eu ver se entra luz<br />

– e batia na chapa da fuselagem. Na primeira enxadada,<br />

apareceu luz. Em segun<strong>do</strong>s, eu cavei uma saída com as<br />

mãos.<br />

Antes de sair, enterrei minha faca no barro pensan<strong>do</strong><br />

em não me machucar. Mais tarde a encontraram a mais de<br />

meio metro de profundidade.<br />

Dirigi-me à sede <strong>do</strong> stand. Lá chegan<strong>do</strong>, encontrei o suboficial<br />

encarrega<strong>do</strong> que regressava da estação <strong>do</strong> Exército.<br />

Havia escuta<strong>do</strong> o barulho <strong>do</strong> avião pousan<strong>do</strong> e foi até a<br />

pista. Ao ver o avião naquele esta<strong>do</strong>, chamou e não obteve<br />

resposta. Pensou que eu estivesse morto e foi até a estação<br />

de rádio <strong>do</strong> Exército, para informar à base. Rascunhei,<br />

então, um rádio, nos seguintes termos: “Acidente grave<br />

1244. Perda material total”. Ocorre que o suboficial havia<br />

54


informa<strong>do</strong> “... perda total...”. Como a mensagem passava<br />

por vários pontos, minha mensagem chegou antes e a <strong>do</strong><br />

suboficial após, o que confirmou a minha morte.<br />

Assim, foram desencadea<strong>do</strong>s, na base aérea, os procedimentos<br />

previstos para acidentes com morte: lacraram<br />

meu armário; mandaram avisar a Laura (minha futura mulher);<br />

solicitaram à Escola de Sargentos de Guaratinguetá<br />

que enviasse o capelão para avisar os meus pais, em<br />

Tremembé; compraram meu caixão e prepararam um C-47<br />

para buscar meu corpo. Enquanto isso, eu tomei um banho,<br />

coloquei meu macacão para secar e aguardei. Já mais calmo,<br />

perguntei ao suboficial:<br />

– E aquela caipirinha que vocês fazem para o almoço?<br />

Ao que ele respondeu:<br />

– Mas, tenente, o senhor tomou toda a caipirinha!<br />

E eu pensava que havia toma<strong>do</strong> um copo duplo de limonada!!<br />

E a caipirinha não fez o mínimo efeito.<br />

Como pensavam que eu havia morri<strong>do</strong>, o C-47 demorou<br />

um pouco. Deu tempo de secar, parcialmente, o macacão.<br />

Mas eu ainda estava com um calção empresta<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong><br />

o avião pousou. Fui até o pátio recebê-lo. Dentro <strong>do</strong> avião,<br />

um de meus companheiros reconheceu-me pela janela e<br />

exclamou:<br />

– Olha o Patto ali.<br />

Mas lá havia muitos patos. Pensaram que ele estava<br />

fazen<strong>do</strong> trocadilho e quase lhe bateram. Só quan<strong>do</strong> desembarcaram<br />

é que o mal-entendi<strong>do</strong> foi desfeito. O Comandante<br />

<strong>do</strong> C-47 man<strong>do</strong>u o rádiotelegrafista passar uma<br />

mensagem em morse, avisan<strong>do</strong> que eu estava vivo e bem.<br />

Nesse ínterim, o comandante da base em exercício (o titular<br />

estava de férias) foi chama<strong>do</strong> à Sala de Meios, encarregada<br />

das comunicações, e tomou conhecimento da situa-<br />

55


ção. Saiu em seguida para desfazer todas as providências<br />

em andamento. Mas ele gaguejava, quan<strong>do</strong> ficava nervoso.<br />

Naquele momento, estavam entran<strong>do</strong> no prédio de coman<strong>do</strong><br />

com meu caixão. Segun<strong>do</strong> dizem, gaguejou como nunca<br />

havia gagueja<strong>do</strong> antes.<br />

Houve tempo para cancelar a ida <strong>do</strong> capelão que avisaria<br />

os meus pais e, também, o pai da Laura. Como ela<br />

estava na faculdade, não chegou a ser informada de minha<br />

morte.<br />

De regresso, o C-47 pousou no V Coman<strong>do</strong> Aéreo Regional,<br />

para me deixar no hospital.<br />

Era um procedimento de rotina – ficar um perío<strong>do</strong> em<br />

observação.<br />

Havia uma enfermeira que me conhecia e estava desolada<br />

com minha morte. Ao me avistar, ficou alegre:<br />

– Pensei que fosse o senhor que houvesse morri<strong>do</strong>.<br />

Ao que respondi:<br />

– Fui eu, sim!<br />

Enquanto esses acontecimentos se sucediam, um outro<br />

colega, sedia<strong>do</strong> na Base Aérea de Santa Maria, passou<br />

pela Base Aérea de Canoas com destino a São Paulo ou<br />

Rio de Janeiro. Ficou saben<strong>do</strong> de minha morte e foi espalhan<strong>do</strong><br />

a notícia.<br />

No regresso, alguns dias após, pernoitou na Base Aérea<br />

de Canoas, devi<strong>do</strong> ao avança<strong>do</strong> da hora. Dirigiu-se ao<br />

alojamento, abriu a porta de meu quarto (estava frio e eu<br />

estava coberto, só com a cabeça de fora) e perguntou:<br />

– O Vaca está?<br />

– Não – respondi.<br />

– Obriga<strong>do</strong>.<br />

E fechou a porta. Mas a maçaneta permaneceu abaixada.<br />

E a porta foi abrin<strong>do</strong> devagar.<br />

56


Eu me preparei, colocan<strong>do</strong> a cabeça bem para fora das<br />

cobertas.<br />

Com os olhos arregala<strong>do</strong>s, olhou novamente para mim<br />

e exclamou:<br />

– O Patto!!!<br />

Quan<strong>do</strong> fui transferi<strong>do</strong> da Amazônia para Brasília, costumava<br />

contar histórias de caça<strong>do</strong>r e de pesca<strong>do</strong>r no ônibus<br />

que nos levava para o trabalho.<br />

Quan<strong>do</strong> acabou meu estoque amazônico e me perguntaram<br />

qual ia ser a história <strong>do</strong> dia, eu respondi:<br />

– Hoje eu vou contar uma história diferente, em que eu<br />

morro no final.<br />

Não me deixaram contar.<br />

E era a única verdadeira.<br />

<br />

1 Nessa aeronave, roda pequena posicionada na sua parte traseira.<br />

2 Lâmpada no painel que indica baixo nível de combustível.<br />

57


De pijama<br />

De pijama no casamento<br />

Havia um aspirante da reserva fazen<strong>do</strong> o Curso de Ataque<br />

conosco, em Canoas. Não tinha aquela malícia adquirida<br />

na Escola Preparatória, na Escola de Aeronáutica e na<br />

Academia da Força Aérea.<br />

Na véspera de meu casamento, estavam to<strong>do</strong>s os meus<br />

colegas e instrutores combinan<strong>do</strong> o que fariam no dia seguinte.<br />

Entre outras coisas, combinaram ir de pijama para<br />

a igreja.<br />

No dia seguinte, lá estava o menciona<strong>do</strong> aspirante, à<br />

espera de uma carona. Notou que, dentre os presentes,<br />

só ele estava de pijama. Os demais estavam com o quinto<br />

uniforme, adequa<strong>do</strong> para essas ocasiões. Explicaram para<br />

ele que aqueles que ali estavam iam cruzar as espadas e<br />

que os demais iriam de pijama. Deram-lhe uma carona até<br />

a igreja e, somente quan<strong>do</strong> chegou lá, percebeu o logro.<br />

Ninguém se prontificou a levá-lo de volta. E só lhe emprestaram<br />

o suficiente para voltar de ônibus.<br />

<br />

58


Compran<strong>do</strong> cachimbo<br />

Andava no centro de Canoas quan<strong>do</strong> vi, em uma vitrine,<br />

um paletó que me agradava, com um cachimbo no bolso. E<br />

o cachimbo me agradava mais ainda.<br />

Entrei e pedi para experimentar o paletó, que me serviu<br />

perfeitamente.<br />

Resolvi comprá-lo e pedi à vende<strong>do</strong>ra que o embrulhasse.<br />

– E não se esqueça <strong>do</strong> cachimbo – comentei.<br />

– Mas o cachimbo não está à venda. É só um enfeite<br />

– replicou.<br />

– Nada feito. Estavam na vitrine paletó e cachimbo. Ou<br />

levo os <strong>do</strong>is ou não levo nada.<br />

– Aguarde um momento que vou consultar o <strong>do</strong>no da<br />

loja.<br />

E voltou logo a seguir.<br />

– Tu<strong>do</strong> bem. O senhor pode levar o cachimbo. Vou embrulhá-lo<br />

juntamente com o paletó.<br />

Saí da loja to<strong>do</strong> satisfeito. Estava queren<strong>do</strong> mesmo fumar<br />

cachimbo.<br />

Mas ao chegar na base e desembrulhar o pacote, constatei<br />

que o cachimbo não tinha furo, não funcionava. Era<br />

enfeite mesmo.<br />

<br />

59


Primeira discussão<br />

Com pouco tempo de casa<strong>do</strong>s, tivemos nossa primeira<br />

discussão. E ela foi crescen<strong>do</strong>, fican<strong>do</strong> acalorada.<br />

Em um da<strong>do</strong> momento ameacei, ríspi<strong>do</strong>:<br />

– Cale a boca, senão...<br />

E a Laura, pon<strong>do</strong> a mão na cintura:<br />

– Senão o quê?<br />

– Senão calo eu – respondi.<br />

Foi nossa primeira e última discussão.<br />

<br />

60


O jogo<br />

O jogo <strong>do</strong>s três copinhos<br />

Ainda era aspirante a oficial.<br />

Passeava por Canoas, quan<strong>do</strong> deparei com <strong>do</strong>is indivíduos<br />

jogan<strong>do</strong> alguma coisa em cima de um caixote.<br />

Fui ver de que se tratava.<br />

Havia três copinhos e uma bolinha. A “banca” colocava<br />

um <strong>do</strong>s copinhos sobre a bolinha e manipulava os copos,<br />

mudan<strong>do</strong> suas posições. Invariavelmente, o outro sujeito<br />

errava. Invariavelmente, eu sabia onde estava a bolinha.<br />

Resolvi apostar.<br />

E, invariavelmente, passei a perder.<br />

De repente, percebi que estava sen<strong>do</strong> engana<strong>do</strong>. Saquei<br />

o 38 e fiz os <strong>do</strong>is marcharem, de pernas abertas, até a delegacia.<br />

Coisa de aspirante – à época.<br />

<br />

61


Ultrapassagem<br />

Fui com alguns colegas ao casamento de um outro, em<br />

uma cidade ao norte <strong>do</strong> Paraná.<br />

Estávamos em quatro e viajávamos em um Fuscão empresta<strong>do</strong>.<br />

Naquele momento, eu dirigia.<br />

Estava difícil ultrapassar uma carreta à minha frente. O<br />

Fuscão não tinha potência e, nas descidas, a carreta acelerava<br />

ainda mais.<br />

Numa daquelas descidas, mais acentuada que as anteriores,<br />

resolvi ultrapassar. Acelerei tu<strong>do</strong> que podia, emparelhei<br />

com a carreta e fui avançan<strong>do</strong> devagar.<br />

Foi quan<strong>do</strong> surgiu, lá à frente, uma outra carreta, também<br />

na descida. Achei que conseguiria e continuei a acelerar.<br />

Logo ficou patente que não daria para ultrapassar.<br />

Voltar era impossível.<br />

Sem alternativa, continuei aceleran<strong>do</strong> e cheguei o mais<br />

para a direita que me foi possível, esperan<strong>do</strong> que a estrada<br />

comportasse os três.<br />

Não comportou.<br />

A carreta, à minha frente, tirou uma roda para fora da<br />

estrada e, entre buzinadas, freadas e poeirada, passamos<br />

os três.<br />

Só então me dei conta de estar sozinho à frente. O companheiro<br />

que estava no banco ao la<strong>do</strong> havia sumi<strong>do</strong>. Na<br />

confusão, havia pula<strong>do</strong> para o banco de trás.<br />

Paramos para respirar e para desabafar.<br />

Desabafaram inclusive na minha mãe, que não tinha<br />

nada a ver com isso.<br />

<br />

62


Severino<br />

AMAZÔNIA<br />

Severino, um brasileiro<br />

Houve uma época em que participei <strong>do</strong> projeto Radam,<br />

destina<strong>do</strong> a levantar o potencial da Amazônia nos aspectos<br />

de extração de madeiras, fertilidade <strong>do</strong> solo e presença de<br />

minérios. Consistia em levar, de helicóptero, uma equipe<br />

de quatro homens para descerem de rapel 1 na selva, em<br />

pontos predetermina<strong>do</strong>s, com a finalidade de abrir uma clareira<br />

que permitisse o pouso <strong>do</strong> helicóptero. Deixávamos<br />

a equipe no ponto e voltávamos para recolhê-los no prazo<br />

por ela estipula<strong>do</strong>. Posteriormente, levávamos os técnicos<br />

para essas clareiras.<br />

Certa vez levamos uma equipe de rapel para um ponto<br />

distante sete minutos e trinta segun<strong>do</strong>s de vôo, a partir de<br />

uma pequena ilha fluvial no rio Roosevelt, a cerca de quatrocentos<br />

quilômetros ao sul de Porto Velho. Na ida, notamos<br />

que era possível aguardar, pousa<strong>do</strong> nessa ilha, até o<br />

término da abertura da clareira. Desse mo<strong>do</strong>, economizaríamos<br />

combustível.<br />

Notamos, também, que havia uma cabana bem próxima,<br />

a única moradia das re<strong>do</strong>ndezas. Uma outra nas proximidades<br />

situava-se a cerca de quarenta quilômetros rio acima.<br />

Além dessa, o vazio de seres humanos e a plenitude da<br />

floresta.<br />

Sabíamos que o barulho <strong>do</strong> helicóptero atrairia os mora<strong>do</strong>res<br />

ali ao la<strong>do</strong>.<br />

Dito e feito.<br />

Deixamos a equipe no ponto previsto e pousamos na pequena<br />

ilha. A seguir, fizemos fogo para aquecer a “meia-<br />

63


trava” – denominação da comida que levávamos. Não<br />

demorou nada e eis que surge o mora<strong>do</strong>r da cabana mais<br />

próxima. Vinha em uma canoa cheia de crianças. Atracou,<br />

cumprimentou e o convidamos para comer. Recusou, mas<br />

aceitou um cigarro com filtro que alguém lhe oferecera. E<br />

começamos a conversar:<br />

– Como é seu nome? – perguntei-lhe.<br />

– Severino – respondeu.<br />

– Você é filho de um “solda<strong>do</strong> da borracha” 2 ?<br />

– Sim, senhor.<br />

– Já tinha visto um desses? – perguntei, apontan<strong>do</strong> para<br />

o helicóptero.<br />

– Não, senhor.<br />

Uma observação: essa resposta nos dá uma idéia da<br />

imensidão da Amazônia. A Amazônia legal corresponde a<br />

cinqüenta e um por cento <strong>do</strong> território nacional.<br />

– Há quanto tempo você mora aqui?<br />

– Eu nasci aqui.<br />

– Teve muitos irmãos?<br />

– Sim, senhor.<br />

– E o que foi feito deles?<br />

– Pegaram o regatão e saíram pelo mun<strong>do</strong>.<br />

– Suas irmãs também?<br />

– Sim, senhor. Casavam e iam embora.<br />

– Casavam como?<br />

– Algum homem no regatão se engraçava e as levava<br />

embora.<br />

Detalhe: o regatão é um barco que faz comércio com os<br />

ribeirinhos, na base da troca, <strong>do</strong> escambo. Permanece em<br />

cada local o tempo suficiente para efetuar as trocas – no<br />

64


caso, alguns minutos.<br />

– E quantos anos tinham suas irmãs quan<strong>do</strong> foram embora?–<br />

voltei a perguntar.<br />

– Uns treze – respondeu-me.<br />

– E essa menina? – perguntei, apontan<strong>do</strong> para sua filha,<br />

aparentemente entran<strong>do</strong> na puberdade.<br />

– Já está quase no ponto.<br />

– E quantos filhos você tem?<br />

– Tive treze, mas só vingaram cinco.<br />

– Você não acha que vive muito isola<strong>do</strong>?<br />

– Não. Meu compadre mora perto (referia-se à cabana<br />

distante quarenta quilômetros rio acima).<br />

– Se você, de alguma forma, ganhasse muito dinheiro, o<br />

que faria?<br />

– Ah! Eu compraria teci<strong>do</strong>s nas Casas Pernambucanas,<br />

em Porto Velho.<br />

– Por quê?<br />

– Porque a chita está muito cara no regatão.<br />

– E como você sabe que em Porto Velho é mais barata?<br />

– É que meu pai me levou lá quan<strong>do</strong> eu era criança.<br />

– Você não gostaria de ir a uma cidade maior que Porto<br />

Velho?<br />

Olhou-me cheio de espanto e exclamou:<br />

– Maior que Porto Velho?!<br />

Continuei a perguntar:<br />

– O que você acha <strong>do</strong> governo?<br />

E ele me respondeu:<br />

– Ah! O governo está muito bom.<br />

– Por quê?<br />

– Porque o regatão já passou por aqui duas vezes este<br />

ano.<br />

65


Não me lembro de toda a conversa, mas ficou em minha<br />

memória esse encontro com Severino, um brasileiro que<br />

vive com sua família no coração da Floresta Amazônica.<br />

<br />

1 Técnica de descida, deslizan<strong>do</strong> por uma corda.<br />

2 Nordestino desloca<strong>do</strong> para a Amazônia durante a II Grande Guerra, para extrair bor-<br />

racha.<br />

66


Regula<strong>do</strong>r Xavier<br />

Havia um colega cujo irmão possuía um regatão e com<br />

ele navegava pelos rios da Amazônia, efetuan<strong>do</strong> as trocas.<br />

Como sempre lhe pediam remédios, embarcou, em uma de<br />

suas viagens, um grande estoque de Regula<strong>do</strong>r Xavier, próprio<br />

para regular a menstruação.<br />

Na ida, enquanto subia o rio, ia deixan<strong>do</strong> o Regula<strong>do</strong>r<br />

Xavier para qualquer queixa apresentada. Receitava para<br />

tu<strong>do</strong> – de <strong>do</strong>r de cotovelo a unha encravada.<br />

No regresso, vinha preocupa<strong>do</strong>. Será que não estariam<br />

bravos com ele?<br />

Para seu espanto, to<strong>do</strong>s ficaram satisfeitos e queriam<br />

mais “daquele remédio bom para qualquer coisa”.<br />

<br />

67


Laura em Belém<br />

Laura estava grávida <strong>do</strong> Cláudio, e o parto estava previsto<br />

para aqueles dias.<br />

Eu havia saí<strong>do</strong> para uma viagem de oito dias, já se haviam<br />

passa<strong>do</strong> vinte e não havia previsão de regresso.<br />

Laura decidiu resolver o problema. Foi até a casa <strong>do</strong> comandante<br />

da base, bateu e foi atendida pelo próprio comandante.<br />

– Pois não, minha senhora.<br />

– O menino vai nascer e quero meu mari<strong>do</strong> de volta.<br />

– Mas quem é seu mari<strong>do</strong>?<br />

– O tenente Patto.<br />

– Mas, minha senhora, é impossível tirá-lo de lá. Estamos<br />

sem helicóptero e lá não dá para pousar avião.<br />

– Isso é problema <strong>do</strong> senhor. O meu é ter meu mari<strong>do</strong><br />

aqui. Lugar de pai é com a mãe no nascimento <strong>do</strong> filho.<br />

No dia seguinte, um Sêneca 1 pousou aos trancos e barrancos<br />

no local onde eu estava.<br />

– Viemos te buscar para o nascimento de teu filho. Tua<br />

mulher está ameaçan<strong>do</strong> bater no comandante – comentou<br />

o piloto.<br />

1 Pequeno avião bimotor.<br />

<br />

68


Super-Homem<br />

Logo que chegamos a Belém, eu estava toma<strong>do</strong> pelo<br />

“Complexo de Super-Homem”. Era jovem, estava no auge<br />

<strong>do</strong> vigor e destreza física e achava que podia tu<strong>do</strong>, que<br />

nada ocorreria comigo.<br />

Como na Amazônia há muita malária, tomávamos antimalárico<br />

(Fancidá, Aralem e Primaquina) como medida<br />

preventiva. De vez em quan<strong>do</strong>, tomávamos também um<br />

anti-helmítico (Flagil). Na bula, estava escrito que a <strong>do</strong>se<br />

máxima diária era de quatro comprimi<strong>do</strong>s.<br />

Eu tomava oito!<br />

Pior ainda. Era comum, na região <strong>do</strong> Amapá, ficar infesta<strong>do</strong><br />

por um tipo de carrapato minúsculo – o micuim.<br />

Era difícil livrar-se dele. Então, criei um processo infalível:<br />

colocava a roupa para ferver e passava Detefon em to<strong>do</strong><br />

o corpo.<br />

Haja complexo! Mas só muito depois teria consciência<br />

de que os abusos da juventude têm um preço. E até que<br />

saiu barato. Somente vim a ter o Parkinson.<br />

“Se os jovens soubessem, se os velhos pudessem...”<br />

<br />

69


A formação<br />

A formação <strong>do</strong> universo,<br />

segun<strong>do</strong> os Ianomâmi<br />

Em visita a uma tribo de índios Ianomâmis, em Roraima,<br />

conversava com um missionário que ali estava havia trinta<br />

anos. Curioso, pedi-lhe que contasse alguma história a respeito<br />

desses índios.<br />

Atenden<strong>do</strong> a meu pedi<strong>do</strong>, passou a narrar o que denominei<br />

“a formação <strong>do</strong> universo segun<strong>do</strong> os Ianomâmi”:<br />

“Há muito, muito tempo, tu<strong>do</strong> que existia era um mun<strong>do</strong><br />

em forma de bloco, boian<strong>do</strong> no espaço. Nele viviam os Ianomâmi<br />

e to<strong>do</strong>s os bichos e plantas. E viviam muito bem.<br />

Todavia, como os Ianomâmi desagradaram a seus deuses,<br />

eles deixaram que este mun<strong>do</strong> apodrecesse e esfarelasse.<br />

E esses farelos se espalharam, como podemos constatar<br />

a noite, no céu. São as estrelas. E, em cada um desses<br />

farelos, vivem, ainda hoje, Ianomâmi, bichos e plantas. E<br />

acreditam que, um dia, os deuses vão per<strong>do</strong>á-los e permitirão<br />

que esses farelos se aglutinem, voltan<strong>do</strong> ao esta<strong>do</strong><br />

original.<br />

E vai ser bom, porque reunirá, novamente, to<strong>do</strong>s os Ianomâmi”.<br />

<br />

70


Piadinha amazônica<br />

João e Maria viajavam de regatão.<br />

Entraram já ao anoitecer e penduraram suas redes.<br />

Caiu a noite. Era uma noite particularmente escura.<br />

Não havia reflexos na água, nem se viam estrelas no<br />

céu.<br />

Não dava para enxergar a ponta <strong>do</strong> nariz.<br />

Maria chama João:<br />

– João!<br />

– O que é Maria?<br />

– Tu tá em mim?<br />

– Tô não.<br />

– Então tão!<br />

<br />

71


Questão de nome<br />

Numa ocasião, um <strong>do</strong>s tenentes <strong>do</strong> esquadrão voava<br />

com um T-25, de São Luís, no Maranhão, para Fortaleza, no<br />

Ceará, e teve uma parada de motor. De imediato, executou<br />

o procedimento de emergência previsto e, como o motor<br />

não deu nova partida, prosseguiu planan<strong>do</strong> até pousar na<br />

pista de uma pequena cidade <strong>do</strong> interior.<br />

Pousou bem, mas como não havia consegui<strong>do</strong> comunicar-se<br />

com o centro de área para informar que iria pousar,<br />

dirigiu-se à telefônica local, explicou a situação para a telefonista<br />

e solicitou à mesma que enviasse um reca<strong>do</strong> para o<br />

esquadrão, para que alguém fizesse uma ligação de retorno.<br />

E permaneceu aguardan<strong>do</strong>.<br />

Recebi o reca<strong>do</strong> e, de imediato, liguei para a telefonista<br />

local, ten<strong>do</strong>-me identifica<strong>do</strong> como capitão Patto, ao que ela<br />

respondeu:<br />

– Como é seu nome?<br />

– Patto – repeti.<br />

E ela desligou o telefone. Pensava que era trote.<br />

E eu tinha pressa de falar com o tenente.<br />

Voltei a ligar.<br />

Atendeu outra telefonista e foi logo perguntan<strong>do</strong>:<br />

– Como é seu nome?<br />

– Paton – respondi. O mesmo nome <strong>do</strong> general americano.<br />

Só então fui atendi<strong>do</strong>.<br />

Mas um nome desse tem muitas vantagens.<br />

Uma delas é que to<strong>do</strong>s lembram, e você fica logo conheci<strong>do</strong>.<br />

A outra é que gera piadas e brincadeiras, o que facilita<br />

um relacionamento bem-humora<strong>do</strong>. E, para adiantar as coi-<br />

72


sas, costumo fazer eu mesmo as chacotas.<br />

Mas a melhor foi feita por um grande amigo, a quem prezo<br />

muito. Ele passou vários dias me chaman<strong>do</strong> de “Patto,<br />

o Polivalente”. E eu deixava passar. Mas, depois de alguns<br />

dias, a curiosidade venceu e perguntei o porquê. Ao que ele<br />

respondeu:<br />

– Pato: anda, nada, mergulha e voa... mal.<br />

Mas o que me contraria nessa questão de nome é que<br />

to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> acaba “pagan<strong>do</strong> o pato” – e até agora não recebi<br />

nem um centavo. Aquele que estiver deven<strong>do</strong>, queira,<br />

por gentileza, enviar o montante, em cheque, para o meu<br />

editor.<br />

<br />

73


Poliglota<br />

Como tenente, fui encarrega<strong>do</strong> de realizar uma Investigação<br />

de Acidente Aeronáutico, envolven<strong>do</strong> uma aeronave<br />

de procedência norte-americana que estava sen<strong>do</strong> trasladada<br />

para um país africano.<br />

O motor apresentou falha em vôo, e o piloto pousou em<br />

uma cidade interiorana para verificar o problema. Ao pousar,<br />

a bequilha quebrou, o que causou alguns danos à aeronave.<br />

Eu já sabia que o piloto não falava português – e eu não<br />

entendia inglês.<br />

Lá chegan<strong>do</strong>, em conversa com o guarda-campo1 , manifestei<br />

minha preocupação lingüística, ao que ele retrucou:<br />

– Pode deixar comigo, tenente. Por aqui passam muitos<br />

americanos, e eu sei falar com eles.<br />

Estranhei. Mas permanecemos aguardan<strong>do</strong>.<br />

Não demorou muito e chegou o piloto envolvi<strong>do</strong> no acidente.<br />

E o guarda-campo foi logo dizen<strong>do</strong>:<br />

– Mim querer saber problema...<br />

E achava que estava falan<strong>do</strong> inglês!<br />

<br />

1 Indivíduo encarrega<strong>do</strong> de manter o campo desimpedi<strong>do</strong> para pouso e de manter, em<br />

livro próprio, o movimento de aeronaves.<br />

74


Outra grávida<br />

Um colega, piloto <strong>do</strong> outro esquadrão, ia ficar noivo e<br />

nos convi<strong>do</strong>u, Laura e eu, para a festa de noiva<strong>do</strong>. Não<br />

conhecíamos a noiva. Como eu viajava muito, não fomos<br />

ao noiva<strong>do</strong> e, protelan<strong>do</strong>, acabamos por não enviar nem<br />

mesmo um telegrama.<br />

Passou o tempo.<br />

Eis que um dia recebemos novo convite, dessa vez para<br />

o casamento.<br />

Novamente, ocorreu o mesmo. Não comparecemos e<br />

não enviamos presente ou congratulações.<br />

Passa<strong>do</strong>s vários meses, estávamos no Clube, quan<strong>do</strong><br />

nos deparamos com o casal. Ainda com a consciência pesada<br />

devi<strong>do</strong> ao descaso anterior, fui cumprimentá-los, to<strong>do</strong><br />

efusivo:<br />

– E então? Há muito queria conhecê-la.<br />

E, sem titubear:<br />

– E o nenê, para quan<strong>do</strong> é?<br />

Ao que ela respondeu, pausadamente:<br />

– Eu não estou grávida!<br />

Era gordinha por natureza.<br />

<br />

75


A mão<br />

A mão decepada<br />

Eu estava, novamente, em operação no Radam.<br />

O acampamento era grande. Cerca de cem civis e vinte<br />

e cinco militares.<br />

Contávamos com quatro helicópteros para cumprir a<br />

missão, um avião Islander, de apoio logístico, barracas de<br />

cobertura dupla, gera<strong>do</strong>r, freezer, fogões, máquina de lavar<br />

roupa, cozinheiros, uma enfermaria, médico, enfermeiro...<br />

À época, eu era primeiro-tenente e, naquela manhã, o<br />

militar de patente mais elevada. Como tal, eu chefiava a<br />

fração aérea.<br />

Os civis tinham sua própria chefia, mas era comum recorrerem<br />

aos militares quan<strong>do</strong> ocorria algo mais grave.<br />

Não havia termina<strong>do</strong> de tomar o café quan<strong>do</strong> vieram me<br />

chamar:<br />

– Tenente, o administra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Radam está aí e quer falar<br />

com o senhor.<br />

Fui até ele. Estava acompanha<strong>do</strong> de <strong>do</strong>is peões, um deles<br />

com a mão quase que totalmente decepada. Mandei<br />

chamar o médico e acionei o piloto <strong>do</strong> Islander para uma<br />

decolagem imediata, com destino a Manaus. Em poucos<br />

minutos, decolaram o piloto, o médico e o peão feri<strong>do</strong>.<br />

Voltei-me, então, para o outro peão:<br />

– Foi você quem fez aquilo? – inquiri.<br />

– Sim, senhor.<br />

– Bebida? (Era proibi<strong>do</strong> o ingresso de bebidas no acampamento).<br />

– Sim, senhor.<br />

– Como foi?<br />

– Com facão.<br />

– Prepare suas coisas que amanhã você segue de Islander<br />

para Manaus, para ser entregue à polícia.<br />

76


Era o que eu podia fazer, naquela situação. Eu achava<br />

que ele fugiria à noite, entran<strong>do</strong> na mata.<br />

Mas, no dia seguinte, lá estava ele, com sua trouxa,<br />

aguardan<strong>do</strong> o Islander para seguir preso para Manaus.<br />

<br />

77


O <strong>rabo</strong><br />

O <strong>rabo</strong> <strong>do</strong> <strong>macaco</strong><br />

No folclore amazônico, há muitos talismãs destina<strong>do</strong>s<br />

a dar sorte. Um <strong>do</strong>s mais conheci<strong>do</strong>s é o <strong>rabo</strong> <strong>do</strong> <strong>macaco</strong><br />

prego.<br />

A esse respeito, contam que, certa vez, viajavam pela<br />

Amazônia, de Catalina 1 , um brigadeiro, pilotan<strong>do</strong>, e sua esposa,<br />

de passageira.<br />

Em um <strong>do</strong>s locais em que pousaram, alguém deu à esposa<br />

<strong>do</strong> brigadeiro um <strong>macaco</strong> prego. Fazia, porém, muito<br />

calor no Catalina, e a viagem era demorada.O <strong>macaco</strong><br />

começou a passar mal e, com o decorrer da viagem, foi<br />

pioran<strong>do</strong>. Foi então que o mecânico de bor<strong>do</strong> perguntou à<br />

esposa <strong>do</strong> brigadeiro:<br />

– Madame! Se o <strong>macaco</strong> morrer a senhora me dá o<br />

<strong>rabo</strong>?<br />

Fez-se silêncio total.<br />

Achan<strong>do</strong> que havia da<strong>do</strong> mancada, resolveu consertar:<br />

– Do <strong>macaco</strong>, é lógico.<br />

<br />

1 Avião anfíbio. Foi muito utiliza<strong>do</strong> na Amazônia.<br />

78


O mistério<br />

O mistério <strong>do</strong>s peixes<br />

Lembro-me também de um dia em que aguardávamos o<br />

término da abertura de uma clareira, pousa<strong>do</strong>s numa formação<br />

rochosa parecida com o Pão de Açúcar, na região de<br />

São Gabriel da Cachoeira.<br />

Ali, no topo, havia uma depressão onde se acumulara<br />

água da chuva. Como na Amazônia chove to<strong>do</strong> dia, era razoável<br />

esperar que aquele laguinho fosse perene. O que<br />

nos garantiu isso foi a presença de peixinhos nesse lago.<br />

Daí a pergunta: como os peixinhos foram parar lá?<br />

Fiquei com essa dúvida durante anos até que, um dia,<br />

meu filho, já biólogo, explicou-me:<br />

– Os passarinhos ciscam nas margens <strong>do</strong>s riachos e ficam,<br />

às vezes, com barro gruda<strong>do</strong> nos pés. Nesse barro,<br />

pode haver ovas de peixes, o que se constitui um meio de<br />

transporte até o topo da formação rochosa.<br />

Quem diria!<br />

<br />

79


O parto<br />

O parto da índia Ianomâmi<br />

A índia Ianomâmi, quan<strong>do</strong> vai parir, embrenha-se na mata<br />

e tem o filho sozinha. Assim que nasce, se for o seu desejo,<br />

ela o mata e enterra – o que faz, normalmente, quan<strong>do</strong> está<br />

amamentan<strong>do</strong> outro filho.<br />

Caso retorne à aldeia com a criança, perde esse direito.<br />

O filho passa a ser da tribo, e não mais dela.<br />

<br />

80


Ainda Ianomâmi<br />

Novamente operan<strong>do</strong> a partir da tribo Ianomâmi, conversava<br />

com o padre Carlos, missionário que lá estava havia<br />

anos, quan<strong>do</strong> passaram <strong>do</strong>is índios com o corpo to<strong>do</strong><br />

pinta<strong>do</strong>. Andavam abraça<strong>do</strong>s, ou melhor, parecia que dançavam.<br />

Perguntei ao padre Carlos <strong>do</strong> que se tratava, e ele explicou:<br />

– Às vezes, quan<strong>do</strong> o índio vai caçar, e passa vários dias<br />

fora, sua mulher deita com outro índio. Quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong><br />

regressa, ela tem que escolher com qual ficar, pois não<br />

pode ficar com os <strong>do</strong>is. Ambos se pintam dessa maneira,<br />

para ficarem enfeita<strong>do</strong>s e bonitos, e ficam desfilan<strong>do</strong> pela<br />

aldeia, abraça<strong>do</strong>s, aguardan<strong>do</strong> a decisão da índia.<br />

<br />

81


Colhen<strong>do</strong> castanha<br />

Voava de regresso de mais um dia de Radam, com o professor<br />

Murça a bor<strong>do</strong>. Ele era um cientista <strong>do</strong> museu Emílio<br />

Goeldi, em Belém, e, às vezes, vinha voar conosco. Era um<br />

prazer conversar com ele. Era botânico, sabia tu<strong>do</strong>.<br />

Naquele momento, estávamos passan<strong>do</strong> por uma espécie<br />

de bosque. As árvores eram todas iguais. O professor<br />

Murça ficou logo indócil. Perguntei ao artilheiro:<br />

– O que está haven<strong>do</strong>?<br />

– É o professor Murça. Quer saber se é possível apanhar<br />

uma castanha daquelas árvores.<br />

– Você está com o “<strong>rabo</strong> de gato” 1 ?<br />

– Sim, senhor.<br />

– Então, diga a ele que sim, mas que permaneça com os<br />

cintos fecha<strong>do</strong>s.<br />

Fazen<strong>do</strong> um flare (manobra que desacelera o helicóptero),<br />

pairei sobre uma daquelas árvores e fui mergulhan<strong>do</strong><br />

nela até onde foi possível.<br />

O artilheiro, de pé no esqui 2 , não teve dificuldade – apanhou<br />

uma castanha e fomos embora.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos ao acampamento, fomos, de imediato,<br />

falar com o professor Murça, para saber o motivo de<br />

tanto entusiasmo.<br />

Como sempre, brin<strong>do</strong>u-nos com uma aula. Disse que<br />

aquelas árvores viviam em simbiose com determinadas<br />

formigas – daí terem o mesmo nome (não me recor<strong>do</strong> o<br />

nome). Essa árvore leva seis anos para crescer, florescer e<br />

dar a castanha e floresce uma só vez. Quan<strong>do</strong> isso ocorre,<br />

sua seiva torna-se a<strong>do</strong>cicada, e a formiga alimenta-se dela.<br />

Com isso mata a árvore.<br />

82


Nesse meio tempo, a formiga protege a árvore <strong>do</strong> ataque<br />

de outros insetos.<br />

<br />

1 Colete <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de um tirante que fica preso à fuselagem. Provê segurança.<br />

2 No UH-1H, substitui as rodas.<br />

83


Pernoite na clareira<br />

Numa ocasião em que operávamos no Radam, tínhamos<br />

que deixar uma equipe de rapel para abrir uma clareira que<br />

já se sabia trabalhosa. No dia anterior, havíamos tenta<strong>do</strong>,<br />

mas a corda, normalmente utilizada, era pequena (cinqüenta<br />

metros). As árvores, nesse local, eram altas, mas agora<br />

levávamos uma corda de oitenta metros. O chefe da equipe<br />

de rapel já havia combina<strong>do</strong> que, por via das dúvidas, eles<br />

só deveriam ser resgata<strong>do</strong>s no dia seguinte. Pernoitariam<br />

na clareira.<br />

Deixamos a equipe no local e regressamos.<br />

À tardinha, porém, recebemos um comunica<strong>do</strong> da equipe,<br />

via rádio, que houvera um acidente e estavam precisan<strong>do</strong><br />

de um médico. Perguntei se era possível pousar e<br />

afirmaram que sim, alertan<strong>do</strong>, porém, que a única aproximação<br />

possível era de frente a uma castanheira, por dentro<br />

de um “túnel” de árvores.<br />

Devi<strong>do</strong> ao avança<strong>do</strong> da hora, se fôssemos de imediato,<br />

chegaríamos ao local ao anoitecer. Teríamos que pousar de<br />

qualquer maneira, e o risco era grande. Consultei a tripulação<br />

e o médico, e to<strong>do</strong>s concordaram em fazer a missão.<br />

Decolamos de imediato e para lá nos dirigimos, com a<br />

velocidade máxima permitida pelo helicóptero. Chegamos<br />

ao anoitecer e, realmente, só havia aquela opção para aproximação<br />

e pouso.<br />

Felizmente, o acidente não havia si<strong>do</strong> grave – um pau<br />

havia caí<strong>do</strong> na cabeça de um <strong>do</strong>s peões, e ele havia desmaia<strong>do</strong>.<br />

<br />

84


Plantas carnívoras<br />

Em outra ocasião, estávamos na Serra <strong>do</strong> Aracá, e o<br />

professor Murça estava conosco. Comíamos a “meia-trava”,<br />

à beira de um riacho.<br />

A certa altura, perguntei:<br />

– Professor, na Amazônia existem muitas variedades de<br />

plantas carnívoras?<br />

Ao que ele respondeu:<br />

– Você está senta<strong>do</strong> em cima de uma.<br />

Não pude me conter. Levantei-me de um pulo.<br />

– Onde está, professor?<br />

– Procurem que vocês acham<br />

To<strong>do</strong>s já estavam procuran<strong>do</strong>.<br />

Procura daqui, procura dali e nada. Ninguém encontrava.<br />

– Estão ven<strong>do</strong> essas florzinhas vermelhas, bem pequeninas?<br />

– e apontou para uma flor que devia ter, no máximo,<br />

uns <strong>do</strong>is milímetros de diâmetro.<br />

– Apanhem uma dessas – voltou a observar.<br />

– Agora, olhem para ela, pon<strong>do</strong>-a contra o sol. O que<br />

vêem?<br />

– Umas bolinhas meio transparentes – disse eu.<br />

– Pois essas bolinhas são como uma cola. Pequenos insetos<br />

pousam aí, ficam gruda<strong>do</strong>s, e a planta os digere.<br />

– Agora, apanhem, no riacho, uma daquelas que está<br />

boian<strong>do</strong>. Essas coisas que parecem raízes são, na realidade,<br />

tentáculos. Servem para capturar pequenos animais<br />

aquáticos.<br />

Ficou uma lição. Os olhos servem para ver, não para enxergar.<br />

Para enxergar, é preciso saber ver.<br />

<br />

85


Cachoeira <strong>do</strong> Aracá<br />

A Serra <strong>do</strong> Aracá faz parte de uma formação montanhosa<br />

da Venezuela. É um platô com escarpas íngremes no<br />

la<strong>do</strong> brasileiro.<br />

Toda a região é rica em ouro e diamantes. O terreno tem<br />

uma composição argilosa que o torna parcialmente impermeável.<br />

O riacho às margens <strong>do</strong> qual conversávamos com<br />

o professor Murça é um <strong>do</strong>s escoa<strong>do</strong>uros <strong>do</strong> platô. Normalmente<br />

com pouca água, deve aumentar dezenas de vezes<br />

seu volume quan<strong>do</strong> chove pesa<strong>do</strong> e por muito tempo.<br />

Isso pode ser deduzi<strong>do</strong> ao observarmos o seu leito e as<br />

suas margens, com suas pedras arre<strong>do</strong>ndadas, sinal de forte<br />

erosão. O riacho termina em uma cachoeira, adentrada<br />

no platô por mais de um quilômetro, por força da erosão.<br />

Ficamos imaginan<strong>do</strong>, então, que lá embaixo, no pequeno<br />

lago no qual deságua a cachoeira, devem estar o ouro e os<br />

diamantes, arrasta<strong>do</strong>s pela força das águas no acúmulo <strong>do</strong><br />

tempo.<br />

Por isso desejávamos ir até lá.<br />

A única maneira era de helicóptero. Mas não por cima. O<br />

vento, baten<strong>do</strong> naquelas fendas e protuberâncias, turbilhonava<br />

forte. Com certeza derrubaria o helicóptero.<br />

Resolvemos ir por baixo, pelo canyon cava<strong>do</strong> na rocha.<br />

Ventava muito, também. Avançamos devagar, quase na velocidade<br />

de um homem a pé. Às vezes, dava para ir mais<br />

rápi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o vento amainava.<br />

Quan<strong>do</strong> chegamos, pousei numa das pedras que víamos<br />

lá de cima e cortei o motor. O espetáculo era alucinante: a<br />

água da cachoeira descia de mo<strong>do</strong> convencional até uma<br />

certa altura. Daí para baixo, o vento a transformava em<br />

uma cortina d’água, mudan<strong>do</strong> suas formas, como se fosse<br />

um baila<strong>do</strong>. E o sol, beijan<strong>do</strong> as fímbrias dessa cortina,<br />

86


tornava-a multicolorida, cambian<strong>do</strong> as cores, a to<strong>do</strong> momento.<br />

Medi a altura da cachoeira comparan<strong>do</strong> a indicação <strong>do</strong><br />

altímetro com o helicóptero pousa<strong>do</strong> lá embaixo e lá em<br />

cima. Deu duzentos e oitenta e <strong>do</strong>is metros.<br />

<br />

87


Pista em Uai-Uai<br />

Havia uma equipe de militares abrin<strong>do</strong> uma pista em<br />

Uai-Uai, numa região próxima à Guiana Inglesa. O local era<br />

mata fechada, ao la<strong>do</strong> de um riacho (não mais que vinte<br />

metros de largura). O apoio só era possível de helicóptero.<br />

Ocorre que houve uma falha em um componente <strong>do</strong>s helicópteros,<br />

o que ocasionou a interdição de to<strong>do</strong>s os helicópteros<br />

da FAB, daquele tipo, enquanto se aguardava uma<br />

remessa <strong>do</strong>s componentes, vinda <strong>do</strong> exterior.<br />

E os dias foram passan<strong>do</strong>.<br />

Informaram, pelo rádio, que a comida estava acaban<strong>do</strong>.<br />

Isso não preocupava, pois havia muito peixe no riacho.<br />

Alguns dias depois, informaram que estava acaban<strong>do</strong> a<br />

farinha. A situação começou a ficar grave.<br />

Mais alguns dias e veio a mensagem: estava acaban<strong>do</strong> a<br />

cachaça. A situação ficou crítica.<br />

Planejamos, então, um apoio aéreo realiza<strong>do</strong> com L-19,<br />

um Cesna de Ligação e Observação que tinha, como uma<br />

de suas peculiaridades, a capacidade de realizar pousos<br />

extremamente curtos, necessitan<strong>do</strong> de pouca pista para<br />

pousar. A equipe que trabalhava na abertura da pista garantiu-nos<br />

que já havia limpa<strong>do</strong> e destoca<strong>do</strong> duzentos metros<br />

de área para pouso.<br />

Como não era possível alcançar o local a partir de alguma<br />

outra pista, decidimos pousar na estrada vicinal que a<br />

Andrade Gutierrez estava abrin<strong>do</strong> em direção ao traça<strong>do</strong><br />

da Perimetral Norte. Solicitamos que essa empresa levasse<br />

combustível para o local, de caminhão, a partir de Cachoeira<br />

da Porteira. Assim foi feito e seguimos para o pouso na<br />

estrada, eu e outro piloto, cada qual em um avião.<br />

Cada um de nós levava duzentos quilos em mantimentos<br />

e mais um tamborete de combustível, necessário para o<br />

88


egresso.<br />

Pousamos na estrada sem problemas, abastecemos e<br />

seguimos para Uai-Uai. Lá chegan<strong>do</strong>, passamos a circular.<br />

A copa das árvores tampava quase tu<strong>do</strong>. Mal dava para ver<br />

o chão. Do solo, a equipe reafirmava que era tranqüilo, que<br />

havia bastante espaço e podíamos pousar tranqüilamente.<br />

Fui o primeiro.<br />

Fiz a aproximação o mais baixo possível, rente às árvores<br />

e com um mínimo de velocidade. Ao chegar à borda da<br />

clareira, tirei o motor, mergulhei e voltei a dar to<strong>do</strong> o motor,<br />

para amortecer o impacto (o L-19 era muito resistente a<br />

impactos com o avião alinha<strong>do</strong>).<br />

Parei com algumas dezenas de metros de corrida no<br />

solo.<br />

Realmente, havia muito espaço pela frente.<br />

Pelo rádio, passei as informações para o outro piloto e<br />

logo ele estava no chão.<br />

A alegria da equipe era gratificante.<br />

Agradeceram muito e prometeram que, quan<strong>do</strong> a pista<br />

ficasse pronta, haveria lá uma placa com o nosso nome.<br />

Acho que esqueceram.<br />

<br />

89


Incesto<br />

Havia deixa<strong>do</strong> uma equipe de rapel para abrir uma clareira<br />

e pousei o helicóptero num roça<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> de uma casa<br />

de pau-a-pique, coberta de palha, para aguardar o tempo<br />

necessário para o recolhimento <strong>do</strong> pessoal.<br />

Para o mora<strong>do</strong>r devia ser apavorante aparecer, em seu<br />

quintal, uma máquina esquisita que, provavelmente, nunca<br />

havia visto, fazen<strong>do</strong> uma barulheira infernal, bufan<strong>do</strong>,<br />

ventan<strong>do</strong> e, quem sabe, até derruban<strong>do</strong> a casa! Por isso<br />

mesmo, após desligar o motor, fui explicar ao proprietário<br />

o porquê daquela intrusão. Vestia o uniforme de vôo: macacão<br />

de vôo, bibico, cinto com um Taurus 38 de um la<strong>do</strong> e<br />

uma faca no outro. Naquele contexto, nada simpático.<br />

No caminho, avistei, na janela, uma mocinha com um<br />

bebê no colo. E encontrei, à minha espera, um senhor de<br />

meia idade e entabulei conversa:<br />

– Então! O senhor é o <strong>do</strong>no?<br />

– Não, não. O <strong>do</strong>no da casa está no mato. É caça<strong>do</strong>r de<br />

onça.<br />

– E o senhor, quem é?<br />

– Eu sou o professor da criança.<br />

– A que estava no colo da moça?<br />

– Ela mesma.<br />

Expliquei o porquê de estarmos ali e passamos a conversa<br />

para outros assuntos.<br />

O que ocorreu?<br />

Para mim, aquele senhor ficou assusta<strong>do</strong> e inventou a<br />

história <strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r de onça para me intimidar (o caça<strong>do</strong>r<br />

de onça é ti<strong>do</strong> como um homem muito valente). E a menina<br />

na janela era, com certeza, filha daquele senhor. Provavel-<br />

90


mente, quan<strong>do</strong> a esposa morreu, ele passou a ter relações<br />

com a filha – com a qual teve aquele bebezinho.<br />

Um caso típico de incesto, comum na região amazônica.<br />

<br />

91


Conversa<br />

O comandante <strong>do</strong> esquadrão era gago; o chefe da manutenção,<br />

ansioso.<br />

Era dia de jogo da Copa <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e o comandante<br />

man<strong>do</strong>u chamar o chefe da manutenção. Após os cumprimentos<br />

de praxe, entabulou-se a seguinte conversa:<br />

– Fulano, vo...vo...você, dis...dispensa se...seu pe...pe...<br />

pessoal...<br />

– Não, senhor! Não dispenso ninguém. Não sem falar<br />

com o senhor.<br />

– Na... não – o esforço aumentava e a gagueira piorava<br />

– vo... vo...vo... você dis... dis... dis...<br />

– Não, senhor. De mo<strong>do</strong> algum. Eu jamais dispensaria<br />

alguém sem antes falar com o senhor.<br />

Foi difícil passar a mensagem de que era para dispensar<br />

o pessoal para que pudessem assistir ao jogo da Copa <strong>do</strong><br />

Mun<strong>do</strong>.<br />

<br />

92


Por falar<br />

Por falar em chefe...<br />

O cidadão entra na loja que vende animais e pergunta:<br />

– Quanto custa este papagaio?<br />

– Mil reais – responde o <strong>do</strong>no da loja.<br />

– Tu<strong>do</strong> isso? O que ele faz?<br />

– Ah! Ele cumprimenta, chama o cachorro, assobia...<br />

– E esse outro?<br />

– Dois mil reais.<br />

– Puxa vida! E o que ele faz?<br />

– Também cumprimenta, fala uma porção de coisas, assobia<br />

to<strong>do</strong> o Hino Nacional ..<br />

– Muito bem. E aquele na vitrine?<br />

– Ah! Aquele é caro. Cinco mil reais.<br />

– Mas é muito caro. E o que ele faz para valer tu<strong>do</strong><br />

isso?<br />

– O que ele faz eu não sei. Mas os outros <strong>do</strong>is chamam<br />

ele de chefe.<br />

<br />

93


Desarman<strong>do</strong> bomba<br />

Inicialmente, nosso esquadrão contava com três tipos<br />

de aviões: de Ataque ao Solo (NA T-6), de Ligação e Observação<br />

(L-19) e o Helicóptero (UH-1H).<br />

Certa vez, fomos a Manaus com quatro NA T-6 para participar<br />

de uma manobra <strong>do</strong> Exército. Cada aeronave estava<br />

municiada com quatro bombas de duzentas e cinqüenta libras,<br />

que deviam ser jogadas para explodir dentro de uma<br />

clareira. Se explodissem antes, pegariam a tropa verde; se<br />

depois, a amarela. Por esse motivo, lançamos as bombas<br />

na menor altura possível, dentro <strong>do</strong>s limites de segurança.<br />

Deu para sentir a onda de choque na cauda <strong>do</strong> avião.<br />

O comandante da esquadrilha, no entanto, era brincalhão...<br />

um goza<strong>do</strong>r.<br />

Ao pousarmos, regressan<strong>do</strong> à Base Aérea de Manaus,<br />

inventou dizer ao oficial de armamento que uma bomba não<br />

havia explodi<strong>do</strong>, e que ele deveria ficar alguns dias para<br />

desarmá-la.<br />

Tanta coisa inventou que deixou o outro preocupa<strong>do</strong>. E<br />

mais: convenceu-o a escrever uma carta à esposa, para ser<br />

entregue numa eventualidade.<br />

É claro! A brincadeira foi desfeita antes <strong>do</strong> regresso à<br />

sede, e a carta devolvida.<br />

Deve estar guardada até hoje.<br />

<br />

94


Nuvem de tempestade<br />

Como eu tinha Cartão de Vôo por Instrumentos, fiz muitos<br />

vôos noturnos para o Nordeste com outros pilotos que<br />

precisavam de treinamento para obter o cartão.<br />

Num desses vôos, decolamos de Recife e, na subida,<br />

passamos por uma camada de nuvens e deparamos com<br />

um espetáculo sempre renova<strong>do</strong>. O céu estava limpo, e a<br />

lua brilhava ofuscan<strong>do</strong> as estrelas. Um pouco à direita na<br />

rota erguia-se, majestoso, um Towering Cumulus (TCU),<br />

uma nuvem de tempestade.<br />

Voávamos um Universal T-25, um pequeno avião de treinamento<br />

avança<strong>do</strong>, com <strong>do</strong>is assentos, la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>.<br />

Talvez inspira<strong>do</strong> pela majestade <strong>do</strong> TCU, meu companheiro<br />

perguntou:<br />

– Já entrou em um desses?<br />

– Não – respondi.<br />

– Vamos entrar?<br />

– Vamos – respondi, sem pensar.<br />

E começamos a nos preparar.<br />

Checamos se havia alguma coisa solta, apertamos cintos<br />

e suspensórios, selecionamos a viseira <strong>do</strong> capacete.<br />

Conhecíamos a teoria e revisamos to<strong>do</strong>s os procedimentos.<br />

E entramos.<br />

E era muito pior <strong>do</strong> que havíamos imagina<strong>do</strong>.<br />

O avião saltava de tal mo<strong>do</strong> que mal conseguíamos evitar<br />

a entrada em atitude anormal.<br />

Durou apenas alguns segun<strong>do</strong>s.<br />

Saímos, de repente, a noventa graus com a proa de entrada.<br />

95


O TCU, literalmente, nos cuspiu para fora.<br />

E o meu companheiro, viran<strong>do</strong>-se para mim, disse:<br />

– Você é uma besta.<br />

Ao que respondi:<br />

– E você é outra.<br />

<br />

96


Quem está pilotan<strong>do</strong>?<br />

Eu estava de passageiro em um C-47, avião de transporte<br />

bimotor, com capacidade para vinte e tantos passageiros.<br />

Por injunções outras, estava à paisana. Havíamos<br />

decola<strong>do</strong> de Belém e nosso destino era Tucuruí, ao sul <strong>do</strong><br />

Pará. Havia, a bor<strong>do</strong>, um general, com sua comitiva, que<br />

tinha fama de não gostar de voar.<br />

Num da<strong>do</strong> momento, o piloto em coman<strong>do</strong> man<strong>do</strong>u o outro<br />

ir conversar com o general. Logo a seguir, determinou<br />

ao sargento que me chamasse, instruin<strong>do</strong>-o para não me<br />

tratar de tenente.<br />

Quan<strong>do</strong> cheguei à cabine, ele pediu-me que fosse pilotan<strong>do</strong><br />

e também foi conversar com o general. Com os <strong>do</strong>is<br />

pilotos ao seu la<strong>do</strong>, o general ficou nervoso.<br />

– Afinal! Com vocês <strong>do</strong>is aqui, quem está pilotan<strong>do</strong> a<br />

aeronave?<br />

Ao que o piloto em coman<strong>do</strong> respondeu:<br />

– Aquele civil que estava aqui.<br />

– Mas ele sabe pilotar?<br />

– Não, mas ele aprende rápi<strong>do</strong>.<br />

<br />

97


Voan<strong>do</strong> monomotor<br />

Embarquei em um C-47 como passageiro, juntamente<br />

com um colega de esquadrão cuja característica mais marcante<br />

era sua presença de espírito, no senti<strong>do</strong> de perceber<br />

o inusita<strong>do</strong> e o ridículo e reagir prontamente de forma inteligente<br />

e criativa, se bem que normalmente com ironia.<br />

Estava previsto que embarcariam nesse avião vinte e<br />

poucos militares <strong>do</strong> Exército, e o plano de vôo, já entregue,<br />

continha essa informação.<br />

Passou a hora da decolagem e, como o pessoal <strong>do</strong> Exército<br />

não chegava, o piloto resolveu partir. Deu ordem para<br />

embarcar algum material que estivesse aguardan<strong>do</strong> transporte<br />

e lá fomos nós com sacos de mantimentos, aparelhos<br />

de rádio transmissão e outras cargas.<br />

Quan<strong>do</strong> estávamos no través de Tucuruí, um <strong>do</strong>s motores<br />

começou a falhar e, em seguida, parou. O piloto “embandeirou”<br />

1 , mas o avião não se agüentava com um só motor.<br />

Começou a descer. Nós aguardávamos, com ansiedade, a<br />

ordem de alijar carga. Finalmente, veio a ordem. Amarreime<br />

com uma cinta de amarração de carga, para não correr<br />

o risco de cair, e fui para a porta. Enquanto isso, o mecânico<br />

e meu companheiro passavam-me a carga a alijar. Alivia<strong>do</strong><br />

de peso, o avião se manteve e foi possível chegar à Base<br />

Aérea de Belém. Como o C-47 não taxia monomotor, o piloto<br />

cortou o motor ainda na pista e aguardamos a chegada<br />

<strong>do</strong> oficial de operações. Esse, não ten<strong>do</strong> conhecimento da<br />

mudança – levar carga no lugar de pessoas –, estranhou ao<br />

olhar dentro <strong>do</strong> avião. Meu colega, perceben<strong>do</strong> a sua dúvida,<br />

pôs a mão no ombro <strong>do</strong> militar e exclamou:<br />

98


– Negão, foi barra. Tivemos que jogar quase to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />

para fora <strong>do</strong> avião, para aliviar o peso.<br />

<br />

1 Colocou o passo da hélice para uma posição de mínima resistência ao avanço. É um<br />

procedimento necessário no caso de parada <strong>do</strong> motor.<br />

99


Morden<strong>do</strong> a orelha <strong>do</strong> burro<br />

Certa ocasião houve a necessidade de transportar um<br />

burro no helicóptero.<br />

O trecho a ser voa<strong>do</strong> era de mata fechada, sem possibilidade<br />

de pouso.<br />

Como não havia com o que <strong>do</strong>par o animal, tratou-se de<br />

amarrá-lo bem. Todavia, tanto esforço fez que, já em vôo,<br />

começou a se soltar. O mecânico, por sua vez, não conseguia<br />

acertar as amarras, pois o burro se debatia, não ficava<br />

quieto.<br />

Ven<strong>do</strong> isso, o tenente Oscar, piloto em coman<strong>do</strong>, berrou<br />

para o mecânico:<br />

– Morde a orelha dele! Morde a orelha dele!<br />

E o mecânico não entendia, não mordia.<br />

Perceben<strong>do</strong> que não seria atendi<strong>do</strong>, passou a pilotagem<br />

para o 2P1 , soltou o cinto e os suspensórios, desconectou<br />

o capacete, passou por cima <strong>do</strong> painel central e deu uma<br />

senhora mordida na orelha <strong>do</strong> burro. O muar baixou a cabeça,<br />

esticou as pernas e aquietou, possibilitan<strong>do</strong> ajustar<br />

novamente as cordas.<br />

1 Segun<strong>do</strong> piloto.<br />

<br />

100


Chupa-chupa<br />

Certa vez, apareceu, por vários dias consecutivos, um<br />

Objeto Voa<strong>do</strong>r Não Identifica<strong>do</strong>, em algumas localidades<br />

ribeirinhas, a nordeste de Belém <strong>do</strong> Pará.<br />

A investigação realizada por ordem da Força Aérea não<br />

conseguiu esclarecer as aparições. Havia, também, denúncias<br />

de que várias moçoilas haviam si<strong>do</strong> atacadas por tripulantes<br />

ou passageiros desses objetos voa<strong>do</strong>res, os quais<br />

chupavam as moças no pescoço. Dessa vez, a investigação<br />

obteve bons resulta<strong>do</strong>s. Os exames realiza<strong>do</strong>s no Hospital<br />

de Aeronáutica de Belém confirmaram – as chupadas eram<br />

humanas mesmo.<br />

<br />

101


Afrodisíaco<br />

Eu estava viajan<strong>do</strong>.<br />

Laura foi com um amigo nosso e sua esposa passear no<br />

Ver o Peso 1 . Meu amigo havia se distancia<strong>do</strong> um pouco,<br />

quan<strong>do</strong> Laura e a amiga viram algo estranho pendura<strong>do</strong><br />

em uma das barracas. Curiosas, perguntaram ao vende<strong>do</strong>r<br />

o que era aquilo, e ele não quis dizer.<br />

Pediram, então, ao meu amigo para averiguar. Ele foi e<br />

perguntou:<br />

– O que é isso?<br />

– É o órgão sexual da bota – respondeu o vende<strong>do</strong>r.<br />

– E para que serve?<br />

– Para dar potência.<br />

– E como usa?<br />

– Pode fazer chá, fazer pomada ...<br />

<br />

1 Merca<strong>do</strong> a céu aberto, típico de Belém <strong>do</strong> Pará.<br />

102


Strike<br />

Liderava uma “esquadrilha de T-25” 1 .<br />

Após darmos a partida, taxiamos em direção à pista e,<br />

quan<strong>do</strong> autoriza<strong>do</strong>, tomei posição com a esquadrilha, na<br />

cabeceira da pista, e iniciamos a decolagem.<br />

Já estávamos quase com a velocidade de tirar os aviões<br />

<strong>do</strong> chão, quan<strong>do</strong> avistei algo na pista. Logo a seguir, consegui<br />

identificar: eram urubus.<br />

Não havia como parar. Se abortasse a decolagem, os<br />

aviões poderiam se chocar. E a colisão com os urubus era<br />

iminente.<br />

Falei pelo rádio:<br />

– Urubus na pista. Mantenham.<br />

Foram penas para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s.<br />

Pousamos em seguida para verificar o estrago.<br />

Não houve danos. Matamos quatro urubus.<br />

Escore: Esquadrilha quatro, Urubus zero.<br />

1 Quatro aviões voan<strong>do</strong> juntos.<br />

<br />

103


Guerra de índios<br />

Estávamos em Surucucu, em uma Operação Radam.<br />

Havíamos acaba<strong>do</strong> de chegar, e vieram nos avisar que<br />

os índios estavam guerrean<strong>do</strong> na pista de baixo (havia duas<br />

tribos).<br />

Decolou uma tripulação com o helicóptero UH-1H e foi<br />

para lá, acabar com a briga. Realmente, lá estavam as duas<br />

tribos, uma de cada la<strong>do</strong> da pista, atiran<strong>do</strong> flechas uns nos<br />

outros. O piloto fez, então, um vôo paira<strong>do</strong> sobre os índios<br />

para dispersá-los. Mas eles gostaram. Tanto é que, no dia<br />

seguinte, à mesma hora, lá estavam eles novamente, esperan<strong>do</strong><br />

o “faze<strong>do</strong>r de vento”.<br />

Detalhe: a briga era motivada pela carência de mulheres.<br />

Como havia poucas, os índios de uma tribo roubavam<br />

as mulheres da outra, em uma sucessão interminável de<br />

seqüestros.<br />

<br />

104


Quem tira a cordinha<br />

Os índios Ianomâmi usam uma cordinha na cintura, com<br />

a qual amarram o pinto. Não sei exatamente qual a vantagem<br />

ou qual a finalidade. Mas sei que eles só desamarram<br />

para urinar.<br />

Para relações sexuais, quem desamarra é a índia.<br />

<br />

105


Nadan<strong>do</strong> pela<strong>do</strong><br />

A maioria <strong>do</strong>s índios andam nus ou seminus.<br />

Numa ocasião em que estava em uma tribo, fui com eles<br />

nadar em um lago próximo à aldeia.<br />

Para ficar igual, resolvi nadar pela<strong>do</strong> também.<br />

Para minha surpresa, os índios apontavam para meus<br />

genitais e riam a valer.<br />

Eu tinha pentelhos, e eles não.<br />

E achavam engraça<strong>do</strong>.<br />

<br />

106


Noivo<br />

Fui noivo várias vezes.<br />

No primeiro noiva<strong>do</strong>, compareceram meus pais. Já no<br />

segun<strong>do</strong>, meu pai negou-se a comparecer.<br />

Da Laura não fiquei noivo. Argumentei que era fora de<br />

moda, mas nunca disse à Laura que havia si<strong>do</strong> noivo.<br />

Passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is anos de casa<strong>do</strong>s, ao chegar em casa,<br />

Laura me acusou:<br />

– Você não me disse que já foi noivo.<br />

Ao que respondi:<br />

– Você não me perguntou!<br />

<br />

107


Pegan<strong>do</strong><br />

Estávamos com um helicóptero em Porto Velho.<br />

Um <strong>do</strong>s tripulantes era loiro, de olhos claros (verdes ou<br />

azuis), o que, na época, era uma raridade na região. Andava<br />

ele pela cidade, quan<strong>do</strong> foi aborda<strong>do</strong> por uma garota,<br />

acompanhada de sua irmã. Conversa vai, conversa vem,<br />

foram os <strong>do</strong>is para a casa da guria e mandaram brasa. Dali<br />

saiu e foi tomar um refrigerante, no centro da cidade. Não<br />

demorou muito e apareceu novamente a irmã da garota<br />

com quem havia fica<strong>do</strong>.<br />

– Oi! Cadê sua irmã? – perguntou por perguntar.<br />

– Está em casa pegan<strong>do</strong>– respondeu.<br />

– Pegan<strong>do</strong> o quê?<br />

– Venha comigo que eu lhe mostro.<br />

E se foram novamente para a casa da garota.<br />

Lá chegan<strong>do</strong>, encontraram a guria, deitada, com as pernas<br />

para cima.<br />

Estava pegan<strong>do</strong> filho!<br />

<br />

108


Crítica<br />

Estávamos operan<strong>do</strong> no Radam, com sede em Cruzeiro<br />

<strong>do</strong> Sul, no Acre.<br />

Como os helicópteros estavam indisponíveis, devi<strong>do</strong><br />

à falta de algumas peças, eu passava o dia planejan<strong>do</strong> a<br />

operação Radam com a utilização <strong>do</strong>s Napaflu 1 da nossa<br />

Marinha de Guerra.<br />

Como a Bacia Amazônica permite a navegação fluvial<br />

por quase toda a Amazônia, minha idéia era operar a partir<br />

<strong>do</strong>s Napaflus com os nossos helicópteros, o que substituiria<br />

a estrutura atual por outra menor, mais ágil e menos<br />

dispendiosa.<br />

Ao concluir um esboço desse planejamento, dirigi-me ao<br />

major que comandava a fração aérea e apresentei-lhe minha<br />

idéia.<br />

Para minha surpresa, ao invés de fazer os comentários<br />

de praxe, aceitan<strong>do</strong> alguns pontos e rejeitan<strong>do</strong> outros, argüiu:<br />

– Façamos um acor<strong>do</strong>, Patto. Você apresenta esse planejamento<br />

a to<strong>do</strong>s os oficiais na Reunião <strong>do</strong> Pôr-<strong>do</strong>-Sol 2 .<br />

Após a apresentação pedirei a to<strong>do</strong>s que apontem os deméritos.<br />

Mas você não deverá retrucar, seja qual for a crítica<br />

apresentada. Depois disso, conversaremos.<br />

E assim foi feito.<br />

Apresentei aquele esboço de projeto e, após terminar, o<br />

major solicitou a to<strong>do</strong>s que apontassem as falhas e que não<br />

poupassem criticas.<br />

Quan<strong>do</strong> terminamos, chamou-me para uma conversa:<br />

– Muito bem, Patto. Agora você reformula seu planejamento<br />

com base nas críticas apresentadas e, quan<strong>do</strong> estiver<br />

pronto, faremos nova apresentação.<br />

Fizemos mais duas ou três apresentações, e as críticas<br />

109


foram diminuin<strong>do</strong> até o ponto em que a maioria concordava<br />

com o projeto, que ficou bastante modifica<strong>do</strong>.<br />

Após a última apresentação, o major fez o seguinte comentário:<br />

– Encerramos a apresentação <strong>do</strong> Projeto Radam com<br />

Apoio de Napaflu. Como puderam notar, esse projeto que,<br />

inicialmente, era inteiramente da autoria <strong>do</strong> tenente Patto,<br />

ficou bastante modifica<strong>do</strong> e, hoje, é um projeto de to<strong>do</strong>s<br />

nós. E não há duvida de que está bem mais completo, praticável<br />

e exeqüível. Se o projeto Radam, na Amazônia, não<br />

estivesse próximo de seu término, seria bom tentarmos<br />

levá-lo adiante. Mas creio que a experiência serviu para demonstrar<br />

a utilidade da crítica – e <strong>do</strong> trabalho em grupo.<br />

– Valeu, major.<br />

<br />

1 Navio Patrulha Fluvial, de nossa Marinha de Guerra. Possui acomodações para pessoal<br />

e espaço para levar material. Possui, também, um heliponto no convés.<br />

2 Reunião após o termino da jornada de trabalho, destinada a comentar e registrar as<br />

missões <strong>do</strong> dia e a preparar as missões <strong>do</strong> dia seguinte.<br />

110


Patanão<br />

Quan<strong>do</strong> acampa<strong>do</strong>s, era comum reunirmo-nos à noite ao<br />

pé <strong>do</strong> fogo, jogan<strong>do</strong> conversa fora, enquanto esperávamos<br />

o sono chegar.<br />

Em uma dessas ocasiões, a conversa descambou para<br />

histórias de caça<strong>do</strong>r e de pesca<strong>do</strong>r, com tu<strong>do</strong> exagera<strong>do</strong>:<br />

cobras imensas, que engoliam um boi sem engasgar; lambaris<br />

de trinta quilos, depois de limpos ...<br />

Lá pelas tantas, decidi<strong>do</strong> a entrar na roda, perguntei:<br />

– Algum de vocês já ouviu falar <strong>do</strong> patanão?<br />

Como ninguém tinha ouvi<strong>do</strong> nada pareci<strong>do</strong>, iniciei a narrativa:<br />

“O patanão pode ser encontra<strong>do</strong> lá pelas bandas <strong>do</strong> Cafundó,<br />

na virada da Serra da Mantiqueira, onde meu pai<br />

possuía uma fazenda.<br />

A última vez que o encontrei foi durante uma caçada, na<br />

qual, infelizmente, eu estava sozinho, não havia quem pudesse<br />

testemunhar. Mas vocês podem acreditar que tu<strong>do</strong><br />

que vou narrar é a mais pura expressão da verdade.<br />

Eu pretendia caçar o que viesse e pudesse. Para isso<br />

levava uma cartucheira, munição e um bornal. Mas tinha<br />

esperança de encontrar patos selvagens, pois o caseiro havia<br />

visto alguns pela região por aqueles dias.<br />

Anda daqui, anda de lá e nada. Passavam as horas e<br />

nada de patos, nada de bichos, nada de nada. Já estava<br />

quase desistin<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> ouvi um barulhinho bem baixinho,<br />

como se viesse bem de longe. Esse barulhinho me era familiar:<br />

era de um animal com que deparara havia muito, muito<br />

tempo. Julgava até que estivesse extinto. Mas estava lá,<br />

com seus quaquinhos. E o quaquejar baixinho prosseguia<br />

ao re<strong>do</strong>r de minha cabeça.<br />

Logo a seguir, avistei-o. Levei a mão para apanhá-lo e,<br />

111


para minha surpresa, pousou nela suavemente. Era um<br />

pato de pouco mais de um centímetro de comprimento.<br />

Um patanão, como era conheci<strong>do</strong> na re<strong>do</strong>ndeza. E era <strong>do</strong>s<br />

grandes. O que eu havia visto, anos atrás, não era maior<br />

que um pernilongo. E aquele tinha uma mancha branca no<br />

peito. Então, examinan<strong>do</strong> bem, constatei que esse também<br />

tinha a mesma mancha branca. Era o mesmo patanão! E<br />

me reconheceu.”<br />

Depois dessa, fomos <strong>do</strong>rmir.<br />

<br />

112


Descen<strong>do</strong> de rapel<br />

Já estava com o helicóptero pairan<strong>do</strong> sobre a copa das<br />

árvores e a equipe de rapel preparava-se para descer e<br />

abrir a clareira necessária para a pesquisa <strong>do</strong> Radam.<br />

O primeiro a descer passou a corda pelo mosquetão, foi<br />

para o esqui, iniciou a descida, mas parou antes de chegar<br />

ao solo. E o artilheiro, que monitorava a descida, continuou<br />

informan<strong>do</strong>:<br />

– Ainda está para<strong>do</strong>, tenente. Está fazen<strong>do</strong> uma porção<br />

de sinais, mas não enten<strong>do</strong> a que quer dizer.<br />

– Ele deu a laçada? – perguntei. (Era previsto que, no<br />

caso de a corda trancar, o rapelista deveria dar uma laçada,<br />

para garantir que se mantivesse preso, e sinalizasse para<br />

que subíssemos. Só então o levaríamos pendura<strong>do</strong> até um<br />

local em que pudéssemos colocá-lo no chão).<br />

E o artilheiro respondeu:<br />

– Não, senhor. Não fez a laçada, não fez sinal para subirmos...<br />

Espere. Reiniciou a descida.<br />

E desceram to<strong>do</strong>s os quatro, sem mais novidades.<br />

Mais tarde, depois de recolhermos a equipe, perguntamos<br />

o que havia ocorri<strong>do</strong>.<br />

Havia uma sucuriju bem debaixo <strong>do</strong> helicóptero. Ficou<br />

aguardan<strong>do</strong> ela se afastar para reiniciar a descida.<br />

<br />

113


BRASÍLIA-DF<br />

Movimentos involuntários<br />

Passei um ano no Rio de Janeiro fazen<strong>do</strong> o último curso da<br />

carreira, no Campo <strong>do</strong>s Afonsos – Curso de Política e Estratégia<br />

Aeroespaciais. Na ocasião, o Parkinson já se manifestara,<br />

e eu não sabia ao certo como estava evoluin<strong>do</strong>. Assim, de três<br />

em três meses, mais ou menos, eu ia ao médico, no Hospital<br />

da Força Aérea <strong>do</strong> Galeão, para um acompanhamento.<br />

Quan<strong>do</strong> regressei de uma dessas visitas, um colega, preocupa<strong>do</strong><br />

com minha saúde, veio falar comigo:<br />

– Então, Patto, como está?<br />

Respondi bem sério:<br />

– Estou bem. O médico receitou-me novos remédios... O<br />

ruim são os efeitos colaterais.<br />

– Quais efeitos colaterais?<br />

– O pior deles são os movimentos involuntários.<br />

– Como assim?<br />

– É como o nome diz. São movimentos que independem de<br />

sua vontade. São involuntários, imprevisíveis e incontroláveis.<br />

– Ah!<br />

E a conversa parou por aí.<br />

Passa<strong>do</strong>s alguns minutos, esse colega se distraiu, deu-me<br />

as costas e passou a conversar com outra pessoa. Aproveitei<br />

a distração e dei-lhe um “telefone” nos ouvi<strong>do</strong>s. Ele virou-se<br />

rápi<strong>do</strong>, para revidar, e eu disse:<br />

– Ah, ah!!! Movimentos involuntários, imprevisíveis e incontroláveis.<br />

<br />

114


Interferência eletromagmética<br />

Almoçava no Rancho <strong>do</strong> Grupo de Apoio de Brasília com<br />

outros coronéis. A conversa girava em torno <strong>do</strong> tema de<br />

sempre: vôo e Força Aérea.<br />

Lá pelas tantas, num daqueles vazios que ocorrem em<br />

qualquer conversa, um desses colegas perguntou-me:<br />

– Patto, como está seu problema com o Parkinson?<br />

De imediato, to<strong>do</strong>s ficaram muito sérios.<br />

– Está sob controle – observei.<br />

– Não há possibilidade de uma cirurgia?<br />

– Há três tipos de cirurgia. A que vem apresentan<strong>do</strong> melhores<br />

resulta<strong>do</strong>s é uma em que se coloca um eletro<strong>do</strong> no<br />

centro <strong>do</strong> cérebro e, com um controle remoto, se aplica, de<br />

vez em quan<strong>do</strong>, uma pequena descarga elétrica que estimula<br />

a “substância negra” a produzir <strong>do</strong>pamina. O problema<br />

são os efeitos colaterais.<br />

– Que efeitos colaterais?<br />

– Como o coman<strong>do</strong> é realiza<strong>do</strong> por controle remoto,<br />

pode ocorrer que um portão de garagem que esteja sen<strong>do</strong><br />

aciona<strong>do</strong> nas re<strong>do</strong>ndezas cause interferência, fazen<strong>do</strong> com<br />

que automaticamente a pessoa levante a perna esquerda<br />

e mije.<br />

<br />

115


Hurricane<br />

Sobrevoávamos as Antilhas de regresso para o Brasil,<br />

e as condições meteorológicas eram razoáveis. Sabíamos,<br />

porém, que estavam piores mais ao Sul. Foi quan<strong>do</strong> o Controle<br />

Miami nos informou que havia um hurricane na rota e<br />

perguntou o que desejávamos fazer. Como nenhum de nós<br />

sabia o que era hurricane, somente respondemos “Roger”<br />

(entendi<strong>do</strong>). O controla<strong>do</strong>r repetiu a mesma mensagem e,<br />

novamente, respondemos “Roger”. Então, o controla<strong>do</strong>r<br />

nos desviou da rota por algumas dezenas de milhas e encerrou<br />

o assunto.<br />

Ao pousarmos, fomos ver quem era esse tal de hurricane.<br />

Era furacão!<br />

<br />

116


Cavalo-de-pau com ministro à bor<strong>do</strong><br />

Pilotei HS durante seis anos. É um jato executivo para<br />

cinco passageiros, utiliza<strong>do</strong>, na FAB, para transporte de<br />

autoridades, normalmente ministros de Esta<strong>do</strong>.<br />

Em uma dessas missões, fui a Congonhas, São Paulo,<br />

transportan<strong>do</strong> um ministro com sua esposa.<br />

Ao chegarmos em Congonhas, chovia muito e tivemos<br />

que aguardar. Éramos os primeiros da “prateleira”. Apesar<br />

de voarmos baixo, onde o consumo de combustível é maior,<br />

não estávamos preocupa<strong>do</strong>s porque havia visibilidade. O<br />

controla<strong>do</strong>r só queria aguardar um pouco o amainar da<br />

chuva. A pista, no entanto, era restrita, em comprimento,<br />

para o HS. Uma vez reduzi<strong>do</strong> o motor para pousar, não era<br />

possível arremeter e, além <strong>do</strong> mais, já era noite, o que sempre<br />

dificulta um pouco. Mas nada além da tensão normal<br />

que antecede um pouso.<br />

Passa<strong>do</strong>s alguns minutos, fomos libera<strong>do</strong>s para pousar.<br />

Entrei na final, realizan<strong>do</strong> uma descida com o auxílio <strong>do</strong>s<br />

instrumentos e, na curta final, reduzi um pouco o motor<br />

para tocar logo no início da cabeceira. Ainda chovia e o<br />

controla<strong>do</strong>r nos alertou para o excesso de água na pista.<br />

– Isso é que é pouso suave! – comentei.<br />

Mas, logo em seguida, quan<strong>do</strong> fui frear, nada! O avião<br />

deslizava, o freio não pegava. Gritei para o 2P:<br />

– O freio não pega!<br />

De imediato, o 2P tentou seu freio e nada. O avião estava<br />

em hidroplanagem. Com uma velocidade de toque<br />

em torno de duzentos e cinqüenta quilômetros por hora, o<br />

avião não desacelerava o suficiente.<br />

Sabíamos que, num da<strong>do</strong> momento, ele sairia da hidroplanagem.<br />

Mas sairia a tempo de pararmos a aeronave?<br />

O final da pista se aproximava rapidamente. Aos poucos,<br />

117


o avião começou, aparentemente, a desviar para a esquerda,<br />

o que aumentava ainda mais os riscos, pois, a partir de<br />

um determina<strong>do</strong> ponto, havia um barranco também desse<br />

la<strong>do</strong>. Foi quan<strong>do</strong>, instintivamente, ou talvez pelo condicionamento<br />

no vôo em aeronaves menores e mais lentas, pisei<br />

no freio esquer<strong>do</strong>. O freio pegou e a aeronave girou<br />

violentamente para a esquerda, dan<strong>do</strong> um cavalo-de-pau.<br />

Com o giro, a asa direita subiu, juntamente com o nariz da<br />

aeronave, a ponto de sumirem as luzes da cidade. Quan<strong>do</strong><br />

terminou o giro, o 2P já havia desliga<strong>do</strong> os motores, a bateria<br />

– tu<strong>do</strong>.<br />

Disse, então, a ele:<br />

– Fale com a torre que eu vou ver como está o pessoal<br />

lá atrás.<br />

E fui falar com o mecânico, com o ministro e sua esposa.<br />

To<strong>do</strong>s estavam bem. Havia somente o susto.<br />

Nesse ínterim, o 2P, ao ligar o rádio, ouviu a Torre autorizar<br />

o pouso de um Boeing. De imediato, ele entrou na<br />

freqüência e man<strong>do</strong>u o Boeing arremeter, pois estávamos<br />

na pista.<br />

Havíamos para<strong>do</strong> a trezentos metros <strong>do</strong> final da pista e<br />

estávamos alinha<strong>do</strong>s no centro dela – o que significava que<br />

havíamos desliza<strong>do</strong> de la<strong>do</strong>.<br />

<br />

118


Mímica<br />

Em uma das viagens <strong>do</strong> Grupo de Transporte Especial<br />

onde eu voava, havia três taifeiros que não falavam nem<br />

entendiam inglês. E a viagem era para os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />

Ao chegarem ao hotel, o comandante da aeronave os<br />

orientou para seguirem um funcionário que os levaria até<br />

o quarto.<br />

Lá chegan<strong>do</strong>, constataram que só havia duas camas.<br />

Um deles comentou:<br />

– Só há duas camas. Como vamos pedir mais uma?<br />

E o mais extroverti<strong>do</strong> respondeu:<br />

– Deixa comigo.<br />

E deitou no chão, cruzou as mãos no peito e começou a<br />

roncar.<br />

E o funcionário saiu em disparada.<br />

Levantan<strong>do</strong>-se, o extroverti<strong>do</strong> comentou:<br />

– Que tal? É a mímica. Linguagem internacional. To<strong>do</strong><br />

mun<strong>do</strong> entende ...<br />

Mas foi interrompi<strong>do</strong> pela entrada <strong>do</strong> mesmo funcionário...<br />

acompanha<strong>do</strong> por outros <strong>do</strong>is trazen<strong>do</strong> uma padiola...<br />

<br />

119


O piano<br />

O piano da vizinha<br />

Bem diz a etiqueta que eleva<strong>do</strong>r não é lugar de conversar.<br />

Havia chama<strong>do</strong> o eleva<strong>do</strong>r para subir ao meu apartamento,<br />

em Brasília, e aguardei a chegada de minha vizinha.<br />

Cumprimentamo-nos, entramos e começamos a subir.<br />

Então ela me perguntou:<br />

– O piano está incomodan<strong>do</strong> muito? (Ela havia compra<strong>do</strong><br />

um piano havia alguns meses).<br />

– Não – respondi. Aliás, a senhora está de parabéns.<br />

Nesses poucos meses, melhorou muito, está tocan<strong>do</strong> muito<br />

melhor...<br />

Ao que ela retrucou:<br />

– Mas eu sou professora de piano há vinte anos!!...<br />

<br />

120


Enólogo<br />

Em Brasília, era moda conversar sobre vinhos, comprar<br />

vinhos, estocar vinhos, beber vinhos.<br />

Decidi “entrar no clima”.<br />

Comprei um livro sobre vinhos e o estudei detalhadamente,<br />

como se fosse para realizar uma prova. Com esses<br />

conhecimentos, discorria sobre o assunto por duas horas<br />

seguidas.<br />

E a noticia se espalhou. Fiquei com fama de ser um grande<br />

conhece<strong>do</strong>r de vinhos, quan<strong>do</strong>, em verdade, eu era um<br />

enólogo de um livro só.<br />

<br />

121


Passean<strong>do</strong> de bonde<br />

Passeávamos, eu e a Laura, pela Áustria, quan<strong>do</strong> resolvemos<br />

andar de bonde. Como eu gosto de mexer nas<br />

máquinas em geral, fui tentar comprar os passes em uma<br />

delas. As instruções, no entanto, estavam em alemão, e<br />

eu não enten<strong>do</strong> nada de alemão. Mesmo assim, coloquei<br />

uma moeda, apertei alguns botões e consegui um passe.<br />

Repeti a seqüência e consegui outro passe. E fomos andar<br />

de bonde. Como não havia lugar para depositar os passes<br />

e ninguém apareceu para pedi-los, ficamos com eles.<br />

Dias após, já na Suíça, na casa de uma prima, contei-lhe<br />

o episódio, e ela pediu para ver os passes.<br />

Ao vê-los, começou a rir.<br />

Havíamos compra<strong>do</strong> e utiliza<strong>do</strong> passes de cachorro.<br />

<br />

122


De férias<br />

De férias na praia<br />

Alugamos uma casa na praia, no litoral de Santa Catarina,<br />

e para lá fomos, com amigos e parentes, para curtir uns dias<br />

de férias.<br />

O relacionamento era ótimo, e o clima descontraí<strong>do</strong>, como<br />

é normal nessas ocasiões.<br />

Foi então que, plagian<strong>do</strong> uma historia antiga, resolvi descontrair<br />

ainda mais.<br />

Fui ao comércio, comprei uma barra de chocolate crocante,<br />

escondi em nosso quarto e aguardei a noite chegar e avançar.<br />

Quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s estavam <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, levantei em silêncio, levan<strong>do</strong><br />

a barra de chocolate e fui a um <strong>do</strong>s banheiros da casa.<br />

Desembrulhei o chocolate, amassei bem com as mãos e lambuzei<br />

o vaso, a tampa <strong>do</strong> vaso, as paredes ...<br />

Lavei as mãos e voltei para a cama.<br />

Acordei ce<strong>do</strong>, acordei a Laura e ficamos aguardan<strong>do</strong>.<br />

Logo começou o zumzumzum.<br />

Aguardamos mais um pouco e saímos <strong>do</strong> quarto.<br />

O circo estava arma<strong>do</strong>.<br />

– Venham ver – dizia um.<br />

– É um absur<strong>do</strong> – comentava outro.<br />

– Mas o que houve? – perguntei.<br />

– Veja você mesmo o que fizeram no banheiro.<br />

– Olhe! Está to<strong>do</strong> lambuza<strong>do</strong> de cocô.<br />

– Isso é coisa de homem – dizia uma.<br />

– Alguém entrou aqui – dizia outro.<br />

E eu, fingin<strong>do</strong> surpresa:<br />

– Com os diabos! – e, passan<strong>do</strong> um de<strong>do</strong> e levan<strong>do</strong>-o à<br />

boca – E é merda mesmo!...<br />

Uma amiga nossa quase vomitou.<br />

<br />

123


Trote infantil<br />

Em outra ocasião, passeávamos, Laura e eu, na praia de<br />

Porto de Galinhas.<br />

Próximo ao final da praia, havia várias crianças, todas<br />

olhan<strong>do</strong> para dentro de um laguinho.<br />

Ficamos curiosos e fomos para lá.<br />

Ao nos aproximarmos, ouvimos os garotos dizen<strong>do</strong>:<br />

– Sete, sete, sete.<br />

E, ao chegarmos, passaram a dizer:<br />

– Nove, nove, nove.<br />

<br />

124


Furto no ônibus<br />

Uma senhora da terceira idade, conhecida nossa, entrou<br />

em um ônibus lota<strong>do</strong>. Como não havia assento vago e ninguém<br />

lhe oferecera lugar para sentar, permaneceu em pé.<br />

E o ônibus foi enchen<strong>do</strong> mais. Já estava aperta<strong>do</strong>, e as<br />

pessoas se esbarravam. Em um certo momento, um senhor<br />

que estava ao seu la<strong>do</strong> deu-lhe um forte esbarrão. Nesse<br />

instante, olhan<strong>do</strong> para o braço, deu-se conta de que seu<br />

relógio havia sumi<strong>do</strong>. Não teve dúvidas. Apanhou uma escova<br />

que trazia na bolsa, pressionou o cabo contra as costelas<br />

<strong>do</strong> referi<strong>do</strong> senhor e disse-lhe:<br />

– Sem movimentos bruscos, ponha o relógio na minha<br />

bolsa.<br />

E assim foi feito.<br />

– Agora, puxe a cordinha e saia <strong>do</strong> ônibus, sem olhar<br />

para trás.<br />

E novamente foi obedecida.<br />

Ao chegar em casa, ainda nervosa, contou para suas filhas<br />

o ocorri<strong>do</strong>, ao que uma das filhas retrucou:<br />

– Mas, mãe. Você esqueceu o relógio aqui em casa!<br />

<br />

125


Parkinson<br />

O Parkinson, de que sou porta<strong>do</strong>r, costuma trazer uma<br />

depressão associada que me incomodava, e os antidepressivos<br />

que me foram receita<strong>do</strong>s tinham efeitos colaterais<br />

indesejáveis e não resolviam o problema.<br />

Foi, então, que solicitei à minha mulher, que é psicóloga,<br />

que me ensinasse uma forma comportamental para lidar<br />

com a depressão.<br />

O primeiro procedimento que ela me passou foi para<br />

identificar e evitar o que denominei de “Coitadinho de Mim”<br />

– que consiste em uma atitude de autopiedade. Essa atitude<br />

pode ser evitada simplesmente a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong>-se a prática<br />

de se interessar por outras pessoas, tentan<strong>do</strong> ajudá-las.<br />

Outro procedimento é o da “Inofensividade” – que consiste<br />

em não pensar mal de ninguém. Todavia, como isso é<br />

muito difícil, inicie não falan<strong>do</strong> mal de ninguém.<br />

Passei a praticar esses procedimentos em minha convivência<br />

com as pessoas, e obtive excelentes resulta<strong>do</strong>s: não<br />

tenho mais episódios ou postura depressiva e meu relacionamento<br />

com as pessoas melhorou em termos de tolerância,<br />

aceitação e compreensão. Deixei de cultivar a raiva e o<br />

ódio, minha conversa ficou mais agradável, minhas tensões<br />

físicas e emocionais diminuíram, passei a conviver melhor<br />

com a <strong>do</strong>ença e – o mais importante – o Parkinson até<br />

mesmo parece ter regredi<strong>do</strong>. Não apresentei mais nenhum<br />

episódio off, diminuíram os movimentos involuntários, e as<br />

distonias 1 quase desapareceram.<br />

É bem verdade que tenho um excelente médico e que<br />

estou muito bem-medica<strong>do</strong>. Mas até meu médico é de opi-<br />

126


nião de que minha postura e meu mo<strong>do</strong> de viver atuais têm<br />

contribuí<strong>do</strong> significativamente para uma boa qualidade de<br />

vida.<br />

<br />

1 Contração muscular involuntária. No meu caso, ocorria nos pés, nos quadris e no ombro,<br />

dificultan<strong>do</strong> o deslocamento.<br />

127


URUGUAI<br />

Ozuma<br />

Passei <strong>do</strong>is anos no Uruguai, como Adi<strong>do</strong> Aeronáutico<br />

àquele país.<br />

Dentro da programação das Forças Armadas para os<br />

adi<strong>do</strong>s militares estrangeiros, havia, às vezes, viagens pelo<br />

interior <strong>do</strong> Uruguai, algumas delas realizadas de avião.<br />

Em uma dessas ocasiões, estávamos acomoda<strong>do</strong>s dentro<br />

de um Casa (avião de transporte de fabricação espanhola),<br />

enquanto esse taxiava em direção à pista em uso.<br />

Íamos visitar um quartel <strong>do</strong> Exército.<br />

Senta<strong>do</strong> um pouco à minha frente, encontrava-se o coronel<br />

Ozuma, adi<strong>do</strong> naval paraguaio. Parecia preocupa<strong>do</strong>.<br />

E to<strong>do</strong>s sabiam que detestava voar. Tinha lá seus receios.<br />

Levantei-me de meu lugar e fui conversar com ele:<br />

– Ozuma, notei que você está preocupa<strong>do</strong>. Se for em<br />

função <strong>do</strong> vôo, não há motivos para isso. Sabidamente,<br />

esse é um ótimo avião, e a sua estatística de performance<br />

é excelente. Imagine que a incidência de acidentes graves<br />

é de um para cada dez mil horas de vôo.<br />

– Não diga, Patto. Gostei de saber disso.<br />

– É. Mas tem um detalhe. Este avião no qual estamos<br />

está completan<strong>do</strong> agora as dez mil horas de vôo sem nenhum<br />

acidente grave!<br />

<br />

128


Pilotan<strong>do</strong> helicóptero<br />

Atendi ao telefone, na Adidância 1 . Era o comandante da<br />

base aérea em Montevideu.<br />

Após os cumprimentos, disse-me que estavam com um<br />

problema e perguntou-me se eu poderia ir até lá.<br />

Nem mesmo perguntei <strong>do</strong> que se tratava. Avisei que já estava<br />

in<strong>do</strong> e saí. Lá chegan<strong>do</strong>, dirigi-me para a área operacional,<br />

conforme o combina<strong>do</strong>, e qual não foi minha surpresa: lá<br />

estavam o comandante da base, seu assistente com um macacão<br />

de vôo nas mãos, o tenente-coronel que era o oficial<br />

de ligação com os adi<strong>do</strong>s estrangeiros, um helicóptero UH-1H<br />

pronto para a partida, um capitão instrutor e um mecânico de<br />

bor<strong>do</strong>.<br />

– Vista o macacão e vá pilotar – disse-me o comandante.<br />

Ainda surpreso, vesti o macacão e fui voar. O oficial de ligação<br />

foi conosco, como passageiro. Dei a partida e decolei após<br />

autoriza<strong>do</strong> pela Torre. Só então comentei:<br />

– Nada mal para quem está a dezessete anos sem pilotar,<br />

hein?<br />

Ao que o oficial de ligação retrucou:<br />

– Dá para pousar para eu descer?<br />

Pilotei por uma hora e quarenta minutos. Fiz decolagem e<br />

pouso normais, decolagem e pouso corri<strong>do</strong>s, pouso com o sistema<br />

hidráulico desliga<strong>do</strong>, auto-rotação com pouso, área restrita...<br />

Creio que esse vôo inespera<strong>do</strong> tenha ocorri<strong>do</strong> em função<br />

das histórias que eu contava sobre meus vôos na Amazônia...<br />

<br />

1 Como já menciona<strong>do</strong>, fui adi<strong>do</strong> aeronáutico no Uruguai.<br />

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130


Comentários<br />

Se o leitor quer divertir-se e surpreender-se, está convida<strong>do</strong> a penetrar<br />

no bem-humora<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das histórias <strong>do</strong> Carlos Patto, que relata<br />

causos pitorescos de sua vida movimentada. Da infância em Tremembé<br />

até a reforma como coronel-avia<strong>do</strong>r, da convivência na selva com índios<br />

ao relacionamento na vida diplomática, dezenas de incidentes são<br />

conta<strong>do</strong>s de forma positiva por este cinqüentão de espírito jovial que<br />

se concentra no que a vida tem de bom.<br />

Glenda Wiedmann Chaves<br />

As histórias <strong>do</strong> Patto retratam exatamente quem ele é: um intuitivoespontâneo-brincalhão<br />

de muito bom caráter <strong>do</strong> qual me orgulho de<br />

ser amiga.<br />

Para você, caro leitor, desejo que reserve uma tarde preguiçosa<br />

para ler esse livro e tenho a certeza de que, como eu, ao final, você<br />

estará de alma leve, reviven<strong>do</strong> as suas próprias histórias.<br />

Conceição de Maria Couto Macha<strong>do</strong><br />

Os pais em geral são nossos heróis da infância, com suas histórias<br />

fantásticas e normalmente inacreditáveis. Mas as <strong>do</strong> meu pai eram as<br />

melhores e ainda por cima verdadeiras. Eu cresci ouvi<strong>do</strong>-o contá-las,<br />

vezes e mais vezes. Várias eu já sabia de cor e outras eu até implementei,<br />

acrescentan<strong>do</strong> minhas próprias <strong>do</strong>ses de aventura e fantasia. E até<br />

hoje, 30 anos depois, ainda me empolgo e peço mais uma vez: “Conta<br />

aquela que você morre no final...”<br />

Cláudio Eduar<strong>do</strong> Germano Patto<br />

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