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O <strong>rabo</strong> <strong>do</strong> <strong>macaco</strong><br />
E OUTRAS HISTÓRIAS<br />
Carlos Aníbal Pyles Patto
O <strong>rabo</strong> <strong>do</strong> <strong>macaco</strong><br />
E OUTRAS HISTÓRIAS<br />
Carlos Aníbal Pyles Patto<br />
Brasília • 2005
O autor<br />
O autor<br />
Carlos Aníbal Pyles Patto nasceu em Taubaté, esta<strong>do</strong> de<br />
São Paulo, em 1946. Passou toda a infância e a<strong>do</strong>lescência<br />
em Tremembé, cidade vizinha a Taubaté. Saiu de casa com<br />
dezoito anos, ao ingressar na carreira militar, durante a qual<br />
se deslocou por to<strong>do</strong> o território nacional e por diversos países<br />
estrangeiros.<br />
Nessas andanças conheceu e casou-se com Maria Laura<br />
Santos Germano, gaúcha de Rio Grande. Tiveram <strong>do</strong>is filhos,<br />
Cláudio Eduar<strong>do</strong> Germano Patto e Sérgio Augusto Germano<br />
Patto, nasci<strong>do</strong>s em Belém <strong>do</strong> Pará.<br />
Em 1998 foi diagnostica<strong>do</strong> como ten<strong>do</strong> Parkinson, ten<strong>do</strong><br />
passa<strong>do</strong> pelas fases de negação, da revolta, da depressão e<br />
de aceitação da <strong>do</strong>ença.<br />
Atualmente, já aposenta<strong>do</strong>, reside em Brasília com a mulher<br />
e com o filho mais novo e passa o tempo trabalhan<strong>do</strong> no<br />
con<strong>do</strong>mínio, escreven<strong>do</strong> e fazen<strong>do</strong> pequenas esculturas em<br />
madeira e pedra-sabão.<br />
3
Agradecimentos <strong>do</strong> autor<br />
Agradeço ao meu Anjo da Guarda que, conforme poderão<br />
constatar no decorrer da leitura, trabalhou muito para<br />
me proteger.<br />
5
Apresentação<br />
Houve uma ocasião que decidi fazer terapia, talvez por<br />
influência da Laura, minha mulher, que é psicóloga. Como<br />
não sabia o que apresentar, fiz uma lista <strong>do</strong>s eventos que<br />
considerava marcantes em minha vida. Isso me fez resgatar<br />
episódios de vida diverti<strong>do</strong>s e interessantes, que passei<br />
a narrar para parentes e amigos, quan<strong>do</strong> a ocasião era<br />
oportuna.<br />
Recentemente uma amiga da Laura, que mora na França,<br />
esteve em Brasília e veio nos visitar. Conversan<strong>do</strong>,<br />
contei-lhe algumas de minhas histórias, que lhe despertaram<br />
vivo interesse. Solicitou-me, então, que as escrevesse<br />
e enviasse para ela, para serem publicadas em um site de<br />
sua autoria.<br />
Assim foi feito e as histórias se acumularam, resultan<strong>do</strong><br />
neste livro, de caráter auto-biográfico e conten<strong>do</strong>, na maioria<br />
<strong>do</strong>s relatos, fatos e episódios vivencia<strong>do</strong>s por mim e que<br />
considerei como de interesse para outras pessoas.<br />
Esses episódios estão organiza<strong>do</strong>s cronologicamente e<br />
por área geográfica, visan<strong>do</strong> facilitar o entendimento.<br />
Procurei, também, evitar os termos técnicos, o que nem<br />
sempre foi possível. Nesses casos, usei o recurso das notas<br />
de rodapé para esclarecer o significa<strong>do</strong>.<br />
Com essas palavras de apresentação convi<strong>do</strong> a você,<br />
leitor, para percorrer e curtir essas páginas, esperan<strong>do</strong> que<br />
sejam de seu agra<strong>do</strong>.<br />
E, haven<strong>do</strong> interesse de realizar contato, estarei à disposição<br />
no endereço puerta3@terra.com.br<br />
Carlos Aníbal Pyles Patto<br />
7
Prefácio<br />
9
Sumário<br />
O AUTOR 02<br />
AGRADECIMENTOS 03<br />
PREFÁCIO 05<br />
TREMEMBÉ-SP<br />
INFÂNCIA 11<br />
ADOLESCÊNCIA 13<br />
BARBACENA-MG<br />
CHEGADA NA ESCOLA 15<br />
CEMITÉRIO DA BOA MORTE 16<br />
GURU DO MÃO-DE-ONÇA 18<br />
MÃO DE MERDA 19<br />
BALALAICA 20<br />
O MATERIAL DA CLARABELA 21<br />
JUIZ DE BRIGA 22<br />
CACHORRADA 23<br />
EXAME DE FEZES 24<br />
RIO DE JANEIRO-RJ<br />
LUTANDO CARATÊ 25<br />
OUTRA DO MÃO-DE-ONÇA 26<br />
ACAMPAMENTO 27<br />
GOTEIRA 29<br />
TIRANDO FÉRIAS 30<br />
APROXIMAÇÃO SOLO 31<br />
AULA DE RESISTÊNCIA DOS MATERIAIS 32<br />
ANTI-HERÓI 33<br />
CALOTA 34<br />
PEGA 35<br />
11
PIRASSUNUNGA-SP<br />
SOLO EM AVIÃO À JATO 37<br />
SOBREVIVÊNCIA NO XINGU 38<br />
ALVORADA 40<br />
ORIENTAÇÃO NOTURNA 41<br />
CANOAS-RS<br />
COMEMORAÇÃO 43<br />
INCIDENTE NO TRÂNSITO 44<br />
ACIDENTE EM SÃO JERÕNIMO 45<br />
DE PIJAMA NO CASAMENTO 49<br />
COMPRANDO CACHIMBO 50<br />
PRIMEIRA DISCUSSÃO 51<br />
O JOGO DOS TRÊS COPINHOS 52<br />
ULTRAPASSAGEM 53<br />
AMAZÔNIA<br />
SEVERINO, UM BRASILEIRO 55<br />
REGULADOR XAVIER 58<br />
LAURA EM BELÉM 59<br />
SUPER-HOMEM 60<br />
A FORMAÇÃO DO UNIVERSO SEGUNDO OS IANOMÂMI 61<br />
PIADINHA AMAZÔNICA 62<br />
QUESTÃO DE NOME 63<br />
POLIGLOTA 64<br />
OUTRA GRÁVIDA 65<br />
A MÃO DECEPADA 66<br />
O RABO DO MACACO 67<br />
O MISTÉRIO DOS PEIXES 68<br />
O PARTO DA ÍNDIA IANOMÂMI 69<br />
AINDA IANOMÂMI 70<br />
COLHENDO CASTANHA 71<br />
PERNOITE NA CLAREIRA 72<br />
PLANTAS CARNÍVORAS 73<br />
CACHOEIRA DO ARACÁ 74<br />
PISTA EM UAI-UAI 75<br />
12
INCESTO 76<br />
CONVERSA 77<br />
POR FALAR EM CHEFE 78<br />
DESARMANDO BOMBA 79<br />
NUVEM DE TEMPESTADE 81<br />
QUEM ESTÁ PILOTANDO? 82<br />
VOANDO MONOMOTOR 83<br />
MORDENDO A ORELHA DO BURRO 84<br />
CHUPA-CHUPA 85<br />
AFRODISÍACO 86<br />
STRIKE 87<br />
GUERRA DE ÍNDIOS 88<br />
QUEM TIRA A CORDINHA 89<br />
NADANDO PELADO 90<br />
NOIVO 91<br />
PEGANDO 92<br />
CRÍTICA 93<br />
PATANÃO 94<br />
DESCENDO DE RAPEL 95<br />
BRASÍLIA-DF<br />
MOVIMENTOS INVOLUNTÁRIOS 97<br />
INTERFERÊNCIA ELETROMAGNÉTICA 98<br />
HURRICANE 99<br />
CAVALO DE PAU COM MINISTRO À BORDO 100<br />
MÍMICA 102<br />
O PIANO DA VIZINHA 103<br />
ENÓLOGO 104<br />
PASSEANDO DE BONDE 105<br />
DE FÉRIAS NA PRAIA 106<br />
TROTE INFANTIL 107<br />
FURTO NO ÔNIBUS 108<br />
PARKINSON 109<br />
URUGUAI<br />
OZUMA 111<br />
PILOTANDO HELICOPTERO 112<br />
13
TREMEMBÉ-SP<br />
Infância<br />
Passei a minha infância em um misto de ambiente urbano<br />
com ambiente rural.<br />
Desde ce<strong>do</strong> demonstrei gostar de alturas. Havia uma<br />
árvore com muita erva de passarinho. Subia nela, deitava<br />
naquele colchão de ervas e ficava lá, de papo pro ar, olhan<strong>do</strong><br />
as nuvens.<br />
Gostava, também, de me equilibrar. Não podia ver uma<br />
vala com uma prancha em cima – passava. Devagar, mas<br />
passava. Subia nas chaminés das fábricas e andava na borda.<br />
E, em dias de ventania, subia em um pé de eucalipto e<br />
ficava balançan<strong>do</strong> no topo.<br />
Também gostava de cavalos. Meu pai possuía alguns cavalos<br />
de raça, e eu costumava montá-los, em pêlo, sem<br />
sela e sem freio, apenas com uma corda passada sobre o<br />
focinho, como se fosse um cabresto. Certa vez, andan<strong>do</strong> a<br />
galope, perdi o controle e a égua passou por dentro de um<br />
bambual. Ela passou... Eu não. Fiquei trança<strong>do</strong> nos bambus.<br />
Era arteiro. Um dia, cortava algumas ramas de mandioca.<br />
O facão resvalou e decepou-me um de<strong>do</strong>. Um tio, que<br />
era cirurgião, colocou-o no lugar.<br />
Sempre gostei de armas. E de bombas. Fabriquei uma<br />
colocan<strong>do</strong> carbureto e água dentro de um vidro. Tampei<br />
bem e joguei longe, aguardan<strong>do</strong> estourar. Passou um tempo<br />
e, como não estourava, fui verificar. Foi levantar o vidro<br />
e ele estourou. Um pedaço bateu em minha costela e entrou<br />
por debaixo da pele. Saiu a caminho da farmácia.<br />
15
Certo dia, meu pai chamou a mim e ao caseiro para<br />
prendermos a Vaca Preta no curral. Cerca daqui, cerca de<br />
lá, e a vaca, sentin<strong>do</strong>-se acuada, escolheu o setor mais fraco<br />
para escapar – o meu. Já ia “bater em retirada”, quan<strong>do</strong><br />
meu pai deu um de seus famosos berros. Em uma fração<br />
de segun<strong>do</strong>, olhei para a vaca, olhei para o meu pai e decidi<br />
– enfrentei a vaca.<br />
Tive cinco irmãs. Como era o único varão, tinha um quarto<br />
só para mim. Minhas irmãs <strong>do</strong>rmiam em outro. O meu<br />
quarto era cheio de atrativos. Havia cobras conservadas<br />
em álcool, criação de escorpiões, arco voltaico. Fiz uma demonstração<br />
<strong>do</strong> funcionamento <strong>do</strong> arco voltaico para uns<br />
amigos. To<strong>do</strong>s feriram a vista. Passamos dias sem poder<br />
enfrentar a luz <strong>do</strong> sol. Como minhas irmãs menores gostavam<br />
de mexer nas minhas coisas, liguei, com o auxílio de<br />
um transforma<strong>do</strong>r, uma armadilha na maçaneta. Era tocar e<br />
levar choque. Quem levou o choque foi a minha mãe.<br />
Nunca gostei que prendessem passarinhos. Como minha<br />
mãe achava que eu deveria ter alguma educação musical,<br />
colocou-me para ter aulas de piano com uma tia. Lá, na<br />
varanda de sua casa, havia dezenas de gaiolas com passarinhos.<br />
Um dia em que não havia mais ninguém por perto,<br />
abri todas as gaiolas e nunca desconfiaram de mim.<br />
Afinal, eu tinha a fama, perante as mães, de ser um menino<br />
educa<strong>do</strong>, atencioso e gentil. Um exemplo para os seus<br />
filhos – que sabiam que eu aprontava.<br />
O curioso é que vários passarinhos, já acostuma<strong>do</strong>s com<br />
a gaiola, permaneceram nos arre<strong>do</strong>res e foram facilmente<br />
recaptura<strong>do</strong>s.<br />
<br />
16
A<strong>do</strong>lescência<br />
Em outra ocasião, meu pai passou a andar de moto.<br />
Sempre que podia, eu a pegava, escondi<strong>do</strong>, e saía a passear.<br />
Foi com ela que aprendi alguns <strong>do</strong>s princípios da física<br />
– como quan<strong>do</strong>, inadvertidamente, “levantei vôo” numa<br />
rampa natural, na subida da ponte <strong>do</strong> Rio Paraíba.<br />
Gostava de trabalhar. Levantava ce<strong>do</strong>, às vezes ainda<br />
escuro, e ia tirar leite. Com duas vacas, tirava mais de trinta<br />
litros, em duas ordenhas: uma de manhã e outra à tarde.<br />
Seguia, depois, para uma leiteria, onde era entrega<strong>do</strong>r.<br />
Entregava leite até o meio dia, equilibran<strong>do</strong> uma caixa com<br />
dez litros sobre o gui<strong>do</strong>m de uma bicicleta. Quan<strong>do</strong> recebia<br />
meu pagamento, entregava to<strong>do</strong> o dinheiro para a minha<br />
mãe. Ela ficava emocionada. Depois, eu conseguia, aos<br />
poucos, mais <strong>do</strong> que havia da<strong>do</strong>.<br />
Não tinha armas. Usava, escondi<strong>do</strong>, as de meu pai – ou<br />
fabricava. Fiz uma garrucha que precisava de duas pessoas<br />
para atirar: uma apontava e o outro colocava fogo no<br />
estopim. Era difícil saber se acertara, pois produzia muita<br />
fumaça.<br />
Também fabriquei, com a ajuda de um amigo, uma espingarda,<br />
um garruchão. Ainda bem que resolvemos estreála<br />
amarran<strong>do</strong>-a em um mourão e pon<strong>do</strong> fogo à distância,<br />
usan<strong>do</strong> um bambu equipa<strong>do</strong> com uma tocha na ponta.<br />
Arrebentou tu<strong>do</strong>: arma, mourão e bambu.<br />
Cursava o ginasial. Havia um valentão que batia em to<strong>do</strong><br />
o mun<strong>do</strong>. Um dia, já não sei por quê, arranjei uma encrenca<br />
com ele e combinamos brigar depois das aulas. Como nunca<br />
fui de briga, tinha certeza de que iria apanhar. Mas fui.<br />
Tinha que ir. Já prontos para a briga, o valentão me disse:<br />
– Espera eu tirar o relógio.<br />
17
E, ato contínuo, deu-me um tapa na cara. Fiquei de tal<br />
forma indigna<strong>do</strong> que avancei de guarda aberta, atraqueime<br />
com ele e dei-lhe uma joelhada no estômago. O golpe<br />
foi tão certeiro que ele caiu de joelhos e não conseguiu<br />
levantar-se. Estava terminada a luta. Eu havia venci<strong>do</strong> o<br />
valentão. Mas o que eu não sabia é que eu herdara o título.<br />
Agora eu era o novo valentão. E a toda hora havia quem<br />
quisesse disputar o título.<br />
Demorei a aprender a nadar.<br />
Houve um dia em que não consegui companhia e fui, sozinho,<br />
nadar no Paraíba. O rio estava cheio e, como eu nadava<br />
mal, a correnteza me levava e eu não conseguia voltar.<br />
Resolvi parar no pilar da ponte. Estava cheio de paus,<br />
galhos e folhas, manti<strong>do</strong>s pela força da água. Tentei agarrar-me<br />
aos paus, mas, como estavam soltos, afundei com<br />
eles num turbilhão. Lá embaixo, senti, tatean<strong>do</strong>, a textura<br />
<strong>do</strong> concreto e subi por ele. Arrebentei as unhas e esfolei os<br />
de<strong>do</strong>s. Mas saí.<br />
Tempos depois, nadan<strong>do</strong> melhor, fui com três amigos tirar<br />
uma pessoa que estava com câimbras e pedia ajuda.<br />
Era um sujeito grande, bem mais forte que nós. Ficamos<br />
com me<strong>do</strong> que nos agarrasse, mas ele garantiu que se deixaria<br />
levar. Agarrou, no entanto, o primeiro que se aproximou.<br />
Foi preciso ir ao fun<strong>do</strong> para ele largar. Resolvemos,<br />
então, que era necessário nocauteá-lo. Começamos a esmurrá-lo,<br />
mas ele não cooperava. Não desmaiava. E a situação<br />
estava fican<strong>do</strong> crítica. De repente, avistei um tronco<br />
de bananeira boian<strong>do</strong> próximo e o reboquei até o afoga<strong>do</strong><br />
– que, a essa altura, já não sabia se ficava desespera<strong>do</strong><br />
ou furioso. Rebocamos, um pouco, o tronco de bananeira<br />
com o afoga<strong>do</strong> e, assim que constatamos que poderia sair<br />
sozinho, saímos d’água e nos mandamos.<br />
18
Tinha muitos amigos. Em especial, uns de uma mesma<br />
família, com os quais me identificava. Uma vez, a avó deles<br />
veio visitá-los e fizeram fila para pedir a bênção. Entrei<br />
na fila e tomei a bênção, quan<strong>do</strong> chegou minha vez. A avó<br />
disse para a mãe de meus amigos: “Maria, estou fican<strong>do</strong><br />
esquecida. Não me lembro <strong>do</strong> nome desse aí”!<br />
<br />
19
BARBACENA-MG<br />
Chegada na escola<br />
Cheguei à Escola Preparatória de Cadetes <strong>do</strong> Ar à noite.<br />
Apresentei-me no portão da guarda, e me arranjaram um<br />
lugar para <strong>do</strong>rmir.<br />
Já havia amanheci<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> acordei ao som de uma corneta<br />
– era o toque de alvorada. Vesti minha roupa, perguntei<br />
onde se tomava o café e segui a orientação.<br />
Próximo ao local indica<strong>do</strong>, encontrei uma porção de jovens,<br />
to<strong>do</strong>s enfileira<strong>do</strong>s e com uma expressão assustada. Em volta,<br />
outros jovens com uma postura arrogante. Achei estranhos<br />
esses novos colegas.<br />
Como ninguém me incomo<strong>do</strong>u, passei direto e desci as escadas<br />
em direção ao refeitório.<br />
Entrei numa fila, apanhei um prato de mingau, uma banana,<br />
uma caneca de café com leite e um pão com manteiga. Achei<br />
um lugar para sentar, em uma mesa de oito lugares onde havia<br />
seis “assusta<strong>do</strong>s”.<br />
Nem bem havia senta<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> se aproximou um “empomba<strong>do</strong>”.<br />
Não pediu licença e sentou-se ao meu la<strong>do</strong>. Já não gostei<br />
<strong>do</strong> cara. A seguir, ele descascou sua banana e – assombro<br />
– jogou a casca no meu prato de mingau. Ela mal havia toca<strong>do</strong><br />
o prato, e eu já o estava esfregan<strong>do</strong> na cara dele.<br />
Foi um tumulto.<br />
Apareceram dezenas de “empomba<strong>do</strong>s” a favor <strong>do</strong> maleduca<strong>do</strong>.<br />
Defendi-me com cadeiradas. Logo apareceu uma<br />
pessoa que, mais tarde, soube tratar-se <strong>do</strong> oficial de dia, e pôs<br />
fim ao imbróglio.<br />
<br />
20
Cemitério da Boa Morte<br />
Houve um ano, se não me engano 1966, em que o dia treze<br />
de agosto caiu em uma sexta-feira.<br />
O mês de agosto, o dia treze e a sexta-feira eram considera<strong>do</strong>s<br />
azara<strong>do</strong>s. Por isso mesmo, aquela data era tida como<br />
sen<strong>do</strong> especialmente azarada, como se multiplicássemos as<br />
respectivas cargas de azar.<br />
Travou-se uma discussão em que eu e mais <strong>do</strong>is colegas, o<br />
Mário Lúcio e o Costa Pinto, afirmávamos que isso era besteira,<br />
que azar não existia. Como não chegávamos a uma conclusão,<br />
fizemos uma proposta: nós três iríamos ao cemitério da<br />
Igreja da Boa Morte, à meia-noite dessa data, para desafiar o<br />
azar. E, para provar que estivemos lá, traríamos alguns ossos,<br />
uma cruz ou algo <strong>do</strong> gênero.<br />
Do planejamento, passamos à ação. Na data prevista, pouco<br />
antes da meia-noite, saltamos o muro (era comum fugirmos<br />
à noite) e nos dirigimos para o cemitério. Ao chegarmos na<br />
esquina da igreja, discutimos quem de nós faria um reconhecimento.<br />
Para continuar bancan<strong>do</strong> o valente, prontifiquei-me.<br />
Havia um pátio à frente da igreja e uma portinha que estava<br />
aberta. Passei por ela e contornei o pátio, em direção ao cemitério.<br />
Cheguei à grade que o cercava, porém não tive coragem<br />
de pular.<br />
A iluminação da rua já não alcançava aquela área, no entanto<br />
havia luar suficiente para distinguir as coisas. Aproximei-me<br />
da grade, estendi o braço e alcancei um copo-de-leite caí<strong>do</strong> no<br />
chão, pelo la<strong>do</strong> de dentro.<br />
Fiz o caminho de volta esforçan<strong>do</strong>-me para não correr.<br />
– Então? Como foi? – perguntaram.<br />
– Foi tranqüilo. Entrei e apanhei esse copo-de-leite – menti.<br />
Ao que Mario Lúcio retrucou:<br />
21
– Agora, vamos to<strong>do</strong>s.<br />
Costa Pinto negou-se a entrar. Eu tinha que ir. E lá fomos<br />
nós <strong>do</strong>is.<br />
Ao chegarmos na grade, Mário Lúcio perguntou:<br />
– Como é que você entrou?<br />
– Escalan<strong>do</strong> essa pilha de tijolos – menti novamente, apontan<strong>do</strong><br />
para uma pilha de tijolos que estava encostada na grade.<br />
Com cuida<strong>do</strong>, conseguimos escalar os tijolos, saltamos a<br />
grade e começamos a andar, procuran<strong>do</strong> o que levar. Já não<br />
pensávamos em ossos. Impossível consegui-los.<br />
Foi então que avistei duas velas sobre uma tumba – uma em<br />
pé e a outra deitada. Peguei a que estava em pé e a entreguei<br />
ao Mário Lúcio. Essa saiu com facilidade. Fui então apanhar a<br />
outra. Puxei-a, mas não saiu. Fiz mais força... e nada. Nervoso,<br />
apoiei o pé na lateral da tumba e puxei com toda a força.<br />
E a tampa da tumba cedeu, vin<strong>do</strong> em minha direção!!! Dei um<br />
pinote e tratei de alcançar Mário Lúcio que já havia dispara<strong>do</strong><br />
em direção à grade. Saltamos a grade não sei como. A portinha...<br />
levamos no peito.<br />
Costa Pinto, quan<strong>do</strong> viu aquilo, desapareceu. Era corre<strong>do</strong>r.<br />
Nunca o alcançaríamos.<br />
Corremos mais um pouco e paramos para analisar o ocorri<strong>do</strong>.<br />
Concluímos que eu havia puxa<strong>do</strong> alguma fenda ou saliência<br />
e, com o nervosismo, não percebi.<br />
Já mais calmos, prosseguimos rumo à Escola. Saltamos o<br />
muro em um <strong>do</strong>s locais que utilizávamos e fomos para o alojamento.<br />
Lá chegan<strong>do</strong>, notamos que havia uma aglomeração<br />
bem no centro. Fomos verificar e constatamos ser o Costa<br />
Pinto. Estava deita<strong>do</strong>, com os olhos arregala<strong>do</strong>s.<br />
Só dizia:<br />
– Ah... Ah... Ah...<br />
<br />
22
Guru <strong>do</strong> Mão-de-Onça<br />
Mão-de-Onça tinha-me por seu guru. Estava sempre<br />
procuran<strong>do</strong> conselho e fazia tu<strong>do</strong> que eu indicasse.<br />
Houve uma ocasião em que veio falar comigo, mas eu<br />
não estava com cabeça para dar conselhos.<br />
Perguntou-me:<br />
– Você acha que uma pessoa mais fraca pode bater em<br />
uma mais forte?<br />
– Lógico, Mão-de-Onça. É tu<strong>do</strong> uma questão de cabeça,<br />
de acreditar, de ter fé.<br />
E lá se foi ele, satisfeito.<br />
Não demorou muito e ouvi um barulho forte vin<strong>do</strong> <strong>do</strong><br />
fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> alojamento. To<strong>do</strong>s corriam para lá. Fui verificar e<br />
cruzei com o Mão-de-Onça, to<strong>do</strong> sorridente, fazen<strong>do</strong>-me o<br />
sinal de positivo.<br />
Logo soube <strong>do</strong> ocorri<strong>do</strong>. O Rangel havia da<strong>do</strong> uns cascu<strong>do</strong>s<br />
no Mão-de-Onça, que, depois de falar comigo, dirigiu-se<br />
ao armário <strong>do</strong> Rangel, ganhou velocidade e jogou os<br />
<strong>do</strong>is pés contra a porta <strong>do</strong> armário, encaçapan<strong>do</strong> o Rangel<br />
lá dentro, desmaia<strong>do</strong>.<br />
Quan<strong>do</strong> acor<strong>do</strong>u, deu o troco no Mão-de-Onça.<br />
<br />
23
Mão de merda<br />
Mão-de-Onça estudava na sala de aula até bem tarde.<br />
Quan<strong>do</strong> voltava ao alojamento para <strong>do</strong>rmir, procurava a<br />
chave <strong>do</strong> armário, embaixo <strong>do</strong> capacete (os capacetes ficavam<br />
sobre os armários). Levantava o capacete e tateava,<br />
ou melhor, batia com as mãos à procura da chave. Com o<br />
barulho, acordava aqueles que <strong>do</strong>rmiam nos arre<strong>do</strong>res.<br />
Várias vezes, pediram que parasse com isso, que não<br />
fizesse barulho.<br />
Não adiantou.<br />
Continuava.<br />
Para resolver o problema, um <strong>do</strong>s incomoda<strong>do</strong>s colocou,<br />
sob o capacete, um troço fresco.<br />
E o desfecho foi o espera<strong>do</strong>.<br />
O Mão-de-Onça chegou, levantou o capacete, bateu... E<br />
ficou com a mão cheia de merda.<br />
E ficou bravo. Acor<strong>do</strong>u quase to<strong>do</strong> o alojamento.<br />
<br />
24
Balalaica<br />
Ia haver uma demonstração e praticávamos balalaica 1<br />
na Praça de Esportes da Escola Preparatória de Cadetes<br />
<strong>do</strong> Ar.<br />
Acima de nós, entre a Escola e a Praça de Esportes, passava<br />
a estrada de ferro. Uma locomotiva fazia manobras, o<br />
que era comum. De repente, um de nós gritou:<br />
– Olhem aquela menina! Ela está na linha <strong>do</strong> trem, e a<br />
locomotiva vem vin<strong>do</strong>.<br />
Paramos a balalaica e começamos a berrar e a gesticular.<br />
Não adiantou. Ela não entendeu, e a locomotiva pegoua<br />
em cheio. Corremos para lá, com alguma esperança, mas<br />
só encontramos pedaços tritura<strong>do</strong>s e um cheiro característico<br />
de carne macerada.<br />
No almoço, to<strong>do</strong>s ainda estavam abala<strong>do</strong>s com a morte<br />
da guria. Então, um <strong>do</strong>s colegas que havia assisti<strong>do</strong> ao acidente<br />
fez um infeliz comentário:<br />
– O que lembra o cheiro desse picadinho de carne?<br />
Houve quem vomitasse.<br />
<br />
1 Ginástica com mosquetão, ou seja, com uma espécie de espingarda.<br />
25
O material<br />
O material da Clarabela<br />
Estávamos em uma aula prática de Biologia, com a professora<br />
Clarabela. Como explicava o processo da fecundação<br />
humana, comentou que, infelizmente, não dispúnhamos<br />
de material para observarmos o processo pelo microscópio.<br />
Nesse momento, um colega pediu licença para ir ao<br />
banheiro, voltan<strong>do</strong> com a mão cheia:<br />
– Pronto professora. Eis aqui o seu material.<br />
<br />
26
Juiz de briga<br />
Quase to<strong>do</strong> dia havia alguma briga. Eram marca<strong>do</strong>s: local,<br />
hora e juiz de briga.<br />
O local era, geralmente, atrás <strong>do</strong> almoxarifa<strong>do</strong> e o juiz<br />
de briga, um aluno convida<strong>do</strong> para assistir a briga e apartar,<br />
quan<strong>do</strong> necessário. Eu era escolhi<strong>do</strong> com freqüência<br />
para essa função.<br />
Deixava se estapearem um pouco e apartava, tentan<strong>do</strong><br />
fazer que considerassem empate.<br />
<br />
27
Cachorrada<br />
Havia um colega que detestava cachorros.<br />
Outro, valen<strong>do</strong>-se disso, colheu um pouco da secreção<br />
da genitália de uma cadela no cio e aplicou no sapato <strong>do</strong><br />
primeiro. Por onde ele andava, ia uma cachorrada atrás.<br />
E ele não entendia nada!<br />
<br />
28
Exame de fezes<br />
Havíamos recebi<strong>do</strong> uma latinha para colher fezes destinadas<br />
a serem examinadas.<br />
Como alguns não estavam com vontade de defecar, colocaram<br />
fezes de cachorro nas latinhas.<br />
Deu merda.<br />
<br />
29
RIO DE JANEIRO- RJ<br />
Lutan<strong>do</strong> caratê<br />
Já nos Afonsos, no Rio de Janeiro, como aluno <strong>do</strong> terceiro<br />
ano da Preparatória, senti necessidade de praticar uma<br />
luta e minha preferência era o caratê – modalidade que não<br />
havia na Escola de Aeronáutica.<br />
Solicitei e me concederam licença para treinar toda noite,<br />
em uma academia, em Madureira. Lá, fiz amizade com<br />
um carateca. Ao término da aula, costumávamos descer<br />
para tomar uma vitamina. Nessas ocasiões, meu amigo<br />
provocava as pessoas que estavam por ali.<br />
Perguntei-lhe por que procedia dessa forma, e ele me<br />
respondeu:<br />
– Lá em cima é a teoria; aqui, a prática.<br />
<br />
30
Outra <strong>do</strong> Mão-de-Onça<br />
Estava no Campo <strong>do</strong>s Afonsos, cursan<strong>do</strong> o terceiro ano<br />
da Preparatória.<br />
Vieram me falar que o Mão-de-Onça havia persegui<strong>do</strong><br />
o cadete de dia com uma faca na mão e que se encontrava<br />
baixa<strong>do</strong> à enfermaria.<br />
Fui até lá para ver como ele estava. Notei que vários<br />
baixa<strong>do</strong>s estavam sain<strong>do</strong>, assusta<strong>do</strong>s. Entrei e deparei-me<br />
com o Mão-de-Onça, com um bibico1 atravessa<strong>do</strong> na cabeça,<br />
uma mão no peito, enfiada no camisolão, e a outra mão<br />
às costas. Rin<strong>do</strong>, me dizia:<br />
– Estou fingin<strong>do</strong> que sou Napoleão, e eles pensam que<br />
eu sou <strong>do</strong>i<strong>do</strong>.<br />
– O que você tem na outra mão? – perguntei.<br />
– Não é nada, não.<br />
– Mão-de-Onça, mostra a outra mão.<br />
Tanto insisti que mostrou. Tinha uma faca na outra mão.<br />
Algum tempo após, o Mão-de-Onça pediu transferência<br />
para a Academia que forma os oficiais <strong>do</strong> exército. Um dia,<br />
estava para<strong>do</strong>, com aquele olhar distante que, às vezes,<br />
apresentava, quan<strong>do</strong> passou um oficial.<br />
Como ele não fez a continência, o oficial parou e perguntou:<br />
– Cadete, cadê o cumprimento <strong>do</strong> militar?<br />
E o Mão-de-Onça lá, sem responder, com aquele olhar<br />
distante.<br />
– Cadete! – repetiu o oficial, balançan<strong>do</strong> o de<strong>do</strong> à sua<br />
frente – Estou falan<strong>do</strong> com você.<br />
31
Mão-de-Onça não tolerava que lhe apontassem o de<strong>do</strong>.<br />
Caiu de dentadas no braço <strong>do</strong> oficial.<br />
1 Peça de fardamento. Espécie de chapéu.<br />
<br />
32
Acampamento<br />
Estava prevista a realização de um acampamento no<br />
próprio Campo <strong>do</strong>s Afonsos em que participariam a minha<br />
turma e a outra logo acima.<br />
Os cadetes seriam dividi<strong>do</strong>s em <strong>do</strong>is grupos: um que<br />
comporia e defenderia o acampamento, e outro – o <strong>do</strong>s<br />
guerrilheiros – que atacaria o acampamento. Eu pertencia<br />
aos que defenderiam o acampamento.<br />
Entusiasmei-me com o exercício. Andava de um posto<br />
para outro, fiscalizava tu<strong>do</strong>, bolava táticas e estratégias.<br />
Como sempre concordei com o adágio de que a melhor defesa<br />
é o ataque, sugeri aos outros passarmos à ofensiva.<br />
O acampamento ficava numa elevação, e metade de seu<br />
perímetro era barranco, o que se constituía numa proteção<br />
natural. O restante era mais vulnerável e, fatalmente, propiciaria<br />
o acesso <strong>do</strong>s guerrilheiros. Daí a importância de<br />
partirmos para a ofensiva.<br />
Tracei o seguinte plano: sabíamos que os guerrilheiros<br />
estavam rastejan<strong>do</strong> lá em baixo, em direção ao acampamento.<br />
A noite era escura e não era possível avistá-los a<br />
olho nu. Dispúnhamos, no entanto, de uma pistola de sinalização<br />
e de alguns cartuchos. Combinamos, então, que<br />
formaríamos uma fileira lá embaixo e que sairíamos corren<strong>do</strong><br />
em frente e berran<strong>do</strong>. Nesse momento, um <strong>do</strong>s nossos,<br />
posiciona<strong>do</strong> no morro, lançaria, em seqüência, uns três tiros<br />
com os sinaliza<strong>do</strong>res. Acreditávamos que os guerrilheiros<br />
se julgariam descobertos e se levantariam para fugir,<br />
dan<strong>do</strong>-nos a oportunidade de apanhá-los. Era a “Operação<br />
Levanta Perdizes”. Assim fizemos, e foi um sucesso.<br />
Várias “perdizes” tentaram levantar vôo.<br />
33
Ainda nessa noite, foram me chamar para ir a um determina<strong>do</strong><br />
posto, na beira <strong>do</strong> barranco. Lá chegan<strong>do</strong>, encontrei<br />
vários cadetes debruça<strong>do</strong>s no barranco, discutin<strong>do</strong>.<br />
Perguntei <strong>do</strong> que se tratava.<br />
– É esse vulto ali embaixo, cola<strong>do</strong> no barranco. Não sabemos<br />
se é pedra ou guerrilheiro.<br />
Ao que respondi:<br />
– Não tem problema. Quem está com vontade de mijar?<br />
Apresentaram-se vários voluntários.<br />
Chamei o mais próximo e disse:<br />
– Mija na pedra.<br />
E lá se foi a primeira mijada. E a pedra não se mexia.<br />
Chamei o próximo.<br />
– Mija na pedra.<br />
E nada. A pedra continuava imóvel.<br />
Chamei o terceiro e repeti:<br />
– Mija na pedra.<br />
Dessa vez, a “pedra” não agüentou. Levantou-se, xingou<br />
a mãe de to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, ameaçou dar porrada...<br />
Era o Japonês.<br />
Agüentou três mijadas.<br />
<br />
34
Goteira<br />
Chovia muito no Campo <strong>do</strong>s Afonsos. E havia muito pernilongo.<br />
O Japonês era o único a possuir mosquiteiro, em to<strong>do</strong> o<br />
alojamento. Era daquele tipo quadrangular, arma<strong>do</strong> sobre<br />
a cama.<br />
Depois que o Japonês <strong>do</strong>rmiu, um outro colega foi até lá<br />
e colocou uma pedra de gelo sobre o mosquiteiro, à altura<br />
da cabeça. O gelo derretia e pingava no rosto <strong>do</strong> Japonês.<br />
Esse acordava e, julgan<strong>do</strong> ser uma goteira, arrastava a<br />
cama para outra posição. Voltava a deitar, a “goteira” continuava,<br />
e a cama era arrastada – até derreter to<strong>do</strong> o gelo.<br />
<br />
35
Tiran<strong>do</strong> férias<br />
Transcorria o ano de 1968. Eu estava conflita<strong>do</strong>, não sabia<br />
se continuava na Academia, nem o que fazer da vida.<br />
Resolvi que precisava de umas férias para pôr a cabeça<br />
no lugar e, como a tirada e o processamento das faltas estavam<br />
atrasa<strong>do</strong>s, demorariam a descobrir.<br />
Assim fiz.<br />
Levantava to<strong>do</strong>s os dias, colocava a farda, ia para o rancho<br />
tomar café, voltava, colocava o uniforme de Educação<br />
Física e ia para a quadra de esportes ou para a piscina. Na<br />
hora <strong>do</strong> almoço e <strong>do</strong> jantar, eu repetia o processo. Fiz isso<br />
por um mês. Ninguém me incomo<strong>do</strong>u durante esse perío<strong>do</strong>.<br />
Passa<strong>do</strong>s uns quinze dias <strong>do</strong> término das “férias”, fui<br />
chama<strong>do</strong> para justificar as faltas. O tenente chefe da esquadrilha<br />
começou a ler as fichas de controle:<br />
– Faltou à aula de Resistência <strong>do</strong>s Materiais <strong>do</strong> dia tal;<br />
faltou à aula de...<br />
Interrompen<strong>do</strong>, eu disse:<br />
– Pode parar, tenente. Foram trinta dias de faltas.<br />
– O que houve, Patto? Esteve baixa<strong>do</strong> ao hospital?<br />
– Não, senhor. Estava estressa<strong>do</strong> e resolvi tirar umas<br />
férias.<br />
– Como é?!<br />
– Sim, senhor. Passei trinta dias sem assistir às aulas.<br />
Ficava na praça de esportes ou na piscina.<br />
– Um momento – disse o tenente.<br />
E foi conversar com um colega meu que estava um pouco<br />
afasta<strong>do</strong>, voltan<strong>do</strong> logo a seguir.<br />
– Olhe, não sei o que faço com você. Seu colega garantiu<br />
que você não é louco, mas tenho minhas dúvidas. Vou<br />
36
lhe dar quatro dias de detenção e ficar de olho em você.<br />
Qualquer alteração e você estará a caminho da rua.<br />
Saiu barato.<br />
É como dizem: “não há crime de exceção”.<br />
<br />
37
Aproximação solo<br />
Corria o segun<strong>do</strong> ano de cadetes na Escola de Aeronáutica.<br />
Recebi o briefing 1 de meu instrutor de vôo e seguimos<br />
até o avião, um Fokker T-21, monomotor de treinamento<br />
básico.<br />
A missão consistia em um vôo solo de aproximação 2 . O<br />
instrutor permanecia no solo, na cabeceira da pista, e o<br />
aluno decolava e fazia aproximações de noventa, cento e<br />
oitenta e trezentos e sessenta graus. O instrutor avaliava<br />
cada aproximação.<br />
Dei a partida e taxiei até a cabeceira. Ali o instrutor desceu,<br />
com algumas almofadas. Havíamos combina<strong>do</strong> alguns<br />
códigos sinaliza<strong>do</strong>s com as almofadas.<br />
Em seguida, tomei posição e decolei para a primeira<br />
aproximação.<br />
Saiu perfeita. Toquei logo na cabeceira. Mas, para meu<br />
espanto, o tenente estava <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> da cabeceira,<br />
deita<strong>do</strong> sobre as almofadas.<br />
Bateu o conflito. Como eu seria avalia<strong>do</strong> se ele continuasse<br />
<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>?<br />
Resolvi que teria que acordá-lo. E teria que ser com o<br />
avião.<br />
Fiz a outra aproximação como previsto, mas bem próxima<br />
ao tenente. Ao tocar, dei to<strong>do</strong> o motor para fazer barulho,<br />
na esperança de acordá-lo. Mas nada. Continuava<br />
<strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>.<br />
O pouso seguinte foi radical. Levei o avião a tocar a roda<br />
esquerda a uns <strong>do</strong>is ou três palmos <strong>do</strong> <strong>do</strong>rminhoco. E vim<br />
dan<strong>do</strong> rajadas de motor. Dessa vez, deu certo. Lá de cima,<br />
depois de fazer a volta, era possível enxergá-lo pulan<strong>do</strong> e<br />
38
gesticulan<strong>do</strong>. Mas não fazia nenhum <strong>do</strong>s sinais que havíamos<br />
combina<strong>do</strong>.<br />
<br />
1 Termo em inglês. Significa instrução ou orientação para executar um procedimento ou<br />
ação.<br />
2 Manobra que consiste em “tirar o motor” (desacelerar o avião) em posições preestabelecidas<br />
em relação ao local de pouso. Destina-se ao treinamento para pouso em<br />
emergência.<br />
39
Aula de Resistência <strong>do</strong>s Materiais<br />
Havia um major, no Campo <strong>do</strong>s Afonsos, que nos dava aulas<br />
de Resistência <strong>do</strong>s Materiais.<br />
Em uma de suas aulas, eu me distraía len<strong>do</strong> o livro de História,<br />
quan<strong>do</strong>, interrompen<strong>do</strong> a aula, veio falar comigo.<br />
– Patto, você não devia estudar outra matéria em minha<br />
aula. Mesmo que você já esteja com nota suficiente para passar<br />
na matéria, prestan<strong>do</strong> atenção à aula você vai tirar uma<br />
nota maior e isso vai melhorar a sua classificação. Eu sei que<br />
vocês não se preocupam com a classificação hoje, mas, amanhã,<br />
vão sentir falta...<br />
– Eu não tenho esse problema – argumentei.<br />
– Por que não?<br />
– Porque me considero o primeiro coloca<strong>do</strong> da turma que<br />
vem a seguir.<br />
To<strong>do</strong>s riram, menos o major. Resolvi, então, colocar uns panos<br />
quentes, antes que me desse mal.<br />
– Mas faço um acor<strong>do</strong> com o senhor: eu tiro a melhor nota<br />
na próxima prova, e o senhor deixa-me ler o que eu quiser.<br />
– Feito.<br />
E voltou a dar a aula.<br />
Em conseqüência, parei de estudar tu<strong>do</strong> o mais. Só estudava<br />
Resistência <strong>do</strong>s Materiais. Tirei a maior nota de toda a<br />
turma. E a prova foi de lascar. O major ficou supersatisfeito.<br />
Cumprimentou-me, elogiou-me, disse que eu podia fazer o que<br />
quisesse na sua aula...<br />
Mas é lógico que parei de estudar aquela matéria e tratei de<br />
me recuperar nas outras. E, na prova seguinte de Resistência<br />
de Materiais, tirei zero.<br />
O major nunca mais falou comigo.<br />
<br />
40
Anti<br />
Anti-herói<br />
Eu estava na praia, na Barra da Tijuca.<br />
O mar estava puxan<strong>do</strong>, e a bandeira vermelha estava<br />
hasteada.<br />
De repente, to<strong>do</strong>s começaram a apontar para o mar.<br />
Olhei na mesma direção e vi uma pessoa nadan<strong>do</strong> ao longe,<br />
aparentan<strong>do</strong> estar com problemas. Olhei para to<strong>do</strong>s os<br />
la<strong>do</strong>s e nada. Não havia salva-vidas, ninguém se movimentava<br />
para ajudar.<br />
Fiquei indigna<strong>do</strong>. E, sem mais pensar, entrei n’água e<br />
comecei a nadar, decidi<strong>do</strong> a socorrer aquela pessoa.<br />
À medida que avançava, as ondas ficavam maiores. Ora<br />
eu estava no topo da onda, ora lá embaixo. Logo perdi de<br />
vista o afoga<strong>do</strong>. Foi quan<strong>do</strong> olhei para a praia e constatei<br />
que me afastara demais e comecei a nadar de volta. Havia<br />
uma corrente que me desviava de onde havia saí<strong>do</strong>. Avançava<br />
pouco, o que me obrigou a um maior esforço. Nesse<br />
ínterim, avistei vários salva-vidas, uni<strong>do</strong>s por uma corda,<br />
entran<strong>do</strong> no mar em um ponto distante, alcançan<strong>do</strong> o afoga<strong>do</strong><br />
e tiran<strong>do</strong>-o d’água. E vi to<strong>do</strong>s na praia olhan<strong>do</strong> para<br />
mim, inclusive os salva-vidas. Agora, eu era o afoga<strong>do</strong>.<br />
A muito custo, consegui alcançar a praia... e um salvavidas<br />
me aju<strong>do</strong>u a sair d’água.<br />
<br />
41
Calota<br />
Um colega foi de Chevete assistir a um jogo no Maracanã.<br />
Enquanto estacionava, aproximou-se um “flanelinha” e<br />
perguntou:<br />
– Vai um polimento aí, <strong>do</strong>utor?<br />
E meu colega, depois de olhar para um la<strong>do</strong> e para o<br />
outro, respondeu:<br />
– Não. Mas você está ven<strong>do</strong> aquela roda dianteira, <strong>do</strong><br />
la<strong>do</strong> esquer<strong>do</strong>, sem calota?<br />
– Estou sim.<br />
– Pois quan<strong>do</strong> eu voltar, se estiver com uma calota igual<br />
às outras, você leva uma boa gorjeta.<br />
E o “flanelinha”:<br />
– Deixa comigo, <strong>do</strong>utor.<br />
Ao retornar <strong>do</strong> jogo, meu colega constatou que a roda<br />
estava com uma calota.<br />
Satisfeito, deu uma boa gorjeta para o “flanelinha” e foi<br />
para casa.<br />
Lá chegan<strong>do</strong>, desceu <strong>do</strong> carro, deu a volta para abrir o<br />
portão e, com surpresa, constatou que faltava uma calota<br />
<strong>do</strong> outro la<strong>do</strong>.<br />
<br />
42
Pega<br />
Somente um <strong>do</strong>s meus colegas de turma tinha carro<br />
novo.<br />
Era um Fuscão to<strong>do</strong> incrementa<strong>do</strong>: tinha kadron, suspensão<br />
rebaixada, tu<strong>do</strong>...<br />
Certo dia, andava pelo Rio, quan<strong>do</strong> um sinal fechou, e<br />
ele avançou um pouco a faixa. Engatou a ré e chegou o<br />
carro para trás.<br />
Nesse momento, parou, bem ao seu la<strong>do</strong>, um “boyzinho”,<br />
aceleran<strong>do</strong> para um “pega”. Meu colega aceitou o<br />
desafio e passou, também, a acelerar.<br />
Acelera daqui, acelera de lá, e eis que abre o sinal.<br />
Arrancaram ambos a toda velocidade – o “boyzinho”<br />
para a frente, e meu colega baten<strong>do</strong> no carro de trás.<br />
Havia esqueci<strong>do</strong> de tirar a marcha à ré.<br />
<br />
43
Solo<br />
PIRASSUNUNGA-SP<br />
Solo em avião à jato<br />
Já estava na Academia da Força Aérea.<br />
Taxiava para a cabeceira da pista com o T-37, um jatinho<br />
de treinamento avança<strong>do</strong> para os cadetes avia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> último<br />
ano. Faria meu primeiro vôo solo, no tráfego. O vôo<br />
consistia em cinco toques e arremetidas.<br />
O esquema de segurança era pesa<strong>do</strong>. Havia um instrutor<br />
na torre de controle, um na cabeceira da pista, numa<br />
Kombi que tinha uma bolha em cima e comunicação com os<br />
aviões, e mais um instrutor voan<strong>do</strong> no tráfego, juntamente<br />
com os outros três cadetes solos.<br />
Quan<strong>do</strong> autoriza<strong>do</strong>, entrei na pista, tomei posição para<br />
decolagem e, ao ser libera<strong>do</strong>, dei cem por cento de potência<br />
e disparei pista afora. Ao atingir a velocidade prevista,<br />
tirei o avião <strong>do</strong> solo, recolhi o trem de pouso e desci, aceleran<strong>do</strong><br />
cada vez mais. Voava tão baixo que alguns colegas<br />
que assistiam <strong>do</strong> pátio me disseram que eu quase sumia,<br />
tapa<strong>do</strong> pela grama alta. Ao final da pista, dava uma puxada<br />
no manche, observan<strong>do</strong> o avião à frente e, num relance,<br />
já me encontrava na “perna com o vento” 1 . Foi então que<br />
o instrutor que estava na cabeceira da pista entrou na freqüência<br />
e disse:<br />
– Patto, não foi isso que combinamos no briefing. Não<br />
faça mais isso.<br />
Mas ele falou de uma forma tão gentil e educada que<br />
pensei que estava gostan<strong>do</strong>. E continuei repetin<strong>do</strong> aquilo<br />
que chamávamos de “americana”.<br />
Quan<strong>do</strong> terminou o vôo, to<strong>do</strong>s os instrutores estavam<br />
44
furiosos comigo. Uns queriam me bater, outros prender e<br />
alguns queriam me levar a Conselho.<br />
Felizmente, com o decorrer <strong>do</strong>s dias, os ânimos se acalmaram.<br />
Não sei se fui a Conselho, mas se fui, passei. Tanto é<br />
que estou aqui – já aposenta<strong>do</strong>.<br />
<br />
1 Voan<strong>do</strong> paralelo à pista, normalmente a mil pés de altura.<br />
45
Sobrevivência<br />
Sobrevevência no Xingu<br />
Ainda como cadetes, fomos realizar um curso de sobrevivência<br />
na selva, ministra<strong>do</strong> pelo Parasar. O curso seria<br />
prático, às margens <strong>do</strong>s rios Ronuro e Kolueno, forma<strong>do</strong>res<br />
<strong>do</strong> Xingu. Fomos de avião até o Posto Leonar<strong>do</strong> Villas Boas<br />
e, de lá, prosseguimos de lancha.<br />
Já no primeiro dia, nosso grupo deu uma bobeada. Passamos<br />
o dia limpan<strong>do</strong> a área e fazen<strong>do</strong> a barraca com lona<br />
de pára-quedas e não designamos ninguém para providenciar<br />
comida. Já estávamos no pôr-<strong>do</strong>-sol, quan<strong>do</strong> um tucano,<br />
inadvertidamente, pousou bem acima de nossas cabeças.<br />
Saquei a pistola quarenta e cinco e, com sinais, pedi<br />
silêncio. Fiz pontaria e atirei. O tucano caiu num ro<strong>do</strong>pio.<br />
Mistério! Não estava feri<strong>do</strong>!<br />
A partir de então, fui designa<strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r <strong>do</strong> grupo.<br />
Mas tucano só tem bico... e penas. Depois de limpo, tinha<br />
o corpo de um passarinho. Mesmo assim, foi para a<br />
panela. Deu um pedacinho para cada um, que foi comi<strong>do</strong><br />
com ossos e tu<strong>do</strong>.<br />
O exercício durou cinco dias, como previsto. Voltamos<br />
para o Posto Leonar<strong>do</strong> e ficamos aguardan<strong>do</strong> o avião que<br />
nos levaria de volta para a Academia.<br />
Enquanto isso conversava com um índio Yualapiti. Era<br />
um índio forte, bem maior que qualquer um de nós. Como<br />
eu era bom de braço-de-ferro – ninguém me ganhava na<br />
Academia –, o pessoal queria que eu jogasse com o índio.<br />
Expliquei para ele como era, e jogamos. Não era de nada.<br />
Ganhei fácil. A pressão, agora, era para jogar de<strong>do</strong>. Eu não<br />
queria, pois esse jogo pode quebrar o de<strong>do</strong>. Mas tanto insistiram<br />
que resolvi jogar. Expliquei ao índio, com detalhes,<br />
como era o jogo, e o avisei:<br />
46
– Se eu falar para parar, pare. Esse jogo quebra o de<strong>do</strong>.<br />
Entrelaçamos os de<strong>do</strong>s e apertei bastante.<br />
O índio não apertou e torceu a mão.<br />
Deu para ouvir o estalo. O de<strong>do</strong> dele quase que fica em<br />
minha mão. Queríamos levá-lo para nosso médico, mas ele<br />
não quis. Sem mudar de expressão, colocou o osso no lugar<br />
e ficou massagean<strong>do</strong>, enquanto o de<strong>do</strong> inchava. Pergunteilhe<br />
como faria, e ele me explicou:<br />
– Fico raspan<strong>do</strong> por vários dias (não me lembro quantos),<br />
com dentes de piranha, e pronto. Fica bom.<br />
A técnica consistia em manter o inchaço, que servia de<br />
gesso.<br />
Perguntei-lhe se faziam assim para qualquer osso quebra<strong>do</strong><br />
e me explicou que servia para vários. Alguns eram<br />
mais difíceis, como os ossos da clavícula. Outros, como os<br />
da coluna, não tinham solução. Quebrou, morreu.<br />
<br />
47
Alvorada<br />
To<strong>do</strong>s os dias acordávamos ao som <strong>do</strong> toque de alvorada.<br />
Logo a seguir, o cadete de dia colocava para tocar<br />
um disco de sua preferência (havia um sistema de avisos e<br />
música ambiente nos apartamentos).<br />
E to<strong>do</strong>s os dias tocavam a mesma música: “Meu violão<br />
caiu de cima <strong>do</strong> armário...”. E to<strong>do</strong>s os dias era aquela gritaria:<br />
– Arrego aí ô...<br />
– Desliga essa...<br />
– Enfia...<br />
Até que um dia, um cadete mais irrita<strong>do</strong> desceu até a<br />
Sala <strong>do</strong> cadete de dia e, usan<strong>do</strong> a própria agulha <strong>do</strong> tocadisco,<br />
arranhou to<strong>do</strong> o disco.<br />
No dia seguinte, logo após o toque de alvorada, começou<br />
a música: “Meu violão... crik... de cima... cruoque... armário...<br />
crunch...<br />
<br />
48
Orientação noturna<br />
Realizávamos um exercício de orientação noturna em um<br />
bosque localiza<strong>do</strong> dentro da própria Academia.<br />
Eram vários grupos, cada um identifica<strong>do</strong> por uma cor.<br />
O exercício consistia em localizar, com o auxílio de uma<br />
bússola e de uma lanterna, uma primeira placa de sinalização,<br />
colorida, posicionada a uma determinada distância<br />
e num determina<strong>do</strong> rumo. Nessa placa, havia o rumo e a<br />
distância para a próxima, e assim por diante.<br />
Como o nosso grupo não encontrou a primeira placa,<br />
passamos a andar rápi<strong>do</strong>, em qualquer direção, recolhen<strong>do</strong><br />
todas as placas que encontrávamos.<br />
Foi uma confusão.<br />
Ninguém conseguia encontrar o caminho.<br />
<br />
49
Comemoração<br />
CANOAS-RS<br />
Comemoração<br />
Era dia de festa.<br />
Íamos comemorar o milésimo pouso de instrução sem<br />
nenhum acidente.<br />
O evento ocorreria no 1º Esquadrão Misto de Reconhecimento<br />
e Ataque, sedia<strong>do</strong> na Base Aérea de Canoas, no Rio<br />
Grande <strong>do</strong> Sul, onde eu fazia estágio de piloto de ataque.<br />
Voávamos o NA T-6, um avião em “tandem” 1 , monomotor,<br />
à época utiliza<strong>do</strong> como avião de ataque ao solo.<br />
Estava tu<strong>do</strong> prepara<strong>do</strong>. A banda já estava a postos, os<br />
salgadinhos já estavam à mesa, e o comandante da base já<br />
se encontrava no pátio de manobras, onde seria realizada<br />
a cerimônia.<br />
Eu estava voan<strong>do</strong>. Recebi a incumbência de permanecer<br />
no tráfego e realizar quatro pousos, em “toque e arremetida”<br />
2 , para que um outro colega realizasse o milésimo<br />
pouso.<br />
Fiz o primeiro pouso sem utilizar “flaps” 3 e arremeti; fiz<br />
o segun<strong>do</strong> com flaps, arremeti e recolhi os flaps após a<br />
decolagem; entrei na final para realizar o terceiro pouso e,<br />
para variar, resolvi fazê-lo com flaps e recolhê-los durante a<br />
arremetida (o que era proibi<strong>do</strong> aos estagiários, pela pouca<br />
experiência, pois havia uma tendência a olhar para dentro,<br />
o que, normalmente, resultava na perda de controle da aeronave).<br />
Assim planejei e assim fiz. E não deu outra. Perdi o controle<br />
da aeronave, saí da pista e fui parar dentro de uma<br />
vala de drenagem, com o avião pilona<strong>do</strong> 4 . Sempre de pron-<br />
50
tidão, logo estavam, ao meu la<strong>do</strong>, o carro <strong>do</strong>s bombeiros e<br />
a ambulância. Como eu estava bem, levaram-me para o local<br />
da cerimônia, onde, logo em seguida, a banda começou<br />
a tocar. Meu colega havia completa<strong>do</strong> o milésimo pouso<br />
de instrução. O comandante da base foi ao microfone e<br />
anunciou:<br />
– Comemoramos hoje o milésimo pouso de instrução <strong>do</strong><br />
1º EMRA e o primeiro acidente. Aspirante Patto venha cá.<br />
E lá fui eu, envergonha<strong>do</strong>, para aquele palanque improvisa<strong>do</strong>.<br />
<br />
1 Outra palavra em inglês. Na aviação significa “avião de <strong>do</strong>is lugares, sen<strong>do</strong> um atrás<br />
<strong>do</strong> outro.”<br />
2 Pousa, mas não pára o avião. Acelera o motor e decola novamente.<br />
3 Extensão da asa que propicia um aumento de sustentação.<br />
4 De ponta-cabeça, apoia<strong>do</strong> na hélice e nas rodas <strong>do</strong> trem de pouso.<br />
51
Incidente no trânsito<br />
Caía uma chuva fina sobre Porto Alegre.<br />
Naquela época, o calçamento das ruas <strong>do</strong> centro era de<br />
pedras polidas, muito escorregadias quan<strong>do</strong> molhadas.<br />
Éramos aspirantes. O Pontes, andan<strong>do</strong> pelo centro com<br />
seu Karmann Ghya, sem saber que o calçamento estava<br />
escorregadio, freou um pouco em cima, deslizou e bateu no<br />
carro da frente. Desceu para conversar com o motorista,<br />
que aparentava estar furioso:<br />
– Olha o que você fez. Não sabe dirigir?<br />
Ao que o Pontes respondeu:<br />
– Calma. Se houver algum estrago, eu pago.<br />
– Calma coisa alguma. Pessoas como você não deveriam<br />
dirigir...<br />
Perden<strong>do</strong> a paciência, o Pontes retrucou:<br />
– Quer saber de uma coisa? Se não quer conversar, então<br />
vá à merda.<br />
– O quê? Sabe com quem está falan<strong>do</strong>? – retrucou o<br />
outro.<br />
– Não – respondeu o Pontes.<br />
– Pois saiba que eu sou capitão da Polícia Militar.<br />
Ao que o Pontes prontamente respondeu:<br />
– Bem feito. Quem man<strong>do</strong>u não estudar?<br />
<br />
52
Acidente em São Jerônimo<br />
Estávamos no fim <strong>do</strong> ano. A pilonagem havia si<strong>do</strong> esquecida,<br />
e to<strong>do</strong>s já haviam acumula<strong>do</strong> experiência.<br />
Minha função era coordenar a construção da nova pista,<br />
em São Jerônimo, em terras <strong>do</strong> Exército, onde tínhamos<br />
um stand de tiro aéreo.<br />
Como sempre, decolei de Canoas e rumei para São Jerônimo.<br />
A pista em uso era crítica. Era de cascalho, tinha seiscentos<br />
metros de comprimento, uma cerca de arame farpa<strong>do</strong><br />
em uma cabeceira, uma depressão na outra e uma<br />
ribanceira num <strong>do</strong>s la<strong>do</strong>s.<br />
Havia, também, um tambor posiciona<strong>do</strong> a <strong>do</strong>is terços <strong>do</strong><br />
comprimento da pista, destina<strong>do</strong> a marcar o ponto limite<br />
para arremeter, no caso de não estar com o avião <strong>do</strong>mina<strong>do</strong><br />
e com a bequilha 1 no chão. O vento estava forte, de través.<br />
Entrei alto na final, o que me custaria alguns metros a<br />
mais de corrida pós-pouso.<br />
Ao chegar no tambor, ainda estava com a bequilha no ar,<br />
mas não arremeti (afinal, eu era um <strong>do</strong>s poucos que nunca<br />
havia arremeti<strong>do</strong> nessa pista). Em conseqüência, precisei<br />
frear muito. Derrapei no cascalho, e o avião saiu da pista,<br />
descen<strong>do</strong> a ribanceira. Voltei a dar motor e colei o manche<br />
para evitar uma pilonagem. Pretendia parar o avião<br />
no pasto, logo abaixo. Entretanto, eu não sabia que ali era<br />
um charco, camufla<strong>do</strong> pela vegetação. Ao atingir o charco,<br />
o avião capotou. Não me recor<strong>do</strong> da pancada. Devo ter<br />
desmaia<strong>do</strong> por algum tempo. Quan<strong>do</strong> acordei, estava de<br />
cabeça para baixo, a cadeira estava quebrada na base, o<br />
capacete estava racha<strong>do</strong> devi<strong>do</strong> à pancada no painel, eu<br />
estava com o topo da cabeça dentro d’água (um olho estava<br />
dentro d’água) e com os braços presos, imobiliza<strong>do</strong>s.<br />
53
Havia cheiro de gasolina e dava para ver a “luz da bruxa” 2<br />
acesa. No início, desesperei-me. Fazia força para soltar os<br />
braços, tentava erguer o avião.<br />
Aos poucos, consegui me acalmar. Foi então que percebi<br />
que um braço podia movimentar-se para frente. Foi só<br />
esticá-lo, dar uma torção, e ele estava livre. Num instante,<br />
soltei o outro, livrei-me <strong>do</strong> pára-quedas e passei a apalpar<br />
a fuselagem, com a faca na outra mão, procuran<strong>do</strong> um local<br />
para romper a lataria. A impressão que eu tinha era de que<br />
a aeronave estava parcialmente enterrada no charco, e que<br />
o único meio de sair era rompen<strong>do</strong> a fuselagem. Foi então<br />
que ouvi passos.<br />
Perguntei:<br />
– Tem alguém aí?<br />
E alguém respondeu.<br />
Voltei a perguntar:<br />
– Está com alguma ferramenta?<br />
E a pessoa informou que estava com uma enxada.<br />
– Cutuca com a enxada por aqui para eu ver se entra luz<br />
– e batia na chapa da fuselagem. Na primeira enxadada,<br />
apareceu luz. Em segun<strong>do</strong>s, eu cavei uma saída com as<br />
mãos.<br />
Antes de sair, enterrei minha faca no barro pensan<strong>do</strong><br />
em não me machucar. Mais tarde a encontraram a mais de<br />
meio metro de profundidade.<br />
Dirigi-me à sede <strong>do</strong> stand. Lá chegan<strong>do</strong>, encontrei o suboficial<br />
encarrega<strong>do</strong> que regressava da estação <strong>do</strong> Exército.<br />
Havia escuta<strong>do</strong> o barulho <strong>do</strong> avião pousan<strong>do</strong> e foi até a<br />
pista. Ao ver o avião naquele esta<strong>do</strong>, chamou e não obteve<br />
resposta. Pensou que eu estivesse morto e foi até a estação<br />
de rádio <strong>do</strong> Exército, para informar à base. Rascunhei,<br />
então, um rádio, nos seguintes termos: “Acidente grave<br />
1244. Perda material total”. Ocorre que o suboficial havia<br />
54
informa<strong>do</strong> “... perda total...”. Como a mensagem passava<br />
por vários pontos, minha mensagem chegou antes e a <strong>do</strong><br />
suboficial após, o que confirmou a minha morte.<br />
Assim, foram desencadea<strong>do</strong>s, na base aérea, os procedimentos<br />
previstos para acidentes com morte: lacraram<br />
meu armário; mandaram avisar a Laura (minha futura mulher);<br />
solicitaram à Escola de Sargentos de Guaratinguetá<br />
que enviasse o capelão para avisar os meus pais, em<br />
Tremembé; compraram meu caixão e prepararam um C-47<br />
para buscar meu corpo. Enquanto isso, eu tomei um banho,<br />
coloquei meu macacão para secar e aguardei. Já mais calmo,<br />
perguntei ao suboficial:<br />
– E aquela caipirinha que vocês fazem para o almoço?<br />
Ao que ele respondeu:<br />
– Mas, tenente, o senhor tomou toda a caipirinha!<br />
E eu pensava que havia toma<strong>do</strong> um copo duplo de limonada!!<br />
E a caipirinha não fez o mínimo efeito.<br />
Como pensavam que eu havia morri<strong>do</strong>, o C-47 demorou<br />
um pouco. Deu tempo de secar, parcialmente, o macacão.<br />
Mas eu ainda estava com um calção empresta<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong><br />
o avião pousou. Fui até o pátio recebê-lo. Dentro <strong>do</strong> avião,<br />
um de meus companheiros reconheceu-me pela janela e<br />
exclamou:<br />
– Olha o Patto ali.<br />
Mas lá havia muitos patos. Pensaram que ele estava<br />
fazen<strong>do</strong> trocadilho e quase lhe bateram. Só quan<strong>do</strong> desembarcaram<br />
é que o mal-entendi<strong>do</strong> foi desfeito. O Comandante<br />
<strong>do</strong> C-47 man<strong>do</strong>u o rádiotelegrafista passar uma<br />
mensagem em morse, avisan<strong>do</strong> que eu estava vivo e bem.<br />
Nesse ínterim, o comandante da base em exercício (o titular<br />
estava de férias) foi chama<strong>do</strong> à Sala de Meios, encarregada<br />
das comunicações, e tomou conhecimento da situa-<br />
55
ção. Saiu em seguida para desfazer todas as providências<br />
em andamento. Mas ele gaguejava, quan<strong>do</strong> ficava nervoso.<br />
Naquele momento, estavam entran<strong>do</strong> no prédio de coman<strong>do</strong><br />
com meu caixão. Segun<strong>do</strong> dizem, gaguejou como nunca<br />
havia gagueja<strong>do</strong> antes.<br />
Houve tempo para cancelar a ida <strong>do</strong> capelão que avisaria<br />
os meus pais e, também, o pai da Laura. Como ela<br />
estava na faculdade, não chegou a ser informada de minha<br />
morte.<br />
De regresso, o C-47 pousou no V Coman<strong>do</strong> Aéreo Regional,<br />
para me deixar no hospital.<br />
Era um procedimento de rotina – ficar um perío<strong>do</strong> em<br />
observação.<br />
Havia uma enfermeira que me conhecia e estava desolada<br />
com minha morte. Ao me avistar, ficou alegre:<br />
– Pensei que fosse o senhor que houvesse morri<strong>do</strong>.<br />
Ao que respondi:<br />
– Fui eu, sim!<br />
Enquanto esses acontecimentos se sucediam, um outro<br />
colega, sedia<strong>do</strong> na Base Aérea de Santa Maria, passou<br />
pela Base Aérea de Canoas com destino a São Paulo ou<br />
Rio de Janeiro. Ficou saben<strong>do</strong> de minha morte e foi espalhan<strong>do</strong><br />
a notícia.<br />
No regresso, alguns dias após, pernoitou na Base Aérea<br />
de Canoas, devi<strong>do</strong> ao avança<strong>do</strong> da hora. Dirigiu-se ao<br />
alojamento, abriu a porta de meu quarto (estava frio e eu<br />
estava coberto, só com a cabeça de fora) e perguntou:<br />
– O Vaca está?<br />
– Não – respondi.<br />
– Obriga<strong>do</strong>.<br />
E fechou a porta. Mas a maçaneta permaneceu abaixada.<br />
E a porta foi abrin<strong>do</strong> devagar.<br />
56
Eu me preparei, colocan<strong>do</strong> a cabeça bem para fora das<br />
cobertas.<br />
Com os olhos arregala<strong>do</strong>s, olhou novamente para mim<br />
e exclamou:<br />
– O Patto!!!<br />
Quan<strong>do</strong> fui transferi<strong>do</strong> da Amazônia para Brasília, costumava<br />
contar histórias de caça<strong>do</strong>r e de pesca<strong>do</strong>r no ônibus<br />
que nos levava para o trabalho.<br />
Quan<strong>do</strong> acabou meu estoque amazônico e me perguntaram<br />
qual ia ser a história <strong>do</strong> dia, eu respondi:<br />
– Hoje eu vou contar uma história diferente, em que eu<br />
morro no final.<br />
Não me deixaram contar.<br />
E era a única verdadeira.<br />
<br />
1 Nessa aeronave, roda pequena posicionada na sua parte traseira.<br />
2 Lâmpada no painel que indica baixo nível de combustível.<br />
57
De pijama<br />
De pijama no casamento<br />
Havia um aspirante da reserva fazen<strong>do</strong> o Curso de Ataque<br />
conosco, em Canoas. Não tinha aquela malícia adquirida<br />
na Escola Preparatória, na Escola de Aeronáutica e na<br />
Academia da Força Aérea.<br />
Na véspera de meu casamento, estavam to<strong>do</strong>s os meus<br />
colegas e instrutores combinan<strong>do</strong> o que fariam no dia seguinte.<br />
Entre outras coisas, combinaram ir de pijama para<br />
a igreja.<br />
No dia seguinte, lá estava o menciona<strong>do</strong> aspirante, à<br />
espera de uma carona. Notou que, dentre os presentes,<br />
só ele estava de pijama. Os demais estavam com o quinto<br />
uniforme, adequa<strong>do</strong> para essas ocasiões. Explicaram para<br />
ele que aqueles que ali estavam iam cruzar as espadas e<br />
que os demais iriam de pijama. Deram-lhe uma carona até<br />
a igreja e, somente quan<strong>do</strong> chegou lá, percebeu o logro.<br />
Ninguém se prontificou a levá-lo de volta. E só lhe emprestaram<br />
o suficiente para voltar de ônibus.<br />
<br />
58
Compran<strong>do</strong> cachimbo<br />
Andava no centro de Canoas quan<strong>do</strong> vi, em uma vitrine,<br />
um paletó que me agradava, com um cachimbo no bolso. E<br />
o cachimbo me agradava mais ainda.<br />
Entrei e pedi para experimentar o paletó, que me serviu<br />
perfeitamente.<br />
Resolvi comprá-lo e pedi à vende<strong>do</strong>ra que o embrulhasse.<br />
– E não se esqueça <strong>do</strong> cachimbo – comentei.<br />
– Mas o cachimbo não está à venda. É só um enfeite<br />
– replicou.<br />
– Nada feito. Estavam na vitrine paletó e cachimbo. Ou<br />
levo os <strong>do</strong>is ou não levo nada.<br />
– Aguarde um momento que vou consultar o <strong>do</strong>no da<br />
loja.<br />
E voltou logo a seguir.<br />
– Tu<strong>do</strong> bem. O senhor pode levar o cachimbo. Vou embrulhá-lo<br />
juntamente com o paletó.<br />
Saí da loja to<strong>do</strong> satisfeito. Estava queren<strong>do</strong> mesmo fumar<br />
cachimbo.<br />
Mas ao chegar na base e desembrulhar o pacote, constatei<br />
que o cachimbo não tinha furo, não funcionava. Era<br />
enfeite mesmo.<br />
<br />
59
Primeira discussão<br />
Com pouco tempo de casa<strong>do</strong>s, tivemos nossa primeira<br />
discussão. E ela foi crescen<strong>do</strong>, fican<strong>do</strong> acalorada.<br />
Em um da<strong>do</strong> momento ameacei, ríspi<strong>do</strong>:<br />
– Cale a boca, senão...<br />
E a Laura, pon<strong>do</strong> a mão na cintura:<br />
– Senão o quê?<br />
– Senão calo eu – respondi.<br />
Foi nossa primeira e última discussão.<br />
<br />
60
O jogo<br />
O jogo <strong>do</strong>s três copinhos<br />
Ainda era aspirante a oficial.<br />
Passeava por Canoas, quan<strong>do</strong> deparei com <strong>do</strong>is indivíduos<br />
jogan<strong>do</strong> alguma coisa em cima de um caixote.<br />
Fui ver de que se tratava.<br />
Havia três copinhos e uma bolinha. A “banca” colocava<br />
um <strong>do</strong>s copinhos sobre a bolinha e manipulava os copos,<br />
mudan<strong>do</strong> suas posições. Invariavelmente, o outro sujeito<br />
errava. Invariavelmente, eu sabia onde estava a bolinha.<br />
Resolvi apostar.<br />
E, invariavelmente, passei a perder.<br />
De repente, percebi que estava sen<strong>do</strong> engana<strong>do</strong>. Saquei<br />
o 38 e fiz os <strong>do</strong>is marcharem, de pernas abertas, até a delegacia.<br />
Coisa de aspirante – à época.<br />
<br />
61
Ultrapassagem<br />
Fui com alguns colegas ao casamento de um outro, em<br />
uma cidade ao norte <strong>do</strong> Paraná.<br />
Estávamos em quatro e viajávamos em um Fuscão empresta<strong>do</strong>.<br />
Naquele momento, eu dirigia.<br />
Estava difícil ultrapassar uma carreta à minha frente. O<br />
Fuscão não tinha potência e, nas descidas, a carreta acelerava<br />
ainda mais.<br />
Numa daquelas descidas, mais acentuada que as anteriores,<br />
resolvi ultrapassar. Acelerei tu<strong>do</strong> que podia, emparelhei<br />
com a carreta e fui avançan<strong>do</strong> devagar.<br />
Foi quan<strong>do</strong> surgiu, lá à frente, uma outra carreta, também<br />
na descida. Achei que conseguiria e continuei a acelerar.<br />
Logo ficou patente que não daria para ultrapassar.<br />
Voltar era impossível.<br />
Sem alternativa, continuei aceleran<strong>do</strong> e cheguei o mais<br />
para a direita que me foi possível, esperan<strong>do</strong> que a estrada<br />
comportasse os três.<br />
Não comportou.<br />
A carreta, à minha frente, tirou uma roda para fora da<br />
estrada e, entre buzinadas, freadas e poeirada, passamos<br />
os três.<br />
Só então me dei conta de estar sozinho à frente. O companheiro<br />
que estava no banco ao la<strong>do</strong> havia sumi<strong>do</strong>. Na<br />
confusão, havia pula<strong>do</strong> para o banco de trás.<br />
Paramos para respirar e para desabafar.<br />
Desabafaram inclusive na minha mãe, que não tinha<br />
nada a ver com isso.<br />
<br />
62
Severino<br />
AMAZÔNIA<br />
Severino, um brasileiro<br />
Houve uma época em que participei <strong>do</strong> projeto Radam,<br />
destina<strong>do</strong> a levantar o potencial da Amazônia nos aspectos<br />
de extração de madeiras, fertilidade <strong>do</strong> solo e presença de<br />
minérios. Consistia em levar, de helicóptero, uma equipe<br />
de quatro homens para descerem de rapel 1 na selva, em<br />
pontos predetermina<strong>do</strong>s, com a finalidade de abrir uma clareira<br />
que permitisse o pouso <strong>do</strong> helicóptero. Deixávamos<br />
a equipe no ponto e voltávamos para recolhê-los no prazo<br />
por ela estipula<strong>do</strong>. Posteriormente, levávamos os técnicos<br />
para essas clareiras.<br />
Certa vez levamos uma equipe de rapel para um ponto<br />
distante sete minutos e trinta segun<strong>do</strong>s de vôo, a partir de<br />
uma pequena ilha fluvial no rio Roosevelt, a cerca de quatrocentos<br />
quilômetros ao sul de Porto Velho. Na ida, notamos<br />
que era possível aguardar, pousa<strong>do</strong> nessa ilha, até o<br />
término da abertura da clareira. Desse mo<strong>do</strong>, economizaríamos<br />
combustível.<br />
Notamos, também, que havia uma cabana bem próxima,<br />
a única moradia das re<strong>do</strong>ndezas. Uma outra nas proximidades<br />
situava-se a cerca de quarenta quilômetros rio acima.<br />
Além dessa, o vazio de seres humanos e a plenitude da<br />
floresta.<br />
Sabíamos que o barulho <strong>do</strong> helicóptero atrairia os mora<strong>do</strong>res<br />
ali ao la<strong>do</strong>.<br />
Dito e feito.<br />
Deixamos a equipe no ponto previsto e pousamos na pequena<br />
ilha. A seguir, fizemos fogo para aquecer a “meia-<br />
63
trava” – denominação da comida que levávamos. Não<br />
demorou nada e eis que surge o mora<strong>do</strong>r da cabana mais<br />
próxima. Vinha em uma canoa cheia de crianças. Atracou,<br />
cumprimentou e o convidamos para comer. Recusou, mas<br />
aceitou um cigarro com filtro que alguém lhe oferecera. E<br />
começamos a conversar:<br />
– Como é seu nome? – perguntei-lhe.<br />
– Severino – respondeu.<br />
– Você é filho de um “solda<strong>do</strong> da borracha” 2 ?<br />
– Sim, senhor.<br />
– Já tinha visto um desses? – perguntei, apontan<strong>do</strong> para<br />
o helicóptero.<br />
– Não, senhor.<br />
Uma observação: essa resposta nos dá uma idéia da<br />
imensidão da Amazônia. A Amazônia legal corresponde a<br />
cinqüenta e um por cento <strong>do</strong> território nacional.<br />
– Há quanto tempo você mora aqui?<br />
– Eu nasci aqui.<br />
– Teve muitos irmãos?<br />
– Sim, senhor.<br />
– E o que foi feito deles?<br />
– Pegaram o regatão e saíram pelo mun<strong>do</strong>.<br />
– Suas irmãs também?<br />
– Sim, senhor. Casavam e iam embora.<br />
– Casavam como?<br />
– Algum homem no regatão se engraçava e as levava<br />
embora.<br />
Detalhe: o regatão é um barco que faz comércio com os<br />
ribeirinhos, na base da troca, <strong>do</strong> escambo. Permanece em<br />
cada local o tempo suficiente para efetuar as trocas – no<br />
64
caso, alguns minutos.<br />
– E quantos anos tinham suas irmãs quan<strong>do</strong> foram embora?–<br />
voltei a perguntar.<br />
– Uns treze – respondeu-me.<br />
– E essa menina? – perguntei, apontan<strong>do</strong> para sua filha,<br />
aparentemente entran<strong>do</strong> na puberdade.<br />
– Já está quase no ponto.<br />
– E quantos filhos você tem?<br />
– Tive treze, mas só vingaram cinco.<br />
– Você não acha que vive muito isola<strong>do</strong>?<br />
– Não. Meu compadre mora perto (referia-se à cabana<br />
distante quarenta quilômetros rio acima).<br />
– Se você, de alguma forma, ganhasse muito dinheiro, o<br />
que faria?<br />
– Ah! Eu compraria teci<strong>do</strong>s nas Casas Pernambucanas,<br />
em Porto Velho.<br />
– Por quê?<br />
– Porque a chita está muito cara no regatão.<br />
– E como você sabe que em Porto Velho é mais barata?<br />
– É que meu pai me levou lá quan<strong>do</strong> eu era criança.<br />
– Você não gostaria de ir a uma cidade maior que Porto<br />
Velho?<br />
Olhou-me cheio de espanto e exclamou:<br />
– Maior que Porto Velho?!<br />
Continuei a perguntar:<br />
– O que você acha <strong>do</strong> governo?<br />
E ele me respondeu:<br />
– Ah! O governo está muito bom.<br />
– Por quê?<br />
– Porque o regatão já passou por aqui duas vezes este<br />
ano.<br />
65
Não me lembro de toda a conversa, mas ficou em minha<br />
memória esse encontro com Severino, um brasileiro que<br />
vive com sua família no coração da Floresta Amazônica.<br />
<br />
1 Técnica de descida, deslizan<strong>do</strong> por uma corda.<br />
2 Nordestino desloca<strong>do</strong> para a Amazônia durante a II Grande Guerra, para extrair bor-<br />
racha.<br />
66
Regula<strong>do</strong>r Xavier<br />
Havia um colega cujo irmão possuía um regatão e com<br />
ele navegava pelos rios da Amazônia, efetuan<strong>do</strong> as trocas.<br />
Como sempre lhe pediam remédios, embarcou, em uma de<br />
suas viagens, um grande estoque de Regula<strong>do</strong>r Xavier, próprio<br />
para regular a menstruação.<br />
Na ida, enquanto subia o rio, ia deixan<strong>do</strong> o Regula<strong>do</strong>r<br />
Xavier para qualquer queixa apresentada. Receitava para<br />
tu<strong>do</strong> – de <strong>do</strong>r de cotovelo a unha encravada.<br />
No regresso, vinha preocupa<strong>do</strong>. Será que não estariam<br />
bravos com ele?<br />
Para seu espanto, to<strong>do</strong>s ficaram satisfeitos e queriam<br />
mais “daquele remédio bom para qualquer coisa”.<br />
<br />
67
Laura em Belém<br />
Laura estava grávida <strong>do</strong> Cláudio, e o parto estava previsto<br />
para aqueles dias.<br />
Eu havia saí<strong>do</strong> para uma viagem de oito dias, já se haviam<br />
passa<strong>do</strong> vinte e não havia previsão de regresso.<br />
Laura decidiu resolver o problema. Foi até a casa <strong>do</strong> comandante<br />
da base, bateu e foi atendida pelo próprio comandante.<br />
– Pois não, minha senhora.<br />
– O menino vai nascer e quero meu mari<strong>do</strong> de volta.<br />
– Mas quem é seu mari<strong>do</strong>?<br />
– O tenente Patto.<br />
– Mas, minha senhora, é impossível tirá-lo de lá. Estamos<br />
sem helicóptero e lá não dá para pousar avião.<br />
– Isso é problema <strong>do</strong> senhor. O meu é ter meu mari<strong>do</strong><br />
aqui. Lugar de pai é com a mãe no nascimento <strong>do</strong> filho.<br />
No dia seguinte, um Sêneca 1 pousou aos trancos e barrancos<br />
no local onde eu estava.<br />
– Viemos te buscar para o nascimento de teu filho. Tua<br />
mulher está ameaçan<strong>do</strong> bater no comandante – comentou<br />
o piloto.<br />
1 Pequeno avião bimotor.<br />
<br />
68
Super-Homem<br />
Logo que chegamos a Belém, eu estava toma<strong>do</strong> pelo<br />
“Complexo de Super-Homem”. Era jovem, estava no auge<br />
<strong>do</strong> vigor e destreza física e achava que podia tu<strong>do</strong>, que<br />
nada ocorreria comigo.<br />
Como na Amazônia há muita malária, tomávamos antimalárico<br />
(Fancidá, Aralem e Primaquina) como medida<br />
preventiva. De vez em quan<strong>do</strong>, tomávamos também um<br />
anti-helmítico (Flagil). Na bula, estava escrito que a <strong>do</strong>se<br />
máxima diária era de quatro comprimi<strong>do</strong>s.<br />
Eu tomava oito!<br />
Pior ainda. Era comum, na região <strong>do</strong> Amapá, ficar infesta<strong>do</strong><br />
por um tipo de carrapato minúsculo – o micuim.<br />
Era difícil livrar-se dele. Então, criei um processo infalível:<br />
colocava a roupa para ferver e passava Detefon em to<strong>do</strong><br />
o corpo.<br />
Haja complexo! Mas só muito depois teria consciência<br />
de que os abusos da juventude têm um preço. E até que<br />
saiu barato. Somente vim a ter o Parkinson.<br />
“Se os jovens soubessem, se os velhos pudessem...”<br />
<br />
69
A formação<br />
A formação <strong>do</strong> universo,<br />
segun<strong>do</strong> os Ianomâmi<br />
Em visita a uma tribo de índios Ianomâmis, em Roraima,<br />
conversava com um missionário que ali estava havia trinta<br />
anos. Curioso, pedi-lhe que contasse alguma história a respeito<br />
desses índios.<br />
Atenden<strong>do</strong> a meu pedi<strong>do</strong>, passou a narrar o que denominei<br />
“a formação <strong>do</strong> universo segun<strong>do</strong> os Ianomâmi”:<br />
“Há muito, muito tempo, tu<strong>do</strong> que existia era um mun<strong>do</strong><br />
em forma de bloco, boian<strong>do</strong> no espaço. Nele viviam os Ianomâmi<br />
e to<strong>do</strong>s os bichos e plantas. E viviam muito bem.<br />
Todavia, como os Ianomâmi desagradaram a seus deuses,<br />
eles deixaram que este mun<strong>do</strong> apodrecesse e esfarelasse.<br />
E esses farelos se espalharam, como podemos constatar<br />
a noite, no céu. São as estrelas. E, em cada um desses<br />
farelos, vivem, ainda hoje, Ianomâmi, bichos e plantas. E<br />
acreditam que, um dia, os deuses vão per<strong>do</strong>á-los e permitirão<br />
que esses farelos se aglutinem, voltan<strong>do</strong> ao esta<strong>do</strong><br />
original.<br />
E vai ser bom, porque reunirá, novamente, to<strong>do</strong>s os Ianomâmi”.<br />
<br />
70
Piadinha amazônica<br />
João e Maria viajavam de regatão.<br />
Entraram já ao anoitecer e penduraram suas redes.<br />
Caiu a noite. Era uma noite particularmente escura.<br />
Não havia reflexos na água, nem se viam estrelas no<br />
céu.<br />
Não dava para enxergar a ponta <strong>do</strong> nariz.<br />
Maria chama João:<br />
– João!<br />
– O que é Maria?<br />
– Tu tá em mim?<br />
– Tô não.<br />
– Então tão!<br />
<br />
71
Questão de nome<br />
Numa ocasião, um <strong>do</strong>s tenentes <strong>do</strong> esquadrão voava<br />
com um T-25, de São Luís, no Maranhão, para Fortaleza, no<br />
Ceará, e teve uma parada de motor. De imediato, executou<br />
o procedimento de emergência previsto e, como o motor<br />
não deu nova partida, prosseguiu planan<strong>do</strong> até pousar na<br />
pista de uma pequena cidade <strong>do</strong> interior.<br />
Pousou bem, mas como não havia consegui<strong>do</strong> comunicar-se<br />
com o centro de área para informar que iria pousar,<br />
dirigiu-se à telefônica local, explicou a situação para a telefonista<br />
e solicitou à mesma que enviasse um reca<strong>do</strong> para o<br />
esquadrão, para que alguém fizesse uma ligação de retorno.<br />
E permaneceu aguardan<strong>do</strong>.<br />
Recebi o reca<strong>do</strong> e, de imediato, liguei para a telefonista<br />
local, ten<strong>do</strong>-me identifica<strong>do</strong> como capitão Patto, ao que ela<br />
respondeu:<br />
– Como é seu nome?<br />
– Patto – repeti.<br />
E ela desligou o telefone. Pensava que era trote.<br />
E eu tinha pressa de falar com o tenente.<br />
Voltei a ligar.<br />
Atendeu outra telefonista e foi logo perguntan<strong>do</strong>:<br />
– Como é seu nome?<br />
– Paton – respondi. O mesmo nome <strong>do</strong> general americano.<br />
Só então fui atendi<strong>do</strong>.<br />
Mas um nome desse tem muitas vantagens.<br />
Uma delas é que to<strong>do</strong>s lembram, e você fica logo conheci<strong>do</strong>.<br />
A outra é que gera piadas e brincadeiras, o que facilita<br />
um relacionamento bem-humora<strong>do</strong>. E, para adiantar as coi-<br />
72
sas, costumo fazer eu mesmo as chacotas.<br />
Mas a melhor foi feita por um grande amigo, a quem prezo<br />
muito. Ele passou vários dias me chaman<strong>do</strong> de “Patto,<br />
o Polivalente”. E eu deixava passar. Mas, depois de alguns<br />
dias, a curiosidade venceu e perguntei o porquê. Ao que ele<br />
respondeu:<br />
– Pato: anda, nada, mergulha e voa... mal.<br />
Mas o que me contraria nessa questão de nome é que<br />
to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> acaba “pagan<strong>do</strong> o pato” – e até agora não recebi<br />
nem um centavo. Aquele que estiver deven<strong>do</strong>, queira,<br />
por gentileza, enviar o montante, em cheque, para o meu<br />
editor.<br />
<br />
73
Poliglota<br />
Como tenente, fui encarrega<strong>do</strong> de realizar uma Investigação<br />
de Acidente Aeronáutico, envolven<strong>do</strong> uma aeronave<br />
de procedência norte-americana que estava sen<strong>do</strong> trasladada<br />
para um país africano.<br />
O motor apresentou falha em vôo, e o piloto pousou em<br />
uma cidade interiorana para verificar o problema. Ao pousar,<br />
a bequilha quebrou, o que causou alguns danos à aeronave.<br />
Eu já sabia que o piloto não falava português – e eu não<br />
entendia inglês.<br />
Lá chegan<strong>do</strong>, em conversa com o guarda-campo1 , manifestei<br />
minha preocupação lingüística, ao que ele retrucou:<br />
– Pode deixar comigo, tenente. Por aqui passam muitos<br />
americanos, e eu sei falar com eles.<br />
Estranhei. Mas permanecemos aguardan<strong>do</strong>.<br />
Não demorou muito e chegou o piloto envolvi<strong>do</strong> no acidente.<br />
E o guarda-campo foi logo dizen<strong>do</strong>:<br />
– Mim querer saber problema...<br />
E achava que estava falan<strong>do</strong> inglês!<br />
<br />
1 Indivíduo encarrega<strong>do</strong> de manter o campo desimpedi<strong>do</strong> para pouso e de manter, em<br />
livro próprio, o movimento de aeronaves.<br />
74
Outra grávida<br />
Um colega, piloto <strong>do</strong> outro esquadrão, ia ficar noivo e<br />
nos convi<strong>do</strong>u, Laura e eu, para a festa de noiva<strong>do</strong>. Não<br />
conhecíamos a noiva. Como eu viajava muito, não fomos<br />
ao noiva<strong>do</strong> e, protelan<strong>do</strong>, acabamos por não enviar nem<br />
mesmo um telegrama.<br />
Passou o tempo.<br />
Eis que um dia recebemos novo convite, dessa vez para<br />
o casamento.<br />
Novamente, ocorreu o mesmo. Não comparecemos e<br />
não enviamos presente ou congratulações.<br />
Passa<strong>do</strong>s vários meses, estávamos no Clube, quan<strong>do</strong><br />
nos deparamos com o casal. Ainda com a consciência pesada<br />
devi<strong>do</strong> ao descaso anterior, fui cumprimentá-los, to<strong>do</strong><br />
efusivo:<br />
– E então? Há muito queria conhecê-la.<br />
E, sem titubear:<br />
– E o nenê, para quan<strong>do</strong> é?<br />
Ao que ela respondeu, pausadamente:<br />
– Eu não estou grávida!<br />
Era gordinha por natureza.<br />
<br />
75
A mão<br />
A mão decepada<br />
Eu estava, novamente, em operação no Radam.<br />
O acampamento era grande. Cerca de cem civis e vinte<br />
e cinco militares.<br />
Contávamos com quatro helicópteros para cumprir a<br />
missão, um avião Islander, de apoio logístico, barracas de<br />
cobertura dupla, gera<strong>do</strong>r, freezer, fogões, máquina de lavar<br />
roupa, cozinheiros, uma enfermaria, médico, enfermeiro...<br />
À época, eu era primeiro-tenente e, naquela manhã, o<br />
militar de patente mais elevada. Como tal, eu chefiava a<br />
fração aérea.<br />
Os civis tinham sua própria chefia, mas era comum recorrerem<br />
aos militares quan<strong>do</strong> ocorria algo mais grave.<br />
Não havia termina<strong>do</strong> de tomar o café quan<strong>do</strong> vieram me<br />
chamar:<br />
– Tenente, o administra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Radam está aí e quer falar<br />
com o senhor.<br />
Fui até ele. Estava acompanha<strong>do</strong> de <strong>do</strong>is peões, um deles<br />
com a mão quase que totalmente decepada. Mandei<br />
chamar o médico e acionei o piloto <strong>do</strong> Islander para uma<br />
decolagem imediata, com destino a Manaus. Em poucos<br />
minutos, decolaram o piloto, o médico e o peão feri<strong>do</strong>.<br />
Voltei-me, então, para o outro peão:<br />
– Foi você quem fez aquilo? – inquiri.<br />
– Sim, senhor.<br />
– Bebida? (Era proibi<strong>do</strong> o ingresso de bebidas no acampamento).<br />
– Sim, senhor.<br />
– Como foi?<br />
– Com facão.<br />
– Prepare suas coisas que amanhã você segue de Islander<br />
para Manaus, para ser entregue à polícia.<br />
76
Era o que eu podia fazer, naquela situação. Eu achava<br />
que ele fugiria à noite, entran<strong>do</strong> na mata.<br />
Mas, no dia seguinte, lá estava ele, com sua trouxa,<br />
aguardan<strong>do</strong> o Islander para seguir preso para Manaus.<br />
<br />
77
O <strong>rabo</strong><br />
O <strong>rabo</strong> <strong>do</strong> <strong>macaco</strong><br />
No folclore amazônico, há muitos talismãs destina<strong>do</strong>s<br />
a dar sorte. Um <strong>do</strong>s mais conheci<strong>do</strong>s é o <strong>rabo</strong> <strong>do</strong> <strong>macaco</strong><br />
prego.<br />
A esse respeito, contam que, certa vez, viajavam pela<br />
Amazônia, de Catalina 1 , um brigadeiro, pilotan<strong>do</strong>, e sua esposa,<br />
de passageira.<br />
Em um <strong>do</strong>s locais em que pousaram, alguém deu à esposa<br />
<strong>do</strong> brigadeiro um <strong>macaco</strong> prego. Fazia, porém, muito<br />
calor no Catalina, e a viagem era demorada.O <strong>macaco</strong><br />
começou a passar mal e, com o decorrer da viagem, foi<br />
pioran<strong>do</strong>. Foi então que o mecânico de bor<strong>do</strong> perguntou à<br />
esposa <strong>do</strong> brigadeiro:<br />
– Madame! Se o <strong>macaco</strong> morrer a senhora me dá o<br />
<strong>rabo</strong>?<br />
Fez-se silêncio total.<br />
Achan<strong>do</strong> que havia da<strong>do</strong> mancada, resolveu consertar:<br />
– Do <strong>macaco</strong>, é lógico.<br />
<br />
1 Avião anfíbio. Foi muito utiliza<strong>do</strong> na Amazônia.<br />
78
O mistério<br />
O mistério <strong>do</strong>s peixes<br />
Lembro-me também de um dia em que aguardávamos o<br />
término da abertura de uma clareira, pousa<strong>do</strong>s numa formação<br />
rochosa parecida com o Pão de Açúcar, na região de<br />
São Gabriel da Cachoeira.<br />
Ali, no topo, havia uma depressão onde se acumulara<br />
água da chuva. Como na Amazônia chove to<strong>do</strong> dia, era razoável<br />
esperar que aquele laguinho fosse perene. O que<br />
nos garantiu isso foi a presença de peixinhos nesse lago.<br />
Daí a pergunta: como os peixinhos foram parar lá?<br />
Fiquei com essa dúvida durante anos até que, um dia,<br />
meu filho, já biólogo, explicou-me:<br />
– Os passarinhos ciscam nas margens <strong>do</strong>s riachos e ficam,<br />
às vezes, com barro gruda<strong>do</strong> nos pés. Nesse barro,<br />
pode haver ovas de peixes, o que se constitui um meio de<br />
transporte até o topo da formação rochosa.<br />
Quem diria!<br />
<br />
79
O parto<br />
O parto da índia Ianomâmi<br />
A índia Ianomâmi, quan<strong>do</strong> vai parir, embrenha-se na mata<br />
e tem o filho sozinha. Assim que nasce, se for o seu desejo,<br />
ela o mata e enterra – o que faz, normalmente, quan<strong>do</strong> está<br />
amamentan<strong>do</strong> outro filho.<br />
Caso retorne à aldeia com a criança, perde esse direito.<br />
O filho passa a ser da tribo, e não mais dela.<br />
<br />
80
Ainda Ianomâmi<br />
Novamente operan<strong>do</strong> a partir da tribo Ianomâmi, conversava<br />
com o padre Carlos, missionário que lá estava havia<br />
anos, quan<strong>do</strong> passaram <strong>do</strong>is índios com o corpo to<strong>do</strong><br />
pinta<strong>do</strong>. Andavam abraça<strong>do</strong>s, ou melhor, parecia que dançavam.<br />
Perguntei ao padre Carlos <strong>do</strong> que se tratava, e ele explicou:<br />
– Às vezes, quan<strong>do</strong> o índio vai caçar, e passa vários dias<br />
fora, sua mulher deita com outro índio. Quan<strong>do</strong> o mari<strong>do</strong><br />
regressa, ela tem que escolher com qual ficar, pois não<br />
pode ficar com os <strong>do</strong>is. Ambos se pintam dessa maneira,<br />
para ficarem enfeita<strong>do</strong>s e bonitos, e ficam desfilan<strong>do</strong> pela<br />
aldeia, abraça<strong>do</strong>s, aguardan<strong>do</strong> a decisão da índia.<br />
<br />
81
Colhen<strong>do</strong> castanha<br />
Voava de regresso de mais um dia de Radam, com o professor<br />
Murça a bor<strong>do</strong>. Ele era um cientista <strong>do</strong> museu Emílio<br />
Goeldi, em Belém, e, às vezes, vinha voar conosco. Era um<br />
prazer conversar com ele. Era botânico, sabia tu<strong>do</strong>.<br />
Naquele momento, estávamos passan<strong>do</strong> por uma espécie<br />
de bosque. As árvores eram todas iguais. O professor<br />
Murça ficou logo indócil. Perguntei ao artilheiro:<br />
– O que está haven<strong>do</strong>?<br />
– É o professor Murça. Quer saber se é possível apanhar<br />
uma castanha daquelas árvores.<br />
– Você está com o “<strong>rabo</strong> de gato” 1 ?<br />
– Sim, senhor.<br />
– Então, diga a ele que sim, mas que permaneça com os<br />
cintos fecha<strong>do</strong>s.<br />
Fazen<strong>do</strong> um flare (manobra que desacelera o helicóptero),<br />
pairei sobre uma daquelas árvores e fui mergulhan<strong>do</strong><br />
nela até onde foi possível.<br />
O artilheiro, de pé no esqui 2 , não teve dificuldade – apanhou<br />
uma castanha e fomos embora.<br />
Quan<strong>do</strong> chegamos ao acampamento, fomos, de imediato,<br />
falar com o professor Murça, para saber o motivo de<br />
tanto entusiasmo.<br />
Como sempre, brin<strong>do</strong>u-nos com uma aula. Disse que<br />
aquelas árvores viviam em simbiose com determinadas<br />
formigas – daí terem o mesmo nome (não me recor<strong>do</strong> o<br />
nome). Essa árvore leva seis anos para crescer, florescer e<br />
dar a castanha e floresce uma só vez. Quan<strong>do</strong> isso ocorre,<br />
sua seiva torna-se a<strong>do</strong>cicada, e a formiga alimenta-se dela.<br />
Com isso mata a árvore.<br />
82
Nesse meio tempo, a formiga protege a árvore <strong>do</strong> ataque<br />
de outros insetos.<br />
<br />
1 Colete <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> de um tirante que fica preso à fuselagem. Provê segurança.<br />
2 No UH-1H, substitui as rodas.<br />
83
Pernoite na clareira<br />
Numa ocasião em que operávamos no Radam, tínhamos<br />
que deixar uma equipe de rapel para abrir uma clareira que<br />
já se sabia trabalhosa. No dia anterior, havíamos tenta<strong>do</strong>,<br />
mas a corda, normalmente utilizada, era pequena (cinqüenta<br />
metros). As árvores, nesse local, eram altas, mas agora<br />
levávamos uma corda de oitenta metros. O chefe da equipe<br />
de rapel já havia combina<strong>do</strong> que, por via das dúvidas, eles<br />
só deveriam ser resgata<strong>do</strong>s no dia seguinte. Pernoitariam<br />
na clareira.<br />
Deixamos a equipe no local e regressamos.<br />
À tardinha, porém, recebemos um comunica<strong>do</strong> da equipe,<br />
via rádio, que houvera um acidente e estavam precisan<strong>do</strong><br />
de um médico. Perguntei se era possível pousar e<br />
afirmaram que sim, alertan<strong>do</strong>, porém, que a única aproximação<br />
possível era de frente a uma castanheira, por dentro<br />
de um “túnel” de árvores.<br />
Devi<strong>do</strong> ao avança<strong>do</strong> da hora, se fôssemos de imediato,<br />
chegaríamos ao local ao anoitecer. Teríamos que pousar de<br />
qualquer maneira, e o risco era grande. Consultei a tripulação<br />
e o médico, e to<strong>do</strong>s concordaram em fazer a missão.<br />
Decolamos de imediato e para lá nos dirigimos, com a<br />
velocidade máxima permitida pelo helicóptero. Chegamos<br />
ao anoitecer e, realmente, só havia aquela opção para aproximação<br />
e pouso.<br />
Felizmente, o acidente não havia si<strong>do</strong> grave – um pau<br />
havia caí<strong>do</strong> na cabeça de um <strong>do</strong>s peões, e ele havia desmaia<strong>do</strong>.<br />
<br />
84
Plantas carnívoras<br />
Em outra ocasião, estávamos na Serra <strong>do</strong> Aracá, e o<br />
professor Murça estava conosco. Comíamos a “meia-trava”,<br />
à beira de um riacho.<br />
A certa altura, perguntei:<br />
– Professor, na Amazônia existem muitas variedades de<br />
plantas carnívoras?<br />
Ao que ele respondeu:<br />
– Você está senta<strong>do</strong> em cima de uma.<br />
Não pude me conter. Levantei-me de um pulo.<br />
– Onde está, professor?<br />
– Procurem que vocês acham<br />
To<strong>do</strong>s já estavam procuran<strong>do</strong>.<br />
Procura daqui, procura dali e nada. Ninguém encontrava.<br />
– Estão ven<strong>do</strong> essas florzinhas vermelhas, bem pequeninas?<br />
– e apontou para uma flor que devia ter, no máximo,<br />
uns <strong>do</strong>is milímetros de diâmetro.<br />
– Apanhem uma dessas – voltou a observar.<br />
– Agora, olhem para ela, pon<strong>do</strong>-a contra o sol. O que<br />
vêem?<br />
– Umas bolinhas meio transparentes – disse eu.<br />
– Pois essas bolinhas são como uma cola. Pequenos insetos<br />
pousam aí, ficam gruda<strong>do</strong>s, e a planta os digere.<br />
– Agora, apanhem, no riacho, uma daquelas que está<br />
boian<strong>do</strong>. Essas coisas que parecem raízes são, na realidade,<br />
tentáculos. Servem para capturar pequenos animais<br />
aquáticos.<br />
Ficou uma lição. Os olhos servem para ver, não para enxergar.<br />
Para enxergar, é preciso saber ver.<br />
<br />
85
Cachoeira <strong>do</strong> Aracá<br />
A Serra <strong>do</strong> Aracá faz parte de uma formação montanhosa<br />
da Venezuela. É um platô com escarpas íngremes no<br />
la<strong>do</strong> brasileiro.<br />
Toda a região é rica em ouro e diamantes. O terreno tem<br />
uma composição argilosa que o torna parcialmente impermeável.<br />
O riacho às margens <strong>do</strong> qual conversávamos com<br />
o professor Murça é um <strong>do</strong>s escoa<strong>do</strong>uros <strong>do</strong> platô. Normalmente<br />
com pouca água, deve aumentar dezenas de vezes<br />
seu volume quan<strong>do</strong> chove pesa<strong>do</strong> e por muito tempo.<br />
Isso pode ser deduzi<strong>do</strong> ao observarmos o seu leito e as<br />
suas margens, com suas pedras arre<strong>do</strong>ndadas, sinal de forte<br />
erosão. O riacho termina em uma cachoeira, adentrada<br />
no platô por mais de um quilômetro, por força da erosão.<br />
Ficamos imaginan<strong>do</strong>, então, que lá embaixo, no pequeno<br />
lago no qual deságua a cachoeira, devem estar o ouro e os<br />
diamantes, arrasta<strong>do</strong>s pela força das águas no acúmulo <strong>do</strong><br />
tempo.<br />
Por isso desejávamos ir até lá.<br />
A única maneira era de helicóptero. Mas não por cima. O<br />
vento, baten<strong>do</strong> naquelas fendas e protuberâncias, turbilhonava<br />
forte. Com certeza derrubaria o helicóptero.<br />
Resolvemos ir por baixo, pelo canyon cava<strong>do</strong> na rocha.<br />
Ventava muito, também. Avançamos devagar, quase na velocidade<br />
de um homem a pé. Às vezes, dava para ir mais<br />
rápi<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> o vento amainava.<br />
Quan<strong>do</strong> chegamos, pousei numa das pedras que víamos<br />
lá de cima e cortei o motor. O espetáculo era alucinante: a<br />
água da cachoeira descia de mo<strong>do</strong> convencional até uma<br />
certa altura. Daí para baixo, o vento a transformava em<br />
uma cortina d’água, mudan<strong>do</strong> suas formas, como se fosse<br />
um baila<strong>do</strong>. E o sol, beijan<strong>do</strong> as fímbrias dessa cortina,<br />
86
tornava-a multicolorida, cambian<strong>do</strong> as cores, a to<strong>do</strong> momento.<br />
Medi a altura da cachoeira comparan<strong>do</strong> a indicação <strong>do</strong><br />
altímetro com o helicóptero pousa<strong>do</strong> lá embaixo e lá em<br />
cima. Deu duzentos e oitenta e <strong>do</strong>is metros.<br />
<br />
87
Pista em Uai-Uai<br />
Havia uma equipe de militares abrin<strong>do</strong> uma pista em<br />
Uai-Uai, numa região próxima à Guiana Inglesa. O local era<br />
mata fechada, ao la<strong>do</strong> de um riacho (não mais que vinte<br />
metros de largura). O apoio só era possível de helicóptero.<br />
Ocorre que houve uma falha em um componente <strong>do</strong>s helicópteros,<br />
o que ocasionou a interdição de to<strong>do</strong>s os helicópteros<br />
da FAB, daquele tipo, enquanto se aguardava uma<br />
remessa <strong>do</strong>s componentes, vinda <strong>do</strong> exterior.<br />
E os dias foram passan<strong>do</strong>.<br />
Informaram, pelo rádio, que a comida estava acaban<strong>do</strong>.<br />
Isso não preocupava, pois havia muito peixe no riacho.<br />
Alguns dias depois, informaram que estava acaban<strong>do</strong> a<br />
farinha. A situação começou a ficar grave.<br />
Mais alguns dias e veio a mensagem: estava acaban<strong>do</strong> a<br />
cachaça. A situação ficou crítica.<br />
Planejamos, então, um apoio aéreo realiza<strong>do</strong> com L-19,<br />
um Cesna de Ligação e Observação que tinha, como uma<br />
de suas peculiaridades, a capacidade de realizar pousos<br />
extremamente curtos, necessitan<strong>do</strong> de pouca pista para<br />
pousar. A equipe que trabalhava na abertura da pista garantiu-nos<br />
que já havia limpa<strong>do</strong> e destoca<strong>do</strong> duzentos metros<br />
de área para pouso.<br />
Como não era possível alcançar o local a partir de alguma<br />
outra pista, decidimos pousar na estrada vicinal que a<br />
Andrade Gutierrez estava abrin<strong>do</strong> em direção ao traça<strong>do</strong><br />
da Perimetral Norte. Solicitamos que essa empresa levasse<br />
combustível para o local, de caminhão, a partir de Cachoeira<br />
da Porteira. Assim foi feito e seguimos para o pouso na<br />
estrada, eu e outro piloto, cada qual em um avião.<br />
Cada um de nós levava duzentos quilos em mantimentos<br />
e mais um tamborete de combustível, necessário para o<br />
88
egresso.<br />
Pousamos na estrada sem problemas, abastecemos e<br />
seguimos para Uai-Uai. Lá chegan<strong>do</strong>, passamos a circular.<br />
A copa das árvores tampava quase tu<strong>do</strong>. Mal dava para ver<br />
o chão. Do solo, a equipe reafirmava que era tranqüilo, que<br />
havia bastante espaço e podíamos pousar tranqüilamente.<br />
Fui o primeiro.<br />
Fiz a aproximação o mais baixo possível, rente às árvores<br />
e com um mínimo de velocidade. Ao chegar à borda da<br />
clareira, tirei o motor, mergulhei e voltei a dar to<strong>do</strong> o motor,<br />
para amortecer o impacto (o L-19 era muito resistente a<br />
impactos com o avião alinha<strong>do</strong>).<br />
Parei com algumas dezenas de metros de corrida no<br />
solo.<br />
Realmente, havia muito espaço pela frente.<br />
Pelo rádio, passei as informações para o outro piloto e<br />
logo ele estava no chão.<br />
A alegria da equipe era gratificante.<br />
Agradeceram muito e prometeram que, quan<strong>do</strong> a pista<br />
ficasse pronta, haveria lá uma placa com o nosso nome.<br />
Acho que esqueceram.<br />
<br />
89
Incesto<br />
Havia deixa<strong>do</strong> uma equipe de rapel para abrir uma clareira<br />
e pousei o helicóptero num roça<strong>do</strong> ao la<strong>do</strong> de uma casa<br />
de pau-a-pique, coberta de palha, para aguardar o tempo<br />
necessário para o recolhimento <strong>do</strong> pessoal.<br />
Para o mora<strong>do</strong>r devia ser apavorante aparecer, em seu<br />
quintal, uma máquina esquisita que, provavelmente, nunca<br />
havia visto, fazen<strong>do</strong> uma barulheira infernal, bufan<strong>do</strong>,<br />
ventan<strong>do</strong> e, quem sabe, até derruban<strong>do</strong> a casa! Por isso<br />
mesmo, após desligar o motor, fui explicar ao proprietário<br />
o porquê daquela intrusão. Vestia o uniforme de vôo: macacão<br />
de vôo, bibico, cinto com um Taurus 38 de um la<strong>do</strong> e<br />
uma faca no outro. Naquele contexto, nada simpático.<br />
No caminho, avistei, na janela, uma mocinha com um<br />
bebê no colo. E encontrei, à minha espera, um senhor de<br />
meia idade e entabulei conversa:<br />
– Então! O senhor é o <strong>do</strong>no?<br />
– Não, não. O <strong>do</strong>no da casa está no mato. É caça<strong>do</strong>r de<br />
onça.<br />
– E o senhor, quem é?<br />
– Eu sou o professor da criança.<br />
– A que estava no colo da moça?<br />
– Ela mesma.<br />
Expliquei o porquê de estarmos ali e passamos a conversa<br />
para outros assuntos.<br />
O que ocorreu?<br />
Para mim, aquele senhor ficou assusta<strong>do</strong> e inventou a<br />
história <strong>do</strong> caça<strong>do</strong>r de onça para me intimidar (o caça<strong>do</strong>r<br />
de onça é ti<strong>do</strong> como um homem muito valente). E a menina<br />
na janela era, com certeza, filha daquele senhor. Provavel-<br />
90
mente, quan<strong>do</strong> a esposa morreu, ele passou a ter relações<br />
com a filha – com a qual teve aquele bebezinho.<br />
Um caso típico de incesto, comum na região amazônica.<br />
<br />
91
Conversa<br />
O comandante <strong>do</strong> esquadrão era gago; o chefe da manutenção,<br />
ansioso.<br />
Era dia de jogo da Copa <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong>, e o comandante<br />
man<strong>do</strong>u chamar o chefe da manutenção. Após os cumprimentos<br />
de praxe, entabulou-se a seguinte conversa:<br />
– Fulano, vo...vo...você, dis...dispensa se...seu pe...pe...<br />
pessoal...<br />
– Não, senhor! Não dispenso ninguém. Não sem falar<br />
com o senhor.<br />
– Na... não – o esforço aumentava e a gagueira piorava<br />
– vo... vo...vo... você dis... dis... dis...<br />
– Não, senhor. De mo<strong>do</strong> algum. Eu jamais dispensaria<br />
alguém sem antes falar com o senhor.<br />
Foi difícil passar a mensagem de que era para dispensar<br />
o pessoal para que pudessem assistir ao jogo da Copa <strong>do</strong><br />
Mun<strong>do</strong>.<br />
<br />
92
Por falar<br />
Por falar em chefe...<br />
O cidadão entra na loja que vende animais e pergunta:<br />
– Quanto custa este papagaio?<br />
– Mil reais – responde o <strong>do</strong>no da loja.<br />
– Tu<strong>do</strong> isso? O que ele faz?<br />
– Ah! Ele cumprimenta, chama o cachorro, assobia...<br />
– E esse outro?<br />
– Dois mil reais.<br />
– Puxa vida! E o que ele faz?<br />
– Também cumprimenta, fala uma porção de coisas, assobia<br />
to<strong>do</strong> o Hino Nacional ..<br />
– Muito bem. E aquele na vitrine?<br />
– Ah! Aquele é caro. Cinco mil reais.<br />
– Mas é muito caro. E o que ele faz para valer tu<strong>do</strong><br />
isso?<br />
– O que ele faz eu não sei. Mas os outros <strong>do</strong>is chamam<br />
ele de chefe.<br />
<br />
93
Desarman<strong>do</strong> bomba<br />
Inicialmente, nosso esquadrão contava com três tipos<br />
de aviões: de Ataque ao Solo (NA T-6), de Ligação e Observação<br />
(L-19) e o Helicóptero (UH-1H).<br />
Certa vez, fomos a Manaus com quatro NA T-6 para participar<br />
de uma manobra <strong>do</strong> Exército. Cada aeronave estava<br />
municiada com quatro bombas de duzentas e cinqüenta libras,<br />
que deviam ser jogadas para explodir dentro de uma<br />
clareira. Se explodissem antes, pegariam a tropa verde; se<br />
depois, a amarela. Por esse motivo, lançamos as bombas<br />
na menor altura possível, dentro <strong>do</strong>s limites de segurança.<br />
Deu para sentir a onda de choque na cauda <strong>do</strong> avião.<br />
O comandante da esquadrilha, no entanto, era brincalhão...<br />
um goza<strong>do</strong>r.<br />
Ao pousarmos, regressan<strong>do</strong> à Base Aérea de Manaus,<br />
inventou dizer ao oficial de armamento que uma bomba não<br />
havia explodi<strong>do</strong>, e que ele deveria ficar alguns dias para<br />
desarmá-la.<br />
Tanta coisa inventou que deixou o outro preocupa<strong>do</strong>. E<br />
mais: convenceu-o a escrever uma carta à esposa, para ser<br />
entregue numa eventualidade.<br />
É claro! A brincadeira foi desfeita antes <strong>do</strong> regresso à<br />
sede, e a carta devolvida.<br />
Deve estar guardada até hoje.<br />
<br />
94
Nuvem de tempestade<br />
Como eu tinha Cartão de Vôo por Instrumentos, fiz muitos<br />
vôos noturnos para o Nordeste com outros pilotos que<br />
precisavam de treinamento para obter o cartão.<br />
Num desses vôos, decolamos de Recife e, na subida,<br />
passamos por uma camada de nuvens e deparamos com<br />
um espetáculo sempre renova<strong>do</strong>. O céu estava limpo, e a<br />
lua brilhava ofuscan<strong>do</strong> as estrelas. Um pouco à direita na<br />
rota erguia-se, majestoso, um Towering Cumulus (TCU),<br />
uma nuvem de tempestade.<br />
Voávamos um Universal T-25, um pequeno avião de treinamento<br />
avança<strong>do</strong>, com <strong>do</strong>is assentos, la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>.<br />
Talvez inspira<strong>do</strong> pela majestade <strong>do</strong> TCU, meu companheiro<br />
perguntou:<br />
– Já entrou em um desses?<br />
– Não – respondi.<br />
– Vamos entrar?<br />
– Vamos – respondi, sem pensar.<br />
E começamos a nos preparar.<br />
Checamos se havia alguma coisa solta, apertamos cintos<br />
e suspensórios, selecionamos a viseira <strong>do</strong> capacete.<br />
Conhecíamos a teoria e revisamos to<strong>do</strong>s os procedimentos.<br />
E entramos.<br />
E era muito pior <strong>do</strong> que havíamos imagina<strong>do</strong>.<br />
O avião saltava de tal mo<strong>do</strong> que mal conseguíamos evitar<br />
a entrada em atitude anormal.<br />
Durou apenas alguns segun<strong>do</strong>s.<br />
Saímos, de repente, a noventa graus com a proa de entrada.<br />
95
O TCU, literalmente, nos cuspiu para fora.<br />
E o meu companheiro, viran<strong>do</strong>-se para mim, disse:<br />
– Você é uma besta.<br />
Ao que respondi:<br />
– E você é outra.<br />
<br />
96
Quem está pilotan<strong>do</strong>?<br />
Eu estava de passageiro em um C-47, avião de transporte<br />
bimotor, com capacidade para vinte e tantos passageiros.<br />
Por injunções outras, estava à paisana. Havíamos<br />
decola<strong>do</strong> de Belém e nosso destino era Tucuruí, ao sul <strong>do</strong><br />
Pará. Havia, a bor<strong>do</strong>, um general, com sua comitiva, que<br />
tinha fama de não gostar de voar.<br />
Num da<strong>do</strong> momento, o piloto em coman<strong>do</strong> man<strong>do</strong>u o outro<br />
ir conversar com o general. Logo a seguir, determinou<br />
ao sargento que me chamasse, instruin<strong>do</strong>-o para não me<br />
tratar de tenente.<br />
Quan<strong>do</strong> cheguei à cabine, ele pediu-me que fosse pilotan<strong>do</strong><br />
e também foi conversar com o general. Com os <strong>do</strong>is<br />
pilotos ao seu la<strong>do</strong>, o general ficou nervoso.<br />
– Afinal! Com vocês <strong>do</strong>is aqui, quem está pilotan<strong>do</strong> a<br />
aeronave?<br />
Ao que o piloto em coman<strong>do</strong> respondeu:<br />
– Aquele civil que estava aqui.<br />
– Mas ele sabe pilotar?<br />
– Não, mas ele aprende rápi<strong>do</strong>.<br />
<br />
97
Voan<strong>do</strong> monomotor<br />
Embarquei em um C-47 como passageiro, juntamente<br />
com um colega de esquadrão cuja característica mais marcante<br />
era sua presença de espírito, no senti<strong>do</strong> de perceber<br />
o inusita<strong>do</strong> e o ridículo e reagir prontamente de forma inteligente<br />
e criativa, se bem que normalmente com ironia.<br />
Estava previsto que embarcariam nesse avião vinte e<br />
poucos militares <strong>do</strong> Exército, e o plano de vôo, já entregue,<br />
continha essa informação.<br />
Passou a hora da decolagem e, como o pessoal <strong>do</strong> Exército<br />
não chegava, o piloto resolveu partir. Deu ordem para<br />
embarcar algum material que estivesse aguardan<strong>do</strong> transporte<br />
e lá fomos nós com sacos de mantimentos, aparelhos<br />
de rádio transmissão e outras cargas.<br />
Quan<strong>do</strong> estávamos no través de Tucuruí, um <strong>do</strong>s motores<br />
começou a falhar e, em seguida, parou. O piloto “embandeirou”<br />
1 , mas o avião não se agüentava com um só motor.<br />
Começou a descer. Nós aguardávamos, com ansiedade, a<br />
ordem de alijar carga. Finalmente, veio a ordem. Amarreime<br />
com uma cinta de amarração de carga, para não correr<br />
o risco de cair, e fui para a porta. Enquanto isso, o mecânico<br />
e meu companheiro passavam-me a carga a alijar. Alivia<strong>do</strong><br />
de peso, o avião se manteve e foi possível chegar à Base<br />
Aérea de Belém. Como o C-47 não taxia monomotor, o piloto<br />
cortou o motor ainda na pista e aguardamos a chegada<br />
<strong>do</strong> oficial de operações. Esse, não ten<strong>do</strong> conhecimento da<br />
mudança – levar carga no lugar de pessoas –, estranhou ao<br />
olhar dentro <strong>do</strong> avião. Meu colega, perceben<strong>do</strong> a sua dúvida,<br />
pôs a mão no ombro <strong>do</strong> militar e exclamou:<br />
98
– Negão, foi barra. Tivemos que jogar quase to<strong>do</strong> mun<strong>do</strong><br />
para fora <strong>do</strong> avião, para aliviar o peso.<br />
<br />
1 Colocou o passo da hélice para uma posição de mínima resistência ao avanço. É um<br />
procedimento necessário no caso de parada <strong>do</strong> motor.<br />
99
Morden<strong>do</strong> a orelha <strong>do</strong> burro<br />
Certa ocasião houve a necessidade de transportar um<br />
burro no helicóptero.<br />
O trecho a ser voa<strong>do</strong> era de mata fechada, sem possibilidade<br />
de pouso.<br />
Como não havia com o que <strong>do</strong>par o animal, tratou-se de<br />
amarrá-lo bem. Todavia, tanto esforço fez que, já em vôo,<br />
começou a se soltar. O mecânico, por sua vez, não conseguia<br />
acertar as amarras, pois o burro se debatia, não ficava<br />
quieto.<br />
Ven<strong>do</strong> isso, o tenente Oscar, piloto em coman<strong>do</strong>, berrou<br />
para o mecânico:<br />
– Morde a orelha dele! Morde a orelha dele!<br />
E o mecânico não entendia, não mordia.<br />
Perceben<strong>do</strong> que não seria atendi<strong>do</strong>, passou a pilotagem<br />
para o 2P1 , soltou o cinto e os suspensórios, desconectou<br />
o capacete, passou por cima <strong>do</strong> painel central e deu uma<br />
senhora mordida na orelha <strong>do</strong> burro. O muar baixou a cabeça,<br />
esticou as pernas e aquietou, possibilitan<strong>do</strong> ajustar<br />
novamente as cordas.<br />
1 Segun<strong>do</strong> piloto.<br />
<br />
100
Chupa-chupa<br />
Certa vez, apareceu, por vários dias consecutivos, um<br />
Objeto Voa<strong>do</strong>r Não Identifica<strong>do</strong>, em algumas localidades<br />
ribeirinhas, a nordeste de Belém <strong>do</strong> Pará.<br />
A investigação realizada por ordem da Força Aérea não<br />
conseguiu esclarecer as aparições. Havia, também, denúncias<br />
de que várias moçoilas haviam si<strong>do</strong> atacadas por tripulantes<br />
ou passageiros desses objetos voa<strong>do</strong>res, os quais<br />
chupavam as moças no pescoço. Dessa vez, a investigação<br />
obteve bons resulta<strong>do</strong>s. Os exames realiza<strong>do</strong>s no Hospital<br />
de Aeronáutica de Belém confirmaram – as chupadas eram<br />
humanas mesmo.<br />
<br />
101
Afrodisíaco<br />
Eu estava viajan<strong>do</strong>.<br />
Laura foi com um amigo nosso e sua esposa passear no<br />
Ver o Peso 1 . Meu amigo havia se distancia<strong>do</strong> um pouco,<br />
quan<strong>do</strong> Laura e a amiga viram algo estranho pendura<strong>do</strong><br />
em uma das barracas. Curiosas, perguntaram ao vende<strong>do</strong>r<br />
o que era aquilo, e ele não quis dizer.<br />
Pediram, então, ao meu amigo para averiguar. Ele foi e<br />
perguntou:<br />
– O que é isso?<br />
– É o órgão sexual da bota – respondeu o vende<strong>do</strong>r.<br />
– E para que serve?<br />
– Para dar potência.<br />
– E como usa?<br />
– Pode fazer chá, fazer pomada ...<br />
<br />
1 Merca<strong>do</strong> a céu aberto, típico de Belém <strong>do</strong> Pará.<br />
102
Strike<br />
Liderava uma “esquadrilha de T-25” 1 .<br />
Após darmos a partida, taxiamos em direção à pista e,<br />
quan<strong>do</strong> autoriza<strong>do</strong>, tomei posição com a esquadrilha, na<br />
cabeceira da pista, e iniciamos a decolagem.<br />
Já estávamos quase com a velocidade de tirar os aviões<br />
<strong>do</strong> chão, quan<strong>do</strong> avistei algo na pista. Logo a seguir, consegui<br />
identificar: eram urubus.<br />
Não havia como parar. Se abortasse a decolagem, os<br />
aviões poderiam se chocar. E a colisão com os urubus era<br />
iminente.<br />
Falei pelo rádio:<br />
– Urubus na pista. Mantenham.<br />
Foram penas para to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s.<br />
Pousamos em seguida para verificar o estrago.<br />
Não houve danos. Matamos quatro urubus.<br />
Escore: Esquadrilha quatro, Urubus zero.<br />
1 Quatro aviões voan<strong>do</strong> juntos.<br />
<br />
103
Guerra de índios<br />
Estávamos em Surucucu, em uma Operação Radam.<br />
Havíamos acaba<strong>do</strong> de chegar, e vieram nos avisar que<br />
os índios estavam guerrean<strong>do</strong> na pista de baixo (havia duas<br />
tribos).<br />
Decolou uma tripulação com o helicóptero UH-1H e foi<br />
para lá, acabar com a briga. Realmente, lá estavam as duas<br />
tribos, uma de cada la<strong>do</strong> da pista, atiran<strong>do</strong> flechas uns nos<br />
outros. O piloto fez, então, um vôo paira<strong>do</strong> sobre os índios<br />
para dispersá-los. Mas eles gostaram. Tanto é que, no dia<br />
seguinte, à mesma hora, lá estavam eles novamente, esperan<strong>do</strong><br />
o “faze<strong>do</strong>r de vento”.<br />
Detalhe: a briga era motivada pela carência de mulheres.<br />
Como havia poucas, os índios de uma tribo roubavam<br />
as mulheres da outra, em uma sucessão interminável de<br />
seqüestros.<br />
<br />
104
Quem tira a cordinha<br />
Os índios Ianomâmi usam uma cordinha na cintura, com<br />
a qual amarram o pinto. Não sei exatamente qual a vantagem<br />
ou qual a finalidade. Mas sei que eles só desamarram<br />
para urinar.<br />
Para relações sexuais, quem desamarra é a índia.<br />
<br />
105
Nadan<strong>do</strong> pela<strong>do</strong><br />
A maioria <strong>do</strong>s índios andam nus ou seminus.<br />
Numa ocasião em que estava em uma tribo, fui com eles<br />
nadar em um lago próximo à aldeia.<br />
Para ficar igual, resolvi nadar pela<strong>do</strong> também.<br />
Para minha surpresa, os índios apontavam para meus<br />
genitais e riam a valer.<br />
Eu tinha pentelhos, e eles não.<br />
E achavam engraça<strong>do</strong>.<br />
<br />
106
Noivo<br />
Fui noivo várias vezes.<br />
No primeiro noiva<strong>do</strong>, compareceram meus pais. Já no<br />
segun<strong>do</strong>, meu pai negou-se a comparecer.<br />
Da Laura não fiquei noivo. Argumentei que era fora de<br />
moda, mas nunca disse à Laura que havia si<strong>do</strong> noivo.<br />
Passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is anos de casa<strong>do</strong>s, ao chegar em casa,<br />
Laura me acusou:<br />
– Você não me disse que já foi noivo.<br />
Ao que respondi:<br />
– Você não me perguntou!<br />
<br />
107
Pegan<strong>do</strong><br />
Estávamos com um helicóptero em Porto Velho.<br />
Um <strong>do</strong>s tripulantes era loiro, de olhos claros (verdes ou<br />
azuis), o que, na época, era uma raridade na região. Andava<br />
ele pela cidade, quan<strong>do</strong> foi aborda<strong>do</strong> por uma garota,<br />
acompanhada de sua irmã. Conversa vai, conversa vem,<br />
foram os <strong>do</strong>is para a casa da guria e mandaram brasa. Dali<br />
saiu e foi tomar um refrigerante, no centro da cidade. Não<br />
demorou muito e apareceu novamente a irmã da garota<br />
com quem havia fica<strong>do</strong>.<br />
– Oi! Cadê sua irmã? – perguntou por perguntar.<br />
– Está em casa pegan<strong>do</strong>– respondeu.<br />
– Pegan<strong>do</strong> o quê?<br />
– Venha comigo que eu lhe mostro.<br />
E se foram novamente para a casa da garota.<br />
Lá chegan<strong>do</strong>, encontraram a guria, deitada, com as pernas<br />
para cima.<br />
Estava pegan<strong>do</strong> filho!<br />
<br />
108
Crítica<br />
Estávamos operan<strong>do</strong> no Radam, com sede em Cruzeiro<br />
<strong>do</strong> Sul, no Acre.<br />
Como os helicópteros estavam indisponíveis, devi<strong>do</strong><br />
à falta de algumas peças, eu passava o dia planejan<strong>do</strong> a<br />
operação Radam com a utilização <strong>do</strong>s Napaflu 1 da nossa<br />
Marinha de Guerra.<br />
Como a Bacia Amazônica permite a navegação fluvial<br />
por quase toda a Amazônia, minha idéia era operar a partir<br />
<strong>do</strong>s Napaflus com os nossos helicópteros, o que substituiria<br />
a estrutura atual por outra menor, mais ágil e menos<br />
dispendiosa.<br />
Ao concluir um esboço desse planejamento, dirigi-me ao<br />
major que comandava a fração aérea e apresentei-lhe minha<br />
idéia.<br />
Para minha surpresa, ao invés de fazer os comentários<br />
de praxe, aceitan<strong>do</strong> alguns pontos e rejeitan<strong>do</strong> outros, argüiu:<br />
– Façamos um acor<strong>do</strong>, Patto. Você apresenta esse planejamento<br />
a to<strong>do</strong>s os oficiais na Reunião <strong>do</strong> Pôr-<strong>do</strong>-Sol 2 .<br />
Após a apresentação pedirei a to<strong>do</strong>s que apontem os deméritos.<br />
Mas você não deverá retrucar, seja qual for a crítica<br />
apresentada. Depois disso, conversaremos.<br />
E assim foi feito.<br />
Apresentei aquele esboço de projeto e, após terminar, o<br />
major solicitou a to<strong>do</strong>s que apontassem as falhas e que não<br />
poupassem criticas.<br />
Quan<strong>do</strong> terminamos, chamou-me para uma conversa:<br />
– Muito bem, Patto. Agora você reformula seu planejamento<br />
com base nas críticas apresentadas e, quan<strong>do</strong> estiver<br />
pronto, faremos nova apresentação.<br />
Fizemos mais duas ou três apresentações, e as críticas<br />
109
foram diminuin<strong>do</strong> até o ponto em que a maioria concordava<br />
com o projeto, que ficou bastante modifica<strong>do</strong>.<br />
Após a última apresentação, o major fez o seguinte comentário:<br />
– Encerramos a apresentação <strong>do</strong> Projeto Radam com<br />
Apoio de Napaflu. Como puderam notar, esse projeto que,<br />
inicialmente, era inteiramente da autoria <strong>do</strong> tenente Patto,<br />
ficou bastante modifica<strong>do</strong> e, hoje, é um projeto de to<strong>do</strong>s<br />
nós. E não há duvida de que está bem mais completo, praticável<br />
e exeqüível. Se o projeto Radam, na Amazônia, não<br />
estivesse próximo de seu término, seria bom tentarmos<br />
levá-lo adiante. Mas creio que a experiência serviu para demonstrar<br />
a utilidade da crítica – e <strong>do</strong> trabalho em grupo.<br />
– Valeu, major.<br />
<br />
1 Navio Patrulha Fluvial, de nossa Marinha de Guerra. Possui acomodações para pessoal<br />
e espaço para levar material. Possui, também, um heliponto no convés.<br />
2 Reunião após o termino da jornada de trabalho, destinada a comentar e registrar as<br />
missões <strong>do</strong> dia e a preparar as missões <strong>do</strong> dia seguinte.<br />
110
Patanão<br />
Quan<strong>do</strong> acampa<strong>do</strong>s, era comum reunirmo-nos à noite ao<br />
pé <strong>do</strong> fogo, jogan<strong>do</strong> conversa fora, enquanto esperávamos<br />
o sono chegar.<br />
Em uma dessas ocasiões, a conversa descambou para<br />
histórias de caça<strong>do</strong>r e de pesca<strong>do</strong>r, com tu<strong>do</strong> exagera<strong>do</strong>:<br />
cobras imensas, que engoliam um boi sem engasgar; lambaris<br />
de trinta quilos, depois de limpos ...<br />
Lá pelas tantas, decidi<strong>do</strong> a entrar na roda, perguntei:<br />
– Algum de vocês já ouviu falar <strong>do</strong> patanão?<br />
Como ninguém tinha ouvi<strong>do</strong> nada pareci<strong>do</strong>, iniciei a narrativa:<br />
“O patanão pode ser encontra<strong>do</strong> lá pelas bandas <strong>do</strong> Cafundó,<br />
na virada da Serra da Mantiqueira, onde meu pai<br />
possuía uma fazenda.<br />
A última vez que o encontrei foi durante uma caçada, na<br />
qual, infelizmente, eu estava sozinho, não havia quem pudesse<br />
testemunhar. Mas vocês podem acreditar que tu<strong>do</strong><br />
que vou narrar é a mais pura expressão da verdade.<br />
Eu pretendia caçar o que viesse e pudesse. Para isso<br />
levava uma cartucheira, munição e um bornal. Mas tinha<br />
esperança de encontrar patos selvagens, pois o caseiro havia<br />
visto alguns pela região por aqueles dias.<br />
Anda daqui, anda de lá e nada. Passavam as horas e<br />
nada de patos, nada de bichos, nada de nada. Já estava<br />
quase desistin<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> ouvi um barulhinho bem baixinho,<br />
como se viesse bem de longe. Esse barulhinho me era familiar:<br />
era de um animal com que deparara havia muito, muito<br />
tempo. Julgava até que estivesse extinto. Mas estava lá,<br />
com seus quaquinhos. E o quaquejar baixinho prosseguia<br />
ao re<strong>do</strong>r de minha cabeça.<br />
Logo a seguir, avistei-o. Levei a mão para apanhá-lo e,<br />
111
para minha surpresa, pousou nela suavemente. Era um<br />
pato de pouco mais de um centímetro de comprimento.<br />
Um patanão, como era conheci<strong>do</strong> na re<strong>do</strong>ndeza. E era <strong>do</strong>s<br />
grandes. O que eu havia visto, anos atrás, não era maior<br />
que um pernilongo. E aquele tinha uma mancha branca no<br />
peito. Então, examinan<strong>do</strong> bem, constatei que esse também<br />
tinha a mesma mancha branca. Era o mesmo patanão! E<br />
me reconheceu.”<br />
Depois dessa, fomos <strong>do</strong>rmir.<br />
<br />
112
Descen<strong>do</strong> de rapel<br />
Já estava com o helicóptero pairan<strong>do</strong> sobre a copa das<br />
árvores e a equipe de rapel preparava-se para descer e<br />
abrir a clareira necessária para a pesquisa <strong>do</strong> Radam.<br />
O primeiro a descer passou a corda pelo mosquetão, foi<br />
para o esqui, iniciou a descida, mas parou antes de chegar<br />
ao solo. E o artilheiro, que monitorava a descida, continuou<br />
informan<strong>do</strong>:<br />
– Ainda está para<strong>do</strong>, tenente. Está fazen<strong>do</strong> uma porção<br />
de sinais, mas não enten<strong>do</strong> a que quer dizer.<br />
– Ele deu a laçada? – perguntei. (Era previsto que, no<br />
caso de a corda trancar, o rapelista deveria dar uma laçada,<br />
para garantir que se mantivesse preso, e sinalizasse para<br />
que subíssemos. Só então o levaríamos pendura<strong>do</strong> até um<br />
local em que pudéssemos colocá-lo no chão).<br />
E o artilheiro respondeu:<br />
– Não, senhor. Não fez a laçada, não fez sinal para subirmos...<br />
Espere. Reiniciou a descida.<br />
E desceram to<strong>do</strong>s os quatro, sem mais novidades.<br />
Mais tarde, depois de recolhermos a equipe, perguntamos<br />
o que havia ocorri<strong>do</strong>.<br />
Havia uma sucuriju bem debaixo <strong>do</strong> helicóptero. Ficou<br />
aguardan<strong>do</strong> ela se afastar para reiniciar a descida.<br />
<br />
113
BRASÍLIA-DF<br />
Movimentos involuntários<br />
Passei um ano no Rio de Janeiro fazen<strong>do</strong> o último curso da<br />
carreira, no Campo <strong>do</strong>s Afonsos – Curso de Política e Estratégia<br />
Aeroespaciais. Na ocasião, o Parkinson já se manifestara,<br />
e eu não sabia ao certo como estava evoluin<strong>do</strong>. Assim, de três<br />
em três meses, mais ou menos, eu ia ao médico, no Hospital<br />
da Força Aérea <strong>do</strong> Galeão, para um acompanhamento.<br />
Quan<strong>do</strong> regressei de uma dessas visitas, um colega, preocupa<strong>do</strong><br />
com minha saúde, veio falar comigo:<br />
– Então, Patto, como está?<br />
Respondi bem sério:<br />
– Estou bem. O médico receitou-me novos remédios... O<br />
ruim são os efeitos colaterais.<br />
– Quais efeitos colaterais?<br />
– O pior deles são os movimentos involuntários.<br />
– Como assim?<br />
– É como o nome diz. São movimentos que independem de<br />
sua vontade. São involuntários, imprevisíveis e incontroláveis.<br />
– Ah!<br />
E a conversa parou por aí.<br />
Passa<strong>do</strong>s alguns minutos, esse colega se distraiu, deu-me<br />
as costas e passou a conversar com outra pessoa. Aproveitei<br />
a distração e dei-lhe um “telefone” nos ouvi<strong>do</strong>s. Ele virou-se<br />
rápi<strong>do</strong>, para revidar, e eu disse:<br />
– Ah, ah!!! Movimentos involuntários, imprevisíveis e incontroláveis.<br />
<br />
114
Interferência eletromagmética<br />
Almoçava no Rancho <strong>do</strong> Grupo de Apoio de Brasília com<br />
outros coronéis. A conversa girava em torno <strong>do</strong> tema de<br />
sempre: vôo e Força Aérea.<br />
Lá pelas tantas, num daqueles vazios que ocorrem em<br />
qualquer conversa, um desses colegas perguntou-me:<br />
– Patto, como está seu problema com o Parkinson?<br />
De imediato, to<strong>do</strong>s ficaram muito sérios.<br />
– Está sob controle – observei.<br />
– Não há possibilidade de uma cirurgia?<br />
– Há três tipos de cirurgia. A que vem apresentan<strong>do</strong> melhores<br />
resulta<strong>do</strong>s é uma em que se coloca um eletro<strong>do</strong> no<br />
centro <strong>do</strong> cérebro e, com um controle remoto, se aplica, de<br />
vez em quan<strong>do</strong>, uma pequena descarga elétrica que estimula<br />
a “substância negra” a produzir <strong>do</strong>pamina. O problema<br />
são os efeitos colaterais.<br />
– Que efeitos colaterais?<br />
– Como o coman<strong>do</strong> é realiza<strong>do</strong> por controle remoto,<br />
pode ocorrer que um portão de garagem que esteja sen<strong>do</strong><br />
aciona<strong>do</strong> nas re<strong>do</strong>ndezas cause interferência, fazen<strong>do</strong> com<br />
que automaticamente a pessoa levante a perna esquerda<br />
e mije.<br />
<br />
115
Hurricane<br />
Sobrevoávamos as Antilhas de regresso para o Brasil,<br />
e as condições meteorológicas eram razoáveis. Sabíamos,<br />
porém, que estavam piores mais ao Sul. Foi quan<strong>do</strong> o Controle<br />
Miami nos informou que havia um hurricane na rota e<br />
perguntou o que desejávamos fazer. Como nenhum de nós<br />
sabia o que era hurricane, somente respondemos “Roger”<br />
(entendi<strong>do</strong>). O controla<strong>do</strong>r repetiu a mesma mensagem e,<br />
novamente, respondemos “Roger”. Então, o controla<strong>do</strong>r<br />
nos desviou da rota por algumas dezenas de milhas e encerrou<br />
o assunto.<br />
Ao pousarmos, fomos ver quem era esse tal de hurricane.<br />
Era furacão!<br />
<br />
116
Cavalo-de-pau com ministro à bor<strong>do</strong><br />
Pilotei HS durante seis anos. É um jato executivo para<br />
cinco passageiros, utiliza<strong>do</strong>, na FAB, para transporte de<br />
autoridades, normalmente ministros de Esta<strong>do</strong>.<br />
Em uma dessas missões, fui a Congonhas, São Paulo,<br />
transportan<strong>do</strong> um ministro com sua esposa.<br />
Ao chegarmos em Congonhas, chovia muito e tivemos<br />
que aguardar. Éramos os primeiros da “prateleira”. Apesar<br />
de voarmos baixo, onde o consumo de combustível é maior,<br />
não estávamos preocupa<strong>do</strong>s porque havia visibilidade. O<br />
controla<strong>do</strong>r só queria aguardar um pouco o amainar da<br />
chuva. A pista, no entanto, era restrita, em comprimento,<br />
para o HS. Uma vez reduzi<strong>do</strong> o motor para pousar, não era<br />
possível arremeter e, além <strong>do</strong> mais, já era noite, o que sempre<br />
dificulta um pouco. Mas nada além da tensão normal<br />
que antecede um pouso.<br />
Passa<strong>do</strong>s alguns minutos, fomos libera<strong>do</strong>s para pousar.<br />
Entrei na final, realizan<strong>do</strong> uma descida com o auxílio <strong>do</strong>s<br />
instrumentos e, na curta final, reduzi um pouco o motor<br />
para tocar logo no início da cabeceira. Ainda chovia e o<br />
controla<strong>do</strong>r nos alertou para o excesso de água na pista.<br />
– Isso é que é pouso suave! – comentei.<br />
Mas, logo em seguida, quan<strong>do</strong> fui frear, nada! O avião<br />
deslizava, o freio não pegava. Gritei para o 2P:<br />
– O freio não pega!<br />
De imediato, o 2P tentou seu freio e nada. O avião estava<br />
em hidroplanagem. Com uma velocidade de toque<br />
em torno de duzentos e cinqüenta quilômetros por hora, o<br />
avião não desacelerava o suficiente.<br />
Sabíamos que, num da<strong>do</strong> momento, ele sairia da hidroplanagem.<br />
Mas sairia a tempo de pararmos a aeronave?<br />
O final da pista se aproximava rapidamente. Aos poucos,<br />
117
o avião começou, aparentemente, a desviar para a esquerda,<br />
o que aumentava ainda mais os riscos, pois, a partir de<br />
um determina<strong>do</strong> ponto, havia um barranco também desse<br />
la<strong>do</strong>. Foi quan<strong>do</strong>, instintivamente, ou talvez pelo condicionamento<br />
no vôo em aeronaves menores e mais lentas, pisei<br />
no freio esquer<strong>do</strong>. O freio pegou e a aeronave girou<br />
violentamente para a esquerda, dan<strong>do</strong> um cavalo-de-pau.<br />
Com o giro, a asa direita subiu, juntamente com o nariz da<br />
aeronave, a ponto de sumirem as luzes da cidade. Quan<strong>do</strong><br />
terminou o giro, o 2P já havia desliga<strong>do</strong> os motores, a bateria<br />
– tu<strong>do</strong>.<br />
Disse, então, a ele:<br />
– Fale com a torre que eu vou ver como está o pessoal<br />
lá atrás.<br />
E fui falar com o mecânico, com o ministro e sua esposa.<br />
To<strong>do</strong>s estavam bem. Havia somente o susto.<br />
Nesse ínterim, o 2P, ao ligar o rádio, ouviu a Torre autorizar<br />
o pouso de um Boeing. De imediato, ele entrou na<br />
freqüência e man<strong>do</strong>u o Boeing arremeter, pois estávamos<br />
na pista.<br />
Havíamos para<strong>do</strong> a trezentos metros <strong>do</strong> final da pista e<br />
estávamos alinha<strong>do</strong>s no centro dela – o que significava que<br />
havíamos desliza<strong>do</strong> de la<strong>do</strong>.<br />
<br />
118
Mímica<br />
Em uma das viagens <strong>do</strong> Grupo de Transporte Especial<br />
onde eu voava, havia três taifeiros que não falavam nem<br />
entendiam inglês. E a viagem era para os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.<br />
Ao chegarem ao hotel, o comandante da aeronave os<br />
orientou para seguirem um funcionário que os levaria até<br />
o quarto.<br />
Lá chegan<strong>do</strong>, constataram que só havia duas camas.<br />
Um deles comentou:<br />
– Só há duas camas. Como vamos pedir mais uma?<br />
E o mais extroverti<strong>do</strong> respondeu:<br />
– Deixa comigo.<br />
E deitou no chão, cruzou as mãos no peito e começou a<br />
roncar.<br />
E o funcionário saiu em disparada.<br />
Levantan<strong>do</strong>-se, o extroverti<strong>do</strong> comentou:<br />
– Que tal? É a mímica. Linguagem internacional. To<strong>do</strong><br />
mun<strong>do</strong> entende ...<br />
Mas foi interrompi<strong>do</strong> pela entrada <strong>do</strong> mesmo funcionário...<br />
acompanha<strong>do</strong> por outros <strong>do</strong>is trazen<strong>do</strong> uma padiola...<br />
<br />
119
O piano<br />
O piano da vizinha<br />
Bem diz a etiqueta que eleva<strong>do</strong>r não é lugar de conversar.<br />
Havia chama<strong>do</strong> o eleva<strong>do</strong>r para subir ao meu apartamento,<br />
em Brasília, e aguardei a chegada de minha vizinha.<br />
Cumprimentamo-nos, entramos e começamos a subir.<br />
Então ela me perguntou:<br />
– O piano está incomodan<strong>do</strong> muito? (Ela havia compra<strong>do</strong><br />
um piano havia alguns meses).<br />
– Não – respondi. Aliás, a senhora está de parabéns.<br />
Nesses poucos meses, melhorou muito, está tocan<strong>do</strong> muito<br />
melhor...<br />
Ao que ela retrucou:<br />
– Mas eu sou professora de piano há vinte anos!!...<br />
<br />
120
Enólogo<br />
Em Brasília, era moda conversar sobre vinhos, comprar<br />
vinhos, estocar vinhos, beber vinhos.<br />
Decidi “entrar no clima”.<br />
Comprei um livro sobre vinhos e o estudei detalhadamente,<br />
como se fosse para realizar uma prova. Com esses<br />
conhecimentos, discorria sobre o assunto por duas horas<br />
seguidas.<br />
E a noticia se espalhou. Fiquei com fama de ser um grande<br />
conhece<strong>do</strong>r de vinhos, quan<strong>do</strong>, em verdade, eu era um<br />
enólogo de um livro só.<br />
<br />
121
Passean<strong>do</strong> de bonde<br />
Passeávamos, eu e a Laura, pela Áustria, quan<strong>do</strong> resolvemos<br />
andar de bonde. Como eu gosto de mexer nas<br />
máquinas em geral, fui tentar comprar os passes em uma<br />
delas. As instruções, no entanto, estavam em alemão, e<br />
eu não enten<strong>do</strong> nada de alemão. Mesmo assim, coloquei<br />
uma moeda, apertei alguns botões e consegui um passe.<br />
Repeti a seqüência e consegui outro passe. E fomos andar<br />
de bonde. Como não havia lugar para depositar os passes<br />
e ninguém apareceu para pedi-los, ficamos com eles.<br />
Dias após, já na Suíça, na casa de uma prima, contei-lhe<br />
o episódio, e ela pediu para ver os passes.<br />
Ao vê-los, começou a rir.<br />
Havíamos compra<strong>do</strong> e utiliza<strong>do</strong> passes de cachorro.<br />
<br />
122
De férias<br />
De férias na praia<br />
Alugamos uma casa na praia, no litoral de Santa Catarina,<br />
e para lá fomos, com amigos e parentes, para curtir uns dias<br />
de férias.<br />
O relacionamento era ótimo, e o clima descontraí<strong>do</strong>, como<br />
é normal nessas ocasiões.<br />
Foi então que, plagian<strong>do</strong> uma historia antiga, resolvi descontrair<br />
ainda mais.<br />
Fui ao comércio, comprei uma barra de chocolate crocante,<br />
escondi em nosso quarto e aguardei a noite chegar e avançar.<br />
Quan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s estavam <strong>do</strong>rmin<strong>do</strong>, levantei em silêncio, levan<strong>do</strong><br />
a barra de chocolate e fui a um <strong>do</strong>s banheiros da casa.<br />
Desembrulhei o chocolate, amassei bem com as mãos e lambuzei<br />
o vaso, a tampa <strong>do</strong> vaso, as paredes ...<br />
Lavei as mãos e voltei para a cama.<br />
Acordei ce<strong>do</strong>, acordei a Laura e ficamos aguardan<strong>do</strong>.<br />
Logo começou o zumzumzum.<br />
Aguardamos mais um pouco e saímos <strong>do</strong> quarto.<br />
O circo estava arma<strong>do</strong>.<br />
– Venham ver – dizia um.<br />
– É um absur<strong>do</strong> – comentava outro.<br />
– Mas o que houve? – perguntei.<br />
– Veja você mesmo o que fizeram no banheiro.<br />
– Olhe! Está to<strong>do</strong> lambuza<strong>do</strong> de cocô.<br />
– Isso é coisa de homem – dizia uma.<br />
– Alguém entrou aqui – dizia outro.<br />
E eu, fingin<strong>do</strong> surpresa:<br />
– Com os diabos! – e, passan<strong>do</strong> um de<strong>do</strong> e levan<strong>do</strong>-o à<br />
boca – E é merda mesmo!...<br />
Uma amiga nossa quase vomitou.<br />
<br />
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Trote infantil<br />
Em outra ocasião, passeávamos, Laura e eu, na praia de<br />
Porto de Galinhas.<br />
Próximo ao final da praia, havia várias crianças, todas<br />
olhan<strong>do</strong> para dentro de um laguinho.<br />
Ficamos curiosos e fomos para lá.<br />
Ao nos aproximarmos, ouvimos os garotos dizen<strong>do</strong>:<br />
– Sete, sete, sete.<br />
E, ao chegarmos, passaram a dizer:<br />
– Nove, nove, nove.<br />
<br />
124
Furto no ônibus<br />
Uma senhora da terceira idade, conhecida nossa, entrou<br />
em um ônibus lota<strong>do</strong>. Como não havia assento vago e ninguém<br />
lhe oferecera lugar para sentar, permaneceu em pé.<br />
E o ônibus foi enchen<strong>do</strong> mais. Já estava aperta<strong>do</strong>, e as<br />
pessoas se esbarravam. Em um certo momento, um senhor<br />
que estava ao seu la<strong>do</strong> deu-lhe um forte esbarrão. Nesse<br />
instante, olhan<strong>do</strong> para o braço, deu-se conta de que seu<br />
relógio havia sumi<strong>do</strong>. Não teve dúvidas. Apanhou uma escova<br />
que trazia na bolsa, pressionou o cabo contra as costelas<br />
<strong>do</strong> referi<strong>do</strong> senhor e disse-lhe:<br />
– Sem movimentos bruscos, ponha o relógio na minha<br />
bolsa.<br />
E assim foi feito.<br />
– Agora, puxe a cordinha e saia <strong>do</strong> ônibus, sem olhar<br />
para trás.<br />
E novamente foi obedecida.<br />
Ao chegar em casa, ainda nervosa, contou para suas filhas<br />
o ocorri<strong>do</strong>, ao que uma das filhas retrucou:<br />
– Mas, mãe. Você esqueceu o relógio aqui em casa!<br />
<br />
125
Parkinson<br />
O Parkinson, de que sou porta<strong>do</strong>r, costuma trazer uma<br />
depressão associada que me incomodava, e os antidepressivos<br />
que me foram receita<strong>do</strong>s tinham efeitos colaterais<br />
indesejáveis e não resolviam o problema.<br />
Foi, então, que solicitei à minha mulher, que é psicóloga,<br />
que me ensinasse uma forma comportamental para lidar<br />
com a depressão.<br />
O primeiro procedimento que ela me passou foi para<br />
identificar e evitar o que denominei de “Coitadinho de Mim”<br />
– que consiste em uma atitude de autopiedade. Essa atitude<br />
pode ser evitada simplesmente a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong>-se a prática<br />
de se interessar por outras pessoas, tentan<strong>do</strong> ajudá-las.<br />
Outro procedimento é o da “Inofensividade” – que consiste<br />
em não pensar mal de ninguém. Todavia, como isso é<br />
muito difícil, inicie não falan<strong>do</strong> mal de ninguém.<br />
Passei a praticar esses procedimentos em minha convivência<br />
com as pessoas, e obtive excelentes resulta<strong>do</strong>s: não<br />
tenho mais episódios ou postura depressiva e meu relacionamento<br />
com as pessoas melhorou em termos de tolerância,<br />
aceitação e compreensão. Deixei de cultivar a raiva e o<br />
ódio, minha conversa ficou mais agradável, minhas tensões<br />
físicas e emocionais diminuíram, passei a conviver melhor<br />
com a <strong>do</strong>ença e – o mais importante – o Parkinson até<br />
mesmo parece ter regredi<strong>do</strong>. Não apresentei mais nenhum<br />
episódio off, diminuíram os movimentos involuntários, e as<br />
distonias 1 quase desapareceram.<br />
É bem verdade que tenho um excelente médico e que<br />
estou muito bem-medica<strong>do</strong>. Mas até meu médico é de opi-<br />
126
nião de que minha postura e meu mo<strong>do</strong> de viver atuais têm<br />
contribuí<strong>do</strong> significativamente para uma boa qualidade de<br />
vida.<br />
<br />
1 Contração muscular involuntária. No meu caso, ocorria nos pés, nos quadris e no ombro,<br />
dificultan<strong>do</strong> o deslocamento.<br />
127
URUGUAI<br />
Ozuma<br />
Passei <strong>do</strong>is anos no Uruguai, como Adi<strong>do</strong> Aeronáutico<br />
àquele país.<br />
Dentro da programação das Forças Armadas para os<br />
adi<strong>do</strong>s militares estrangeiros, havia, às vezes, viagens pelo<br />
interior <strong>do</strong> Uruguai, algumas delas realizadas de avião.<br />
Em uma dessas ocasiões, estávamos acomoda<strong>do</strong>s dentro<br />
de um Casa (avião de transporte de fabricação espanhola),<br />
enquanto esse taxiava em direção à pista em uso.<br />
Íamos visitar um quartel <strong>do</strong> Exército.<br />
Senta<strong>do</strong> um pouco à minha frente, encontrava-se o coronel<br />
Ozuma, adi<strong>do</strong> naval paraguaio. Parecia preocupa<strong>do</strong>.<br />
E to<strong>do</strong>s sabiam que detestava voar. Tinha lá seus receios.<br />
Levantei-me de meu lugar e fui conversar com ele:<br />
– Ozuma, notei que você está preocupa<strong>do</strong>. Se for em<br />
função <strong>do</strong> vôo, não há motivos para isso. Sabidamente,<br />
esse é um ótimo avião, e a sua estatística de performance<br />
é excelente. Imagine que a incidência de acidentes graves<br />
é de um para cada dez mil horas de vôo.<br />
– Não diga, Patto. Gostei de saber disso.<br />
– É. Mas tem um detalhe. Este avião no qual estamos<br />
está completan<strong>do</strong> agora as dez mil horas de vôo sem nenhum<br />
acidente grave!<br />
<br />
128
Pilotan<strong>do</strong> helicóptero<br />
Atendi ao telefone, na Adidância 1 . Era o comandante da<br />
base aérea em Montevideu.<br />
Após os cumprimentos, disse-me que estavam com um<br />
problema e perguntou-me se eu poderia ir até lá.<br />
Nem mesmo perguntei <strong>do</strong> que se tratava. Avisei que já estava<br />
in<strong>do</strong> e saí. Lá chegan<strong>do</strong>, dirigi-me para a área operacional,<br />
conforme o combina<strong>do</strong>, e qual não foi minha surpresa: lá<br />
estavam o comandante da base, seu assistente com um macacão<br />
de vôo nas mãos, o tenente-coronel que era o oficial<br />
de ligação com os adi<strong>do</strong>s estrangeiros, um helicóptero UH-1H<br />
pronto para a partida, um capitão instrutor e um mecânico de<br />
bor<strong>do</strong>.<br />
– Vista o macacão e vá pilotar – disse-me o comandante.<br />
Ainda surpreso, vesti o macacão e fui voar. O oficial de ligação<br />
foi conosco, como passageiro. Dei a partida e decolei após<br />
autoriza<strong>do</strong> pela Torre. Só então comentei:<br />
– Nada mal para quem está a dezessete anos sem pilotar,<br />
hein?<br />
Ao que o oficial de ligação retrucou:<br />
– Dá para pousar para eu descer?<br />
Pilotei por uma hora e quarenta minutos. Fiz decolagem e<br />
pouso normais, decolagem e pouso corri<strong>do</strong>s, pouso com o sistema<br />
hidráulico desliga<strong>do</strong>, auto-rotação com pouso, área restrita...<br />
Creio que esse vôo inespera<strong>do</strong> tenha ocorri<strong>do</strong> em função<br />
das histórias que eu contava sobre meus vôos na Amazônia...<br />
<br />
1 Como já menciona<strong>do</strong>, fui adi<strong>do</strong> aeronáutico no Uruguai.<br />
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Comentários<br />
Se o leitor quer divertir-se e surpreender-se, está convida<strong>do</strong> a penetrar<br />
no bem-humora<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> das histórias <strong>do</strong> Carlos Patto, que relata<br />
causos pitorescos de sua vida movimentada. Da infância em Tremembé<br />
até a reforma como coronel-avia<strong>do</strong>r, da convivência na selva com índios<br />
ao relacionamento na vida diplomática, dezenas de incidentes são<br />
conta<strong>do</strong>s de forma positiva por este cinqüentão de espírito jovial que<br />
se concentra no que a vida tem de bom.<br />
Glenda Wiedmann Chaves<br />
As histórias <strong>do</strong> Patto retratam exatamente quem ele é: um intuitivoespontâneo-brincalhão<br />
de muito bom caráter <strong>do</strong> qual me orgulho de<br />
ser amiga.<br />
Para você, caro leitor, desejo que reserve uma tarde preguiçosa<br />
para ler esse livro e tenho a certeza de que, como eu, ao final, você<br />
estará de alma leve, reviven<strong>do</strong> as suas próprias histórias.<br />
Conceição de Maria Couto Macha<strong>do</strong><br />
Os pais em geral são nossos heróis da infância, com suas histórias<br />
fantásticas e normalmente inacreditáveis. Mas as <strong>do</strong> meu pai eram as<br />
melhores e ainda por cima verdadeiras. Eu cresci ouvi<strong>do</strong>-o contá-las,<br />
vezes e mais vezes. Várias eu já sabia de cor e outras eu até implementei,<br />
acrescentan<strong>do</strong> minhas próprias <strong>do</strong>ses de aventura e fantasia. E até<br />
hoje, 30 anos depois, ainda me empolgo e peço mais uma vez: “Conta<br />
aquela que você morre no final...”<br />
Cláudio Eduar<strong>do</strong> Germano Patto<br />
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