17.04.2013 Views

O homem de Estado ateniense em Plutarco: o caso dos Alcméonidas

O homem de Estado ateniense em Plutarco: o caso dos Alcméonidas

O homem de Estado ateniense em Plutarco: o caso dos Alcméonidas

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Parte II - Convenções literárias associadas à vida <strong>de</strong> um fundador<br />

Este motivo – o da criança nobre con<strong>de</strong>nada à morte por um rei – constituía<br />

uma ação pouco digna, pelo que a sua execução era <strong>de</strong>legada <strong>em</strong> terceiros. No<br />

<strong>caso</strong> <strong>de</strong> Ciro, a missão infame foi entregue a um nobre da conança <strong>de</strong> Astíages,<br />

Hárpago 17 ; também ele (<strong>em</strong>bora tenha, ocialmente, aceitado a tarefa) recusou<br />

conspurcar as mãos com crime tão hediondo, alegando t<strong>em</strong>er que o rei, um<br />

dia, se viesse a arrepen<strong>de</strong>r. Mas, como não podia contrariar a vonta<strong>de</strong> daquele,<br />

mandou chamar um servo para que, este sim, abandonasse a criança in<strong>de</strong>fesa<br />

à própria sorte 18 .<br />

É curioso notar que, nestas histórias, existe um certo antagonismo entre<br />

os agentes: os que mandam matar faz<strong>em</strong>-no por não olhar<strong>em</strong> a meios para<br />

manter o seu po<strong>de</strong>r; contudo aqueles a qu<strong>em</strong> or<strong>de</strong>nam a execução apiedam-se<br />

das crianças mas t<strong>em</strong><strong>em</strong> a ira <strong>dos</strong> autores morais do abandono, porque são <strong>de</strong><br />

condição inferior e proprieda<strong>de</strong> daqueles. Não obstante, o instinto <strong>de</strong> proteger<br />

uma criança pequena fala mais alto, até porque, além <strong>de</strong> não ter<strong>em</strong> medo <strong>de</strong><br />

per<strong>de</strong>r o po<strong>de</strong>r, os «salvadores» acreditavam que as precauções que tomariam<br />

seriam sucientes para que as crianças jamais foss<strong>em</strong> <strong>de</strong>scobertas; logo não<br />

seriam puni<strong>dos</strong> por não ter<strong>em</strong> cumprido as or<strong>de</strong>ns.<br />

Não admira, pois, que Mitradates 19 , o servo escolhido por Hárpago para,<br />

<strong>em</strong> seu lugar, pôr m à vida <strong>de</strong> Ciro, tenha ouvido o conselho da mulher:<br />

esta acabara <strong>de</strong> dar à luz um nado-morto e via naquela criança a hipótese <strong>de</strong><br />

viver as experiências da maternida<strong>de</strong>. Bastava-lhes, por isso, para salvar o<br />

recém-nascido, colocar as suas ricas vestes reais na criança morta, <strong>de</strong> modo a<br />

que to<strong>dos</strong> acreditass<strong>em</strong> tratar-se do lho <strong>de</strong> Mandane. Estamos perante outros<br />

dois motivos comuns no âmbito <strong>de</strong>ste género <strong>de</strong> narrativas: as roupas (ou sinais,<br />

<strong>em</strong> grego 20 ) que permit<strong>em</strong> o reconhecimento <strong>de</strong> uma criança nobre<br />

e a substituição, por uma criança humil<strong>de</strong>, <strong>de</strong> outra <strong>de</strong> condição social diversa.<br />

17 O nome <strong>de</strong>ste nobre é falante, na medida <strong>em</strong> que <strong>de</strong>riva do verbo grego ‘arrebatar,<br />

raptar’, o que relaciona esta gura com o rapto e o abandono do recém-nascido.<br />

18 Na verda<strong>de</strong>, estas crianças conseguiam sobreviver, apesar da tenra ida<strong>de</strong>, porque estavam<br />

pre<strong>de</strong>stinadas a isso. Assim, ainda que não pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong>, nesta fase, ter um papel ativo na própria<br />

<strong>de</strong>fesa, estavam protegidas por forças superiores, pela própria natureza, como no-lo conrmam<br />

os <strong>caso</strong>s <strong>em</strong> que são alimentadas por animais (vi<strong>de</strong> infra p. 42).<br />

19 Os nomes do boieiro <strong>de</strong> Astíages e da sua companheira são igualmente falantes: Mitradates<br />

está relacionado com o <strong>de</strong>us Mitra, que tutela o Sol e a Natureza; Cino é o correspon<strong>de</strong>nte grego<br />

do medo spaca ‘ca<strong>de</strong>la’. Assim, estas duas personagens receb<strong>em</strong> nomes correspon<strong>de</strong>ntes à função<br />

que têm na história: Mitradates <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penha o papel da Natureza protetora; Cino, o do animal<br />

que aleita o recém-nascido, outro motivo comum a este tipo <strong>de</strong> relatos. Estamos, pois, perante<br />

uma racionalização do mito efetuada por Heródoto, que tinha diculda<strong>de</strong>s <strong>em</strong> aceitar que uma<br />

criança tivesse sido alimentada por uma ca<strong>de</strong>la. Segundo Vandiver (1990: 251), «this supports<br />

the contention that when Herodotus inclu<strong>de</strong>s fabulous material, he does so consciously and<br />

therefore for a purpose». Cf. supra p. 16.<br />

20 Segundo Aristóteles, que na Poética (1454b-1455a) teoriza sobre as cenas <strong>de</strong><br />

reconhecimento (isto é, <strong>em</strong> que se passa da ignorância ao conhecimento), aquelas que se baseiam<br />

<strong>em</strong> sinais são as menos engenhosas e as que revelam menor capacida<strong>de</strong> imaginativa do poeta.<br />

Sobre este assunto, consulte-se Briquel (1983: 67-74).<br />

36

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!