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de um rio ou perto de uma floresta, deixada consigo mesma, a fim de exer- citar opção: preservar-se ou entregar-se sexualmente. A esse respeito, diz Bettelheim:“Tanto no inconsciente quanto no consciente, os números representam as pessoas. Situações familiares e relações. Estamos bem conscientes de que ‘um’ representa a nós mesmos em relação com o mundo, como sustenta a referência popular ao ‘Número Um’.” 18 As fábulas ou as parábolas têm a função de transmitir um ensinamento. Nesse sentido, são didáticas. O final da Versão C reitera o ensinamento: se os conselhos não forem seguidos, a Protagonista pode desaparecer, ou seja, perder sua identidade, deixar de ser um e vir a ser um zero, um nada. Segundo Crestani, a parábola é um gênero que se caracteriza pela brevidade, facilitando sua reprodução oral, e pelo desligamento das categorias de personagem, espaço e tempo: os personagens são tipos genéricos, o espaço é indeterminado e o tempo não é marcado cronologicamente. Tudo isso favorece sua universalidade. “A terrível parábola” se inscreve, portanto, dentro das categorias deste gênero, como uma forma exemplar, apontando para as consequências das desobediência às normas que, nas várias versões, são apresentadas pela cachorrinha. O mal, que parece ser a experiência sexual sem critério, seja pela referência explícita ao Quibungo/xibungo, seja pela menção ao noivo ou ao pretendente, seria anulado pela prudência da cachorrinha, objeto benfazejo e protetor, provável representante da figura materna. Em todas as versões o Quibungo/bicho entra porta a dentro, isto é, ele arromba, penetra, invade, ou simplesmente entra, aproveitando o consentimento dado explicitamente pela Protagonista, que abre a porta para ele. Mesmo a Versão B, em que esta entrada do Oponente não é dita de forma clara, termina com ele instalado dentro da casa. Tudo isso se caracteriza como uma clara referência à sexualidade, que se reafirma na menção ao ato de dormir. Na Versão F, o silêncio da cachorrinha, morta de morte natural, sinaliza para o bicho a ausência de perigo, permitindo-lhe arrombar a porta. Em todas as versões, a cachorrinha argumenta que a Protagonista está dormindo: “– ‘Zabelinha já lavou,/ já deitou,/ já dormiu!...’; ‘Marieta já lavou, Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá’; ‘– Isabelzinha já lavou, já deitou, já rezou. Isabelzinha não vai lá fora mais’; ‘ – Zabelê já 18 BETTELHEIM. A psicanálise dos contos de fadas, p. 184. 88 Escritos sobre quibungos lavou, já deitou, já dormiiiiiu.’; ‘ – Zabelinha já asseou, Zabelinha já deitou, Zabelinha já dormiu’.” Apenas na Versão F, a cachorrinha canta que Maria não está: “– Maria não está aqui, foi à fonte se lavá, espera que ela vem já.” Estar dormindo ou ausente significa estar livre da tentação sexual; estar acordada significa poder abrir a porta e metaforicamente, aceitar o ato sexual. Como o Oponente é um Quibungo/xibungo ou um Lobo, ou suas metamorfoses, o ato sexual pode ser prejudicial e destrutivo para a identidade da Protagonista. Ou, pela mesma razão, isto é, pelo fato de ser apresentado como Quibungo/ xibungo, processa-se uma desqualificação do Oponente, que seria visto como mau, ruim, contrário às práticas sadias voltadas à reprodução, e favorável apenas ao prazer. Todas as versões fazem referência à água, ao ato de se lavar. Se, por um lado, isso pode significar um ritual de purificação, pode também simbolizar o ato sexual, ou a preparação para ele. O trabalho comparativo entre as seis versões permite apontar as semelhanças entre elas e pressupor a existência de uma fonte oral, comum a todas, apesar das diferenças de tempo e de espaço existentes. São regiões diferentes: Cordisburgo, Três Marias, Diamantina, Turmalina pertencem a uma mesma região; Belo Horizonte é a capital, no centro do Estado; e Machado fica no Sul de Minas. Apesar disso, são unidas por um elemento comum, que é a cultura negra, origem do Kibungo-Gerê, metamorfoseado em bicho, monstro e lobo nas cinco últimas versões. A comparação permite ainda indicar a difusão dessa cultura fora de seu local de origem no Brasil, a Bahia, há muitos anos. Supondo-se que Rosa a tenha ouvido quando criança, e que ela tenha sido trazida pelos escravos durante o século XIX, pode-se afirmar que tem de cem anos a cento e cinquenta anos. Além disso, fica evidente que a narrativa, em todas as versões, tem um caráter exemplar, parabólico e alegórico, que lhe permite abordar problemas humanos básicos, de uma forma simples, dando margem a que o leitor ou ouvinte – possivelmente uma criança – tome sua decisão quanto ao bem ou ao mal. Não se cogita, aqui, de avaliações morais a respeito da validade ou não da tese defendida pela parábola, uma vez que o intuito foi apenas fazer a comparação entre as versões. Cabe ao leitor decidir se o melhor é fechar ou abrir a porta para o suposto príncipe encantado. A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 89

de um rio ou perto de uma floresta, deixada consigo mesma, a fim de exer-<br />

citar opção: preservar-se ou entregar-se sexualmente. A esse respeito, diz<br />

Bettelheim:“Tanto no inconsciente quanto no consciente, os números representam<br />

as pessoas. Situações familiares e relações. Estamos bem conscientes<br />

de que ‘um’ representa a nós mesmos em relação com o mundo, como<br />

sustenta a referência popular ao ‘Número Um’.” 18<br />

As fábulas ou as parábolas têm a função de transmitir um ensinamento.<br />

Nesse sentido, são didáticas. O final da Versão C reitera o ensinamento:<br />

se os conselhos não forem seguidos, a Protagonista pode desaparecer, ou<br />

seja, perder sua identidade, deixar de ser um e vir a ser um zero, um nada.<br />

Segundo Crestani, a parábola é um gênero que se caracteriza pela brevidade,<br />

facilitando sua reprodução oral, e pelo desligamento das categorias de<br />

personagem, espaço e tempo: os personagens são tipos genéricos, o espaço<br />

é indeterminado e o tempo não é marcado cronologicamente. Tudo isso favorece<br />

sua universalidade.<br />

“A terrível parábola” se inscreve, portanto, dentro das categorias deste<br />

gênero, como uma forma exemplar, apontando para as consequências das<br />

desobediência às normas que, nas várias versões, são apresentadas pela cachorrinha.<br />

O mal, que parece ser a experiência sexual sem critério, seja pela<br />

referência explícita ao Quibungo/xibungo, seja pela menção ao noivo ou ao<br />

pretendente, seria anulado pela prudência da cachorrinha, objeto benfazejo<br />

e protetor, provável representante da figura materna. Em todas as versões<br />

o Quibungo/bicho entra porta a dentro, isto é, ele arromba, penetra, invade,<br />

ou simplesmente entra, aproveitando o consentimento dado explicitamente<br />

pela Protagonista, que abre a porta para ele. Mesmo a Versão B, em que esta<br />

entrada do Oponente não é dita de forma clara, termina com ele instalado<br />

dentro da casa. Tudo isso se caracteriza como uma clara referência à sexualidade,<br />

que se reafirma na menção ao ato de dormir. Na Versão F, o silêncio<br />

da cachorrinha, morta de morte natural, sinaliza para o bicho a ausência de<br />

perigo, permitindo-lhe arrombar a porta.<br />

Em todas as versões, a cachorrinha argumenta que a Protagonista está<br />

dormindo: “– ‘Zabelinha já lavou,/ já deitou,/ já dormiu!...’; ‘Marieta já lavou,<br />

Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá’; ‘– Isabelzinha<br />

já lavou, já deitou, já rezou. Isabelzinha não vai lá fora mais’; ‘ – Zabelê já<br />

18 BETTELHEIM. A psicanálise dos contos de fadas, p. 184.<br />

88 Escritos sobre quibungos<br />

lavou, já deitou, já dormiiiiiu.’; ‘ – Zabelinha já asseou, Zabelinha já deitou,<br />

Zabelinha já dormiu’.” Apenas na Versão F, a cachorrinha canta que Maria não<br />

está: “– Maria não está aqui, foi à fonte se lavá, espera que ela vem já.” Estar<br />

dormindo ou ausente significa estar livre da tentação sexual; estar acordada<br />

significa poder abrir a porta e metaforicamente, aceitar o ato sexual. Como<br />

o Oponente é um Quibungo/xibungo ou um Lobo, ou suas metamorfoses, o<br />

ato sexual pode ser prejudicial e destrutivo para a identidade da Protagonista.<br />

Ou, pela mesma razão, isto é, pelo fato de ser apresentado como Quibungo/<br />

xibungo, processa-se uma desqualificação do Oponente, que seria visto como<br />

mau, ruim, contrário às práticas sadias voltadas à reprodução, e favorável<br />

apenas ao prazer. Todas as versões fazem referência à água, ao ato de se<br />

lavar. Se, por um lado, isso pode significar um ritual de purificação, pode<br />

também simbolizar o ato sexual, ou a preparação para ele.<br />

O trabalho comparativo entre as seis versões permite apontar as<br />

semelhanças entre elas e pressupor a existência de uma fonte oral, comum<br />

a todas, apesar das diferenças de tempo e de espaço existentes. São regiões<br />

diferentes: Cordisburgo, Três Marias, Diamantina, Turmalina pertencem<br />

a uma mesma região; Belo Horizonte é a capital, no centro do Estado; e<br />

Machado fica no Sul de Minas. Apesar disso, são unidas por um elemento<br />

comum, que é a cultura negra, origem do Kibungo-Gerê, metamorfoseado<br />

em bicho, monstro e lobo nas cinco últimas versões. A comparação permite<br />

ainda indicar a difusão dessa cultura fora de seu local de origem no Brasil, a<br />

Bahia, há muitos anos.<br />

Supondo-se que Rosa a tenha ouvido quando criança, e que ela tenha<br />

sido trazida pelos escravos durante o século XIX, pode-se afirmar que<br />

tem de cem anos a cento e cinquenta anos. Além disso, fica evidente que<br />

a narrativa, em todas as versões, tem um caráter exemplar, parabólico e<br />

alegórico, que lhe permite abordar problemas humanos básicos, de uma<br />

forma simples, dando margem a que o leitor ou ouvinte – possivelmente<br />

uma criança – tome sua decisão quanto ao bem ou ao mal. Não se cogita,<br />

aqui, de avaliações morais a respeito da validade ou não da tese defendida<br />

pela parábola, uma vez que o intuito foi apenas fazer a comparação entre<br />

as versões. Cabe ao leitor decidir se o melhor é fechar ou abrir a porta<br />

para o suposto príncipe encantado.<br />

A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 89

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