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lobo fantástico. Assim, há uma aproximação com a Versão A e uma diferen- ça com as demais versões, em que o Oponente é um bicho ou um monstro que devora a Protagonista. Nesse aspecto, a Versão B aproxima-se da Versão A, porque em ambas não há devoração, mas apenas a sugestão de um clímax que pode vir a assustar a protagonista, em A; ou que pode assustar a platéia, em B. Veja-se a semelhança entre os dois textos: “E o bicho voltou,/ Kibungo-Gerê!.../ e o bicho cantou,/ Kibungo-Gerê!.../ e foi abrindo a porta/ Kibungo-Gerê!.../ e foi subindo a escada,/ Kibungo- Gerê!... Kibungo-Gerê!.../ Kibungo-Gerê!...” (Versão A). Mariêêêta... tô na porta da sua casa, tô chegando na sala... tô na porta do seu quarto, tô perto da sua cama... Foi e deu um sustão nos outro (Versão B). Zabelinha é uma meninazinha ou uma moça casadoira. Ainda que em B sua faixa etária não seja especificada, supõe-se que seja adulta, como nas versões C e D. Em todas as versões (A, B, C, D, F), não se especifica o motivo de o Oponente ir bater à porta da casa da Protagonista. Em E, o motivo é o roubo de ovos que pertenceriam ao Oponente, que vai reclamar o que lhe pertencia: “ – Zabelinha, Zabelinha, cadê meus ovos?”. Na Versão A, a chegada do Oponente se dá ex-abrupto: “E no meio da noite bateram na porta/ e cantou lá fora/ o Kibungo-Gerê.// – ‘Kibungo-Gerê!... Kibungo-Gerê!.../ Cadê Zabelinha, que eu quero comê!...’”. Na Versão B, não há nada de espetacular. Simplesmente, “O lobo foi chamar ela”. Na Versão C, “[...] uma voz misteriosa, precedida de uma batida na porta, à noite, pergunta por sua dona [...].” Também na Versão D não há uma razão para a chegada do monstro: “[...]uma batida na porta e uma voz que dizia: “ – Zabelê, abre a porta que eu quero entrar...”. Na Versão F, há semelhança com a Versão A: “— Maria, abre a porta que eu quero te cumê!”, apesar de ser muito mais direta e muito mais alusiva ao ato sexual. Apesar de ser identificada como tal apenas na Versão C, percebe-se em todas as versões que a cachorrinha é um objeto mágico, destinado à proteção da Protagonista, que não compreende esta função e se desfaz dela. Há dois aspectos a considerar: o primeiro diz respeito à crueldade em relação ao animal, que é morto, queimado e tem suas cinzas espalhadas na água. O segundo aspecto é a resistência do animal que, impedido de se manifestar, continua a cumprir sua missão de defender a Protagonista. Essa crueldade, a crer nas palavras de Bruno Bettelheim, é comum nos 86 Escritos sobre quibungos contos de fadas. As irmãs da Borralheira, por exemplo, são cegadas pelas pombas, ficando cegas para sempre. 16 Apenas na Versão B a cachorrinha não é morta pela dona, mas pelo Lobo. Esse deslocamento é importante, e possivelmente relacionado à situação social vivida pelo enunciador, o menino Vander. Na Versão F, como há duas estórias e a duplicação da protagonista, é a menina má, filha da madrasta, que mata a cachorrinha, para que essa não impeça a entrada do monstro que irá se metamorfosear em príncipe. Segundo Bettelheim17 o animal benfazejo é a representação da mãe, e normalmente é destruído pela madrasta. Nas várias versões (A, C, D, E), é a própria Zabelinha que mata a cachorra. Os possíveis significados seriam a independência, indicando a maturidade da personagem, e a opção pela experiência sexual, claramente indicada nas várias versões. Algo evidente em todos as versões é a solidão da Protagonista. Ela vive só em um sobrado, em uma casa, à beira de um rio, porque seus pais morreram ou porque quis morar sozinha. Ela não tem um passado, não tem família. Apenas na Versão F ela é expulsa de casa, abandonada na mata, acompanhada apenas pela cachorrinha. Esta imagem do abandono, da inveja da madrasta e de sua(s) filha(s) é comum a vários contos de fadas (do Joãozinho e Maria às estórias da Branca de Neve e da Gata Borralheira. Apesar das vicissitudes por que passa, acha que tem um futuro e que este futuro é o casamento, como aparece em três versões. Na Versão B, Marieta está condenada a um trabalho permanente de lavar, passar e dormir, possivelmente refletindo o cotidiano de uma moradora de favela, na periferia de Belo Horizonte. Na Versão A, é apenas uma meninazinha, cuja raiva reiterada não se explica nem explica a violência contra a cachorrinha. Na Versão F, a curiosidade de Maria a leva a derramar um pingo de vela no bicho, que se transforma num príncipe encantado, rico e poderoso, que logo a abraça, a beija e diz: “minha amada”. O final da narrativa, nas seis versões, ainda que mais claramente em três delas, aponta para um destino trágico, em que a Protagonista é comida pelo Oponente, sem que o objeto mágico Adjuvante, despojado de seu poder, possa fazer alguma coisa. Todas as versões apresentam o sujeito, a Protagonista, sozinha e isolada, no alto de um sobrado, na beira 16 BETTELHEIM. A psicanálise dos contos de fadas, p. 293. 17 BETTELHEIM. A psicanálise dos contos de fadas, p. 29. A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 87

lobo fantástico. Assim, há uma aproximação com a Versão A e uma diferen-<br />

ça com as demais versões, em que o Oponente é um bicho ou um monstro<br />

que devora a Protagonista. Nesse aspecto, a Versão B aproxima-se da<br />

Versão A, porque em ambas não há devoração, mas apenas a sugestão<br />

de um clímax que pode vir a assustar a protagonista, em A; ou que pode<br />

assustar a platéia, em B. Veja-se a semelhança entre os dois textos: “E<br />

o bicho voltou,/ Kibungo-Gerê!.../ e o bicho cantou,/ Kibungo-Gerê!.../ e<br />

foi abrindo a porta/ Kibungo-Gerê!.../ e foi subindo a escada,/ Kibungo-<br />

Gerê!... Kibungo-Gerê!.../ Kibungo-Gerê!...” (Versão A). Mariêêêta... tô<br />

na porta da sua casa, tô chegando na sala... tô na porta do seu quarto,<br />

tô perto da sua cama... Foi e deu um sustão nos outro (Versão B).<br />

Zabelinha é uma meninazinha ou uma moça casadoira. Ainda que em<br />

B sua faixa etária não seja especificada, supõe-se que seja adulta, como<br />

nas versões C e D. Em todas as versões (A, B, C, D, F), não se especifica<br />

o motivo de o Oponente ir bater à porta da casa da Protagonista. Em E, o<br />

motivo é o roubo de ovos que pertenceriam ao Oponente, que vai reclamar<br />

o que lhe pertencia: “ – Zabelinha, Zabelinha, cadê meus ovos?”. Na<br />

Versão A, a chegada do Oponente se dá ex-abrupto: “E no meio da noite<br />

bateram na porta/ e cantou lá fora/ o Kibungo-Gerê.// – ‘Kibungo-Gerê!...<br />

Kibungo-Gerê!.../ Cadê Zabelinha, que eu quero comê!...’”. Na Versão B,<br />

não há nada de espetacular. Simplesmente, “O lobo foi chamar ela”. Na<br />

Versão C, “[...] uma voz misteriosa, precedida de uma batida na porta,<br />

à noite, pergunta por sua dona [...].” Também na Versão D não há uma<br />

razão para a chegada do monstro: “[...]uma batida na porta e uma voz<br />

que dizia: “ – Zabelê, abre a porta que eu quero entrar...”. Na Versão F,<br />

há semelhança com a Versão A: “— Maria, abre a porta que eu quero te<br />

cumê!”, apesar de ser muito mais direta e muito mais alusiva ao ato sexual.<br />

Apesar de ser identificada como tal apenas na Versão C, percebe-se<br />

em todas as versões que a cachorrinha é um objeto mágico, destinado à<br />

proteção da Protagonista, que não compreende esta função e se desfaz<br />

dela. Há dois aspectos a considerar: o primeiro diz respeito à crueldade em<br />

relação ao animal, que é morto, queimado e tem suas cinzas espalhadas<br />

na água. O segundo aspecto é a resistência do animal que, impedido de<br />

se manifestar, continua a cumprir sua missão de defender a Protagonista.<br />

Essa crueldade, a crer nas palavras de Bruno Bettelheim, é comum nos<br />

86 Escritos sobre quibungos<br />

contos de fadas. As irmãs da Borralheira, por exemplo, são cegadas pelas<br />

pombas, ficando cegas para sempre. 16 Apenas na Versão B a cachorrinha<br />

não é morta pela dona, mas pelo Lobo. Esse deslocamento é importante,<br />

e possivelmente relacionado à situação social vivida pelo enunciador, o<br />

menino Vander. Na Versão F, como há duas estórias e a duplicação da<br />

protagonista, é a menina má, filha da madrasta, que mata a cachorrinha,<br />

para que essa não impeça a entrada do monstro que irá se metamorfosear<br />

em príncipe. Segundo Bettelheim17 o animal benfazejo é a representação<br />

da mãe, e normalmente é destruído pela madrasta. Nas várias versões (A,<br />

C, D, E), é a própria Zabelinha que mata a cachorra. Os possíveis significados<br />

seriam a independência, indicando a maturidade da personagem, e<br />

a opção pela experiência sexual, claramente indicada nas várias versões.<br />

Algo evidente em todos as versões é a solidão da Protagonista. Ela<br />

vive só em um sobrado, em uma casa, à beira de um rio, porque seus<br />

pais morreram ou porque quis morar sozinha. Ela não tem um passado,<br />

não tem família. Apenas na Versão F ela é expulsa de casa, abandonada<br />

na mata, acompanhada apenas pela cachorrinha. Esta imagem do abandono,<br />

da inveja da madrasta e de sua(s) filha(s) é comum a vários contos<br />

de fadas (do Joãozinho e Maria às estórias da Branca de Neve e da Gata<br />

Borralheira. Apesar das vicissitudes por que passa, acha que tem um<br />

futuro e que este futuro é o casamento, como aparece em três versões.<br />

Na Versão B, Marieta está condenada a um trabalho permanente de lavar,<br />

passar e dormir, possivelmente refletindo o cotidiano de uma moradora de<br />

favela, na periferia de Belo Horizonte. Na Versão A, é apenas uma meninazinha,<br />

cuja raiva reiterada não se explica nem explica a violência contra<br />

a cachorrinha. Na Versão F, a curiosidade de Maria a leva a derramar um<br />

pingo de vela no bicho, que se transforma num príncipe encantado, rico e<br />

poderoso, que logo a abraça, a beija e diz: “minha amada”.<br />

O final da narrativa, nas seis versões, ainda que mais claramente<br />

em três delas, aponta para um destino trágico, em que a Protagonista é<br />

comida pelo Oponente, sem que o objeto mágico Adjuvante, despojado<br />

de seu poder, possa fazer alguma coisa. Todas as versões apresentam o<br />

sujeito, a Protagonista, sozinha e isolada, no alto de um sobrado, na beira<br />

16 BETTELHEIM. A psicanálise dos contos de fadas, p. 293.<br />

17 BETTELHEIM. A psicanálise dos contos de fadas, p. 29.<br />

A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 87

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