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mas era feia, horrorosa, parecia a mãe. Maria era linda, bonita, parecia uma princesa mesmo. Intão ela tinha muita inveja, porque a Maria, bonita, e a filha dela era feia, né? Ela cumeçô a... assim... astuciá uma manera de ficá livre da Maria. Intão um dia ela pegô a Maria, chamô os criados lá da casa, né?, e mandô levá a Maria lá pra floresta, pros da floresta, pros bicho devorare a Maria, os animais da floresta devorare a Maria. Intão, a Maria foi, muito triste, dispidiu do pai dela, e ela pegô — a Maria tinha uma cachorrinha muita bonitinha, né?, a cachorrinha, uma gracinha, a cachorrinha gostava muito dela também — intão ela pegô a cachorrinha e levô co’ ela, e foi pra floresta. Lá no fundo da floresta tinha uma casinha velha, aí ela entrô naquela casinha co’ a cachorrinha e começô a morá ali. Sozinha, coitadinha, mas ela não isquicia de rezá. Intão, um dia ela iscutô batê na porta assim, ó, bateno assim, sete vezes em madeira: tó tó tó tó tó tó tó! — Maria! — Quem é? — Maria, abre a porta, Maria, que eu quero te cumê! Aí a cachorrinha — naquele tempo os animais conversavam —, intão a cachorrinha falava assim, cantava assim: — Mariá não está aqui, foi à fonte se lavá... Isperá, que ela vem já... Aí o bicho ficava com medo da cachorrinha, e aí ela latia tamém: uau uau uau uau uau!, e o bicho corria, né? Isso foi muitas noites, a, muitas noites. Intão, um dia a cachorrinha morreu. Adoeceu e morreu. A Maria ficô sozinha. A Maria falava assim: ‘Meu Deus, o que que eu vô fazê?...’ Quando chegava a hora do bicho batê na porta, a Maria começava a tremê de medo, né?, e rezava, rezava pro anjin’ da guarda dela. Intão, um dia, o bicho abriu a porta, chamô, a cachorrinha não respondeu, o bicho, ele pensô assim: ‘Ah, num tem cachorrinha não. Eu vô entrá aqui, né?’ Aí ele arrombô a porta e entrô. Entrô... entrô como se fosse aquele bichão forte, né?, caminhando, caminhando, e a Maria tá ali chorando, cum medo: — Meu Deus, meu Deus... que medo... Ah, minha mãe!... Me olha, minha mãe! Intão, chegô aquele bichão enorme e deitô na cama da Maria. Deitô na cama da Maria e ficô lá deitado. Aí a Maria quiria vê quem era, né? Ela tinha uma vela na mão, ela riscô o fósforo, né?, e acendeu a vela. E caiu um pingo de vela no bicho. Quando caiu um pingo de vela no bicho, o bicho disincantô: era um príncipe, né? Era um príncipe incantado. Ai abraçô co’ a Maria, beijô...: — Uh!, minha amada... — e tal... Cumeçô a gostá da Maria e casô co’ a Maria. E ele era muito rico, muito poderoso... A Maria ficô rica, tinha muita coisa bonita, né? 82 Escritos sobre quibungos Intão, a madrasta dela teve notícia, teve essa notícia na casa dela. Aí ela falô assim: — Ah... Num acridito!, eu vô lá pra vê mesmo. Chegô lá: — Ah! Maria, mas comé que cê consiguiu? E a Maria, muito tola, coitadinha, sem malícia, contô pra ela. Intão ela falô assim: — Ah... Eu vô trazê a minha Maria pra cá também, pra ‘contecê a mesma coisa com ela. Intão, ela pegô, deu a Maria uma cachorra, uma cachorrinha. Mas a Maria era má dimais: ela batia na cachorra, ela maltratava a cachorra, e começô a morá nessa casinha, né? E a mãe tá lá isperano, né?, notícia dela tê ficado rica como a otra Maria. Intão, quando foi a noite, veio o bicho, né?: — Maria, abre a porta que eu quero te cumê! A cachorrinha falava, né?: — Mariá não está aqui, foi à fonte se lavá, esperá que ela vem já. Aí a Maria falava assim: — Ô cachorrinha travada! Pra que cê tá gritano, cachorra. Eu tô quereno que o bicho entra na minha casa, pra que cê tá gritano? — batia na cachorrinha, batia, e a cachorrinha ficava triste, né?, mas a cachorrinha gostava dela, mesmo assim. Foi assim, foi assim, um dia ela matô a cachorra pra cachorra num respondê mais nada. Intão, veio o bichô, né? O bicho chegô e bateu na porta. Nada não respondeu. Aí o bicho arrombô a porta e intrô na casa, né? Intrô aquele bicho, aquele gigante feio, enorme, braço cabeludo, aquela cabelera feia, aquele monstro... Aí, chegô na bera da cama, e Maria falô assim: ‘Ah... Ele vai disincantá agora. É meu príncipe incantado.’ Aí ela chegô e falô assim: — Pra que essa cabelera? Aí o bicho falô assim: — Pra te ‘baná! (risos) — Pra que esse dentão? — Pra te mordê! — Pra que esse olhão? — Pra te olhá...! — Pra que essa bocona? — Pra te cumê!... — Pra que essa unhona? A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 83
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mas era feia, horrorosa, parecia a mãe. Maria era linda, bonita,<br />
parecia uma princesa mesmo. Intão ela tinha muita inveja, porque<br />
a Maria, bonita, e a filha dela era feia, né? Ela cumeçô a... assim...<br />
astuciá uma manera de ficá livre da Maria. Intão um dia ela pegô<br />
a Maria, chamô os criados lá da casa, né?, e mandô levá a Maria<br />
lá pra floresta, pros da floresta, pros bicho devorare a Maria, os<br />
animais da floresta devorare a Maria.<br />
Intão, a Maria foi, muito triste, dispidiu do pai dela, e ela pegô — a<br />
Maria tinha uma cachorrinha muita bonitinha, né?, a cachorrinha,<br />
uma gracinha, a cachorrinha gostava muito dela também — intão<br />
ela pegô a cachorrinha e levô co’ ela, e foi pra floresta. Lá no fundo<br />
da floresta tinha uma casinha velha, aí ela entrô naquela casinha<br />
co’ a cachorrinha e começô a morá ali. Sozinha, coitadinha, mas<br />
ela não isquicia de rezá. Intão, um dia ela iscutô batê na porta<br />
assim, ó, bateno assim, sete vezes em madeira: tó tó tó tó tó tó tó!<br />
— Maria!<br />
— Quem é?<br />
— Maria, abre a porta, Maria, que eu quero te cumê!<br />
Aí a cachorrinha — naquele tempo os animais conversavam —,<br />
intão a cachorrinha falava assim, cantava assim:<br />
— Mariá não está aqui, foi à fonte se lavá... Isperá, que ela vem já...<br />
Aí o bicho ficava com medo da cachorrinha, e aí ela latia tamém:<br />
uau uau uau uau uau!, e o bicho corria, né? Isso foi muitas noites,<br />
a, muitas noites. Intão, um dia a cachorrinha morreu. Adoeceu e<br />
morreu. A Maria ficô sozinha. A Maria falava assim: ‘Meu Deus, o<br />
que que eu vô fazê?...’ Quando chegava a hora do bicho batê na<br />
porta, a Maria começava a tremê de medo, né?, e rezava, rezava<br />
pro anjin’ da guarda dela. Intão, um dia, o bicho abriu a porta,<br />
chamô, a cachorrinha não respondeu, o bicho, ele pensô assim: ‘Ah,<br />
num tem cachorrinha não. Eu vô entrá aqui, né?’ Aí ele arrombô a<br />
porta e entrô. Entrô... entrô como se fosse aquele bichão forte, né?,<br />
caminhando, caminhando, e a Maria tá ali chorando, cum medo:<br />
— Meu Deus, meu Deus... que medo... Ah, minha mãe!... Me olha,<br />
minha mãe!<br />
Intão, chegô aquele bichão enorme e deitô na cama da Maria. Deitô<br />
na cama da Maria e ficô lá deitado. Aí a Maria quiria vê quem era,<br />
né? Ela tinha uma vela na mão, ela riscô o fósforo, né?, e acendeu<br />
a vela. E caiu um pingo de vela no bicho. Quando caiu um pingo<br />
de vela no bicho, o bicho disincantô: era um príncipe, né? Era um<br />
príncipe incantado. Ai abraçô co’ a Maria, beijô...:<br />
— Uh!, minha amada... — e tal... Cumeçô a gostá da Maria e casô<br />
co’ a Maria. E ele era muito rico, muito poderoso... A Maria ficô<br />
rica, tinha muita coisa bonita, né?<br />
82 Escritos sobre quibungos<br />
Intão, a madrasta dela teve notícia, teve essa notícia na casa dela.<br />
Aí ela falô assim:<br />
— Ah... Num acridito!, eu vô lá pra vê mesmo.<br />
Chegô lá:<br />
— Ah! Maria, mas comé que cê consiguiu?<br />
E a Maria, muito tola, coitadinha, sem malícia, contô pra ela. Intão<br />
ela falô assim:<br />
— Ah... Eu vô trazê a minha Maria pra cá também, pra ‘contecê a<br />
mesma coisa com ela.<br />
Intão, ela pegô, deu a Maria uma cachorra, uma cachorrinha.<br />
Mas a Maria era má dimais: ela batia na cachorra, ela maltratava<br />
a cachorra, e começô a morá nessa casinha, né? E a mãe tá lá<br />
isperano, né?, notícia dela tê ficado rica como a otra Maria. Intão,<br />
quando foi a noite, veio o bicho, né?:<br />
— Maria, abre a porta que eu quero te cumê!<br />
A cachorrinha falava, né?:<br />
— Mariá não está aqui, foi à fonte se lavá, esperá que ela vem já.<br />
Aí a Maria falava assim:<br />
— Ô cachorrinha travada! Pra que cê tá gritano, cachorra. Eu tô<br />
quereno que o bicho entra na minha casa, pra que cê tá gritano?<br />
— batia na cachorrinha, batia, e a cachorrinha ficava triste, né?,<br />
mas a cachorrinha gostava dela, mesmo assim.<br />
Foi assim, foi assim, um dia ela matô a cachorra pra cachorra num<br />
respondê mais nada. Intão, veio o bichô, né? O bicho chegô e bateu<br />
na porta. Nada não respondeu. Aí o bicho arrombô a porta e intrô<br />
na casa, né? Intrô aquele bicho, aquele gigante feio, enorme, braço<br />
cabeludo, aquela cabelera feia, aquele monstro... Aí, chegô na bera<br />
da cama, e Maria falô assim: ‘Ah... Ele vai disincantá agora. É meu<br />
príncipe incantado.’ Aí ela chegô e falô assim:<br />
— Pra que essa cabelera?<br />
Aí o bicho falô assim:<br />
— Pra te ‘baná! (risos)<br />
— Pra que esse dentão?<br />
— Pra te mordê!<br />
— Pra que esse olhão?<br />
— Pra te olhá...!<br />
— Pra que essa bocona?<br />
— Pra te cumê!...<br />
— Pra que essa unhona?<br />
A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 83