Untitled - FALE - UFMG
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eu quero entrar...’ e a cachorrinha, mais que depressa respondeu:<br />
‘ – Zabelê já lavou, já deitou, já dormiiiiiu...’<br />
Zabelê, quando conseguiu abrir a porta, já não tinha ninguém.<br />
Ela ficou muito zangada com a cachorrinha, e pensou que fosse<br />
um moço bonito que queria casar-se com ela. Na noite seguinte,<br />
amarrou a cachorrinha bem longe da casa e foi dormir. Na mesma<br />
hora da noite anterior, bateu-se na porta e [alguém] disse: ‘– Zabelê,<br />
abre a porta que eu quero entrar.’ Lá de longe veio a voz da<br />
cachorrinha: ‘ – Zabelê já lavou, já deitou, já dormiiiiiu’.De novo,<br />
quando Zabelê abriu a porta, já não havia ninguém. Zabelê, mais<br />
zangada ainda, matou a cachorrinha e a deixou no terreiro. À noite,<br />
de novo as batidas na porta e a voz: ‘ – Zabelê, abre a porta que<br />
eu quero entrar...’ A cachorrinha morta respondeu: ‘ – Zabelê já<br />
lavou, já deitou, já dormiiiiu.’<br />
Zabelê, intrigada, fez uma fogueira em cima da cachorrinha, e no<br />
terreiro só ficou um monte de cinzas. À noite, na mesma hora,<br />
toque-toque-toque: ‘ – Zabelê, abre a porta que eu quero entrar.’<br />
E aquele monte de cinzas respondeu: ‘ – Zabelê já lavou, já deitou,<br />
já dormiiiiu.’<br />
Zabelê já não suportava o que ela achava seria perseguição da<br />
cachorrinha: juntou todas aquelas cinzas e jogou no rio e ficou<br />
olhando até que desaparecessem, e foi para casa se preparar para<br />
encontrar com quem ela julgava ser o seu noivo. À noite não tinha<br />
mais nem cinzas da cachorrinha para protegê-la e ela abriu a porta<br />
e foi devorada por aquele monstro.<br />
Outra versão da estória (Versão E) é nossa conhecida, desde a<br />
infância, no Sul de Minas. Esta estória diz o seguinte:<br />
Zabelinha e sua cachorrinha estavam passeando no mato quando<br />
encontraram uns ovos. Zabelinha os levou para casa e fez deles<br />
uma bela omelete. À noite, o bicho, dono dos ovos, foi à sua casa e<br />
cantou: ‘– Zabelinha, Zabelinha, cadê meus ovos?’ E a cachorrinha<br />
cantou em resposta: ‘ – Zabelinha já asseou, Zabelinha já deitou,<br />
Zabelinha já dormiu.’ E o bicho ia embora.<br />
Na noite seguinte, a mesma coisa: ‘ – Zabelinha, Zabelinha, cadê<br />
meus ovos?’ E a cachorrinha respondia: ‘ – Zabelinha já asseou,<br />
Zabelinha já deitou, Zabelinha já dormiu.’ E o bicho ia embora.<br />
Teve uma noite em que Zabelinha ouviu o bicho e ficou achando<br />
que era um príncipe encantado que tinha vindo para se casar com<br />
ela. Por isso, proibiu a cachorrinha de falar alguma coisa. Mas na<br />
noite seguinte, deu-se o mesmo: ‘ – Zabelinha, Zabelinha, cadê<br />
meus ovos?’ E a cachorrinha respondia: ‘ – Zabelinha já asseou,<br />
Zabelinha já deitou, Zabelinha já dormiu.’ E o bicho ia embora.<br />
Uma noite Zabelinha ouviu o canto do lado de fora e pensou que<br />
fosse um príncipe encantado, que não entrava porque a cachorrinha<br />
80 Escritos sobre quibungos<br />
não deixava. Zabelinha então matou a cachorrinha que, apesar<br />
disso, continuou a responder: : ‘ – Zabelinha já asseou, Zabelinha<br />
já deitou, Zabelinha já dormiu.’ Zabelinha queimou a cachorrinha<br />
que, ainda assim, respondeu a mesma coisa. Por fim, Zabelinha<br />
jogou as cinzas da cachorrinha no rio. Nessa noite, quando o bicho<br />
chegou, Zabelinha abriu a porta e... nhoque: o bicho a comeu de<br />
uma vez só.<br />
Câmara Cascudo, em seu Dicionário do folclore brasileiro, nos informa<br />
que “Em quase todos os contos em que aparece o quibungo, há versos<br />
para cantar”. 14 Na Versão E, realmente, tanto a fala do bicho quanto a da<br />
cachorrinha são cantados. Quanto às outras versões, apenas na Versão A<br />
a cachorrinha canta: nas demais, ela “fala” ou “responde”.<br />
A Versão F contém, na verdade, duas narrativas: uma delas é<br />
uma variante das demais versões apresentadas; a outra é um amálgama<br />
de várias estórias da tradição europeia, oral ou escrita, que nos<br />
chegaram por via oral.<br />
A história da Maria 15<br />
Era uma vez um casal, um rei e uma rainha. Eles tinha uma filha<br />
muito bonita, muito delicada, assim, ela era muito educada mesmo.<br />
Toda noite ela rezava. A mãe era muito boa, e toda noite ela<br />
sentava na cama da Maria pr’ insiná a rezá. A Maria rezava pro<br />
anjinho da guarda dela... intão foi levano essa vida assim. Intão<br />
um dia, a mãe dela adoeceu e morreu. Ela ficô só com o pai, né?<br />
Intão, o pai ficô muito triste: ‘Ah... O que que eu vô fazê?... Só<br />
com Maria... Vô... vô casá, né?’ E resolveu casá. Agradô com uma<br />
mulher muito bonita, mas no fundo, no fundo, essa mulher não<br />
era bonita, assim... ela era má, ela era uma bruxa disfarçada de<br />
mulher bonita. Naquele tempo existia bruxa. Intão, ele achô que<br />
tivesse casado co’ uma mulher boa, digna de cuidá da Maria, mas<br />
acontece que no fundo ele casô co’ uma bruxa.<br />
Intão, começaro, né?, a vivê. Mas a Maria todo dia rezava pelo<br />
anjinho da guarda, e lembrava da mãe dela, chorava, chorava...<br />
mas não isquicia de rezá. E ela começô a sê maltratada pela madrasta<br />
dela. Intão, maltratava, dexava a Maria descalça, dexava a<br />
Maria passá fome, num dava banho na Maria... investigava a Maria,<br />
batia nela demais, mandava a Maria durmi com as galinhas... e a<br />
Maria durmiu, de boazinha. Intão, ela tinha uma filha. Ela tinha<br />
uma filha. Essa filha, não, essa filha era bem tratada, era bonita,<br />
14 CASCUDO. Dicionário do folclore brasileiro, p. 653.<br />
15 Versão gentilmente cedida pela Professora Doutora Sônia Queiroz, da Faculdade de Letras da <strong>UFMG</strong>,<br />
com a seguinte observação: Transcrição de Rogério Machado Caetano, a partir de narrativa oral<br />
contada por Maria Terezinha Orsini Almeida, em Turmalina, 1995, gravada por Rômulo Monte Alto.<br />
A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 81