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17.04.2013 Views

narrativa, assim como o domínio do narrador sobre os efeitos de sua narrativa. 9 A versão é a seguinte: A Marieta tava lavando as roupa... as vasilha e quando ficou de noite ela foi dormir. O lobo foi chamar ela. A cachorra falou: Marieta já lavou, Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá. Foi, ela lavou tudo de novo, ela tava lavando as vasilha... as roupa, quando ficou de noite, ela foi e dormiu. O Lobo foi chamar ela. Aí, a cachorra falou: Marieta já lavou, Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá. Foi, o lobo matou ela. Foi Marieta tava lavando as roupa... as vasilha, e quando ficou de noite, o Lobo foi chamar ela. Foi, a cachorra morta falou: Marieta já lavou, Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá. Depois, queimou ela. Aí, a Marieta tava lavando as roupa e as vasilha. Foi, a cachorra queimada foi e falou: Marieta já lavou, Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá. Foi e varreu ela, o pozinho dela, sobrou um pouquinho do resto dela. Foi, Marieta tava lavando as roupas e as “vasia”, quando ficou de noite. O Lobo foi e chamou ela. Aí, o pozinho da cachorra foi e falou: Marieta já lavou, Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá. Mariêêêta... tô na porta da sua casa, tô chegando na sala... tô na porta do seu quarto, tô perto da sua cama... Foi e deu um sustão nos outro. 10 Outra variante, que denominaremos de Versão C, é apresentada, de forma resumida, no livro Contos de fada: Grimm e a literatura oral no Brasil, tendo sido recolhida na região de Diamantina, entrada para o Vale do Jequitinhonha. Diz a autora: Outra história que, em comum com um conto de Grimm tem apenas o final, é ‘A moça e a Cachorrinha’, cujo desfecho se assemelha ao do conhecidíssimo ‘Chapeuzinho Vermelho’. A trama é simples: a moça vai morar sozinha e ganha o animal por companhia. Mas a cachorrinha era encantada e, sempre que uma voz misteriosa, precedida de uma batida na porta, à noite, pergunta por sua dona, o animal responde: ‘– Isabelzinha já lavou, já deitou, já rezou. Isabelzinha não vai lá fora mais’. Pensando tratar-se de algum pretendente, a moça fica indignada. Mata a cachorrinha, queima-a, joga as cinzas num rio e só assim fica livre de sua vigilância, pois, mesmo morto, o animal responde em seu lugar. Finalmente, a moça consegue abrir a porta e depara com um bicho ‘horrível de feio’, com olhos de fogo, que lhe anuncia: ‘– Isabel, vou casar com você’. 9 VAL. Da fala à escrita: uma criança e suas histórias, p. 53-62. 10 Mantém-se a forma como a versão da criança foi registrada pela Profa. Graça Costa Val, com exceção dos grifos. 78 Escritos sobre quibungos Sem demonstrar surpresa ou medo, a moça simplesmente pergunta-lhe o nome. Ele pede que olhe para seus olhos e, como que hipnotizada, a heroína trava com o monstro o batido diálogo: ‘– Pra que estes olhos de fogo? – Pra te enxergar. – Pra que estas unhas tão grandes? – Pra te agarrar. – Pra que esta boca tão grande? Ao que ele, atenuando um pouco o conhecido final, responde: ‘– Pra te dar um sopro. E deu um sopro nela e ela desapareceu.’ 11 É interessante observar que nas versões de Guimarães Rosa e na do menino aparecem Kibungo-Gerê e o lobo. Yeda Pessoa de Castro nos esclarece que o Quibungo e o lobo são uma coisa só. Em suas palavras: A figura central desse ciclo de contos é a do Quibungo, uma espécie de cão selvagem, de lobo fantástico, que tem um enorme buraco nas costas por onde costuma comer crianças mal-ouvidas ou crianças que encontra acordadas durante as suas incursões noturnas pelo Recôncavo da Bahia, o equivalente ao bicho-papão, ao tutu-marambaia dos acalantos infantis do Brasil. 12 O bicho é também conhecido como Titi-Marué e como Bicho Cumujarim ou sua variante, o Bicho Pondé. Sob essas denominações, entende-se um “enorme bicho, uma espécie de macaco preto, peludo[...]”. Cumujarim significa também “[...]o bicho papão, o comilão de crianças, o ser fantástico saído das profundezas da terra para comer crianças.” É possível, ainda que os dicionários Aurélio e Houaiss não o registrem, que xibungo, com o significado de homossexual masculino passivo, seja uma variante de quibungo, como nos assevera Castro, 13 comum na linguagem popular da Bahia, e resultante de um empréstimo. O significado “comer crianças”, provavelmente seja o contrário de “ser comido”, caracterizando a homossexualidade do quibungo ou xibungo. Outra variante da estória (Versão D) foi recolhida no município de Três Marias, próximo de Cordisburgo, transcrita por Milce Vieira, conforme narração ouvida de sua mãe. É a seguinte: Era uma vez uma moça muito bonita, que após a morte de seus pais, vivia só em companhia de uma cachorrinha, à beira de um rio. Como não tinha com quem conversar, ia dormir logo que anoitecia. Certa noite, um pouco antes das doze horas, ouviu-se uma batida na porta e uma voz que dizia: ‘ – Zabelê, abre a porta que 11 SOUZA. Contos de fada: Grimm e a literatura oral no Brasil, p. 83. 12 CASTRO. Contos populares da Bahia: aspectos da obra de João da Silva Campos, p. 19-20. 13 CASTRO. Contos populares da Bahia: aspectos da obra de João da Silva Campos, p. 20. A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 79

narrativa, assim como o domínio do narrador sobre os efeitos de sua<br />

narrativa. 9 A versão é a seguinte:<br />

A Marieta tava lavando as roupa... as vasilha e quando ficou de noite<br />

ela foi dormir. O lobo foi chamar ela. A cachorra falou: Marieta já<br />

lavou, Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa<br />

lá. Foi, ela lavou tudo de novo, ela tava lavando as vasilha... as<br />

roupa, quando ficou de noite, ela foi e dormiu. O Lobo foi chamar<br />

ela. Aí, a cachorra falou: Marieta já lavou, Marieta já passou, se<br />

quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá. Foi, o lobo matou ela.<br />

Foi Marieta tava lavando as roupa... as vasilha, e quando ficou de<br />

noite, o Lobo foi chamar ela. Foi, a cachorra morta falou: Marieta<br />

já lavou, Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê<br />

passa lá. Depois, queimou ela. Aí, a Marieta tava lavando as roupa<br />

e as vasilha. Foi, a cachorra queimada foi e falou: Marieta já lavou,<br />

Marieta já passou, se quiser alguma coisa, amanhã cê passa lá.<br />

Foi e varreu ela, o pozinho dela, sobrou um pouquinho do resto<br />

dela. Foi, Marieta tava lavando as roupas e as “vasia”, quando<br />

ficou de noite. O Lobo foi e chamou ela. Aí, o pozinho da cachorra<br />

foi e falou: Marieta já lavou, Marieta já passou, se quiser alguma<br />

coisa, amanhã cê passa lá. Mariêêêta... tô na porta da sua casa,<br />

tô chegando na sala... tô na porta do seu quarto, tô perto da sua<br />

cama... Foi e deu um sustão nos outro. 10<br />

Outra variante, que denominaremos de Versão C, é apresentada,<br />

de forma resumida, no livro Contos de fada: Grimm e a literatura oral no<br />

Brasil, tendo sido recolhida na região de Diamantina, entrada para o Vale<br />

do Jequitinhonha. Diz a autora:<br />

Outra história que, em comum com um conto de Grimm tem apenas<br />

o final, é ‘A moça e a Cachorrinha’, cujo desfecho se assemelha<br />

ao do conhecidíssimo ‘Chapeuzinho Vermelho’. A trama é simples:<br />

a moça vai morar sozinha e ganha o animal por companhia. Mas<br />

a cachorrinha era encantada e, sempre que uma voz misteriosa,<br />

precedida de uma batida na porta, à noite, pergunta por sua dona,<br />

o animal responde: ‘– Isabelzinha já lavou, já deitou, já rezou.<br />

Isabelzinha não vai lá fora mais’. Pensando tratar-se de algum<br />

pretendente, a moça fica indignada. Mata a cachorrinha, queima-a,<br />

joga as cinzas num rio e só assim fica livre de sua vigilância, pois,<br />

mesmo morto, o animal responde em seu lugar. Finalmente, a moça<br />

consegue abrir a porta e depara com um bicho ‘horrível de feio’,<br />

com olhos de fogo, que lhe anuncia: ‘– Isabel, vou casar com você’.<br />

9 VAL. Da fala à escrita: uma criança e suas histórias, p. 53-62.<br />

10 Mantém-se a forma como a versão da criança foi registrada pela Profa. Graça Costa Val, com exceção<br />

dos grifos.<br />

78 Escritos sobre quibungos<br />

Sem demonstrar surpresa ou medo, a moça simplesmente pergunta-lhe<br />

o nome. Ele pede que olhe para seus olhos e, como que<br />

hipnotizada, a heroína trava com o monstro o batido diálogo: ‘– Pra<br />

que estes olhos de fogo? – Pra te enxergar. – Pra que estas unhas<br />

tão grandes? – Pra te agarrar. – Pra que esta boca tão grande? Ao<br />

que ele, atenuando um pouco o conhecido final, responde: ‘– Pra<br />

te dar um sopro. E deu um sopro nela e ela desapareceu.’ 11<br />

É interessante observar que nas versões de Guimarães Rosa e na<br />

do menino aparecem Kibungo-Gerê e o lobo. Yeda Pessoa de Castro nos<br />

esclarece que o Quibungo e o lobo são uma coisa só. Em suas palavras:<br />

A figura central desse ciclo de contos é a do Quibungo, uma espécie<br />

de cão selvagem, de lobo fantástico, que tem um enorme<br />

buraco nas costas por onde costuma comer crianças mal-ouvidas<br />

ou crianças que encontra acordadas durante as suas incursões<br />

noturnas pelo Recôncavo da Bahia, o equivalente ao bicho-papão,<br />

ao tutu-marambaia dos acalantos infantis do Brasil. 12<br />

O bicho é também conhecido como Titi-Marué e como Bicho<br />

Cumujarim ou sua variante, o Bicho Pondé. Sob essas denominações,<br />

entende-se um “enorme bicho, uma espécie de macaco preto, peludo[...]”.<br />

Cumujarim significa também “[...]o bicho papão, o comilão de crianças,<br />

o ser fantástico saído das profundezas da terra para comer crianças.” É<br />

possível, ainda que os dicionários Aurélio e Houaiss não o registrem, que<br />

xibungo, com o significado de homossexual masculino passivo, seja uma<br />

variante de quibungo, como nos assevera Castro, 13 comum na linguagem<br />

popular da Bahia, e resultante de um empréstimo. O significado “comer<br />

crianças”, provavelmente seja o contrário de “ser comido”, caracterizando<br />

a homossexualidade do quibungo ou xibungo.<br />

Outra variante da estória (Versão D) foi recolhida no município de<br />

Três Marias, próximo de Cordisburgo, transcrita por Milce Vieira, conforme<br />

narração ouvida de sua mãe. É a seguinte:<br />

Era uma vez uma moça muito bonita, que após a morte de seus<br />

pais, vivia só em companhia de uma cachorrinha, à beira de um<br />

rio. Como não tinha com quem conversar, ia dormir logo que anoitecia.<br />

Certa noite, um pouco antes das doze horas, ouviu-se uma<br />

batida na porta e uma voz que dizia: ‘ – Zabelê, abre a porta que<br />

11 SOUZA. Contos de fada: Grimm e a literatura oral no Brasil, p. 83.<br />

12 CASTRO. Contos populares da Bahia: aspectos da obra de João da Silva Campos, p. 19-20.<br />

13 CASTRO. Contos populares da Bahia: aspectos da obra de João da Silva Campos, p. 20.<br />

A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 79

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