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Untitled - FALE - UFMG

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cabelos;/ Minha mãe me penteava,/ Minha madrasta me enterrou/ Pelo<br />

figo da figueira/ Que o passarinho picou...” 6 Destaque-se o sincretismo, da<br />

cultura oral e popular, presente no fato de a ama negra veicular um texto<br />

de origem portuguesa em vez de um conto de origem africana.<br />

É a essa personagem, a ama, que Guimarães Rosa concede a enunciação<br />

do poema: “A Mãe-Preta contava:”. A figura do contador de estórias<br />

é comum na obra rosiana que, em vários textos se aproxima da forma de<br />

contar existente nos contos de fada. Um exemplo claro é o conto “Conversa<br />

de bois”, de Sagarana, do tempo em que os bichos falavam. O velho Camilo<br />

e Joana Xaviel, de “Uma estória de amor”, Fraquilim Meimeio, de “Dão-la-lalão”<br />

são outros exemplos de contadores de estórias, além de Riobaldo, em<br />

Grande sertão: veredas. O tempo verbal do poema, “contava”, retomando<br />

um tipo de intróito comum às estórias orais, vem no pretérito, contando<br />

que Zabelinha e sua cachorrinha moravam num sobrado. Supõe-se que<br />

sozinhas. No meio da noite, sem que se saiba de onde nem porque, surge<br />

o Kibungo-Gerê, que canta: “– ‘Kibungo-Gerê!... Kibungo-Gerê!... Cadê<br />

Zabelinha, que eu quero comê!....’”<br />

A estória, portanto, é elíptica: uma meninazinha, tal como a caracteriza<br />

o poema, vive só, com uma cachorrinha. O bicho, como é chamado no<br />

poema, é o Kibungo-Gerê, que sabe o nome da menina, sem que se saiba<br />

de onde vem esse conhecimento. Zabelinha é uma redução de Izabelinha,<br />

diminutivo que ressalta a juventude da menina. O nome é bem ao gosto<br />

de Guimarães Rosa, cuja alquimia com os nomes próprios é conhecida.<br />

Basta lembrar aqui o Moimeichêgo, o Grivo, o Nominedômine, os cegos<br />

Retrupé e sêo Tomé. Além, é claro, do nome de Diadorim.<br />

Ecoando o sincretismo da Mãe-Preta que conta estórias de origem<br />

portuguesa, no poema de Guimarães Rosa ela conta uma estória de um<br />

bicho que é o Kibungo-Gerê. Segundo Câmara Cascudo, o Quibungo é uma<br />

entidade malévola, de origem africana, de Angola e do Congo, tendo vindo<br />

ao Brasil através dos bantos, ficando restrito à Bahia, não aparecendo nas<br />

estórias infantis dos outros Estados. É um tipo de bicho-papão africano, que<br />

se caracteriza pela devoração de crianças. 7 Apesar da afirmação de Câmara<br />

Cascudo, a estória tem ampla difusão em Minas Gerais, possivelmente<br />

6 CASCUDO. Literatura oral no Brasil, p. 324-326.<br />

7 CASCUDO. Dicionário do folclore brasileiro, p. 652-653.<br />

76 Escritos sobre quibungos<br />

ecoando a cultura negra que a trouxe da Bahia para as terras mineiras.<br />

O volume De quimbungos e meninos é uma coletânea de narrativas, de<br />

várias procedências, incluindo-se aí a obra de Câmara Cascudo, em que<br />

o quimbungo é o protagonista<br />

Figura singular, no poema, é a cachorrinha. Além de falar, para<br />

defender sua dona, encarnando aí um ideal de fidelidade, acaba sendo<br />

sacrificada pela curiosidade desta. Há um crescendo na crueldade da<br />

sua dona, Zabelinha, aumentando ainda mais as elipses da estória: a<br />

cachorrinha é morta, enterrada, queimada e suas cinzas são espalhadas<br />

no rio. Se moravam juntas, por que o sacrifício? E, tendo havido, por que<br />

a cachorrinha ainda defende sua dona? Só quando não há resíduo algum<br />

do animal é que ele deixa de cantar e de proteger. Só quando não há mais<br />

possibilidade de retorno, uma vez que o rio leva as cinzas para longe, é<br />

que a cachorrinha perde sua eficácia protetora. Só depois do seu desaparecimento<br />

é que o bicho, esperado e desejado por Zabelinha, consegue<br />

entrar na casa, cantando seu nome três vezes: “Kibungo-Gerê!... Kibungo-<br />

Gerê!.../ Kibungo-Gerê!...” Há um suspense no final da estória: o que<br />

aconteceu a Zabelinha? Se o Quibungo é um bicho-papão e se Zabelinha<br />

é uma meninazinha, supõe-se que o final não seja dos melhores para ela.<br />

Esta é mais uma das elipses do poema: o destino de Zabelinha.<br />

O poema de Rosa é apenas uma das várias versões da estória. Na<br />

obra de Guimarães Rosa há sempre versões. Não há uma verdade anterior<br />

ao texto: o que importa é a versão que se dá do acontecimento, tomado<br />

como um referente, real ou não. Será interessante registrar outras versões<br />

desta estória da cachorrinha, como é conhecida. Além dos prefácios de<br />

Tutaméia, em que teoriza sobre as relações entre original e cópia, entre<br />

História e estória, Rosa ficcionaliza o tema em vários de seus textos, como<br />

em “Desenrêdo”, “Droenha”, “Os três homens e o boi”, além de tê-lo feito<br />

em Grande sertão: veredas: “O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido?<br />

Agora, acho que nem não.” 8<br />

Uma versão, que chamaremos de Versão B, foi recolhida na área<br />

urbana de Belo Horizonte, narrada por um garoto em fase de alfabetização,<br />

de uma escola pública, pela Professora Graça Costa Val, com<br />

objetivos de verificar os procedimentos de elaboração e reelaboração<br />

8 ROSA. Magma, p. 142.<br />

A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 77

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