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Untitled - FALE - UFMG

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o entrecruzamento de várias versões da mesma estória. Inicialmente,<br />

examinaremos o poema, que chamaremos de Versão A:<br />

A Mãe-Preta contava:/ uma meninazinha/ morava num sobrado/<br />

com uma cachorrinha./ E no meio da noite bateram na porta/ e<br />

cantou lá fora/ o Kibungo-Gerê.//<br />

– “Kibungo-Gerê!... Kibungo-Gerê!.../ Cadê Zabelinha, que eu<br />

quero comê!...”//<br />

Mas a cachorrinha, acordada,/ cantou para o bicho/ Kibungo-Gerê:/<br />

– ‘Zabelinha já lavou,/ já deitou,/ já dormiu!...’//<br />

E pela noite afora/ foi andando embora/ o Kibungo-Gerê.//<br />

A menina, com raiva,/ matou a cachorrinha./ Mas na outra noite,/<br />

quando o bicho voltou,/ a cachorrinha morta cantou no quintal...//<br />

A menina, de raiva, enterrou a cachorrinha,/ a menina, de raiva,<br />

queimou a cachorrinha, a menina, de raiva,jogou no rio a cinza/ da<br />

brava cachorrinha,/ que cantava acordada,/ que cantava morta,/<br />

que cantava enterrada,/ que cantava nas cinzas,/ e que parou de<br />

cantar...//<br />

E a menina acendeu todas as luzes do sobrado,// para esperar o<br />

bicho/ Kibungo-Gerê.//<br />

E o bicho voltou,/ Kibungo-Gerê!.../ e o bicho cantou,/ Kibungo-<br />

Gerê!.../ e foi abrindo a porta/ Kibungo-Gerê!.../ e foi subindo<br />

a escada,/ Kibungo-Gerê!... Kibungo-Gerê!.../ Kibungo-Gerê!...<br />

O primeiro verso do poema, “A Mãe-Preta contava” configura um<br />

modus operandi de Guimarães Rosa, presente em vários textos: um narrador,<br />

responsável pela enunciação lhe dá credibilidade e verossimilhança, ou<br />

seja, lhe dá veridicção. O enunciador – Guimarães Rosa – dá à mãe-negra<br />

a função de narrador de uma estória, encarregando-a de dizê-la para um<br />

narratário – possivelmente uma ou várias crianças – contando-lhes uma<br />

estória “de medo”. O processo de enunciação se faz por camadas que,<br />

ao produzirem o enunciado, se tornam implícitas, num processo de mascaramento.<br />

O processo foi descrito por Umberto Eco, e retomado, mais<br />

recentemente, pela teoria semiótica do discurso, como se vê em José Luiz<br />

Fiorin e Diana Luz Pessoa de Barros, entre outros, e também pela análise<br />

do discurso francesa, desenvolvida por Patrick Charaudeau.<br />

Cabia à Mãe-preta, figura tradicional para muitas famílias brasileiras,<br />

o aleitamento dos filhos dos patrões brancos, a criação dessas crianças<br />

e, em decorrência desse contacto e de sua importância, misto de mãe e<br />

74 Escritos sobre quibungos<br />

preceptora, a criação de um imaginário. Sua função, no poema, é a de<br />

concretizar um gênero, semelhante ao que a fórmula “Era uma vez...”<br />

desempenha. Sinaliza para o leitor que a estória não é História, mas uma<br />

narrativa em que tudo é possível e a mistura entre oralidade e escrita.<br />

Diz Câmara Cascudo: “No Brasil depressa a velha indígena foi substituída<br />

pela velha negra, talvez mais resignada a ver entregue ao seu cuidado a<br />

ninhada branca do colonizador. Fazia deitar as crianças, aproximando-as<br />

do sono com as estórias simples, transformadas pelo seu pavor [...]”. 2<br />

Jorge de Lima, em vários de seus poemas, mostrou essa importância<br />

da mulher negra na formação do imaginário das crianças brasileiras,<br />

através da contação de estórias. Em “Essa negra Fulô”, registra-se: “Ó<br />

Fulô? Ó Fulô?/ Vai botar para dormir/ esses meninos, Fulô!/ ‘Minha mãe me<br />

penteou/ minha madrasta me enterrou/ pelos figos da figueira/ que o Sabiá<br />

beliscou.’” 3Também o poema “Ancila negra”, um lindo canto de saudade e<br />

remorso, demonstra a presença da mulher negra na educação do menino<br />

branco: “Há ainda muita coisa a recalcar,/ Celidônia, ó linda moleca ioruba/<br />

que embalou minha rede, me acompanhou para a escola, me contou histórias<br />

de bichos/ quando eu era pequeno,/ muito pequeno mesmo.” 4 Uma<br />

pesquisa mais funda na literatura brasileira irá identificar, na obra de vários<br />

autores, a referência à Mãe-preta, em tudo semelhante à Irene, de Manuel<br />

Bandeira: “Irene preta, Irene boa, Irene sempre de bom humor.” 5<br />

A figura da Mãe-Preta, evocada no poema, situa-se no ambiente sociocultural<br />

que nos liga, por um lado, à escravidão e à exploração da mulher<br />

no Brasil escravocrata e, por outro, a formas alternativas de cultura, por<br />

intermédio de uma tradição oral. No poema de Jorge de Lima, por exemplo,<br />

a negra Fulô conta uma estória que pertence à cultura portuguesa,<br />

oral e escrita, como o comprovam os figos. Mas o Sabiá (com maiúscula<br />

no original), é brasileiro. Na versão portuguesa, a criança enterrada por<br />

ordem da madrasta espanta os passarinhos. Trata-se, segundo Câmara<br />

Cascudo, de um tipo de conto que se classifica como de “natureza denunciante”.<br />

Neste caso: é o capim, em que se metamorfoseou o cabelo da<br />

menina, que canta e denuncia: “Capineiro de meu pai,/ Não me cortes os<br />

2 CASCUDO. Literatura oral no Brasil, p. 153.<br />

3 LIMA. Poemas negros, p.10.<br />

4 LIMA. Poemas negros, p. 90.<br />

5 BANDEIRA. Manuel Bandeira: poesia completa e prosa, p. 220.<br />

A terrível parábola: as versões de um poema de João Guimarães Rosa 75

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