Untitled - FALE - UFMG
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- Quem mais jura mais mente… Cá para mim, vocemecê tem-nos<br />
escondidos no surrão.<br />
- Ah, ele é isso? Pois então espreita – vociferou o velho, muito zangado.<br />
Beatriz meteu a cabeça e, no mesmo instante, o velho empurrou-a<br />
para dentro do saco dele e fechou-o, pondo-o às costas e seguindo<br />
jornada. Quando as outras pequenas apareceram sem a companheira,<br />
a pobre viúva, por entre lágrimas, lamentou-se:<br />
- Eu não lhe dizia, senhora Miquelina, que ficava sem a minha menina?<br />
- Veja, senhor Ferreira, no que lhe deu a asneira!<br />
O velho, ao passar entretanto a serra, abriu o surrão e disse para<br />
a pequena:<br />
- Daqui em diante, hás-de-me ajudar a ganhar a vida. Eu ando<br />
pelas estradas, feiras e romarias a pedir e, quando disser:<br />
“Canta, surrão,<br />
Senão levas com o bordão…”<br />
Tens de cantar por força. Toma sentido…17 Percebe-se, assim, na tradição oral a instauração de variados processos<br />
de cruzamentos interculturais. As histórias do ciclo do quibungo<br />
revelam elementos que apontam o entrecruzamento das culturas americanas,<br />
africanas e europeias. Arthur Ramos, em O folclore negro no Brasil,<br />
já chamava a atenção para o fato de que os contos “-maruê” e o “O bichohomem”,<br />
registrados por João da Silva Campos, incorporavam elementos<br />
europeus e ameríndios. 18 O próprio quibungo assume uma forma híbrida<br />
– cão selvagem, homem com um saco às costas, lobo fantástico... – que<br />
torna seu próprio corpo uma espécie de figuração do entrecruzamento de<br />
elementos de diferentes culturas.<br />
Tomando os diálogos entre África e Brasil, é possível observar que<br />
as relações interculturais entre esses dois territórios aconteceram de maneira<br />
intensa entre os séculos XVI e XIX. Alberto da Costa e Silva, por<br />
exemplo, no livro Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil<br />
na África, pesquisou essas relações proporcionadas por viajantes que se<br />
deslocaram entre as duas regiões. Essas viagens acabaram por moldar<br />
expressões culturais em terras brasileiras e africanas.<br />
17 Canta surrão. Disponível em: http://www.laretrete.blogspot.com/2006_04_01_archive.html. Acesso<br />
em: 11 set. 2008.<br />
18 RAMOS. Os contos do Quibungo e o ciclo de transformação, p. 175-176.<br />
104 Escritos sobre quibungos<br />
Essas constantes viagens contribuíram para avivar na Bahia a<br />
marcante presença nigeriana e, na Nigéria, a influência brasileira.<br />
O fenômeno não foi apenas nigeriano. Também os brasileiros do<br />
Togo e do Daomé construíram sobrados neoclássicos, e até hoje<br />
comem cocadas, moquecas de peixe com pirão de farinha de mandioca,<br />
cozido, feijão-de-leite, feitos à maneira do Brasil. Em Porto<br />
Novo dança-se o ‘burrinhão’ – a burrinha ou o bumba-meu-boi<br />
brasileiros – com versos em português, conservados pela tradição<br />
oral. E ali se celebra a festa do Senhor do Bonfim, no mesmo dia<br />
que em Salvador. 19<br />
Nessas relações interculturais é possível perceber o fenômeno da<br />
transculturação, conceito cunhado por Fernando Órtiz no âmbito da antropologia<br />
na análise da cultura cubana e, posteriormente, transposto para o<br />
campo da literatura por Ángel Rama.<br />
Entendemos que o vocábulo ‘transculturação’ expressa melhor as<br />
diferentes fases do processo transitivo de uma cultura a outra,<br />
porque este não consiste apenas em adquirir uma cultura, que é o<br />
que a rigor indica o vocábulo anglo-americano ‘aculturação’, mas<br />
implica também necessariamente a perda ou o desligamento de<br />
uma cultura precedente, o que poderia ser chamado de uma parcial<br />
‘desaculturação’, e, além disso, significa a consequente criação<br />
de novos fenômenos culturais que poderiam ser denominados<br />
‘neoculturação’. 20<br />
Observa-se que cruzamentos interculturais e as metamorfoses por<br />
que passaram as narrativas do ciclo do quibungo instauraram a possibilidade<br />
de que a voz africana, desterrada de seu continente, pudesse habitar<br />
terras brasileiras. Essas histórias podem ser tomadas como a própria<br />
representação simbólica da situação dos africanos escravizados e de suas<br />
expressões culturais, trazidos da África e obrigados a ocuparem um novo<br />
território. Nessa nova terra, as histórias se inscreveram, transformam-se a<br />
si próprias e às culturas com as quais entraram em diálogo. Desse modo,<br />
ainda que consideremos críticas ao conceito explorado por Fernando Órtiz<br />
e Ángel Rama, como a crítica de Alberto Moreiras, que aponta o risco de<br />
assimilação de expressões culturais marginalizadas às culturas dominantes<br />
em processos de transculturação, 21 é possível apontar uma experiência<br />
salutar de transculturação com as histórias do ciclo do quibungo.<br />
19 COSTA e SILVA. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África, p. 100.<br />
20 ORTIZ. Contrapuento cubano del tabaco y el azúcar.<br />
21 MOREIRAS. A exaustão da diferença: a política dos estudos culturais latino-americanos.<br />
Uma vez um quibungo 105