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<strong>Poesias</strong><br />
Francisco Martins <strong>Sarmento</strong><br />
Revista <strong>de</strong> Guimarães, n.º 100, 1990, pp. 19-26<br />
Amo-te (*)<br />
Amo-te –sim– com que fogo<br />
Só mo diz o coração.<br />
Não no vou ler nos gemidos<br />
Do soprar da viração;<br />
Nem no fulgir <strong>de</strong> alma estrela<br />
A reinar na escuridão;<br />
Nem no suspirar da linfa<br />
Do rouxinol da canção;<br />
Nem nas vagas, que gemendo<br />
Fina areia beijar vão.<br />
(*) Publicado na revista Miscellanea Poética - Jornal <strong>de</strong> <strong>Poesias</strong>, do Porto, em 1852, com a<br />
seguinte nota assinada por J. Machado Pinheiro:<br />
Recebendo numa carta esta poesia, para a remeter à redacção da Miscellanea, era-me<br />
proibido nela, por o seu autor, assinar-lhe o seu nome, nem mesmo as iniciais <strong>de</strong>le.<br />
Assineia-as.<br />
O amigo que não <strong>de</strong>sejasse a glória ao seu amigo, seria um traidor à sua amiza<strong>de</strong>.<br />
O futuro que promete a poesia =Amo-te= ao seu jovem autor, <strong>de</strong>ixa já ver por entre<br />
tantas belezas poéticas o lugar distinto que em breve ocupará, entre tantos génios que hoje<br />
enobrecem a pátria <strong>de</strong> Camões; – A coroa finalmente que o espera; que, por mais brilhante que<br />
seja, nunca será tanto, como a que lhe <strong>de</strong>seja o seu amigo.<br />
J. M. Pinheiro.<br />
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Estrela, linfa, aves e vagas<br />
Ai! <strong>de</strong> mim! pérfidas são.<br />
Eu fugi da turba insana,<br />
Fui um ermo procurar,<br />
Quis ali em magos sonhos<br />
Ir contigo conversar.<br />
Auras, estrelas, linfas, aves,<br />
Vagas quis antes sondar.<br />
Uma a uma seus encantos,<br />
Seus mistérios perguntar.<br />
=Mansa linfa cristalina,<br />
Porque vás a suspirar,<br />
Se por entre ver<strong>de</strong> relva<br />
Vida aos prados vás levar?<br />
Peregrino exausto à se<strong>de</strong><br />
Vem aqui vida buscar...<br />
Porque vás tu pois, oh! linfa,<br />
Porque vás a suspirar!<br />
=Eu suspiro, eu gemo, eu choro<br />
De sauda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> pesar;<br />
Se dou vida ao prado, ao campo,<br />
Campos, prados vou <strong>de</strong>ixar,<br />
Vou pagar meu feudo aos rios,<br />
Vou-me ao pego lá finar.<br />
Se sou doce entre verduras,<br />
Serei sal do largo ao mar.<br />
Eu suspiro, eu gemo, eu choro<br />
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De sauda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> pesar.=<br />
Ondazinhas correm, fogem<br />
Uma... e outra a suspirar.<br />
Se aqui brincam entre seixos<br />
Vão lá longe em rochas dar.<br />
Se aqui entre lírios gemem,<br />
Voz nas praias vão <strong>de</strong>ixar.<br />
Se doçuras aqui levam,<br />
Que amarguras tem no mar!..<br />
Também po<strong>de</strong> inda teu peito<br />
De suspiros se cansar.<br />
=Ciciante aura <strong>de</strong> incensos<br />
Porque vás tu a gemer?..<br />
Tu aqui em lábios virgens<br />
Vás <strong>de</strong> mil beijos viver...<br />
Acolá em níveas rosas<br />
Vás perfumes lá colher...<br />
É teu trono o espaço infindo...<br />
Mais feliz quem po<strong>de</strong> ser?<br />
Ciciante aura ligeira<br />
Porque vás tu a gemer?=<br />
=Eu suspiro, eu gemo, eu choro,<br />
Gosto mesmo <strong>de</strong> gemer.<br />
Sou feliz; não há quem possa<br />
Mais do que eu livre viver.<br />
Já me enoja esta ventura...<br />
Já sorri... quero gemer.<br />
Também tu po<strong>de</strong>s ainda<br />
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Como a aura varia ser.<br />
=Porque vens, oh! maga estrela,<br />
Entre trevas –só– fulgir?..<br />
Teus segredos, teus mistérios<br />
Bem quisera eu <strong>de</strong>scobrir...<br />
Mas que vale?.. em vão... não posso<br />
Ir arcanos teus ouvir:<br />
Dize, dize, oh! maga estrela,<br />
Porque –só– vens tu fulgir?..=<br />
Mas a estrela ficou muda,<br />
Foi embal<strong>de</strong> o meu pedir.<br />
Também eu te pedi juras,<br />
Teus protestos quis ouvir,<br />
Mas ficou mudo teu lábio,<br />
Foi em bal<strong>de</strong> o meu pedir.<br />
Se tu também tens mistérios,<br />
Não nos posso eu <strong>de</strong>scobrir.<br />
=Porque trinas doces queixas,<br />
Rei das selvas, rei cantor?..<br />
Cantas tu <strong>de</strong> argêntea lua,<br />
Maga luz, almo palor?<br />
Vivo matiz das campinas,<br />
Perfumes da rubra flor!<br />
Ou revivendo a natura,<br />
reviveu o teu amor?..<br />
Dize, dize, porque trinas,<br />
Rei das selvas, rei cantor?<br />
=Canto cantos <strong>de</strong> alegria<br />
São meus cantos ao senhor.<br />
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Perdi filhos, perdi tudo,<br />
Perdi tudo, o meu amor.<br />
Olvi<strong>de</strong>i os seus <strong>de</strong>sprezos,<br />
Torno a ser seu amador.<br />
Canto cantos <strong>de</strong> alegria,<br />
São meus cantos ao Senhor.=<br />
Também tu po<strong>de</strong>s ainda<br />
Ser perjura ao meu amor.<br />
Quebraria então esta harpa<br />
Já sem vozes, sem calor;<br />
Sem calor, morta, sem vozes,<br />
Que não tem vozes a dor.<br />
=Branda vaga feiticeira,<br />
Como vens gentil assi!..<br />
De alva espuma ornada em frente<br />
Serpeando a rocha ali...<br />
E <strong>de</strong>pois buscando a areia,<br />
Afagando-a ao longe... aqui.<br />
Branda vaga, feiticeira,<br />
Como vens gentil assi!..=<br />
=Eu sou mortalha <strong>de</strong> neve,<br />
Vem o céu rever-se em mi.<br />
Nos meus braços vaporosos<br />
Mil humanos já cingi.<br />
Enganei-os –lá ao largo<br />
Engoli-os –e rugi.<br />
O sangue tingiu-me a alvura...<br />
Veio o céu rever-se em mi.<br />
Vim gemer <strong>de</strong> novo à praia<br />
Feiticeira, sempre assi!..<br />
Venho ver com meus gemidos<br />
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Guimarães 4 <strong>de</strong> Agosto.<br />
Se também te iludo a ti...<br />
Ah! tu tremes... dize agora<br />
=Como vens gentil assi!..=<br />
Eu tremi –verda<strong>de</strong>s duras<br />
Me dissera a vaga ali.<br />
Também tu... mas não, não po<strong>de</strong>s<br />
Tão cruel ser tu assi!..<br />
Teus suspiros, teus sorrisos<br />
Brotam <strong>de</strong> alma... são para mi.<br />
Quero ter inda uma crença,<br />
Uma só –será em ti.<br />
Creio-te, amo-te é que diga<br />
Com que fogo o coração.<br />
Não no digam as perfídias<br />
Do soprar da viração.<br />
Nem a linfa cristalina<br />
No seu doce, triste som.<br />
Nem a estrela radiosa<br />
Astro –só– na escuridão.<br />
Nem o cantor solitário<br />
A trinar terna canção.<br />
Nem as vagas refalsadas<br />
Que nas rochas quebrar vão.<br />
Auras, estrelas, aves linfas,<br />
Vagas mais que falsas são.<br />
Amo-te –sim– porque o oiço<br />
Numa voz do coração.<br />
F. M. <strong>de</strong> G.<br />
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Depois <strong>de</strong> Ler Meslier (*)<br />
Maldito sejas tu, padre <strong>de</strong>scrido,<br />
Que às portas do sepulcro inda blasfemas,<br />
E no Deus, que juraste amar com culto,<br />
Cuspiste sem pieda<strong>de</strong>.<br />
Maldito sejas tu, que me levaste<br />
Às bordas dum abismo tenebroso,<br />
E, com frases <strong>de</strong> hipócritas remorsos,<br />
Lá me arrojaste então.<br />
Maldito sejas tu, que me turvaste<br />
As crenças cardiais <strong>de</strong> toda a vida;<br />
Que, apontando o altar, disseste: «nada»<br />
«Nada» apontando a campa.<br />
O bronze meia noite geme ao longe;<br />
O mocho nas ruínas pia, e eu tremo;<br />
Maldito sejas tu, padre <strong>de</strong>scrido,<br />
Que me fazes tremer.<br />
Maldito sejas tu, que me apavoras,<br />
E horrorosas visões dás à mente;<br />
(*) Do livro <strong>Poesias</strong> por F. Martins, Porto, 1855, pág. 66 e 67.<br />
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Maldito sejas tu, que escarneceste<br />
O Deus que eu tanto amava.<br />
Se esta crença morrer, quem, oh! maldito,<br />
Me dará outra igual? Sem esta crença,<br />
Quem, se o egoísmo do homem me repele,<br />
Me afagará na dor?<br />
Errarei eu sobre a terra, abandonado,<br />
Em busca duma cova, on<strong>de</strong> me esconda,<br />
E inda ali, oh! maldito, eu, que fui homem,<br />
Cinza só ficarei!!...<br />
Maldito sejas tu, se foi a ciência,<br />
Quer te abriu os arcanos tenebrosos<br />
De verda<strong>de</strong>s cruéis... cruéis. Se mentes,<br />
Maldito sejas tu.<br />
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