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<strong>7faces</strong><br />

caderno-revista de poesia<br />

Natal – RN, Ano 3. Edição 6. Jul-Dez. 2012<br />

ISSN 2177 0794


Obra da homenageada<br />

Poesia<br />

Andanças (1970)<br />

Uma via de ver as coisas (1973)<br />

Menina seu mundo (1976)<br />

Jardins (esconderijos) (1979)<br />

Talhamar (1982)<br />

Retratos da origem (1988)<br />

Poemas da estrangeira (1996)<br />

Poemas em fuga (1997)<br />

Poesia Reunida (1999)<br />

Hídrias (2005)<br />

O leque (2007)<br />

Appassionata (2008)<br />

Transpoemas (2008)<br />

Ensaio<br />

Tauler e Jung: o caminho para o centro (escrito em parceria com Hubert<br />

Lepargneur) (1997)<br />

Cartografia do imaginário (2003)


<strong>7faces</strong><br />

caderno-revista de poesia<br />

Natal – RN


Sucumbo a essa linguagem<br />

que ultrapassa palavra, silêncio<br />

e é vida.<br />

Dora Ferreira da Silva, Appassionata


sumário<br />

Apresentação<br />

A poesia, uma via de ver as coisas<br />

Por Pedro Fernandes<br />

O lirismo dos afetos e da memória na poesia de Dora Ferreira da Silva<br />

Por Alexandre Bonafim Felizardo<br />

Vias de ver as coisas 1<br />

Ricardo Dantas<br />

Davi Araújo<br />

Tiago Duarte Dias<br />

11<br />

22<br />

40<br />

47<br />

60<br />

Adriano Winter 62<br />

Guerá Fernandes 71<br />

Joice Berth 78<br />

Marco Polo Guimarães 81<br />

Dora Ferreira da Silva: recortes 1 89<br />

Entremeio<br />

O projeto criador em Dora Ferreira da Silva<br />

Por Euryalo Cannabrava<br />

Vias de ver as coisas 2<br />

Ianê Mello<br />

99<br />

117<br />

Pedro Belo Clara 119<br />

Rosane Carneiro 125


Carina Carvalho 129<br />

Paulo Lima 134<br />

Natalia Turini 137<br />

Luís Garcia 148<br />

Estudos e devaneios<br />

Por Jordny<br />

152<br />

Um caderno para Dora 161<br />

Vias de ver as coisas 3<br />

Paula Cajaty<br />

172<br />

Nuno Júdice 174<br />

Amosse Muscavele 183<br />

Carlos Margarido 188<br />

Amélia Luz 192<br />

Paulo Vitor Grossi 196<br />

Renata Bomfim 200<br />

Dora Ferreira da Silva: recortes 2 207<br />

Dora Ferreira da Silva: inéditos 225<br />

O mundo em poesia<br />

Por Inês Ferreira da Silva Bianchi<br />

241


apresentação<br />

A POESIA, UMA VIA DE VER AS COISAS<br />

No começo de tudo, quando a palavra e o mundo estavam fundidos e<br />

as linhas entre um e outro, portanto, não se difundiam, a poesia<br />

estava na matéria do gesto, no pulso do corpo em êxtase, no lugar do<br />

divino, numa dimensão, por isso, dada a poucos. Todo poeta, é por<br />

essa razão primordial, um geômetra do universo, e o seu exercício<br />

escritural nunca poderá está reduzido ao movimento da letra<br />

desdobrada uma após outra no espaço amplo do branco da página.<br />

Se assim ocorre o universo será estrutura opaca, um defeito, uma<br />

mancha dispersa presa no papel. Aliás, a poesia não pode está<br />

reduzida ao desenho da forma informe ou do sentido invertebrado<br />

do texto. Ela deve conspirar e ter pulso para saltar da superfície lisa<br />

da folha e ser matéria pulsante, suspensa, atmosfera capaz de atuar<br />

no desempenho do corpo humano, pela lágrima, pelo riso, pelo gozo.<br />

É nesse instante que ganha, a palavra, seu real lugar no complexo<br />

sistema a que pertence e se ilumina a ponto de refundar o sujeito e o<br />

ser.<br />

O poeta enquanto feitor do poema, instante em que primeiro se<br />

prime em suas fronteiras as possibilidades da poesia, é somente<br />

aquele capaz de conviver no limiar de uma epifania constante que lhe<br />

permita está cercado do tempo primordial; epifania que é um<br />

fenômeno do espírito e diz uma maneira de estar locado e<br />

simultaneamente deslocado. Um pulso de iluminação. Não há, para<br />

isso, leis próprias, fórmulas prontas de se ensinar. Há para isso a<br />

necessidade do poeta ser feito pela vivência da palavra e seu denso<br />

universo fulgurativo.<br />

<strong>7faces</strong> – Pedro Fernandes │ 11


Não é poeta aquele que se derrama pelos cantos, que faz histórias de<br />

histórias pintando o papel de ponta leste a oeste de berros de amor,<br />

de factoides vazios, porque o amor e as vivências são coisas<br />

moventes, sentidas mas impossíveis de sua partilha como cópia fiel<br />

pelo dorso da palavra. Nunca o poema será mímesis se o poema é<br />

sempre criação.<br />

Também não é poeta o que quer ser qualquer coisa que o valha,<br />

inclusive poeta; poeta não é profissão, é modo de estar no mundo. A<br />

busca cega pela forma, fruto de um encantamento pela palavra e uso<br />

inadequado das maneiras do tecnicismo que suprime o próprio pulso<br />

da letra, da voz que lhe antecede, é vã; terá e tem levado muitos por<br />

descaminhos que nada tem do poeta e da gesta do poema. A busca<br />

do poeta que deve se dá pelo dorso da palavra é a de se reaproximar<br />

do estágio genesíaco do universo e os únicos guias nessa empreitada<br />

são ele próprio e sua vontade de experimentar-se pela boca dos seus<br />

antepassados, aqueles que fundaram e ultrapassaram a esfera do<br />

tempo comum e se fizeram eles mesmos tempo.<br />

Por motivos como estes, ninguém melhor que Dora Ferreira da Silva<br />

para ser homenageada neste caderno-revista. Não é que a poeta<br />

tenha uma obra alheia a si e ao mundo empírico, mas ela é o<br />

constante estágio de epifania entre este e o lugar genesíaco. Sua<br />

poesia parte das dissonâncias existenciais, e só este instante já é de<br />

natureza poética, para ultrapassá-las e alcançar um instante único na<br />

extensa rede de vozes dos seus antepassados. Alimenta-se de um<br />

teor estético e renova o diálogo esquecido pelos estetas da forma, o<br />

que não quer dizer que esse trabalho de elaboração esteja ausente<br />

na sua obra; do contrário, talvez até esteja mais que em outros,<br />

porque a poesia de Dora se guia pela experimentação e refiguração<br />

do simbólico que ora se manifesta no poema através da composição<br />

linguística, ora através do corpo estrutural do texto. Sente-se, que<br />

sua poesia é muito estudada e talvez por isso consiga cumprir o seu<br />

papel no universo da linguagem e fora dele: que é o de promover o<br />

reencontro do sujeito com outros lugares e a partir daí seja<br />

encorajado pela descoberta do universo primordial reencontrado por<br />

Dora.<br />

Pedro Fernandes<br />

Poeta e editor da ideia


Arquivo de Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles<br />

Dora Ferreira da Silva (1918-2006)


a homenageada<br />

“Acho que o papel do poeta é parecido com o daqueles que levam a tocha na<br />

Olimpíada. Mesmo que o mundo esteja dessacralizado, temos que acreditar que a vida<br />

é forte, transforma-se e cria novas saídas. Penso na imagem de uma flor brotando nos<br />

interstícios de uma pedra. Acredito nas diversas manifestações do divino, no anima<br />

mundi. Temos que viver este não-ser, esta noite, esta dor como uma passagem. A<br />

fidelidade de cada um a si mesmo é o que se pede. Dar o pouco que se tem, ser fiel à<br />

sua voz interior, é o que se pede aos poetas na tentativa de suprir essa carência dos<br />

deuses.”<br />

Dora Ferreira da Silva. Entrevista a Donizete Galvão publicada na Revista Cult, maio de<br />

1999.<br />

Dora Ferreira da Silve teve, dos 87 anos que viveu, mais de 50 deles dedicados<br />

à poesia. É autora de uma voz única na literatura brasileira e, por esta razão,<br />

está ao lado de grandes nomes, como o do amigo de correspondências Carlos<br />

Drummond de Andrade, poeta que, na sua grandeza é matéria única de<br />

comparação na nossa cena literária. Além de poeta, foi ensaísta e tradutora,<br />

devendo, nós os leitores brasileiros, o contato direto com nomes com Rilke, T.<br />

S. Eliot, D. H. Lawrence, Hölderlin e Jung. Como editora coordenou juntamente<br />

com o seu marido, Vicente Ferreira da Silva, a revista Diálogos. Em sua casa,<br />

coordenou o Centro de Estudos de Poesia Cavalo Azul, nome que lhe servirá<br />

para um periódico editado a partir do grupo. Sua obra foi premiada três vezes<br />

com o Prêmio Jabuti e em 2000 recebeu da Academia Brasileira de Letras o<br />

prêmio pelo conjunto da obra, representado na antologia Poesia Reunida.


© Vicent Van Gogh. Almond Blosson. 1890


Nascimento do poema<br />

É preciso que venha de longe<br />

do vento mais antigo<br />

ou da morte<br />

é preciso que venha impreciso<br />

inesperado como a rosa<br />

ou como o riso<br />

o poema inecessário.<br />

É preciso que ferido de amor<br />

entre pombos<br />

ou nas mansas colinas<br />

que o ódio afaga<br />

ele venha<br />

sob o látego da insônia<br />

morto e preservado.<br />

E então desperta<br />

para o rito da forma<br />

lúcida<br />

tranquila:<br />

senhor do duplo reino<br />

coroado<br />

de sóis e luas.<br />

Dora Ferreira da Silva, Andanças


O vento<br />

Na palma do vento<br />

pouso a fronte. Nele confio.<br />

A quem confiaria senão a ele<br />

este rude labor?<br />

Abandono-me à tormenta<br />

(lumes mastros<br />

gaivotas do mar próximo).<br />

Enreda-me a noite.<br />

Mas dele são os dedos leves<br />

que me fecham os olhos. E é manhã.<br />

Dora Ferreira da Silva, Jardins (Esconderijos)


Capa de Poesia Reunida, de Dora Ferreira da Silva publicado em 1999.<br />

Imagem: Arquivo <strong>7faces</strong>


Órfica<br />

Não me destruas, Poema,<br />

enquanto ergo<br />

a estrutura do teu corpo<br />

e as lápides do mundo morto.<br />

Não me lapidem, pedras,<br />

se entro na tumba do passado<br />

ou na palavra-larva.<br />

Não caias sobre mim, que te ergo<br />

ferindo cordas duras,<br />

pedindo o não-perdido<br />

do que se foi. E tento conformar-te<br />

à forma do buscado.<br />

Não me tentes, Palavra,<br />

além do que serás<br />

num horizonte de Vésperas.


O lirismo dos afetos e da<br />

memória na poesia de<br />

Dora Ferreira da Silva<br />

Por Alexandre Bonafim Felizardo


Dora Ferreira da Silva, em parte considerável de sua obra, rendeu<br />

grande importância às temáticas da finitude da vida, do transcorrer<br />

do tempo, da força pulsante da memória, força essa capaz de<br />

resgatar experiências mortas e de desafiar a inexorabilidade da<br />

morte. Com efeito, pode-se afirmar que a sensibilidade poética de<br />

Dora sempre esteve atenta ao furor do tempo, à efemeridade da<br />

existência humana. Dessa forma, em muitos de seus poemas, o<br />

tempo torna-se fonte de seu lirismo, a matéria poética essencial de<br />

sua escrita.<br />

Em decorrência disso, a memória também assume grande<br />

importância na obra da escritora paulista. Em muitos poemas, a<br />

reminiscência é responsável pelo resgate do que já não mais existe. O<br />

eu lírico dos textos de Dora tem uma sede imensa de passado, um<br />

desejo de resgatar o que se esfacelou na poeira do tempo. Há,<br />

portanto, na obra de Ferreira da Silva, um embate do ser contra o<br />

tempo, do ser contra o próprio nada. Ante o vácuo das ausências,<br />

ante os escombros do vivido, a poeta intenta instaurar a totalidade<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 24


da vida, ou seja, a poesia. Dessa forma, em muitos textos, o lirismo<br />

delineia as forma do não vivido, do inexistente, e fixa, na malha da<br />

escrita, instantes reveladores da existência, instantes de plenitude e<br />

iluminação. Uma aguda consciência do instante delineia essa busca<br />

pelo passado e emoldura o momento, revelando-lhe toda a carga<br />

lírica e a beleza.<br />

Dessa forma, o passado irrompe no presente como uma verdadeira<br />

fulguração, como um rasgo de luz que ilumina, por pouquíssimo<br />

tempo, o presente. O passado torna-se símbolo, linguagem,<br />

revelação. Ele conduz o presente e norteia-o, revelando-lhe<br />

significados e sentidos. O pretérito torna o agora fecundo,<br />

transforma a existência em um reservatório de experiências. Com<br />

efeito, o eu lírico da poesia de Dora adquire uma grande sabedoria,<br />

uma vivência aguda da condição humana. Conforme aponta Arrigucci<br />

Júnior, o esquecimento transforma o vivido em sombra passageira,<br />

em símbolo instantâneo do viver do homem:<br />

O presente pode então ser apreendido na forma<br />

de um momento poético, convertendo-se em<br />

símbolo: síntese de uma totalidade ausente que,<br />

no entanto, se presentifica por um resgate da<br />

memória numa súbita iluminação do espírito,<br />

numa imagem fulgurante e instantânea, que se vai<br />

perder em seguida. O que passa se faz símbolo. E<br />

na breve fulguração dos símbolos, se recobra o<br />

que se esfumava na zona de penumbra da<br />

memória ou jazia de todo adormecido no<br />

esquecimento. Plenitude passageira do que foi ou<br />

está indo e agora vira imagem [...]. Contra o fundo<br />

de sombras da memória, que é também da morte<br />

e do esquecimento, brilham por um instante as<br />

imagens simbólicas. As imagens, passageiras como<br />

as sombras. (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.32)<br />

A memória sempre resgata um instante iluminado, epifania viva do<br />

passado a se incrustar no presente, aprofundando as vivências<br />

existenciais do agora. Entretanto, a acompanhar esse prazer do<br />

agora, ou melhor, do passado presentificado no presente, há sempre<br />

a corrosiva consciência da efemeridade de tudo o que existe.<br />

Conforme aponta Arrigucci Júnior, a “memória épica recupera para a<br />

contemplação lírica o que passou, trazendo de volta à consciência e à<br />

luz do presente um instante dissolvido na corrente do tempo [...]”<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 25


(ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.33). Esse senso de transitoriedade fará<br />

com que Dora passe a perceber o agora com maior afinco. A<br />

percepção do momento presente torna-se aguçada, intensa. Dessa<br />

maneira, o eu lírico de muitos poemas da autora paulista passa a<br />

usufruir o presente, esgotando-lhe as possibilidades de vivência. O<br />

instante é desfrutado com todo o furor, com toda a intensidade, pois<br />

em breve ele se tornará cinza morta, ruína perdida. A velha temática<br />

do carpe diem ressurge nos poemas de Ferreira da Silva, imprimindo<br />

um senso de aventura ao agora. Eis o que novamente pontua<br />

Arrigucci Júnior: “[...] a necessidade de gozar o presente antes que a<br />

vida fuja parece adquirir [...] a dimensão materialista do velho tema<br />

pagão do carpe diem, pois se liga diretamente ao prazer material dos<br />

sentidos, numa espécie de negaceio erótico que torna o instante<br />

presente inadiável.” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.33).<br />

Há um livro de Dora, sobretudo, em que a temática da memória é<br />

essencial, é o próprio cerne da escritura. Referimo-nos à bela obra<br />

intitulada Retratos da origem. Nesse volume, Dora faz uma<br />

escavação não apenas de sua memória pessoal, subjetiva, mas de<br />

toda a sua linhagem familiar, indo ao tempo mais remoto, instante<br />

fecundo e originário de onde irrompeu o primeiro homem, o ser<br />

primevo universal que gerou a humanidade inteira. Esse limiar<br />

originário, intraduzível, é metaforizado por uma porta onde o eu<br />

lírico bate, na busca do enigma da existência: “Arco etrusco/ lanterna<br />

alta/ aldrava/ Bato à porta da origem/ lá/ onde nenhum passo<br />

ressoa/ vindo ao encontro/ lá/ onde nenhuma voz ecoa/ no alegre<br />

dialeto/ que ri” (SILVA, 1999, p. 187). O resgate desse passado<br />

longínquo desvela por sua vez o tempo auroral das origens, instante<br />

forte da cosmogonia, em que tudo é nascimento, esplendor,<br />

regeneração. Esse instante zero do existir de tudo, conforme Mircea<br />

Eliade, é reatualizado pelos mitos, reincerindo tal plenitude das<br />

origens no agora morto e envelhecido. Assim, o tempo mítico, tal<br />

como o tempo dos textos de Retratos da origem, é cíclico, não linear.<br />

Daí a consciência sacra desse momento primevo e a percepção da<br />

degenerescência de nosso mundo atual, capitalizado e conspurcado:<br />

“Sinto no ar o odor de um fogo arcaico/ sacro/ estou com frio/ nesse<br />

mundo pós-atômico de cinzas” (SILVA, 1999, p. 187-188). Tal livro,<br />

portanto, inicia-se com o mergulho, enfim, pelo interior além dessa<br />

porta, numa metáfora pela qual a busca da perenidade encontra uma<br />

simbologia de sensível plasticidade e lirismo: “e entro/ na Origem<br />

solar/ aquém (além)/ do mundo em trevas” (SILVA, 1999, p.188).<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 26


A partir de então, nos poemas que se seguem, Dora irá narrar a saga<br />

dos Bulliarattis, família arcaica de suas origens genéticas, até atingir o<br />

momento de sua infância, em Conchas, e de sua vida madura, em<br />

Itatiaia. No ínterim dessa longa travessia de uma memória iluminada<br />

pela imaginação, a poeta de Retratos da origem lega-nos momentos<br />

de altíssima poesia, em que os antepassados mortos surgem<br />

resgatados pela força nomeadora da palavra lírica, palavra essa capaz<br />

de fazer renascer os que já não mais existem, tornando-os poesia.<br />

Com efeito, cenas da infância do eu lírico (fulgurações biográficas da<br />

própria autora), irrompem da página, em instantes de iluminação, em<br />

metáforas configuradoras do fluir do tempo e da busca da<br />

perenidade:<br />

O rio de Conchas<br />

Sua margem de conchinhas<br />

corre descuidado<br />

Nele flutuou<br />

uma pluma mínima<br />

que a Menina viu<br />

chorando por esse destino incerto<br />

à deriva<br />

com saudades de lá e de cá<br />

Ela corria<br />

seu avô dizia: “Pra que chegar à estação antes do<br />

trem?”<br />

Mas quem<br />

- Luigi Locchi –<br />

não quer voltar à concha<br />

de um princípio qualquer<br />

seu próprio fim?”<br />

(SILVA, 1999, p.215)<br />

A pluma a correr pelo rio serve como correlato objetivo da saudade,<br />

nesse poema tão ao estilo de Eliot, em que imagens díspares são<br />

justapostas num mosaico fluido como a própria memória afetiva.<br />

A pergunta final entrecruza os tempos primordiais do existir,<br />

metaforizados pela concha, e o instante da morte expresso pela<br />

palavra fim. No princípio está o início e vice-versa, na exposição<br />

daquilo que Ivan Junqueira intitulou de pantempo, instante epifânico<br />

em que a poesia desvela a agudeza do existir humano.<br />

Junqueira chama a atenção para a mistura temporal que marca o<br />

início do poema “Four quarterts” de Eliot. De acordo com o poeta<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 27


asileiro, nesse poema de Eliot, o passado, o presente e o futuro<br />

embaralham-se, quebrando a linearidade cronológica da existência.<br />

Tem-se, dessa forma, no poema de Eliot, aquilo que Junqueira (1998,<br />

p.84) chamou de pantempo. O pantempo seria um momento<br />

totalizador, em que se aglutinam, em um único bloco, as sequências<br />

temporais: futuro-presente-passado. Evidentemente, o pantempo<br />

não acontece na realidade objetiva, mas sim na imaginação lírica.<br />

Trata-se de um mito poético capaz de aliviar a angústia ante a<br />

finitude humana. Eis o início do poema de Eliot, na tradução de<br />

Junqueira:<br />

O tempo presente e o tempo passado<br />

Estão ambos talvez presentes no tempo futuro<br />

E o tempo futuro contido no tempo passado.<br />

Se todo tempo é eternamente presente<br />

Todo tempo é irredimível.<br />

(ELIOT, 2000, p.199)<br />

Dora, portanto, em seu livro, cria uma obra circular, em que tempos<br />

díspares se consubstanciam, formando um tempo privilegiado, o<br />

tempo da poesia.<br />

O ciclo de poemas que encerra Retratos da origem, os “Cantares do<br />

Itatiaia”, possui um tom erótico eloquente, em que o passado<br />

amoroso é configurado como um carpe diem, um idílio bucólico<br />

vivido no seio da natureza. Dessa forma, toda a palpitação, todo o<br />

frêmito desse instante regresso irrompe, com grande plasticidade,<br />

pela força pictórica da palavra lírica:<br />

As estradas eram vazias<br />

nasciam súbitos jardins<br />

ao passarmos abraçados<br />

Nos entrançados da mata<br />

ferias ramos e folhas<br />

com espada de prata<br />

para abrir-me caminho<br />

Gritavas<br />

(tua voz ecoava):<br />

- Dai-lhe passagem<br />

é minha Amada e Origem!<br />

Numa clareira pousaste<br />

(eu me lembro)<br />

um cravo<br />

Entrancei estranha melodia<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 28


© Joshua Sam Frank


ao canto das rolas<br />

ao murmúrio dos rios<br />

e o timbre mais cálido<br />

suscitava amoras<br />

Tudo o que foi parece<br />

mais forte<br />

que esta hora [...]<br />

(SILVA, 1999, p. 222-223)<br />

O apelo da memória presentifica o passado, dando uma concretude<br />

viva e plena à experiência pregressa. Dessa forma, nos três versos<br />

finais do excerto citado, o que se perdeu na vacuidade do passado<br />

torna-se mais forte que o agora. O passado configura-se amplo,<br />

agudo, como um fato que se dá no instante já. Conforme José Paulo<br />

Paes:<br />

[...] na parte final do livro Cantares de Itatiaia,<br />

presente e passado se misturam intimamente,<br />

como o dá a perceber a constante alternância do<br />

imperfeito e do perfeito da rememoração com o<br />

presente do indicativo da sensação. Selando essa<br />

unidade, que faz do “foi” um “ainda é”<br />

indistinguível do “é” puro e simples, está o Amor,<br />

no entanto celebrado como ausência do Outro e<br />

incompletude por falta dele [...] (PAES apud SILVA,<br />

1999, p.412)<br />

Retratos da origem, portanto, é o livro em que Dora mais esmiúça<br />

sua memória, numa elaboração poética de fina arquitetura, em que<br />

tempo e espaço flutuam no embaralhamento dos versos, quebrandose,<br />

assim, a linearidade histórica e a imanência concreta dos espaços.<br />

Assim, passado, presente e futuro consubstanciam-se numa mesma<br />

unidade, da mesma forma que os mais diversos espaços pretéritos<br />

são presentificados, como cenários vivos de uma escrita a arder o<br />

passado como um presente perene. Daí a configuração do eu lírico<br />

como uma “mendiga de lembrança”:<br />

Uma flecha trespassa a manhã<br />

de brumas<br />

mendiga da lembrança<br />

(nada se perdeu<br />

de música e vento!)<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 30


Mas o timbre de vozes<br />

agora<br />

soa estranho<br />

ao som de outras manhãs<br />

que tempo e espaço<br />

quiseram separar<br />

de um tecido eterno<br />

(SILVA, 1999, p. 225)<br />

Apesar do tempo e do espaço apartarem as manhãs do “tecido<br />

eterno”, o poema, contraditoriamente ganha a alta tarefa de<br />

justamente fazer o contrário, ou seja, de tecer as manhãs pretéritas<br />

num instante perene. Escrever para Dora, portanto, é um gesto que<br />

rastreia o sagrado, na procura de uma permanência capaz de<br />

resguardar o vivido da voracidade do tempo. O poema, assim, não é<br />

apenas um registro da memória, é, antes, uma escritura que desafia a<br />

contingência e a caducidade da condição humana. A palavra, para<br />

além de sua limitação, ganha corporalidade na página, como um<br />

registro vivo, pleno, a resgatar o instante de sua precariedade.<br />

Com efeito, conforme podemos notar, o tempo é uma das forças<br />

temáticas de Dora e ela faz da condição humana o motivo central de<br />

sua poética. Confirmando, assim, as palavras de Weisskopf, para<br />

Ferreira da Silva, o mistério do tempo revela-se como algo instigante<br />

e, a despeito de sua natureza incompreensível, serve-lhe como fonte<br />

de questionamentos:<br />

O ser humano, supostamente vinculado aos trilhos do tempo, questiona e<br />

interroga sem cessar. A dor e a alegria são as companheiras que fermentam<br />

suas expectativas, suas descobertas e ilusões. A necessidade de conhecer,<br />

no entanto, de penetrar o âmago do mistério, é maior e mais forte do que<br />

todas as vicissitudes que nos acompanham. Vivemos no tempo e não<br />

sabemos o que ele é. As especulações vêm de muito longe, de antigamente,<br />

no tempo de sempre ser. Da Antigüidade Clássica à Idade Média, do<br />

alvorecer do pensamento científico aos paradoxos inconciliáveis da ciência<br />

dos nossos dias, o tempo permanece hierático, como o maior de todos os<br />

mistérios, maior que os mistérios do amor e da morte, porque o mistério do<br />

tempo é da mesma estirpe do mistério de Deus. (WEISSKOPF in HOISEL,<br />

1998, p.56)<br />

Todo saber, sistemático ou não, apenas roça a superfície desse<br />

grande mistério que é o tempo. Por isso todo conhecimento sobre o<br />

tempo, acumulado pela humanidade desde a era clássica, nunca se<br />

torna ultrapassado. O saber sobre o tempo é um saber autocentrado,<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 31


que se multiplica, nunca havendo um desvendamento total da<br />

natureza da temporalidade. O que o filósofo pré-socrático Heráclito<br />

de Éfeso afirmou sobre o tempo persiste, ainda hoje, como uma<br />

verdade. Da mesma forma, a concepção existencialista do tempo<br />

encontra guarida em nossa era e não ultrapassa nada do que foi<br />

afirmado sobre o tempo anteriormente. Eis o que afirma Weisskopf:<br />

O mistério do tempo é tão profundo e sério, que<br />

nem mesmo aquilo que já foi pensado antes sobre<br />

ele pode ser refutado ou substituído por idéias<br />

novas que tornem obsoletas as mais antigas: tudo<br />

o que já se disse sobre o tempo continua válido –<br />

ou não tem validade alguma. Suspeita-se que o<br />

estudo do tempo seja como um novelo sem<br />

pontas, uma meada sem começo nem fim: podese<br />

iniciar sua abordagem por qualquer ponto e o<br />

final, se houver, talvez seja o mesmo lugar por<br />

onde começamos. Os pássaros voam no ar e não o<br />

vêem, os peixes vivem na água e não a percebem,<br />

o espírito do homem está inserido no tempo, mas<br />

tem sido incapaz de compreendê-lo. (WEISSKOPF<br />

in HOISEL, 1998, p.56-57)<br />

Dessa forma, a preocupação com o tempo é arquetípica. Ela pertence<br />

à mesma natureza das indagações sobre o mistério do amor, do ódio<br />

e da morte. É um tema metafísico que está no cerne da vida, mas que<br />

ao mesmo tempo mantém o homem à margem de sua verdade.<br />

Dora, assim, aguçando sua perplexidade, a surpresa sempre viva<br />

diante dos fenômenos da existência, legará à preocupação existencial<br />

sobre a efemeridade da vida parte considerável de sua escrita, num<br />

permanente questionamento sobre a condição do homem, num<br />

arrebatado jogo corpóreo com o próprio mistério do tempo.<br />

Há um poema, sobretudo, dentre vários, em que a questão do<br />

mistério do tempo é esboçada com ênfase. Trata-se do terceiro<br />

poema de um ciclo intitulado “Ribeirão das Conchas, minha cidade”.<br />

Nesse texto, o tempo é desvelado no seu avassalador mistério, em<br />

sua alteridade intransponível. Ele é de certa forma espacializado,<br />

ganhando uma dimensão concreta. Dessa forma, pela memória<br />

arrebatada de um regresso à sua cidade, o eu lírico se percebe além<br />

do próprio tempo, no cerne do incognoscível:<br />

Desci a ladeira da rua principal<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 32


olhos semicerrados. Sol do meio-dia<br />

despejava luz e sombra nas calçadas.<br />

Não sei para onde eu ia, acho que te procurava<br />

por toda a parte e não te via.<br />

Conchas não é passado<br />

presente futuro.<br />

Conchas é todo mistério:<br />

ruas claras cemitério.<br />

Conchas é amor reencontrado<br />

mudada a fisionomia<br />

de outra tarde outro dia<br />

outra noite com estrelas.<br />

Não sei o que foi então<br />

aquela taquicardia –<br />

meu coração galopava<br />

em alguma direção.<br />

(Houve um tremor de terra<br />

em escala bem modesta).<br />

Era Conchas refletida<br />

num pequeno coração?<br />

E nós duas abraçadas<br />

chegamos ao fim da ladeira<br />

uma sentindo na outra<br />

o tremor da mesma vida.<br />

(SILVA, 1999, p. 288)<br />

A memória da voz lírica, perante a cidade do passado, plasma um<br />

tempo sem tempo, instante vivo da memória, em que o mistério se<br />

insinua como uma verdade plena. Essa constatação do tempo<br />

entranhado no espaço, da memória viva a vertê-lo como uma<br />

aparição mágica, exerce sobre o eu lírico um sentimento sísmico, de<br />

violenta comoção. Tal epifania nasce da perplexidade de se<br />

reconhecer o passado ainda vivo, palpitando na carnadura das ruas<br />

da cidade natal.<br />

Para Dora, portanto, perceber o transcurso temporal é intrigante, é<br />

uma fonte viva de perplexidade e encantamento.<br />

Com efeito, invisível, o tempo marcha suas horas sobre os corpos<br />

humanos, transformando faces límpidas em rostos repletos de sulcos<br />

e tristezas. Silencioso, ele invade os objetos, danificando,<br />

pulverizando o que existe. O tempo parece estar sempre ausente da<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 33


vida humana, como se fosse um companheiro que, por sua constante<br />

presença, torna-se imperceptível; um companheiro invisível que, no<br />

entanto, repentinamente, grita a todos os ouvidos a sua existência. A<br />

ampulheta é a representação cabal do tempo. Como os grãos da<br />

areia, o tempo transcorre plácido e calmo. Entretanto, cada grão é<br />

um pedaço da vida que se despede.<br />

Atenta a tal realidade, Dora faz dessa vivência um manancial de<br />

inspirações, um instigante tema sempre aceso no centro de suas<br />

preocupações. Dessa forma, podemos chamar a autora de Poemas<br />

da estrangeira de poeta da memória e do tempo, pois para Dora a<br />

existência humana em toda sua amplidão é a fonte de sua escrita.<br />

Por sua vez, também os filósofos indagam sobre a capacidade do<br />

homem de perceber o tempo, questionam se os seres humanos<br />

seriam dotados de algum órgão especial, capaz de detectar a<br />

presença temporal. Nesse aspecto, o filósofo Robert Hooke, em<br />

pleno século XVII, já pontuava suas indagações sobre a proeza<br />

humana que é perceber o tempo:<br />

Eu gostaria de saber qual o sentido que nos dá<br />

informação sobre o Tempo; pois todas as<br />

informações que recebemos dos sentidos são<br />

momentâneas, mantêm-se apenas durante as<br />

impressões causadas pelo objeto. Portanto, falta<br />

ainda um sentido para apreender o Tempo; nós<br />

temos uma Noção, mas nenhum de nossos<br />

sentidos, nem todos juntos, nos dão a idéia do<br />

Tempo, porém nós o concebemos como uma<br />

Quantidade... Considerando isso, temos a<br />

Necessidade de imaginar algum outro Órgão para<br />

apreender a Impressão feita do Tempo. E isso,<br />

creio que não passa do que geralmente<br />

chamamos de Memória; e imagino que essa<br />

Memória seja um Órgão como o ouvido, o Olho ou<br />

o Nariz, e que tenha sua Situação em algum ponto<br />

próximo ao Lugar onde os nervos de outros<br />

Sentidos coincidem e se encontram. (HOOKE apud<br />

WHITROW, 2005, p.35-36)<br />

Hooke, portanto, coloca a memória em situação de prestígio: é ela<br />

que capta o tempo, é ela que nos faz perceber o transcurso das<br />

horas. A memória é, portanto, a aptidão essencialmente humana que<br />

nos faz sentir a duração temporal. Sem memória, nós não teríamos a<br />

consciência do tempo e nem da morte. Hooke coloca a memória<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 34


como um atributo mais importante que a percepção do futuro. O<br />

futuro só pode ser apreendido pela imaginação ou por previsões, pois<br />

ele é, sobretudo, o desconhecido, o imponderável. Já o passado<br />

registrado pela memória é o tempo adentrado, encravado no cerne<br />

do humano, é o tempo íntimo das recordações, tempo<br />

demasiadamente humano. A memória dá ao homem a noção de<br />

profundidade que o tempo possui.<br />

Dora simplesmente explora tal questão, numa entrega arrebatada a<br />

reminiscências vivas, plenas de um sentido fecundo, de uma<br />

compreensão clarividente de nossa realidade física e espiritual. Por<br />

isso a memória ganha tanta expressão em sua obra, é por ela que a<br />

poeta, portanto, recorta-se no fluxo do tempo, para expressá-la no<br />

congelamento de instantes simbólicos, repletos de emoção e<br />

arrebatamento.<br />

Nesse aspecto, muito semelhante à escrita dos simbolistas, os<br />

cenários de Dora, em alguns textos, ganham a expressividade dos<br />

apelos sinestésicos, como se a memória precisasse arder pelos<br />

cheiros, pelo olhar, pelo som. A poesia da escritora paulista é,<br />

portanto, densamente plástica, pictórica, conforme podemos antever<br />

no Poema “O aroma...”, texto no qual a memória ganha viva<br />

expressão plástica graças aos apelos sensoriais:<br />

O aroma circunda pessegueiros<br />

em meio à chuva. Lembranças<br />

sopram mais que o vento<br />

e a Criança desata os cabelos.<br />

Rostos esparsos sorrisos afagos<br />

de mãos tão leves que a neblina<br />

pesada parece e tudo se avizinha<br />

de um espaço talvez sonhado.<br />

Os nomes revoam pássaros;<br />

pareciam esquecidos<br />

mas em curvas aéreas se revelam<br />

tão belos e lembrados.<br />

(SILVA, 1999, p. 301-302)<br />

No poema, o aroma, a profusão de cores, as texturas e os sopros<br />

formam um tecido sensorial de grande imagismo. Nesse sentido, a<br />

memória, tão proustiana, ganha ímpeto avassalador: “Lembranças/<br />

sopram mais que o vento”. Os nomes, por sua vez, com a força de<br />

pássaros, adejam pelo ar, numa metáfora de grande beleza plástica.<br />

A memória está no mundo e o mundo está no eu lírico, formando,<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 35


dessa forma, entre ser, espaço e tempo um rendilhado uníssono,<br />

inconsútil.<br />

Conforme apontam Jean-Yves e Marc Tadié, “é a memória que faz o<br />

homem”, (TADIÉ, 1999, p.9). A memória dá identidade ao homem, é<br />

ela que lhe molda a vida, dá nuanças que individualizam o sujeito.<br />

Sem memória não há ser, não há paixões, não há amor. A memória<br />

torna o mundo habitável, pois ela familiariza os espaços para o<br />

homem, permitindo-o identificar o aconchego da casa, do quarto,<br />

dos lugares aprazíveis. Sem memória não há amizade, pois sem ela<br />

não se poderia identificar e singularizar o rosto querido em meio à<br />

multidão. A memória, portanto, é fundamental para o<br />

funcionamento da lucidez e da consciência humanas. No poema “O<br />

aroma...”, Dora singulariza tais particularidades da memória, ao<br />

torná-la cósmica, universal.<br />

Com efeito, para Dora, a memória permite, ao homem, encontrar-se<br />

enquanto ser; ela agrega os vários eus, as várias personas que<br />

tresmalham a subjetividade, permitindo a harmonia, o equilíbrio<br />

necessário para a formação do indivíduo. O eu lírico do poema “O<br />

aroma...” só se torna possível porque ele se reconhece no passado,<br />

porque ele tem na memória elementos que lhe afirmam a própria<br />

personalidade. Se não existisse a memória também não existiria a<br />

natureza humana, o ser do homem. A dispersão dos acontecimentos<br />

o tragaria para uma inconsciência total, para um verdadeiro nada. O<br />

ser só pode se confrontar com a morte, com a sua finitude, porque<br />

ele pode lembrar-se, pode encontrar-se no mundo enquanto ser.<br />

Um outro aspecto da memória dos poemas de Dora seria as suas<br />

relações com a imaginação. A memória também se associa ao<br />

devaneio, transfigurando o real, imiscuindo no passado um toque de<br />

ficção. Nesse aspecto, lembrar é inserir poesia na vida. O passado<br />

transfigurado pela imaginação torna-se uma realidade poética. Basta<br />

lembrar a importância que a imaginação teve para Baudelaire, que<br />

chegou a chamá-la de “rainha das faculdades”. Sem imaginação não<br />

há poesia e também não há memória. Nesse sentido, a memória é<br />

emoção, sentimento a germinar no espírito de quem lembra. Todo<br />

homem possui “uma memória apaixonada que chora, treme e ri, ou<br />

que se prende num ódio por ela mesma » (TADIÉ, p.15, 1999). A<br />

literatura irá explorar essas relações entre memória e imaginação,<br />

fazendo da memória poética (ou da poesia memorialista) uma das<br />

suas linhas de força. Conforme aponta Le Goff, é no romantismo que<br />

os escritores tomarão consciência do poder artístico da memória:<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 36


O romantismo reencontra, de um modo mais<br />

literário que dogmático, a sedução da memória.<br />

Na tradução do tratado de Vico, De antiquissima<br />

Italorum sapientia (1710), Michelet pôde ler este<br />

parágrafo Memoria et phantasia: ‘Os latinos<br />

designam a memória por memoria quando ela<br />

reúne as percepções dos sentidos, e por<br />

reminiscentia quando os restitui. Mas designavam<br />

da mesma forma a faculdade pela qual formamos<br />

imagens, a que os Gregos chamavam phantasia, e<br />

nós imaginativa, e os latinos memorale... Os<br />

Gregos contam também na sua mitologia que as<br />

Musas, as virtudes da imaginação, são filhas da<br />

memória’. [...] Ele encontra aí a ligação entre<br />

memória e imaginação, memória e poesia. (LE<br />

GOFF, 1996, p.463)<br />

A memória é, com toda certeza, uma imagética. Nesse aspecto, o ato<br />

mnemônico torna-se muito semelhante à própria poesia, discurso<br />

pautado, sobretudo, pela imagem. Conforme aponta Bosi, “a<br />

instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à<br />

existência; não de um passado cronológico puro [...], mas de um<br />

passado presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de<br />

ser da infância e do inconsciente. A épica e a lírica são expressões de<br />

um tempo forte (social e individual) que já se adensou o bastante<br />

para ser reevocado pela memória da linguagem” (BOSI, 2000, 131-<br />

132). Alfredo Bosi irá colocar a busca pelo passado, a força poética da<br />

memória, como uma das linhas de força da lírica do Ocidente. A<br />

memória, na lírica moderna e contemporânea, simboliza uma recusa<br />

ao tempo atual, massificado, tempo em que a reificação do homem<br />

torna-se um imperativo. Para o autor de O ser e o tempo da poesia,<br />

ao retomar as obras poéticas de Manuel Bandeira e Jorge de Lima, a<br />

memória é “uma forma de pensamento concreto e unitivo, é o<br />

impulso primeiro e recorrente da atividade poética. Ninguém se<br />

admira se a ela se voltarem os poetas como defesa e resposta ao<br />

‘desencantamento do mundo’ que, na interpretação de Max Weber,<br />

tem marcado a história de todas as sociedades capitalistas” (BOSI,<br />

2000, p.177). Memória, portanto, é para Bosi, o cerne da própria<br />

atividade poética.<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 37


Referências<br />

ARRIGUCCI Jr., David. "Braga de novo por aqui". In: BRAGA, Rubem. Os<br />

melhores contos. 7 ed. São Paulo: Global, 1997.<br />

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras,<br />

2000.<br />

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1991.<br />

ELIOT, T. S. Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.<br />

HOISEL, Beto. Anais de um simpósio imaginário: entretenimento para<br />

cientistas. São Paulo, 1998.<br />

SILVA, Dora Ferreira. Poesia Reunida. Rio de Janeiro. Topbooks, 1999.<br />

TADIÉ, Marc; Jean-Yves. Le sens de la mémoire. Paris: Gallimard, 1999.<br />

WHITROW, G. J. O que é o Tempo? Uma visão clássica sobre a natureza do<br />

tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.<br />

<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 38


Vias de ver as coisas 1


Ricardo Dantas<br />

Itabuna – BA<br />

Ricardo Santos Dantas nasceu em Itabuna – Bahia, em 1967. Graduado em<br />

Letras pela Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna – FESPI, atual<br />

UESC. Especialista em Língua Portuguesa, em Alfabetização e em Educação em<br />

História e Cultura Africana e Afrodescendente. Autor do livro de poesias<br />

Lembranças de uma infância, publicado em 2004 pela FICC: Fundação<br />

Itabunense de Cultura e Cidadania. É professor de Língua Portuguesa, Artes,<br />

Teatro e LIBRAS.


Cândido<br />

O prisma<br />

da tua pele<br />

candeia<br />

o meu velejar<br />

em teu corpo.<br />

Apego-me<br />

às ternuras<br />

frívolas, toscas<br />

e irreverentes do prazer.<br />

Não enxergo o vagão<br />

da razão<br />

e deixo-me,<br />

propositalmente,<br />

ser o foco<br />

da tua luz insana,<br />

vil e desumana.<br />

<strong>7faces</strong> – Ricardo Dantas │ 41


Fé<br />

Acendi a luz<br />

aos pés da terra,<br />

conclui oferendas,<br />

entreguei palavras<br />

e, súbito,<br />

vi milagres<br />

de uma lança<br />

que, como quilha,<br />

rompeu o oceano<br />

entre dois mundos.<br />

<strong>7faces</strong> – Ricardo Dantas │ 42


Tecer prazer<br />

uma fenda<br />

uma renda<br />

no corpo...<br />

o vestido e o nu<br />

pincelam<br />

do olhar<br />

peniano<br />

o prazer


Disritmia<br />

O passo<br />

sem compasso<br />

quebrou a vértebra<br />

da língua<br />

malsã.<br />

Vitae<br />

O líquido<br />

cardíaco<br />

jorrou,<br />

milimetricamente,<br />

a vida.<br />

<strong>7faces</strong> – Ricardo Dantas │ 44


© Ian Crawford (detalhe)/ Reprodução.


Criação<br />

Se grilos<br />

e argila<br />

fundissem<br />

sonhos<br />

teríamos a terra,<br />

essa dona senhora,<br />

imaculada<br />

em música<br />

e herança<br />

ancestral.<br />

<strong>7faces</strong> – Ricardo Dantas │ 46


Davi Araújo<br />

São Paulo – SP<br />

Poeta, ficcionista, tradutor, ghostwriter e conselheiro editorial. Autor do blog<br />

Não Fique São; traduziu Natureza, de Emerson, e Caminhada, de Thoreau<br />

(Dracaena, 2010). Atualmente, conclui dois livros de poemas, continuações da<br />

trilogia iniciada com Livro Ruído (Eucleia Editora, 2011), publicado em Portugal.<br />

.


© Robinson Machado. Eunoia 1. Técnica mista sobre canson.<br />

<strong>7faces</strong> – Davi Araújo │ 48


Metade dos quinze pedreiros guilhotinados volta<br />

Eunoia<br />

Temos vertigem o bastante para mim e o gordo rei xadrez<br />

Sou novo, belo e forte.<br />

Sou o que eu quiser ser e tudo roço naquela que me endurece.<br />

Estou de frente para o meu lado de fora<br />

Tiro da cabeça uma toalha molhada de óptica tinta e o toureio.<br />

Ele passa espiralado aos gritos de “olé” dos não-numes.<br />

Fantasia fétida, quente, de pedra mesmo. Merda de dragão.<br />

É de um bonito dos mais grandes.<br />

Tem no meio um roseiral em chamas perfumadas;<br />

Piso, benevolente, dentro da Boa Vontade<br />

e o reino inteirinho arde em meus olhos quando acendo a luz.<br />

para o cândido céu de azul e neve madura<br />

de algum fevereiro futuro,<br />

mas a obra em fúria continua de cima para baixo<br />

já que de tão raso só o teto há longe.<br />

que se joga uma casa por vez.<br />

e transaparece que esse castelo vem rubro em minha direção.<br />

e em baixo sabe-se de árvores<br />

cujas tranças-raízes se tocam comunicantes na superfície, alertando-se em tempo de fugir de tudo o<br />

Não? Vai às mil maravilhas o restauro, informa desde o futuro<br />

que não é iminente;<br />

e, o que é muito natural,<br />

modernos bobos parados, aos milhares ao redor do que é tudo.<br />

a propaganda rupestre


E certo deus,<br />

aquele que engenha, que por hobby faz filosofias,<br />

Um acidente inesperado os atrapalha, e acabam por despencar<br />

mas se dou de ombros<br />

E por mais normal que isso possa parecer,<br />

Escalo a flor mais baixa e me estendo deitado<br />

sobre a maior de suas treze delicadas pétalas,<br />

Não sem luta contra o grupo terrorista de abelhas muçulmanas<br />

Foram três vírgula quatorze rounds<br />

do meu mais puro fundamentalismo<br />

daquela indústria ideal que já fora a menos finita fortificação<br />

de que se tem remembrança<br />

em cada coração do centauro.<br />

sai para almoçar<br />

justamente quando chego (ou me evita);<br />

vai agora quente e apetitoso, na garupa do cavaleiro negro,<br />

ser entregue à Senhora Pizza,<br />

as bordas de ouro inca emoldurando a circunferência<br />

meia banguela, meia burguesa.<br />

da minha orelha direita;<br />

é que por coincidência não os conhecia<br />

e por ter muita caspa, simultaneamente.<br />

tive fome quando meio dia.<br />

para, glutão, sorver o pólen.<br />

com planos maniqueístas de “bem me quer, mal me quer”,<br />

e eu “foda-se”.


Depois a sobremesa sem pressa e o café expresso,<br />

E então um repouso necessário<br />

Isto pois estão a reprisar o Tédio no canal 5,<br />

com intervalos comerciais<br />

Defeco um figo inteiro na penúltima parte.<br />

Desarvoro aquela maldição. Não é este o mundo do imediato?<br />

Faço de conta que entendo tudo o que vejo,<br />

É uma era que se ainda não foi, será desistida. Sei-o; saco!<br />

Como não desconfiar de tantos tempos instantâneos<br />

Em poder de um remoto controle<br />

sobre o que me entra pelas vistas,<br />

Vendido, vou às últimas consequências dos meus atos falhos,<br />

Vocálicos, meus dedos da mão<br />

contra os heróis.<br />

cem por cento integrais,<br />

é lógico.<br />

para reatrelar o esqueleto por cima desta minha alma<br />

que dura.<br />

Desafio-me. Não me amoles.<br />

e ainda dublado em ornitorrinquês.<br />

mas apenas para ser do contra.<br />

e lugares logo ali? Refugos fugazes.<br />

deixo-me possuir.<br />

subliminarmente mental,<br />

sedentário sem sequer piscar,<br />

até que afinal me dou por ligado aos telefonemas sem fundos.


sentidos como se cinco cores<br />

desde a laringe. Vibração.<br />

Oníricos, uns pássaros<br />

a despertar acordes.<br />

Desconfiado, descortino os números e ingresso no espetacular:<br />

A vida não acontecendo.<br />

Não sei nada disso de cor, digo-o cordialmente.<br />

Então, passo a tarde em busca do fantástico,<br />

a visitar bibliotecas, museus e zoológicos.<br />

esquinas de ângulos retos,<br />

chãos aprumados pelos ires e vires do devir,<br />

tragédias aéreas<br />

e velórios fosforescentes,<br />

definições de amor de dicionário,<br />

conexão rápida e segura como um genital plastificado,<br />

a cura para a ruga e a fuga para o nunca,<br />

águas de colônia, colônias de férias,<br />

voto nulo,<br />

as casas próprias e os carros usados,<br />

sorteios milionários com dez chances de ganhar,<br />

tanques de pesca e diversões eletrônicas,<br />

viagens parceladas, sucessos de bilheteria,<br />

todo o porvir que conheço de longa data,<br />

todo o todo o todo o todo,<br />

todas as igrejas do deus único funcionando trinta horas por dia.<br />

Eis tudo que me é caro demais,


Seja obra de mão de barata, seja massa de manobra pacata,<br />

“Consumir é comparecer!” “Faça isso!” “Venha conosco!”<br />

Antes de se matar,<br />

experimente fumar pedra e saltar sem paraquedas!<br />

Um lê: o fim da saciedade é a felicidade comum da sociedade.<br />

Os outros aplaudem felizes. É o começo.<br />

Cópias do que apenas parece original, nenhuma metamorfose<br />

Sonha-se em série na velocidade do verossímil.<br />

É quando quebro a máquina na quina da queda.<br />

E apenas não vomito o que não comi.<br />

Dado meu hálito ruim demais,<br />

Aos plebeus já não se recomenda coisa alguma,<br />

Há tecnologias como magias.<br />

Várias parafernálias ferrosas com estrondos silenciadores.<br />

Precipito-me em câmera lenta. Vou indo andar de pé,<br />

Distancio-me dos cansativos trabalhos<br />

O céu franze a testa em tempestade sobre mim<br />

desmascarado.<br />

nem defeitos especiais.<br />

Supersim, megaé, hiperjá.<br />

Por que não?<br />

recomenda-se aos nobres limparem muito bem os narizes.<br />

por já não serem medievais o suficiente.<br />

no que há passos e giro o caminho-verbo.<br />

que deixo ao léu aberto<br />

do próprio andamento.


Rendo culto úmido aos campos cultivados<br />

A paisagem é tão salutar que até tem certo ar de oxigênio.<br />

Tanto que, de repente, de forma estranha chego a respirar<br />

Um gesto sutilíssimo<br />

que não passa despercebido por ela,<br />

uva que passa:<br />

Está vestida apenas com a poeira da vinda,<br />

Ser de carne, muita.<br />

Reconheço em sua mirada sanguinolenta<br />

Veio de não sei quando até o onde exato.<br />

Sou ali entre ela, que claramente se aproxima,<br />

[Atrás de mim, andei quilômetros].<br />

Com olhos novos a cada piscada,<br />

Aprofundando-se em meu espírito,<br />

e sobre o que é mais telúrico sob mim.<br />

pelas centenas de milhares de minhocas que me saúdam<br />

sem que eu saiba diferenciar se o fazem com a boca ou o cu.<br />

E é uma dúvida recíproca.<br />

Intangível, porém tragável.<br />

quase que involuntariamente.<br />

a Mulher Magenta.<br />

os cabelos se embaraçando no vento,<br />

linda.<br />

o dom de tocar cachimbo.<br />

e a sombra que cresce atrás de mim a cada passo seu.<br />

ela pisa displicente [sente] sobre o que ainda nos separava.


Toma-me pela mão de escrever (a de colar),<br />

Não se pronuncia, mas cala em mim.<br />

Então empunha seu instrumento, o grande cachimbofone.<br />

Preenche-o com suas grossas sobrancelhas<br />

Traga com demora a mais longa nota<br />

E logo o entorno enlouquece e toma as cores daquele som,<br />

Faz treva com intensidade e estamos sós.<br />

Toda a construção em andamento resumia-se à minha ereção,<br />

Há então os movimentos [os movimentos], para ela e para mim,<br />

de pé e sobre o chão.<br />

Até o improvável, quando todo o corpo da Mulher Magenta<br />

acha graça por eu me perder em seu tão pequenino sorriso.<br />

que lava com as lágrimas mais quentes de carinho e dó.<br />

Corta-me os dois dedos de prosa e,<br />

sem fazer doer,<br />

tampa com eles os meus ouvidos.<br />

que um raio mergulha do alto para acender.<br />

e assopra no ar a turva melodia esfumaçada<br />

que apenas vejo.<br />

as nuvens, o sol e o céu.<br />

Beija-me, então, em silêncio sem paixão,<br />

pois tampouco tem língua.<br />

que ato contínuo ela afaga<br />

para introduzir em si<br />

com a delícia morna daquela sucção.<br />

é ejaculado para dentro do meu sexo atônito.


Mais impossível ainda se dá quando,<br />

Depois do que a sua voz apenas silencia,<br />

“Aprisione-me fora de mim”,<br />

meu último desejo,<br />

era a frase que dava início ao término disso aqui,<br />

uma confissão de culpa derradeira.<br />

Para só em seguida se dar a verdadeira perda de contato<br />

com quaisquer das realidades,<br />

Era um erro.<br />

Aconteceu que, por falta de outra saída,<br />

ao tomar meu próprio pulso,<br />

já agora dobrado,<br />

percebo não estar mais sozinho.<br />

Destapo os ouvidos e ouço-a, ríspida,<br />

dizer desde o meu ser:<br />

“não ouse morrer, pois nascerá de novo!”<br />

pelas próximas milhões de horas esparsas em que envelheci<br />

em companhia do Nada,<br />

cantando este relato,<br />

mentalmente.<br />

inclusive aquelas das quais eu ainda me orgulhava um pouco,<br />

apesar de tudo.<br />

fui obrigado a recorrer àquilo ainda verde em mim,<br />

que em seu egoísmo encarnava<br />

tudo ao que eu mesmo estava<br />

indissoluvelmente suscetível.


E afinal a voz, já então velha, sem antes me chamar,<br />

E então ando trôpego tateando o vazio,<br />

na absoluta escuridão a lutar contra o luto do que já fui<br />

Até que um medo por não estar só outra vez<br />

àquela dúvida de infinitos pontos finais.<br />

E a desconfiar até dos meus pensamentos,<br />

Eu terminava bem ali. A li.<br />

Nada me restava, e fartava.<br />

E sem qualquer vontade<br />

que não fosse um ato de automisericórdia,<br />

apenas a atender o meu Eu terminal,<br />

ressurge desde o meu interior nunca esquecido e já arrependido<br />

a me dizer “siga-me”.<br />

tateandando através do que já não era Eu em mim,<br />

por uma chance<br />

além do alcance,<br />

em meio a incerteza de cada penúltimo e último passo adiante,<br />

só no meu próprio plano,<br />

humano, maníaco.<br />

me levou de novo ali,<br />

pensei estar sendo seguido.<br />

Foi quando bati a cabeça<br />

contra algum vazio mais sólido,<br />

tão denso de Nada quanto o resto Dali,<br />

e igualmente tenebroso.<br />

invoco o que me resta de vida


E por um instante, ao longo do gesto fatal,<br />

Uma morte completa,<br />

mera aniquilação do ser<br />

que investe de cabeça contra si mesmo<br />

rumo a tão sonhada<br />

e senhada<br />

encontra meu fim<br />

com a intenção de expulsar da cabeça essa mesma vida.<br />

<strong>7faces</strong> – Davi Araújo │ 58<br />

duro toda uma nova juventude e há experiânsia.<br />

ataraxia<br />

sem meios de não recomeçar,<br />

pois, assim que piso lá,<br />

[de si,<br />

dó]<br />

ascendo à Luz.<br />

Parque Novo Mundo<br />

- Outono de MMXII


© Robinson Machado. Eunoia 2. Técnica mista sobre canson<br />

<strong>7faces</strong> – Davi Araújo │ 59


Tiago Duarte Dias<br />

Niterói – RJ<br />

Tiago Duarte Dias tem vinte e dois anos, morador de Niterói, RJ. Atualmente<br />

cursa Relações Internacionais na Universidade Federal Fluminense. Escreve com<br />

alguma regularidade em seu blog pessoal desde 2007, e tem a paixão pela<br />

literatura e pela poesia desde a sua adolescência.


Estou vivo há vinte e dois anos.<br />

Estou vivo há vinte e dois anos,<br />

formado em frustrações, decepções e ilusões.<br />

Com um diploma em incertezas,<br />

e uma série de promessas não cumpridas,<br />

além de paixões e amores de capricho.<br />

Tenho a frustração de minha época:<br />

como a flor de uma árvore infrutífera,<br />

cuja a vida é apenas beleza e aparência.<br />

E que se o Tempo, apesar de lento, nos consome,<br />

nós zombamos do Tempo, o ignorando...<br />

Carrego as decepções de meus pais e avós:<br />

metodologia empírica da impotência humana.<br />

Todas as suas tentativas de um paraíso,<br />

levaram a um inferno um pouco mais palatável,<br />

com rancor e tristeza pelo passado perdido.<br />

Sou feito de ilusões e de sonhos.<br />

Sou mais de um em um só, levado por desejos,<br />

que eu mesmo não consigo compreender,<br />

e eu, vendo a vida vir verde e veloz:<br />

tomo decisões que não consigo mensurar.<br />

Tenho vinte e dois anos,<br />

e com sorte, mais de meia década de vida<br />

anos em que estarei dividido<br />

entre dúvidas de ocasião,<br />

e recriações em um passado romantizado.<br />

<strong>7faces</strong> – Tiago Duarte Dias │ 61


Adriano Winter<br />

Porto Alegre – RS<br />

Nasceu e reside em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Foi vencedor do Femup<br />

2010 e integrou sua antologia. Tem outras coletâneas publicadas nas revistas<br />

Germina, Aliás, Eutomia, La Gioconda, Sibila, Separata (México), Triplov<br />

(Portugal), Cinosargo (Chile) e Experimenta (Argentina), além de poemas no<br />

Jornal Poesia Viva e na série Alfa (Espanha).


O açúcar é<br />

fúsil<br />

se alumens diluem<br />

sua armadura mascava<br />

acro<br />

se cáustico ataque<br />

parte a mandíbula frágil<br />

albino<br />

se fios de refino<br />

esfolam aminoácidos<br />

inviso, líquido, místico<br />

se luz ou amor destilam<br />

gotas etílicas de seus átomos<br />

<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │ 63


A roca<br />

vara ou cana, tira<br />

estreita, rocha, fabuloso<br />

pássaro, penhasco<br />

marítimo, tala<br />

em torno de um<br />

mastro, armação<br />

de madeira sob<br />

imagens sacras<br />

<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │ 64


Meu câmbio<br />

melhor<br />

moeda<br />

é o fogo<br />

remunera<br />

o amor<br />

e a arte<br />

tanger<br />

o maravilhoso<br />

custa caro<br />

e ávido<br />

é o imposto<br />

da felicidade<br />

queres ser<br />

milionário?<br />

arde<br />

<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │ 65


© Hélio Jesuíno


Filmagem<br />

(tempestade)<br />

brisas esgrimam gramas<br />

frondes como ondas<br />

panos flanam em arames<br />

trovões temblam ao longe<br />

temporal repercute<br />

no pote de plástico<br />

(bonança)<br />

longo pássaro<br />

dos fachos<br />

pousa em<br />

penínsulas de<br />

lajes<br />

aragens<br />

lantejoulam<br />

águas<br />

(passeio)<br />

sumiço<br />

do gris<br />

gotas grifam<br />

as flores<br />

veleiro de aves<br />

à deriva na íris<br />

(19h)<br />

roxo colosso<br />

da noite<br />

estrelas detêm<br />

desesperos<br />

<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │ 68


Reconciliação<br />

exilado<br />

num relâmpago<br />

atiro cabos<br />

em teu corpo<br />

ponta de língua<br />

borda de boca<br />

qualquer laço<br />

que reconecte<br />

meu ser ao teu<br />

num fio de fogo<br />

mas só o amor<br />

(atrátil força)<br />

põe cumulus nimbus<br />

de acordo<br />

eu te perdoo – tu me perdoas<br />

cintilo livre<br />

beijo-estouro


Visão beatífica<br />

se a treva despisse<br />

seu mistério<br />

morreríamos de luz<br />

conforme Eliot:<br />

“o gênero humano<br />

não pode<br />

suportar tamanha<br />

realidade”<br />

<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │70


Guerá Fernandes<br />

Durandé – MG<br />

Guerá nasceu em 1968, em Durandé, Minas Gerais. Em 2001 lançou olivro Na<br />

Antessala da Fala, um trabalho independente. Do encontro com Editora<br />

Multifoco: Mares de ilhas e cores se chove (2008) e Infinito berrante (2009)<br />

fechando uma trilogia poética. Em 2010, experimentou um trabalho em prosa,<br />

o romance O poço. Em 2012, a nova poesia do poeta está em Pedra de ser<br />

canto.


lágrima<br />

cara tenho essa lágrima<br />

levo esse jeito sem jeito<br />

de olhar pro chão do meu pai<br />

de olhar de lado da minha mãe<br />

e a minha gente se gaba<br />

de não ter medo de gente<br />

se o papo é reto é olho no olho<br />

no tato meu povo é gente do bem<br />

cara tenho essa lágrima<br />

pra chorar depois das palavras<br />

<strong>7faces</strong> – Guerá Fernandes │ 72


o vermelho do charme<br />

tenho jogado tinta nas coisas<br />

cantado aos extremos de mim<br />

e terrivelmente por pouco<br />

não solto ribanceiras poéticas<br />

dos meus rasantes indomáveis<br />

nossos guerreiros e suas guerras<br />

somos todos bem quixotescos<br />

em inconfessáveis batalhas<br />

e ainda cumpre se preocupar<br />

com cartão de apresentação!<br />

eu não reconheço esse baralho<br />

silêncio às vezes é o atalho<br />

deixo esse verso sobre a mesa<br />

e mais uma vez saio à francesa<br />

<strong>7faces</strong> – Guerá Fernandes │ 73


casal moderno<br />

ela fala alto<br />

ele usa salto<br />

simulacro<br />

trans porte<br />

- se<br />

parte<br />

par<br />

arte<br />

ou ímpar<br />

<strong>7faces</strong> – Guerá Fernandes │ 74


©Hélio Jesuíno


paisagem<br />

o meu barco tem<br />

um arco<br />

o seu lábio tem<br />

um mato<br />

capim com íris<br />

nossos matizes<br />

mergulho o tiro<br />

seu hálito de pás<br />

ferido<br />

o seu voar<br />

saro<br />

descalço<br />

no ar de vidro


no fruto o gosto<br />

porque o tempo quis assim<br />

sol lá no sem-fim sem fim<br />

buscar nas folhas esquecidas<br />

o amor com seu flautim<br />

assaltar rente à flor a cor<br />

da cor e a voz do que diz<br />

verde o que sente na raiz<br />

madurar a luz que pulsa<br />

apurar no fruto o gosto<br />

no seu movimento lento<br />

sede nua no doce da coisa<br />

pele que salta e rosa<br />

no alvorecer das vertentes<br />

mapear montanhas no Saara<br />

<strong>7faces</strong> – Guerá Fernandes │ 77


Joice Berth<br />

São Paulo – SP<br />

É arquiteta e urbanista, poeta e escritora amadora, colaboradora de dois blogs<br />

sobre literatura além de ter seu próprio blog de poesias e contos; está em fase<br />

de revisão de seu primeiro livro de poemas e trabalhando em projeto de poesia<br />

e artes visuais em parceria com alguns artistas plásticos e fotógrafos.


Ladainha<br />

A mesma reza e meus excessos não se medem<br />

Ao contrário das virtudes da conveniência: imensuráveis.<br />

Quando todos oferecem o riso sincero, a leveza mete o pé na porta<br />

A vida como uma obra expressionista,<br />

Não permite conter afetos<br />

Como numa cena de novela antiga, as verdades esperam beijos finais<br />

Estive também esperando um sinal<br />

No final dos tempos<br />

A ventania inaudível da angustia<br />

Meu tempo calou-se, de tanto eco que fez,<br />

Não percebi tua partida<br />

Ainda aprecio teu fel<br />

Na ânsia de indeterminar tua subida<br />

Da última vez que estivemos de frente<br />

Eu, arrefecida pela tua verdade, estremeci.<br />

Minha coragem expirou-se, criou asas!<br />

Desculpe dizer, mas tua inocência é uma farsa<br />

Do mesmo lugar de onde sai<br />

Vou plantar minhas decadências<br />

Com dúzias de crianças, vou sentar na terra.<br />

Esperar brotar o que produz saudade<br />

Dentro da minha insanidade<br />

A alegria do teu irretocável retorno<br />

Beirando o contorno do meu incrédulo sorriso.<br />

<strong>7faces</strong> – Joice Berth │ 79


Inverso<br />

Da lágrima salgada que umedece a lápide<br />

Ao desconforto da contração do útero<br />

O retorno absoluto<br />

Ao mundo reincidente no pecado<br />

A voz do perdão me pariu<br />

Um pedaço em cada esquina<br />

A cada anjo lúcido que me escolheu<br />

Minha divina inspiração<br />

Nos quartos sombrios do ego<br />

A memória traída<br />

O que derrota<br />

O que acolhe<br />

O que questiona<br />

O que apodrece<br />

Em cada certeza uma agonia<br />

Em cada luz o dissimulado acaso<br />

Do fim ao início<br />

O doce caminho da morte<br />

E de certo só a esperança<br />

Que ainda sustenta ofegante<br />

O peso da vida<br />

<strong>7faces</strong> – Joice Berth │ 80


Marco Polo Guimarães<br />

Recife – PE<br />

Nasceu no Recife. É jornalista, escritor e compositor. Trabalhou no Diário da<br />

Noite, Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Jornal da Tarde (SP),<br />

Editora Bloch (RJ) e revista Continente. Publicou os livros: Voo, Subterrâneo,<br />

Brilho, Palavra clara, A superfície do silêncio, Caligrafias, Sax Áspero,<br />

Corpointeiro e Oficina do avesso, todos de poesia. Como compositor gravou o<br />

disco Ave Sangria e participou das coletâneas Asas da América – Frevo I e II.<br />

Tem músicas gravadas por Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Teca Calazans e Zezé<br />

Motta, entre outros. Atualmente é superintendente de produção editorial da<br />

Companhia Editora de Pernambuco, CEPE.


Recife<br />

Recife, cidade pantera,<br />

fera de lata e latão,<br />

gume de foice, severa<br />

esfera de ferro, ferrão.<br />

Recife, cidade minério,<br />

rios, vento, luz e chão,<br />

poço cavado no aéreo<br />

areal da imaginação.<br />

<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 82


A Anunciação, de Botticeli<br />

O anjo tenta acalmá-la<br />

de joelhos, menos por reverência<br />

que para mostrar submissão;<br />

mas ela foge, quase tropeçando,<br />

está profundamente assustada<br />

e o quadro em que o pintor a vê<br />

é pequeno para ela.<br />

Seu gesto também é cortês<br />

como se dissesse: Muito obrigada,<br />

é muita distinção, fico grata,<br />

mas ser mãe de um Deus é demasiada responsabilidade.<br />

O anjo insiste, insidoso, insinuante.<br />

Apesar de todo o pânico,<br />

ele sabe que ela vai conceder.<br />

A firme árvore que se vê pela janela<br />

e o rigoroso ladrilho vermelho que se estende pelo chão<br />

confirmam a realidade<br />

e o irrevogável transcurso dos fatos predeterminados.


Sob o luar<br />

que vem das tuas<br />

duas luas altas<br />

há uma pausa<br />

é nesta fresta<br />

é nesta fenda<br />

é nesta senda<br />

é nesta sombra<br />

por onde entro<br />

seta<br />

para fora do tempo<br />

<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 84


Noturno árabe<br />

Se a nádega clara sobre a seda escura<br />

retém um tom de rosa. Se a penugem da coxa<br />

doura a pele. Se a carne rosa e fina<br />

da virilha guarda um perfume quente.<br />

Se a cova da clavícula detém o sal<br />

do suor. Se a onda dos pelos reluz<br />

seu sol negro. Se o dente branco rasga<br />

a polpa da canela. Se o perfume quente<br />

umedece as coxas duras da menina.<br />

Se a nádega clara treme ao toque da língua.<br />

Se o suor escorre pela espinha fina<br />

onde os pelos. Se a virilha rosa.<br />

Se a ponta dos peitos brilha como estrela.<br />

Se a noite se move sob o corpo alvo.<br />

<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 85


Lázaro<br />

Não acordem Lázaro<br />

ele não quer<br />

está livre do mundo.<br />

Suas irmãs não sabem<br />

é puro egoísmo<br />

desejá-lo vivo.<br />

Não acordem Lázaro<br />

ele está feliz.<br />

Seus instantes de febre<br />

sua gula e jejum<br />

tudo está ultrapassado.<br />

Lázaro só pensa<br />

em campos de neve<br />

em disneylândias<br />

em sorvetes de araçá.<br />

Acordar Lázaro seria<br />

suprema desumanidade.<br />

Ainda assim<br />

acordaremos Lázaro.<br />

<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 87


Litania<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Velas roxas, seda roxa, roxas feridas de dor<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Santo Sangue do Senhor<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Muita pedra, muita queda, muito perdão por favor<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Santo Sangue do Senhor<br />

Sobe ladeira, desce ladeira, onde for<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Serpente de fé, emblema da dor<br />

Do homem na terra caminhador<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Bang bang de fogos, flores, palmas, cânticos de amor<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Santo Sangue do Senhor<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Pelo mangue, pela praia, pela praça, pela rua, pela avenida<br />

Pela vida<br />

Lá vai a procissão com seu andor<br />

Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />

Santo Sangue do Senhor<br />

<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 88


Dora Ferreira da Silva<br />

recortes 1


Órfica<br />

Não me destruas, Poema,<br />

enquanto ergo<br />

a estrutura do teu corpo<br />

e as lápides do mundo morto.<br />

Não me lapidem, pedras,<br />

se entro na minha tumba do passado<br />

ou na palavra-larva.<br />

Não caias sobre mim,<br />

que te ergo, ferindo cordas duras,<br />

pedindo o não perdido<br />

do que se foi. E tento conformar-te<br />

à forma do buscado.<br />

Não me tentes, Palavra,<br />

além do que serás<br />

num horizonte de Vésperas.


Quatro poemas em rosa<br />

I<br />

ROSA-MOURO<br />

Peço-te novas, amor, da Criança que gerámos um dia<br />

junto a um canteiro de rosas. Era de noite,<br />

mal víamos as cores de nosso filho antigo.<br />

Rosa-mouro, seu nome: sua alcunha, o Cigano.<br />

Num carroção o levámos a passear pelo mundo.<br />

Na aurora era lindo, Rosa-lindo o apelidámos<br />

e nunca o vestimos. Rosa-nu, chamaram-no meninos<br />

que caçavam pássaros. De noite,<br />

escurecia tudo: Rosa-escuro fremindo<br />

em nosso abraço. Rosa-noite, segredámos<br />

sem que ninguém ouvisse. E num aro de criança<br />

o rodamos, tangendo com varas finas nosso Menino.<br />

Mal sabíamos que se afastaria. No canteiro de rosas –<br />

seu berço – a geada pousou dia incerto um beijo mais frio.<br />

Rosa-mouro, gritámos! Cigano! Ecos se foram<br />

em muitas direcções. Rosa-lindo e Nu e Noite, gritámos!<br />

Ninguém respondeu. Não se fora, aéreo, nem morrera<br />

pétreo de desentendimento, nem sufocara em lágrimas,<br />

nem morrera de rir. Desconfio das rosas,<br />

das rosas de todos os caminhos. Nosso filho sincrético<br />

em tudo que é rosa parece dormir.<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva │ 92


II<br />

ROSAMOR<br />

Nem mesmo o Angélico achou tal cor em asa<br />

ou manhã. Nenhum acorde tocou tal cor.<br />

Nas palmas dos recém-nascidos dizem<br />

que pode ser encontrada se a estrela for propícia.<br />

Em pétalas, se a Natureza doar-se, amando<br />

a flor dilecta. Um Poeta a descobriu na hora mais tardia<br />

e ofertou-a em silêncio à visão derradeira.<br />

Temerária, a procuro; interrogo os sentidos:<br />

o tacto, em pêssegos pousando e amando;<br />

o gosto confuso e escuro aprofundando<br />

a carne da romã; o olhar, demasiado à superfície<br />

das rosas que têm nome, e escapam; o ouvido,<br />

ébrio de vinho róseo esquecendo a música.<br />

Interrogo os sentidos. Nenhum responde a meu chamado.<br />

Despeço o poema à porta, é inútil tentar<br />

dizer tal rosa, estando viva e incerta<br />

em tantos caminhos por onde começar.<br />

III<br />

ROSALÉM<br />

Ajoelhada, num gesto simples de colher flores,<br />

rósea. O alvo abrigou-se além<br />

e deixou-a no jardim das rosas. NO LI ME TANGERE.<br />

Colhe o que quiseres na campina rasa,<br />

essas folhas e ramos e aromas.<br />

Enlaça-te em teus xales, descansa<br />

de soluços e sustos. Recolhe teu gesto<br />

aéreo. Volta ao róseo da aurora.<br />

Do Amado, era a hora madura;<br />

não a tua, Amorosa.<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva │ 93


IV<br />

ROSADEUS<br />

Num escrínio de vidro levavas a rosa.<br />

Os caminhos eram vazios, depois de chuvas prolongadas.<br />

Contra o peito apertavas o tesouro frágil;<br />

ria-me de teus cuidados, de teu medo. “Somos os últimos.<br />

dizias, aos que foi confiada a rosa.”<br />

Eu cantava tudo que nascia<br />

e em nossas bocas os frutos se acendiam.<br />

Debatia-se o sol em teus cabelos;<br />

abraçados na clareira fria, ouvia em teu peito<br />

o rio escuro. E de lágrimas me vestia,<br />

na extrema nudez<br />

que só tu viste e velaste<br />

entre a rosa e o vazio.<br />

Esse tempo existiu, de sendas tão secretas?<br />

Que delírio o retém? Partiu-se o vidro,<br />

perdeu-se a rosa, o atalho na floresta?<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva │ 94


Vivem os ventos...<br />

Vivem os ventos o puro viver<br />

fuga incessante dos elementos.<br />

Abrem-se pétalas de ar<br />

gritam nuvens arrastadas<br />

riem gostas de luz na altura límpida:<br />

o branco novilho – cascos de ouro – escarva<br />

entre céu e terra.<br />

Dissipa-se o impuro. Dilata-se a luz<br />

que incita o desencadear constante<br />

e nas flâmulas do éter – rubra –<br />

floresce a rosa<br />

distante e presente<br />

pétalas abertas ao duplo viver:<br />

raízes na terra<br />

e odor que no alto se dissipa<br />

em viagem além de porto ou ilha<br />

ao sabor do saber ou não-saber das quilhas.<br />

Doada e casta em seu prumo<br />

das altas transparências às grotas<br />

de obscuros corações (sôfregas raízes).<br />

A rosa: farta e indigente<br />

entregue aos rios de vento e de carência.<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva │ 95


A Euryalo Cannabrava<br />

Sem lápide pesada<br />

à beira de águas fluentes<br />

– rápidas palavras –<br />

roladas ao fio dos pensamentos<br />

que fundamente habitaste<br />

mas principalmente à beira do livro de imagens<br />

do teu Fabulário – homem forte habitado<br />

pela Criança dos inícios –<br />

eu te evoco ao sol da nítida lembrança<br />

(foi o Início teu porto aberto à descoberta)<br />

à beira de águas sempre renovadas<br />

configuradas na líquida flor dos pensamentos<br />

do homem divinamente criador a imagem<br />

teu instante perene e as fibras do Imaginado.<br />

O hausto do silencioso sentimento<br />

em tudo se torna e se derrama<br />

e contigo permanece.<br />

Os poemas aqui publicados nesta sessão aparecem em edições de 1972<br />

(n.10) e 1978 (n.44) da Revista Colóquio/Letras da Fundação Calouste<br />

Gulbenkian e foram cedidos para reprodução nesta edição


O projeto<br />

criador em<br />

Dora Ferreira<br />

da Silva*<br />

Por Euryalo Cannabrava<br />

1<br />

entremeio<br />

Dizer que certo soneto de Rainer Maria Rilke é existencialista significa<br />

o mesmo que atribuir-lhe determinada relação temática não<br />

substancial. Na obra de Dora, porém, o existencialismo não<br />

comparece, porque a sua trama foi urdida na base de vivências<br />

pessoais e intransferíveis, de contactos imediatos e direto com as<br />

vicissitudes da “humana natureza”, no dizer de Zurara.<br />

Nem seria possível, na base de teses existencialistas, analisar a<br />

riqueza desbordante da poética Doriana. Os fundamentos da crítica<br />

existencialista ou fenomenológica de poesia, por outro lado, são<br />

vacilantes, como se verifica através de Alessandro Pellegrini na sua<br />

monumental obra sobre Hölderlin.<br />

O que acontece com o crítico existencialista ou fenomenologias é que<br />

ele parte de uma perspectiva doutrinária para examinar o que<br />

sòmente pode ser encontrado no poema. A posição do<br />

Existencialismo ou da Fenomenologia é fundamentalmente<br />

problemática. Em primeiro lugar, são filosofias exortativas que<br />

costumam substituir, em certas oportunidades, a reflexão crítica pelo<br />

É assim tanto Heidegger como os seguidores de Husserl proclamam


ser a poesia nada mais ou nada menos do que disciplina filosófica.<br />

Esta confusão básica entre mensagem especulativa e mensagem<br />

poética torna-se evidente no ensaio de Heidegger sobre Hölderlin.<br />

Ora, tal exegese retira, de início, a originalidade do poema,<br />

considerado como subproduto da atividade filosófica. A distinção<br />

básica, porém, entre Poética e Filosofia decorre, como se verifica a<br />

propósito do poema “Metafísica”, precedentemente comentado, de<br />

que toda construção filosófica é problemática, ao passo que todo<br />

poema autêntico pode conter problemas, embora não seja<br />

problemático em si mesmo. A natureza do método filosófico seria<br />

transformar soluções em problemas. A Matemática interessa ao<br />

filosófico precisamente no sentido de que as suas soluções,<br />

transmutadas em problemas, constituem a base do progresso na<br />

rainha das ciências.<br />

Nada disso se verifica com a obra de arte: enquanto ela se manifesta<br />

apenas como projeto criador, a sua essência é a aleatoriedade. A<br />

transição do objeto estético (programação criativa) para a obra de<br />

arte (produto necessário) constitui a base da realização artística. A<br />

necessidade da obra de arte consiste precisamente no faço de que do<br />

teatro de Shakespeare, da fuga de Bach ou da estátua de<br />

Michelangelo nada se pode retirar ou acrescentar. Ao passo que na<br />

teoria cientifica, como a relatividade einsteiniana, as amputações e<br />

os acréscimos se tornam inevitáveis.<br />

Há, portanto, uma necessidade estética tanto ou mais rigorosa do<br />

que a necessidade lógica. Esta necessidade estética permeia os<br />

poemas de Dora, em que o famoso “sentido” direto, referencial e<br />

simbólico sofre a coação do fundo imagístico no repertório das<br />

palavras. Assiste-se, ao vivo, ao conflito entre os ingredientes<br />

simbólicos e imagísticos que, contrapondo-se, geram tensão<br />

conotativa de ressonância estética profunda. É o que se observa,<br />

depois de “Metafísica”, nos versos<br />

e em<br />

fala da alma que me desabita<br />

do meu corpo ausente quanto não estás<br />

cega li<br />

teu nome em meu sangue<br />

e as estrelas confirmaram<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 100


seguidas por<br />

E, a propósito do Sol:<br />

no escuro divinatório<br />

reconheço<br />

o perfil da tua origem<br />

clara divindade<br />

nua a carnação sob o manto escarlate.<br />

Mais adiante, em “Manhã I”:<br />

Esqueço os hieróglifos da alma,<br />

há campânulas azuis, ânforas, pássaros.<br />

há campos a percorrer.<br />

Em todos esses paradigmas líricos, as violações semânticas do<br />

“sentido” dicionarizável atingem o seu objetivo de coarctar o obvio e<br />

o prosaico, nas referências simbólicas, para atingir o inusitado e o<br />

insólito da expressividade poética.<br />

Em “Manhã II”:<br />

No espelho do lago semeado de folhas<br />

ondulam os corpos entre hastes de trigo<br />

o sentido literal e léxico não representa o objetivo, dissimulado pela<br />

neutralidade da descrição natural.<br />

Esta dissimulação do incomunicável, sob a aparência da forma<br />

intuitiva e espontânea, manifesta-se em<br />

Nos grãos do vento<br />

partiram pombos em tumulto e brancura<br />

que explicita raízes intersensoriais de inspeção sensível, denunciando<br />

no poeta contacto interno dos sentidos com a realidade do mundo<br />

exterior. Aos “grãos de vento”, distribuídos em partículas minúsculas,<br />

corresponde a revoada dos “pombos” que confunde “tumulto” e<br />

“brancura”. Pensamento poético, de raízes sensoriais, pressupõe<br />

análise discriminativa, pelo conhecimento inspectivo, ingredientes<br />

psicodinâmicos ativo, que sublinham a vida ao mesmo tempo<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 101


contemplativa e nostálgica em que se integram elementos de<br />

presença e ausência em síntese secreta:<br />

nos vales da distância<br />

rumina em silêncio<br />

teu rebanho tranquilo.<br />

Nestes dois versos de “Noturno II”:<br />

A noite já desfere<br />

seu punhal de trevas,<br />

nota-se o mesmo artesanato, que impregna a imagem de<br />

sensorialidade concreta, para torná-la drástica até o ponto da<br />

visualização direta. Os versos acima atuam como projetor, criando a<br />

ilusão eidética dos braços da noite desferindo golpes de treva.<br />

Mesmo neste exemplo, como em outros anteriormente citados, não<br />

há metáfora, nem tropo, pois o sentido figurado no uso das palavras<br />

seria o máximo de realização antipoética.<br />

A drasticidade desta imagem provém diretamente do seu poder<br />

galvanizador e energizante. A figura de retórica é abstrata, atua como<br />

símbolo, em que a palavra transfere o seu sentido para outra, como<br />

por exemplo a relação entre “flor” e “mulher”. Ora, “a noite já<br />

desfere” “seu punhal de trevas” nada figura ou compara, mas<br />

simplesmente, através da carga imagística, suscita a presença da<br />

“noite”, densa e concentrada, vibrando o “punhal” feito de “trevas”.<br />

2<br />

A experiência concretista de Dora, incorporada em “Lunimago”,<br />

coletânea de poemas de vanguarda, tem a significação de imprimir à<br />

sua obra feitio experimental em matéria de linguagem. Os poemas<br />

breves e incisivos, valorizam a palavra isolada por meios mecânicos<br />

de técnica tipográfica no espaço em branco.<br />

Ora, em Mallarmé, no poema Um coup de dês, a riqueza da<br />

expressividade lírica consiste precisamente na variedade da<br />

distribuição de palavras no texto poético. As distribuições<br />

obedeceram a uma programação rigorosa, em que o poeta procurou<br />

obter, segundo suas palavras, “esta conjunção suprema com a<br />

probabilidade”.<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 102


Os objetivos mallarmeanos eram complexos, como demonstra a<br />

leitura de Igitur. A realização, porém, como poesia pura, ultrapassou<br />

o projeto criador no sentido de poemas absoluto, sem condições<br />

restritivas. Os concretistas, porém, daqui e do estrangeiro, são de<br />

méritos desiguais, pois a sua programação, muitas vezes ingênua,<br />

empobrece o poema de valores estéticos, circunscrevendo o seu raio<br />

de ação a um mínimo de interações de palavra para palavra. Além<br />

disso, observa-se uma espécie de desestruturação do espaço poético<br />

pelo estrangulamento das imagens nas palavras, que passam a atuar,<br />

simbòlicamente, como veículo de ideias ou de conceitos.<br />

Na eliminação do sentido conceitual da palavra no poema consiste<br />

precisamente a tarefa do artesanato poético que o concretismo<br />

abole por completo. É verdade que Dora consegue, em alguns de<br />

seus poemas concretistas, a transfiguração do substrato simbólico,<br />

nos vocábulos, em pura imagem concreta. Mas estes acertos são<br />

relativamente raros.<br />

No poema concretista em que as palavras “infância”, “ânsia”,<br />

“distância” são colocadas em diagonal à direita, tenho a impressão<br />

de que o coeficiente simbólico, puramente conceitual, desses termos<br />

sobreleva, vantajosamente, o seu repertório imagístico. Mas, seja<br />

como for, a inserção de poemas concretistas em Andanças indica, na<br />

autora, virtuosidade artesanal que valoriza o livro em vez de diminuílo.<br />

De “Lunimago” transita-se, sem tropeços, para a sutil e difusa<br />

“Elementária”, rapsódia lírica de elementos e objetos, congérie de<br />

átomos verbais, cortejo de formas e de ritmos, teoria de sons e de<br />

figuras. Confesso que “Elementária” representou, para mim,<br />

experiência entrópica no mundo da desagregação e do caos. A<br />

desordem impera, nestas regiões mágicas, em que Dora faz surgir de<br />

furna esconsa trasgos e duendes, com letreiros na testa.<br />

Trata-se de um polipeiro de imagens saltitantes: saltos quânticos e<br />

acrobacias verbais que lembram pantomima de circo. A experiência<br />

atinge todos os seus objetivos, com centelhas, fulgurações, enredos,<br />

cipós bracejantes, parasitas, conglomerados, partículas e ondas. O<br />

poema é polivalente, tumultuário, cresço e rugoso na superfície, com<br />

estratos inacessíveis à inspeção armada de microscópio.<br />

É certo que ao verso final


SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI<br />

corresponde, em “Elementária”, a obra realizada, o fecho e o remate de<br />

uma tarefa ciclópica, em que o mágico, o telúrico e o lúdico se associam em<br />

comum empreitada.<br />

Depois de “Elmentária” plenamente realizada, vem “Tapeçarias”, onde são<br />

entretecidos poemas em prosa.<br />

Não há nada que me faça compactuar com este monstro bifronte: o<br />

poema em prosa. É evidente que a poesia, excluindo a sua paráfrase<br />

em prosa, com os elementos lógico-racionais, inerentes à exposição<br />

oral ou escrita, não se adapta ao tratamento prosaico. A prosa, sendo<br />

simbólica, não evade o sentido senão em determinados trechos,<br />

como acontece com Proust, em que o estilo, galvanizando a<br />

expressividade temática, adquire certo teor poético inconfundível.<br />

A imagem, entretanto, em Joyce, Malcolm Lowry, Guimarães Rosa,<br />

adquire tonalidades descritivas, funciona como epítome ou resumo<br />

dos traços de personagens, exercendo função drástica como no<br />

poema, embora eriçada de ingredientes simbólicos. Esta economia<br />

interna do repertório imagístico, no romance, se explicita em Proust,<br />

ao afirmar de Albertine: “Ela era única e, portanto, inumerável.”<br />

Este poema em miniatura, quando isolado, perde seu conteúdo<br />

poético pela função que exerce no romance proustiano. O leitor já se<br />

sente saturado de informações vagas ou precisas sobre Albertine,<br />

figura caleidoscópica, cujas metamorfoses ovidianas excedem o<br />

número de estrelas nas galáxias. Mas, de repente, tudo que foi dito<br />

ou ficou subentendido acerca de Albertine – o seu temperamento de<br />

lésbica ou de heterossexual, ou seus impulsos, os seus passos<br />

rítmicos pela praia, as suas alegrias incontidas de jeune fille em fleur,<br />

os seus retraimentos, as suas traições, os seus subterfúgios – se<br />

condensa na imagem esplêndida: “Ela era única e, portanto,<br />

inumerável.”<br />

O que distingue a imagem poética do símbolo prosaico reside no<br />

caráter autotélico (que tem o fim em si mesmo) da primeira, e o feito<br />

heterotélico (que tem o fim fora de si mesmo) do segundo. Eis<br />

porque a imagem poética, sendo espontânea e natural, surge no<br />

poema com os atributos flagrantes da presença física, da densidade,<br />

do volume, do peso especifico.<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 104


Ela é auto-referencial, concentrada e não hetero-referencial,<br />

desconcentrada, centrípeta como o símbolo. A confusão entre<br />

imagem e símbolo, perpetrada por Cassirer, como endosso posterior<br />

de Suzanne Langer, está na base dos tortuosos tramites das doutrinas<br />

estéticas.<br />

Em Andanças, as imagens proliferam como enxames de abelhas.<br />

Entre inúmeras delas, citarei estratègicamente “águas taciturnas”,<br />

como exemplo vivo de propriedades interativa, em que o dissílabo<br />

“águas” atua sobre o quadrissílabo “taciturnas”, com efeito<br />

reversível. É claro que as “águas”, não sendo humanas, não podem<br />

ser “taciturnas”; no máximo seriam escuras ou sombrias. Se o sentido<br />

dicionarizável tivesse importância em poesia, a autora poderia ter<br />

dito “águas silenciosas”, o que não atinge o alvo, nem se enleva até o<br />

nível da expressividade poética.<br />

Mas “águas taciturnas”, embora represente expressão<br />

semanticamente imprópria, traz, no seu bojo, suficiente lastro de<br />

carga imagística, audiovisual, para suscitar o surto da evidência<br />

heurística que serve de suporte ao juízo estético. O poema autêntico,<br />

como “Metafísica”, tem na força das imagens, na sua drasticidade<br />

como sensações condicionadas, os dados intuitivos, as evidências de<br />

natureza criativa que a linguagem lírica explicita e veicula.<br />

Vejam bem: a “águas taciturnas” nada pode corresponder no mundo<br />

exterior. O coeficiente de realidade desta expressão decorre<br />

exclusivamente da representação visual de “águas” que, por serem<br />

“taciturnas”, nada ou pouco comunicam. O repertório visualizante de<br />

“águas” aglutina-se ao repertório auditivo de “taciturnas” e, através<br />

de contínuas interações, surge a imagem luminosa, rítmica e musical,<br />

ao mesmo tempo. O estudo da estratégia da decisão, em Dora, do<br />

seu sistema de preferências, dos seus critérios seletivos, constitui o<br />

cerne do juízo crítico como arte de penetração analítica.<br />

É esta estratégia da decisão, explicitada nos poemas em prosa, que<br />

será investigada nos seus variados aspectos. Em primeiro lugar, ainda<br />

a propósito do poema “Metafísica”, o paradoxo que ele gera decorre<br />

de que o seu título, prometendo uma temática que não será nem<br />

sequer tocada em qualquer dos versos, se torna, por isso mesmo,<br />

“metafísica”. A táctica Doriana de decisão consiste em fraude ou dolo<br />

consumado, que começa por enganar o leitor, desviado de seu rumo,<br />

à procura do “sentido” nas palavras, embaído nas suas expectativas,<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 105


com promessas que não se cumprem e intentos que não se realizam.<br />

E, com isso, Dora põe a nu a essência mítica do poema, a sua<br />

quididade ou natureza interna: o ludíbrio, o artifício, a deformação<br />

do real, o jogo lúdico, a trama caleidoscópica, embora conserve<br />

intactas as raízes sensoriais na base das imagens.<br />

Este jogo entre o concreto e o abstrato, entre a sensibilidade e a<br />

inteligência, entre o empírico e o racional consubstancia a técnica de<br />

decisão Doriana na factura equívoca e polivalente do poema.<br />

Surpreendê-la na ação mesma de elaborar seus artefatos líricos<br />

constitui tarefa da crítica, orientada por princípios técnicos, embora<br />

mantendo o seu privilégio de exercício livro nos domínios<br />

estratégicos da decisão.<br />

Em cursos sobre “Tecnologia e Decisão Estética”, procuro reivindicar<br />

para a crítica todas as características da Operação-Cultura. O método<br />

crítico, como o instrumento tecnológico, fornece aquilo que Matthew<br />

Arnold denominou a “atmosfera da atividade criadora”. Ora, a<br />

atividade criadora, sendo estética por sua natureza, investigada pelo<br />

crítico, transforma-se em arquitetônico estilística. Criação, em Arte, é<br />

expressão da forma, modulada pelo ritmo.<br />

Daí os liames apertados que ligam a Tecnologia à Arquitetônica<br />

Estilística e esta à construção da forma, gerada através de<br />

galvanização da expressividade temática pelo estilo. Receio muito<br />

que haja excesso de “programatismo” nas afirmações anteriores,<br />

apesar de poder alegar que não disponho de espaço para a podagem<br />

das arestas, amplificando as considerações sob aspectos relevantes.<br />

Fixando-me, porém, na estratégia de decisão do artista,<br />

complementada pela estratégia de decisão do crítico, certos pontos<br />

fundamentais devem ser esclarecidos. O primeiro diz respeito à<br />

situação singular dos poemas em prosa de Dora que pretendem<br />

ocupar posição intermediária no complexo de relações entre prosa e<br />

poesia. A autora, entretanto, até neste ponto faz obra original,<br />

porque esta parte de Andanças destoa de todas as experiências já<br />

feitas neste sector.<br />

A originalidade de Dora, que constitui a marca de Andanças, consiste<br />

precisamente em atingir, nestes poemas, certa posição que,<br />

participando do lirismo romântico exacerbado até o ponto de fusão,<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 106


faz poesia transfigurada em prosa, e prosa metamorfoseada em<br />

poesia.<br />

Tais metamorfoses, porém, preservam o clima poético através das<br />

imagens que, por não serem simbólicas, acabam eliminando, na<br />

textura lírica, o coeficiente prosaico de referências e de informações<br />

precisas. O clima comunicativo de “Tapeçarias”, que nada informa<br />

através de referências prosaicas, transmite o inefável, termo<br />

insubstituível para traduzir o que, no poema, não se pode veicular<br />

por outras palavras.<br />

O absurdo de se considerar o poema como um sistema cibernético,<br />

com seus mecanismos, auto-regulações e retroações, consiste<br />

precisamente em se admitir que ele veicule unidades informativas.<br />

Mesmo porque as unidades informativas do poema seriam<br />

elementos ou processos, por ele construídos, que não figuram<br />

explìcitamente no seu contexto.<br />

Ora, tudo que não figura no poema, nas suas palavras transfiguradas<br />

em imagens, seria completamente espúrio e inoperante, simples<br />

resíduos referenciais e simbólicos. Esses remanescentes simbólicos<br />

constituiriam a parte dicionarizável das palavras que o poeta elimina,<br />

pelo menos parcialmente, com a sua decisão metamorfoseante.<br />

É o que acontece em “Tapeçarias”, escrita provàvelmente com a<br />

intenção de mostrar a impossibilidade do monstro bifronte: poema<br />

em prosa. As rimas repetidas e cruzadas, o elance da textura lírica, o<br />

tom romântico de balada medieval, os motivos, arabescos e<br />

desenhos na tecelagem das tapeçarias, tudo isso, congregado na<br />

decisão de eliminar o supérfluo para reter o essencial, resulta na<br />

comunicação do inefável. Esta comunicação do incomunicável,<br />

através de estratégias de decisão, que criam vias de acesso ao<br />

inacessível, constitui o cerne e o núcleo da realização estética.<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 107


© Arcangelo Ianelli. Vibrações em vermelho 200-2001


© Arcangelo Ianelli. Vibrações em azul 200-2001


© Arcangelo Ianelli. Vibrações em branco 200-2001


3<br />

A poética de Dora, assediada pelo mistério, pelo apelo inaudível das<br />

forças telúricas, expande-se, nesta última parte de Andanças,<br />

intitulada “Margens”, através do verbo concentrado em estruturas<br />

densas de tensão interior, de vivências sôfregas de libertação e de<br />

desafogo. É esta contínua necessidade de libertar-se de si mesma, de<br />

ir além de seus próprios limites, que impregna os poemas de Dora do<br />

vigor dramático da litania, do canto litúrgico, do rito mágico nas aras<br />

de um templo pagão.<br />

Em “As palavras partiram”, a sua técnica artesanal, enriquecida de<br />

sutileza e de subintenções, explora o aleatório, o contingente e o<br />

acidental nos vocábulos para extrair a necessidade da ordem<br />

estética. Eis porque a estratégia de decisão, na base destes poemas,<br />

se transfigura em atividade criadora no arranjo, no ajustamento, na<br />

sequência concatenativa das palavras.<br />

O domínio exercido por Dora sobre as palavras explica a sua arte de<br />

convertê-las em evidencias heurísticas do seu artesanato, trabalhado<br />

interiormente por processos psicodinâmicos, que transformam crises<br />

e conflitos em serenas renúncias e abdicações. A calma e o repouso,<br />

em Dora, apesar do intenso fervor dramático de suas vivências, são<br />

aquisições do seu espírito filosófico, firmemente ancorado no porto<br />

existencialista.<br />

No primeiro poema de “Margens”, apesar da incerteza do rumo que<br />

as “palavras” poderiam tomar, ocorrem versos como estes:<br />

É preciso partir. A dúvida aborrece, enlanguesce com suas<br />

sábias indicações.<br />

Não há caminho preestabelecido. Nosso mapa é confuso.<br />

Nossa boca, uma pobre coisa para enumerar perigos, as boas<br />

ocasiões, os caminhos e descaminhos...<br />

E diante de nós, essa grande proa, um corpo de mulher com<br />

seus panejamentos encharcados.<br />

O traço básico de versos como estes, que têm qualquer coisa de<br />

goetheano, na sua serenidade olímpica, parece resultar da árdua<br />

conquista de uma quietude feita de desalento e de profunda<br />

renúncia. Renúncia diante de tudo, do seu próprio ser, de alegrias<br />

primeiras na infância, de revelações na adolescência, de exultado<br />

alvoroço na mocidade. Renúncia e fidelidade ao verbo lírico, ao ato<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 111


de criar, plasmando a forma densa na plástica e no modelo do poema<br />

absoluto, liberto de restrições.<br />

É o que Dora realiza em<br />

Essa alma que lavra em nossos peitos com suas garras sem<br />

piedade, essa alma equina, do Mar, neptuniana terá um dia<br />

seu porto de chegada?<br />

onde se observa a sua técnica de pôr entre parênteses o “sentido”<br />

direto e imediato das palavras para explorar a sua imagem de<br />

indeterminação no mundo do discurso poético.<br />

Mais adiante, em outros poemas, Dora introduz<br />

e páginas depois:<br />

e ainda:<br />

Logo a manhã nascerá<br />

sacudindo o seu manto crivado de pássaros<br />

De novo semeamos a amanhecida messe<br />

semente da infância, lírio da primeira aurora,<br />

campo onde o arado da dor não se imprimiu.<br />

Depois, em “Igreja de Ouro Preto”, adverte:<br />

Se entrares,<br />

verás no bojo escuro de vísceras sinuosas<br />

anjos de sexuada forma,<br />

de sorriso enigmático<br />

e nestes, como em outros versos, Dora projeta a igreja ouropreteana no<br />

emaranhado de suas impressões subjetivas:<br />

Lasciva torna-se a doçura<br />

das imagens que dançam na matéria alada.<br />

Aqui é registrada com a marca e a garra da gravura lírica, o misto de<br />

luxúria e de sentimento místico que a escultura e a talha do<br />

Aleijadinho misturaram com incomparável virtuosidade.<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 112


O juízo crítico que os versos citados transmitem se evola na forma<br />

intencionalmente drástica e, ao mesmo tempo, saturada de<br />

expressividade poética através do seu realismo intersensorial. O<br />

achado “Lasciva [...] doçura”, a que se acrescentam “imagens [...]<br />

dançam na matéria alada”, exprime, ao vivo, o barroco religioso, não<br />

através de símbolos prosaicos, mas sim através de transfigurações e<br />

de metamorfoses.<br />

O poema “Hölderlin”, embora não seja o último do livro, deverá<br />

fechar estas considerações sobre a poética Doriana, multifacetada,<br />

rica de aspectos, versátil em matéria de recursos e de técnicas. A<br />

versatilidade, característica da verdadeira poesia, as mutações<br />

bruscas, o imprevisto da combinação verbal, o inusitado e o<br />

predomínio dos “valores de choque” sobre os “valores de repouso”,<br />

segundo Valéry, tudo isso representa a essência da linguagem lírica.<br />

Mas o poema autêntico, como este sobre Hölderlin, nos faz<br />

defrontar, na base do realismo sensorial de imagens concretas, a<br />

figura do poeta alemão na força de sua presença física e na plenitude<br />

do seu estro:<br />

Onde não há chão<br />

tua raiz se adentra<br />

sugando a terra – seio apojado de tudo que será.<br />

Sòmente a leitura acurada das odes, dos hinos e das grandes elegias<br />

faz perceber o que há de profundamente hölderliniano nos versos<br />

citados. Dora adentra-se em Hölderlin, penetrando em seus<br />

mananciais, bebe o mesmo líquido que embriagou o poema<br />

germânico, despertando as suas visões. Comunga da mesma hóstia e,<br />

com sutileza e engenho, apreende a natureza última da mensagem<br />

hölderliniana:<br />

Sobre ti o Éter inclina, paterno,<br />

a fronte pensativa,<br />

tocando-te.<br />

E Hölderlin, tocado pelo Éter, dissolve o seu espírito conturbado em<br />

exaltações líricas:<br />

Tu, feito fonte, colina,<br />

ou rio corrente em meandros sussurrantes,<br />

tu, rocha, arquipélago,<br />

água oscilante das cisternas,


ou disperso nas flores da campina,<br />

fruto e mão que o recolhe,<br />

criança dedilhando velha cítara<br />

no centro de um paraíso inviolado,<br />

cercado de muralhas e pássaros cantantes nas ameias.<br />

É certo que Dora só extrai poesia da linguagem hölderliniana, sem<br />

aludir à formação filosófica do Poeta através da amizade de Hegel e<br />

de Schelling. O que interessa à autora de Andanças é o verbo lírico<br />

em plena efervescência, o surto do canto heroico em plena<br />

madrugada, o pean entoado por hordas dispersas, o destino trágico<br />

do Poeta ao mergulhar na loucura:<br />

Feriu-te o raio a fronte<br />

na invisível tormenta<br />

dos caminhos dispersos,<br />

das sendas, setas desferidas<br />

em confusos voos sem destino.<br />

Scardanelli curvo e lasso<br />

entre a poeira dos livros indistintos –<br />

amável, melancólica sombra<br />

ofuscada por seu próprio ser – sol desmesurado.<br />

Nestes versos, Dora feriu a tónica hölderliniana, majestosa e selvática<br />

ao mesmo tempo, o pathos helênico, a textura lírica impregnada de<br />

exaltação dionisíaca, através de hexâmetros e pentâmetros.<br />

Conseguiu o timbre inimitável do verso hölderliniano, o sentido<br />

plástico da forma, a estilística e o trajeto interplanetário.<br />

Em Hölderlin, o gosto pela Filosofia foi incutido por Hegel, que<br />

recebeu do seu amigo, em retono, o influxo da inspiração poética. Na<br />

obra de Alessandro Pellegrini acerca do autor de Patmos e de Brot<br />

und Wein, é assinalada a influência da dialética hegeliana sobre a<br />

dialética lírica de Hölderlin.<br />

Verifica-se, porém, que Hegel atou muito mais na poética<br />

hölderliniana como teólogo do que como filósofo ou dialética. O<br />

pensador germânico, na sua juventude e na sua maturidade –<br />

assinala Pellegrini –, pretendeu conciliar os dogmas cristãos com as<br />

imagens dos deuses da mitologia grega. O curso da dialética<br />

hölderliniana não era conceitual, nem demonstrativo, como em<br />

Hegel, pois se baseava nos mitos, nas apoteoses e nas alegorias.<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 114


Admite-se, entretanto, que a dialética hölderliniana seja<br />

psicodinamizada por processos, enquanto a dialética hegeliana é<br />

logicizada por operações. Seja como for, Hölderlin era um pensador,<br />

nem Hegel, apesar de ter escrito poemas, era um poeta.<br />

Apesar disso, há nos problemas hölderlinianos o jogo diabético,<br />

haurido em Hegel, mas completamente transfigurado pela carga<br />

sensorial das imagens. Ainda mais: embora o autor de Hyperion não<br />

desenvolvesse, na sua poética, o pensamento sistemático, como<br />

observa o ensaísta Hoffmeister, torna-se evidente que ele soube<br />

transformar a “ideia profunda em criação viva”.<br />

Ora, esta rara aptidão de retirar da ideia ingredientes sensíveis, que<br />

lastreiam o corpo da imagem, parece ser o núcleo mesmo do<br />

pensamento poético. É o que se observa nos versos hölderlinianos,<br />

extraídos de Sokrates und Alcibiades:<br />

Wer das Tiefste gedacht, liebst das Lebendigste<br />

(Quem pensa o mais profundo, ama o mais vivo)<br />

em que o Poeta, segundo Haering, “não exprime a ideia, mas encarna<br />

a própria ideia”. Não há expressão mais clara do que as palavras, no<br />

poema, como forma simbólica: veiculam conceitos ou ideias, mas<br />

através de seu repertorio imagístico coarctam o seu poder<br />

referencial, até o ponto de quase eliminar-lhes o sentido. a ideia,<br />

portanto, integra o poema, através da tensão conotativa entre<br />

símbolo e imagem, de que resulta o clima poético e o processo<br />

comunicativo do dialeto lírico.<br />

É o que se observa em Andanças, onde os nexos ideativos se diluem<br />

na carga imagística, condensada até o ponto crítico da irrupção<br />

através dos interstícios das palavras. O que Dora conseguiu realizar –<br />

em matéria de virtuosidade técnica – coloca-se na primeira linha da<br />

poesia feminina em nosso país, entre Cecília Meireles, a maga, e<br />

Henriqueta Lisboa, a sacerdotisa.<br />

* Este texto aparece publicado pela primeira vez na Revista Colóquio/Letras da Fundação<br />

Calouste Gulbenkian, edição 9, em setembro de 1972 e foi cedido pela Fundação para esta<br />

edição.<br />

<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 115


Vias de ver as coisas 2


Ianê Mello<br />

Rio de Janeiro – RJ<br />

Nascida no Rio de Janeiro. É educadora e pós-graduada em Pedagogia.<br />

Identificada com as diversas propostas em textos literários, escreve também<br />

com resultados diversificados. Seus textos incluem contos, crônicas, aforismos,<br />

haicais e poesias. Alguns deles são publicados na internet, em sites, blogs e<br />

revistas eletrônicas. Dentre os blogs que mantém estão Labirintos da alma,<br />

Outros poemas de expressão, Diálogos poéticos.


Encontro predestinado<br />

Assim quando me quedo<br />

em sonhos desfalecida<br />

em murmúrios inaudíveis<br />

me vem a ânsia de tudo querer<br />

Assim quando a espera<br />

se faz tarde sombreada<br />

nas palavras que se vestem<br />

numa esperança inquieta<br />

Assim quando me ponho a pensar,<br />

vestígios de um dia em sobressalto,<br />

assoladas incertezas se aquietam,<br />

desejos em vontades transformados<br />

Assim, somente assim, vislumbro<br />

numa luz difusa o fim do caminho,<br />

em passos percorridos outrora,<br />

sementes que plantei sem aviso.<br />

<strong>7faces</strong> – Ianê Mello │ 118


Pedro Belo Clara<br />

Lisboa– Portugal<br />

Pedro Belo Clara, nascido em Lisboa, Portugal, é autor dos livros de poesia A Jornada<br />

da loucura e Nova era. Além de colunista, membro de portais artísticos e prelector de<br />

sessões literárias, participou ainda, com suas poesias, em várias exposições de pintura<br />

e em coletâneas do gênero. Atualmente, é colaborador nas revistas literárias<br />

Fantástica e Amanhã ou Depois.


CIDADE<br />

I. A Neblina<br />

A neblina, em translúcidas caravelas,<br />

Para si reclama os domínios nocturnos,<br />

Assomando aos telhados e às janelas<br />

Num leve bulir de sussurros soturnos.<br />

Dormitando ao sabor de um cansaço,<br />

Jazendo em firmes colunas de betão,<br />

Num tempo em que o futuro é baço<br />

E o passado uma indisfarçável solidão,<br />

Encontro-te, cidade de melancolia,<br />

Covil de vultos ignóbeis e ardilosos<br />

Que anseiam pelo homicídio do dia<br />

Em recantos sombrios e silenciosos;<br />

E respiro o teu esboço progressista,<br />

Uma indefinição desprovida de viço,<br />

Uma palavra de inverosímil conquista<br />

Em elegia digna de povo submisso.<br />

São filhos teus essas sombras vadias,<br />

Essas brisas abatidas em final de revolta,<br />

Esses incontáveis corpos e almas vazias<br />

Toscamente cintilando à minha volta –<br />

Os homens, mudos como peregrinos<br />

Das estradas dos infindáveis caminhos,<br />

Na convergência dos pesarosos hinos<br />

Carpem as doridas mágoas sozinhos;<br />

As mulheres que, nas desertas vielas,<br />

Se vendem a quem as quiser obter,<br />

Das esquinas são pertinazes sentinelas<br />

Perdidas e entregues a um falso prazer.<br />

Cidade, morada de valores degradados,<br />

De Homens livres em rotineiras prisões,<br />

És presa fácil sob os olhares depravados<br />

Das rudes e desalinhadas habitações…<br />

<strong>7faces</strong> – Pedro Belo Clara│ 120


II. Os Caminhos<br />

Embrenho-me no labirinto urbano.<br />

Como se fugindo da sombria investida,<br />

Atravesso as longas galerias do profano<br />

Na perene presença da luz desvanecida.<br />

Sem rumo algum, levado pelo instante,<br />

Estendo a mão ao que é indistinguível,<br />

Deixando que me guiem, hesitante,<br />

À mais oculta e pura verdade possível.<br />

Tanto pulsar e sentir contraditório!<br />

Estagnada ideia entre partir e ficar…<br />

Pobres cobaias – lívidas! – do ilusório<br />

Ideal aludido em prol de um governar,<br />

Espectros de tempo nenhum errando<br />

Por lugares só por eles conhecidos,<br />

Ávidos sem porquê, assim lamentando<br />

Todos os lamentos já esquecidos.<br />

Sem permitir que a fadiga me vença,<br />

Decidido vou, como transporte fiel<br />

Da tocha que atiçará a vital crença,<br />

Trilhar as rotas dos caminhos do fel.<br />

Compadeço-me pelos rostos quietos<br />

Que por detrás das pálidas vidraças<br />

Miram o absurdo, de ânsia repletos,<br />

Embora reféns das próprias carapaças.<br />

Há mais do que a simples e traiçoeira<br />

Realidade que aqui vive aparenta…<br />

Assim, entre nós, na noite marinheira,<br />

Nasce uma conversa que acalenta,<br />

Em sua mudez, cada chama singela<br />

Que, de novo, parece brilhar viçosa.<br />

Talvez esta tocha tenha sido vela,<br />

Presença amiga na mágoa silenciosa.<br />

<strong>7faces</strong> – Pedro Belo Clara│ 121


© Arcangelo Ianneli. Geometric composition


III. As Vidas<br />

Vidas a ti chegaram e partiram, cidade,<br />

E muitas continuarão ainda sua jornada –<br />

Intrépidos viajantes de generosidade<br />

Pela frivolidade da alucinação quebrada,<br />

Em busca do que todos, por fim, almejam.<br />

Foste casa para quem em ti se abriga?<br />

Ou foste veneno das ervas que verdejam,<br />

Foice implacável de cada vida inimiga?<br />

Senhor de rosto enrugado e cansado,<br />

Vós que fostes um emigrante na fantasia,<br />

Vós que rejeitaste o vosso próprio fado,<br />

Dizei-me se espera pelo nascer do novo dia;<br />

Jovem de olhar alienadamente perdido,<br />

Que cheiras ao labor que aqui plantaste,<br />

Teu nome foi extinto e teu querer rendido?<br />

É ele que ecoa nas muralhas que criaste?<br />

Atravesso bairros, subo e desço colinas:<br />

Onde está a centelha que outrora brilhou?<br />

A pronta canção nos lábios das varinas,<br />

O saudar de cada rosto… Quem os furtou?<br />

Quem se esqueceu do sabor daquele vento,<br />

Aquele jeito tão singelo das altivas gentes,<br />

Aquele rio, desafiador a cada momento,<br />

A crença que cativava até os indiferentes?<br />

Suspiro, ainda que em efémero desânimo.<br />

Os raios da lua, brilhando por toque divinal,<br />

Trespassam a neblina. Que súbito ânimo!<br />

Benditos dedos de reflexos em puro cristal!<br />

Por ti me compadeço, triste cidade minha,<br />

Por teu doce olhar de azul tão profundo<br />

Que, agora, cansado de sonhar, definha.<br />

Ainda és quem abriu as portas do mundo?<br />

<strong>7faces</strong> – Pedro Belo Clara│ 123


IV. O Renascer<br />

Ornada pela luz das constelações míticas,<br />

Outrora as guias de gloriosas epopeias,<br />

Pareces – benditas essas forças místicas! –<br />

Querer tocar de novo as delicadas areias<br />

Das praias cujos aromas por ti pairaram<br />

Em tempos tão imensamente queridos –<br />

Padrões que os memoriais evocaram<br />

Em memórias de brilhos desvanecidos.<br />

Mas que se soltem as recordações antigas<br />

E se pronunciem esses nomes admiráveis!<br />

Que se quebrem barreiras, cantem cantigas<br />

De tempos verdadeiramente memoráveis!<br />

Navegadores, Poetas, Príncipes, Soberanos,<br />

Estadistas, Militares, Filósofos, Cientistas –<br />

Haverão outros modelos supra-humanos?<br />

Que valiosas e incontáveis conquistas!<br />

Ah, cidade que beija o rio, como desejaria<br />

Que hoje despertasses da noite eterna!...<br />

Em teu âmago tens a chave, a única via,<br />

Que de novo te incitará, capital fraterna.<br />

Mas, pelo forte e húmido vento da cidade,<br />

Uma guitarra vai, suavemente, tocando,<br />

Como um lágrima de imensa saudade<br />

Que por seu rosto se vai derramando…<br />

Das muralhas deste castelo observo eu<br />

Lisboa em pranto deveras silencioso,<br />

Como quem esquece o que outrora viveu<br />

E se entrega ao receio mais tenebroso.<br />

Não vês a nova manhã a querer romper?<br />

Que possa banhar esta Deusa, esquecida<br />

Na letargia de que agora está a perecer!<br />

Chegou a hora da missão ser cumprida…<br />

<strong>7faces</strong> – Pedro Belo Clara│ 124


Rosane Carneiro<br />

Londres – Reino Unido<br />

É autora de Excesso (edição da autora, 1999), Prova (Ibis Libris, 2004), Corpo estranho<br />

(Editora da Palavra, 2009) e Vate (Selo Orpheu, 2012). Editora e redatora com<br />

formação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Literatura<br />

Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atualmente doutoranda e<br />

pesquisadora em Letras do King’s College London. Participante de antologias e<br />

publicações impressas e virtuais diversas.


Transmissão<br />

pelo rádio chegam novas aladas de ti<br />

microfonia wireless de um<br />

provável irresistível estranhamento<br />

há muito não mais em voga por aqui<br />

misto de onda e alta frequência<br />

captação inequívoca de alguns bens do querer<br />

amplitudes moduladas pelo que não vejo<br />

mas percebo –<br />

de novo a longínqua e máxima voz<br />

a voz a voz a voz<br />

de um desejo<br />

<strong>7faces</strong> – Rosane Carneiro│ 126


Faltou a palavra<br />

pulou a cerca<br />

livre das amarras<br />

da lógica dicionária<br />

Escapou a palavra<br />

daquela frase vã<br />

e enfática a servir<br />

à rotina reacionária<br />

Foi-se a palavra<br />

escorregou escapuliu<br />

– e está certa:<br />

<strong>7faces</strong> – Rosane Carneiro│ 127


Dama de espadas na fronte<br />

Não é plausível olhar – examinar apenas<br />

Técnica e tecnologicamente o amor<br />

é para ases<br />

velozes<br />

Esgrima sobre gelo, a dama vive<br />

exata sobre saltos altos<br />

de racionalidade: naipe de valetes<br />

a seu dispor, maquinariamente<br />

sexy e só<br />

emociona-se no entanto quando<br />

chamada rainha<br />

─ sua meta é o rei<br />

do xadrez<br />

<strong>7faces</strong> – Rosane Carneiro│ 128


Carina Carvalho<br />

São Paulo – SP<br />

Carina Carvalho mora em São Paulo; é formada em Letras e trabalha com livros.<br />

Dança pelos dias e escreve desde que acreditou ser feita da matéria dos sonhos.<br />

Tem textos publicados no Portal Cronópios e nas revistas eletrônicas<br />

Mallarmargens, Trevo e Um Conto. Boa parte do que produz pode ser lida no<br />

seu blog Desastres Líricos.


floreios bem servem ao campo<br />

. caatinga<br />

o tipo de vegetação, me perguntas quando a íris fica amarela de sanidades e pende para o<br />

solo.<br />

afundei, digo.<br />

penso ser pedra interrompendo placidez, lançada com duas mãos e um coração úmido,<br />

tamanha a pancada no vão dos musgos. escorrego em cada desejo flutuante e escapa às<br />

falanginhas o mato rasteiro nas margens para ajudar a travessia. se minha boca se enche em<br />

verde, admito lascas nos dentes; a tua alegria sai aos borbotões pelas frinchas da arcada, e sob<br />

controle (para que na poça formada caibam dois apenas, isto decidi).<br />

mas baixo os olhos... é tão cristalina esta água! e a posse abranda. em corredeiras tudo se<br />

engole.<br />

a pergunta foi por conta do bom dia fechado em espinheiros,<br />

atinei.<br />

tudo era seco, e sobre isso que faria eu?<br />

<strong>7faces</strong> – Carina Carvalho│ 130


. maritacas<br />

desisti dos pêssegos<br />

por medo aos ferimentos.<br />

pesam muito à natureza as dores que os homens carregam em sacolas abafadas.<br />

às outras frutas fiz buracos na casca,<br />

e me movi branca pela polpa.<br />

pela manhã descobri que cantava com coragem:<br />

há no sumo quando desce a goela um quê de amor pelos que viajam.<br />

este dia quis sumir-se sonoro-suculento nas montanhas antes que lhe viesse o podre pelos<br />

maus-tratos.<br />

ou que maltratasse a si: o bico descendo forte no tórax, arrancando as penas desde o cálamo.<br />

<strong>7faces</strong> – Carina Carvalho│ 131


. esturricado<br />

quisera ele, do focinho pontudo à coda,<br />

um todo intacto.<br />

(de corpo quis perto o teu,<br />

para o lamento pelos que desconhecem estrada.)<br />

éramos perigo em zigue-zague nas duas vias<br />

do sonho imenso.<br />

carimbaram-no em vermelho, pois, no fim de um raio de sol.<br />

pudesse antes, pulularia: veja, cidadã, um gambá é isto!<br />

<strong>7faces</strong> – Carina Carvalho│ 132


. para não calejar<br />

ao fim e ao cabo, eram-me fortes as marcas nos pés. mapas da calmaria impressa: ficou<br />

gravado teu equilíbrio nas pedras.<br />

era o verde vasto, e era tanto, que a carne em contraluz pareceu esmaecer.<br />

quando não éramos fato, e éramos pouco, fiquei com ideia de títeres: de cada membro sairiam<br />

galhos finos cujo controle da outra ponta a alegria desconhece e sobre ele não se aflige.<br />

tanto ofereço para que escrevas... à minha sola e à palma chamo papiro.<br />

<strong>7faces</strong> – Carina Carvalho│ 133


Paulo Lima<br />

Aracaju – SE<br />

Paulo Lima estudou economia, mas cedo desistiu do equilíbrio dos números e preferiu<br />

o desequilíbrio das palavras. Tornou-se jornalista. Escreve poesia e contos.


acaso<br />

o inseto<br />

traça o traço<br />

como uma seta<br />

meu braço<br />

é<br />

sua meta<br />

miro o mistério<br />

que me visita<br />

meu braço<br />

é<br />

sua pista<br />

um inseto que<br />

cai da árvore<br />

é coisa banal<br />

mas se tal criatura<br />

me toca o braço<br />

eis que pedra filosofal<br />

mistério etéreo<br />

<strong>7faces</strong> – Paulo Lima│ 135


inventório<br />

escrevinhar<br />

poemares<br />

palavrárias<br />

registrário<br />

caminhares<br />

estradárias<br />

arfãs<br />

cotidianário<br />

percepçãs<br />

<strong>7faces</strong> – Paulo Lima│ 136


Natalia Turini<br />

Londrina – PR<br />

Artista visual multimídia. Natural de Jaú, interior de São Paulo, sempre transitou<br />

entre os diversos meios de expressão artística, mas foi após sua mudança para<br />

Londrina - cidade onde reside desde 2006 - que começou a relacionar-se mais<br />

intensamente com outras linguagens, sobretudo depois de ingressar no curso<br />

de Artes Visuais Multimídia. Dentre suas produções estão fotografias, poesias,<br />

ilustrações, instalações artísticas e objetos de arte.


© Natalia Turini. Solúveis - Passagem


SOLÚVEIS<br />

I - Passagem<br />

Restituindo-me<br />

do real.<br />

Vou ali sonhar.<br />

Sou o estado de entrega<br />

fora da normalidade.<br />

Desvanecendo lentamente<br />

a carne em vigília<br />

passagem<br />

introspecção diária-noturna.<br />

Despeço-me.<br />

<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 139


© Natalia Turini. Solúveis - Devaneio


II – Devaneio<br />

Frames<br />

de um modo imaginoso.<br />

O ato de devanear<br />

em sublime estado da alma<br />

extra-sensorial.<br />

Fluidos inorgânicos<br />

solventes utópicos.<br />

Lugares completamente cheios de imagens<br />

são pixels sobrepostos na liquides da tinta<br />

transparências com gosto<br />

o passado já vivido<br />

encontro-me.<br />

<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 141


© Natalia Turini. Solúveis - Pesadelo


III – Pesadelo<br />

Ruídos<br />

depararam-me<br />

eles estavam ali<br />

e dali não saíam.<br />

Marasmos<br />

cascos, cacos e restos estagnados<br />

progressivos<br />

transitórios.<br />

Sinto-me desconfortável<br />

aonde estou.<br />

Despeço-me<br />

<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 143


© Natalia Turini. Solúveis - Memória


IV – Memória<br />

Incorporação das brumas:<br />

nevoeiro, fumaça e incertezas.<br />

Reminiscências<br />

armazenadas pela existência,<br />

mesmices vitais<br />

desgastadas pelo tempo<br />

agora reconhecida.<br />

Vejo imagens despercebidas,<br />

arquivos esquecidos.<br />

Tenho lembranças de palavras<br />

palavras que nunca foram pronunciadas.<br />

São nuvens liquidas em transe.<br />

Perco-me em memória.<br />

<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 145


© Natalia Turini. Solúveis - Despertar


V – Despertar<br />

A despedida<br />

o inarmônico do despertar<br />

na profundidade da coisa imaginada.<br />

Lembro do gosto daquilo que não vi.<br />

Escuto o som daquela manhã,<br />

sinto cheiro de realismos.<br />

Dissolvo –me<br />

em impressões efêmeras.<br />

A flor que murchou no mesmo dia em que desabrochou.<br />

<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 147


Luís Garcia<br />

Tomar – Portugal<br />

Natural de Linhaceira, Luís Garcia nasceu em 1973 na cidade de Tomar. Mestre<br />

em Informática Educacional pela Universidade Portucalense é Consultor de<br />

Informática e Formador nas áreas de Informática e Formação de Formadores.<br />

Premiado em diversos concursos literários nas categorias de Prosa e Poesia<br />

entre 1989 e 2011, publica o primeiro livro de ficção em 2008, A lenda contada<br />

de uma vida escondida. Tem prosa e poesia publicadas em Revistas Culturais e<br />

Coletâneas no Brasil, Portugal, Espanha, Uruguai e Colômbia. Publica em 2010 O<br />

encenador de vidas, um romance que obtém o 3º lugar no I Concurso Literário<br />

Best Seller Bubok.


Sentidos<br />

Queimei a ponta dos dedos,<br />

passei a mão<br />

pelas tuas palavras<br />

e o tapete preencheu-me<br />

a desenho de fumo e outras cores!<br />

Os meus olhos saíram<br />

e correram daqui para fora,<br />

o chão mexe-se com demasiada<br />

insensatez,<br />

se eu pudesse segurava-me<br />

nas tuas mãos.<br />

Dei por mim a calar<br />

um sorriso ridículo, teimava<br />

em assaltar-me, um exército<br />

de concertinas,<br />

um sabor antigo enche-me<br />

de surrealismo.<br />

Sou o estranho que me observa.<br />

Os cães ladram ao fundo da rua.<br />

Acordei a pensar<br />

numa arma e fui lavar<br />

as janelas da sala.<br />

Deste lado posso espreitar-te<br />

nos meus ouvidos.<br />

Agachei a tua imagem e adormeci.<br />

Que sobra afinal para lá do pavor?<br />

Os outros amaram-se na estrada<br />

mas agora já ninguém sabe…<br />

O herói da máscara envelheceu<br />

e existe um aplauso para a nossa ficção.<br />

Está frio agora, mas daqui a nada<br />

a verdade é do avesso.<br />

Sou eu de certeza,<br />

mas também não sou!<br />

<strong>7faces</strong> – Luís Garcia│ 149


Meia dúzia de coisas podem deprimir uma pessoa feliz<br />

Perdeu os lábios<br />

entre a pele e a carne.<br />

Levantou paredes<br />

para contornar uma pergunta.<br />

Não se fazem diálogos<br />

sem sinais de pontuação!<br />

Ouviu o segredo<br />

e desembrulhou o sotaque,<br />

depois engoliu<br />

o sabor a nada<br />

de um trago apenas,<br />

como se soubesse<br />

tudo de cor.<br />

Inventou um futuro<br />

e entrou nele,<br />

daqui a pouco<br />

tocam as doze,<br />

mas podiam ser três.<br />

As mãos foram lá<br />

e voltaram.<br />

Puxaram a porta<br />

com força<br />

e desfilaram vaidades<br />

do tamanho<br />

de uma noz moscada.<br />

Ficou a sensação<br />

de doce,<br />

bem fechada,<br />

talvez seja tudo<br />

o que se guardou.<br />

<strong>7faces</strong> – Luís Garcia│ 150


In-somnia<br />

A sala do tempo enfeitada.<br />

Esquecido pelas paredes<br />

vai o pormenor;<br />

abafado num ritmo crescente,<br />

seco, de quem corre,<br />

ainda, com um sentido!<br />

No aumento produzem-se insónias!<br />

Talvez demore menos<br />

a contagem dos lugares.<br />

Somos tão poucos<br />

quando fugimos do sono.<br />

Turva a mente,<br />

aquela sequela de momentos<br />

em que se percebe<br />

exatamente,<br />

qual a fatia de realidade<br />

que nos calhou.<br />

Bate a porta do frigorifico,<br />

a madrugada<br />

já se soltou.<br />

Adoça os lábios<br />

e conforta o apetite,<br />

acontece uma pequena viagem<br />

no tempo e no chão frio<br />

até me abraçar de novo,<br />

na cama podiam ser equações quânticas.<br />

Desdobrei os dedos,<br />

invencíveis companheiros do medo,<br />

quantas foram as vezes<br />

que me encontrei assim?<br />

<strong>7faces</strong> – Luís Garcia│ 151


Estudos e<br />

devaneios<br />

por Jordny


Jordny.<br />

Artista nascido em 1988 em Planaltina, uma cidade satélite de Brasília DF.<br />

Aprendeu a desenhar muito cedo e desde então vive lado a lado com essa que considera um dos pilares<br />

para seu desenvolvimento pessoal , como pensador e humano.<br />

Atualmente cursa o último ano de Arquitetura e Urbanismo e continua a produzir suas obras pintadas e<br />

desenhadas."<br />

Jordny nasceu em 1988 em Planaltina, uma cidade<br />

satélite de Brasília, Distrito Federal. Aprendeu a<br />

e peço que me mande o link para conhecer seu trabalho.<br />

desenhar muito cedo e desde então vive lado a lado<br />

com essa que considera um dos pilares para seu<br />

desenvolvimento pessoal , como pensador e<br />

humano. Atualmente cursa o último ano de<br />

Arquitetura e Urbanismo.<br />

Para esta edição do caderno-revista <strong>7faces</strong>, o autor<br />

cedeu um conjunto de trabalhos já apresentados<br />

publicamente no seu blog Jordny Art. A esse<br />

conjunto o próprio Jordny intitula por Estudos e<br />

devaneios, seja pela marca do traço inacabado, seja<br />

pelo tom simbolista e surreal dos desenhos.


© Jordony. Sem título. Fev. 2011.


© Jordony. O artista e sua quimera. Abril 2011.


© Jordony. Girassol menor. Abril 2011.


© Jordony. Árvore musical. Março. 2011.


© Jordony. Jornada ao subconsciente com nuvens invertidas. Março. 2011.


© Jordony. Devaneios n.5 Fev. 2010.


© Jordony. Devaneios n.15 (de baixo para cima). Março. 2010.


Um caderno<br />

para Dora


O cavalo azul<br />

Por Alexandre Bonafim<br />

à memória de Dora Ferreira da Silva<br />

Um cavalo corta o corpo<br />

de meus ancestrais perdidos<br />

um cavalo corta o peito,<br />

fere o coração ferido<br />

Lara de Lemos<br />

Et beaucoup n'ont pas la chance<br />

De le voir passer un jour<br />

Le cheval bleu<br />

Gilbert Becaud<br />

Um tropel de silêncio e eternidade<br />

desdobra o ar em acordes levíssimos,<br />

feitos de orvalho e bruma.<br />

As crinas vão desatando o infinito,<br />

as estrelas, a solidão mais aguda.<br />

Eis o instante do cavalo azul.<br />

Eis a sagração do céu em nós.<br />

De seu dorso nascem os desastres.<br />

Procelas tatuam o seu plexo.<br />

Nos seus flancos levitam violinos de água,<br />

teclas de pólen, sinfonias de esquecimento.<br />

Jamais a morte poderia nos assaltar<br />

com maior doçura, com mais bela música.<br />

Jamais o sofrimento teve olhos tão dóceis,<br />

cílios de mel e vinho.<br />

Nunca o instante teve essa luz raríssima,<br />

desenhada pelas puras formas<br />

de um relâmpago cego,<br />

diamante vivo a deslumbrar a noite.<br />

A rutilância dos segundos galga nossa pele,<br />

a terra olorosa do corpo.<br />

Em chamejante espiral de nuvens,<br />

o cavalo azul nos enlaça em seu fulgor,<br />

na ternura de uma violência incontida,<br />

dança de galáxias e sóis delirantes,<br />

vórtice febril, iluminado.<br />

Ao toque do seu pêlo de súbitos incêndios,<br />

Na década de setenta,<br />

Dora Ferreira da Silva<br />

consagrou à sua<br />

importante revista o<br />

nome Cavalo Azul. Tal<br />

título ela extraiu dos<br />

mitos etruscos. De<br />

acordo com esses<br />

mitos, o cavalo azul<br />

era o ser mágico<br />

responsável por levar<br />

a alma dos mortos à<br />

morada celeste. Em<br />

homenagem à grande<br />

poeta, à criadora da<br />

revista Cavalo azul,<br />

Alexandre Bonafim<br />

escreveu este poema.


queimamos nossa alma no eterno,<br />

aderimos nossa pele ao infindável.<br />

Festa múltipla, embriaguês da febre,<br />

somos a celebração dessa sonâmbula magia,<br />

pulsar sagrado desnudando-nos para as tempestades,<br />

para a decantação dos mares selvagens.<br />

Eis o instante da morte aguda.<br />

Eis o êxtase do tempo soberano.<br />

O cavalo azul nos visita<br />

com sua aparição de lanças desnudas,<br />

de lâminas agudas, mil raios<br />

a trespassarem nossas feridas.<br />

Quando suas patas arpejam a terra,<br />

as sementes fecundam os sonhos,<br />

despontam do pó ramos e milagres,<br />

frutos abençoam a encantação do amor:<br />

a cavalo marinho e os oceanos,<br />

o cavalo turquesa e os mares,<br />

o cavalo de âmbar e os corais ardentes.<br />

Reluz na noite um fulgor de adaga desnuda,<br />

fulgente aparição a cortar o sonho dos mortos,<br />

o sono das estrelas marinhas: cavalo azul<br />

a relampejar pelos caminhos o tempo das cicatrizes.<br />

Sua crina flamejante, seu ígneo peito, seduzem o luar,<br />

ampliam pelo infinito a cintilação das marés.<br />

Espectro de labirintos vazios,<br />

ele galga a espuma das praias,<br />

a agonia dos condenados à morte.<br />

Ele dardeja a dança dos barcos,<br />

o bordado das ondas,<br />

a solidão dos marinheiros em febre.<br />

Os náufragos, os miseráveis, os afogados,<br />

clamam pela salvação desse sopro de chuvas,<br />

desse maremoto de coices ardentes.<br />

Serenamente soa pela brisa seu pulsar de sândalo,<br />

o seu galope de prismas, delicado aroma<br />

do vinho a incendiar os crepúsculos.<br />

Ele adeja sobre o desespero, salvando-nos<br />

da carne, do medo, do tempo.<br />

Ele nos resgata do pó humano, soerguendo-nos<br />

à sagração das searas fecundas.<br />

Quando seu resfolegar nos arrebata,<br />

nos resgata de nossos pulsos,<br />

ressuscitamos no clarão dos rubis,<br />

na magnitude da aurora boreal.<br />

Desde o nascimento estamos consagrados<br />

a essa epifania de silêncio e mel:


o cavalo andaluz e o eclipse lunar,<br />

o cavalo cigano e os cometas partidos,<br />

o cavalo de absinto e o mercúrio dos astros.<br />

Galopo no dorso das marés,<br />

meu corpo costurado nos ciclones,<br />

meu torso cravado em tua pele, em teu pelo lunar.<br />

Galopante aridez, eu só sei pulsar no teu plexo,<br />

na fecundidade dos abismos.<br />

Corpos em sôfrega transpiração,<br />

corpos em uníssono, rios a confluírem<br />

num delta de vertigens, foz de enchentes<br />

desvairadas, de correntezas alucinadas.<br />

Possuído pela lâmina dessa fúria,<br />

transmuto-me na energia a cegar<br />

as lanças, os ocasos, os labirintos.<br />

Sou o ser pleno a exaltar-te,<br />

és o que sou, o que fui e serei.<br />

Consagro-me à graça dessa comunhão,<br />

pela qual sou o universo e o nada.<br />

Nessa terra me deito, navego,<br />

nessa pedra me enterro, respiro,<br />

perco-me nesse instinto, nesse espasmo,<br />

para ser o fogo dos corais,<br />

azul febril de infinita iluminura.<br />

Cavalo marinho, dardejante quartzo,<br />

em tuas crinas de ágata, de prata,<br />

queimo a palavra da última estrela,<br />

rasgo o fulgor do teu transe,<br />

da tua clarividência,<br />

pois a morte se fez para os eleitos,<br />

para os profetas, os que sabem da finitude<br />

pelo íntimo do fruto, pelo cerne da chuva.<br />

Eis o pulsar da fúria e das catástrofes:<br />

o cavalo opalino e as estrelas,<br />

o cavalo candente e a poeira dos astros,<br />

o cavalo de vidro e os veleiros incendiados.<br />

Soou a hora derradeira e primeira.<br />

Eis o momento dos vendavais,<br />

do estertor dos cataclismas.<br />

Eis o que em nós germinou<br />

antes do nascer das sementes:<br />

nossa morte, cavalo azul a cortar o céu,<br />

a lançar nosso destino aos astros,<br />

onde a infância nos abraça novamente;<br />

nossa morte, corcel cravejado de safiras,<br />

noite mais densa que as rochas,


onde o azul é harpa de cristais partidos,<br />

batel de marinhas esmaecidas.<br />

A sombra extrema desenha nosso rosto<br />

no vazio de outro rosto.<br />

A sombra extrema, fruto túmido,<br />

pleno, explode nosso íntimo,<br />

dissolvendo-nos na fulguração do eterno.<br />

Eis o momento do cavalo azul.<br />

Eis a hora da ressurreição das marés.<br />

Um tropel de sinfonias e plumas<br />

dardeja nossa carne, rasga nosso sêmen.<br />

O cavalo azul aflora dos abismos,<br />

submerge dos desastres, germina das montanhas.<br />

Em sua sede bebemos nosso avesso.<br />

Em sua fome sorvemos nosso mistério.<br />

Eis a travessia impossível,<br />

onde todo homem não caminha,<br />

porque não tem pernas, nem pés.<br />

Eis a travessia amputada,<br />

pasto de enigmas, partitura dos sonhos,<br />

onde somos cegos em nosso destino cego.<br />

Do fecundo nada, do absoluto silêncio,<br />

nasce essa música cristalina, puríssima:<br />

o cavalo celeste e as enchentes,<br />

o cavalo etrusco e os anéis de saturno,<br />

o cavalo de água e os arquipélagos selvagens.


Cumplicidade<br />

Por Soares Feitosa<br />

para Dora Ferreira da Silva<br />

Chamar pássaros<br />

com alpiste de amá-los livres,<br />

procuradores eles serão,<br />

ad juditia,<br />

ad negotia,<br />

pleni,<br />

plenipotenciários,<br />

procuradores meus,<br />

asas livres aos meus azuis.<br />

Eles me pousam os parapeitos:<br />

uma sombra,<br />

tem que haver uma sombra cúmplice:<br />

seja de aproximar,<br />

seja de chegar bem perto<br />

– parece que é.<br />

o que garante o medo<br />

é o gesto das duas mãos,<br />

as duas,<br />

conchadas de pegar<br />

em quase...<br />

a alma do pássaro<br />

– não, não:<br />

"avoe, meu bichim",<br />

que não lhe devo... –<br />

A intimidade é sutil<br />

(dos pássaros),<br />

não só o deles:<br />

é sutil<br />

quando estremece<br />

e pousa.<br />

Sempre.


Tzvietáieva e o céu do poeta<br />

Por Donizete Galvão<br />

Para Dora Ferreira da Silva<br />

Aproveite agora que o filho bateu a porta<br />

e saiu a trabalhar para seus senhores:<br />

arme a forca com precisão e calma de poeta.<br />

Que país ouvirá sua voz dissonante,<br />

sempre em vigília, a quem nada contenta?<br />

Que o corpo seja jogado na vala-comum,<br />

sem necessidade de qualquer cerimônia.<br />

A poesia<br />

- corpo que ganha espírito<br />

espírito em corpo encarnado -<br />

entrará inteira, imaculada,<br />

no reino onde não existe julgamento.


Último outono<br />

Por Donizete Galvão<br />

à Dora Ferreira da Silva<br />

A acácia insiste em derramar seus cachos amarelos.<br />

O verão já passou e deixou os estragos de uma ventania.<br />

Em vão, espalmei as mãos em busca de um contato.<br />

Choveu forte em seu jardim nestas últimas semanas.<br />

Nenhuma mensagem ultrapassou a barreira dos tijolos,<br />

nem impregnou os tubos e metais de sua cama fria.<br />

Não peço um outono a mais para você.<br />

Só mais um pedido: Átropos, que tanto hesita e demora,<br />

corta logo o fio que se esgarça em agonia.<br />

Este poema tem uma história<br />

estranhíssima como tudo o que envolve a<br />

Dora. Eu escrevi no dia da sua morte, dia<br />

6 de abril de 2006. Acabei lá pelo meio dia<br />

e uma hora ou duas depois soube de sua<br />

morte. Ela estava em coma há vários dias.<br />

Eu não acredito muito nessas coisas de<br />

comunicação, mas ela sim. Tentei, então,<br />

me comunicar com ela. Pedia para sonhar<br />

alguma coisa. Não aconteceu nada. Nossa<br />

ligação sempre foi através da poesia. Eu<br />

fiz um plaquete para a missa de sétimo<br />

dia e acho que li na homenagem na<br />

própria casa dela, em primeiro de julho,<br />

rua José Clemente.<br />

Eu ainda acho doloroso recordar a minha<br />

amizade com a Dora. Comecei a<br />

frequentar a casa dela em 96. Ela saía<br />

pouco. Dos poetas que conheci, ela era o<br />

único que respirava poesia<br />

permanentemente. Estava sempre com a<br />

mente aberta para a poesia. Diferente de<br />

nós, que temos sucessivas crises com a<br />

palavra, ela tinha verdadeira convicção do<br />

poder da palavra poética. De uma certa<br />

maneira, não era moderna. Era eterna.<br />

Não tinha a negatividade que o poeta<br />

moderno traz consigo. Era solar. Estava<br />

muito ligada aos poetas românticos<br />

alemães como Hölderlin, a poetas difíceis<br />

como Rilke e Saint John Perse. A poesia<br />

dela é sempre de alto voo, sublime, mas<br />

nunca parece forçada. Às vezes, penso<br />

que uma parenta dela é a Sophia de Mello<br />

Breyner-Andresen. Ambas têm a mesma<br />

paixão pela Grécia, pela natureza, pela luz<br />

mediterrânea. Dora nunca perdia tempo<br />

com frivolidades ou fofocas. Sempre<br />

ensinava muito, mas sem ter um jeito<br />

professoral. Bastava entrar na casa dela,<br />

rodeada de verde, e a realidade da rua<br />

parecia ficar distante. Ela sempre<br />

trabalhando, sempre traduzindo. Da<br />

última vez que a vi traduzia os líricos<br />

gregos. Sempre animada, vitalista, cheia<br />

de energia criativa. Quem conviveu com a<br />

Dora sabe o privilégio que isto significava.<br />

Um tanto aérea para vida prática, mas<br />

ligadíssima e intensa nas questões da<br />

poesia. Nas cartas para ela, Drummond a<br />

chamava de “Dora Poesia”.<br />

Dozinete Galvão em Entrevista a Antônio Donizete Pires e<br />

Solange Cardoso Yokozawa. Revista Texto poético, out.<br />

2010.


Vias de ver as coisas 3


Paula Cajaty<br />

Rio de Janeiro – RJ<br />

Paula Cajaty, escritora carioca nascida em 1975, é advogada por formação<br />

acadêmica, mas desde cedo se assumiu escritora. Em 1995 venceu o “Por um<br />

poema de amor – concurso de poemas: coletânea”, organizado pela Prefeitura<br />

do Rio de Janeiro, com Ferreira Gullar e Suzana Vargas no corpo de jurados. Em<br />

2008, publicou pela Editora 7Letras seu livro de estreia Afrodite in verso; depois,<br />

em 2010, lança Sexo, tempo e poesia, pela mesma editora. É, hoje,<br />

colaboradora da Revista Aliás e da Revista MundoMundano, parceira da<br />

agência Shahid Produções Culturais e colabora no Jornal Rascunho.


o corpo sobre tudo<br />

o corpo sobretudo<br />

limite e fronteira<br />

filtro pó estrada<br />

caminho trincheira<br />

o corpo sobre o corpo<br />

novo<br />

onde se alcança<br />

outro<br />

onde suporta<br />

chão<br />

onde se cala<br />

fogueira<br />

silêncio. sobretudo quando<br />

o corpo jaz<br />

sobre a poeira<br />

sobre a chama toda<br />

sobre a aurora silenciosa<br />

alvissareira<br />

de uma madrugada de junho.<br />

<strong>7faces</strong> – Paula Cajaty│ 173


Nuno Júdice<br />

Lisboa – Portugal<br />

Nuno Júdice nasceu em abril de 1949. Licenciou-se em Filologia Romântica pela<br />

Universidade de Lisboa, doutorado pela Universidade Nova. É Conselheiro<br />

Cultural da Embaixada de Portugal e Diretor do Instituto Camões em Paris<br />

(França). Estreou na poesia em 1972 com A noção de poema. Em 1985 recebeu<br />

o Prêmio Pen Clube, e cinco anos mais tarde, o Prêmio D. Dinis da Casa Mateus;<br />

em 1994, recebeu o prêmio da Associação Portuguesa de Escritores pela<br />

publicação de Meditação sobre ruínas, livro que também foi finalista no Prêmio<br />

Europeu de Literatura Aristeion. Como tradutor, verteu ao português autores<br />

como Corneille e Emily Dickinson. Tem extensa obra, com mais de três dezenas<br />

de títulos em poesia, mais de dezesseis livros de ficção, uma dezena de ensaios<br />

e quatro peças de teatro, entre outras publicações esparsas em revistas e<br />

antologias. O conjunto de poemas enviados à <strong>7faces</strong> é inédito.


À noite, a cabeça é um quarto escuro<br />

À noite, a cabeça é um quarto escuro<br />

para quem entra nela sem uma luz acesa,<br />

e sente os travesseiros a voarem pelo ar,<br />

as portas a baterem sem se saber porquê,<br />

e gritos que vêm de dentro de quartos<br />

e salas que ficam lá para o fundo, onde<br />

só os sonhos se passeiam.<br />

Adormeço e acordo, à noite, e a cabeça<br />

não muda, com sombras a correrem de<br />

um lado para o outro, mascarados a<br />

espreitarem por trás de velhas cortinas, e<br />

palavras que andam à volta das mesas,<br />

à espera que alguém as apanhe, e faça<br />

com elas bolas de sabão que se desfazem<br />

de encontro aos pensamentos.<br />

À noite, fecho à chave a porta da cabeça,<br />

e ninguém lá entra, nem eu próprio, para<br />

não tropeçar em tudo o que lá tenho.<br />

<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 175


© Hélio Jesuíno


Enigma quotidiano<br />

Avanças lentamente ao longo do muro da estação,<br />

já na rua. Fumas um cigarro que deixas durar, para<br />

que possa chegar ao fim do passeio que dá para<br />

a estrada. O vento entra pelas mangas da blusa<br />

sem botões na manga, e abre-as como se fossem<br />

velas, transformando o teu corpo em barco. O dia<br />

de sol cai sobre ti, e quase poderia ouvir a tua voz<br />

sem atravessar a rua, para te perguntar quem és,<br />

porque andas tão devagar, porque fazes o cigarro<br />

durar até ao fim do caminho. Mas o vento levaria<br />

para longe as tuas palavras, e a única resposta<br />

seria a inquietação dos teus olhos perante um<br />

desconhecido, a querer saber o que nem tu,<br />

alguma vez, saberás. Volto-me, então, e sigo<br />

o meu caminho para não te ver chegar ao fim<br />

da esquina, e voltar atrás, como se quisesses<br />

saber quem eu sou, e porque andei tão devagar,<br />

do outro lado da rua, a olhar para ti como<br />

se te conhecesse, e soubesse o que querias de mim.<br />

<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 177


© Hélio Jesuíno


Marcadores de livro<br />

De dentro de um livro há muito arrumado,<br />

caíram dois bilhetes para o segundo<br />

balcão de um cinema que já não<br />

existe, e para um filme que não sei qual<br />

foi. O que sei é como se subia para esses balcões,<br />

de mão dada, já com a sala às escuras,<br />

e o que se fazia enquanto o filme corria,<br />

e talvez visse melhor o rosto de quem estava<br />

ao meu lado, à luz que vinha do ecrã, do<br />

que o próprio filme. Vendo a data do bilhete,<br />

o que vejo é a sombra de quem me acompanhou<br />

nessa ida ao cinema, e a queixa por o filme<br />

ter acabado demasiado depressa, com<br />

a corrida para o autocarro e o regresso<br />

a casa. Assim, volto a meter os dois bilhetes<br />

de cinema dentro do livro que andava<br />

a ler na altura, e ao ver as páginas que<br />

ficaram por ler, posso contar cada minuto da vida<br />

que ganhei ao poupar nessa leitura, que só<br />

hoje recomeço, para novamente a interromper<br />

quando me tiras o livro da mão.<br />

<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 179


Uma imagem do ser<br />

Na sua última, na sua mais completa<br />

visão, traçou o que lhe pareceu ser<br />

um retrato do fundo do seu espírito,<br />

onde lhe parecia ter apercebido<br />

uma sombra do que seria a própria<br />

alma. Queria provar a sua existência,<br />

demonstrar claramente que não<br />

era embuste, crença, simples<br />

ilusão, o que outros consideravam<br />

ser o reflexo do divino no homem,<br />

ou seja, aquilo que do corpo se distingue<br />

não por ser outra coisa, mas a sua<br />

verdade. No entanto, quando olhou<br />

para o papel, estava em branco.<br />

Distraíra-se. Escrevera no vazio; ou<br />

esquecera-se de encher a caneta.<br />

<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 180


© Hélio Jesuíno


O piloto da barra<br />

Tinha o ar distante e austero de quem recebe<br />

no rosto os ventos do mar, e se dizia uma palavra<br />

só ele a ouvia. No canto da mesa onde estava,<br />

olhando para as conversas e sacudindo<br />

a cabeça por nada ouvir, fazia parte de outro<br />

mundo. «Foi o rio que o pôs surdo», disse<br />

alguém; «foram os gritos das gaivotas»,<br />

corrigiu a mulher que saiu de ao pé dele e<br />

atravessou a sala, com o olhar dos homens<br />

a persegui-la. «Faz versos», disse-me<br />

o amigo, «e guarda-os só para ele». A noite<br />

continuava o seu caminho. A mulher<br />

não voltou. E ele segurava o copo ainda<br />

cheio de bagaço, como quem segura o leme<br />

e não sabe quando, nem onde, irá chegar.<br />

<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 182


Amosse Muscavele<br />

Maputo – Moçambique<br />

Amosse Eugenio Mucavele nasceu aos 8 de julho de 1987 em Maputo-<br />

Moçambique; membro fundador do Movimento Literario Kuphaluxa, sonha em<br />

ser poeta, cronista, e contador de sonhos. Faz parte da equipe editorial da<br />

Revista Literatas – Revista de literatura moçambicana e lusófona, colabora no<br />

Pavilhão Literário Singrando Horizontes, Academia de Letras do Paraná, Jornal<br />

Coruja. Organizou a antologia da nova poesia moçambicana publicada na<br />

Revista Zunai. Tem poemas publicados na Revista Eutomia e Linguística da<br />

Universidade Federal de Pernambuco. É membro correspondente da Academia<br />

de Letras Teófilo Otoni, Minas Gerais.


Atravessar o Silêncio<br />

Ao Cláudio Daniel<br />

A memória é um inferno provisório onde os nossos dias visitam constantemente. na<br />

penumbra de um mar de esquecimento ladeado de flores que brilham ao som do<br />

silêncio. e ao entardecer. a neve embarca no murmúrio da água que bate nas pálpebras<br />

das pedras na solene viagem do nada.e para além do sal derramado nas margens, não<br />

via-se mais nada, pois o cinzento abacanhou a melancolia do céu que outrora fora azul.<br />

e difícil é, descortinar este lado invisível da distância que nos assiste. A ilha que nos<br />

espera é feita de papel que baloiça livremente nos olhos do mar-mil uma visões<br />

espalhadas no útero do passado, uma música embalada de presentes toca<br />

incansavelmente na febre do navio-onde é minha casa?<br />

E no colo do futuro procuraremos acender as nossas identidades com o anzol que<br />

perdeu-se nas ondas da tempestade.<br />

<strong>7faces</strong> – Amosse Muscavele│ 184


Lembrança<br />

Ao Rui Knopfil<br />

ڻ<br />

Havia uma pétala vermelha que crescia no fumo de um cigarro. onde um homem<br />

puxava incansavelmente na esperança de querer vencer o medo que se instalava na porta<br />

dos seus devaneios E<br />

Dentro da casa onde os sonhos eram<br />

Guardiões .<br />

Havia uma pedra encostada a janela onde sussurrava nos ouvidos de Inhambane<br />

(quando lembra-se de alguém de olhos abertos deve-se sonhar de boca fechada).<br />

Mas<br />

Ninguém deu ouvidos ao sussurro da pedra. Encostado a inocência da pedra um<br />

sujeito levantou a mão no meio da multidão que pescava predicados e outros silêncios<br />

na sala da casa. ( Eu quero aprender a doutrina das cores que se manifestam nas pedras).<br />

ڦڥ<br />

A pincel a saudade relampeja no arquipélago da insónia do meu poema (quando durmo<br />

sinto a sensação de acordar no terceiro dia ,e quando morro passa-me pela cabeça a<br />

ideia de acordar no anoitecer das manhãs)<br />

ڥ<br />

Na corda da lembrança há um mar que desagua os incensos das suas ilhas , há uma<br />

cegueira que se assiste o suicido do arquipélago na insónia dos mangais.<br />

Há uma L<br />

A<br />

G<br />

R<br />

I<br />

M<br />

A que<br />

cai.<br />

nos solavancos das ondas que ondulam na sepultura onde jaz a flor murcha de<br />

abandono.<br />

<strong>7faces</strong> – Amosse Muscavele│ 185


©Malangatana. A Noiva da Ilha. (Reprodução)


Poegrafia a Malangatana<br />

A ilha ao acordar escuta sempre a monotonia que a solidão do mar canta. Assiste com<br />

os olhos dos xipocos que a namoram sem tréguas a uma velocidade da luz.<br />

A luz acende o amor que se esconde no poente das mãos do homem que está aborto do<br />

xitarutaru a caminho da ilha. Nos remos transborda um sonho vulcânico que explodirá<br />

quando atingir o núcleo do destino. Onde flores tomam o brilho do sol que clareia as<br />

margens de um sentimento que sobrevoa no dócil olhar dos ilhéus. Onde a bravura do<br />

mar transformar-se-á num paraíso construído pelas sombras do amor, alegria, sob a<br />

alçada dos ramos do embondeiro que dão mel e maça (não proibida).<br />

No cais da ilha os homens e os animais esperam eufóricos pelo brilho da aliança.<br />

Cantam, dançam a mesma música agora com retoques do sopro do mosquito, e do árduo<br />

trabalho de fabricar prazer a cor do mel das abelhas.<br />

Batuques acompanham as ovações da multidão, com crianças no colo das mulheres que<br />

preservam a beleza com os lenços na cabeça. A noiva já não sente os pés no chão, mas<br />

vê o barco que se aproxima. Sente o futuro e a cor do vento do matrimónio a beijarem a<br />

sua face, e por último a mulher diz:<br />

É hoje que o carvão que arde no meu corpo. O mel que derrama na minha boca terá<br />

dono.<br />

Amor até que o mar nos separe.<br />

xipoco: fantasma<br />

xitarutaru: barco artesanal da zona sul de Moçambique<br />

<strong>7faces</strong> – Amosse Muscavele│ 187


Carlos Margarido<br />

Torres Novas – Portugal<br />

Carlos Manuel Alves Margarido nasceu 24 de Fevereiro de 1970; cresceu e vive<br />

em Torres Novas. Tem predileção e escreve poesia desde pequeno.


Idade<br />

Demorei a minha idade<br />

Para acordar hoje.<br />

Levantei-me, já velho.<br />

Espreguiço os dias<br />

Honrada roupa que visto<br />

Bilhete, palco vazio do tempo<br />

Jamais, bati no mal da porta<br />

Ato os atacadores,<br />

Calço os segredos.<br />

De quem, dei tantas vezes à sola.<br />

Caminho lento, e demorado<br />

Tão bem, tão mal passado<br />

Lavo a cara, penteio<br />

O rosto no espelho<br />

Desta idade.<br />

<strong>7faces</strong> – Carlos Margarido│ 189


Chave<br />

Embato em paredes maciças<br />

Esconderijo que te esconde<br />

Nas traseiras dos meus olhos<br />

Nestas grades do tempo<br />

Onde me sinto prisioneiro<br />

De braços amarrados<br />

Resta-me tirar esta mordaça<br />

Para te poder dizer<br />

Que mais um igual a tantos outros<br />

Os dias que em mim esperam por ti<br />

Nestes barcos de papel<br />

Que se afundam no ensopar da água<br />

Ou este anjo de papel e entusiasmo<br />

Que o ar faz bater no chão<br />

Neste brilho que te olha<br />

Num sorriso nunca visto<br />

Nesta chave que não abre o sonho<br />

De um momento sequer


Desabitado<br />

Não são lágrimas<br />

Os instantes em que choro<br />

Na transparência que recebemos<br />

No fogo que faz o luar<br />

Transpiro neste corpo despido<br />

Sem braços ou dedos<br />

Que se perdem<br />

No silêncio das paredes<br />

Nas sombras que habito<br />

No morrer iludido<br />

Que o passo deixa passar<br />

Sem andar<br />

Há muito que a minha nuvem<br />

Se esvaziou em chuva<br />

Nas lágrimas<br />

Que molham o corpo já nu<br />

Desvanecido sem sentido<br />

Desabito-me<br />

<strong>7faces</strong> – Carlos Margarido│ 191


Amélia Luz<br />

Pirapetinga – MG<br />

Nasceu em Pirapetinga, Zona da Mata, Minas Gerais. Escreve poemas, trovas,<br />

crônicas e contos, com várias premiações.


Poesia para a anciã<br />

A mulher como palha seca<br />

o banco frio da praça<br />

O xale de lã<br />

o coque, os grampos,<br />

os cabelos brancos...<br />

O velho casaco<br />

o vestido de bolso<br />

os sapatos gastos<br />

de tantas caminhadas!<br />

O rosto, as rugas,<br />

o sorriso costumeiro.<br />

A idade, a face, o desenlace,<br />

o “rouge”, o pó de arroz,<br />

a vaidade apesar do tempo!<br />

O coração cansado se despedia,<br />

Maria ria, ria...De tudo ria...<br />

Da vida nada mais temia<br />

esperando o vento forte<br />

que a levaria para sempre<br />

naquele marcado dia!<br />

Soltava-se com leveza<br />

De tudo que vivera.<br />

A cigarra não mais cantava<br />

a canção da juventude.<br />

O corpo voltava solitário<br />

para o ventre escuro da terra<br />

mas a sua alma segura, com o Pai<br />

encontrava-se no jardim da eternidade...<br />

<strong>7faces</strong> – Amélia Luz│ 193


Ventos da Infância<br />

Pião, xadrez, gamão<br />

Pula-carniça, cabra-cega,<br />

Boneca de pano, peteca,<br />

Perna-de-pau, pau-de-sebo,<br />

Festa de jeca, paçoca, pipoca,<br />

Amendoim, coisas assim,<br />

Que lembram a infância!<br />

Palhaço, circo, picadeiro,<br />

Espetáculo verdadeiro,<br />

O engole-fogo, o joga-facas,<br />

O leão domado, o cão ensinado,<br />

O elefante dançando valsa!<br />

“E o palhaço, o que é?<br />

É ladrão de mulher”!<br />

Doce de leite, quindim,<br />

Puxa-puxa, chocolate, pudim,<br />

Batata frita, a turma grita:<br />

- Quero mais! Quero mais!<br />

Jabuticaba, manga madura,<br />

Amor em pedaços, ternura,<br />

Goiaba ou goiabada,<br />

Carambola ou carambolada,<br />

Marmelo ou marmelada!<br />

Picolé, sorvete de limão,<br />

Pão com manteiga, requeijão,


Leite quente e beijo de mãe,<br />

Acordando a gente!<br />

Escola, brincadeiras,<br />

Uniforme, carteiras,<br />

Livros e quadro de giz,<br />

Não levo pau por um triz!<br />

Recreio, pátio, alvoroço!<br />

Pula corda: um, dois, três!<br />

“Rosa branca”! “Macarronada”!<br />

Cada um na sua vez!<br />

Ciranda, todos na roda,<br />

Sem saber que assim girando,<br />

Rodando, rodando o tempo levava,<br />

Os doces anos da meninice!<br />

<strong>7faces</strong> – Amélia Luz│ 195


Paulo Vitor Grossi<br />

Rio de Janeiro – RJ<br />

Paulo Vitor Grossi nasceu no Rio de Janeiro em novembro de 1985; é formado<br />

em Turismo e escreve poesia, contos, pequenos romances entre outros<br />

gêneros. Os Sonhos, Nicolas; Volume II: Adiós, Lite de Ratura; Santa Cruz; Carne<br />

Viva; Rara (Volume três), o hotel m tá infestado de pragas & “A Faca e o Queijo<br />

na mão” são seus livros. É o autor, e ilustrador de suas obras.


<strong>7faces</strong> – Paulo Vitor Grossi│ 197<br />

cura: poema “I”<br />

Um teor de intimidade<br />

Reminiscências com odores<br />

Via-se o pássaro violador<br />

Sempre dentro de você<br />

Por vezes a te lembrar<br />

Cálida como incestuosa<br />

Essa figura ideal<br />

Desfaz-se ante o presente<br />

Encerra em si o divino


cura: poema “IV”<br />

A Questão do Equilíbrio das Coisas<br />

poema cláusula, ou prosa solidária.<br />

depende de como maneja<br />

A frase é móvel, quebradiça<br />

depende da entonação.<br />

A noção de união move blocos.<br />

A todos que acreditarem nos desafios.<br />

Razão e princípios<br />

Razão e princípios ao povo brasileiro.<br />

Conhecimento e força. Valores<br />

Que venham pelos ventos.<br />

<strong>7faces</strong> – Paulo Vitor Grossi│ 198


<strong>7faces</strong> – Paulo Vitor Grossi│ 199<br />

cura: poema “XIV”<br />

Teu ato e sangue<br />

pois fotos são eternas<br />

Estrela da apresentação<br />

Escrevo uma nota<br />

Gosto tanto, ouço mais<br />

sinto pura Moira<br />

Te juro, merda<br />

Melhor seria dizer<br />

Que enrolada está!<br />

cura: poema “XXIV”<br />

A guitarra exala microfonia<br />

Em bloco, vem a canção ao fundo<br />

Poupar é pros medrosos


Renata Bomfim<br />

Vitória – ES<br />

Renata Bomfim nasceu na Ilha de Vitória, capital do Espírito Santo, Brasil. Poeta,<br />

Artista plástica, ativista socioambiental, a escritora é mestre em Letras e,<br />

atualmente, desenvolve uma tese de doutorado na qual dialoga as poéticas de<br />

Rubén Dario e Florbela Espanca. Membro da Academia Feminina Espírito-<br />

Santense de Letras. Publicou as obras Mina, Arcano Dezenove, e seu terceiro<br />

livro de poemas, Colóquio das árvores, encontra-se no prelo. Autora do <strong>Blog</strong><br />

literário Letra e Fel.


Joana D’arc<br />

Joana, precisas ser marginal,<br />

Ser santa te fará igual<br />

a tantas. És diferente, Joana!<br />

O fato é que incomoda<br />

O teu existir, a potência de tua fé.<br />

És mulher, Joana, não esquece!<br />

Tira essa armadura, essa calça feia,<br />

Veste-te de luz e de prazer.<br />

Talvez fosse isso o que as vozes<br />

queriam te dizer.<br />

Liberta-nos, libertando a ti mesma.<br />

Vejo que queimas, ainda, em agonia,<br />

Sob a ira dos homens da igreja.<br />

Pelejaste contra as injustiças,<br />

Teu alimento: entradas e bandeiras,<br />

Do povo, foste guia.<br />

Em retribuição te prepararam<br />

uma fogueira. E foste linda<br />

morrer, de vestido branco e chapéu.<br />

Teu corpo virgem foi macerado<br />

como um lírio, um cardo,<br />

O sol, envergonhado, se pôs ao meio dia.<br />

E eu gritava:<br />

─Pula daí, Joana. Cai fora!<br />

Mas, minhas mãos estavam atadas<br />

Não pude te ajudar.<br />

Àqueles que amam a maldade,<br />

O poder, e se alegram com a crueldade<br />

Precisam saber:<br />

Tudo perdeu a cor e ficou cinza<br />

Quando você se foi, mas,<br />

Puída, a tua bandeira tremula ainda.<br />

Só não vê quem não quer!<br />

<strong>7faces</strong> – Renata Bonfim│ 201


O prazer de Salomé<br />

Depois de dançar<br />

Ao som da lira negra<br />

A réptil inviolada<br />

Fez amor pela primeira vez.<br />

Seu corpo era todo um jardim<br />

Recé- nascido da paleta de Moreau<br />

Dos seus seios fatais brotavam<br />

Safiras, ágatas, pérolas e rubis.<br />

Salomé trazia no sangue a fúria<br />

De Herodíade e a morte<br />

Nos olhos de prata.<br />

Naquela noite<br />

Feita de angústias estéreis<br />

(e solitárias)<br />

Dois homens perderam<br />

A cabeça.


© F. Markham Skipworth. Salomé. 1897.


Campos desconhecidos<br />

Dentro de mim há paisagens<br />

Voam livres e barulhentos<br />

os corvos de Van Gogh<br />

sobre os campos de trigo.<br />

Me persegue uma nostalgia do não vivido<br />

Os rios, sempre inéditos aos olhos de Heráclito,<br />

aos meus são um tédio.<br />

Há ainda, nos meus confins, canyons, mangues,<br />

Matas e cerrados, por onde caminham<br />

os lobos e suas crias e outros animais.<br />

Este espaço é ambíguo, as vezes me amedronta.<br />

Há também muitos penhascos,<br />

Há céu azulado,<br />

há prazer, dor, fome, mágoa,<br />

histórias sórdidas e livros que não ouso ler.<br />

A Morte, mocinha refinada,<br />

mora bem perto de todos os meus descampados<br />

é possível ouvir o som, rouco, do seu riso.<br />

Até aonde alcança a vista<br />

Eu quero chegar, e ir mais longe ainda.<br />

Quero explorar esse território estranho.<br />

Sou nômade!<br />

Desse mundo pouco sei,<br />

dizem que é meu, mas duvido,<br />

me pertence apenas a poeira no sapato<br />

Que trouxe das terras por onde andei.<br />

Conto com a benevolência da memória<br />

que não me deixa esquecer<br />

as alegrias e nem as desgraças vividas.<br />

Talvez seja por ela, ou por isso,<br />

que eu ainda esteja aqui, assim, sonhando<br />

com a falácia da unidade.<br />

<strong>7faces</strong> – Renata Bomfim│ 204


Campo comum<br />

Nada nos é alheio,<br />

Dentro de mim e de ti há<br />

um amor irrestrito<br />

o ódio dos assassinos<br />

os atos dos santo<br />

a covardia dos bandidos.<br />

a poeira da primeira estrela e<br />

resquícios das águas:<br />

do grande dilúvio<br />

do mar da Galiléia<br />

do rio Benares<br />

do Tietê<br />

do mar japonês<br />

imantado pela radioatividade.<br />

Um mundo de caos iludido<br />

por imagens edênicas<br />

nos convidam para viagens<br />

ilusórias e paradisíacas.<br />

Há no âmago do nosso ser<br />

a videira<br />

vinho e pão a ceia inteira, e santa<br />

o ódio<br />

o perdão<br />

Tudo isso nós compartilhamos<br />

mas, leitor, há dentro de mim<br />

uma angústia que desconheces:<br />

o assombro de estar viva<br />

contemplando a beleza bruta<br />

e há o desejo incontido de<br />

desabrochar, qual rosa mística,<br />

no coração do Cristo.<br />

<strong>7faces</strong> – Renata Bomfim│ 205


A neta de Mery Wollstonecraft<br />

Herdei de minha avó<br />

O gosto por homens instáveis e<br />

A fibra de quem não tem nada a perder<br />

Lembro ainda dos seus olhos<br />

Profundos e suicidas<br />

De como ela gostava de se sentir asfixiada<br />

Pelo trabalho e por coisas dolorosas<br />

Quanto prazer lhe dava mergulhar os dedos<br />

No abismo do tinteiro para depois<br />

Macular as folhas sedosas e carentes de papel<br />

Mulher de côrte e de cais<br />

A sua pena traçou a minha sina<br />

As bancas das esquinas, hoje, vendem exemplares<br />

Do seu livro de miséria e solidão<br />

(A preços populares)<br />

Ah! Se minha avó me visse agora<br />

Quanto orgulho teria da sua linhagem<br />

Mulheres mais rotas que alinhavadas<br />

Condenadas a nunca se juntar<br />

Irremediavelmente cindidas e secas<br />

E orgulhosas como bestas que pastam<br />

Em terrenos baldios.<br />

<strong>7faces</strong> – Renata Bomfim│ 206


Dora Ferreira da Silva<br />

recortes 2


Epidauro<br />

O ensinamento básico de Thoreau<br />

era o de carregar nada ou pouca coisa<br />

ao abandonar a própria casa em chamas.<br />

És um americano pobre, Henry Miller,<br />

não estranharás minhas sapatilhas<br />

meu cabelo preso e o rosto limpo.<br />

Serei a solidão a teu lado.<br />

Katsímbalis mal notará uma mulher<br />

a caminho de Epidauro. Sabes, és o único<br />

hóspede de sua pátria e coração.<br />

Grega nas mais antigas ramagens do sangue,<br />

acaso depare comigo, pensará que sou<br />

uma pequena coluna, ou um perfil apagado de hídria<br />

e não me dará atenção.<br />

Teu gosto de ser só, Miller, não o perturbarei,<br />

também o conheço e a paisagem conspira:<br />

poucos arbustos, pedras e o pó.<br />

O carro alugado avança com as hesitações<br />

de um inseto. O tempo voa no espaço.<br />

Dessa máquina sacolejante encaramos<br />

a mesma paz de um mundo quieto e parado.<br />

Que luz etérea! Epidauro anuncia o céu?<br />

Há mais Mozart aqui do que em qualquer outro lugar.<br />

Estamos a caminho da Criação, basta ouvir<br />

o sussurro de princípios misteriosos,<br />

se falarmos seremos melodiosos:<br />

nada a esconder, capturar ou preservar,<br />

ruíram muros que aprisionavam o espírito,<br />

instalou-se a paisagem nos campos<br />

do coração. Não passamos pela natureza – digamos –<br />

somos a debandada das forças da ambição, maledicência,<br />

inveja, egoísmo, despeito, intolerância, orgulho, arrogância,<br />

mesquinharia, duplicidade and so on.<br />

É a manhã do primeiro dia da grande paz,<br />

a paz do coração, porque nos rendemos.<br />

Isto não é o oposto da guerra,<br />

porque a morte também não é o oposto da vida.<br />

A linguagem, que pobreza! Pobreza da imaginação<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 208


“Epidauro” foi<br />

publicado na Revista<br />

Brasileira da<br />

Academia Brasileira<br />

de Letras, Edição 28<br />

do trimestre julhosetembro<br />

de 2001.<br />

do homem, de sua vida interior com seus trastes inúteis.<br />

A paz que encontramos em Epidauro<br />

ultrapassa a compreensão da maioria: um cessar<br />

de hostilidades, uma pausa negativa.<br />

A paz do coração que encontramos – Miller e eu –<br />

(Katsímbalis a possuía) é positiva, invencível,<br />

nada requer, nem pede proteção. É. Só.<br />

Vitória? Se o for, muito especial, baseada numa rendição<br />

especificamente voluntária. Ah, grande centro terapêutico<br />

do mundo antigo – EPIDAURO! –<br />

Aqui, o próprio curandeiro se curava –<br />

início de uma arte, não médica, mas religiosa.<br />

A Natureza – ensinam os grandes curandeiros –<br />

é a maior das curandeiras. Mas é preciso, Dora (diz Miller)<br />

que o homem reconheça seu lugar no mundo e este<br />

não é a Natureza (domínio do animal)<br />

mas o reino humano, ligação entre o animal e o divino.<br />

Epidauro? Pura charlatanice, dizem os cientistas.<br />

Progredimos assustadoramente. Nossos progressos<br />

conduzem à mesa de operação, aos manicômios, às trincheiras.<br />

O culto médico funciona mais ou menos como o Ministério<br />

da Guerra – os triunfos escondem morte e desastre.<br />

A alegria de viver vém através da paz, que não é estática,<br />

mas dinâmica. Não há alegria sem paz e sem alegria<br />

não há vida, mesmo que você tenha uma dúzia de carros,<br />

seis mordomos, um castelo, uma capela particular<br />

e um abrigo anti-aéreo. Ao que quer que nos apeguemos<br />

– seja esperança ou fé – eis a doença à espreita!<br />

Rendição absoluta, é isso. Quem agarrar-se à mínima migalha<br />

estará nutrindo o germe prestes a devorá-lo.<br />

Quanto a agarrar-se a Deus, Ele nos abandonou há tempos<br />

para descobrirmos a alegria de alcançar o Bem.<br />

Todo esse barulho, toda essa súplica pela paz<br />

crescerá à medida em que dor e miséria crescerem<br />

e a nada levará. Onde encontrar a paz? Imaginas<br />

que ela é algo a ser estocado como trigo ou milho?<br />

Algo para ser preso e devorado, carcaça entre lobos famintos?<br />

Os que falam de paz têm semblantes carregados de raiva,<br />

ódio, desprezo, orgulho, arrogância. Enquanto o assassinato<br />

não for arrancado da mente e do coração não haverá paz.<br />

O assassinato é o cume da pirâmide, cuja base mais larga<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 209


é o Ser. O que está de pé ruirá. Tudo aquilo pelo que o homem<br />

lutou, deve ser posto de lado, se quiser viver humanamente.<br />

Até agora não passou de uma besta sanguinária<br />

e mesmo suas divindades não prestam. Mestre de muitos mundos<br />

é um escravo no seu mundo. O que comanda o universo<br />

não é a mente, é o coração.<br />

Em Epidauro, na quietude que sobre nós três baixou<br />

ouvimos bater o coração do mundo.<br />

Então sabemos qual é a cura: desistir, renunciar,<br />

render-se para que nossos pequenos corações batam em uníssono<br />

com o grande coração do mundo.<br />

NOTA DA AUTORA. Poema inspirado no livro de Henry Miller (O Colosso de<br />

Marússia). Refizemos juntos a viagem a Epidauro, Henry Miller e eu, com o poeta<br />

grego Katzímbalis, que se manteve silencioso, mas não descontente.


© Chagall. A sua (detalhe) Reprodução


A sibila<br />

Nas praças, nos templos e olivais<br />

um grito de louvor à Terra, dançai!<br />

Vim sem esplendor da aurora, mendiga,<br />

não como as musas de outrora, dadivosas Diotimas,<br />

vim mendigar o que há muito vos ofertei, Poetas:<br />

sopro-vos à garganta dilatada, vossos olhos ceguei<br />

para que o fundo olhar se liberte. Sibila em agonia,<br />

há tanto silenciada, falarei por vossas bocas,<br />

em vossos versos, arquejará minha voz embriagada, rouca –<br />

sustos e soluços, gritos, silvos, neblinas de esgares,<br />

mares de canto e pranto. No tempo além do tempo<br />

meus lábios murmuram por ti e perto dos templos derruídos,<br />

a respiração do velho Mar, seus haustos e gemidos.<br />

Mostra-me o silêncio o lacre escarlate, verbo indigente<br />

dos mitos que sempre me uniram às setas de Apolo.<br />

Há tanto minha palavra foi calada, os deuses recuavam...<br />

Mas os poetas mantiveram-me viva. O mais ínfimo<br />

deu-me de beber e em sua hídria refresquei meu rosto.<br />

Sensíveis a meu sopro, os maiores coroaram-me de folhas verdes.<br />

O nascimento do Poema é o silvo que Apolo harmoniza e Orfeu faz cantar.<br />

Rompendo as cisternas escuras vim, raiz coleante<br />

por entre as pedras e a secura. Dilacerada, arquejante,<br />

acolhe-me Apolo em seus braços de névoa.<br />

Gemidos rasgam mil caminhos na gruta: Ai, ai, oh...<br />

A Sibila arrasta-se no pó, soluça, seus lábios deliram,<br />

traça no ar os gestos incertos dos agonizantes, colhe flores<br />

na neblina. Ai, ai, oh... Foram-se os deuses da Grécia,<br />

só espelhos refletem espelhos, o eterno assim se dá e esconde.<br />

Onde Afrodite, a de rosáceos tornozelos, ungida de óleo incorruptível,<br />

com seus perfumes, colares e pulseiras cintilantes?<br />

Onde Ártemis, a doçura selvagem? Foram-se as ninfas<br />

e hamadríades! Nunca mais a vida estuante dos bosques,<br />

suas flores e clareiras, onde Zeus e Hera adormeciam ao calor do dia.<br />

Ai, ai, neblina da neblina, o que enlaçarão agora nossos braços?


“A Sibila” foi<br />

transcrito por<br />

Constança<br />

Marcondes César<br />

num texto<br />

publicado na<br />

Revista do Instituto<br />

de Letras da<br />

Pontifícia<br />

Universidade<br />

Católica de<br />

Campinas, edição<br />

16, de dezembro de<br />

1997.<br />

Não mais que névoa e vento. Apolo, assim te afastas, e me deixas presa<br />

à teia indecifrável destes sons selvagens? Aaa, Oooo...<br />

Em teu ombro dourado me apoiava, inventando poemas que ditavas<br />

a meu secreto entendimento. Infeliz de mim! Agora<br />

só posso tocar névoa e memória. Dissiparam-se Mundo e Palavra.<br />

A Sibila chorou.<br />

Nesse momento as coisas cessam, silenciosas,<br />

atemorizadas. Os ventos param de soprar,<br />

nas árvores as folhas não se move.<br />

Os rios adormecem e gigantesco Mar<br />

é liso e sem ondas. Paira sobre tudo um<br />

SANTO SACRO SILÊNCIO<br />

Perde-se na neblina a medida do Tempo,<br />

tudo se abisma no silêncio, à espera<br />

do alto Deus, meta dos séculos.<br />

A Sibila abre os grandes olhos<br />

e vê o Deus que nasce.<br />

A Mãe, junto ao menino, parece uma vinha<br />

e enquanto a Lua surge, clara, ela adora<br />

o Filho em seus braços. De ouro vivo é a Criança<br />

e em resplendores toda a gruta se ilumina.<br />

Luz nascida como o orvalho descendo do Céu à Terra<br />

e em torno, suavíssimo aroma.<br />

Anjos perpassam, alígeras borboletas<br />

e cantam: Amém.<br />

A Sibila sorri.<br />

Um cântico novo brota em seus lábios, mas não é seu,<br />

o infinito o modulou:<br />

O aroma de teus perfumes é delicado<br />

e teu nome, óleo que se derrama.<br />

Serás nosso júbilo e alegria...<br />

Não repares em minha tez morena, que o sol queimou.<br />

Irados, meus irmãos fizeram-me guardas as vinhas,<br />

eu, esquecida da Vinha!


Ouço a voz do meu Amado batendo à porta<br />

Lentos são meus pés e ao abrir a porta<br />

o Amado já se foi. Corre minha alma<br />

e o busca por toda a parte. Não respondes, Amor,<br />

ao meu chamado?<br />

Eu vos suplico, filhas de Jerusalém,<br />

se o encontrardes<br />

dizei-lhe que estou doente de amor.<br />

O que tem ele – elas perguntam –<br />

o que tem o teu Amado mais do que os outros<br />

para que assim o busques, quase morta?<br />

Meu Amado é róseo e brilhante,<br />

meu Amado vermelho. Sua cabeça é de ouro puro,<br />

seus cachos, negro-azulados.<br />

Seus olhos são duas rolas<br />

perto de um lento riacho.<br />

Destila mirra<br />

o lírio de seus lábios.<br />

Sei que habita um jardim,<br />

companheiros, ouvem sua voz...<br />

Oh, faze que eu também te escute!<br />

Quem é essa que vem do deserto<br />

como um cântaro apoiado a um peito amoroso?<br />

Ele é um selo sobre seu coração,<br />

sobre seu braço moreno,<br />

pois o Amor é forte como a Morte,<br />

suas centelhas são de fogo:<br />

uma chama divina!<br />

Dissipa-se na névoa um rosto efêmero,<br />

mas a face do Amado permanece.<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 214


Fac-símile da capa de 1ª edição do primeiro livro de Dora Ferreira da Silva,<br />

“Andanças” publicado em 1970 e reunindo poemas escritos entre 1948 e<br />

1970 numa edição custeada pelo própria autora.<br />

Imagem: Arquivo Vilém Flusser.


Noturno I<br />

Estrelas pendem da noite,<br />

videira delirante.<br />

Coroada de espelhos e ametistas<br />

transmutas a carne em nudez<br />

guardiã, sacerdotisa,<br />

nos vales da distância<br />

rumina em silêncio<br />

teu rebanho tranquilo.<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 216


Noturno II<br />

Nossos olhos nos pertencem –<br />

não o dia.<br />

Amor não nos pertence<br />

nem a morte.<br />

Apenas pousam na pérola mais fina.<br />

Desce o luar<br />

no flanco de rios precipitados<br />

folhas se alongam<br />

caules estremecem.<br />

A noite já desfere<br />

seu punhal de trevas.


Noturno III<br />

Pétala da noite<br />

pálpebra fixa dos que olham para sempre a morte<br />

nave perdida e sem memória<br />

pérola marinha<br />

arremessada às águas.<br />

Rosa intranquila<br />

pólen do amor sem pouso<br />

mênade errante, os longos cabelos torturados,<br />

tu, sublevada, que me prendeste em teu anel de insônias<br />

e que desfias no espaço<br />

o claro colar de águas:<br />

por que acordas no meu peito a sede dos desertos<br />

e me aprisionas, pássaro, em teu arco de prata?


Transpoema<br />

De onde vens, quem sabe,<br />

quem te sopra ao meu ouvido?<br />

É o transpoema e seu ressaibo<br />

é lembrança e olvido.<br />

É um fruto oriundo<br />

de algum ser – o mais profundo –<br />

entre mim e tudo o mais.<br />

É a curva de um caminho<br />

é a urze, o rosamaninho<br />

é o amor mais esquecido<br />

que sabe o mais querido.<br />

É a flauta muito doce<br />

é a canção de sempre e agora<br />

é a carência e a pletora<br />

a vida me fez assim.<br />

O transpoema serpenteia<br />

na minha alma-lua-cheia<br />

e transborda tantos frutos...<br />

Mas quem sopra em meu ouvido?<br />

É lembrança e é olvido.<br />

<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 219


Capa da edição de Transpoemas. O livro é uma publicação póstuma<br />

editada pelo Instituto Moreira Salles.<br />

Imagem: Arquivo <strong>7faces</strong>


O leque<br />

(variações)<br />

Linha oblíqua<br />

oculta desoculta<br />

o instante breve<br />

cores exalta<br />

do negro ao escarlate.<br />

Ela e o leque: a aragem esconde<br />

em poço de sombra<br />

a curva do pescoço<br />

o colo branco.


Capa da edição de O leque. Assim como Transpoemas o livro é uma<br />

publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles.<br />

Imagem: Arquivo <strong>7faces</strong>


Appassionata<br />

(fragmento)<br />

É preciso desdobrar<br />

asas de amor conhecimento<br />

liberar o tato<br />

de todas as coisas<br />

que esperam,<br />

pois o eco fugiria<br />

das palavras vãs.<br />

Sem pólen,<br />

os pássaros voltariam<br />

aos ninhos de sombra<br />

se teu coração<br />

recuasse<br />

e os cabelos<br />

não soltasses<br />

Appassionata


Capa da edição de Appassionata. O livro é uma publicação póstuma<br />

editada pelo Instituto Moreira Salles juntamente com Transpoemas e<br />

O Leque .<br />

Imagem: Arquivo <strong>7faces</strong>


Dora<br />

Ferreira<br />

da Silva<br />

inéditos


© Edmar José de Almeida. Dora Ferreira da Silva<br />

(retrato) Detalhe de um quadro óleo.


Manuscrito do poema que abre o livro Transpoemas, de Dora Ferreira da<br />

Silva, publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles. Escrito entre<br />

2005 e 2006, o livro “nos surpreende com uma reflexão delicada sobre o<br />

poema. Toda a sequência é uma interrogação sobre o fazer poético e o papel<br />

reservado ao poeta. Numa clave metalinguística, Dora mostra o poeta como<br />

um vaso comunicante por onde o poema se transporta.” – afirma Dozinete<br />

Galvão.<br />

Imagem do Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida. Proibida reprodução sem<br />

autorização responsável.


Manuscrito do poema II do livro Appassionata de Dora Ferreira da Silva,<br />

publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles. “Uma noite me ligou<br />

[Dora Ferreira da Silva] especialmente feliz e leu o poema que considerou seu<br />

trabalho mais importante – Appassionata. Eu fiquei sem palavras, era o poema<br />

mais lindo que jamais ouvira... Ele havia nascido de um mergulho incondicional<br />

na Sonata n.23 de Beethoven, e o que ela queria era que as palavras se<br />

tornassem música.” – Inês Ferreira da Silva Bianchi.<br />

“Appassionata é uma obra de puro arrebatamento, calcada naquele<br />

enthousiasmós (ou transporte divino) de que nos falam os antigos gregos. É<br />

também, como se vê no orfismo, uma tentativa no sentido de que as palavras<br />

posam transformar-se em música, embora a música da poesia, como entendia<br />

T. S. Eliot, seja definida a partir de critérios bastante distintos, os quais<br />

ensinam que ela não seria que existisse à margem do significado. Mas a<br />

verdade é que, nos poemas de Appassionata, cumpre-se à risca aquele<br />

conceito eliotiano de que a música de uma palavra está, por assim dizer, num<br />

ponto de intersecção, já que ela ‘emerge de sua relação, primeiro, com as<br />

palavras que imediatamente a antecedem e a ela se seguem, e<br />

indefinidamente com o restante do contexto; e de outra relação, a de seu<br />

imediato significado nesse contexto com todos os demais significados que haja<br />

possuído em outros contextos, com sua maior ou menor riqueza de<br />

associação’.” – Ivan Junqueira<br />

Imagem do Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida. Proibida reprodução sem<br />

autorização responsável.


“Dora foi uma das pessoas mais luminosas que conheci. A casa da Rua<br />

José Clemente foi um dos corações intelectuais do Brasil. Corrijo: a<br />

palavra intelectual acaba de me incomodar. Aquela casa era a casa do<br />

ser. Uma clareira aberta. Uma realização plena do que possa vir a ser a<br />

experiência do desvelamento. Havia algo de muito especial naquele<br />

lugar. Nunca consegue identificar o quê. Continuo tentando. Mas ainda<br />

não consigo. Convivemos todas as semanas durante os últimos três ou<br />

quatro anos de sua vida. Coordenávamos juntos o centro de estudos<br />

que ela fundou, o Cavalo Azul. Os encontros eram justamente na<br />

biblioteca, antigo escritório de trabalho de Vicente Ferreira da Silva.<br />

Estávamos sempre a um passo de cruzar o umbral. É essa a impressão<br />

mais forte que guardo dos encontros com Dora e da casa e que tentei<br />

fixar em um depoimento: entrar em sua casa e em sua poesia era cruzar<br />

um umbral. Tudo às costas se dissolvia, como na descida de Orfeu. É<br />

difícil falar dela. São muitas coisas. Desde conversas que tínhamos<br />

sobre poesia e arte até sinuosos devaneios sobre a vida após a morte, a<br />

imortalidade, a alma e visões e presságios em sonho. A sua poesia era<br />

ela e apontava na direção de tudo o que ela conseguiu mobilizar ao seu<br />

redor. No modo de falar, nos grandes olhos redondos, na palma da mão<br />

sempre elevada como uma sacerdotisa. A poesia de Dora, a obra de<br />

Vicente e aquela casa persistem em mim como um sonho continuado. E<br />

vez por outra me apalpo pra saber de fato de que lado estou desse<br />

limiar.” – Rodrigo Petrônio. “A poesia é o paraíso do paradoxo. In:<br />

Revista Texto poético.<br />

Imagem. Dora Ferreira da Silva. Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida.<br />

Proibida reprodução sem autorização.


Vilém Flusser e Dora Ferreira da Silva mantiveram durante larga data,<br />

desde que se conheceram estreitos diálogos entre poesia e filosofia.<br />

Parte desses diálogos se deram no grupo formado por Dora, “Cavalo<br />

Azul”, e se estenderam pela obra; tanto Vilém escreveu sobre Dora<br />

quanto Dora escreveu sobre Vilém. Nesse intercâmbio de<br />

conhecimentos, os dois também mantiveram a largo sua ponte de<br />

correspondências por escrito.<br />

Imagem Carta de Vilém Flusser para Dora Ferreira da Silva e resposta de Dora para<br />

ele. Arquivo de Vilém Flusser Studies. Cópia.


Dora Ferreira da Silva encostada em pedra, na praia de Mongaguá, São<br />

Paulo, 1940.<br />

Arquivo de Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles


O mundo<br />

em poesia<br />

Minha mãe traduzia o mundo em poesia. A música, os<br />

fatos cotidianos, sua própria história familiar, os poetas<br />

que ela admirava, pintores, a natureza, mitos, todos esses<br />

elementos se transfiguravam em matéria poética, e o<br />

poema era o resultado dessa experiência, ou melhor, desta<br />

vivência.<br />

Inês Ferreira da Silva Bianchi<br />

fala sobre si e a relação com sua<br />

mãe, Dora Ferreira da Silva.


Inês por Inês<br />

“Nasci em 1953 em São Paulo, e fui uma filha temporã, uma vez que<br />

meu irmão Luiz Vicente, falecido no ano passado, já tinha 12 anos<br />

quando cheguei. Segundo minha mãe falou, foi uma gravidez de alto<br />

risco, fruto de sua teimosia diante das recomendações médicas em<br />

contrário. Até os 10 anos de idade estive muito próxima de meu pai,<br />

uma pessoa essencialmente solar, que me levava em sua romizeta<br />

para todos os lugares. Costumava ficar sentada no braço de sua<br />

poltrona enquanto ele escrevia páginas e páginas de filosofia, num<br />

papel finíssimo e colorido. Sua letra era incompreensível, e só minha<br />

mãe conseguia decifrá-la. Ela batia a máquina e fazia a revisão. Desde<br />

cedo, percebi que a minha casa e minha família eram bem diferentes<br />

das de minhas amigas. Durante a noite aconteciam reuniões e meu<br />

pai dava aulas para muitas pessoas. Dos degraus da escada,<br />

escondida, eu não ouvia muito bem o que se falava, mas mesmo que<br />

ouvisse não entenderia nada. Havia música, e um clima de grande<br />

entusiasmo nas discussões. Depois de adulta, vim a saber que esses<br />

encontros filosóficos foram inesquecíveis para todos os que<br />

estiveram lá.<br />

Meu pai morreu de forma trágica em 1963, num acidente de carro, e<br />

foi muito difícil para mim sua perda. Nessa época, minha tia, irmã de<br />

minha mãe me chamou para uma conversa, daquelas que nunca se<br />

esquece na vida. Disse-me que eu teria uma grande responsabilidade<br />

dali em diante, cuidar de minha mãe. Falou que ela era uma pessoa<br />

sensível, com pouco senso de realidade - uma poetisa - e que caberia<br />

a mim a tarefa de ser seu fio terra. De certa forma, esse foi meu<br />

papel por muitos e muitos anos. Como meu irmão se casou logo após


a morte de meu pai, ficamos só nós duas, e nossa relação foi marcada<br />

pela não ortodoxia, em todos os aspectos. Ser mãe ou filha era uma<br />

condição variável, determinada pelas circunstancias e pela maior ou<br />

menor habilidade de cada uma frente à tarefa. O universo prático, via<br />

de regra, cabia a mim. Fomos muitas vezes para Itatiaia, e a<br />

convivência naquele chalé no alto da montanha sempre foi repleta de<br />

aventuras: enfrentamos aranhas caranguejeiras, cobras, banhos<br />

gelados de cachoeira, e passamos a noite perdidas numa trilha no<br />

meio do mato. Também em Itatiaia ela realizou um grande sonho<br />

meu – ter um cavalo. Passávamos as tardes pintando pedras, e numa<br />

vitrola a pilha ouvíamos Mozart e Bach. Ainda hoje o chalé de Itatiaia<br />

se mantém intacto, assim como a capela de São Francisco, que minha<br />

mãe construiu ao lado da casa, feita com a ajuda de muitos amigos,<br />

com pedras e telhas de demolição.<br />

Quando entrei na faculdade, em 1973, pensava fazer o curso de<br />

Letras, e me tornar, quem sabe, uma escritora. Na PUC, o primeiro<br />

ano era integrado para todos os cursos, e apenas duas matérias eram<br />

específicas. Ao final do ano conversei com uma professora, e como<br />

não estava gostando nada de latim e de linguística, e não pretendia<br />

ser professora de Português, ela me aconselhou a fazer uma reopção<br />

para outro curso. A Psicologia me pareceu um caminho interessante,<br />

pois reunia uma atividade prática que me atraía (o atendimento<br />

clínico), e um espaço criativo bem abrangente que me permitiria<br />

desenvolver a literatura. Psicologia não havia sido nenhuma das<br />

minhas opções no vestibular, e por isso precisei fazer uma prova<br />

especial para conseguir a vaga. Escolhi montar uma peça de teatro: A<br />

prostituta respeitosa, de Jean Paul Sartre. Foi uma experiência<br />

fantástica, que não só me valeu a vaga na Psicologia como também<br />

algumas reapresentações para o público no teatro da PUC.<br />

Minha vivência como psicóloga foi longa: após a faculdade, fiz um<br />

curso de especialização em Gestalt no Instituto Sedes Sapientiae, e<br />

uma formação completa em Psicodança com seu criador, Rolando<br />

Toro. Trabalhei duas décadas como psicoterapeuta em consultório<br />

particular, dei cursos de Gestalt-terapia, de Psicodança, fui perita<br />

judicial em Varas de Família e atuei na Casa da Mulher (instituição<br />

que apoia mulheres em situação de risco doméstico). Fiz também<br />

revisões de texto em capítulos de livros de psicologia e também na<br />

Revista Cavalo Azul, editada por minha mãe.


Em 1998 dei uma guinada radical em minha vida. Junto com meus<br />

dois filhos e meu marido me mudei para Ilhabela. Estávamos<br />

morando todos juntos na casa da José Clemente, e a relação familiar<br />

não era harmoniosa. Eu estava cansada de tentar resolver os<br />

problemas que surgiam a todo o momento. Sentia-me angustiada,<br />

prisioneira de uma situação incômoda, e com um desejo imenso de<br />

me libertar. Por outro lado, tinha compromissos, trabalhos em<br />

andamento, e o sentido de responsabilidade me dizia que era uma<br />

loucura largar tudo e ir embora. O grande responsável pela tomada<br />

de decisão foi meu filho mais velho, Gabriel, que na época tinha 15<br />

anos. Sua única preocupação era não conseguir voltar para São Paulo<br />

quando chegasse a hora. Curiosamente, ele foi o único que voltou<br />

para fazer História na USP, trabalhar como professor e morar na<br />

capital.<br />

O desligamento com minha mãe – em função dessa mudança - foi<br />

extremamente conturbado. De imediato ela se sentiu abandonada,<br />

mesmo reconhecendo as dificuldades de relacionamento que<br />

existiam no contexto familiar. Como se tratava de uma decisão<br />

tomada, e irreversível, nos anos seguintes fomos desatando os nós<br />

que essa revolução causou.<br />

Eu demorei um ano para realizar internamente a mudança, sentir que<br />

de fato morava em Ilhabela. Como tinha construído uma casa para<br />

veraneio, era muito presente a sensação de que depois do fim de<br />

semana nós voltaríamos para São Paulo. Procurar trabalho como<br />

psicóloga, no único Centro Médico da cidade, foi a primeira medida<br />

concreta para me enraizar, além de colocar os filhos numa escola.<br />

Mas, meu rumo profissional seria em breve alterado para uma nova<br />

direção que eu nem imaginava. Um Festival de Dança num palco<br />

montado no centro de Ilhabela foi o elemento que deflagrou o<br />

processo de mudança. Por isso posso garantir – por tudo o que se<br />

sucedeu – que a arte da dança é mágica. Fui tocada profundamente<br />

pelo espetáculo, senti uma emoção que há muito tempo não<br />

experimentava, e como escrevia semanalmente artigos num jornal da<br />

cidade, fiz um texto enaltecendo a iniciativa de se promover um<br />

evento com aquela qualidade artística em nossa pequena cidade. Era<br />

época de eleições municipais, e como sempre acontece nas<br />

mudanças de gestão, joga-se fora tudo o que o antigo prefeito<br />

construiu, principalmente o que ele fez de melhor. O resultado é que<br />

o grupo responsável pelas ações culturais da antiga gestão foi<br />

demitido. Esse baque fez com que eu me aproximasse dessas


pessoas, e juntos fomos em busca de um local onde se pudesse dar<br />

andamento às atividades de dança de um grupo de alunas, ainda<br />

pequenas, que integravam o projeto de arte-educação Pés no Chão.<br />

Nessa procura, chegamos uma manhã a um imenso galpão, um<br />

boliche desativado. Ao entrarmos, raios de luz invadiam o espaço.<br />

Todos nós ficamos mudos e tomados por sonhos: era preciso criar ali<br />

um espaço cultural, um teatro, o primeiro em nossa cidade. Sem<br />

dinheiro algum, tivemos 24 horas para achar um doador maluco que<br />

se dispusesse a dar R$ 1000 reais por mês, para pagar pelo período<br />

de um ano o valor do aluguel. O proprietário, outro doido, rasgou o<br />

contrato que iria assinar com uma mecânica de motores de barco e<br />

embarcou em nossa empreitada delirante. Um mês depois o Espaço<br />

Cultural Pés no Chão estava criado, com CNPJ, uma conta bancária<br />

quase vazia no Banco do Brasil, e centenas de crianças inscritas nas<br />

atividades oferecidas. Por dois anos, todos que trabalharam na<br />

instituição foram voluntários.<br />

Hoje o Pés no Chão tem quase 12 anos e cresceu muito. Ele<br />

conquistou sua sede própria (um teatro-escola) a custo de muito<br />

trabalho, do respeito da comunidade e de dezenas de projetos<br />

realizados. Profissionalmente ele fez com que me desenvolvesse na<br />

área de elaboração de projetos, como professora de cursos de<br />

poesia, e como redatora de um modo geral, uma vez que a escrita da<br />

organização está sob minha responsabilidade. Participo desta<br />

iniciativa desde sua fundação, e aquele Festival de Dança que me fez<br />

mudar de rumo já está em sua 16ª edição, agora dentro de nosso<br />

teatro e também espalhado pela cidade inteira. Conta com o<br />

patrocínio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e da<br />

Prefeitura Municipal de Ilhabela.<br />

Estou prestes a completar 60 anos. Sinto-me profundamente<br />

enraizada em Ilhabela. Da janela de meu escritório vejo árvores,<br />

gaivotas e roseiras – descendentes de roseiras da minha mãe. Guardo<br />

comigo objetos preciosos, como a placa do número da casa da Rua<br />

José Clemente, os Prêmios Jabuti conquistados pela minha mãe, e as<br />

Obras Completas de meu pai que infelizmente minha mãe não<br />

chegou a ver publicadas.”


A relação de Dora Ferreira da Silva<br />

com a escrita, sobretudo, com a poesia<br />

e sobre as influências na formação de<br />

Inês<br />

“Minha mãe traduzia o mundo em poesia. A música, os fatos<br />

cotidianos, sua própria história familiar, os poetas que ela admirava,<br />

pintores, a natureza, mitos, todos esses elementos se transfiguravam<br />

em matéria poética, e o poema era o resultado dessa experiência, ou<br />

melhor, desta vivência. Em uma entrevista à TV Cultura em 2005, ela<br />

disse que o mundo era uma fome das coisas serem percebidas. Neste<br />

sentido, tudo tinha o potencial de se transformar em substancia de<br />

sua poesia.<br />

Quando viajamos para a Grécia, em 1972, ela sentou-se nas pedras<br />

do Parthenon, tocou-as com as mãos como se estivesse buscando<br />

absorver a memória aprisionada nessas pedras. Em Itatiaia, todos os<br />

seus sentidos bebiam as forças da natureza, numa perspectiva de<br />

comunhão profunda. Cenas do cotidiano, como as do vendedor de<br />

rosas nos faróis de São Paulo, também a comoviam, sendo tema de<br />

um de seus poemas.”<br />

Há uma nova profissão...<br />

Há uma nova profissão nesta cidade: o mendigo das rosas.<br />

Investe perigosamente, na engrenagem do trânsito,<br />

em pé de vento, bailarino, atrás dos automóveis.<br />

Bate no vidro fechado quando há chuva.<br />

E em troca da nota esquálida<br />

faz a oferenda das rosas.<br />

“A casa da Rua José Clemente 324 sempre teve como vocação ser um<br />

centro de estudos, desde a época do meu pai. Essa tarefa foi<br />

retomada por minha mãe com um foco maior no campo da poesia e<br />

da psicologia. Entre os anos 60 e 70 alguns poetas da geração dos<br />

beatniks lá se reuniam, e liam poemas e filosofia até altas<br />

madrugadas. Lembro-me de Roberto Piva, Lindolf Bell, Claudio Willer,<br />

Rodrigo de Haro, Celso Paulini, Alan Mayer, e muitos outros. A partir


dos anos 90 minha mãe formou um grupo de estudos com o qual<br />

trabalhou até o fim de sua vida.”<br />

Dora fazendo leitura pública de poesias, em frente e Livraria Brasiliense, na Barão de<br />

Itapetininga. São Paulo, década de 1970.<br />

Arquivo do Acervo Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles.


Os Encontros na Casa de Dora<br />

Por Raïssa Cavalcanti<br />

A lembrança e a saudade desses encontros me vêm a memória com<br />

nitidez. Os alunos iam chegando aos poucos e sendo recebidos na<br />

biblioteca pela calorosa amizade de Dora Ferreira da Silva.<br />

Sentávamos todos, em seguida, em volta da grande mesa da sala de<br />

jantar Dora nos transportava ao tempo poético, mítico e filosófico, o<br />

qual Dora conhecia bem os caminhos.<br />

As reuniões se estendiam ao longo da noite e perdíamos a noção do<br />

tempo, já que Dora não costumava transitar no tempo cronológico e<br />

profano. Ela era uma frequentadora do tempo sagrado, dos meandros<br />

desconhecidos. Dora realizava o seu ministério calmamente, fazendo<br />

reflexões em torno das questões essenciais da filosofia, do mito da<br />

arte e da psicologia.<br />

O seu público era de pessoas jovens curiosas e interessadas pelo<br />

conhecimento e pela cultura. Nos encontros na casa de Dora, os<br />

jovens tinham a oportunidade de encontrar a mestra que os podia<br />

guiar pelos trajetos de outros mestres, poetas, místicos e sábios.<br />

Dora não somente nos levava a conhecer o conteúdo das obras<br />

analisadas, mas ensinava, sobretudo a ter amor, respeito e admiração<br />

pelo saber dessas pessoas que dedicaram a sua vida em prol do<br />

desenvolvimento e da ampliação da consciência humana. Era visível e<br />

manifesta a sua alegria em poder compartilhar com pessoas<br />

interessadas em conhecer, tudo o que conhecia, amava e valorizava.<br />

A nossa anfitriã era uma entusiasta das ideias de Carl Gustav Jung,<br />

Mircea Eliade e Joseph Campbell. Mostrava respeitosa reverência<br />

pela filosofia de Sócrates, Platão, Plotino, Spinoza e Martin


Heidegger. A mesma consideração demonstrava pela obra do marido,<br />

o filósofo e escritor Vicente Ferreira da Silva, já falecido, cuja obra<br />

enfileirada nas prateleiras da sua biblioteca, nos causava grande<br />

admiração.<br />

Dora possuía uma alma mística, por isso, a sua perfeita afinidade<br />

com as ideias dos filósofos e poetas místicos. Com a concepção do<br />

universo como uma criação divina e o relacionamento e<br />

interdependência entre todas as coisas. Com Hildegard von Bingen<br />

compartilhava a ideia da natureza ser a obra criativa de Deus e<br />

existir uma interrelação entre a alma do homem, a natureza e Deus,<br />

dentro de um perfeito equilíbrio. “O mundo todo foi acariciado pelo<br />

beijo do criador.”<br />

“Deus beija a alma<br />

Bem seu íntimo.<br />

Graça e Bênçãos<br />

São concedidas,<br />

Quando há ardente desejo interior.”<br />

Seguindo os passos de Mestre Eckhart concebia o coração como o<br />

lugar de encontro entre a alma e o Espírito que deve ser purificado<br />

das impurezas do ego. Todas as doenças do ego, o egocentrismo,<br />

todas as afirmações egóicas são impedimentos para o reconhecimento<br />

da alma e de Deus, que habitam o interior do coração.<br />

Escreveu sobre Johann Tauler e compartilhava com ele a defesa do<br />

envolvimento com a vida cotidiana e com a natureza para o alcance<br />

da união da alma com Deus.<br />

Com a poesia de Santa Tereza D’Ávila sobre a alma se emocionava.<br />

A alma como criação divina que foi colocada no coração do homem.<br />

“Foste por amor criada<br />

formosa, bela e assim<br />

em meu coração pintada;<br />

se te perderes, minha amada<br />

alma, buscar-te-ás em Mim.”<br />

Escreveu ainda sobre San Juan de la Cruz e comungava com o seu<br />

sentimento de que é através do amor que a alma se une a Deus.<br />

“O amor une a alma à Deus<br />

E, quanto mais amor ela possui<br />

Com mais força se funde com Ele<br />

E nele está concentrada.”


Dora demonstrava amor e perfeita familiaridade com os seus<br />

escritores, poetas e artistas preferidos. Juana Inês de la Cruz, Jan<br />

Van Ruysbroeck, Jacob Böehme, Angelus Silesius e William Blake<br />

eram frequentadores da intimidade da sua casa há bastante tempo.<br />

Muitos dos temas e autores examinados foram apresentados pela<br />

primeira vez, aos jovens presentes, que tiveram oportunidade de os<br />

conhecer através da mestra. Dora era o exemplo vivo do verdadeiro<br />

mestre, daquele que ama o conhecimento porque reconhece o seu<br />

valor para a formação do homem. Transmitia o seu saber com grande<br />

entusiasmo e alegria. Somente podia se entusiasmar, porque a sua<br />

sensibilidade transcendia a visão comum e porque a sua busca do<br />

conhecimento havia lhe trazido a descoberta do significado maior da<br />

vida. O seu entusiasmo e alegria eram inspiradores, tinha o poder de<br />

insuflar na alma dos alunos o desejo, o amor pelo conhecimento.<br />

Dora Ferreira da Silva era uma amante do conhecimento, no sentido<br />

platônico. Ela era uma filósofa, aquela que ama e busca a sabedoria,<br />

a verdade. A sabedoria procurada por Dora era a inspirada pela<br />

alma, por isso, podia ser chamada de sophia e Dora podia ser<br />

chamada de filósofa. Acreditava que para obter o verdadeiro<br />

conhecimento é necessário eliminar a visão aparente, afastar tudo<br />

aquilo que impede de ver a realidade como ela é e ter a coragem de ir<br />

mais fundo nas coisas. O maior impedimento para a apreensão da<br />

verdade é a percepção superficial e convencional, determinada pelos<br />

condicionamentos sociais e culturais.<br />

A inspiração e a aspiração para os encontros ela encontrava em<br />

Platão. A finalidade dos encontros na casa de Dora era preencher a<br />

necessidade da filósofa de comunhão. Era oferecer alimento para a<br />

sua alma e para a de seus ouvintes. O seu desejo como anfitriã era<br />

compartilhar a sabedoria de sophia. Era oferecer um banquete com<br />

as mais ricas iguarias do conhecimento, o saber que alimenta a alma<br />

e a transforma.<br />

Nesses encontros, Dora convidava os participantes a uma reflexão<br />

profunda sobre as questões humanas. Com a atitude não<br />

convencional, estimulava os alunos a sair da periferia da vida, a<br />

olhar para além da superfície das coisas, a penetrar na profundidade<br />

da alma, para se autoconhecerem, para apreenderem a verdade que<br />

reside por trás de todas as aparências. A verdade buscada era aquela<br />

que só pode ser percebida segundo a perspectiva espiritual da alma,<br />

pois habita na interioridade e profundidade de cada um.


Inspirada pelos seus mestres de alma, Sócrates e Jung, Dora<br />

considerava que o verdadeiro mestre é aquele que sabe suscitar no<br />

aluno a necessidade da autoinvestigação, o desejo pela busca da<br />

verdade interior e o amor por essa prática. Dora fazia do seu anseio<br />

de saber, do seu amor pelo conhecimento uma prática de vida, um<br />

exercício diário que acreditava ser benéfico para a saúde espiritual<br />

da alma.<br />

O seu modo de vida era fundamentado por uma visão de mundo e de<br />

homem inspirada nos grandes mestres, ela se nutria de modelos<br />

exemplares, como Sócrates e Platão. Eram eles quem motivavam a<br />

sua busca especulativa e reflexiva, por que realizaram a condição<br />

humana, de uma forma exemplar. Deixaram um modelo de homem, de<br />

excelência humana e de humanismo.<br />

Acreditava que o conhecimento torna o homem melhor, e que aquele<br />

que conhece, no sentido mais profundo, pode contribuir para a<br />

construção de um mundo mais humano. Dora Ferreira da Silva era<br />

uma humanista, acreditava na capacidade de transformação do<br />

homem. Como admiradora de Heidegger, o seu humanismo também<br />

buscava nele a sua inspiração. Consistia em refletir e cuidar para que<br />

o homem se tornasse humano e não desumano, um bárbaro, que nega<br />

a sua própria essência.<br />

O humanismo de Dora estava baseado na necessidade de reflexão e<br />

também, no cuidado, no velar pela essência da natureza humana para<br />

que essa não se perca ou se deturpe. O seu desejo de cuidar era<br />

motivado pela percepção da crise ética e humanística pela qual o<br />

mundo estava passando e que afeta, principalmente os jovens em<br />

formação.<br />

A finalidade do humanismo de Dora Ferreira da Silva era restaurar a<br />

ideia de homem que foi reduzido em sua humanidade, pelas<br />

concepções racionalistas. Recuperar a concepção humanista era<br />

essencial para preservar o entendimento profundo sobre o homem e<br />

manter a sua integridade.<br />

Nos seus “symposium”, Dora procurava transmitir a crença<br />

inspirada em Joseph Campbell. O homem é, potencialmente, o herói<br />

que procura vencer a banalidade e realizar a sua transcendência, a<br />

sua excelência, a sua virtude, a sua aretê. A necessidade do homem é<br />

cumprir com plenitude a sua potência, as suas possibilidades e<br />

potencialidades.


O homem se transforma e transforma o mundo, através da ação<br />

criativa. A natureza humana é essencialmente criadora, e aí está a<br />

sua liberdade e a sua força de transformação. Mas, como dizia<br />

Spinoza, em cuja fonte Dora também se alimentava, esse caminho só<br />

se realiza através do “Magnum Labore”, através do esforço pessoal e<br />

da introdução no mundo da medida humana, de um universo de<br />

sentido e de valores.<br />

Dora é a representante de uma época que parece ter terminado. Uma<br />

época na qual o conhecimento profundo era valorizado e o saber e a<br />

experiência dos que conhecem profundamente, daqueles que amam a<br />

sabedoria, os verdadeiros mestres. Uma época de pessoas devotadas<br />

ao amor pelo conhecimento, que percebiam a vida como plena de<br />

significado, de possibilidades de realização do homem em harmonia<br />

consigo mesmo e com o mundo.<br />

O que observamos, atualmente é a banalização do conhecimento. O<br />

saber buscado é o aparente, superficial, ou o conhecimento rápido<br />

que instrumentalize tecnicamente, com a exclusiva finalidade<br />

profissional. O homem vive atualmente em um universo despido dos<br />

valores fundamentais e carente de sentido.<br />

O que se assiste hoje é a inversão dos valores humanos, uma crise do<br />

humanismo com o reinado da objetividade e da tecnificação. Na vida<br />

contemporânea, a atividade prática e utilitária é prioritária, não<br />

sobra espaço para o cultivo da humanidade do homem.<br />

Não existe mais espaço para o humanismo, nem para o cuidado das<br />

humanidades, consideradas sem objetividade. Os lugares de<br />

encontros, para a reunião de pessoas com interesses culturais e<br />

humanísticos se esvaziaram, o público se tornou escasso.<br />

Não existem mais encontros como os da casa de Dora.


As identificações que levaram Inês<br />

você a compartilhar com Dora a<br />

escrita. As cumplicidades estéticas de<br />

mãe para filha.<br />

Ser filha de Vicente Ferreira da Silva e Dora Ferreira da Silva, duas<br />

pessoas excepcionais, evidentemente é motivo de orgulho, mas<br />

também gera certo peso, em função das expectativas das pessoas em<br />

relação a mim. Meu caminho foi diferente do deles, e tenho<br />

essencialmente para com os dois um sentimento de filha, de tê-los<br />

amado como pais e de ter sido muito amada por ambos.<br />

Sistematicamente minha mãe lia seus poemas para mim, e queria<br />

saber minha opinião. Eu me identificava com os menos eruditos.<br />

Gosto muito de “Praça com árvore”.<br />

Na praça Jorge de Lima<br />

há uma árvore sozinha;<br />

em seus ramos vê-se o vento<br />

movendo as folhas;<br />

e os pássaros<br />

movendo as folhas e o vento.<br />

Jorge de Lima no centro<br />

era excessivo na sala.<br />

Por si se abriam janelas<br />

para seus poemas passarem.<br />

A voz macia abrigava<br />

as penas de muitos poemas<br />

nascidos de alma e vento.<br />

Quem passa na praça agora<br />

vê um círculo pequeno;<br />

no centro, ergue-se a árvore,<br />

em seus ramos vê-se o vento<br />

movendo as folhas;<br />

e os pássaros<br />

movendo as folhas e o vento.


Dora Ferreira da Silva. Reprodução<br />

O texto que escrevi para o Appassionata foi um depoimento sobre o<br />

período em que estava profundamente envolvida na publicação dos<br />

três últimos trabalhos inéditos de minha mãe. Após o lançamento de<br />

Transpoemas, o que se seguiu foi um sentimento de desamparo, e de<br />

falta absoluta de interlocução. O IMS tornou-se uma instituição<br />

cultural distante e despersonalizada com a saída do Franceschi, e<br />

quanto à publicação do meu livro, mencionada também no<br />

depoimento a que você se refere, é uma promessa sem prazo para<br />

ser cumprida.<br />

Com certeza ela era minha maior incentivadora, e nunca mais<br />

encontrei alguém que se dispusesse a me ajudar, seja na seleção dos<br />

poemas, na sua organização, dando opiniões ou quem sabe se<br />

dispondo a ler o material para escrever um prefácio ou uma<br />

apresentação do trabalho. Fiz uma tentativa, mas a resposta foi<br />

negativa. Não tentei novamente. Como também não disponho de<br />

recursos para fazer uma edição, parei.


Entre 2006 e 2008 o Instituto<br />

Moreira Salles deu ao público três<br />

inéditos de Dora. Inês revela que há<br />

entre os manuscritos inéditos e fala<br />

sobre o que vem sendo feito para<br />

ampliar a divulgação da obra da<br />

poeta.<br />

Há uma série ainda inédita chamada Pássara. Encontrei, num<br />

pequeno caderno artesanal, um conto ilustrado por ela mesma,<br />

chamado A Casa e a Tenda, e existem alguns poemas dispersos.<br />

Em minha opinião, está mais do que na hora de fazer uma publicação<br />

sobre Dora Ferreira da Silva, nos moldes dos Cadernos de Literatura<br />

que o IMS fez. É inegável a qualidade dessa coleção, que além de<br />

textos reúne diversos outros materiais como fotografias,<br />

depoimentos e correspondências. Há muito material disponível de<br />

minha mãe espalhado em revistas, no próprio acervo do IMS, jornais,<br />

mas o que falta é uma iniciativa para reunir e produzir essa edição.<br />

Existem teses de mestrado e doutorado sobre Dora Ferreira da Silva<br />

em andamento, em Minas Gerais e em Campinas. Ela recebeu<br />

premiações de destaque como três Jabutis e o Prêmio Machado de<br />

Assis, mas esse reconhecimento a que você se refere, talvez esteja<br />

mais ligado a uma disseminação de sua obra, ou até mesmo, a sua<br />

popularização. Alguns poemas seus foram inseridos em coletâneas,<br />

como a da Boa Companhia/Poesia, da Companhia das Letras, e na<br />

coleção Como e Por Que Ler – A Poesia Brasileira do Século XX, da<br />

editora Objetiva. Um de seus trabalhos foi selecionado para compor<br />

o volume Os cem melhores poemas brasileiros do século, organizado<br />

por Ítalo Moriconi, também da editora Objetiva. Essa forma de<br />

divulgação é bem interessante, no sentido de fazer com que o<br />

trabalho do poeta atinja um público maior. Mas em minha opinião,<br />

esta é uma tarefa demorada, que será realizada através de muitas<br />

mãos, muitos amigos e admiradores de sua obra. Quem sabe através<br />

das universidades e editoras surjam outras oportunidades... De<br />

minha parte, estou sempre aberta e interessada em tornar minha<br />

mãe uma “poeta conhecida”.


Dora Ferreira da Silva. Reprodução.<br />

O Centro Cultural São Paulo promoveu em 2007 "Lilás - Mulheres de<br />

Todas as Artes", um ciclo de conversas sobre o papel da mulher na<br />

produção cultural brasileira. Em sua abertura foi feita uma<br />

homenagem à Dora Ferreira da Silva e eu fui convidada a dar um<br />

depoimento. Transcrevo abaixo um trecho do texto que li, e que<br />

divertiu bastante o público presente, principalmente os que me<br />

conheciam e também à minha mãe.<br />

Tínhamos nossas diferenças, porque em certos aspectos<br />

éramos de fato, muito diferentes. Minha mãe sempre foi<br />

muito vaidosa, e adorava sedas. Eu sou uma adepta<br />

contumaz do algodão. Quando íamos ao Shopping, eu<br />

ficava indignada com os preços das lojas em que ela<br />

entrava. Certa vez, eu disse em alto e bom som que


deveria ser colocada uma bomba numa loja em que ela<br />

estava experimentando uma blusa. A vendedora ficou<br />

perplexa. Depois que saímos de lá, demos boas risadas<br />

de minhas fantasias terroristas.<br />

Dora Ferreira da Silva<br />

em foto de estúdio. São<br />

Paulo, 26 março de<br />

1946.<br />

De certa maneira, este fato ilustra não apenas nossos gostos, mas<br />

nossa forma de viver. É importante destacar que sempre nos<br />

respeitamos, e jamais quisemos convencer uma à outra de qualquer<br />

coisa. A riqueza de nossa relação residia justamente nessas<br />

diferenças, que eram compartilhadas com riso e amor.


Inês poeta,<br />

um inédito<br />

Baía de Castelhanos<br />

Canoas atentas vigiam.<br />

É hora de ganhar o peixe,<br />

garimpar a vida furtiva<br />

sob a jazida do mar.<br />

Há cardumes de peixes-galo,<br />

lulas, cações e espadas,<br />

há cercos cravados nas pedras<br />

e redes na urgência da espera.<br />

Gaivotas chamam:<br />

lancem as garateias – venham<br />

brincar!<br />

No mato,<br />

o legado agarra-se ao musgo<br />

o monjolo soca o milho<br />

ébrios, os náufragos cantam<br />

respondem bem-te-vis<br />

e um coro de sabiás.<br />

Longe do rugido da cidade<br />

gira a roda da farinha<br />

floresce a paina da mata,<br />

a infância, o que vem da terra,<br />

as crias.....


©Rubem Bianchi


OS CONVIDADOS<br />

Alexandre Bonafim Belizário<br />

Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras pelo Centro Universitário<br />

Claretiano de Batatais (2001). É especialista em Fundamentos da Crítica<br />

Literária (2002) e mestre em Estudos Literários, ambos pela Universidade<br />

Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Araraquara (2006). É doutor em<br />

Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é<br />

professor adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade<br />

Estadual de Goiás, unidade de Morrinhos. Tem experiência na área de<br />

Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa e Brasileira, atuando<br />

principalmente nos seguintes seguimentos: poesia portuguesa, literatura<br />

portuguesa, literatura brasileira, poesia brasileira.<br />

Donizete Galvão<br />

Nasceu em Borda da Mata, Minas Gerais, Brasil, em 1955. Publicou Azul<br />

navalha (T.A. Queroz, Editor, 1988), As faces do rio (Água Viva Editores,<br />

1991), Do silêncio da pedra (Arte Pau-Brasil, 1996), A carne e o<br />

tempo (Nankin Editorial, 1997), Ruminações (Nankin Editorial, 1999), Mundo<br />

mudo (Nankin Editorial, 2003). Tem trabalhos publicados nos principais<br />

jornais e revistas do Brasil, entre eles Folha de S. Paulo, Poesia Sempre,<br />

Dimensão, Inimigo Rumor e Cult. Publicou também nas revistas Babel<br />

(Venezuela), Blanco Móvil (México), Matérika (México), tsé-tsé (Argentina),<br />

Anto (Portugal) e Helicóptero (México/USA), entre outras.<br />

Soares Feitosa<br />

Nasceu em 1944, Ipu, Ceará. Foi jornalista na juventude, em Fortaleza;<br />

caixeiro-viajante no Piauí; depois funcionário do Banco do Brasil. Viveu no<br />

Recife de 1980 a 1994. Transferido para Salvador, divide hoje residência<br />

entre as três grandes capitais nordestinas. Em 1993, às vésperas do meio<br />

século de vida, escreveu seu primeiro poema. Em 1996 iniciou a publicação<br />

artesanal do livro Réquiem em Sol da Tarde. Ainda em 1996, fundou, na<br />

Internet, o Jornal de Poesia. Em 1997 publica o seu primeiro livro.<br />

Inês Ferreira da Silva Bianchi<br />

Nasceu em São Paulo em 1953. Formada em Psicologia pela Pontifícia<br />

Universidade Católica de São Paulo. Tem especialização em Gestalt no<br />

Instituto Sedes Sapientieae e trabalhou por duas décadas como<br />

psicoterapeuta em consultório particular. Foi perita judicial em Varas de<br />

Família e atuou na Casa da Mulher, instituição que apoia mulheres em<br />

situação de risco doméstico. Editou com sua mãe, a poeta Dora Ferreira da<br />

Silva a revista Cavalo Azul. Atualmente mora em Ilhabela onde conduz o<br />

espaço cultural Pés no Chão.


AGRADECIMENTOS<br />

Ao Instituto Moreira Salles pelo acesso ao arquivo de Dora Ferreira da<br />

Silva e pela parceria para esta edição.<br />

À Revista Colóquio/Letras da Fundação Calouste Gulbenkian pela<br />

cessão do texto de Euryalo Cannabrava reproduzido neste número na<br />

sessão entremeio e dos poemas de Dora Ferreira da Silva.<br />

À Inês Ferreira da Silva Bianchi pela disponibilidade e<br />

acompanhamento no processo de informações sobre o acervo de sua<br />

mãe Dora Ferreira da Silva e pela cessão dos arquivos reproduzidos<br />

na sessão inéditos.<br />

Ao Alexandre Bonafim Belizário pelo texto inédito sobre a obra de<br />

Dora Ferreira da Silva e pelo poema publicado na sessão Um caderno<br />

para Dora; nesse mesmo rol, ao Donizete Galvão e ao Soares Feitosa.<br />

À todos que enviaram material para o caderno-revista.


<strong>7faces</strong><br />

caderno-revista de poesia<br />

set7aces.blogspot.com<br />

O caderno-revista de poesia <strong>7faces</strong> é uma produção semestral independente<br />

projetada, diagramada e editada pelo poeta Pedro Fernandes.<br />

Organização desta edição<br />

Pedro Fernandes<br />

Convidados para esta edição<br />

Alexandre Bonafim Felizardo<br />

Donizete Galvão<br />

Soares Feitosa<br />

Inês Ferreira da Silva Bianchi<br />

Colaboradores (por ordem de apresentação)<br />

Ricardo Dantas<br />

Davi Araújo<br />

Tiago Duarte Dias<br />

Adriano Winter<br />

Guerá Fernandes<br />

Joice Berth<br />

Marco Polo Guimarães<br />

Ianê Mello<br />

Pedro Belo Clara<br />

Rosane Carneiro<br />

Carina Carvalho<br />

Paulo Lima<br />

Natalia Turini<br />

Luiz Garcia<br />

Paula Cajaty<br />

Nuno Júdice<br />

Amosse Muscavele<br />

Carlos Margarido<br />

Amélia Luz<br />

Paulo Vitor Grossi<br />

Renata Bomfim<br />

Agradecimentos<br />

A todos que enviaram material para a ideia e em especial a Claudicélio Rodrigues da<br />

Silva e Ítalo Meneghetti que se dispuseram a escrever sobre Salgado Maranhão.<br />

Contato<br />

Pelo correio eletrônico do editor, pedro.letras@yahoo.com.br, ou através<br />

do correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com<br />

<strong>7faces</strong>. Caderno-revista de poesia.<br />

Natal – RN. Ano 3. Edição n. 6. Jul.-Dez. 2012.<br />

ISSN 2177-0794<br />

Licença Creative Commons.<br />

Distribuição eletrônica e gratuita. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos<br />

em quaisquer mídias, desde que seja preservada a face de seus respectivos autores e<br />

não seja para utilização com fins lucrativos.<br />

Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos<br />

autores e fica disponível para download em set7aces.blogspot.com<br />

O editor deste caderno-revista é isento de toda e qualquer informação que tenha<br />

sido prestada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados,<br />

conforme declaração enviada por cada um dos autores e arquivadas no sistema<br />

<strong>7faces</strong>.


Capa/Contracapa: Cláudio Cretti. Sem título. 35×45 cm – Tinta óleo e<br />

grafite em pó sobre pergaminho – 2012<br />

Claudio Cretti nasceu em 1964 em Belém, PA. Com menos de um ano,<br />

muda-se com a família para Pirassununga, interior de São Paulo, cidade<br />

onde vive até os quinze anos Em 1979, vai morar em São Paulo. Dois anos<br />

depois, ingressa na escola técnica IADE — Instituto de Arte e Decoração,<br />

iniciando um período de formação que vai determinar a sua escolha<br />

definitiva pela arte. Nessa época, estabelece frutíferas relações com<br />

professores como Lenora de Barros, Guto Lacaz e Cássio Michalani, entre<br />

outros. Principiou Artes Plásticas na Escola de Belas Artes, mas abandonou o<br />

curso antes do término do primeiro ano. Em 1985 realizou trabalhos com o<br />

Grupo Ponkã, encabeçado por Paulo Yutaka. Atuou no espetáculo O próximo<br />

Capítulo e concebe a performance Criptoprismática, apresentada no III Salão<br />

Paulista de Arte Contemporânea, no qual recebe o Prêmio Estímulo, na<br />

Pinacoteca do Estado e na Funarte, em São Paulo. Depois, trabalhou no<br />

espetáculo Bodas de Sangue, de García Lorca, com o grupo Dramáticos.<br />

Paralelamente, começou a desenhar com regularidade, enviando trabalhos<br />

para salões. Além disso, estudou medicina oriental e formou-se massagista<br />

na Associação de Massagistas Orientais. Depois de várias mostras e da<br />

exposição individual Luz de ouvido foi ser professor na Escola da Vila, em<br />

São Paulo, onde se mantém até hoje.<br />

Arte interna a partir de Maurício Nogueira. Sem título<br />

Maurício Nogueira Lima nasceu no Recife (PE) em 1930 e morreu em<br />

Campinas (SP) em 1999. Pintor, arquiteto, desenhista, artista<br />

gráfico, professor. Estudou Artes Plásticas entre 1947 e 1950 no Instituto de<br />

Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, em<br />

Porto Alegre. Frequentou os cursos de comunicação visual, desenho<br />

industrial e propaganda no Instituto de Arte Contemporânea do Museu de<br />

Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP. Em 1953, integrou o Grupo<br />

Ruptura. Estuda arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em<br />

São Paulo, entre 1953 e 1957. EM 1960, realiza as primeiras grandes<br />

instalações ambientais para indústrias automobilísticas no Salão do<br />

Automóvel. A partir de 1974, leciona, entre outras escolas, na Faculdade de<br />

Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU/USP, onde<br />

conclui mestrado e doutorado na área de estruturas ambientais urbanas.<br />

Nas décadas de 1980 e 1990, realiza diversos trabalhos em espaços públicos,<br />

como a praça Roosevelt, largo São Bento, estações de metrô e no elevado<br />

Costa e Silva, todos em São Paulo.<br />

As imagens desta edição foram coletadas da internet e nos casos identificáveis cita<br />

a fonte de todas as obras aqui disponibilizadas. Em caso de violação de direitos,<br />

mau uso, uso inadequado ou erro entrar em contato; nos comprometemos a<br />

atender as exigências no prazo legal de 72 horas contadas do momento em que<br />

tomarmos conhecimento da notificação.<br />

Para participar da ideia, deve o poeta consultar o espaço<br />

set7aces.blogspot.com, para ler as regulagens e enviar o material; ou<br />

solicitar ao editor através do contato pedro.letras@yahoo.com.br o envio<br />

das regulagens.


é preciso que venha o impreciso<br />

inesperado como a rosa<br />

ou como o rio<br />

o poema necessário<br />

Dora Ferreira da Silva, Andanças<br />

Selo Letras in.verso e re.verso

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