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<strong>7faces</strong><br />
caderno-revista de poesia<br />
Natal – RN, Ano 3. Edição 6. Jul-Dez. 2012<br />
ISSN 2177 0794
Obra da homenageada<br />
Poesia<br />
Andanças (1970)<br />
Uma via de ver as coisas (1973)<br />
Menina seu mundo (1976)<br />
Jardins (esconderijos) (1979)<br />
Talhamar (1982)<br />
Retratos da origem (1988)<br />
Poemas da estrangeira (1996)<br />
Poemas em fuga (1997)<br />
Poesia Reunida (1999)<br />
Hídrias (2005)<br />
O leque (2007)<br />
Appassionata (2008)<br />
Transpoemas (2008)<br />
Ensaio<br />
Tauler e Jung: o caminho para o centro (escrito em parceria com Hubert<br />
Lepargneur) (1997)<br />
Cartografia do imaginário (2003)
<strong>7faces</strong><br />
caderno-revista de poesia<br />
Natal – RN
Sucumbo a essa linguagem<br />
que ultrapassa palavra, silêncio<br />
e é vida.<br />
Dora Ferreira da Silva, Appassionata
sumário<br />
Apresentação<br />
A poesia, uma via de ver as coisas<br />
Por Pedro Fernandes<br />
O lirismo dos afetos e da memória na poesia de Dora Ferreira da Silva<br />
Por Alexandre Bonafim Felizardo<br />
Vias de ver as coisas 1<br />
Ricardo Dantas<br />
Davi Araújo<br />
Tiago Duarte Dias<br />
11<br />
22<br />
40<br />
47<br />
60<br />
Adriano Winter 62<br />
Guerá Fernandes 71<br />
Joice Berth 78<br />
Marco Polo Guimarães 81<br />
Dora Ferreira da Silva: recortes 1 89<br />
Entremeio<br />
O projeto criador em Dora Ferreira da Silva<br />
Por Euryalo Cannabrava<br />
Vias de ver as coisas 2<br />
Ianê Mello<br />
99<br />
117<br />
Pedro Belo Clara 119<br />
Rosane Carneiro 125
Carina Carvalho 129<br />
Paulo Lima 134<br />
Natalia Turini 137<br />
Luís Garcia 148<br />
Estudos e devaneios<br />
Por Jordny<br />
152<br />
Um caderno para Dora 161<br />
Vias de ver as coisas 3<br />
Paula Cajaty<br />
172<br />
Nuno Júdice 174<br />
Amosse Muscavele 183<br />
Carlos Margarido 188<br />
Amélia Luz 192<br />
Paulo Vitor Grossi 196<br />
Renata Bomfim 200<br />
Dora Ferreira da Silva: recortes 2 207<br />
Dora Ferreira da Silva: inéditos 225<br />
O mundo em poesia<br />
Por Inês Ferreira da Silva Bianchi<br />
241
apresentação<br />
A POESIA, UMA VIA DE VER AS COISAS<br />
No começo de tudo, quando a palavra e o mundo estavam fundidos e<br />
as linhas entre um e outro, portanto, não se difundiam, a poesia<br />
estava na matéria do gesto, no pulso do corpo em êxtase, no lugar do<br />
divino, numa dimensão, por isso, dada a poucos. Todo poeta, é por<br />
essa razão primordial, um geômetra do universo, e o seu exercício<br />
escritural nunca poderá está reduzido ao movimento da letra<br />
desdobrada uma após outra no espaço amplo do branco da página.<br />
Se assim ocorre o universo será estrutura opaca, um defeito, uma<br />
mancha dispersa presa no papel. Aliás, a poesia não pode está<br />
reduzida ao desenho da forma informe ou do sentido invertebrado<br />
do texto. Ela deve conspirar e ter pulso para saltar da superfície lisa<br />
da folha e ser matéria pulsante, suspensa, atmosfera capaz de atuar<br />
no desempenho do corpo humano, pela lágrima, pelo riso, pelo gozo.<br />
É nesse instante que ganha, a palavra, seu real lugar no complexo<br />
sistema a que pertence e se ilumina a ponto de refundar o sujeito e o<br />
ser.<br />
O poeta enquanto feitor do poema, instante em que primeiro se<br />
prime em suas fronteiras as possibilidades da poesia, é somente<br />
aquele capaz de conviver no limiar de uma epifania constante que lhe<br />
permita está cercado do tempo primordial; epifania que é um<br />
fenômeno do espírito e diz uma maneira de estar locado e<br />
simultaneamente deslocado. Um pulso de iluminação. Não há, para<br />
isso, leis próprias, fórmulas prontas de se ensinar. Há para isso a<br />
necessidade do poeta ser feito pela vivência da palavra e seu denso<br />
universo fulgurativo.<br />
<strong>7faces</strong> – Pedro Fernandes │ 11
Não é poeta aquele que se derrama pelos cantos, que faz histórias de<br />
histórias pintando o papel de ponta leste a oeste de berros de amor,<br />
de factoides vazios, porque o amor e as vivências são coisas<br />
moventes, sentidas mas impossíveis de sua partilha como cópia fiel<br />
pelo dorso da palavra. Nunca o poema será mímesis se o poema é<br />
sempre criação.<br />
Também não é poeta o que quer ser qualquer coisa que o valha,<br />
inclusive poeta; poeta não é profissão, é modo de estar no mundo. A<br />
busca cega pela forma, fruto de um encantamento pela palavra e uso<br />
inadequado das maneiras do tecnicismo que suprime o próprio pulso<br />
da letra, da voz que lhe antecede, é vã; terá e tem levado muitos por<br />
descaminhos que nada tem do poeta e da gesta do poema. A busca<br />
do poeta que deve se dá pelo dorso da palavra é a de se reaproximar<br />
do estágio genesíaco do universo e os únicos guias nessa empreitada<br />
são ele próprio e sua vontade de experimentar-se pela boca dos seus<br />
antepassados, aqueles que fundaram e ultrapassaram a esfera do<br />
tempo comum e se fizeram eles mesmos tempo.<br />
Por motivos como estes, ninguém melhor que Dora Ferreira da Silva<br />
para ser homenageada neste caderno-revista. Não é que a poeta<br />
tenha uma obra alheia a si e ao mundo empírico, mas ela é o<br />
constante estágio de epifania entre este e o lugar genesíaco. Sua<br />
poesia parte das dissonâncias existenciais, e só este instante já é de<br />
natureza poética, para ultrapassá-las e alcançar um instante único na<br />
extensa rede de vozes dos seus antepassados. Alimenta-se de um<br />
teor estético e renova o diálogo esquecido pelos estetas da forma, o<br />
que não quer dizer que esse trabalho de elaboração esteja ausente<br />
na sua obra; do contrário, talvez até esteja mais que em outros,<br />
porque a poesia de Dora se guia pela experimentação e refiguração<br />
do simbólico que ora se manifesta no poema através da composição<br />
linguística, ora através do corpo estrutural do texto. Sente-se, que<br />
sua poesia é muito estudada e talvez por isso consiga cumprir o seu<br />
papel no universo da linguagem e fora dele: que é o de promover o<br />
reencontro do sujeito com outros lugares e a partir daí seja<br />
encorajado pela descoberta do universo primordial reencontrado por<br />
Dora.<br />
Pedro Fernandes<br />
Poeta e editor da ideia
Arquivo de Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles<br />
Dora Ferreira da Silva (1918-2006)
a homenageada<br />
“Acho que o papel do poeta é parecido com o daqueles que levam a tocha na<br />
Olimpíada. Mesmo que o mundo esteja dessacralizado, temos que acreditar que a vida<br />
é forte, transforma-se e cria novas saídas. Penso na imagem de uma flor brotando nos<br />
interstícios de uma pedra. Acredito nas diversas manifestações do divino, no anima<br />
mundi. Temos que viver este não-ser, esta noite, esta dor como uma passagem. A<br />
fidelidade de cada um a si mesmo é o que se pede. Dar o pouco que se tem, ser fiel à<br />
sua voz interior, é o que se pede aos poetas na tentativa de suprir essa carência dos<br />
deuses.”<br />
Dora Ferreira da Silva. Entrevista a Donizete Galvão publicada na Revista Cult, maio de<br />
1999.<br />
Dora Ferreira da Silve teve, dos 87 anos que viveu, mais de 50 deles dedicados<br />
à poesia. É autora de uma voz única na literatura brasileira e, por esta razão,<br />
está ao lado de grandes nomes, como o do amigo de correspondências Carlos<br />
Drummond de Andrade, poeta que, na sua grandeza é matéria única de<br />
comparação na nossa cena literária. Além de poeta, foi ensaísta e tradutora,<br />
devendo, nós os leitores brasileiros, o contato direto com nomes com Rilke, T.<br />
S. Eliot, D. H. Lawrence, Hölderlin e Jung. Como editora coordenou juntamente<br />
com o seu marido, Vicente Ferreira da Silva, a revista Diálogos. Em sua casa,<br />
coordenou o Centro de Estudos de Poesia Cavalo Azul, nome que lhe servirá<br />
para um periódico editado a partir do grupo. Sua obra foi premiada três vezes<br />
com o Prêmio Jabuti e em 2000 recebeu da Academia Brasileira de Letras o<br />
prêmio pelo conjunto da obra, representado na antologia Poesia Reunida.
© Vicent Van Gogh. Almond Blosson. 1890
Nascimento do poema<br />
É preciso que venha de longe<br />
do vento mais antigo<br />
ou da morte<br />
é preciso que venha impreciso<br />
inesperado como a rosa<br />
ou como o riso<br />
o poema inecessário.<br />
É preciso que ferido de amor<br />
entre pombos<br />
ou nas mansas colinas<br />
que o ódio afaga<br />
ele venha<br />
sob o látego da insônia<br />
morto e preservado.<br />
E então desperta<br />
para o rito da forma<br />
lúcida<br />
tranquila:<br />
senhor do duplo reino<br />
coroado<br />
de sóis e luas.<br />
Dora Ferreira da Silva, Andanças
O vento<br />
Na palma do vento<br />
pouso a fronte. Nele confio.<br />
A quem confiaria senão a ele<br />
este rude labor?<br />
Abandono-me à tormenta<br />
(lumes mastros<br />
gaivotas do mar próximo).<br />
Enreda-me a noite.<br />
Mas dele são os dedos leves<br />
que me fecham os olhos. E é manhã.<br />
Dora Ferreira da Silva, Jardins (Esconderijos)
Capa de Poesia Reunida, de Dora Ferreira da Silva publicado em 1999.<br />
Imagem: Arquivo <strong>7faces</strong>
Órfica<br />
Não me destruas, Poema,<br />
enquanto ergo<br />
a estrutura do teu corpo<br />
e as lápides do mundo morto.<br />
Não me lapidem, pedras,<br />
se entro na tumba do passado<br />
ou na palavra-larva.<br />
Não caias sobre mim, que te ergo<br />
ferindo cordas duras,<br />
pedindo o não-perdido<br />
do que se foi. E tento conformar-te<br />
à forma do buscado.<br />
Não me tentes, Palavra,<br />
além do que serás<br />
num horizonte de Vésperas.
O lirismo dos afetos e da<br />
memória na poesia de<br />
Dora Ferreira da Silva<br />
Por Alexandre Bonafim Felizardo
Dora Ferreira da Silva, em parte considerável de sua obra, rendeu<br />
grande importância às temáticas da finitude da vida, do transcorrer<br />
do tempo, da força pulsante da memória, força essa capaz de<br />
resgatar experiências mortas e de desafiar a inexorabilidade da<br />
morte. Com efeito, pode-se afirmar que a sensibilidade poética de<br />
Dora sempre esteve atenta ao furor do tempo, à efemeridade da<br />
existência humana. Dessa forma, em muitos de seus poemas, o<br />
tempo torna-se fonte de seu lirismo, a matéria poética essencial de<br />
sua escrita.<br />
Em decorrência disso, a memória também assume grande<br />
importância na obra da escritora paulista. Em muitos poemas, a<br />
reminiscência é responsável pelo resgate do que já não mais existe. O<br />
eu lírico dos textos de Dora tem uma sede imensa de passado, um<br />
desejo de resgatar o que se esfacelou na poeira do tempo. Há,<br />
portanto, na obra de Ferreira da Silva, um embate do ser contra o<br />
tempo, do ser contra o próprio nada. Ante o vácuo das ausências,<br />
ante os escombros do vivido, a poeta intenta instaurar a totalidade<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 24
da vida, ou seja, a poesia. Dessa forma, em muitos textos, o lirismo<br />
delineia as forma do não vivido, do inexistente, e fixa, na malha da<br />
escrita, instantes reveladores da existência, instantes de plenitude e<br />
iluminação. Uma aguda consciência do instante delineia essa busca<br />
pelo passado e emoldura o momento, revelando-lhe toda a carga<br />
lírica e a beleza.<br />
Dessa forma, o passado irrompe no presente como uma verdadeira<br />
fulguração, como um rasgo de luz que ilumina, por pouquíssimo<br />
tempo, o presente. O passado torna-se símbolo, linguagem,<br />
revelação. Ele conduz o presente e norteia-o, revelando-lhe<br />
significados e sentidos. O pretérito torna o agora fecundo,<br />
transforma a existência em um reservatório de experiências. Com<br />
efeito, o eu lírico da poesia de Dora adquire uma grande sabedoria,<br />
uma vivência aguda da condição humana. Conforme aponta Arrigucci<br />
Júnior, o esquecimento transforma o vivido em sombra passageira,<br />
em símbolo instantâneo do viver do homem:<br />
O presente pode então ser apreendido na forma<br />
de um momento poético, convertendo-se em<br />
símbolo: síntese de uma totalidade ausente que,<br />
no entanto, se presentifica por um resgate da<br />
memória numa súbita iluminação do espírito,<br />
numa imagem fulgurante e instantânea, que se vai<br />
perder em seguida. O que passa se faz símbolo. E<br />
na breve fulguração dos símbolos, se recobra o<br />
que se esfumava na zona de penumbra da<br />
memória ou jazia de todo adormecido no<br />
esquecimento. Plenitude passageira do que foi ou<br />
está indo e agora vira imagem [...]. Contra o fundo<br />
de sombras da memória, que é também da morte<br />
e do esquecimento, brilham por um instante as<br />
imagens simbólicas. As imagens, passageiras como<br />
as sombras. (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.32)<br />
A memória sempre resgata um instante iluminado, epifania viva do<br />
passado a se incrustar no presente, aprofundando as vivências<br />
existenciais do agora. Entretanto, a acompanhar esse prazer do<br />
agora, ou melhor, do passado presentificado no presente, há sempre<br />
a corrosiva consciência da efemeridade de tudo o que existe.<br />
Conforme aponta Arrigucci Júnior, a “memória épica recupera para a<br />
contemplação lírica o que passou, trazendo de volta à consciência e à<br />
luz do presente um instante dissolvido na corrente do tempo [...]”<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 25
(ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.33). Esse senso de transitoriedade fará<br />
com que Dora passe a perceber o agora com maior afinco. A<br />
percepção do momento presente torna-se aguçada, intensa. Dessa<br />
maneira, o eu lírico de muitos poemas da autora paulista passa a<br />
usufruir o presente, esgotando-lhe as possibilidades de vivência. O<br />
instante é desfrutado com todo o furor, com toda a intensidade, pois<br />
em breve ele se tornará cinza morta, ruína perdida. A velha temática<br />
do carpe diem ressurge nos poemas de Ferreira da Silva, imprimindo<br />
um senso de aventura ao agora. Eis o que novamente pontua<br />
Arrigucci Júnior: “[...] a necessidade de gozar o presente antes que a<br />
vida fuja parece adquirir [...] a dimensão materialista do velho tema<br />
pagão do carpe diem, pois se liga diretamente ao prazer material dos<br />
sentidos, numa espécie de negaceio erótico que torna o instante<br />
presente inadiável.” (ARRIGUCCI JÚNIOR, 1987, p.33).<br />
Há um livro de Dora, sobretudo, em que a temática da memória é<br />
essencial, é o próprio cerne da escritura. Referimo-nos à bela obra<br />
intitulada Retratos da origem. Nesse volume, Dora faz uma<br />
escavação não apenas de sua memória pessoal, subjetiva, mas de<br />
toda a sua linhagem familiar, indo ao tempo mais remoto, instante<br />
fecundo e originário de onde irrompeu o primeiro homem, o ser<br />
primevo universal que gerou a humanidade inteira. Esse limiar<br />
originário, intraduzível, é metaforizado por uma porta onde o eu<br />
lírico bate, na busca do enigma da existência: “Arco etrusco/ lanterna<br />
alta/ aldrava/ Bato à porta da origem/ lá/ onde nenhum passo<br />
ressoa/ vindo ao encontro/ lá/ onde nenhuma voz ecoa/ no alegre<br />
dialeto/ que ri” (SILVA, 1999, p. 187). O resgate desse passado<br />
longínquo desvela por sua vez o tempo auroral das origens, instante<br />
forte da cosmogonia, em que tudo é nascimento, esplendor,<br />
regeneração. Esse instante zero do existir de tudo, conforme Mircea<br />
Eliade, é reatualizado pelos mitos, reincerindo tal plenitude das<br />
origens no agora morto e envelhecido. Assim, o tempo mítico, tal<br />
como o tempo dos textos de Retratos da origem, é cíclico, não linear.<br />
Daí a consciência sacra desse momento primevo e a percepção da<br />
degenerescência de nosso mundo atual, capitalizado e conspurcado:<br />
“Sinto no ar o odor de um fogo arcaico/ sacro/ estou com frio/ nesse<br />
mundo pós-atômico de cinzas” (SILVA, 1999, p. 187-188). Tal livro,<br />
portanto, inicia-se com o mergulho, enfim, pelo interior além dessa<br />
porta, numa metáfora pela qual a busca da perenidade encontra uma<br />
simbologia de sensível plasticidade e lirismo: “e entro/ na Origem<br />
solar/ aquém (além)/ do mundo em trevas” (SILVA, 1999, p.188).<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 26
A partir de então, nos poemas que se seguem, Dora irá narrar a saga<br />
dos Bulliarattis, família arcaica de suas origens genéticas, até atingir o<br />
momento de sua infância, em Conchas, e de sua vida madura, em<br />
Itatiaia. No ínterim dessa longa travessia de uma memória iluminada<br />
pela imaginação, a poeta de Retratos da origem lega-nos momentos<br />
de altíssima poesia, em que os antepassados mortos surgem<br />
resgatados pela força nomeadora da palavra lírica, palavra essa capaz<br />
de fazer renascer os que já não mais existem, tornando-os poesia.<br />
Com efeito, cenas da infância do eu lírico (fulgurações biográficas da<br />
própria autora), irrompem da página, em instantes de iluminação, em<br />
metáforas configuradoras do fluir do tempo e da busca da<br />
perenidade:<br />
O rio de Conchas<br />
Sua margem de conchinhas<br />
corre descuidado<br />
Nele flutuou<br />
uma pluma mínima<br />
que a Menina viu<br />
chorando por esse destino incerto<br />
à deriva<br />
com saudades de lá e de cá<br />
Ela corria<br />
seu avô dizia: “Pra que chegar à estação antes do<br />
trem?”<br />
Mas quem<br />
- Luigi Locchi –<br />
não quer voltar à concha<br />
de um princípio qualquer<br />
seu próprio fim?”<br />
(SILVA, 1999, p.215)<br />
A pluma a correr pelo rio serve como correlato objetivo da saudade,<br />
nesse poema tão ao estilo de Eliot, em que imagens díspares são<br />
justapostas num mosaico fluido como a própria memória afetiva.<br />
A pergunta final entrecruza os tempos primordiais do existir,<br />
metaforizados pela concha, e o instante da morte expresso pela<br />
palavra fim. No princípio está o início e vice-versa, na exposição<br />
daquilo que Ivan Junqueira intitulou de pantempo, instante epifânico<br />
em que a poesia desvela a agudeza do existir humano.<br />
Junqueira chama a atenção para a mistura temporal que marca o<br />
início do poema “Four quarterts” de Eliot. De acordo com o poeta<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 27
asileiro, nesse poema de Eliot, o passado, o presente e o futuro<br />
embaralham-se, quebrando a linearidade cronológica da existência.<br />
Tem-se, dessa forma, no poema de Eliot, aquilo que Junqueira (1998,<br />
p.84) chamou de pantempo. O pantempo seria um momento<br />
totalizador, em que se aglutinam, em um único bloco, as sequências<br />
temporais: futuro-presente-passado. Evidentemente, o pantempo<br />
não acontece na realidade objetiva, mas sim na imaginação lírica.<br />
Trata-se de um mito poético capaz de aliviar a angústia ante a<br />
finitude humana. Eis o início do poema de Eliot, na tradução de<br />
Junqueira:<br />
O tempo presente e o tempo passado<br />
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro<br />
E o tempo futuro contido no tempo passado.<br />
Se todo tempo é eternamente presente<br />
Todo tempo é irredimível.<br />
(ELIOT, 2000, p.199)<br />
Dora, portanto, em seu livro, cria uma obra circular, em que tempos<br />
díspares se consubstanciam, formando um tempo privilegiado, o<br />
tempo da poesia.<br />
O ciclo de poemas que encerra Retratos da origem, os “Cantares do<br />
Itatiaia”, possui um tom erótico eloquente, em que o passado<br />
amoroso é configurado como um carpe diem, um idílio bucólico<br />
vivido no seio da natureza. Dessa forma, toda a palpitação, todo o<br />
frêmito desse instante regresso irrompe, com grande plasticidade,<br />
pela força pictórica da palavra lírica:<br />
As estradas eram vazias<br />
nasciam súbitos jardins<br />
ao passarmos abraçados<br />
Nos entrançados da mata<br />
ferias ramos e folhas<br />
com espada de prata<br />
para abrir-me caminho<br />
Gritavas<br />
(tua voz ecoava):<br />
- Dai-lhe passagem<br />
é minha Amada e Origem!<br />
Numa clareira pousaste<br />
(eu me lembro)<br />
um cravo<br />
Entrancei estranha melodia<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 28
© Joshua Sam Frank
ao canto das rolas<br />
ao murmúrio dos rios<br />
e o timbre mais cálido<br />
suscitava amoras<br />
Tudo o que foi parece<br />
mais forte<br />
que esta hora [...]<br />
(SILVA, 1999, p. 222-223)<br />
O apelo da memória presentifica o passado, dando uma concretude<br />
viva e plena à experiência pregressa. Dessa forma, nos três versos<br />
finais do excerto citado, o que se perdeu na vacuidade do passado<br />
torna-se mais forte que o agora. O passado configura-se amplo,<br />
agudo, como um fato que se dá no instante já. Conforme José Paulo<br />
Paes:<br />
[...] na parte final do livro Cantares de Itatiaia,<br />
presente e passado se misturam intimamente,<br />
como o dá a perceber a constante alternância do<br />
imperfeito e do perfeito da rememoração com o<br />
presente do indicativo da sensação. Selando essa<br />
unidade, que faz do “foi” um “ainda é”<br />
indistinguível do “é” puro e simples, está o Amor,<br />
no entanto celebrado como ausência do Outro e<br />
incompletude por falta dele [...] (PAES apud SILVA,<br />
1999, p.412)<br />
Retratos da origem, portanto, é o livro em que Dora mais esmiúça<br />
sua memória, numa elaboração poética de fina arquitetura, em que<br />
tempo e espaço flutuam no embaralhamento dos versos, quebrandose,<br />
assim, a linearidade histórica e a imanência concreta dos espaços.<br />
Assim, passado, presente e futuro consubstanciam-se numa mesma<br />
unidade, da mesma forma que os mais diversos espaços pretéritos<br />
são presentificados, como cenários vivos de uma escrita a arder o<br />
passado como um presente perene. Daí a configuração do eu lírico<br />
como uma “mendiga de lembrança”:<br />
Uma flecha trespassa a manhã<br />
de brumas<br />
mendiga da lembrança<br />
(nada se perdeu<br />
de música e vento!)<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 30
Mas o timbre de vozes<br />
agora<br />
soa estranho<br />
ao som de outras manhãs<br />
que tempo e espaço<br />
quiseram separar<br />
de um tecido eterno<br />
(SILVA, 1999, p. 225)<br />
Apesar do tempo e do espaço apartarem as manhãs do “tecido<br />
eterno”, o poema, contraditoriamente ganha a alta tarefa de<br />
justamente fazer o contrário, ou seja, de tecer as manhãs pretéritas<br />
num instante perene. Escrever para Dora, portanto, é um gesto que<br />
rastreia o sagrado, na procura de uma permanência capaz de<br />
resguardar o vivido da voracidade do tempo. O poema, assim, não é<br />
apenas um registro da memória, é, antes, uma escritura que desafia a<br />
contingência e a caducidade da condição humana. A palavra, para<br />
além de sua limitação, ganha corporalidade na página, como um<br />
registro vivo, pleno, a resgatar o instante de sua precariedade.<br />
Com efeito, conforme podemos notar, o tempo é uma das forças<br />
temáticas de Dora e ela faz da condição humana o motivo central de<br />
sua poética. Confirmando, assim, as palavras de Weisskopf, para<br />
Ferreira da Silva, o mistério do tempo revela-se como algo instigante<br />
e, a despeito de sua natureza incompreensível, serve-lhe como fonte<br />
de questionamentos:<br />
O ser humano, supostamente vinculado aos trilhos do tempo, questiona e<br />
interroga sem cessar. A dor e a alegria são as companheiras que fermentam<br />
suas expectativas, suas descobertas e ilusões. A necessidade de conhecer,<br />
no entanto, de penetrar o âmago do mistério, é maior e mais forte do que<br />
todas as vicissitudes que nos acompanham. Vivemos no tempo e não<br />
sabemos o que ele é. As especulações vêm de muito longe, de antigamente,<br />
no tempo de sempre ser. Da Antigüidade Clássica à Idade Média, do<br />
alvorecer do pensamento científico aos paradoxos inconciliáveis da ciência<br />
dos nossos dias, o tempo permanece hierático, como o maior de todos os<br />
mistérios, maior que os mistérios do amor e da morte, porque o mistério do<br />
tempo é da mesma estirpe do mistério de Deus. (WEISSKOPF in HOISEL,<br />
1998, p.56)<br />
Todo saber, sistemático ou não, apenas roça a superfície desse<br />
grande mistério que é o tempo. Por isso todo conhecimento sobre o<br />
tempo, acumulado pela humanidade desde a era clássica, nunca se<br />
torna ultrapassado. O saber sobre o tempo é um saber autocentrado,<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 31
que se multiplica, nunca havendo um desvendamento total da<br />
natureza da temporalidade. O que o filósofo pré-socrático Heráclito<br />
de Éfeso afirmou sobre o tempo persiste, ainda hoje, como uma<br />
verdade. Da mesma forma, a concepção existencialista do tempo<br />
encontra guarida em nossa era e não ultrapassa nada do que foi<br />
afirmado sobre o tempo anteriormente. Eis o que afirma Weisskopf:<br />
O mistério do tempo é tão profundo e sério, que<br />
nem mesmo aquilo que já foi pensado antes sobre<br />
ele pode ser refutado ou substituído por idéias<br />
novas que tornem obsoletas as mais antigas: tudo<br />
o que já se disse sobre o tempo continua válido –<br />
ou não tem validade alguma. Suspeita-se que o<br />
estudo do tempo seja como um novelo sem<br />
pontas, uma meada sem começo nem fim: podese<br />
iniciar sua abordagem por qualquer ponto e o<br />
final, se houver, talvez seja o mesmo lugar por<br />
onde começamos. Os pássaros voam no ar e não o<br />
vêem, os peixes vivem na água e não a percebem,<br />
o espírito do homem está inserido no tempo, mas<br />
tem sido incapaz de compreendê-lo. (WEISSKOPF<br />
in HOISEL, 1998, p.56-57)<br />
Dessa forma, a preocupação com o tempo é arquetípica. Ela pertence<br />
à mesma natureza das indagações sobre o mistério do amor, do ódio<br />
e da morte. É um tema metafísico que está no cerne da vida, mas que<br />
ao mesmo tempo mantém o homem à margem de sua verdade.<br />
Dora, assim, aguçando sua perplexidade, a surpresa sempre viva<br />
diante dos fenômenos da existência, legará à preocupação existencial<br />
sobre a efemeridade da vida parte considerável de sua escrita, num<br />
permanente questionamento sobre a condição do homem, num<br />
arrebatado jogo corpóreo com o próprio mistério do tempo.<br />
Há um poema, sobretudo, dentre vários, em que a questão do<br />
mistério do tempo é esboçada com ênfase. Trata-se do terceiro<br />
poema de um ciclo intitulado “Ribeirão das Conchas, minha cidade”.<br />
Nesse texto, o tempo é desvelado no seu avassalador mistério, em<br />
sua alteridade intransponível. Ele é de certa forma espacializado,<br />
ganhando uma dimensão concreta. Dessa forma, pela memória<br />
arrebatada de um regresso à sua cidade, o eu lírico se percebe além<br />
do próprio tempo, no cerne do incognoscível:<br />
Desci a ladeira da rua principal<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 32
olhos semicerrados. Sol do meio-dia<br />
despejava luz e sombra nas calçadas.<br />
Não sei para onde eu ia, acho que te procurava<br />
por toda a parte e não te via.<br />
Conchas não é passado<br />
presente futuro.<br />
Conchas é todo mistério:<br />
ruas claras cemitério.<br />
Conchas é amor reencontrado<br />
mudada a fisionomia<br />
de outra tarde outro dia<br />
outra noite com estrelas.<br />
Não sei o que foi então<br />
aquela taquicardia –<br />
meu coração galopava<br />
em alguma direção.<br />
(Houve um tremor de terra<br />
em escala bem modesta).<br />
Era Conchas refletida<br />
num pequeno coração?<br />
E nós duas abraçadas<br />
chegamos ao fim da ladeira<br />
uma sentindo na outra<br />
o tremor da mesma vida.<br />
(SILVA, 1999, p. 288)<br />
A memória da voz lírica, perante a cidade do passado, plasma um<br />
tempo sem tempo, instante vivo da memória, em que o mistério se<br />
insinua como uma verdade plena. Essa constatação do tempo<br />
entranhado no espaço, da memória viva a vertê-lo como uma<br />
aparição mágica, exerce sobre o eu lírico um sentimento sísmico, de<br />
violenta comoção. Tal epifania nasce da perplexidade de se<br />
reconhecer o passado ainda vivo, palpitando na carnadura das ruas<br />
da cidade natal.<br />
Para Dora, portanto, perceber o transcurso temporal é intrigante, é<br />
uma fonte viva de perplexidade e encantamento.<br />
Com efeito, invisível, o tempo marcha suas horas sobre os corpos<br />
humanos, transformando faces límpidas em rostos repletos de sulcos<br />
e tristezas. Silencioso, ele invade os objetos, danificando,<br />
pulverizando o que existe. O tempo parece estar sempre ausente da<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 33
vida humana, como se fosse um companheiro que, por sua constante<br />
presença, torna-se imperceptível; um companheiro invisível que, no<br />
entanto, repentinamente, grita a todos os ouvidos a sua existência. A<br />
ampulheta é a representação cabal do tempo. Como os grãos da<br />
areia, o tempo transcorre plácido e calmo. Entretanto, cada grão é<br />
um pedaço da vida que se despede.<br />
Atenta a tal realidade, Dora faz dessa vivência um manancial de<br />
inspirações, um instigante tema sempre aceso no centro de suas<br />
preocupações. Dessa forma, podemos chamar a autora de Poemas<br />
da estrangeira de poeta da memória e do tempo, pois para Dora a<br />
existência humana em toda sua amplidão é a fonte de sua escrita.<br />
Por sua vez, também os filósofos indagam sobre a capacidade do<br />
homem de perceber o tempo, questionam se os seres humanos<br />
seriam dotados de algum órgão especial, capaz de detectar a<br />
presença temporal. Nesse aspecto, o filósofo Robert Hooke, em<br />
pleno século XVII, já pontuava suas indagações sobre a proeza<br />
humana que é perceber o tempo:<br />
Eu gostaria de saber qual o sentido que nos dá<br />
informação sobre o Tempo; pois todas as<br />
informações que recebemos dos sentidos são<br />
momentâneas, mantêm-se apenas durante as<br />
impressões causadas pelo objeto. Portanto, falta<br />
ainda um sentido para apreender o Tempo; nós<br />
temos uma Noção, mas nenhum de nossos<br />
sentidos, nem todos juntos, nos dão a idéia do<br />
Tempo, porém nós o concebemos como uma<br />
Quantidade... Considerando isso, temos a<br />
Necessidade de imaginar algum outro Órgão para<br />
apreender a Impressão feita do Tempo. E isso,<br />
creio que não passa do que geralmente<br />
chamamos de Memória; e imagino que essa<br />
Memória seja um Órgão como o ouvido, o Olho ou<br />
o Nariz, e que tenha sua Situação em algum ponto<br />
próximo ao Lugar onde os nervos de outros<br />
Sentidos coincidem e se encontram. (HOOKE apud<br />
WHITROW, 2005, p.35-36)<br />
Hooke, portanto, coloca a memória em situação de prestígio: é ela<br />
que capta o tempo, é ela que nos faz perceber o transcurso das<br />
horas. A memória é, portanto, a aptidão essencialmente humana que<br />
nos faz sentir a duração temporal. Sem memória, nós não teríamos a<br />
consciência do tempo e nem da morte. Hooke coloca a memória<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 34
como um atributo mais importante que a percepção do futuro. O<br />
futuro só pode ser apreendido pela imaginação ou por previsões, pois<br />
ele é, sobretudo, o desconhecido, o imponderável. Já o passado<br />
registrado pela memória é o tempo adentrado, encravado no cerne<br />
do humano, é o tempo íntimo das recordações, tempo<br />
demasiadamente humano. A memória dá ao homem a noção de<br />
profundidade que o tempo possui.<br />
Dora simplesmente explora tal questão, numa entrega arrebatada a<br />
reminiscências vivas, plenas de um sentido fecundo, de uma<br />
compreensão clarividente de nossa realidade física e espiritual. Por<br />
isso a memória ganha tanta expressão em sua obra, é por ela que a<br />
poeta, portanto, recorta-se no fluxo do tempo, para expressá-la no<br />
congelamento de instantes simbólicos, repletos de emoção e<br />
arrebatamento.<br />
Nesse aspecto, muito semelhante à escrita dos simbolistas, os<br />
cenários de Dora, em alguns textos, ganham a expressividade dos<br />
apelos sinestésicos, como se a memória precisasse arder pelos<br />
cheiros, pelo olhar, pelo som. A poesia da escritora paulista é,<br />
portanto, densamente plástica, pictórica, conforme podemos antever<br />
no Poema “O aroma...”, texto no qual a memória ganha viva<br />
expressão plástica graças aos apelos sensoriais:<br />
O aroma circunda pessegueiros<br />
em meio à chuva. Lembranças<br />
sopram mais que o vento<br />
e a Criança desata os cabelos.<br />
Rostos esparsos sorrisos afagos<br />
de mãos tão leves que a neblina<br />
pesada parece e tudo se avizinha<br />
de um espaço talvez sonhado.<br />
Os nomes revoam pássaros;<br />
pareciam esquecidos<br />
mas em curvas aéreas se revelam<br />
tão belos e lembrados.<br />
(SILVA, 1999, p. 301-302)<br />
No poema, o aroma, a profusão de cores, as texturas e os sopros<br />
formam um tecido sensorial de grande imagismo. Nesse sentido, a<br />
memória, tão proustiana, ganha ímpeto avassalador: “Lembranças/<br />
sopram mais que o vento”. Os nomes, por sua vez, com a força de<br />
pássaros, adejam pelo ar, numa metáfora de grande beleza plástica.<br />
A memória está no mundo e o mundo está no eu lírico, formando,<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 35
dessa forma, entre ser, espaço e tempo um rendilhado uníssono,<br />
inconsútil.<br />
Conforme apontam Jean-Yves e Marc Tadié, “é a memória que faz o<br />
homem”, (TADIÉ, 1999, p.9). A memória dá identidade ao homem, é<br />
ela que lhe molda a vida, dá nuanças que individualizam o sujeito.<br />
Sem memória não há ser, não há paixões, não há amor. A memória<br />
torna o mundo habitável, pois ela familiariza os espaços para o<br />
homem, permitindo-o identificar o aconchego da casa, do quarto,<br />
dos lugares aprazíveis. Sem memória não há amizade, pois sem ela<br />
não se poderia identificar e singularizar o rosto querido em meio à<br />
multidão. A memória, portanto, é fundamental para o<br />
funcionamento da lucidez e da consciência humanas. No poema “O<br />
aroma...”, Dora singulariza tais particularidades da memória, ao<br />
torná-la cósmica, universal.<br />
Com efeito, para Dora, a memória permite, ao homem, encontrar-se<br />
enquanto ser; ela agrega os vários eus, as várias personas que<br />
tresmalham a subjetividade, permitindo a harmonia, o equilíbrio<br />
necessário para a formação do indivíduo. O eu lírico do poema “O<br />
aroma...” só se torna possível porque ele se reconhece no passado,<br />
porque ele tem na memória elementos que lhe afirmam a própria<br />
personalidade. Se não existisse a memória também não existiria a<br />
natureza humana, o ser do homem. A dispersão dos acontecimentos<br />
o tragaria para uma inconsciência total, para um verdadeiro nada. O<br />
ser só pode se confrontar com a morte, com a sua finitude, porque<br />
ele pode lembrar-se, pode encontrar-se no mundo enquanto ser.<br />
Um outro aspecto da memória dos poemas de Dora seria as suas<br />
relações com a imaginação. A memória também se associa ao<br />
devaneio, transfigurando o real, imiscuindo no passado um toque de<br />
ficção. Nesse aspecto, lembrar é inserir poesia na vida. O passado<br />
transfigurado pela imaginação torna-se uma realidade poética. Basta<br />
lembrar a importância que a imaginação teve para Baudelaire, que<br />
chegou a chamá-la de “rainha das faculdades”. Sem imaginação não<br />
há poesia e também não há memória. Nesse sentido, a memória é<br />
emoção, sentimento a germinar no espírito de quem lembra. Todo<br />
homem possui “uma memória apaixonada que chora, treme e ri, ou<br />
que se prende num ódio por ela mesma » (TADIÉ, p.15, 1999). A<br />
literatura irá explorar essas relações entre memória e imaginação,<br />
fazendo da memória poética (ou da poesia memorialista) uma das<br />
suas linhas de força. Conforme aponta Le Goff, é no romantismo que<br />
os escritores tomarão consciência do poder artístico da memória:<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 36
O romantismo reencontra, de um modo mais<br />
literário que dogmático, a sedução da memória.<br />
Na tradução do tratado de Vico, De antiquissima<br />
Italorum sapientia (1710), Michelet pôde ler este<br />
parágrafo Memoria et phantasia: ‘Os latinos<br />
designam a memória por memoria quando ela<br />
reúne as percepções dos sentidos, e por<br />
reminiscentia quando os restitui. Mas designavam<br />
da mesma forma a faculdade pela qual formamos<br />
imagens, a que os Gregos chamavam phantasia, e<br />
nós imaginativa, e os latinos memorale... Os<br />
Gregos contam também na sua mitologia que as<br />
Musas, as virtudes da imaginação, são filhas da<br />
memória’. [...] Ele encontra aí a ligação entre<br />
memória e imaginação, memória e poesia. (LE<br />
GOFF, 1996, p.463)<br />
A memória é, com toda certeza, uma imagética. Nesse aspecto, o ato<br />
mnemônico torna-se muito semelhante à própria poesia, discurso<br />
pautado, sobretudo, pela imagem. Conforme aponta Bosi, “a<br />
instância poética parece tirar do passado e da memória o direito à<br />
existência; não de um passado cronológico puro [...], mas de um<br />
passado presente cujas dimensões míticas se atualizam no modo de<br />
ser da infância e do inconsciente. A épica e a lírica são expressões de<br />
um tempo forte (social e individual) que já se adensou o bastante<br />
para ser reevocado pela memória da linguagem” (BOSI, 2000, 131-<br />
132). Alfredo Bosi irá colocar a busca pelo passado, a força poética da<br />
memória, como uma das linhas de força da lírica do Ocidente. A<br />
memória, na lírica moderna e contemporânea, simboliza uma recusa<br />
ao tempo atual, massificado, tempo em que a reificação do homem<br />
torna-se um imperativo. Para o autor de O ser e o tempo da poesia,<br />
ao retomar as obras poéticas de Manuel Bandeira e Jorge de Lima, a<br />
memória é “uma forma de pensamento concreto e unitivo, é o<br />
impulso primeiro e recorrente da atividade poética. Ninguém se<br />
admira se a ela se voltarem os poetas como defesa e resposta ao<br />
‘desencantamento do mundo’ que, na interpretação de Max Weber,<br />
tem marcado a história de todas as sociedades capitalistas” (BOSI,<br />
2000, p.177). Memória, portanto, é para Bosi, o cerne da própria<br />
atividade poética.<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 37
Referências<br />
ARRIGUCCI Jr., David. "Braga de novo por aqui". In: BRAGA, Rubem. Os<br />
melhores contos. 7 ed. São Paulo: Global, 1997.<br />
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras,<br />
2000.<br />
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1991.<br />
ELIOT, T. S. Poesia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.<br />
HOISEL, Beto. Anais de um simpósio imaginário: entretenimento para<br />
cientistas. São Paulo, 1998.<br />
SILVA, Dora Ferreira. Poesia Reunida. Rio de Janeiro. Topbooks, 1999.<br />
TADIÉ, Marc; Jean-Yves. Le sens de la mémoire. Paris: Gallimard, 1999.<br />
WHITROW, G. J. O que é o Tempo? Uma visão clássica sobre a natureza do<br />
tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.<br />
<strong>7faces</strong> – Alexandre Bonafim Felizardo │ 38
Vias de ver as coisas 1
Ricardo Dantas<br />
Itabuna – BA<br />
Ricardo Santos Dantas nasceu em Itabuna – Bahia, em 1967. Graduado em<br />
Letras pela Federação das Escolas Superiores de Ilhéus e Itabuna – FESPI, atual<br />
UESC. Especialista em Língua Portuguesa, em Alfabetização e em Educação em<br />
História e Cultura Africana e Afrodescendente. Autor do livro de poesias<br />
Lembranças de uma infância, publicado em 2004 pela FICC: Fundação<br />
Itabunense de Cultura e Cidadania. É professor de Língua Portuguesa, Artes,<br />
Teatro e LIBRAS.
Cândido<br />
O prisma<br />
da tua pele<br />
candeia<br />
o meu velejar<br />
em teu corpo.<br />
Apego-me<br />
às ternuras<br />
frívolas, toscas<br />
e irreverentes do prazer.<br />
Não enxergo o vagão<br />
da razão<br />
e deixo-me,<br />
propositalmente,<br />
ser o foco<br />
da tua luz insana,<br />
vil e desumana.<br />
<strong>7faces</strong> – Ricardo Dantas │ 41
Fé<br />
Acendi a luz<br />
aos pés da terra,<br />
conclui oferendas,<br />
entreguei palavras<br />
e, súbito,<br />
vi milagres<br />
de uma lança<br />
que, como quilha,<br />
rompeu o oceano<br />
entre dois mundos.<br />
<strong>7faces</strong> – Ricardo Dantas │ 42
Tecer prazer<br />
uma fenda<br />
uma renda<br />
no corpo...<br />
o vestido e o nu<br />
pincelam<br />
do olhar<br />
peniano<br />
o prazer
Disritmia<br />
O passo<br />
sem compasso<br />
quebrou a vértebra<br />
da língua<br />
malsã.<br />
Vitae<br />
O líquido<br />
cardíaco<br />
jorrou,<br />
milimetricamente,<br />
a vida.<br />
<strong>7faces</strong> – Ricardo Dantas │ 44
© Ian Crawford (detalhe)/ Reprodução.
Criação<br />
Se grilos<br />
e argila<br />
fundissem<br />
sonhos<br />
teríamos a terra,<br />
essa dona senhora,<br />
imaculada<br />
em música<br />
e herança<br />
ancestral.<br />
<strong>7faces</strong> – Ricardo Dantas │ 46
Davi Araújo<br />
São Paulo – SP<br />
Poeta, ficcionista, tradutor, ghostwriter e conselheiro editorial. Autor do blog<br />
Não Fique São; traduziu Natureza, de Emerson, e Caminhada, de Thoreau<br />
(Dracaena, 2010). Atualmente, conclui dois livros de poemas, continuações da<br />
trilogia iniciada com Livro Ruído (Eucleia Editora, 2011), publicado em Portugal.<br />
.
© Robinson Machado. Eunoia 1. Técnica mista sobre canson.<br />
<strong>7faces</strong> – Davi Araújo │ 48
Metade dos quinze pedreiros guilhotinados volta<br />
Eunoia<br />
Temos vertigem o bastante para mim e o gordo rei xadrez<br />
Sou novo, belo e forte.<br />
Sou o que eu quiser ser e tudo roço naquela que me endurece.<br />
Estou de frente para o meu lado de fora<br />
Tiro da cabeça uma toalha molhada de óptica tinta e o toureio.<br />
Ele passa espiralado aos gritos de “olé” dos não-numes.<br />
Fantasia fétida, quente, de pedra mesmo. Merda de dragão.<br />
É de um bonito dos mais grandes.<br />
Tem no meio um roseiral em chamas perfumadas;<br />
Piso, benevolente, dentro da Boa Vontade<br />
e o reino inteirinho arde em meus olhos quando acendo a luz.<br />
para o cândido céu de azul e neve madura<br />
de algum fevereiro futuro,<br />
mas a obra em fúria continua de cima para baixo<br />
já que de tão raso só o teto há longe.<br />
que se joga uma casa por vez.<br />
e transaparece que esse castelo vem rubro em minha direção.<br />
e em baixo sabe-se de árvores<br />
cujas tranças-raízes se tocam comunicantes na superfície, alertando-se em tempo de fugir de tudo o<br />
Não? Vai às mil maravilhas o restauro, informa desde o futuro<br />
que não é iminente;<br />
e, o que é muito natural,<br />
modernos bobos parados, aos milhares ao redor do que é tudo.<br />
a propaganda rupestre
E certo deus,<br />
aquele que engenha, que por hobby faz filosofias,<br />
Um acidente inesperado os atrapalha, e acabam por despencar<br />
mas se dou de ombros<br />
E por mais normal que isso possa parecer,<br />
Escalo a flor mais baixa e me estendo deitado<br />
sobre a maior de suas treze delicadas pétalas,<br />
Não sem luta contra o grupo terrorista de abelhas muçulmanas<br />
Foram três vírgula quatorze rounds<br />
do meu mais puro fundamentalismo<br />
daquela indústria ideal que já fora a menos finita fortificação<br />
de que se tem remembrança<br />
em cada coração do centauro.<br />
sai para almoçar<br />
justamente quando chego (ou me evita);<br />
vai agora quente e apetitoso, na garupa do cavaleiro negro,<br />
ser entregue à Senhora Pizza,<br />
as bordas de ouro inca emoldurando a circunferência<br />
meia banguela, meia burguesa.<br />
da minha orelha direita;<br />
é que por coincidência não os conhecia<br />
e por ter muita caspa, simultaneamente.<br />
tive fome quando meio dia.<br />
para, glutão, sorver o pólen.<br />
com planos maniqueístas de “bem me quer, mal me quer”,<br />
e eu “foda-se”.
Depois a sobremesa sem pressa e o café expresso,<br />
E então um repouso necessário<br />
Isto pois estão a reprisar o Tédio no canal 5,<br />
com intervalos comerciais<br />
Defeco um figo inteiro na penúltima parte.<br />
Desarvoro aquela maldição. Não é este o mundo do imediato?<br />
Faço de conta que entendo tudo o que vejo,<br />
É uma era que se ainda não foi, será desistida. Sei-o; saco!<br />
Como não desconfiar de tantos tempos instantâneos<br />
Em poder de um remoto controle<br />
sobre o que me entra pelas vistas,<br />
Vendido, vou às últimas consequências dos meus atos falhos,<br />
Vocálicos, meus dedos da mão<br />
contra os heróis.<br />
cem por cento integrais,<br />
é lógico.<br />
para reatrelar o esqueleto por cima desta minha alma<br />
que dura.<br />
Desafio-me. Não me amoles.<br />
e ainda dublado em ornitorrinquês.<br />
mas apenas para ser do contra.<br />
e lugares logo ali? Refugos fugazes.<br />
deixo-me possuir.<br />
subliminarmente mental,<br />
sedentário sem sequer piscar,<br />
até que afinal me dou por ligado aos telefonemas sem fundos.
sentidos como se cinco cores<br />
desde a laringe. Vibração.<br />
Oníricos, uns pássaros<br />
a despertar acordes.<br />
Desconfiado, descortino os números e ingresso no espetacular:<br />
A vida não acontecendo.<br />
Não sei nada disso de cor, digo-o cordialmente.<br />
Então, passo a tarde em busca do fantástico,<br />
a visitar bibliotecas, museus e zoológicos.<br />
esquinas de ângulos retos,<br />
chãos aprumados pelos ires e vires do devir,<br />
tragédias aéreas<br />
e velórios fosforescentes,<br />
definições de amor de dicionário,<br />
conexão rápida e segura como um genital plastificado,<br />
a cura para a ruga e a fuga para o nunca,<br />
águas de colônia, colônias de férias,<br />
voto nulo,<br />
as casas próprias e os carros usados,<br />
sorteios milionários com dez chances de ganhar,<br />
tanques de pesca e diversões eletrônicas,<br />
viagens parceladas, sucessos de bilheteria,<br />
todo o porvir que conheço de longa data,<br />
todo o todo o todo o todo,<br />
todas as igrejas do deus único funcionando trinta horas por dia.<br />
Eis tudo que me é caro demais,
Seja obra de mão de barata, seja massa de manobra pacata,<br />
“Consumir é comparecer!” “Faça isso!” “Venha conosco!”<br />
Antes de se matar,<br />
experimente fumar pedra e saltar sem paraquedas!<br />
Um lê: o fim da saciedade é a felicidade comum da sociedade.<br />
Os outros aplaudem felizes. É o começo.<br />
Cópias do que apenas parece original, nenhuma metamorfose<br />
Sonha-se em série na velocidade do verossímil.<br />
É quando quebro a máquina na quina da queda.<br />
E apenas não vomito o que não comi.<br />
Dado meu hálito ruim demais,<br />
Aos plebeus já não se recomenda coisa alguma,<br />
Há tecnologias como magias.<br />
Várias parafernálias ferrosas com estrondos silenciadores.<br />
Precipito-me em câmera lenta. Vou indo andar de pé,<br />
Distancio-me dos cansativos trabalhos<br />
O céu franze a testa em tempestade sobre mim<br />
desmascarado.<br />
nem defeitos especiais.<br />
Supersim, megaé, hiperjá.<br />
Por que não?<br />
recomenda-se aos nobres limparem muito bem os narizes.<br />
por já não serem medievais o suficiente.<br />
no que há passos e giro o caminho-verbo.<br />
que deixo ao léu aberto<br />
do próprio andamento.
Rendo culto úmido aos campos cultivados<br />
A paisagem é tão salutar que até tem certo ar de oxigênio.<br />
Tanto que, de repente, de forma estranha chego a respirar<br />
Um gesto sutilíssimo<br />
que não passa despercebido por ela,<br />
uva que passa:<br />
Está vestida apenas com a poeira da vinda,<br />
Ser de carne, muita.<br />
Reconheço em sua mirada sanguinolenta<br />
Veio de não sei quando até o onde exato.<br />
Sou ali entre ela, que claramente se aproxima,<br />
[Atrás de mim, andei quilômetros].<br />
Com olhos novos a cada piscada,<br />
Aprofundando-se em meu espírito,<br />
e sobre o que é mais telúrico sob mim.<br />
pelas centenas de milhares de minhocas que me saúdam<br />
sem que eu saiba diferenciar se o fazem com a boca ou o cu.<br />
E é uma dúvida recíproca.<br />
Intangível, porém tragável.<br />
quase que involuntariamente.<br />
a Mulher Magenta.<br />
os cabelos se embaraçando no vento,<br />
linda.<br />
o dom de tocar cachimbo.<br />
e a sombra que cresce atrás de mim a cada passo seu.<br />
ela pisa displicente [sente] sobre o que ainda nos separava.
Toma-me pela mão de escrever (a de colar),<br />
Não se pronuncia, mas cala em mim.<br />
Então empunha seu instrumento, o grande cachimbofone.<br />
Preenche-o com suas grossas sobrancelhas<br />
Traga com demora a mais longa nota<br />
E logo o entorno enlouquece e toma as cores daquele som,<br />
Faz treva com intensidade e estamos sós.<br />
Toda a construção em andamento resumia-se à minha ereção,<br />
Há então os movimentos [os movimentos], para ela e para mim,<br />
de pé e sobre o chão.<br />
Até o improvável, quando todo o corpo da Mulher Magenta<br />
acha graça por eu me perder em seu tão pequenino sorriso.<br />
que lava com as lágrimas mais quentes de carinho e dó.<br />
Corta-me os dois dedos de prosa e,<br />
sem fazer doer,<br />
tampa com eles os meus ouvidos.<br />
que um raio mergulha do alto para acender.<br />
e assopra no ar a turva melodia esfumaçada<br />
que apenas vejo.<br />
as nuvens, o sol e o céu.<br />
Beija-me, então, em silêncio sem paixão,<br />
pois tampouco tem língua.<br />
que ato contínuo ela afaga<br />
para introduzir em si<br />
com a delícia morna daquela sucção.<br />
é ejaculado para dentro do meu sexo atônito.
Mais impossível ainda se dá quando,<br />
Depois do que a sua voz apenas silencia,<br />
“Aprisione-me fora de mim”,<br />
meu último desejo,<br />
era a frase que dava início ao término disso aqui,<br />
uma confissão de culpa derradeira.<br />
Para só em seguida se dar a verdadeira perda de contato<br />
com quaisquer das realidades,<br />
Era um erro.<br />
Aconteceu que, por falta de outra saída,<br />
ao tomar meu próprio pulso,<br />
já agora dobrado,<br />
percebo não estar mais sozinho.<br />
Destapo os ouvidos e ouço-a, ríspida,<br />
dizer desde o meu ser:<br />
“não ouse morrer, pois nascerá de novo!”<br />
pelas próximas milhões de horas esparsas em que envelheci<br />
em companhia do Nada,<br />
cantando este relato,<br />
mentalmente.<br />
inclusive aquelas das quais eu ainda me orgulhava um pouco,<br />
apesar de tudo.<br />
fui obrigado a recorrer àquilo ainda verde em mim,<br />
que em seu egoísmo encarnava<br />
tudo ao que eu mesmo estava<br />
indissoluvelmente suscetível.
E afinal a voz, já então velha, sem antes me chamar,<br />
E então ando trôpego tateando o vazio,<br />
na absoluta escuridão a lutar contra o luto do que já fui<br />
Até que um medo por não estar só outra vez<br />
àquela dúvida de infinitos pontos finais.<br />
E a desconfiar até dos meus pensamentos,<br />
Eu terminava bem ali. A li.<br />
Nada me restava, e fartava.<br />
E sem qualquer vontade<br />
que não fosse um ato de automisericórdia,<br />
apenas a atender o meu Eu terminal,<br />
ressurge desde o meu interior nunca esquecido e já arrependido<br />
a me dizer “siga-me”.<br />
tateandando através do que já não era Eu em mim,<br />
por uma chance<br />
além do alcance,<br />
em meio a incerteza de cada penúltimo e último passo adiante,<br />
só no meu próprio plano,<br />
humano, maníaco.<br />
me levou de novo ali,<br />
pensei estar sendo seguido.<br />
Foi quando bati a cabeça<br />
contra algum vazio mais sólido,<br />
tão denso de Nada quanto o resto Dali,<br />
e igualmente tenebroso.<br />
invoco o que me resta de vida
E por um instante, ao longo do gesto fatal,<br />
Uma morte completa,<br />
mera aniquilação do ser<br />
que investe de cabeça contra si mesmo<br />
rumo a tão sonhada<br />
e senhada<br />
encontra meu fim<br />
com a intenção de expulsar da cabeça essa mesma vida.<br />
<strong>7faces</strong> – Davi Araújo │ 58<br />
duro toda uma nova juventude e há experiânsia.<br />
ataraxia<br />
sem meios de não recomeçar,<br />
pois, assim que piso lá,<br />
[de si,<br />
dó]<br />
ascendo à Luz.<br />
Parque Novo Mundo<br />
- Outono de MMXII
© Robinson Machado. Eunoia 2. Técnica mista sobre canson<br />
<strong>7faces</strong> – Davi Araújo │ 59
Tiago Duarte Dias<br />
Niterói – RJ<br />
Tiago Duarte Dias tem vinte e dois anos, morador de Niterói, RJ. Atualmente<br />
cursa Relações Internacionais na Universidade Federal Fluminense. Escreve com<br />
alguma regularidade em seu blog pessoal desde 2007, e tem a paixão pela<br />
literatura e pela poesia desde a sua adolescência.
Estou vivo há vinte e dois anos.<br />
Estou vivo há vinte e dois anos,<br />
formado em frustrações, decepções e ilusões.<br />
Com um diploma em incertezas,<br />
e uma série de promessas não cumpridas,<br />
além de paixões e amores de capricho.<br />
Tenho a frustração de minha época:<br />
como a flor de uma árvore infrutífera,<br />
cuja a vida é apenas beleza e aparência.<br />
E que se o Tempo, apesar de lento, nos consome,<br />
nós zombamos do Tempo, o ignorando...<br />
Carrego as decepções de meus pais e avós:<br />
metodologia empírica da impotência humana.<br />
Todas as suas tentativas de um paraíso,<br />
levaram a um inferno um pouco mais palatável,<br />
com rancor e tristeza pelo passado perdido.<br />
Sou feito de ilusões e de sonhos.<br />
Sou mais de um em um só, levado por desejos,<br />
que eu mesmo não consigo compreender,<br />
e eu, vendo a vida vir verde e veloz:<br />
tomo decisões que não consigo mensurar.<br />
Tenho vinte e dois anos,<br />
e com sorte, mais de meia década de vida<br />
anos em que estarei dividido<br />
entre dúvidas de ocasião,<br />
e recriações em um passado romantizado.<br />
<strong>7faces</strong> – Tiago Duarte Dias │ 61
Adriano Winter<br />
Porto Alegre – RS<br />
Nasceu e reside em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Foi vencedor do Femup<br />
2010 e integrou sua antologia. Tem outras coletâneas publicadas nas revistas<br />
Germina, Aliás, Eutomia, La Gioconda, Sibila, Separata (México), Triplov<br />
(Portugal), Cinosargo (Chile) e Experimenta (Argentina), além de poemas no<br />
Jornal Poesia Viva e na série Alfa (Espanha).
O açúcar é<br />
fúsil<br />
se alumens diluem<br />
sua armadura mascava<br />
acro<br />
se cáustico ataque<br />
parte a mandíbula frágil<br />
albino<br />
se fios de refino<br />
esfolam aminoácidos<br />
inviso, líquido, místico<br />
se luz ou amor destilam<br />
gotas etílicas de seus átomos<br />
<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │ 63
A roca<br />
vara ou cana, tira<br />
estreita, rocha, fabuloso<br />
pássaro, penhasco<br />
marítimo, tala<br />
em torno de um<br />
mastro, armação<br />
de madeira sob<br />
imagens sacras<br />
<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │ 64
Meu câmbio<br />
melhor<br />
moeda<br />
é o fogo<br />
remunera<br />
o amor<br />
e a arte<br />
tanger<br />
o maravilhoso<br />
custa caro<br />
e ávido<br />
é o imposto<br />
da felicidade<br />
queres ser<br />
milionário?<br />
arde<br />
<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │ 65
© Hélio Jesuíno
Filmagem<br />
(tempestade)<br />
brisas esgrimam gramas<br />
frondes como ondas<br />
panos flanam em arames<br />
trovões temblam ao longe<br />
temporal repercute<br />
no pote de plástico<br />
(bonança)<br />
longo pássaro<br />
dos fachos<br />
pousa em<br />
penínsulas de<br />
lajes<br />
aragens<br />
lantejoulam<br />
águas<br />
(passeio)<br />
sumiço<br />
do gris<br />
gotas grifam<br />
as flores<br />
veleiro de aves<br />
à deriva na íris<br />
(19h)<br />
roxo colosso<br />
da noite<br />
estrelas detêm<br />
desesperos<br />
<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │ 68
Reconciliação<br />
exilado<br />
num relâmpago<br />
atiro cabos<br />
em teu corpo<br />
ponta de língua<br />
borda de boca<br />
qualquer laço<br />
que reconecte<br />
meu ser ao teu<br />
num fio de fogo<br />
mas só o amor<br />
(atrátil força)<br />
põe cumulus nimbus<br />
de acordo<br />
eu te perdoo – tu me perdoas<br />
cintilo livre<br />
beijo-estouro
Visão beatífica<br />
se a treva despisse<br />
seu mistério<br />
morreríamos de luz<br />
conforme Eliot:<br />
“o gênero humano<br />
não pode<br />
suportar tamanha<br />
realidade”<br />
<strong>7faces</strong> – Adriano Winter │70
Guerá Fernandes<br />
Durandé – MG<br />
Guerá nasceu em 1968, em Durandé, Minas Gerais. Em 2001 lançou olivro Na<br />
Antessala da Fala, um trabalho independente. Do encontro com Editora<br />
Multifoco: Mares de ilhas e cores se chove (2008) e Infinito berrante (2009)<br />
fechando uma trilogia poética. Em 2010, experimentou um trabalho em prosa,<br />
o romance O poço. Em 2012, a nova poesia do poeta está em Pedra de ser<br />
canto.
lágrima<br />
cara tenho essa lágrima<br />
levo esse jeito sem jeito<br />
de olhar pro chão do meu pai<br />
de olhar de lado da minha mãe<br />
e a minha gente se gaba<br />
de não ter medo de gente<br />
se o papo é reto é olho no olho<br />
no tato meu povo é gente do bem<br />
cara tenho essa lágrima<br />
pra chorar depois das palavras<br />
<strong>7faces</strong> – Guerá Fernandes │ 72
o vermelho do charme<br />
tenho jogado tinta nas coisas<br />
cantado aos extremos de mim<br />
e terrivelmente por pouco<br />
não solto ribanceiras poéticas<br />
dos meus rasantes indomáveis<br />
nossos guerreiros e suas guerras<br />
somos todos bem quixotescos<br />
em inconfessáveis batalhas<br />
e ainda cumpre se preocupar<br />
com cartão de apresentação!<br />
eu não reconheço esse baralho<br />
silêncio às vezes é o atalho<br />
deixo esse verso sobre a mesa<br />
e mais uma vez saio à francesa<br />
<strong>7faces</strong> – Guerá Fernandes │ 73
casal moderno<br />
ela fala alto<br />
ele usa salto<br />
simulacro<br />
trans porte<br />
- se<br />
parte<br />
par<br />
arte<br />
ou ímpar<br />
<strong>7faces</strong> – Guerá Fernandes │ 74
©Hélio Jesuíno
paisagem<br />
o meu barco tem<br />
um arco<br />
o seu lábio tem<br />
um mato<br />
capim com íris<br />
nossos matizes<br />
mergulho o tiro<br />
seu hálito de pás<br />
ferido<br />
o seu voar<br />
saro<br />
descalço<br />
no ar de vidro
no fruto o gosto<br />
porque o tempo quis assim<br />
sol lá no sem-fim sem fim<br />
buscar nas folhas esquecidas<br />
o amor com seu flautim<br />
assaltar rente à flor a cor<br />
da cor e a voz do que diz<br />
verde o que sente na raiz<br />
madurar a luz que pulsa<br />
apurar no fruto o gosto<br />
no seu movimento lento<br />
sede nua no doce da coisa<br />
pele que salta e rosa<br />
no alvorecer das vertentes<br />
mapear montanhas no Saara<br />
<strong>7faces</strong> – Guerá Fernandes │ 77
Joice Berth<br />
São Paulo – SP<br />
É arquiteta e urbanista, poeta e escritora amadora, colaboradora de dois blogs<br />
sobre literatura além de ter seu próprio blog de poesias e contos; está em fase<br />
de revisão de seu primeiro livro de poemas e trabalhando em projeto de poesia<br />
e artes visuais em parceria com alguns artistas plásticos e fotógrafos.
Ladainha<br />
A mesma reza e meus excessos não se medem<br />
Ao contrário das virtudes da conveniência: imensuráveis.<br />
Quando todos oferecem o riso sincero, a leveza mete o pé na porta<br />
A vida como uma obra expressionista,<br />
Não permite conter afetos<br />
Como numa cena de novela antiga, as verdades esperam beijos finais<br />
Estive também esperando um sinal<br />
No final dos tempos<br />
A ventania inaudível da angustia<br />
Meu tempo calou-se, de tanto eco que fez,<br />
Não percebi tua partida<br />
Ainda aprecio teu fel<br />
Na ânsia de indeterminar tua subida<br />
Da última vez que estivemos de frente<br />
Eu, arrefecida pela tua verdade, estremeci.<br />
Minha coragem expirou-se, criou asas!<br />
Desculpe dizer, mas tua inocência é uma farsa<br />
Do mesmo lugar de onde sai<br />
Vou plantar minhas decadências<br />
Com dúzias de crianças, vou sentar na terra.<br />
Esperar brotar o que produz saudade<br />
Dentro da minha insanidade<br />
A alegria do teu irretocável retorno<br />
Beirando o contorno do meu incrédulo sorriso.<br />
<strong>7faces</strong> – Joice Berth │ 79
Inverso<br />
Da lágrima salgada que umedece a lápide<br />
Ao desconforto da contração do útero<br />
O retorno absoluto<br />
Ao mundo reincidente no pecado<br />
A voz do perdão me pariu<br />
Um pedaço em cada esquina<br />
A cada anjo lúcido que me escolheu<br />
Minha divina inspiração<br />
Nos quartos sombrios do ego<br />
A memória traída<br />
O que derrota<br />
O que acolhe<br />
O que questiona<br />
O que apodrece<br />
Em cada certeza uma agonia<br />
Em cada luz o dissimulado acaso<br />
Do fim ao início<br />
O doce caminho da morte<br />
E de certo só a esperança<br />
Que ainda sustenta ofegante<br />
O peso da vida<br />
<strong>7faces</strong> – Joice Berth │ 80
Marco Polo Guimarães<br />
Recife – PE<br />
Nasceu no Recife. É jornalista, escritor e compositor. Trabalhou no Diário da<br />
Noite, Diário de Pernambuco, Jornal do Commercio, Jornal da Tarde (SP),<br />
Editora Bloch (RJ) e revista Continente. Publicou os livros: Voo, Subterrâneo,<br />
Brilho, Palavra clara, A superfície do silêncio, Caligrafias, Sax Áspero,<br />
Corpointeiro e Oficina do avesso, todos de poesia. Como compositor gravou o<br />
disco Ave Sangria e participou das coletâneas Asas da América – Frevo I e II.<br />
Tem músicas gravadas por Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Teca Calazans e Zezé<br />
Motta, entre outros. Atualmente é superintendente de produção editorial da<br />
Companhia Editora de Pernambuco, CEPE.
Recife<br />
Recife, cidade pantera,<br />
fera de lata e latão,<br />
gume de foice, severa<br />
esfera de ferro, ferrão.<br />
Recife, cidade minério,<br />
rios, vento, luz e chão,<br />
poço cavado no aéreo<br />
areal da imaginação.<br />
<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 82
A Anunciação, de Botticeli<br />
O anjo tenta acalmá-la<br />
de joelhos, menos por reverência<br />
que para mostrar submissão;<br />
mas ela foge, quase tropeçando,<br />
está profundamente assustada<br />
e o quadro em que o pintor a vê<br />
é pequeno para ela.<br />
Seu gesto também é cortês<br />
como se dissesse: Muito obrigada,<br />
é muita distinção, fico grata,<br />
mas ser mãe de um Deus é demasiada responsabilidade.<br />
O anjo insiste, insidoso, insinuante.<br />
Apesar de todo o pânico,<br />
ele sabe que ela vai conceder.<br />
A firme árvore que se vê pela janela<br />
e o rigoroso ladrilho vermelho que se estende pelo chão<br />
confirmam a realidade<br />
e o irrevogável transcurso dos fatos predeterminados.
Sob o luar<br />
que vem das tuas<br />
duas luas altas<br />
há uma pausa<br />
é nesta fresta<br />
é nesta fenda<br />
é nesta senda<br />
é nesta sombra<br />
por onde entro<br />
seta<br />
para fora do tempo<br />
<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 84
Noturno árabe<br />
Se a nádega clara sobre a seda escura<br />
retém um tom de rosa. Se a penugem da coxa<br />
doura a pele. Se a carne rosa e fina<br />
da virilha guarda um perfume quente.<br />
Se a cova da clavícula detém o sal<br />
do suor. Se a onda dos pelos reluz<br />
seu sol negro. Se o dente branco rasga<br />
a polpa da canela. Se o perfume quente<br />
umedece as coxas duras da menina.<br />
Se a nádega clara treme ao toque da língua.<br />
Se o suor escorre pela espinha fina<br />
onde os pelos. Se a virilha rosa.<br />
Se a ponta dos peitos brilha como estrela.<br />
Se a noite se move sob o corpo alvo.<br />
<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 85
Lázaro<br />
Não acordem Lázaro<br />
ele não quer<br />
está livre do mundo.<br />
Suas irmãs não sabem<br />
é puro egoísmo<br />
desejá-lo vivo.<br />
Não acordem Lázaro<br />
ele está feliz.<br />
Seus instantes de febre<br />
sua gula e jejum<br />
tudo está ultrapassado.<br />
Lázaro só pensa<br />
em campos de neve<br />
em disneylândias<br />
em sorvetes de araçá.<br />
Acordar Lázaro seria<br />
suprema desumanidade.<br />
Ainda assim<br />
acordaremos Lázaro.<br />
<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 87
Litania<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Velas roxas, seda roxa, roxas feridas de dor<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Santo Sangue do Senhor<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Muita pedra, muita queda, muito perdão por favor<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Santo Sangue do Senhor<br />
Sobe ladeira, desce ladeira, onde for<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Serpente de fé, emblema da dor<br />
Do homem na terra caminhador<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Bang bang de fogos, flores, palmas, cânticos de amor<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Santo Sangue do Senhor<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Pelo mangue, pela praia, pela praça, pela rua, pela avenida<br />
Pela vida<br />
Lá vai a procissão com seu andor<br />
Lá vai a procissão do Santo Sangue<br />
Santo Sangue do Senhor<br />
<strong>7faces</strong> – Marco Polo Guimarães │ 88
Dora Ferreira da Silva<br />
recortes 1
Órfica<br />
Não me destruas, Poema,<br />
enquanto ergo<br />
a estrutura do teu corpo<br />
e as lápides do mundo morto.<br />
Não me lapidem, pedras,<br />
se entro na minha tumba do passado<br />
ou na palavra-larva.<br />
Não caias sobre mim,<br />
que te ergo, ferindo cordas duras,<br />
pedindo o não perdido<br />
do que se foi. E tento conformar-te<br />
à forma do buscado.<br />
Não me tentes, Palavra,<br />
além do que serás<br />
num horizonte de Vésperas.
Quatro poemas em rosa<br />
I<br />
ROSA-MOURO<br />
Peço-te novas, amor, da Criança que gerámos um dia<br />
junto a um canteiro de rosas. Era de noite,<br />
mal víamos as cores de nosso filho antigo.<br />
Rosa-mouro, seu nome: sua alcunha, o Cigano.<br />
Num carroção o levámos a passear pelo mundo.<br />
Na aurora era lindo, Rosa-lindo o apelidámos<br />
e nunca o vestimos. Rosa-nu, chamaram-no meninos<br />
que caçavam pássaros. De noite,<br />
escurecia tudo: Rosa-escuro fremindo<br />
em nosso abraço. Rosa-noite, segredámos<br />
sem que ninguém ouvisse. E num aro de criança<br />
o rodamos, tangendo com varas finas nosso Menino.<br />
Mal sabíamos que se afastaria. No canteiro de rosas –<br />
seu berço – a geada pousou dia incerto um beijo mais frio.<br />
Rosa-mouro, gritámos! Cigano! Ecos se foram<br />
em muitas direcções. Rosa-lindo e Nu e Noite, gritámos!<br />
Ninguém respondeu. Não se fora, aéreo, nem morrera<br />
pétreo de desentendimento, nem sufocara em lágrimas,<br />
nem morrera de rir. Desconfio das rosas,<br />
das rosas de todos os caminhos. Nosso filho sincrético<br />
em tudo que é rosa parece dormir.<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva │ 92
II<br />
ROSAMOR<br />
Nem mesmo o Angélico achou tal cor em asa<br />
ou manhã. Nenhum acorde tocou tal cor.<br />
Nas palmas dos recém-nascidos dizem<br />
que pode ser encontrada se a estrela for propícia.<br />
Em pétalas, se a Natureza doar-se, amando<br />
a flor dilecta. Um Poeta a descobriu na hora mais tardia<br />
e ofertou-a em silêncio à visão derradeira.<br />
Temerária, a procuro; interrogo os sentidos:<br />
o tacto, em pêssegos pousando e amando;<br />
o gosto confuso e escuro aprofundando<br />
a carne da romã; o olhar, demasiado à superfície<br />
das rosas que têm nome, e escapam; o ouvido,<br />
ébrio de vinho róseo esquecendo a música.<br />
Interrogo os sentidos. Nenhum responde a meu chamado.<br />
Despeço o poema à porta, é inútil tentar<br />
dizer tal rosa, estando viva e incerta<br />
em tantos caminhos por onde começar.<br />
III<br />
ROSALÉM<br />
Ajoelhada, num gesto simples de colher flores,<br />
rósea. O alvo abrigou-se além<br />
e deixou-a no jardim das rosas. NO LI ME TANGERE.<br />
Colhe o que quiseres na campina rasa,<br />
essas folhas e ramos e aromas.<br />
Enlaça-te em teus xales, descansa<br />
de soluços e sustos. Recolhe teu gesto<br />
aéreo. Volta ao róseo da aurora.<br />
Do Amado, era a hora madura;<br />
não a tua, Amorosa.<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva │ 93
IV<br />
ROSADEUS<br />
Num escrínio de vidro levavas a rosa.<br />
Os caminhos eram vazios, depois de chuvas prolongadas.<br />
Contra o peito apertavas o tesouro frágil;<br />
ria-me de teus cuidados, de teu medo. “Somos os últimos.<br />
dizias, aos que foi confiada a rosa.”<br />
Eu cantava tudo que nascia<br />
e em nossas bocas os frutos se acendiam.<br />
Debatia-se o sol em teus cabelos;<br />
abraçados na clareira fria, ouvia em teu peito<br />
o rio escuro. E de lágrimas me vestia,<br />
na extrema nudez<br />
que só tu viste e velaste<br />
entre a rosa e o vazio.<br />
Esse tempo existiu, de sendas tão secretas?<br />
Que delírio o retém? Partiu-se o vidro,<br />
perdeu-se a rosa, o atalho na floresta?<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva │ 94
Vivem os ventos...<br />
Vivem os ventos o puro viver<br />
fuga incessante dos elementos.<br />
Abrem-se pétalas de ar<br />
gritam nuvens arrastadas<br />
riem gostas de luz na altura límpida:<br />
o branco novilho – cascos de ouro – escarva<br />
entre céu e terra.<br />
Dissipa-se o impuro. Dilata-se a luz<br />
que incita o desencadear constante<br />
e nas flâmulas do éter – rubra –<br />
floresce a rosa<br />
distante e presente<br />
pétalas abertas ao duplo viver:<br />
raízes na terra<br />
e odor que no alto se dissipa<br />
em viagem além de porto ou ilha<br />
ao sabor do saber ou não-saber das quilhas.<br />
Doada e casta em seu prumo<br />
das altas transparências às grotas<br />
de obscuros corações (sôfregas raízes).<br />
A rosa: farta e indigente<br />
entregue aos rios de vento e de carência.<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva │ 95
A Euryalo Cannabrava<br />
Sem lápide pesada<br />
à beira de águas fluentes<br />
– rápidas palavras –<br />
roladas ao fio dos pensamentos<br />
que fundamente habitaste<br />
mas principalmente à beira do livro de imagens<br />
do teu Fabulário – homem forte habitado<br />
pela Criança dos inícios –<br />
eu te evoco ao sol da nítida lembrança<br />
(foi o Início teu porto aberto à descoberta)<br />
à beira de águas sempre renovadas<br />
configuradas na líquida flor dos pensamentos<br />
do homem divinamente criador a imagem<br />
teu instante perene e as fibras do Imaginado.<br />
O hausto do silencioso sentimento<br />
em tudo se torna e se derrama<br />
e contigo permanece.<br />
Os poemas aqui publicados nesta sessão aparecem em edições de 1972<br />
(n.10) e 1978 (n.44) da Revista Colóquio/Letras da Fundação Calouste<br />
Gulbenkian e foram cedidos para reprodução nesta edição
O projeto<br />
criador em<br />
Dora Ferreira<br />
da Silva*<br />
Por Euryalo Cannabrava<br />
1<br />
entremeio<br />
Dizer que certo soneto de Rainer Maria Rilke é existencialista significa<br />
o mesmo que atribuir-lhe determinada relação temática não<br />
substancial. Na obra de Dora, porém, o existencialismo não<br />
comparece, porque a sua trama foi urdida na base de vivências<br />
pessoais e intransferíveis, de contactos imediatos e direto com as<br />
vicissitudes da “humana natureza”, no dizer de Zurara.<br />
Nem seria possível, na base de teses existencialistas, analisar a<br />
riqueza desbordante da poética Doriana. Os fundamentos da crítica<br />
existencialista ou fenomenológica de poesia, por outro lado, são<br />
vacilantes, como se verifica através de Alessandro Pellegrini na sua<br />
monumental obra sobre Hölderlin.<br />
O que acontece com o crítico existencialista ou fenomenologias é que<br />
ele parte de uma perspectiva doutrinária para examinar o que<br />
sòmente pode ser encontrado no poema. A posição do<br />
Existencialismo ou da Fenomenologia é fundamentalmente<br />
problemática. Em primeiro lugar, são filosofias exortativas que<br />
costumam substituir, em certas oportunidades, a reflexão crítica pelo<br />
É assim tanto Heidegger como os seguidores de Husserl proclamam
ser a poesia nada mais ou nada menos do que disciplina filosófica.<br />
Esta confusão básica entre mensagem especulativa e mensagem<br />
poética torna-se evidente no ensaio de Heidegger sobre Hölderlin.<br />
Ora, tal exegese retira, de início, a originalidade do poema,<br />
considerado como subproduto da atividade filosófica. A distinção<br />
básica, porém, entre Poética e Filosofia decorre, como se verifica a<br />
propósito do poema “Metafísica”, precedentemente comentado, de<br />
que toda construção filosófica é problemática, ao passo que todo<br />
poema autêntico pode conter problemas, embora não seja<br />
problemático em si mesmo. A natureza do método filosófico seria<br />
transformar soluções em problemas. A Matemática interessa ao<br />
filosófico precisamente no sentido de que as suas soluções,<br />
transmutadas em problemas, constituem a base do progresso na<br />
rainha das ciências.<br />
Nada disso se verifica com a obra de arte: enquanto ela se manifesta<br />
apenas como projeto criador, a sua essência é a aleatoriedade. A<br />
transição do objeto estético (programação criativa) para a obra de<br />
arte (produto necessário) constitui a base da realização artística. A<br />
necessidade da obra de arte consiste precisamente no faço de que do<br />
teatro de Shakespeare, da fuga de Bach ou da estátua de<br />
Michelangelo nada se pode retirar ou acrescentar. Ao passo que na<br />
teoria cientifica, como a relatividade einsteiniana, as amputações e<br />
os acréscimos se tornam inevitáveis.<br />
Há, portanto, uma necessidade estética tanto ou mais rigorosa do<br />
que a necessidade lógica. Esta necessidade estética permeia os<br />
poemas de Dora, em que o famoso “sentido” direto, referencial e<br />
simbólico sofre a coação do fundo imagístico no repertório das<br />
palavras. Assiste-se, ao vivo, ao conflito entre os ingredientes<br />
simbólicos e imagísticos que, contrapondo-se, geram tensão<br />
conotativa de ressonância estética profunda. É o que se observa,<br />
depois de “Metafísica”, nos versos<br />
e em<br />
fala da alma que me desabita<br />
do meu corpo ausente quanto não estás<br />
cega li<br />
teu nome em meu sangue<br />
e as estrelas confirmaram<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 100
seguidas por<br />
E, a propósito do Sol:<br />
no escuro divinatório<br />
reconheço<br />
o perfil da tua origem<br />
clara divindade<br />
nua a carnação sob o manto escarlate.<br />
Mais adiante, em “Manhã I”:<br />
Esqueço os hieróglifos da alma,<br />
há campânulas azuis, ânforas, pássaros.<br />
há campos a percorrer.<br />
Em todos esses paradigmas líricos, as violações semânticas do<br />
“sentido” dicionarizável atingem o seu objetivo de coarctar o obvio e<br />
o prosaico, nas referências simbólicas, para atingir o inusitado e o<br />
insólito da expressividade poética.<br />
Em “Manhã II”:<br />
No espelho do lago semeado de folhas<br />
ondulam os corpos entre hastes de trigo<br />
o sentido literal e léxico não representa o objetivo, dissimulado pela<br />
neutralidade da descrição natural.<br />
Esta dissimulação do incomunicável, sob a aparência da forma<br />
intuitiva e espontânea, manifesta-se em<br />
Nos grãos do vento<br />
partiram pombos em tumulto e brancura<br />
que explicita raízes intersensoriais de inspeção sensível, denunciando<br />
no poeta contacto interno dos sentidos com a realidade do mundo<br />
exterior. Aos “grãos de vento”, distribuídos em partículas minúsculas,<br />
corresponde a revoada dos “pombos” que confunde “tumulto” e<br />
“brancura”. Pensamento poético, de raízes sensoriais, pressupõe<br />
análise discriminativa, pelo conhecimento inspectivo, ingredientes<br />
psicodinâmicos ativo, que sublinham a vida ao mesmo tempo<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 101
contemplativa e nostálgica em que se integram elementos de<br />
presença e ausência em síntese secreta:<br />
nos vales da distância<br />
rumina em silêncio<br />
teu rebanho tranquilo.<br />
Nestes dois versos de “Noturno II”:<br />
A noite já desfere<br />
seu punhal de trevas,<br />
nota-se o mesmo artesanato, que impregna a imagem de<br />
sensorialidade concreta, para torná-la drástica até o ponto da<br />
visualização direta. Os versos acima atuam como projetor, criando a<br />
ilusão eidética dos braços da noite desferindo golpes de treva.<br />
Mesmo neste exemplo, como em outros anteriormente citados, não<br />
há metáfora, nem tropo, pois o sentido figurado no uso das palavras<br />
seria o máximo de realização antipoética.<br />
A drasticidade desta imagem provém diretamente do seu poder<br />
galvanizador e energizante. A figura de retórica é abstrata, atua como<br />
símbolo, em que a palavra transfere o seu sentido para outra, como<br />
por exemplo a relação entre “flor” e “mulher”. Ora, “a noite já<br />
desfere” “seu punhal de trevas” nada figura ou compara, mas<br />
simplesmente, através da carga imagística, suscita a presença da<br />
“noite”, densa e concentrada, vibrando o “punhal” feito de “trevas”.<br />
2<br />
A experiência concretista de Dora, incorporada em “Lunimago”,<br />
coletânea de poemas de vanguarda, tem a significação de imprimir à<br />
sua obra feitio experimental em matéria de linguagem. Os poemas<br />
breves e incisivos, valorizam a palavra isolada por meios mecânicos<br />
de técnica tipográfica no espaço em branco.<br />
Ora, em Mallarmé, no poema Um coup de dês, a riqueza da<br />
expressividade lírica consiste precisamente na variedade da<br />
distribuição de palavras no texto poético. As distribuições<br />
obedeceram a uma programação rigorosa, em que o poeta procurou<br />
obter, segundo suas palavras, “esta conjunção suprema com a<br />
probabilidade”.<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 102
Os objetivos mallarmeanos eram complexos, como demonstra a<br />
leitura de Igitur. A realização, porém, como poesia pura, ultrapassou<br />
o projeto criador no sentido de poemas absoluto, sem condições<br />
restritivas. Os concretistas, porém, daqui e do estrangeiro, são de<br />
méritos desiguais, pois a sua programação, muitas vezes ingênua,<br />
empobrece o poema de valores estéticos, circunscrevendo o seu raio<br />
de ação a um mínimo de interações de palavra para palavra. Além<br />
disso, observa-se uma espécie de desestruturação do espaço poético<br />
pelo estrangulamento das imagens nas palavras, que passam a atuar,<br />
simbòlicamente, como veículo de ideias ou de conceitos.<br />
Na eliminação do sentido conceitual da palavra no poema consiste<br />
precisamente a tarefa do artesanato poético que o concretismo<br />
abole por completo. É verdade que Dora consegue, em alguns de<br />
seus poemas concretistas, a transfiguração do substrato simbólico,<br />
nos vocábulos, em pura imagem concreta. Mas estes acertos são<br />
relativamente raros.<br />
No poema concretista em que as palavras “infância”, “ânsia”,<br />
“distância” são colocadas em diagonal à direita, tenho a impressão<br />
de que o coeficiente simbólico, puramente conceitual, desses termos<br />
sobreleva, vantajosamente, o seu repertório imagístico. Mas, seja<br />
como for, a inserção de poemas concretistas em Andanças indica, na<br />
autora, virtuosidade artesanal que valoriza o livro em vez de diminuílo.<br />
De “Lunimago” transita-se, sem tropeços, para a sutil e difusa<br />
“Elementária”, rapsódia lírica de elementos e objetos, congérie de<br />
átomos verbais, cortejo de formas e de ritmos, teoria de sons e de<br />
figuras. Confesso que “Elementária” representou, para mim,<br />
experiência entrópica no mundo da desagregação e do caos. A<br />
desordem impera, nestas regiões mágicas, em que Dora faz surgir de<br />
furna esconsa trasgos e duendes, com letreiros na testa.<br />
Trata-se de um polipeiro de imagens saltitantes: saltos quânticos e<br />
acrobacias verbais que lembram pantomima de circo. A experiência<br />
atinge todos os seus objetivos, com centelhas, fulgurações, enredos,<br />
cipós bracejantes, parasitas, conglomerados, partículas e ondas. O<br />
poema é polivalente, tumultuário, cresço e rugoso na superfície, com<br />
estratos inacessíveis à inspeção armada de microscópio.<br />
É certo que ao verso final
SOBRE ESTA PEDRA EDIFICAREI<br />
corresponde, em “Elementária”, a obra realizada, o fecho e o remate de<br />
uma tarefa ciclópica, em que o mágico, o telúrico e o lúdico se associam em<br />
comum empreitada.<br />
Depois de “Elmentária” plenamente realizada, vem “Tapeçarias”, onde são<br />
entretecidos poemas em prosa.<br />
Não há nada que me faça compactuar com este monstro bifronte: o<br />
poema em prosa. É evidente que a poesia, excluindo a sua paráfrase<br />
em prosa, com os elementos lógico-racionais, inerentes à exposição<br />
oral ou escrita, não se adapta ao tratamento prosaico. A prosa, sendo<br />
simbólica, não evade o sentido senão em determinados trechos,<br />
como acontece com Proust, em que o estilo, galvanizando a<br />
expressividade temática, adquire certo teor poético inconfundível.<br />
A imagem, entretanto, em Joyce, Malcolm Lowry, Guimarães Rosa,<br />
adquire tonalidades descritivas, funciona como epítome ou resumo<br />
dos traços de personagens, exercendo função drástica como no<br />
poema, embora eriçada de ingredientes simbólicos. Esta economia<br />
interna do repertório imagístico, no romance, se explicita em Proust,<br />
ao afirmar de Albertine: “Ela era única e, portanto, inumerável.”<br />
Este poema em miniatura, quando isolado, perde seu conteúdo<br />
poético pela função que exerce no romance proustiano. O leitor já se<br />
sente saturado de informações vagas ou precisas sobre Albertine,<br />
figura caleidoscópica, cujas metamorfoses ovidianas excedem o<br />
número de estrelas nas galáxias. Mas, de repente, tudo que foi dito<br />
ou ficou subentendido acerca de Albertine – o seu temperamento de<br />
lésbica ou de heterossexual, ou seus impulsos, os seus passos<br />
rítmicos pela praia, as suas alegrias incontidas de jeune fille em fleur,<br />
os seus retraimentos, as suas traições, os seus subterfúgios – se<br />
condensa na imagem esplêndida: “Ela era única e, portanto,<br />
inumerável.”<br />
O que distingue a imagem poética do símbolo prosaico reside no<br />
caráter autotélico (que tem o fim em si mesmo) da primeira, e o feito<br />
heterotélico (que tem o fim fora de si mesmo) do segundo. Eis<br />
porque a imagem poética, sendo espontânea e natural, surge no<br />
poema com os atributos flagrantes da presença física, da densidade,<br />
do volume, do peso especifico.<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 104
Ela é auto-referencial, concentrada e não hetero-referencial,<br />
desconcentrada, centrípeta como o símbolo. A confusão entre<br />
imagem e símbolo, perpetrada por Cassirer, como endosso posterior<br />
de Suzanne Langer, está na base dos tortuosos tramites das doutrinas<br />
estéticas.<br />
Em Andanças, as imagens proliferam como enxames de abelhas.<br />
Entre inúmeras delas, citarei estratègicamente “águas taciturnas”,<br />
como exemplo vivo de propriedades interativa, em que o dissílabo<br />
“águas” atua sobre o quadrissílabo “taciturnas”, com efeito<br />
reversível. É claro que as “águas”, não sendo humanas, não podem<br />
ser “taciturnas”; no máximo seriam escuras ou sombrias. Se o sentido<br />
dicionarizável tivesse importância em poesia, a autora poderia ter<br />
dito “águas silenciosas”, o que não atinge o alvo, nem se enleva até o<br />
nível da expressividade poética.<br />
Mas “águas taciturnas”, embora represente expressão<br />
semanticamente imprópria, traz, no seu bojo, suficiente lastro de<br />
carga imagística, audiovisual, para suscitar o surto da evidência<br />
heurística que serve de suporte ao juízo estético. O poema autêntico,<br />
como “Metafísica”, tem na força das imagens, na sua drasticidade<br />
como sensações condicionadas, os dados intuitivos, as evidências de<br />
natureza criativa que a linguagem lírica explicita e veicula.<br />
Vejam bem: a “águas taciturnas” nada pode corresponder no mundo<br />
exterior. O coeficiente de realidade desta expressão decorre<br />
exclusivamente da representação visual de “águas” que, por serem<br />
“taciturnas”, nada ou pouco comunicam. O repertório visualizante de<br />
“águas” aglutina-se ao repertório auditivo de “taciturnas” e, através<br />
de contínuas interações, surge a imagem luminosa, rítmica e musical,<br />
ao mesmo tempo. O estudo da estratégia da decisão, em Dora, do<br />
seu sistema de preferências, dos seus critérios seletivos, constitui o<br />
cerne do juízo crítico como arte de penetração analítica.<br />
É esta estratégia da decisão, explicitada nos poemas em prosa, que<br />
será investigada nos seus variados aspectos. Em primeiro lugar, ainda<br />
a propósito do poema “Metafísica”, o paradoxo que ele gera decorre<br />
de que o seu título, prometendo uma temática que não será nem<br />
sequer tocada em qualquer dos versos, se torna, por isso mesmo,<br />
“metafísica”. A táctica Doriana de decisão consiste em fraude ou dolo<br />
consumado, que começa por enganar o leitor, desviado de seu rumo,<br />
à procura do “sentido” nas palavras, embaído nas suas expectativas,<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 105
com promessas que não se cumprem e intentos que não se realizam.<br />
E, com isso, Dora põe a nu a essência mítica do poema, a sua<br />
quididade ou natureza interna: o ludíbrio, o artifício, a deformação<br />
do real, o jogo lúdico, a trama caleidoscópica, embora conserve<br />
intactas as raízes sensoriais na base das imagens.<br />
Este jogo entre o concreto e o abstrato, entre a sensibilidade e a<br />
inteligência, entre o empírico e o racional consubstancia a técnica de<br />
decisão Doriana na factura equívoca e polivalente do poema.<br />
Surpreendê-la na ação mesma de elaborar seus artefatos líricos<br />
constitui tarefa da crítica, orientada por princípios técnicos, embora<br />
mantendo o seu privilégio de exercício livro nos domínios<br />
estratégicos da decisão.<br />
Em cursos sobre “Tecnologia e Decisão Estética”, procuro reivindicar<br />
para a crítica todas as características da Operação-Cultura. O método<br />
crítico, como o instrumento tecnológico, fornece aquilo que Matthew<br />
Arnold denominou a “atmosfera da atividade criadora”. Ora, a<br />
atividade criadora, sendo estética por sua natureza, investigada pelo<br />
crítico, transforma-se em arquitetônico estilística. Criação, em Arte, é<br />
expressão da forma, modulada pelo ritmo.<br />
Daí os liames apertados que ligam a Tecnologia à Arquitetônica<br />
Estilística e esta à construção da forma, gerada através de<br />
galvanização da expressividade temática pelo estilo. Receio muito<br />
que haja excesso de “programatismo” nas afirmações anteriores,<br />
apesar de poder alegar que não disponho de espaço para a podagem<br />
das arestas, amplificando as considerações sob aspectos relevantes.<br />
Fixando-me, porém, na estratégia de decisão do artista,<br />
complementada pela estratégia de decisão do crítico, certos pontos<br />
fundamentais devem ser esclarecidos. O primeiro diz respeito à<br />
situação singular dos poemas em prosa de Dora que pretendem<br />
ocupar posição intermediária no complexo de relações entre prosa e<br />
poesia. A autora, entretanto, até neste ponto faz obra original,<br />
porque esta parte de Andanças destoa de todas as experiências já<br />
feitas neste sector.<br />
A originalidade de Dora, que constitui a marca de Andanças, consiste<br />
precisamente em atingir, nestes poemas, certa posição que,<br />
participando do lirismo romântico exacerbado até o ponto de fusão,<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 106
faz poesia transfigurada em prosa, e prosa metamorfoseada em<br />
poesia.<br />
Tais metamorfoses, porém, preservam o clima poético através das<br />
imagens que, por não serem simbólicas, acabam eliminando, na<br />
textura lírica, o coeficiente prosaico de referências e de informações<br />
precisas. O clima comunicativo de “Tapeçarias”, que nada informa<br />
através de referências prosaicas, transmite o inefável, termo<br />
insubstituível para traduzir o que, no poema, não se pode veicular<br />
por outras palavras.<br />
O absurdo de se considerar o poema como um sistema cibernético,<br />
com seus mecanismos, auto-regulações e retroações, consiste<br />
precisamente em se admitir que ele veicule unidades informativas.<br />
Mesmo porque as unidades informativas do poema seriam<br />
elementos ou processos, por ele construídos, que não figuram<br />
explìcitamente no seu contexto.<br />
Ora, tudo que não figura no poema, nas suas palavras transfiguradas<br />
em imagens, seria completamente espúrio e inoperante, simples<br />
resíduos referenciais e simbólicos. Esses remanescentes simbólicos<br />
constituiriam a parte dicionarizável das palavras que o poeta elimina,<br />
pelo menos parcialmente, com a sua decisão metamorfoseante.<br />
É o que acontece em “Tapeçarias”, escrita provàvelmente com a<br />
intenção de mostrar a impossibilidade do monstro bifronte: poema<br />
em prosa. As rimas repetidas e cruzadas, o elance da textura lírica, o<br />
tom romântico de balada medieval, os motivos, arabescos e<br />
desenhos na tecelagem das tapeçarias, tudo isso, congregado na<br />
decisão de eliminar o supérfluo para reter o essencial, resulta na<br />
comunicação do inefável. Esta comunicação do incomunicável,<br />
através de estratégias de decisão, que criam vias de acesso ao<br />
inacessível, constitui o cerne e o núcleo da realização estética.<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 107
© Arcangelo Ianelli. Vibrações em vermelho 200-2001
© Arcangelo Ianelli. Vibrações em azul 200-2001
© Arcangelo Ianelli. Vibrações em branco 200-2001
3<br />
A poética de Dora, assediada pelo mistério, pelo apelo inaudível das<br />
forças telúricas, expande-se, nesta última parte de Andanças,<br />
intitulada “Margens”, através do verbo concentrado em estruturas<br />
densas de tensão interior, de vivências sôfregas de libertação e de<br />
desafogo. É esta contínua necessidade de libertar-se de si mesma, de<br />
ir além de seus próprios limites, que impregna os poemas de Dora do<br />
vigor dramático da litania, do canto litúrgico, do rito mágico nas aras<br />
de um templo pagão.<br />
Em “As palavras partiram”, a sua técnica artesanal, enriquecida de<br />
sutileza e de subintenções, explora o aleatório, o contingente e o<br />
acidental nos vocábulos para extrair a necessidade da ordem<br />
estética. Eis porque a estratégia de decisão, na base destes poemas,<br />
se transfigura em atividade criadora no arranjo, no ajustamento, na<br />
sequência concatenativa das palavras.<br />
O domínio exercido por Dora sobre as palavras explica a sua arte de<br />
convertê-las em evidencias heurísticas do seu artesanato, trabalhado<br />
interiormente por processos psicodinâmicos, que transformam crises<br />
e conflitos em serenas renúncias e abdicações. A calma e o repouso,<br />
em Dora, apesar do intenso fervor dramático de suas vivências, são<br />
aquisições do seu espírito filosófico, firmemente ancorado no porto<br />
existencialista.<br />
No primeiro poema de “Margens”, apesar da incerteza do rumo que<br />
as “palavras” poderiam tomar, ocorrem versos como estes:<br />
É preciso partir. A dúvida aborrece, enlanguesce com suas<br />
sábias indicações.<br />
Não há caminho preestabelecido. Nosso mapa é confuso.<br />
Nossa boca, uma pobre coisa para enumerar perigos, as boas<br />
ocasiões, os caminhos e descaminhos...<br />
E diante de nós, essa grande proa, um corpo de mulher com<br />
seus panejamentos encharcados.<br />
O traço básico de versos como estes, que têm qualquer coisa de<br />
goetheano, na sua serenidade olímpica, parece resultar da árdua<br />
conquista de uma quietude feita de desalento e de profunda<br />
renúncia. Renúncia diante de tudo, do seu próprio ser, de alegrias<br />
primeiras na infância, de revelações na adolescência, de exultado<br />
alvoroço na mocidade. Renúncia e fidelidade ao verbo lírico, ao ato<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 111
de criar, plasmando a forma densa na plástica e no modelo do poema<br />
absoluto, liberto de restrições.<br />
É o que Dora realiza em<br />
Essa alma que lavra em nossos peitos com suas garras sem<br />
piedade, essa alma equina, do Mar, neptuniana terá um dia<br />
seu porto de chegada?<br />
onde se observa a sua técnica de pôr entre parênteses o “sentido”<br />
direto e imediato das palavras para explorar a sua imagem de<br />
indeterminação no mundo do discurso poético.<br />
Mais adiante, em outros poemas, Dora introduz<br />
e páginas depois:<br />
e ainda:<br />
Logo a manhã nascerá<br />
sacudindo o seu manto crivado de pássaros<br />
De novo semeamos a amanhecida messe<br />
semente da infância, lírio da primeira aurora,<br />
campo onde o arado da dor não se imprimiu.<br />
Depois, em “Igreja de Ouro Preto”, adverte:<br />
Se entrares,<br />
verás no bojo escuro de vísceras sinuosas<br />
anjos de sexuada forma,<br />
de sorriso enigmático<br />
e nestes, como em outros versos, Dora projeta a igreja ouropreteana no<br />
emaranhado de suas impressões subjetivas:<br />
Lasciva torna-se a doçura<br />
das imagens que dançam na matéria alada.<br />
Aqui é registrada com a marca e a garra da gravura lírica, o misto de<br />
luxúria e de sentimento místico que a escultura e a talha do<br />
Aleijadinho misturaram com incomparável virtuosidade.<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 112
O juízo crítico que os versos citados transmitem se evola na forma<br />
intencionalmente drástica e, ao mesmo tempo, saturada de<br />
expressividade poética através do seu realismo intersensorial. O<br />
achado “Lasciva [...] doçura”, a que se acrescentam “imagens [...]<br />
dançam na matéria alada”, exprime, ao vivo, o barroco religioso, não<br />
através de símbolos prosaicos, mas sim através de transfigurações e<br />
de metamorfoses.<br />
O poema “Hölderlin”, embora não seja o último do livro, deverá<br />
fechar estas considerações sobre a poética Doriana, multifacetada,<br />
rica de aspectos, versátil em matéria de recursos e de técnicas. A<br />
versatilidade, característica da verdadeira poesia, as mutações<br />
bruscas, o imprevisto da combinação verbal, o inusitado e o<br />
predomínio dos “valores de choque” sobre os “valores de repouso”,<br />
segundo Valéry, tudo isso representa a essência da linguagem lírica.<br />
Mas o poema autêntico, como este sobre Hölderlin, nos faz<br />
defrontar, na base do realismo sensorial de imagens concretas, a<br />
figura do poeta alemão na força de sua presença física e na plenitude<br />
do seu estro:<br />
Onde não há chão<br />
tua raiz se adentra<br />
sugando a terra – seio apojado de tudo que será.<br />
Sòmente a leitura acurada das odes, dos hinos e das grandes elegias<br />
faz perceber o que há de profundamente hölderliniano nos versos<br />
citados. Dora adentra-se em Hölderlin, penetrando em seus<br />
mananciais, bebe o mesmo líquido que embriagou o poema<br />
germânico, despertando as suas visões. Comunga da mesma hóstia e,<br />
com sutileza e engenho, apreende a natureza última da mensagem<br />
hölderliniana:<br />
Sobre ti o Éter inclina, paterno,<br />
a fronte pensativa,<br />
tocando-te.<br />
E Hölderlin, tocado pelo Éter, dissolve o seu espírito conturbado em<br />
exaltações líricas:<br />
Tu, feito fonte, colina,<br />
ou rio corrente em meandros sussurrantes,<br />
tu, rocha, arquipélago,<br />
água oscilante das cisternas,
ou disperso nas flores da campina,<br />
fruto e mão que o recolhe,<br />
criança dedilhando velha cítara<br />
no centro de um paraíso inviolado,<br />
cercado de muralhas e pássaros cantantes nas ameias.<br />
É certo que Dora só extrai poesia da linguagem hölderliniana, sem<br />
aludir à formação filosófica do Poeta através da amizade de Hegel e<br />
de Schelling. O que interessa à autora de Andanças é o verbo lírico<br />
em plena efervescência, o surto do canto heroico em plena<br />
madrugada, o pean entoado por hordas dispersas, o destino trágico<br />
do Poeta ao mergulhar na loucura:<br />
Feriu-te o raio a fronte<br />
na invisível tormenta<br />
dos caminhos dispersos,<br />
das sendas, setas desferidas<br />
em confusos voos sem destino.<br />
Scardanelli curvo e lasso<br />
entre a poeira dos livros indistintos –<br />
amável, melancólica sombra<br />
ofuscada por seu próprio ser – sol desmesurado.<br />
Nestes versos, Dora feriu a tónica hölderliniana, majestosa e selvática<br />
ao mesmo tempo, o pathos helênico, a textura lírica impregnada de<br />
exaltação dionisíaca, através de hexâmetros e pentâmetros.<br />
Conseguiu o timbre inimitável do verso hölderliniano, o sentido<br />
plástico da forma, a estilística e o trajeto interplanetário.<br />
Em Hölderlin, o gosto pela Filosofia foi incutido por Hegel, que<br />
recebeu do seu amigo, em retono, o influxo da inspiração poética. Na<br />
obra de Alessandro Pellegrini acerca do autor de Patmos e de Brot<br />
und Wein, é assinalada a influência da dialética hegeliana sobre a<br />
dialética lírica de Hölderlin.<br />
Verifica-se, porém, que Hegel atou muito mais na poética<br />
hölderliniana como teólogo do que como filósofo ou dialética. O<br />
pensador germânico, na sua juventude e na sua maturidade –<br />
assinala Pellegrini –, pretendeu conciliar os dogmas cristãos com as<br />
imagens dos deuses da mitologia grega. O curso da dialética<br />
hölderliniana não era conceitual, nem demonstrativo, como em<br />
Hegel, pois se baseava nos mitos, nas apoteoses e nas alegorias.<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 114
Admite-se, entretanto, que a dialética hölderliniana seja<br />
psicodinamizada por processos, enquanto a dialética hegeliana é<br />
logicizada por operações. Seja como for, Hölderlin era um pensador,<br />
nem Hegel, apesar de ter escrito poemas, era um poeta.<br />
Apesar disso, há nos problemas hölderlinianos o jogo diabético,<br />
haurido em Hegel, mas completamente transfigurado pela carga<br />
sensorial das imagens. Ainda mais: embora o autor de Hyperion não<br />
desenvolvesse, na sua poética, o pensamento sistemático, como<br />
observa o ensaísta Hoffmeister, torna-se evidente que ele soube<br />
transformar a “ideia profunda em criação viva”.<br />
Ora, esta rara aptidão de retirar da ideia ingredientes sensíveis, que<br />
lastreiam o corpo da imagem, parece ser o núcleo mesmo do<br />
pensamento poético. É o que se observa nos versos hölderlinianos,<br />
extraídos de Sokrates und Alcibiades:<br />
Wer das Tiefste gedacht, liebst das Lebendigste<br />
(Quem pensa o mais profundo, ama o mais vivo)<br />
em que o Poeta, segundo Haering, “não exprime a ideia, mas encarna<br />
a própria ideia”. Não há expressão mais clara do que as palavras, no<br />
poema, como forma simbólica: veiculam conceitos ou ideias, mas<br />
através de seu repertorio imagístico coarctam o seu poder<br />
referencial, até o ponto de quase eliminar-lhes o sentido. a ideia,<br />
portanto, integra o poema, através da tensão conotativa entre<br />
símbolo e imagem, de que resulta o clima poético e o processo<br />
comunicativo do dialeto lírico.<br />
É o que se observa em Andanças, onde os nexos ideativos se diluem<br />
na carga imagística, condensada até o ponto crítico da irrupção<br />
através dos interstícios das palavras. O que Dora conseguiu realizar –<br />
em matéria de virtuosidade técnica – coloca-se na primeira linha da<br />
poesia feminina em nosso país, entre Cecília Meireles, a maga, e<br />
Henriqueta Lisboa, a sacerdotisa.<br />
* Este texto aparece publicado pela primeira vez na Revista Colóquio/Letras da Fundação<br />
Calouste Gulbenkian, edição 9, em setembro de 1972 e foi cedido pela Fundação para esta<br />
edição.<br />
<strong>7faces</strong> – Euryalo Cannabrava │ 115
Vias de ver as coisas 2
Ianê Mello<br />
Rio de Janeiro – RJ<br />
Nascida no Rio de Janeiro. É educadora e pós-graduada em Pedagogia.<br />
Identificada com as diversas propostas em textos literários, escreve também<br />
com resultados diversificados. Seus textos incluem contos, crônicas, aforismos,<br />
haicais e poesias. Alguns deles são publicados na internet, em sites, blogs e<br />
revistas eletrônicas. Dentre os blogs que mantém estão Labirintos da alma,<br />
Outros poemas de expressão, Diálogos poéticos.
Encontro predestinado<br />
Assim quando me quedo<br />
em sonhos desfalecida<br />
em murmúrios inaudíveis<br />
me vem a ânsia de tudo querer<br />
Assim quando a espera<br />
se faz tarde sombreada<br />
nas palavras que se vestem<br />
numa esperança inquieta<br />
Assim quando me ponho a pensar,<br />
vestígios de um dia em sobressalto,<br />
assoladas incertezas se aquietam,<br />
desejos em vontades transformados<br />
Assim, somente assim, vislumbro<br />
numa luz difusa o fim do caminho,<br />
em passos percorridos outrora,<br />
sementes que plantei sem aviso.<br />
<strong>7faces</strong> – Ianê Mello │ 118
Pedro Belo Clara<br />
Lisboa– Portugal<br />
Pedro Belo Clara, nascido em Lisboa, Portugal, é autor dos livros de poesia A Jornada<br />
da loucura e Nova era. Além de colunista, membro de portais artísticos e prelector de<br />
sessões literárias, participou ainda, com suas poesias, em várias exposições de pintura<br />
e em coletâneas do gênero. Atualmente, é colaborador nas revistas literárias<br />
Fantástica e Amanhã ou Depois.
CIDADE<br />
I. A Neblina<br />
A neblina, em translúcidas caravelas,<br />
Para si reclama os domínios nocturnos,<br />
Assomando aos telhados e às janelas<br />
Num leve bulir de sussurros soturnos.<br />
Dormitando ao sabor de um cansaço,<br />
Jazendo em firmes colunas de betão,<br />
Num tempo em que o futuro é baço<br />
E o passado uma indisfarçável solidão,<br />
Encontro-te, cidade de melancolia,<br />
Covil de vultos ignóbeis e ardilosos<br />
Que anseiam pelo homicídio do dia<br />
Em recantos sombrios e silenciosos;<br />
E respiro o teu esboço progressista,<br />
Uma indefinição desprovida de viço,<br />
Uma palavra de inverosímil conquista<br />
Em elegia digna de povo submisso.<br />
São filhos teus essas sombras vadias,<br />
Essas brisas abatidas em final de revolta,<br />
Esses incontáveis corpos e almas vazias<br />
Toscamente cintilando à minha volta –<br />
Os homens, mudos como peregrinos<br />
Das estradas dos infindáveis caminhos,<br />
Na convergência dos pesarosos hinos<br />
Carpem as doridas mágoas sozinhos;<br />
As mulheres que, nas desertas vielas,<br />
Se vendem a quem as quiser obter,<br />
Das esquinas são pertinazes sentinelas<br />
Perdidas e entregues a um falso prazer.<br />
Cidade, morada de valores degradados,<br />
De Homens livres em rotineiras prisões,<br />
És presa fácil sob os olhares depravados<br />
Das rudes e desalinhadas habitações…<br />
<strong>7faces</strong> – Pedro Belo Clara│ 120
II. Os Caminhos<br />
Embrenho-me no labirinto urbano.<br />
Como se fugindo da sombria investida,<br />
Atravesso as longas galerias do profano<br />
Na perene presença da luz desvanecida.<br />
Sem rumo algum, levado pelo instante,<br />
Estendo a mão ao que é indistinguível,<br />
Deixando que me guiem, hesitante,<br />
À mais oculta e pura verdade possível.<br />
Tanto pulsar e sentir contraditório!<br />
Estagnada ideia entre partir e ficar…<br />
Pobres cobaias – lívidas! – do ilusório<br />
Ideal aludido em prol de um governar,<br />
Espectros de tempo nenhum errando<br />
Por lugares só por eles conhecidos,<br />
Ávidos sem porquê, assim lamentando<br />
Todos os lamentos já esquecidos.<br />
Sem permitir que a fadiga me vença,<br />
Decidido vou, como transporte fiel<br />
Da tocha que atiçará a vital crença,<br />
Trilhar as rotas dos caminhos do fel.<br />
Compadeço-me pelos rostos quietos<br />
Que por detrás das pálidas vidraças<br />
Miram o absurdo, de ânsia repletos,<br />
Embora reféns das próprias carapaças.<br />
Há mais do que a simples e traiçoeira<br />
Realidade que aqui vive aparenta…<br />
Assim, entre nós, na noite marinheira,<br />
Nasce uma conversa que acalenta,<br />
Em sua mudez, cada chama singela<br />
Que, de novo, parece brilhar viçosa.<br />
Talvez esta tocha tenha sido vela,<br />
Presença amiga na mágoa silenciosa.<br />
<strong>7faces</strong> – Pedro Belo Clara│ 121
© Arcangelo Ianneli. Geometric composition
III. As Vidas<br />
Vidas a ti chegaram e partiram, cidade,<br />
E muitas continuarão ainda sua jornada –<br />
Intrépidos viajantes de generosidade<br />
Pela frivolidade da alucinação quebrada,<br />
Em busca do que todos, por fim, almejam.<br />
Foste casa para quem em ti se abriga?<br />
Ou foste veneno das ervas que verdejam,<br />
Foice implacável de cada vida inimiga?<br />
Senhor de rosto enrugado e cansado,<br />
Vós que fostes um emigrante na fantasia,<br />
Vós que rejeitaste o vosso próprio fado,<br />
Dizei-me se espera pelo nascer do novo dia;<br />
Jovem de olhar alienadamente perdido,<br />
Que cheiras ao labor que aqui plantaste,<br />
Teu nome foi extinto e teu querer rendido?<br />
É ele que ecoa nas muralhas que criaste?<br />
Atravesso bairros, subo e desço colinas:<br />
Onde está a centelha que outrora brilhou?<br />
A pronta canção nos lábios das varinas,<br />
O saudar de cada rosto… Quem os furtou?<br />
Quem se esqueceu do sabor daquele vento,<br />
Aquele jeito tão singelo das altivas gentes,<br />
Aquele rio, desafiador a cada momento,<br />
A crença que cativava até os indiferentes?<br />
Suspiro, ainda que em efémero desânimo.<br />
Os raios da lua, brilhando por toque divinal,<br />
Trespassam a neblina. Que súbito ânimo!<br />
Benditos dedos de reflexos em puro cristal!<br />
Por ti me compadeço, triste cidade minha,<br />
Por teu doce olhar de azul tão profundo<br />
Que, agora, cansado de sonhar, definha.<br />
Ainda és quem abriu as portas do mundo?<br />
<strong>7faces</strong> – Pedro Belo Clara│ 123
IV. O Renascer<br />
Ornada pela luz das constelações míticas,<br />
Outrora as guias de gloriosas epopeias,<br />
Pareces – benditas essas forças místicas! –<br />
Querer tocar de novo as delicadas areias<br />
Das praias cujos aromas por ti pairaram<br />
Em tempos tão imensamente queridos –<br />
Padrões que os memoriais evocaram<br />
Em memórias de brilhos desvanecidos.<br />
Mas que se soltem as recordações antigas<br />
E se pronunciem esses nomes admiráveis!<br />
Que se quebrem barreiras, cantem cantigas<br />
De tempos verdadeiramente memoráveis!<br />
Navegadores, Poetas, Príncipes, Soberanos,<br />
Estadistas, Militares, Filósofos, Cientistas –<br />
Haverão outros modelos supra-humanos?<br />
Que valiosas e incontáveis conquistas!<br />
Ah, cidade que beija o rio, como desejaria<br />
Que hoje despertasses da noite eterna!...<br />
Em teu âmago tens a chave, a única via,<br />
Que de novo te incitará, capital fraterna.<br />
Mas, pelo forte e húmido vento da cidade,<br />
Uma guitarra vai, suavemente, tocando,<br />
Como um lágrima de imensa saudade<br />
Que por seu rosto se vai derramando…<br />
Das muralhas deste castelo observo eu<br />
Lisboa em pranto deveras silencioso,<br />
Como quem esquece o que outrora viveu<br />
E se entrega ao receio mais tenebroso.<br />
Não vês a nova manhã a querer romper?<br />
Que possa banhar esta Deusa, esquecida<br />
Na letargia de que agora está a perecer!<br />
Chegou a hora da missão ser cumprida…<br />
<strong>7faces</strong> – Pedro Belo Clara│ 124
Rosane Carneiro<br />
Londres – Reino Unido<br />
É autora de Excesso (edição da autora, 1999), Prova (Ibis Libris, 2004), Corpo estranho<br />
(Editora da Palavra, 2009) e Vate (Selo Orpheu, 2012). Editora e redatora com<br />
formação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Literatura<br />
Brasileira pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, atualmente doutoranda e<br />
pesquisadora em Letras do King’s College London. Participante de antologias e<br />
publicações impressas e virtuais diversas.
Transmissão<br />
pelo rádio chegam novas aladas de ti<br />
microfonia wireless de um<br />
provável irresistível estranhamento<br />
há muito não mais em voga por aqui<br />
misto de onda e alta frequência<br />
captação inequívoca de alguns bens do querer<br />
amplitudes moduladas pelo que não vejo<br />
mas percebo –<br />
de novo a longínqua e máxima voz<br />
a voz a voz a voz<br />
de um desejo<br />
<strong>7faces</strong> – Rosane Carneiro│ 126
Faltou a palavra<br />
pulou a cerca<br />
livre das amarras<br />
da lógica dicionária<br />
Escapou a palavra<br />
daquela frase vã<br />
e enfática a servir<br />
à rotina reacionária<br />
Foi-se a palavra<br />
escorregou escapuliu<br />
– e está certa:<br />
<strong>7faces</strong> – Rosane Carneiro│ 127
Dama de espadas na fronte<br />
Não é plausível olhar – examinar apenas<br />
Técnica e tecnologicamente o amor<br />
é para ases<br />
velozes<br />
Esgrima sobre gelo, a dama vive<br />
exata sobre saltos altos<br />
de racionalidade: naipe de valetes<br />
a seu dispor, maquinariamente<br />
sexy e só<br />
emociona-se no entanto quando<br />
chamada rainha<br />
─ sua meta é o rei<br />
do xadrez<br />
<strong>7faces</strong> – Rosane Carneiro│ 128
Carina Carvalho<br />
São Paulo – SP<br />
Carina Carvalho mora em São Paulo; é formada em Letras e trabalha com livros.<br />
Dança pelos dias e escreve desde que acreditou ser feita da matéria dos sonhos.<br />
Tem textos publicados no Portal Cronópios e nas revistas eletrônicas<br />
Mallarmargens, Trevo e Um Conto. Boa parte do que produz pode ser lida no<br />
seu blog Desastres Líricos.
floreios bem servem ao campo<br />
. caatinga<br />
o tipo de vegetação, me perguntas quando a íris fica amarela de sanidades e pende para o<br />
solo.<br />
afundei, digo.<br />
penso ser pedra interrompendo placidez, lançada com duas mãos e um coração úmido,<br />
tamanha a pancada no vão dos musgos. escorrego em cada desejo flutuante e escapa às<br />
falanginhas o mato rasteiro nas margens para ajudar a travessia. se minha boca se enche em<br />
verde, admito lascas nos dentes; a tua alegria sai aos borbotões pelas frinchas da arcada, e sob<br />
controle (para que na poça formada caibam dois apenas, isto decidi).<br />
mas baixo os olhos... é tão cristalina esta água! e a posse abranda. em corredeiras tudo se<br />
engole.<br />
a pergunta foi por conta do bom dia fechado em espinheiros,<br />
atinei.<br />
tudo era seco, e sobre isso que faria eu?<br />
<strong>7faces</strong> – Carina Carvalho│ 130
. maritacas<br />
desisti dos pêssegos<br />
por medo aos ferimentos.<br />
pesam muito à natureza as dores que os homens carregam em sacolas abafadas.<br />
às outras frutas fiz buracos na casca,<br />
e me movi branca pela polpa.<br />
pela manhã descobri que cantava com coragem:<br />
há no sumo quando desce a goela um quê de amor pelos que viajam.<br />
este dia quis sumir-se sonoro-suculento nas montanhas antes que lhe viesse o podre pelos<br />
maus-tratos.<br />
ou que maltratasse a si: o bico descendo forte no tórax, arrancando as penas desde o cálamo.<br />
<strong>7faces</strong> – Carina Carvalho│ 131
. esturricado<br />
quisera ele, do focinho pontudo à coda,<br />
um todo intacto.<br />
(de corpo quis perto o teu,<br />
para o lamento pelos que desconhecem estrada.)<br />
éramos perigo em zigue-zague nas duas vias<br />
do sonho imenso.<br />
carimbaram-no em vermelho, pois, no fim de um raio de sol.<br />
pudesse antes, pulularia: veja, cidadã, um gambá é isto!<br />
<strong>7faces</strong> – Carina Carvalho│ 132
. para não calejar<br />
ao fim e ao cabo, eram-me fortes as marcas nos pés. mapas da calmaria impressa: ficou<br />
gravado teu equilíbrio nas pedras.<br />
era o verde vasto, e era tanto, que a carne em contraluz pareceu esmaecer.<br />
quando não éramos fato, e éramos pouco, fiquei com ideia de títeres: de cada membro sairiam<br />
galhos finos cujo controle da outra ponta a alegria desconhece e sobre ele não se aflige.<br />
tanto ofereço para que escrevas... à minha sola e à palma chamo papiro.<br />
<strong>7faces</strong> – Carina Carvalho│ 133
Paulo Lima<br />
Aracaju – SE<br />
Paulo Lima estudou economia, mas cedo desistiu do equilíbrio dos números e preferiu<br />
o desequilíbrio das palavras. Tornou-se jornalista. Escreve poesia e contos.
acaso<br />
o inseto<br />
traça o traço<br />
como uma seta<br />
meu braço<br />
é<br />
sua meta<br />
miro o mistério<br />
que me visita<br />
meu braço<br />
é<br />
sua pista<br />
um inseto que<br />
cai da árvore<br />
é coisa banal<br />
mas se tal criatura<br />
me toca o braço<br />
eis que pedra filosofal<br />
mistério etéreo<br />
<strong>7faces</strong> – Paulo Lima│ 135
inventório<br />
escrevinhar<br />
poemares<br />
palavrárias<br />
registrário<br />
caminhares<br />
estradárias<br />
arfãs<br />
cotidianário<br />
percepçãs<br />
<strong>7faces</strong> – Paulo Lima│ 136
Natalia Turini<br />
Londrina – PR<br />
Artista visual multimídia. Natural de Jaú, interior de São Paulo, sempre transitou<br />
entre os diversos meios de expressão artística, mas foi após sua mudança para<br />
Londrina - cidade onde reside desde 2006 - que começou a relacionar-se mais<br />
intensamente com outras linguagens, sobretudo depois de ingressar no curso<br />
de Artes Visuais Multimídia. Dentre suas produções estão fotografias, poesias,<br />
ilustrações, instalações artísticas e objetos de arte.
© Natalia Turini. Solúveis - Passagem
SOLÚVEIS<br />
I - Passagem<br />
Restituindo-me<br />
do real.<br />
Vou ali sonhar.<br />
Sou o estado de entrega<br />
fora da normalidade.<br />
Desvanecendo lentamente<br />
a carne em vigília<br />
passagem<br />
introspecção diária-noturna.<br />
Despeço-me.<br />
<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 139
© Natalia Turini. Solúveis - Devaneio
II – Devaneio<br />
Frames<br />
de um modo imaginoso.<br />
O ato de devanear<br />
em sublime estado da alma<br />
extra-sensorial.<br />
Fluidos inorgânicos<br />
solventes utópicos.<br />
Lugares completamente cheios de imagens<br />
são pixels sobrepostos na liquides da tinta<br />
transparências com gosto<br />
o passado já vivido<br />
encontro-me.<br />
<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 141
© Natalia Turini. Solúveis - Pesadelo
III – Pesadelo<br />
Ruídos<br />
depararam-me<br />
eles estavam ali<br />
e dali não saíam.<br />
Marasmos<br />
cascos, cacos e restos estagnados<br />
progressivos<br />
transitórios.<br />
Sinto-me desconfortável<br />
aonde estou.<br />
Despeço-me<br />
<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 143
© Natalia Turini. Solúveis - Memória
IV – Memória<br />
Incorporação das brumas:<br />
nevoeiro, fumaça e incertezas.<br />
Reminiscências<br />
armazenadas pela existência,<br />
mesmices vitais<br />
desgastadas pelo tempo<br />
agora reconhecida.<br />
Vejo imagens despercebidas,<br />
arquivos esquecidos.<br />
Tenho lembranças de palavras<br />
palavras que nunca foram pronunciadas.<br />
São nuvens liquidas em transe.<br />
Perco-me em memória.<br />
<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 145
© Natalia Turini. Solúveis - Despertar
V – Despertar<br />
A despedida<br />
o inarmônico do despertar<br />
na profundidade da coisa imaginada.<br />
Lembro do gosto daquilo que não vi.<br />
Escuto o som daquela manhã,<br />
sinto cheiro de realismos.<br />
Dissolvo –me<br />
em impressões efêmeras.<br />
A flor que murchou no mesmo dia em que desabrochou.<br />
<strong>7faces</strong> – Natalia Turini│ 147
Luís Garcia<br />
Tomar – Portugal<br />
Natural de Linhaceira, Luís Garcia nasceu em 1973 na cidade de Tomar. Mestre<br />
em Informática Educacional pela Universidade Portucalense é Consultor de<br />
Informática e Formador nas áreas de Informática e Formação de Formadores.<br />
Premiado em diversos concursos literários nas categorias de Prosa e Poesia<br />
entre 1989 e 2011, publica o primeiro livro de ficção em 2008, A lenda contada<br />
de uma vida escondida. Tem prosa e poesia publicadas em Revistas Culturais e<br />
Coletâneas no Brasil, Portugal, Espanha, Uruguai e Colômbia. Publica em 2010 O<br />
encenador de vidas, um romance que obtém o 3º lugar no I Concurso Literário<br />
Best Seller Bubok.
Sentidos<br />
Queimei a ponta dos dedos,<br />
passei a mão<br />
pelas tuas palavras<br />
e o tapete preencheu-me<br />
a desenho de fumo e outras cores!<br />
Os meus olhos saíram<br />
e correram daqui para fora,<br />
o chão mexe-se com demasiada<br />
insensatez,<br />
se eu pudesse segurava-me<br />
nas tuas mãos.<br />
Dei por mim a calar<br />
um sorriso ridículo, teimava<br />
em assaltar-me, um exército<br />
de concertinas,<br />
um sabor antigo enche-me<br />
de surrealismo.<br />
Sou o estranho que me observa.<br />
Os cães ladram ao fundo da rua.<br />
Acordei a pensar<br />
numa arma e fui lavar<br />
as janelas da sala.<br />
Deste lado posso espreitar-te<br />
nos meus ouvidos.<br />
Agachei a tua imagem e adormeci.<br />
Que sobra afinal para lá do pavor?<br />
Os outros amaram-se na estrada<br />
mas agora já ninguém sabe…<br />
O herói da máscara envelheceu<br />
e existe um aplauso para a nossa ficção.<br />
Está frio agora, mas daqui a nada<br />
a verdade é do avesso.<br />
Sou eu de certeza,<br />
mas também não sou!<br />
<strong>7faces</strong> – Luís Garcia│ 149
Meia dúzia de coisas podem deprimir uma pessoa feliz<br />
Perdeu os lábios<br />
entre a pele e a carne.<br />
Levantou paredes<br />
para contornar uma pergunta.<br />
Não se fazem diálogos<br />
sem sinais de pontuação!<br />
Ouviu o segredo<br />
e desembrulhou o sotaque,<br />
depois engoliu<br />
o sabor a nada<br />
de um trago apenas,<br />
como se soubesse<br />
tudo de cor.<br />
Inventou um futuro<br />
e entrou nele,<br />
daqui a pouco<br />
tocam as doze,<br />
mas podiam ser três.<br />
As mãos foram lá<br />
e voltaram.<br />
Puxaram a porta<br />
com força<br />
e desfilaram vaidades<br />
do tamanho<br />
de uma noz moscada.<br />
Ficou a sensação<br />
de doce,<br />
bem fechada,<br />
talvez seja tudo<br />
o que se guardou.<br />
<strong>7faces</strong> – Luís Garcia│ 150
In-somnia<br />
A sala do tempo enfeitada.<br />
Esquecido pelas paredes<br />
vai o pormenor;<br />
abafado num ritmo crescente,<br />
seco, de quem corre,<br />
ainda, com um sentido!<br />
No aumento produzem-se insónias!<br />
Talvez demore menos<br />
a contagem dos lugares.<br />
Somos tão poucos<br />
quando fugimos do sono.<br />
Turva a mente,<br />
aquela sequela de momentos<br />
em que se percebe<br />
exatamente,<br />
qual a fatia de realidade<br />
que nos calhou.<br />
Bate a porta do frigorifico,<br />
a madrugada<br />
já se soltou.<br />
Adoça os lábios<br />
e conforta o apetite,<br />
acontece uma pequena viagem<br />
no tempo e no chão frio<br />
até me abraçar de novo,<br />
na cama podiam ser equações quânticas.<br />
Desdobrei os dedos,<br />
invencíveis companheiros do medo,<br />
quantas foram as vezes<br />
que me encontrei assim?<br />
<strong>7faces</strong> – Luís Garcia│ 151
Estudos e<br />
devaneios<br />
por Jordny
Jordny.<br />
Artista nascido em 1988 em Planaltina, uma cidade satélite de Brasília DF.<br />
Aprendeu a desenhar muito cedo e desde então vive lado a lado com essa que considera um dos pilares<br />
para seu desenvolvimento pessoal , como pensador e humano.<br />
Atualmente cursa o último ano de Arquitetura e Urbanismo e continua a produzir suas obras pintadas e<br />
desenhadas."<br />
Jordny nasceu em 1988 em Planaltina, uma cidade<br />
satélite de Brasília, Distrito Federal. Aprendeu a<br />
e peço que me mande o link para conhecer seu trabalho.<br />
desenhar muito cedo e desde então vive lado a lado<br />
com essa que considera um dos pilares para seu<br />
desenvolvimento pessoal , como pensador e<br />
humano. Atualmente cursa o último ano de<br />
Arquitetura e Urbanismo.<br />
Para esta edição do caderno-revista <strong>7faces</strong>, o autor<br />
cedeu um conjunto de trabalhos já apresentados<br />
publicamente no seu blog Jordny Art. A esse<br />
conjunto o próprio Jordny intitula por Estudos e<br />
devaneios, seja pela marca do traço inacabado, seja<br />
pelo tom simbolista e surreal dos desenhos.
© Jordony. Sem título. Fev. 2011.
© Jordony. O artista e sua quimera. Abril 2011.
© Jordony. Girassol menor. Abril 2011.
© Jordony. Árvore musical. Março. 2011.
© Jordony. Jornada ao subconsciente com nuvens invertidas. Março. 2011.
© Jordony. Devaneios n.5 Fev. 2010.
© Jordony. Devaneios n.15 (de baixo para cima). Março. 2010.
Um caderno<br />
para Dora
O cavalo azul<br />
Por Alexandre Bonafim<br />
à memória de Dora Ferreira da Silva<br />
Um cavalo corta o corpo<br />
de meus ancestrais perdidos<br />
um cavalo corta o peito,<br />
fere o coração ferido<br />
Lara de Lemos<br />
Et beaucoup n'ont pas la chance<br />
De le voir passer un jour<br />
Le cheval bleu<br />
Gilbert Becaud<br />
Um tropel de silêncio e eternidade<br />
desdobra o ar em acordes levíssimos,<br />
feitos de orvalho e bruma.<br />
As crinas vão desatando o infinito,<br />
as estrelas, a solidão mais aguda.<br />
Eis o instante do cavalo azul.<br />
Eis a sagração do céu em nós.<br />
De seu dorso nascem os desastres.<br />
Procelas tatuam o seu plexo.<br />
Nos seus flancos levitam violinos de água,<br />
teclas de pólen, sinfonias de esquecimento.<br />
Jamais a morte poderia nos assaltar<br />
com maior doçura, com mais bela música.<br />
Jamais o sofrimento teve olhos tão dóceis,<br />
cílios de mel e vinho.<br />
Nunca o instante teve essa luz raríssima,<br />
desenhada pelas puras formas<br />
de um relâmpago cego,<br />
diamante vivo a deslumbrar a noite.<br />
A rutilância dos segundos galga nossa pele,<br />
a terra olorosa do corpo.<br />
Em chamejante espiral de nuvens,<br />
o cavalo azul nos enlaça em seu fulgor,<br />
na ternura de uma violência incontida,<br />
dança de galáxias e sóis delirantes,<br />
vórtice febril, iluminado.<br />
Ao toque do seu pêlo de súbitos incêndios,<br />
Na década de setenta,<br />
Dora Ferreira da Silva<br />
consagrou à sua<br />
importante revista o<br />
nome Cavalo Azul. Tal<br />
título ela extraiu dos<br />
mitos etruscos. De<br />
acordo com esses<br />
mitos, o cavalo azul<br />
era o ser mágico<br />
responsável por levar<br />
a alma dos mortos à<br />
morada celeste. Em<br />
homenagem à grande<br />
poeta, à criadora da<br />
revista Cavalo azul,<br />
Alexandre Bonafim<br />
escreveu este poema.
queimamos nossa alma no eterno,<br />
aderimos nossa pele ao infindável.<br />
Festa múltipla, embriaguês da febre,<br />
somos a celebração dessa sonâmbula magia,<br />
pulsar sagrado desnudando-nos para as tempestades,<br />
para a decantação dos mares selvagens.<br />
Eis o instante da morte aguda.<br />
Eis o êxtase do tempo soberano.<br />
O cavalo azul nos visita<br />
com sua aparição de lanças desnudas,<br />
de lâminas agudas, mil raios<br />
a trespassarem nossas feridas.<br />
Quando suas patas arpejam a terra,<br />
as sementes fecundam os sonhos,<br />
despontam do pó ramos e milagres,<br />
frutos abençoam a encantação do amor:<br />
a cavalo marinho e os oceanos,<br />
o cavalo turquesa e os mares,<br />
o cavalo de âmbar e os corais ardentes.<br />
Reluz na noite um fulgor de adaga desnuda,<br />
fulgente aparição a cortar o sonho dos mortos,<br />
o sono das estrelas marinhas: cavalo azul<br />
a relampejar pelos caminhos o tempo das cicatrizes.<br />
Sua crina flamejante, seu ígneo peito, seduzem o luar,<br />
ampliam pelo infinito a cintilação das marés.<br />
Espectro de labirintos vazios,<br />
ele galga a espuma das praias,<br />
a agonia dos condenados à morte.<br />
Ele dardeja a dança dos barcos,<br />
o bordado das ondas,<br />
a solidão dos marinheiros em febre.<br />
Os náufragos, os miseráveis, os afogados,<br />
clamam pela salvação desse sopro de chuvas,<br />
desse maremoto de coices ardentes.<br />
Serenamente soa pela brisa seu pulsar de sândalo,<br />
o seu galope de prismas, delicado aroma<br />
do vinho a incendiar os crepúsculos.<br />
Ele adeja sobre o desespero, salvando-nos<br />
da carne, do medo, do tempo.<br />
Ele nos resgata do pó humano, soerguendo-nos<br />
à sagração das searas fecundas.<br />
Quando seu resfolegar nos arrebata,<br />
nos resgata de nossos pulsos,<br />
ressuscitamos no clarão dos rubis,<br />
na magnitude da aurora boreal.<br />
Desde o nascimento estamos consagrados<br />
a essa epifania de silêncio e mel:
o cavalo andaluz e o eclipse lunar,<br />
o cavalo cigano e os cometas partidos,<br />
o cavalo de absinto e o mercúrio dos astros.<br />
Galopo no dorso das marés,<br />
meu corpo costurado nos ciclones,<br />
meu torso cravado em tua pele, em teu pelo lunar.<br />
Galopante aridez, eu só sei pulsar no teu plexo,<br />
na fecundidade dos abismos.<br />
Corpos em sôfrega transpiração,<br />
corpos em uníssono, rios a confluírem<br />
num delta de vertigens, foz de enchentes<br />
desvairadas, de correntezas alucinadas.<br />
Possuído pela lâmina dessa fúria,<br />
transmuto-me na energia a cegar<br />
as lanças, os ocasos, os labirintos.<br />
Sou o ser pleno a exaltar-te,<br />
és o que sou, o que fui e serei.<br />
Consagro-me à graça dessa comunhão,<br />
pela qual sou o universo e o nada.<br />
Nessa terra me deito, navego,<br />
nessa pedra me enterro, respiro,<br />
perco-me nesse instinto, nesse espasmo,<br />
para ser o fogo dos corais,<br />
azul febril de infinita iluminura.<br />
Cavalo marinho, dardejante quartzo,<br />
em tuas crinas de ágata, de prata,<br />
queimo a palavra da última estrela,<br />
rasgo o fulgor do teu transe,<br />
da tua clarividência,<br />
pois a morte se fez para os eleitos,<br />
para os profetas, os que sabem da finitude<br />
pelo íntimo do fruto, pelo cerne da chuva.<br />
Eis o pulsar da fúria e das catástrofes:<br />
o cavalo opalino e as estrelas,<br />
o cavalo candente e a poeira dos astros,<br />
o cavalo de vidro e os veleiros incendiados.<br />
Soou a hora derradeira e primeira.<br />
Eis o momento dos vendavais,<br />
do estertor dos cataclismas.<br />
Eis o que em nós germinou<br />
antes do nascer das sementes:<br />
nossa morte, cavalo azul a cortar o céu,<br />
a lançar nosso destino aos astros,<br />
onde a infância nos abraça novamente;<br />
nossa morte, corcel cravejado de safiras,<br />
noite mais densa que as rochas,
onde o azul é harpa de cristais partidos,<br />
batel de marinhas esmaecidas.<br />
A sombra extrema desenha nosso rosto<br />
no vazio de outro rosto.<br />
A sombra extrema, fruto túmido,<br />
pleno, explode nosso íntimo,<br />
dissolvendo-nos na fulguração do eterno.<br />
Eis o momento do cavalo azul.<br />
Eis a hora da ressurreição das marés.<br />
Um tropel de sinfonias e plumas<br />
dardeja nossa carne, rasga nosso sêmen.<br />
O cavalo azul aflora dos abismos,<br />
submerge dos desastres, germina das montanhas.<br />
Em sua sede bebemos nosso avesso.<br />
Em sua fome sorvemos nosso mistério.<br />
Eis a travessia impossível,<br />
onde todo homem não caminha,<br />
porque não tem pernas, nem pés.<br />
Eis a travessia amputada,<br />
pasto de enigmas, partitura dos sonhos,<br />
onde somos cegos em nosso destino cego.<br />
Do fecundo nada, do absoluto silêncio,<br />
nasce essa música cristalina, puríssima:<br />
o cavalo celeste e as enchentes,<br />
o cavalo etrusco e os anéis de saturno,<br />
o cavalo de água e os arquipélagos selvagens.
Cumplicidade<br />
Por Soares Feitosa<br />
para Dora Ferreira da Silva<br />
Chamar pássaros<br />
com alpiste de amá-los livres,<br />
procuradores eles serão,<br />
ad juditia,<br />
ad negotia,<br />
pleni,<br />
plenipotenciários,<br />
procuradores meus,<br />
asas livres aos meus azuis.<br />
Eles me pousam os parapeitos:<br />
uma sombra,<br />
tem que haver uma sombra cúmplice:<br />
seja de aproximar,<br />
seja de chegar bem perto<br />
– parece que é.<br />
o que garante o medo<br />
é o gesto das duas mãos,<br />
as duas,<br />
conchadas de pegar<br />
em quase...<br />
a alma do pássaro<br />
– não, não:<br />
"avoe, meu bichim",<br />
que não lhe devo... –<br />
A intimidade é sutil<br />
(dos pássaros),<br />
não só o deles:<br />
é sutil<br />
quando estremece<br />
e pousa.<br />
Sempre.
Tzvietáieva e o céu do poeta<br />
Por Donizete Galvão<br />
Para Dora Ferreira da Silva<br />
Aproveite agora que o filho bateu a porta<br />
e saiu a trabalhar para seus senhores:<br />
arme a forca com precisão e calma de poeta.<br />
Que país ouvirá sua voz dissonante,<br />
sempre em vigília, a quem nada contenta?<br />
Que o corpo seja jogado na vala-comum,<br />
sem necessidade de qualquer cerimônia.<br />
A poesia<br />
- corpo que ganha espírito<br />
espírito em corpo encarnado -<br />
entrará inteira, imaculada,<br />
no reino onde não existe julgamento.
Último outono<br />
Por Donizete Galvão<br />
à Dora Ferreira da Silva<br />
A acácia insiste em derramar seus cachos amarelos.<br />
O verão já passou e deixou os estragos de uma ventania.<br />
Em vão, espalmei as mãos em busca de um contato.<br />
Choveu forte em seu jardim nestas últimas semanas.<br />
Nenhuma mensagem ultrapassou a barreira dos tijolos,<br />
nem impregnou os tubos e metais de sua cama fria.<br />
Não peço um outono a mais para você.<br />
Só mais um pedido: Átropos, que tanto hesita e demora,<br />
corta logo o fio que se esgarça em agonia.<br />
Este poema tem uma história<br />
estranhíssima como tudo o que envolve a<br />
Dora. Eu escrevi no dia da sua morte, dia<br />
6 de abril de 2006. Acabei lá pelo meio dia<br />
e uma hora ou duas depois soube de sua<br />
morte. Ela estava em coma há vários dias.<br />
Eu não acredito muito nessas coisas de<br />
comunicação, mas ela sim. Tentei, então,<br />
me comunicar com ela. Pedia para sonhar<br />
alguma coisa. Não aconteceu nada. Nossa<br />
ligação sempre foi através da poesia. Eu<br />
fiz um plaquete para a missa de sétimo<br />
dia e acho que li na homenagem na<br />
própria casa dela, em primeiro de julho,<br />
rua José Clemente.<br />
Eu ainda acho doloroso recordar a minha<br />
amizade com a Dora. Comecei a<br />
frequentar a casa dela em 96. Ela saía<br />
pouco. Dos poetas que conheci, ela era o<br />
único que respirava poesia<br />
permanentemente. Estava sempre com a<br />
mente aberta para a poesia. Diferente de<br />
nós, que temos sucessivas crises com a<br />
palavra, ela tinha verdadeira convicção do<br />
poder da palavra poética. De uma certa<br />
maneira, não era moderna. Era eterna.<br />
Não tinha a negatividade que o poeta<br />
moderno traz consigo. Era solar. Estava<br />
muito ligada aos poetas românticos<br />
alemães como Hölderlin, a poetas difíceis<br />
como Rilke e Saint John Perse. A poesia<br />
dela é sempre de alto voo, sublime, mas<br />
nunca parece forçada. Às vezes, penso<br />
que uma parenta dela é a Sophia de Mello<br />
Breyner-Andresen. Ambas têm a mesma<br />
paixão pela Grécia, pela natureza, pela luz<br />
mediterrânea. Dora nunca perdia tempo<br />
com frivolidades ou fofocas. Sempre<br />
ensinava muito, mas sem ter um jeito<br />
professoral. Bastava entrar na casa dela,<br />
rodeada de verde, e a realidade da rua<br />
parecia ficar distante. Ela sempre<br />
trabalhando, sempre traduzindo. Da<br />
última vez que a vi traduzia os líricos<br />
gregos. Sempre animada, vitalista, cheia<br />
de energia criativa. Quem conviveu com a<br />
Dora sabe o privilégio que isto significava.<br />
Um tanto aérea para vida prática, mas<br />
ligadíssima e intensa nas questões da<br />
poesia. Nas cartas para ela, Drummond a<br />
chamava de “Dora Poesia”.<br />
Dozinete Galvão em Entrevista a Antônio Donizete Pires e<br />
Solange Cardoso Yokozawa. Revista Texto poético, out.<br />
2010.
Vias de ver as coisas 3
Paula Cajaty<br />
Rio de Janeiro – RJ<br />
Paula Cajaty, escritora carioca nascida em 1975, é advogada por formação<br />
acadêmica, mas desde cedo se assumiu escritora. Em 1995 venceu o “Por um<br />
poema de amor – concurso de poemas: coletânea”, organizado pela Prefeitura<br />
do Rio de Janeiro, com Ferreira Gullar e Suzana Vargas no corpo de jurados. Em<br />
2008, publicou pela Editora 7Letras seu livro de estreia Afrodite in verso; depois,<br />
em 2010, lança Sexo, tempo e poesia, pela mesma editora. É, hoje,<br />
colaboradora da Revista Aliás e da Revista MundoMundano, parceira da<br />
agência Shahid Produções Culturais e colabora no Jornal Rascunho.
o corpo sobre tudo<br />
o corpo sobretudo<br />
limite e fronteira<br />
filtro pó estrada<br />
caminho trincheira<br />
o corpo sobre o corpo<br />
novo<br />
onde se alcança<br />
outro<br />
onde suporta<br />
chão<br />
onde se cala<br />
fogueira<br />
silêncio. sobretudo quando<br />
o corpo jaz<br />
sobre a poeira<br />
sobre a chama toda<br />
sobre a aurora silenciosa<br />
alvissareira<br />
de uma madrugada de junho.<br />
<strong>7faces</strong> – Paula Cajaty│ 173
Nuno Júdice<br />
Lisboa – Portugal<br />
Nuno Júdice nasceu em abril de 1949. Licenciou-se em Filologia Romântica pela<br />
Universidade de Lisboa, doutorado pela Universidade Nova. É Conselheiro<br />
Cultural da Embaixada de Portugal e Diretor do Instituto Camões em Paris<br />
(França). Estreou na poesia em 1972 com A noção de poema. Em 1985 recebeu<br />
o Prêmio Pen Clube, e cinco anos mais tarde, o Prêmio D. Dinis da Casa Mateus;<br />
em 1994, recebeu o prêmio da Associação Portuguesa de Escritores pela<br />
publicação de Meditação sobre ruínas, livro que também foi finalista no Prêmio<br />
Europeu de Literatura Aristeion. Como tradutor, verteu ao português autores<br />
como Corneille e Emily Dickinson. Tem extensa obra, com mais de três dezenas<br />
de títulos em poesia, mais de dezesseis livros de ficção, uma dezena de ensaios<br />
e quatro peças de teatro, entre outras publicações esparsas em revistas e<br />
antologias. O conjunto de poemas enviados à <strong>7faces</strong> é inédito.
À noite, a cabeça é um quarto escuro<br />
À noite, a cabeça é um quarto escuro<br />
para quem entra nela sem uma luz acesa,<br />
e sente os travesseiros a voarem pelo ar,<br />
as portas a baterem sem se saber porquê,<br />
e gritos que vêm de dentro de quartos<br />
e salas que ficam lá para o fundo, onde<br />
só os sonhos se passeiam.<br />
Adormeço e acordo, à noite, e a cabeça<br />
não muda, com sombras a correrem de<br />
um lado para o outro, mascarados a<br />
espreitarem por trás de velhas cortinas, e<br />
palavras que andam à volta das mesas,<br />
à espera que alguém as apanhe, e faça<br />
com elas bolas de sabão que se desfazem<br />
de encontro aos pensamentos.<br />
À noite, fecho à chave a porta da cabeça,<br />
e ninguém lá entra, nem eu próprio, para<br />
não tropeçar em tudo o que lá tenho.<br />
<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 175
© Hélio Jesuíno
Enigma quotidiano<br />
Avanças lentamente ao longo do muro da estação,<br />
já na rua. Fumas um cigarro que deixas durar, para<br />
que possa chegar ao fim do passeio que dá para<br />
a estrada. O vento entra pelas mangas da blusa<br />
sem botões na manga, e abre-as como se fossem<br />
velas, transformando o teu corpo em barco. O dia<br />
de sol cai sobre ti, e quase poderia ouvir a tua voz<br />
sem atravessar a rua, para te perguntar quem és,<br />
porque andas tão devagar, porque fazes o cigarro<br />
durar até ao fim do caminho. Mas o vento levaria<br />
para longe as tuas palavras, e a única resposta<br />
seria a inquietação dos teus olhos perante um<br />
desconhecido, a querer saber o que nem tu,<br />
alguma vez, saberás. Volto-me, então, e sigo<br />
o meu caminho para não te ver chegar ao fim<br />
da esquina, e voltar atrás, como se quisesses<br />
saber quem eu sou, e porque andei tão devagar,<br />
do outro lado da rua, a olhar para ti como<br />
se te conhecesse, e soubesse o que querias de mim.<br />
<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 177
© Hélio Jesuíno
Marcadores de livro<br />
De dentro de um livro há muito arrumado,<br />
caíram dois bilhetes para o segundo<br />
balcão de um cinema que já não<br />
existe, e para um filme que não sei qual<br />
foi. O que sei é como se subia para esses balcões,<br />
de mão dada, já com a sala às escuras,<br />
e o que se fazia enquanto o filme corria,<br />
e talvez visse melhor o rosto de quem estava<br />
ao meu lado, à luz que vinha do ecrã, do<br />
que o próprio filme. Vendo a data do bilhete,<br />
o que vejo é a sombra de quem me acompanhou<br />
nessa ida ao cinema, e a queixa por o filme<br />
ter acabado demasiado depressa, com<br />
a corrida para o autocarro e o regresso<br />
a casa. Assim, volto a meter os dois bilhetes<br />
de cinema dentro do livro que andava<br />
a ler na altura, e ao ver as páginas que<br />
ficaram por ler, posso contar cada minuto da vida<br />
que ganhei ao poupar nessa leitura, que só<br />
hoje recomeço, para novamente a interromper<br />
quando me tiras o livro da mão.<br />
<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 179
Uma imagem do ser<br />
Na sua última, na sua mais completa<br />
visão, traçou o que lhe pareceu ser<br />
um retrato do fundo do seu espírito,<br />
onde lhe parecia ter apercebido<br />
uma sombra do que seria a própria<br />
alma. Queria provar a sua existência,<br />
demonstrar claramente que não<br />
era embuste, crença, simples<br />
ilusão, o que outros consideravam<br />
ser o reflexo do divino no homem,<br />
ou seja, aquilo que do corpo se distingue<br />
não por ser outra coisa, mas a sua<br />
verdade. No entanto, quando olhou<br />
para o papel, estava em branco.<br />
Distraíra-se. Escrevera no vazio; ou<br />
esquecera-se de encher a caneta.<br />
<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 180
© Hélio Jesuíno
O piloto da barra<br />
Tinha o ar distante e austero de quem recebe<br />
no rosto os ventos do mar, e se dizia uma palavra<br />
só ele a ouvia. No canto da mesa onde estava,<br />
olhando para as conversas e sacudindo<br />
a cabeça por nada ouvir, fazia parte de outro<br />
mundo. «Foi o rio que o pôs surdo», disse<br />
alguém; «foram os gritos das gaivotas»,<br />
corrigiu a mulher que saiu de ao pé dele e<br />
atravessou a sala, com o olhar dos homens<br />
a persegui-la. «Faz versos», disse-me<br />
o amigo, «e guarda-os só para ele». A noite<br />
continuava o seu caminho. A mulher<br />
não voltou. E ele segurava o copo ainda<br />
cheio de bagaço, como quem segura o leme<br />
e não sabe quando, nem onde, irá chegar.<br />
<strong>7faces</strong> – Nuno Júdice│ 182
Amosse Muscavele<br />
Maputo – Moçambique<br />
Amosse Eugenio Mucavele nasceu aos 8 de julho de 1987 em Maputo-<br />
Moçambique; membro fundador do Movimento Literario Kuphaluxa, sonha em<br />
ser poeta, cronista, e contador de sonhos. Faz parte da equipe editorial da<br />
Revista Literatas – Revista de literatura moçambicana e lusófona, colabora no<br />
Pavilhão Literário Singrando Horizontes, Academia de Letras do Paraná, Jornal<br />
Coruja. Organizou a antologia da nova poesia moçambicana publicada na<br />
Revista Zunai. Tem poemas publicados na Revista Eutomia e Linguística da<br />
Universidade Federal de Pernambuco. É membro correspondente da Academia<br />
de Letras Teófilo Otoni, Minas Gerais.
Atravessar o Silêncio<br />
Ao Cláudio Daniel<br />
A memória é um inferno provisório onde os nossos dias visitam constantemente. na<br />
penumbra de um mar de esquecimento ladeado de flores que brilham ao som do<br />
silêncio. e ao entardecer. a neve embarca no murmúrio da água que bate nas pálpebras<br />
das pedras na solene viagem do nada.e para além do sal derramado nas margens, não<br />
via-se mais nada, pois o cinzento abacanhou a melancolia do céu que outrora fora azul.<br />
e difícil é, descortinar este lado invisível da distância que nos assiste. A ilha que nos<br />
espera é feita de papel que baloiça livremente nos olhos do mar-mil uma visões<br />
espalhadas no útero do passado, uma música embalada de presentes toca<br />
incansavelmente na febre do navio-onde é minha casa?<br />
E no colo do futuro procuraremos acender as nossas identidades com o anzol que<br />
perdeu-se nas ondas da tempestade.<br />
<strong>7faces</strong> – Amosse Muscavele│ 184
Lembrança<br />
Ao Rui Knopfil<br />
ڻ<br />
Havia uma pétala vermelha que crescia no fumo de um cigarro. onde um homem<br />
puxava incansavelmente na esperança de querer vencer o medo que se instalava na porta<br />
dos seus devaneios E<br />
Dentro da casa onde os sonhos eram<br />
Guardiões .<br />
Havia uma pedra encostada a janela onde sussurrava nos ouvidos de Inhambane<br />
(quando lembra-se de alguém de olhos abertos deve-se sonhar de boca fechada).<br />
Mas<br />
Ninguém deu ouvidos ao sussurro da pedra. Encostado a inocência da pedra um<br />
sujeito levantou a mão no meio da multidão que pescava predicados e outros silêncios<br />
na sala da casa. ( Eu quero aprender a doutrina das cores que se manifestam nas pedras).<br />
ڦڥ<br />
A pincel a saudade relampeja no arquipélago da insónia do meu poema (quando durmo<br />
sinto a sensação de acordar no terceiro dia ,e quando morro passa-me pela cabeça a<br />
ideia de acordar no anoitecer das manhãs)<br />
ڥ<br />
Na corda da lembrança há um mar que desagua os incensos das suas ilhas , há uma<br />
cegueira que se assiste o suicido do arquipélago na insónia dos mangais.<br />
Há uma L<br />
A<br />
G<br />
R<br />
I<br />
M<br />
A que<br />
cai.<br />
nos solavancos das ondas que ondulam na sepultura onde jaz a flor murcha de<br />
abandono.<br />
<strong>7faces</strong> – Amosse Muscavele│ 185
©Malangatana. A Noiva da Ilha. (Reprodução)
Poegrafia a Malangatana<br />
A ilha ao acordar escuta sempre a monotonia que a solidão do mar canta. Assiste com<br />
os olhos dos xipocos que a namoram sem tréguas a uma velocidade da luz.<br />
A luz acende o amor que se esconde no poente das mãos do homem que está aborto do<br />
xitarutaru a caminho da ilha. Nos remos transborda um sonho vulcânico que explodirá<br />
quando atingir o núcleo do destino. Onde flores tomam o brilho do sol que clareia as<br />
margens de um sentimento que sobrevoa no dócil olhar dos ilhéus. Onde a bravura do<br />
mar transformar-se-á num paraíso construído pelas sombras do amor, alegria, sob a<br />
alçada dos ramos do embondeiro que dão mel e maça (não proibida).<br />
No cais da ilha os homens e os animais esperam eufóricos pelo brilho da aliança.<br />
Cantam, dançam a mesma música agora com retoques do sopro do mosquito, e do árduo<br />
trabalho de fabricar prazer a cor do mel das abelhas.<br />
Batuques acompanham as ovações da multidão, com crianças no colo das mulheres que<br />
preservam a beleza com os lenços na cabeça. A noiva já não sente os pés no chão, mas<br />
vê o barco que se aproxima. Sente o futuro e a cor do vento do matrimónio a beijarem a<br />
sua face, e por último a mulher diz:<br />
É hoje que o carvão que arde no meu corpo. O mel que derrama na minha boca terá<br />
dono.<br />
Amor até que o mar nos separe.<br />
xipoco: fantasma<br />
xitarutaru: barco artesanal da zona sul de Moçambique<br />
<strong>7faces</strong> – Amosse Muscavele│ 187
Carlos Margarido<br />
Torres Novas – Portugal<br />
Carlos Manuel Alves Margarido nasceu 24 de Fevereiro de 1970; cresceu e vive<br />
em Torres Novas. Tem predileção e escreve poesia desde pequeno.
Idade<br />
Demorei a minha idade<br />
Para acordar hoje.<br />
Levantei-me, já velho.<br />
Espreguiço os dias<br />
Honrada roupa que visto<br />
Bilhete, palco vazio do tempo<br />
Jamais, bati no mal da porta<br />
Ato os atacadores,<br />
Calço os segredos.<br />
De quem, dei tantas vezes à sola.<br />
Caminho lento, e demorado<br />
Tão bem, tão mal passado<br />
Lavo a cara, penteio<br />
O rosto no espelho<br />
Desta idade.<br />
<strong>7faces</strong> – Carlos Margarido│ 189
Chave<br />
Embato em paredes maciças<br />
Esconderijo que te esconde<br />
Nas traseiras dos meus olhos<br />
Nestas grades do tempo<br />
Onde me sinto prisioneiro<br />
De braços amarrados<br />
Resta-me tirar esta mordaça<br />
Para te poder dizer<br />
Que mais um igual a tantos outros<br />
Os dias que em mim esperam por ti<br />
Nestes barcos de papel<br />
Que se afundam no ensopar da água<br />
Ou este anjo de papel e entusiasmo<br />
Que o ar faz bater no chão<br />
Neste brilho que te olha<br />
Num sorriso nunca visto<br />
Nesta chave que não abre o sonho<br />
De um momento sequer
Desabitado<br />
Não são lágrimas<br />
Os instantes em que choro<br />
Na transparência que recebemos<br />
No fogo que faz o luar<br />
Transpiro neste corpo despido<br />
Sem braços ou dedos<br />
Que se perdem<br />
No silêncio das paredes<br />
Nas sombras que habito<br />
No morrer iludido<br />
Que o passo deixa passar<br />
Sem andar<br />
Há muito que a minha nuvem<br />
Se esvaziou em chuva<br />
Nas lágrimas<br />
Que molham o corpo já nu<br />
Desvanecido sem sentido<br />
Desabito-me<br />
<strong>7faces</strong> – Carlos Margarido│ 191
Amélia Luz<br />
Pirapetinga – MG<br />
Nasceu em Pirapetinga, Zona da Mata, Minas Gerais. Escreve poemas, trovas,<br />
crônicas e contos, com várias premiações.
Poesia para a anciã<br />
A mulher como palha seca<br />
o banco frio da praça<br />
O xale de lã<br />
o coque, os grampos,<br />
os cabelos brancos...<br />
O velho casaco<br />
o vestido de bolso<br />
os sapatos gastos<br />
de tantas caminhadas!<br />
O rosto, as rugas,<br />
o sorriso costumeiro.<br />
A idade, a face, o desenlace,<br />
o “rouge”, o pó de arroz,<br />
a vaidade apesar do tempo!<br />
O coração cansado se despedia,<br />
Maria ria, ria...De tudo ria...<br />
Da vida nada mais temia<br />
esperando o vento forte<br />
que a levaria para sempre<br />
naquele marcado dia!<br />
Soltava-se com leveza<br />
De tudo que vivera.<br />
A cigarra não mais cantava<br />
a canção da juventude.<br />
O corpo voltava solitário<br />
para o ventre escuro da terra<br />
mas a sua alma segura, com o Pai<br />
encontrava-se no jardim da eternidade...<br />
<strong>7faces</strong> – Amélia Luz│ 193
Ventos da Infância<br />
Pião, xadrez, gamão<br />
Pula-carniça, cabra-cega,<br />
Boneca de pano, peteca,<br />
Perna-de-pau, pau-de-sebo,<br />
Festa de jeca, paçoca, pipoca,<br />
Amendoim, coisas assim,<br />
Que lembram a infância!<br />
Palhaço, circo, picadeiro,<br />
Espetáculo verdadeiro,<br />
O engole-fogo, o joga-facas,<br />
O leão domado, o cão ensinado,<br />
O elefante dançando valsa!<br />
“E o palhaço, o que é?<br />
É ladrão de mulher”!<br />
Doce de leite, quindim,<br />
Puxa-puxa, chocolate, pudim,<br />
Batata frita, a turma grita:<br />
- Quero mais! Quero mais!<br />
Jabuticaba, manga madura,<br />
Amor em pedaços, ternura,<br />
Goiaba ou goiabada,<br />
Carambola ou carambolada,<br />
Marmelo ou marmelada!<br />
Picolé, sorvete de limão,<br />
Pão com manteiga, requeijão,
Leite quente e beijo de mãe,<br />
Acordando a gente!<br />
Escola, brincadeiras,<br />
Uniforme, carteiras,<br />
Livros e quadro de giz,<br />
Não levo pau por um triz!<br />
Recreio, pátio, alvoroço!<br />
Pula corda: um, dois, três!<br />
“Rosa branca”! “Macarronada”!<br />
Cada um na sua vez!<br />
Ciranda, todos na roda,<br />
Sem saber que assim girando,<br />
Rodando, rodando o tempo levava,<br />
Os doces anos da meninice!<br />
<strong>7faces</strong> – Amélia Luz│ 195
Paulo Vitor Grossi<br />
Rio de Janeiro – RJ<br />
Paulo Vitor Grossi nasceu no Rio de Janeiro em novembro de 1985; é formado<br />
em Turismo e escreve poesia, contos, pequenos romances entre outros<br />
gêneros. Os Sonhos, Nicolas; Volume II: Adiós, Lite de Ratura; Santa Cruz; Carne<br />
Viva; Rara (Volume três), o hotel m tá infestado de pragas & “A Faca e o Queijo<br />
na mão” são seus livros. É o autor, e ilustrador de suas obras.
<strong>7faces</strong> – Paulo Vitor Grossi│ 197<br />
cura: poema “I”<br />
Um teor de intimidade<br />
Reminiscências com odores<br />
Via-se o pássaro violador<br />
Sempre dentro de você<br />
Por vezes a te lembrar<br />
Cálida como incestuosa<br />
Essa figura ideal<br />
Desfaz-se ante o presente<br />
Encerra em si o divino
cura: poema “IV”<br />
A Questão do Equilíbrio das Coisas<br />
poema cláusula, ou prosa solidária.<br />
depende de como maneja<br />
A frase é móvel, quebradiça<br />
depende da entonação.<br />
A noção de união move blocos.<br />
A todos que acreditarem nos desafios.<br />
Razão e princípios<br />
Razão e princípios ao povo brasileiro.<br />
Conhecimento e força. Valores<br />
Que venham pelos ventos.<br />
<strong>7faces</strong> – Paulo Vitor Grossi│ 198
<strong>7faces</strong> – Paulo Vitor Grossi│ 199<br />
cura: poema “XIV”<br />
Teu ato e sangue<br />
pois fotos são eternas<br />
Estrela da apresentação<br />
Escrevo uma nota<br />
Gosto tanto, ouço mais<br />
sinto pura Moira<br />
Te juro, merda<br />
Melhor seria dizer<br />
Que enrolada está!<br />
cura: poema “XXIV”<br />
A guitarra exala microfonia<br />
Em bloco, vem a canção ao fundo<br />
Poupar é pros medrosos
Renata Bomfim<br />
Vitória – ES<br />
Renata Bomfim nasceu na Ilha de Vitória, capital do Espírito Santo, Brasil. Poeta,<br />
Artista plástica, ativista socioambiental, a escritora é mestre em Letras e,<br />
atualmente, desenvolve uma tese de doutorado na qual dialoga as poéticas de<br />
Rubén Dario e Florbela Espanca. Membro da Academia Feminina Espírito-<br />
Santense de Letras. Publicou as obras Mina, Arcano Dezenove, e seu terceiro<br />
livro de poemas, Colóquio das árvores, encontra-se no prelo. Autora do <strong>Blog</strong><br />
literário Letra e Fel.
Joana D’arc<br />
Joana, precisas ser marginal,<br />
Ser santa te fará igual<br />
a tantas. És diferente, Joana!<br />
O fato é que incomoda<br />
O teu existir, a potência de tua fé.<br />
És mulher, Joana, não esquece!<br />
Tira essa armadura, essa calça feia,<br />
Veste-te de luz e de prazer.<br />
Talvez fosse isso o que as vozes<br />
queriam te dizer.<br />
Liberta-nos, libertando a ti mesma.<br />
Vejo que queimas, ainda, em agonia,<br />
Sob a ira dos homens da igreja.<br />
Pelejaste contra as injustiças,<br />
Teu alimento: entradas e bandeiras,<br />
Do povo, foste guia.<br />
Em retribuição te prepararam<br />
uma fogueira. E foste linda<br />
morrer, de vestido branco e chapéu.<br />
Teu corpo virgem foi macerado<br />
como um lírio, um cardo,<br />
O sol, envergonhado, se pôs ao meio dia.<br />
E eu gritava:<br />
─Pula daí, Joana. Cai fora!<br />
Mas, minhas mãos estavam atadas<br />
Não pude te ajudar.<br />
Àqueles que amam a maldade,<br />
O poder, e se alegram com a crueldade<br />
Precisam saber:<br />
Tudo perdeu a cor e ficou cinza<br />
Quando você se foi, mas,<br />
Puída, a tua bandeira tremula ainda.<br />
Só não vê quem não quer!<br />
<strong>7faces</strong> – Renata Bonfim│ 201
O prazer de Salomé<br />
Depois de dançar<br />
Ao som da lira negra<br />
A réptil inviolada<br />
Fez amor pela primeira vez.<br />
Seu corpo era todo um jardim<br />
Recé- nascido da paleta de Moreau<br />
Dos seus seios fatais brotavam<br />
Safiras, ágatas, pérolas e rubis.<br />
Salomé trazia no sangue a fúria<br />
De Herodíade e a morte<br />
Nos olhos de prata.<br />
Naquela noite<br />
Feita de angústias estéreis<br />
(e solitárias)<br />
Dois homens perderam<br />
A cabeça.
© F. Markham Skipworth. Salomé. 1897.
Campos desconhecidos<br />
Dentro de mim há paisagens<br />
Voam livres e barulhentos<br />
os corvos de Van Gogh<br />
sobre os campos de trigo.<br />
Me persegue uma nostalgia do não vivido<br />
Os rios, sempre inéditos aos olhos de Heráclito,<br />
aos meus são um tédio.<br />
Há ainda, nos meus confins, canyons, mangues,<br />
Matas e cerrados, por onde caminham<br />
os lobos e suas crias e outros animais.<br />
Este espaço é ambíguo, as vezes me amedronta.<br />
Há também muitos penhascos,<br />
Há céu azulado,<br />
há prazer, dor, fome, mágoa,<br />
histórias sórdidas e livros que não ouso ler.<br />
A Morte, mocinha refinada,<br />
mora bem perto de todos os meus descampados<br />
é possível ouvir o som, rouco, do seu riso.<br />
Até aonde alcança a vista<br />
Eu quero chegar, e ir mais longe ainda.<br />
Quero explorar esse território estranho.<br />
Sou nômade!<br />
Desse mundo pouco sei,<br />
dizem que é meu, mas duvido,<br />
me pertence apenas a poeira no sapato<br />
Que trouxe das terras por onde andei.<br />
Conto com a benevolência da memória<br />
que não me deixa esquecer<br />
as alegrias e nem as desgraças vividas.<br />
Talvez seja por ela, ou por isso,<br />
que eu ainda esteja aqui, assim, sonhando<br />
com a falácia da unidade.<br />
<strong>7faces</strong> – Renata Bomfim│ 204
Campo comum<br />
Nada nos é alheio,<br />
Dentro de mim e de ti há<br />
um amor irrestrito<br />
o ódio dos assassinos<br />
os atos dos santo<br />
a covardia dos bandidos.<br />
a poeira da primeira estrela e<br />
resquícios das águas:<br />
do grande dilúvio<br />
do mar da Galiléia<br />
do rio Benares<br />
do Tietê<br />
do mar japonês<br />
imantado pela radioatividade.<br />
Um mundo de caos iludido<br />
por imagens edênicas<br />
nos convidam para viagens<br />
ilusórias e paradisíacas.<br />
Há no âmago do nosso ser<br />
a videira<br />
vinho e pão a ceia inteira, e santa<br />
o ódio<br />
o perdão<br />
Tudo isso nós compartilhamos<br />
mas, leitor, há dentro de mim<br />
uma angústia que desconheces:<br />
o assombro de estar viva<br />
contemplando a beleza bruta<br />
e há o desejo incontido de<br />
desabrochar, qual rosa mística,<br />
no coração do Cristo.<br />
<strong>7faces</strong> – Renata Bomfim│ 205
A neta de Mery Wollstonecraft<br />
Herdei de minha avó<br />
O gosto por homens instáveis e<br />
A fibra de quem não tem nada a perder<br />
Lembro ainda dos seus olhos<br />
Profundos e suicidas<br />
De como ela gostava de se sentir asfixiada<br />
Pelo trabalho e por coisas dolorosas<br />
Quanto prazer lhe dava mergulhar os dedos<br />
No abismo do tinteiro para depois<br />
Macular as folhas sedosas e carentes de papel<br />
Mulher de côrte e de cais<br />
A sua pena traçou a minha sina<br />
As bancas das esquinas, hoje, vendem exemplares<br />
Do seu livro de miséria e solidão<br />
(A preços populares)<br />
Ah! Se minha avó me visse agora<br />
Quanto orgulho teria da sua linhagem<br />
Mulheres mais rotas que alinhavadas<br />
Condenadas a nunca se juntar<br />
Irremediavelmente cindidas e secas<br />
E orgulhosas como bestas que pastam<br />
Em terrenos baldios.<br />
<strong>7faces</strong> – Renata Bomfim│ 206
Dora Ferreira da Silva<br />
recortes 2
Epidauro<br />
O ensinamento básico de Thoreau<br />
era o de carregar nada ou pouca coisa<br />
ao abandonar a própria casa em chamas.<br />
És um americano pobre, Henry Miller,<br />
não estranharás minhas sapatilhas<br />
meu cabelo preso e o rosto limpo.<br />
Serei a solidão a teu lado.<br />
Katsímbalis mal notará uma mulher<br />
a caminho de Epidauro. Sabes, és o único<br />
hóspede de sua pátria e coração.<br />
Grega nas mais antigas ramagens do sangue,<br />
acaso depare comigo, pensará que sou<br />
uma pequena coluna, ou um perfil apagado de hídria<br />
e não me dará atenção.<br />
Teu gosto de ser só, Miller, não o perturbarei,<br />
também o conheço e a paisagem conspira:<br />
poucos arbustos, pedras e o pó.<br />
O carro alugado avança com as hesitações<br />
de um inseto. O tempo voa no espaço.<br />
Dessa máquina sacolejante encaramos<br />
a mesma paz de um mundo quieto e parado.<br />
Que luz etérea! Epidauro anuncia o céu?<br />
Há mais Mozart aqui do que em qualquer outro lugar.<br />
Estamos a caminho da Criação, basta ouvir<br />
o sussurro de princípios misteriosos,<br />
se falarmos seremos melodiosos:<br />
nada a esconder, capturar ou preservar,<br />
ruíram muros que aprisionavam o espírito,<br />
instalou-se a paisagem nos campos<br />
do coração. Não passamos pela natureza – digamos –<br />
somos a debandada das forças da ambição, maledicência,<br />
inveja, egoísmo, despeito, intolerância, orgulho, arrogância,<br />
mesquinharia, duplicidade and so on.<br />
É a manhã do primeiro dia da grande paz,<br />
a paz do coração, porque nos rendemos.<br />
Isto não é o oposto da guerra,<br />
porque a morte também não é o oposto da vida.<br />
A linguagem, que pobreza! Pobreza da imaginação<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 208
“Epidauro” foi<br />
publicado na Revista<br />
Brasileira da<br />
Academia Brasileira<br />
de Letras, Edição 28<br />
do trimestre julhosetembro<br />
de 2001.<br />
do homem, de sua vida interior com seus trastes inúteis.<br />
A paz que encontramos em Epidauro<br />
ultrapassa a compreensão da maioria: um cessar<br />
de hostilidades, uma pausa negativa.<br />
A paz do coração que encontramos – Miller e eu –<br />
(Katsímbalis a possuía) é positiva, invencível,<br />
nada requer, nem pede proteção. É. Só.<br />
Vitória? Se o for, muito especial, baseada numa rendição<br />
especificamente voluntária. Ah, grande centro terapêutico<br />
do mundo antigo – EPIDAURO! –<br />
Aqui, o próprio curandeiro se curava –<br />
início de uma arte, não médica, mas religiosa.<br />
A Natureza – ensinam os grandes curandeiros –<br />
é a maior das curandeiras. Mas é preciso, Dora (diz Miller)<br />
que o homem reconheça seu lugar no mundo e este<br />
não é a Natureza (domínio do animal)<br />
mas o reino humano, ligação entre o animal e o divino.<br />
Epidauro? Pura charlatanice, dizem os cientistas.<br />
Progredimos assustadoramente. Nossos progressos<br />
conduzem à mesa de operação, aos manicômios, às trincheiras.<br />
O culto médico funciona mais ou menos como o Ministério<br />
da Guerra – os triunfos escondem morte e desastre.<br />
A alegria de viver vém através da paz, que não é estática,<br />
mas dinâmica. Não há alegria sem paz e sem alegria<br />
não há vida, mesmo que você tenha uma dúzia de carros,<br />
seis mordomos, um castelo, uma capela particular<br />
e um abrigo anti-aéreo. Ao que quer que nos apeguemos<br />
– seja esperança ou fé – eis a doença à espreita!<br />
Rendição absoluta, é isso. Quem agarrar-se à mínima migalha<br />
estará nutrindo o germe prestes a devorá-lo.<br />
Quanto a agarrar-se a Deus, Ele nos abandonou há tempos<br />
para descobrirmos a alegria de alcançar o Bem.<br />
Todo esse barulho, toda essa súplica pela paz<br />
crescerá à medida em que dor e miséria crescerem<br />
e a nada levará. Onde encontrar a paz? Imaginas<br />
que ela é algo a ser estocado como trigo ou milho?<br />
Algo para ser preso e devorado, carcaça entre lobos famintos?<br />
Os que falam de paz têm semblantes carregados de raiva,<br />
ódio, desprezo, orgulho, arrogância. Enquanto o assassinato<br />
não for arrancado da mente e do coração não haverá paz.<br />
O assassinato é o cume da pirâmide, cuja base mais larga<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 209
é o Ser. O que está de pé ruirá. Tudo aquilo pelo que o homem<br />
lutou, deve ser posto de lado, se quiser viver humanamente.<br />
Até agora não passou de uma besta sanguinária<br />
e mesmo suas divindades não prestam. Mestre de muitos mundos<br />
é um escravo no seu mundo. O que comanda o universo<br />
não é a mente, é o coração.<br />
Em Epidauro, na quietude que sobre nós três baixou<br />
ouvimos bater o coração do mundo.<br />
Então sabemos qual é a cura: desistir, renunciar,<br />
render-se para que nossos pequenos corações batam em uníssono<br />
com o grande coração do mundo.<br />
NOTA DA AUTORA. Poema inspirado no livro de Henry Miller (O Colosso de<br />
Marússia). Refizemos juntos a viagem a Epidauro, Henry Miller e eu, com o poeta<br />
grego Katzímbalis, que se manteve silencioso, mas não descontente.
© Chagall. A sua (detalhe) Reprodução
A sibila<br />
Nas praças, nos templos e olivais<br />
um grito de louvor à Terra, dançai!<br />
Vim sem esplendor da aurora, mendiga,<br />
não como as musas de outrora, dadivosas Diotimas,<br />
vim mendigar o que há muito vos ofertei, Poetas:<br />
sopro-vos à garganta dilatada, vossos olhos ceguei<br />
para que o fundo olhar se liberte. Sibila em agonia,<br />
há tanto silenciada, falarei por vossas bocas,<br />
em vossos versos, arquejará minha voz embriagada, rouca –<br />
sustos e soluços, gritos, silvos, neblinas de esgares,<br />
mares de canto e pranto. No tempo além do tempo<br />
meus lábios murmuram por ti e perto dos templos derruídos,<br />
a respiração do velho Mar, seus haustos e gemidos.<br />
Mostra-me o silêncio o lacre escarlate, verbo indigente<br />
dos mitos que sempre me uniram às setas de Apolo.<br />
Há tanto minha palavra foi calada, os deuses recuavam...<br />
Mas os poetas mantiveram-me viva. O mais ínfimo<br />
deu-me de beber e em sua hídria refresquei meu rosto.<br />
Sensíveis a meu sopro, os maiores coroaram-me de folhas verdes.<br />
O nascimento do Poema é o silvo que Apolo harmoniza e Orfeu faz cantar.<br />
Rompendo as cisternas escuras vim, raiz coleante<br />
por entre as pedras e a secura. Dilacerada, arquejante,<br />
acolhe-me Apolo em seus braços de névoa.<br />
Gemidos rasgam mil caminhos na gruta: Ai, ai, oh...<br />
A Sibila arrasta-se no pó, soluça, seus lábios deliram,<br />
traça no ar os gestos incertos dos agonizantes, colhe flores<br />
na neblina. Ai, ai, oh... Foram-se os deuses da Grécia,<br />
só espelhos refletem espelhos, o eterno assim se dá e esconde.<br />
Onde Afrodite, a de rosáceos tornozelos, ungida de óleo incorruptível,<br />
com seus perfumes, colares e pulseiras cintilantes?<br />
Onde Ártemis, a doçura selvagem? Foram-se as ninfas<br />
e hamadríades! Nunca mais a vida estuante dos bosques,<br />
suas flores e clareiras, onde Zeus e Hera adormeciam ao calor do dia.<br />
Ai, ai, neblina da neblina, o que enlaçarão agora nossos braços?
“A Sibila” foi<br />
transcrito por<br />
Constança<br />
Marcondes César<br />
num texto<br />
publicado na<br />
Revista do Instituto<br />
de Letras da<br />
Pontifícia<br />
Universidade<br />
Católica de<br />
Campinas, edição<br />
16, de dezembro de<br />
1997.<br />
Não mais que névoa e vento. Apolo, assim te afastas, e me deixas presa<br />
à teia indecifrável destes sons selvagens? Aaa, Oooo...<br />
Em teu ombro dourado me apoiava, inventando poemas que ditavas<br />
a meu secreto entendimento. Infeliz de mim! Agora<br />
só posso tocar névoa e memória. Dissiparam-se Mundo e Palavra.<br />
A Sibila chorou.<br />
Nesse momento as coisas cessam, silenciosas,<br />
atemorizadas. Os ventos param de soprar,<br />
nas árvores as folhas não se move.<br />
Os rios adormecem e gigantesco Mar<br />
é liso e sem ondas. Paira sobre tudo um<br />
SANTO SACRO SILÊNCIO<br />
Perde-se na neblina a medida do Tempo,<br />
tudo se abisma no silêncio, à espera<br />
do alto Deus, meta dos séculos.<br />
A Sibila abre os grandes olhos<br />
e vê o Deus que nasce.<br />
A Mãe, junto ao menino, parece uma vinha<br />
e enquanto a Lua surge, clara, ela adora<br />
o Filho em seus braços. De ouro vivo é a Criança<br />
e em resplendores toda a gruta se ilumina.<br />
Luz nascida como o orvalho descendo do Céu à Terra<br />
e em torno, suavíssimo aroma.<br />
Anjos perpassam, alígeras borboletas<br />
e cantam: Amém.<br />
A Sibila sorri.<br />
Um cântico novo brota em seus lábios, mas não é seu,<br />
o infinito o modulou:<br />
O aroma de teus perfumes é delicado<br />
e teu nome, óleo que se derrama.<br />
Serás nosso júbilo e alegria...<br />
Não repares em minha tez morena, que o sol queimou.<br />
Irados, meus irmãos fizeram-me guardas as vinhas,<br />
eu, esquecida da Vinha!
Ouço a voz do meu Amado batendo à porta<br />
Lentos são meus pés e ao abrir a porta<br />
o Amado já se foi. Corre minha alma<br />
e o busca por toda a parte. Não respondes, Amor,<br />
ao meu chamado?<br />
Eu vos suplico, filhas de Jerusalém,<br />
se o encontrardes<br />
dizei-lhe que estou doente de amor.<br />
O que tem ele – elas perguntam –<br />
o que tem o teu Amado mais do que os outros<br />
para que assim o busques, quase morta?<br />
Meu Amado é róseo e brilhante,<br />
meu Amado vermelho. Sua cabeça é de ouro puro,<br />
seus cachos, negro-azulados.<br />
Seus olhos são duas rolas<br />
perto de um lento riacho.<br />
Destila mirra<br />
o lírio de seus lábios.<br />
Sei que habita um jardim,<br />
companheiros, ouvem sua voz...<br />
Oh, faze que eu também te escute!<br />
Quem é essa que vem do deserto<br />
como um cântaro apoiado a um peito amoroso?<br />
Ele é um selo sobre seu coração,<br />
sobre seu braço moreno,<br />
pois o Amor é forte como a Morte,<br />
suas centelhas são de fogo:<br />
uma chama divina!<br />
Dissipa-se na névoa um rosto efêmero,<br />
mas a face do Amado permanece.<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 214
Fac-símile da capa de 1ª edição do primeiro livro de Dora Ferreira da Silva,<br />
“Andanças” publicado em 1970 e reunindo poemas escritos entre 1948 e<br />
1970 numa edição custeada pelo própria autora.<br />
Imagem: Arquivo Vilém Flusser.
Noturno I<br />
Estrelas pendem da noite,<br />
videira delirante.<br />
Coroada de espelhos e ametistas<br />
transmutas a carne em nudez<br />
guardiã, sacerdotisa,<br />
nos vales da distância<br />
rumina em silêncio<br />
teu rebanho tranquilo.<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 216
Noturno II<br />
Nossos olhos nos pertencem –<br />
não o dia.<br />
Amor não nos pertence<br />
nem a morte.<br />
Apenas pousam na pérola mais fina.<br />
Desce o luar<br />
no flanco de rios precipitados<br />
folhas se alongam<br />
caules estremecem.<br />
A noite já desfere<br />
seu punhal de trevas.
Noturno III<br />
Pétala da noite<br />
pálpebra fixa dos que olham para sempre a morte<br />
nave perdida e sem memória<br />
pérola marinha<br />
arremessada às águas.<br />
Rosa intranquila<br />
pólen do amor sem pouso<br />
mênade errante, os longos cabelos torturados,<br />
tu, sublevada, que me prendeste em teu anel de insônias<br />
e que desfias no espaço<br />
o claro colar de águas:<br />
por que acordas no meu peito a sede dos desertos<br />
e me aprisionas, pássaro, em teu arco de prata?
Transpoema<br />
De onde vens, quem sabe,<br />
quem te sopra ao meu ouvido?<br />
É o transpoema e seu ressaibo<br />
é lembrança e olvido.<br />
É um fruto oriundo<br />
de algum ser – o mais profundo –<br />
entre mim e tudo o mais.<br />
É a curva de um caminho<br />
é a urze, o rosamaninho<br />
é o amor mais esquecido<br />
que sabe o mais querido.<br />
É a flauta muito doce<br />
é a canção de sempre e agora<br />
é a carência e a pletora<br />
a vida me fez assim.<br />
O transpoema serpenteia<br />
na minha alma-lua-cheia<br />
e transborda tantos frutos...<br />
Mas quem sopra em meu ouvido?<br />
É lembrança e é olvido.<br />
<strong>7faces</strong> – Dora Ferreira da Silva│ 219
Capa da edição de Transpoemas. O livro é uma publicação póstuma<br />
editada pelo Instituto Moreira Salles.<br />
Imagem: Arquivo <strong>7faces</strong>
O leque<br />
(variações)<br />
Linha oblíqua<br />
oculta desoculta<br />
o instante breve<br />
cores exalta<br />
do negro ao escarlate.<br />
Ela e o leque: a aragem esconde<br />
em poço de sombra<br />
a curva do pescoço<br />
o colo branco.
Capa da edição de O leque. Assim como Transpoemas o livro é uma<br />
publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles.<br />
Imagem: Arquivo <strong>7faces</strong>
Appassionata<br />
(fragmento)<br />
É preciso desdobrar<br />
asas de amor conhecimento<br />
liberar o tato<br />
de todas as coisas<br />
que esperam,<br />
pois o eco fugiria<br />
das palavras vãs.<br />
Sem pólen,<br />
os pássaros voltariam<br />
aos ninhos de sombra<br />
se teu coração<br />
recuasse<br />
e os cabelos<br />
não soltasses<br />
Appassionata
Capa da edição de Appassionata. O livro é uma publicação póstuma<br />
editada pelo Instituto Moreira Salles juntamente com Transpoemas e<br />
O Leque .<br />
Imagem: Arquivo <strong>7faces</strong>
Dora<br />
Ferreira<br />
da Silva<br />
inéditos
© Edmar José de Almeida. Dora Ferreira da Silva<br />
(retrato) Detalhe de um quadro óleo.
Manuscrito do poema que abre o livro Transpoemas, de Dora Ferreira da<br />
Silva, publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles. Escrito entre<br />
2005 e 2006, o livro “nos surpreende com uma reflexão delicada sobre o<br />
poema. Toda a sequência é uma interrogação sobre o fazer poético e o papel<br />
reservado ao poeta. Numa clave metalinguística, Dora mostra o poeta como<br />
um vaso comunicante por onde o poema se transporta.” – afirma Dozinete<br />
Galvão.<br />
Imagem do Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida. Proibida reprodução sem<br />
autorização responsável.
Manuscrito do poema II do livro Appassionata de Dora Ferreira da Silva,<br />
publicação póstuma editada pelo Instituto Moreira Salles. “Uma noite me ligou<br />
[Dora Ferreira da Silva] especialmente feliz e leu o poema que considerou seu<br />
trabalho mais importante – Appassionata. Eu fiquei sem palavras, era o poema<br />
mais lindo que jamais ouvira... Ele havia nascido de um mergulho incondicional<br />
na Sonata n.23 de Beethoven, e o que ela queria era que as palavras se<br />
tornassem música.” – Inês Ferreira da Silva Bianchi.<br />
“Appassionata é uma obra de puro arrebatamento, calcada naquele<br />
enthousiasmós (ou transporte divino) de que nos falam os antigos gregos. É<br />
também, como se vê no orfismo, uma tentativa no sentido de que as palavras<br />
posam transformar-se em música, embora a música da poesia, como entendia<br />
T. S. Eliot, seja definida a partir de critérios bastante distintos, os quais<br />
ensinam que ela não seria que existisse à margem do significado. Mas a<br />
verdade é que, nos poemas de Appassionata, cumpre-se à risca aquele<br />
conceito eliotiano de que a música de uma palavra está, por assim dizer, num<br />
ponto de intersecção, já que ela ‘emerge de sua relação, primeiro, com as<br />
palavras que imediatamente a antecedem e a ela se seguem, e<br />
indefinidamente com o restante do contexto; e de outra relação, a de seu<br />
imediato significado nesse contexto com todos os demais significados que haja<br />
possuído em outros contextos, com sua maior ou menor riqueza de<br />
associação’.” – Ivan Junqueira<br />
Imagem do Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida. Proibida reprodução sem<br />
autorização responsável.
“Dora foi uma das pessoas mais luminosas que conheci. A casa da Rua<br />
José Clemente foi um dos corações intelectuais do Brasil. Corrijo: a<br />
palavra intelectual acaba de me incomodar. Aquela casa era a casa do<br />
ser. Uma clareira aberta. Uma realização plena do que possa vir a ser a<br />
experiência do desvelamento. Havia algo de muito especial naquele<br />
lugar. Nunca consegue identificar o quê. Continuo tentando. Mas ainda<br />
não consigo. Convivemos todas as semanas durante os últimos três ou<br />
quatro anos de sua vida. Coordenávamos juntos o centro de estudos<br />
que ela fundou, o Cavalo Azul. Os encontros eram justamente na<br />
biblioteca, antigo escritório de trabalho de Vicente Ferreira da Silva.<br />
Estávamos sempre a um passo de cruzar o umbral. É essa a impressão<br />
mais forte que guardo dos encontros com Dora e da casa e que tentei<br />
fixar em um depoimento: entrar em sua casa e em sua poesia era cruzar<br />
um umbral. Tudo às costas se dissolvia, como na descida de Orfeu. É<br />
difícil falar dela. São muitas coisas. Desde conversas que tínhamos<br />
sobre poesia e arte até sinuosos devaneios sobre a vida após a morte, a<br />
imortalidade, a alma e visões e presságios em sonho. A sua poesia era<br />
ela e apontava na direção de tudo o que ela conseguiu mobilizar ao seu<br />
redor. No modo de falar, nos grandes olhos redondos, na palma da mão<br />
sempre elevada como uma sacerdotisa. A poesia de Dora, a obra de<br />
Vicente e aquela casa persistem em mim como um sonho continuado. E<br />
vez por outra me apalpo pra saber de fato de que lado estou desse<br />
limiar.” – Rodrigo Petrônio. “A poesia é o paraíso do paradoxo. In:<br />
Revista Texto poético.<br />
Imagem. Dora Ferreira da Silva. Arquivo de Inês Ferreira da Silva Bianchi. Cedida.<br />
Proibida reprodução sem autorização.
Vilém Flusser e Dora Ferreira da Silva mantiveram durante larga data,<br />
desde que se conheceram estreitos diálogos entre poesia e filosofia.<br />
Parte desses diálogos se deram no grupo formado por Dora, “Cavalo<br />
Azul”, e se estenderam pela obra; tanto Vilém escreveu sobre Dora<br />
quanto Dora escreveu sobre Vilém. Nesse intercâmbio de<br />
conhecimentos, os dois também mantiveram a largo sua ponte de<br />
correspondências por escrito.<br />
Imagem Carta de Vilém Flusser para Dora Ferreira da Silva e resposta de Dora para<br />
ele. Arquivo de Vilém Flusser Studies. Cópia.
Dora Ferreira da Silva encostada em pedra, na praia de Mongaguá, São<br />
Paulo, 1940.<br />
Arquivo de Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles
O mundo<br />
em poesia<br />
Minha mãe traduzia o mundo em poesia. A música, os<br />
fatos cotidianos, sua própria história familiar, os poetas<br />
que ela admirava, pintores, a natureza, mitos, todos esses<br />
elementos se transfiguravam em matéria poética, e o<br />
poema era o resultado dessa experiência, ou melhor, desta<br />
vivência.<br />
Inês Ferreira da Silva Bianchi<br />
fala sobre si e a relação com sua<br />
mãe, Dora Ferreira da Silva.
Inês por Inês<br />
“Nasci em 1953 em São Paulo, e fui uma filha temporã, uma vez que<br />
meu irmão Luiz Vicente, falecido no ano passado, já tinha 12 anos<br />
quando cheguei. Segundo minha mãe falou, foi uma gravidez de alto<br />
risco, fruto de sua teimosia diante das recomendações médicas em<br />
contrário. Até os 10 anos de idade estive muito próxima de meu pai,<br />
uma pessoa essencialmente solar, que me levava em sua romizeta<br />
para todos os lugares. Costumava ficar sentada no braço de sua<br />
poltrona enquanto ele escrevia páginas e páginas de filosofia, num<br />
papel finíssimo e colorido. Sua letra era incompreensível, e só minha<br />
mãe conseguia decifrá-la. Ela batia a máquina e fazia a revisão. Desde<br />
cedo, percebi que a minha casa e minha família eram bem diferentes<br />
das de minhas amigas. Durante a noite aconteciam reuniões e meu<br />
pai dava aulas para muitas pessoas. Dos degraus da escada,<br />
escondida, eu não ouvia muito bem o que se falava, mas mesmo que<br />
ouvisse não entenderia nada. Havia música, e um clima de grande<br />
entusiasmo nas discussões. Depois de adulta, vim a saber que esses<br />
encontros filosóficos foram inesquecíveis para todos os que<br />
estiveram lá.<br />
Meu pai morreu de forma trágica em 1963, num acidente de carro, e<br />
foi muito difícil para mim sua perda. Nessa época, minha tia, irmã de<br />
minha mãe me chamou para uma conversa, daquelas que nunca se<br />
esquece na vida. Disse-me que eu teria uma grande responsabilidade<br />
dali em diante, cuidar de minha mãe. Falou que ela era uma pessoa<br />
sensível, com pouco senso de realidade - uma poetisa - e que caberia<br />
a mim a tarefa de ser seu fio terra. De certa forma, esse foi meu<br />
papel por muitos e muitos anos. Como meu irmão se casou logo após
a morte de meu pai, ficamos só nós duas, e nossa relação foi marcada<br />
pela não ortodoxia, em todos os aspectos. Ser mãe ou filha era uma<br />
condição variável, determinada pelas circunstancias e pela maior ou<br />
menor habilidade de cada uma frente à tarefa. O universo prático, via<br />
de regra, cabia a mim. Fomos muitas vezes para Itatiaia, e a<br />
convivência naquele chalé no alto da montanha sempre foi repleta de<br />
aventuras: enfrentamos aranhas caranguejeiras, cobras, banhos<br />
gelados de cachoeira, e passamos a noite perdidas numa trilha no<br />
meio do mato. Também em Itatiaia ela realizou um grande sonho<br />
meu – ter um cavalo. Passávamos as tardes pintando pedras, e numa<br />
vitrola a pilha ouvíamos Mozart e Bach. Ainda hoje o chalé de Itatiaia<br />
se mantém intacto, assim como a capela de São Francisco, que minha<br />
mãe construiu ao lado da casa, feita com a ajuda de muitos amigos,<br />
com pedras e telhas de demolição.<br />
Quando entrei na faculdade, em 1973, pensava fazer o curso de<br />
Letras, e me tornar, quem sabe, uma escritora. Na PUC, o primeiro<br />
ano era integrado para todos os cursos, e apenas duas matérias eram<br />
específicas. Ao final do ano conversei com uma professora, e como<br />
não estava gostando nada de latim e de linguística, e não pretendia<br />
ser professora de Português, ela me aconselhou a fazer uma reopção<br />
para outro curso. A Psicologia me pareceu um caminho interessante,<br />
pois reunia uma atividade prática que me atraía (o atendimento<br />
clínico), e um espaço criativo bem abrangente que me permitiria<br />
desenvolver a literatura. Psicologia não havia sido nenhuma das<br />
minhas opções no vestibular, e por isso precisei fazer uma prova<br />
especial para conseguir a vaga. Escolhi montar uma peça de teatro: A<br />
prostituta respeitosa, de Jean Paul Sartre. Foi uma experiência<br />
fantástica, que não só me valeu a vaga na Psicologia como também<br />
algumas reapresentações para o público no teatro da PUC.<br />
Minha vivência como psicóloga foi longa: após a faculdade, fiz um<br />
curso de especialização em Gestalt no Instituto Sedes Sapientiae, e<br />
uma formação completa em Psicodança com seu criador, Rolando<br />
Toro. Trabalhei duas décadas como psicoterapeuta em consultório<br />
particular, dei cursos de Gestalt-terapia, de Psicodança, fui perita<br />
judicial em Varas de Família e atuei na Casa da Mulher (instituição<br />
que apoia mulheres em situação de risco doméstico). Fiz também<br />
revisões de texto em capítulos de livros de psicologia e também na<br />
Revista Cavalo Azul, editada por minha mãe.
Em 1998 dei uma guinada radical em minha vida. Junto com meus<br />
dois filhos e meu marido me mudei para Ilhabela. Estávamos<br />
morando todos juntos na casa da José Clemente, e a relação familiar<br />
não era harmoniosa. Eu estava cansada de tentar resolver os<br />
problemas que surgiam a todo o momento. Sentia-me angustiada,<br />
prisioneira de uma situação incômoda, e com um desejo imenso de<br />
me libertar. Por outro lado, tinha compromissos, trabalhos em<br />
andamento, e o sentido de responsabilidade me dizia que era uma<br />
loucura largar tudo e ir embora. O grande responsável pela tomada<br />
de decisão foi meu filho mais velho, Gabriel, que na época tinha 15<br />
anos. Sua única preocupação era não conseguir voltar para São Paulo<br />
quando chegasse a hora. Curiosamente, ele foi o único que voltou<br />
para fazer História na USP, trabalhar como professor e morar na<br />
capital.<br />
O desligamento com minha mãe – em função dessa mudança - foi<br />
extremamente conturbado. De imediato ela se sentiu abandonada,<br />
mesmo reconhecendo as dificuldades de relacionamento que<br />
existiam no contexto familiar. Como se tratava de uma decisão<br />
tomada, e irreversível, nos anos seguintes fomos desatando os nós<br />
que essa revolução causou.<br />
Eu demorei um ano para realizar internamente a mudança, sentir que<br />
de fato morava em Ilhabela. Como tinha construído uma casa para<br />
veraneio, era muito presente a sensação de que depois do fim de<br />
semana nós voltaríamos para São Paulo. Procurar trabalho como<br />
psicóloga, no único Centro Médico da cidade, foi a primeira medida<br />
concreta para me enraizar, além de colocar os filhos numa escola.<br />
Mas, meu rumo profissional seria em breve alterado para uma nova<br />
direção que eu nem imaginava. Um Festival de Dança num palco<br />
montado no centro de Ilhabela foi o elemento que deflagrou o<br />
processo de mudança. Por isso posso garantir – por tudo o que se<br />
sucedeu – que a arte da dança é mágica. Fui tocada profundamente<br />
pelo espetáculo, senti uma emoção que há muito tempo não<br />
experimentava, e como escrevia semanalmente artigos num jornal da<br />
cidade, fiz um texto enaltecendo a iniciativa de se promover um<br />
evento com aquela qualidade artística em nossa pequena cidade. Era<br />
época de eleições municipais, e como sempre acontece nas<br />
mudanças de gestão, joga-se fora tudo o que o antigo prefeito<br />
construiu, principalmente o que ele fez de melhor. O resultado é que<br />
o grupo responsável pelas ações culturais da antiga gestão foi<br />
demitido. Esse baque fez com que eu me aproximasse dessas
pessoas, e juntos fomos em busca de um local onde se pudesse dar<br />
andamento às atividades de dança de um grupo de alunas, ainda<br />
pequenas, que integravam o projeto de arte-educação Pés no Chão.<br />
Nessa procura, chegamos uma manhã a um imenso galpão, um<br />
boliche desativado. Ao entrarmos, raios de luz invadiam o espaço.<br />
Todos nós ficamos mudos e tomados por sonhos: era preciso criar ali<br />
um espaço cultural, um teatro, o primeiro em nossa cidade. Sem<br />
dinheiro algum, tivemos 24 horas para achar um doador maluco que<br />
se dispusesse a dar R$ 1000 reais por mês, para pagar pelo período<br />
de um ano o valor do aluguel. O proprietário, outro doido, rasgou o<br />
contrato que iria assinar com uma mecânica de motores de barco e<br />
embarcou em nossa empreitada delirante. Um mês depois o Espaço<br />
Cultural Pés no Chão estava criado, com CNPJ, uma conta bancária<br />
quase vazia no Banco do Brasil, e centenas de crianças inscritas nas<br />
atividades oferecidas. Por dois anos, todos que trabalharam na<br />
instituição foram voluntários.<br />
Hoje o Pés no Chão tem quase 12 anos e cresceu muito. Ele<br />
conquistou sua sede própria (um teatro-escola) a custo de muito<br />
trabalho, do respeito da comunidade e de dezenas de projetos<br />
realizados. Profissionalmente ele fez com que me desenvolvesse na<br />
área de elaboração de projetos, como professora de cursos de<br />
poesia, e como redatora de um modo geral, uma vez que a escrita da<br />
organização está sob minha responsabilidade. Participo desta<br />
iniciativa desde sua fundação, e aquele Festival de Dança que me fez<br />
mudar de rumo já está em sua 16ª edição, agora dentro de nosso<br />
teatro e também espalhado pela cidade inteira. Conta com o<br />
patrocínio da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo e da<br />
Prefeitura Municipal de Ilhabela.<br />
Estou prestes a completar 60 anos. Sinto-me profundamente<br />
enraizada em Ilhabela. Da janela de meu escritório vejo árvores,<br />
gaivotas e roseiras – descendentes de roseiras da minha mãe. Guardo<br />
comigo objetos preciosos, como a placa do número da casa da Rua<br />
José Clemente, os Prêmios Jabuti conquistados pela minha mãe, e as<br />
Obras Completas de meu pai que infelizmente minha mãe não<br />
chegou a ver publicadas.”
A relação de Dora Ferreira da Silva<br />
com a escrita, sobretudo, com a poesia<br />
e sobre as influências na formação de<br />
Inês<br />
“Minha mãe traduzia o mundo em poesia. A música, os fatos<br />
cotidianos, sua própria história familiar, os poetas que ela admirava,<br />
pintores, a natureza, mitos, todos esses elementos se transfiguravam<br />
em matéria poética, e o poema era o resultado dessa experiência, ou<br />
melhor, desta vivência. Em uma entrevista à TV Cultura em 2005, ela<br />
disse que o mundo era uma fome das coisas serem percebidas. Neste<br />
sentido, tudo tinha o potencial de se transformar em substancia de<br />
sua poesia.<br />
Quando viajamos para a Grécia, em 1972, ela sentou-se nas pedras<br />
do Parthenon, tocou-as com as mãos como se estivesse buscando<br />
absorver a memória aprisionada nessas pedras. Em Itatiaia, todos os<br />
seus sentidos bebiam as forças da natureza, numa perspectiva de<br />
comunhão profunda. Cenas do cotidiano, como as do vendedor de<br />
rosas nos faróis de São Paulo, também a comoviam, sendo tema de<br />
um de seus poemas.”<br />
Há uma nova profissão...<br />
Há uma nova profissão nesta cidade: o mendigo das rosas.<br />
Investe perigosamente, na engrenagem do trânsito,<br />
em pé de vento, bailarino, atrás dos automóveis.<br />
Bate no vidro fechado quando há chuva.<br />
E em troca da nota esquálida<br />
faz a oferenda das rosas.<br />
“A casa da Rua José Clemente 324 sempre teve como vocação ser um<br />
centro de estudos, desde a época do meu pai. Essa tarefa foi<br />
retomada por minha mãe com um foco maior no campo da poesia e<br />
da psicologia. Entre os anos 60 e 70 alguns poetas da geração dos<br />
beatniks lá se reuniam, e liam poemas e filosofia até altas<br />
madrugadas. Lembro-me de Roberto Piva, Lindolf Bell, Claudio Willer,<br />
Rodrigo de Haro, Celso Paulini, Alan Mayer, e muitos outros. A partir
dos anos 90 minha mãe formou um grupo de estudos com o qual<br />
trabalhou até o fim de sua vida.”<br />
Dora fazendo leitura pública de poesias, em frente e Livraria Brasiliense, na Barão de<br />
Itapetininga. São Paulo, década de 1970.<br />
Arquivo do Acervo Dora Ferreira da Silva do Instituto Moreira Salles.
Os Encontros na Casa de Dora<br />
Por Raïssa Cavalcanti<br />
A lembrança e a saudade desses encontros me vêm a memória com<br />
nitidez. Os alunos iam chegando aos poucos e sendo recebidos na<br />
biblioteca pela calorosa amizade de Dora Ferreira da Silva.<br />
Sentávamos todos, em seguida, em volta da grande mesa da sala de<br />
jantar Dora nos transportava ao tempo poético, mítico e filosófico, o<br />
qual Dora conhecia bem os caminhos.<br />
As reuniões se estendiam ao longo da noite e perdíamos a noção do<br />
tempo, já que Dora não costumava transitar no tempo cronológico e<br />
profano. Ela era uma frequentadora do tempo sagrado, dos meandros<br />
desconhecidos. Dora realizava o seu ministério calmamente, fazendo<br />
reflexões em torno das questões essenciais da filosofia, do mito da<br />
arte e da psicologia.<br />
O seu público era de pessoas jovens curiosas e interessadas pelo<br />
conhecimento e pela cultura. Nos encontros na casa de Dora, os<br />
jovens tinham a oportunidade de encontrar a mestra que os podia<br />
guiar pelos trajetos de outros mestres, poetas, místicos e sábios.<br />
Dora não somente nos levava a conhecer o conteúdo das obras<br />
analisadas, mas ensinava, sobretudo a ter amor, respeito e admiração<br />
pelo saber dessas pessoas que dedicaram a sua vida em prol do<br />
desenvolvimento e da ampliação da consciência humana. Era visível e<br />
manifesta a sua alegria em poder compartilhar com pessoas<br />
interessadas em conhecer, tudo o que conhecia, amava e valorizava.<br />
A nossa anfitriã era uma entusiasta das ideias de Carl Gustav Jung,<br />
Mircea Eliade e Joseph Campbell. Mostrava respeitosa reverência<br />
pela filosofia de Sócrates, Platão, Plotino, Spinoza e Martin
Heidegger. A mesma consideração demonstrava pela obra do marido,<br />
o filósofo e escritor Vicente Ferreira da Silva, já falecido, cuja obra<br />
enfileirada nas prateleiras da sua biblioteca, nos causava grande<br />
admiração.<br />
Dora possuía uma alma mística, por isso, a sua perfeita afinidade<br />
com as ideias dos filósofos e poetas místicos. Com a concepção do<br />
universo como uma criação divina e o relacionamento e<br />
interdependência entre todas as coisas. Com Hildegard von Bingen<br />
compartilhava a ideia da natureza ser a obra criativa de Deus e<br />
existir uma interrelação entre a alma do homem, a natureza e Deus,<br />
dentro de um perfeito equilíbrio. “O mundo todo foi acariciado pelo<br />
beijo do criador.”<br />
“Deus beija a alma<br />
Bem seu íntimo.<br />
Graça e Bênçãos<br />
São concedidas,<br />
Quando há ardente desejo interior.”<br />
Seguindo os passos de Mestre Eckhart concebia o coração como o<br />
lugar de encontro entre a alma e o Espírito que deve ser purificado<br />
das impurezas do ego. Todas as doenças do ego, o egocentrismo,<br />
todas as afirmações egóicas são impedimentos para o reconhecimento<br />
da alma e de Deus, que habitam o interior do coração.<br />
Escreveu sobre Johann Tauler e compartilhava com ele a defesa do<br />
envolvimento com a vida cotidiana e com a natureza para o alcance<br />
da união da alma com Deus.<br />
Com a poesia de Santa Tereza D’Ávila sobre a alma se emocionava.<br />
A alma como criação divina que foi colocada no coração do homem.<br />
“Foste por amor criada<br />
formosa, bela e assim<br />
em meu coração pintada;<br />
se te perderes, minha amada<br />
alma, buscar-te-ás em Mim.”<br />
Escreveu ainda sobre San Juan de la Cruz e comungava com o seu<br />
sentimento de que é através do amor que a alma se une a Deus.<br />
“O amor une a alma à Deus<br />
E, quanto mais amor ela possui<br />
Com mais força se funde com Ele<br />
E nele está concentrada.”
Dora demonstrava amor e perfeita familiaridade com os seus<br />
escritores, poetas e artistas preferidos. Juana Inês de la Cruz, Jan<br />
Van Ruysbroeck, Jacob Böehme, Angelus Silesius e William Blake<br />
eram frequentadores da intimidade da sua casa há bastante tempo.<br />
Muitos dos temas e autores examinados foram apresentados pela<br />
primeira vez, aos jovens presentes, que tiveram oportunidade de os<br />
conhecer através da mestra. Dora era o exemplo vivo do verdadeiro<br />
mestre, daquele que ama o conhecimento porque reconhece o seu<br />
valor para a formação do homem. Transmitia o seu saber com grande<br />
entusiasmo e alegria. Somente podia se entusiasmar, porque a sua<br />
sensibilidade transcendia a visão comum e porque a sua busca do<br />
conhecimento havia lhe trazido a descoberta do significado maior da<br />
vida. O seu entusiasmo e alegria eram inspiradores, tinha o poder de<br />
insuflar na alma dos alunos o desejo, o amor pelo conhecimento.<br />
Dora Ferreira da Silva era uma amante do conhecimento, no sentido<br />
platônico. Ela era uma filósofa, aquela que ama e busca a sabedoria,<br />
a verdade. A sabedoria procurada por Dora era a inspirada pela<br />
alma, por isso, podia ser chamada de sophia e Dora podia ser<br />
chamada de filósofa. Acreditava que para obter o verdadeiro<br />
conhecimento é necessário eliminar a visão aparente, afastar tudo<br />
aquilo que impede de ver a realidade como ela é e ter a coragem de ir<br />
mais fundo nas coisas. O maior impedimento para a apreensão da<br />
verdade é a percepção superficial e convencional, determinada pelos<br />
condicionamentos sociais e culturais.<br />
A inspiração e a aspiração para os encontros ela encontrava em<br />
Platão. A finalidade dos encontros na casa de Dora era preencher a<br />
necessidade da filósofa de comunhão. Era oferecer alimento para a<br />
sua alma e para a de seus ouvintes. O seu desejo como anfitriã era<br />
compartilhar a sabedoria de sophia. Era oferecer um banquete com<br />
as mais ricas iguarias do conhecimento, o saber que alimenta a alma<br />
e a transforma.<br />
Nesses encontros, Dora convidava os participantes a uma reflexão<br />
profunda sobre as questões humanas. Com a atitude não<br />
convencional, estimulava os alunos a sair da periferia da vida, a<br />
olhar para além da superfície das coisas, a penetrar na profundidade<br />
da alma, para se autoconhecerem, para apreenderem a verdade que<br />
reside por trás de todas as aparências. A verdade buscada era aquela<br />
que só pode ser percebida segundo a perspectiva espiritual da alma,<br />
pois habita na interioridade e profundidade de cada um.
Inspirada pelos seus mestres de alma, Sócrates e Jung, Dora<br />
considerava que o verdadeiro mestre é aquele que sabe suscitar no<br />
aluno a necessidade da autoinvestigação, o desejo pela busca da<br />
verdade interior e o amor por essa prática. Dora fazia do seu anseio<br />
de saber, do seu amor pelo conhecimento uma prática de vida, um<br />
exercício diário que acreditava ser benéfico para a saúde espiritual<br />
da alma.<br />
O seu modo de vida era fundamentado por uma visão de mundo e de<br />
homem inspirada nos grandes mestres, ela se nutria de modelos<br />
exemplares, como Sócrates e Platão. Eram eles quem motivavam a<br />
sua busca especulativa e reflexiva, por que realizaram a condição<br />
humana, de uma forma exemplar. Deixaram um modelo de homem, de<br />
excelência humana e de humanismo.<br />
Acreditava que o conhecimento torna o homem melhor, e que aquele<br />
que conhece, no sentido mais profundo, pode contribuir para a<br />
construção de um mundo mais humano. Dora Ferreira da Silva era<br />
uma humanista, acreditava na capacidade de transformação do<br />
homem. Como admiradora de Heidegger, o seu humanismo também<br />
buscava nele a sua inspiração. Consistia em refletir e cuidar para que<br />
o homem se tornasse humano e não desumano, um bárbaro, que nega<br />
a sua própria essência.<br />
O humanismo de Dora estava baseado na necessidade de reflexão e<br />
também, no cuidado, no velar pela essência da natureza humana para<br />
que essa não se perca ou se deturpe. O seu desejo de cuidar era<br />
motivado pela percepção da crise ética e humanística pela qual o<br />
mundo estava passando e que afeta, principalmente os jovens em<br />
formação.<br />
A finalidade do humanismo de Dora Ferreira da Silva era restaurar a<br />
ideia de homem que foi reduzido em sua humanidade, pelas<br />
concepções racionalistas. Recuperar a concepção humanista era<br />
essencial para preservar o entendimento profundo sobre o homem e<br />
manter a sua integridade.<br />
Nos seus “symposium”, Dora procurava transmitir a crença<br />
inspirada em Joseph Campbell. O homem é, potencialmente, o herói<br />
que procura vencer a banalidade e realizar a sua transcendência, a<br />
sua excelência, a sua virtude, a sua aretê. A necessidade do homem é<br />
cumprir com plenitude a sua potência, as suas possibilidades e<br />
potencialidades.
O homem se transforma e transforma o mundo, através da ação<br />
criativa. A natureza humana é essencialmente criadora, e aí está a<br />
sua liberdade e a sua força de transformação. Mas, como dizia<br />
Spinoza, em cuja fonte Dora também se alimentava, esse caminho só<br />
se realiza através do “Magnum Labore”, através do esforço pessoal e<br />
da introdução no mundo da medida humana, de um universo de<br />
sentido e de valores.<br />
Dora é a representante de uma época que parece ter terminado. Uma<br />
época na qual o conhecimento profundo era valorizado e o saber e a<br />
experiência dos que conhecem profundamente, daqueles que amam a<br />
sabedoria, os verdadeiros mestres. Uma época de pessoas devotadas<br />
ao amor pelo conhecimento, que percebiam a vida como plena de<br />
significado, de possibilidades de realização do homem em harmonia<br />
consigo mesmo e com o mundo.<br />
O que observamos, atualmente é a banalização do conhecimento. O<br />
saber buscado é o aparente, superficial, ou o conhecimento rápido<br />
que instrumentalize tecnicamente, com a exclusiva finalidade<br />
profissional. O homem vive atualmente em um universo despido dos<br />
valores fundamentais e carente de sentido.<br />
O que se assiste hoje é a inversão dos valores humanos, uma crise do<br />
humanismo com o reinado da objetividade e da tecnificação. Na vida<br />
contemporânea, a atividade prática e utilitária é prioritária, não<br />
sobra espaço para o cultivo da humanidade do homem.<br />
Não existe mais espaço para o humanismo, nem para o cuidado das<br />
humanidades, consideradas sem objetividade. Os lugares de<br />
encontros, para a reunião de pessoas com interesses culturais e<br />
humanísticos se esvaziaram, o público se tornou escasso.<br />
Não existem mais encontros como os da casa de Dora.
As identificações que levaram Inês<br />
você a compartilhar com Dora a<br />
escrita. As cumplicidades estéticas de<br />
mãe para filha.<br />
Ser filha de Vicente Ferreira da Silva e Dora Ferreira da Silva, duas<br />
pessoas excepcionais, evidentemente é motivo de orgulho, mas<br />
também gera certo peso, em função das expectativas das pessoas em<br />
relação a mim. Meu caminho foi diferente do deles, e tenho<br />
essencialmente para com os dois um sentimento de filha, de tê-los<br />
amado como pais e de ter sido muito amada por ambos.<br />
Sistematicamente minha mãe lia seus poemas para mim, e queria<br />
saber minha opinião. Eu me identificava com os menos eruditos.<br />
Gosto muito de “Praça com árvore”.<br />
Na praça Jorge de Lima<br />
há uma árvore sozinha;<br />
em seus ramos vê-se o vento<br />
movendo as folhas;<br />
e os pássaros<br />
movendo as folhas e o vento.<br />
Jorge de Lima no centro<br />
era excessivo na sala.<br />
Por si se abriam janelas<br />
para seus poemas passarem.<br />
A voz macia abrigava<br />
as penas de muitos poemas<br />
nascidos de alma e vento.<br />
Quem passa na praça agora<br />
vê um círculo pequeno;<br />
no centro, ergue-se a árvore,<br />
em seus ramos vê-se o vento<br />
movendo as folhas;<br />
e os pássaros<br />
movendo as folhas e o vento.
Dora Ferreira da Silva. Reprodução<br />
O texto que escrevi para o Appassionata foi um depoimento sobre o<br />
período em que estava profundamente envolvida na publicação dos<br />
três últimos trabalhos inéditos de minha mãe. Após o lançamento de<br />
Transpoemas, o que se seguiu foi um sentimento de desamparo, e de<br />
falta absoluta de interlocução. O IMS tornou-se uma instituição<br />
cultural distante e despersonalizada com a saída do Franceschi, e<br />
quanto à publicação do meu livro, mencionada também no<br />
depoimento a que você se refere, é uma promessa sem prazo para<br />
ser cumprida.<br />
Com certeza ela era minha maior incentivadora, e nunca mais<br />
encontrei alguém que se dispusesse a me ajudar, seja na seleção dos<br />
poemas, na sua organização, dando opiniões ou quem sabe se<br />
dispondo a ler o material para escrever um prefácio ou uma<br />
apresentação do trabalho. Fiz uma tentativa, mas a resposta foi<br />
negativa. Não tentei novamente. Como também não disponho de<br />
recursos para fazer uma edição, parei.
Entre 2006 e 2008 o Instituto<br />
Moreira Salles deu ao público três<br />
inéditos de Dora. Inês revela que há<br />
entre os manuscritos inéditos e fala<br />
sobre o que vem sendo feito para<br />
ampliar a divulgação da obra da<br />
poeta.<br />
Há uma série ainda inédita chamada Pássara. Encontrei, num<br />
pequeno caderno artesanal, um conto ilustrado por ela mesma,<br />
chamado A Casa e a Tenda, e existem alguns poemas dispersos.<br />
Em minha opinião, está mais do que na hora de fazer uma publicação<br />
sobre Dora Ferreira da Silva, nos moldes dos Cadernos de Literatura<br />
que o IMS fez. É inegável a qualidade dessa coleção, que além de<br />
textos reúne diversos outros materiais como fotografias,<br />
depoimentos e correspondências. Há muito material disponível de<br />
minha mãe espalhado em revistas, no próprio acervo do IMS, jornais,<br />
mas o que falta é uma iniciativa para reunir e produzir essa edição.<br />
Existem teses de mestrado e doutorado sobre Dora Ferreira da Silva<br />
em andamento, em Minas Gerais e em Campinas. Ela recebeu<br />
premiações de destaque como três Jabutis e o Prêmio Machado de<br />
Assis, mas esse reconhecimento a que você se refere, talvez esteja<br />
mais ligado a uma disseminação de sua obra, ou até mesmo, a sua<br />
popularização. Alguns poemas seus foram inseridos em coletâneas,<br />
como a da Boa Companhia/Poesia, da Companhia das Letras, e na<br />
coleção Como e Por Que Ler – A Poesia Brasileira do Século XX, da<br />
editora Objetiva. Um de seus trabalhos foi selecionado para compor<br />
o volume Os cem melhores poemas brasileiros do século, organizado<br />
por Ítalo Moriconi, também da editora Objetiva. Essa forma de<br />
divulgação é bem interessante, no sentido de fazer com que o<br />
trabalho do poeta atinja um público maior. Mas em minha opinião,<br />
esta é uma tarefa demorada, que será realizada através de muitas<br />
mãos, muitos amigos e admiradores de sua obra. Quem sabe através<br />
das universidades e editoras surjam outras oportunidades... De<br />
minha parte, estou sempre aberta e interessada em tornar minha<br />
mãe uma “poeta conhecida”.
Dora Ferreira da Silva. Reprodução.<br />
O Centro Cultural São Paulo promoveu em 2007 "Lilás - Mulheres de<br />
Todas as Artes", um ciclo de conversas sobre o papel da mulher na<br />
produção cultural brasileira. Em sua abertura foi feita uma<br />
homenagem à Dora Ferreira da Silva e eu fui convidada a dar um<br />
depoimento. Transcrevo abaixo um trecho do texto que li, e que<br />
divertiu bastante o público presente, principalmente os que me<br />
conheciam e também à minha mãe.<br />
Tínhamos nossas diferenças, porque em certos aspectos<br />
éramos de fato, muito diferentes. Minha mãe sempre foi<br />
muito vaidosa, e adorava sedas. Eu sou uma adepta<br />
contumaz do algodão. Quando íamos ao Shopping, eu<br />
ficava indignada com os preços das lojas em que ela<br />
entrava. Certa vez, eu disse em alto e bom som que
deveria ser colocada uma bomba numa loja em que ela<br />
estava experimentando uma blusa. A vendedora ficou<br />
perplexa. Depois que saímos de lá, demos boas risadas<br />
de minhas fantasias terroristas.<br />
Dora Ferreira da Silva<br />
em foto de estúdio. São<br />
Paulo, 26 março de<br />
1946.<br />
De certa maneira, este fato ilustra não apenas nossos gostos, mas<br />
nossa forma de viver. É importante destacar que sempre nos<br />
respeitamos, e jamais quisemos convencer uma à outra de qualquer<br />
coisa. A riqueza de nossa relação residia justamente nessas<br />
diferenças, que eram compartilhadas com riso e amor.
Inês poeta,<br />
um inédito<br />
Baía de Castelhanos<br />
Canoas atentas vigiam.<br />
É hora de ganhar o peixe,<br />
garimpar a vida furtiva<br />
sob a jazida do mar.<br />
Há cardumes de peixes-galo,<br />
lulas, cações e espadas,<br />
há cercos cravados nas pedras<br />
e redes na urgência da espera.<br />
Gaivotas chamam:<br />
lancem as garateias – venham<br />
brincar!<br />
No mato,<br />
o legado agarra-se ao musgo<br />
o monjolo soca o milho<br />
ébrios, os náufragos cantam<br />
respondem bem-te-vis<br />
e um coro de sabiás.<br />
Longe do rugido da cidade<br />
gira a roda da farinha<br />
floresce a paina da mata,<br />
a infância, o que vem da terra,<br />
as crias.....
©Rubem Bianchi
OS CONVIDADOS<br />
Alexandre Bonafim Belizário<br />
Possui graduação em Licenciatura Plena em Letras pelo Centro Universitário<br />
Claretiano de Batatais (2001). É especialista em Fundamentos da Crítica<br />
Literária (2002) e mestre em Estudos Literários, ambos pela Universidade<br />
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Araraquara (2006). É doutor em<br />
Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é<br />
professor adjunto de Literaturas de Língua Portuguesa da Universidade<br />
Estadual de Goiás, unidade de Morrinhos. Tem experiência na área de<br />
Letras, com ênfase em Literatura Portuguesa e Brasileira, atuando<br />
principalmente nos seguintes seguimentos: poesia portuguesa, literatura<br />
portuguesa, literatura brasileira, poesia brasileira.<br />
Donizete Galvão<br />
Nasceu em Borda da Mata, Minas Gerais, Brasil, em 1955. Publicou Azul<br />
navalha (T.A. Queroz, Editor, 1988), As faces do rio (Água Viva Editores,<br />
1991), Do silêncio da pedra (Arte Pau-Brasil, 1996), A carne e o<br />
tempo (Nankin Editorial, 1997), Ruminações (Nankin Editorial, 1999), Mundo<br />
mudo (Nankin Editorial, 2003). Tem trabalhos publicados nos principais<br />
jornais e revistas do Brasil, entre eles Folha de S. Paulo, Poesia Sempre,<br />
Dimensão, Inimigo Rumor e Cult. Publicou também nas revistas Babel<br />
(Venezuela), Blanco Móvil (México), Matérika (México), tsé-tsé (Argentina),<br />
Anto (Portugal) e Helicóptero (México/USA), entre outras.<br />
Soares Feitosa<br />
Nasceu em 1944, Ipu, Ceará. Foi jornalista na juventude, em Fortaleza;<br />
caixeiro-viajante no Piauí; depois funcionário do Banco do Brasil. Viveu no<br />
Recife de 1980 a 1994. Transferido para Salvador, divide hoje residência<br />
entre as três grandes capitais nordestinas. Em 1993, às vésperas do meio<br />
século de vida, escreveu seu primeiro poema. Em 1996 iniciou a publicação<br />
artesanal do livro Réquiem em Sol da Tarde. Ainda em 1996, fundou, na<br />
Internet, o Jornal de Poesia. Em 1997 publica o seu primeiro livro.<br />
Inês Ferreira da Silva Bianchi<br />
Nasceu em São Paulo em 1953. Formada em Psicologia pela Pontifícia<br />
Universidade Católica de São Paulo. Tem especialização em Gestalt no<br />
Instituto Sedes Sapientieae e trabalhou por duas décadas como<br />
psicoterapeuta em consultório particular. Foi perita judicial em Varas de<br />
Família e atuou na Casa da Mulher, instituição que apoia mulheres em<br />
situação de risco doméstico. Editou com sua mãe, a poeta Dora Ferreira da<br />
Silva a revista Cavalo Azul. Atualmente mora em Ilhabela onde conduz o<br />
espaço cultural Pés no Chão.
AGRADECIMENTOS<br />
Ao Instituto Moreira Salles pelo acesso ao arquivo de Dora Ferreira da<br />
Silva e pela parceria para esta edição.<br />
À Revista Colóquio/Letras da Fundação Calouste Gulbenkian pela<br />
cessão do texto de Euryalo Cannabrava reproduzido neste número na<br />
sessão entremeio e dos poemas de Dora Ferreira da Silva.<br />
À Inês Ferreira da Silva Bianchi pela disponibilidade e<br />
acompanhamento no processo de informações sobre o acervo de sua<br />
mãe Dora Ferreira da Silva e pela cessão dos arquivos reproduzidos<br />
na sessão inéditos.<br />
Ao Alexandre Bonafim Belizário pelo texto inédito sobre a obra de<br />
Dora Ferreira da Silva e pelo poema publicado na sessão Um caderno<br />
para Dora; nesse mesmo rol, ao Donizete Galvão e ao Soares Feitosa.<br />
À todos que enviaram material para o caderno-revista.
<strong>7faces</strong><br />
caderno-revista de poesia<br />
set7aces.blogspot.com<br />
O caderno-revista de poesia <strong>7faces</strong> é uma produção semestral independente<br />
projetada, diagramada e editada pelo poeta Pedro Fernandes.<br />
Organização desta edição<br />
Pedro Fernandes<br />
Convidados para esta edição<br />
Alexandre Bonafim Felizardo<br />
Donizete Galvão<br />
Soares Feitosa<br />
Inês Ferreira da Silva Bianchi<br />
Colaboradores (por ordem de apresentação)<br />
Ricardo Dantas<br />
Davi Araújo<br />
Tiago Duarte Dias<br />
Adriano Winter<br />
Guerá Fernandes<br />
Joice Berth<br />
Marco Polo Guimarães<br />
Ianê Mello<br />
Pedro Belo Clara<br />
Rosane Carneiro<br />
Carina Carvalho<br />
Paulo Lima<br />
Natalia Turini<br />
Luiz Garcia<br />
Paula Cajaty<br />
Nuno Júdice<br />
Amosse Muscavele<br />
Carlos Margarido<br />
Amélia Luz<br />
Paulo Vitor Grossi<br />
Renata Bomfim<br />
Agradecimentos<br />
A todos que enviaram material para a ideia e em especial a Claudicélio Rodrigues da<br />
Silva e Ítalo Meneghetti que se dispuseram a escrever sobre Salgado Maranhão.<br />
Contato<br />
Pelo correio eletrônico do editor, pedro.letras@yahoo.com.br, ou através<br />
do correio eletrônico da redação revistasetefaces@ymail.com<br />
<strong>7faces</strong>. Caderno-revista de poesia.<br />
Natal – RN. Ano 3. Edição n. 6. Jul.-Dez. 2012.<br />
ISSN 2177-0794<br />
Licença Creative Commons.<br />
Distribuição eletrônica e gratuita. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos<br />
em quaisquer mídias, desde que seja preservada a face de seus respectivos autores e<br />
não seja para utilização com fins lucrativos.<br />
Os textos aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos<br />
autores e fica disponível para download em set7aces.blogspot.com<br />
O editor deste caderno-revista é isento de toda e qualquer informação que tenha<br />
sido prestada de maneira equivocada por parte dos autores aqui publicados,<br />
conforme declaração enviada por cada um dos autores e arquivadas no sistema<br />
<strong>7faces</strong>.
Capa/Contracapa: Cláudio Cretti. Sem título. 35×45 cm – Tinta óleo e<br />
grafite em pó sobre pergaminho – 2012<br />
Claudio Cretti nasceu em 1964 em Belém, PA. Com menos de um ano,<br />
muda-se com a família para Pirassununga, interior de São Paulo, cidade<br />
onde vive até os quinze anos Em 1979, vai morar em São Paulo. Dois anos<br />
depois, ingressa na escola técnica IADE — Instituto de Arte e Decoração,<br />
iniciando um período de formação que vai determinar a sua escolha<br />
definitiva pela arte. Nessa época, estabelece frutíferas relações com<br />
professores como Lenora de Barros, Guto Lacaz e Cássio Michalani, entre<br />
outros. Principiou Artes Plásticas na Escola de Belas Artes, mas abandonou o<br />
curso antes do término do primeiro ano. Em 1985 realizou trabalhos com o<br />
Grupo Ponkã, encabeçado por Paulo Yutaka. Atuou no espetáculo O próximo<br />
Capítulo e concebe a performance Criptoprismática, apresentada no III Salão<br />
Paulista de Arte Contemporânea, no qual recebe o Prêmio Estímulo, na<br />
Pinacoteca do Estado e na Funarte, em São Paulo. Depois, trabalhou no<br />
espetáculo Bodas de Sangue, de García Lorca, com o grupo Dramáticos.<br />
Paralelamente, começou a desenhar com regularidade, enviando trabalhos<br />
para salões. Além disso, estudou medicina oriental e formou-se massagista<br />
na Associação de Massagistas Orientais. Depois de várias mostras e da<br />
exposição individual Luz de ouvido foi ser professor na Escola da Vila, em<br />
São Paulo, onde se mantém até hoje.<br />
Arte interna a partir de Maurício Nogueira. Sem título<br />
Maurício Nogueira Lima nasceu no Recife (PE) em 1930 e morreu em<br />
Campinas (SP) em 1999. Pintor, arquiteto, desenhista, artista<br />
gráfico, professor. Estudou Artes Plásticas entre 1947 e 1950 no Instituto de<br />
Belas Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, em<br />
Porto Alegre. Frequentou os cursos de comunicação visual, desenho<br />
industrial e propaganda no Instituto de Arte Contemporânea do Museu de<br />
Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – MASP. Em 1953, integrou o Grupo<br />
Ruptura. Estuda arquitetura na Universidade Presbiteriana Mackenzie, em<br />
São Paulo, entre 1953 e 1957. EM 1960, realiza as primeiras grandes<br />
instalações ambientais para indústrias automobilísticas no Salão do<br />
Automóvel. A partir de 1974, leciona, entre outras escolas, na Faculdade de<br />
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU/USP, onde<br />
conclui mestrado e doutorado na área de estruturas ambientais urbanas.<br />
Nas décadas de 1980 e 1990, realiza diversos trabalhos em espaços públicos,<br />
como a praça Roosevelt, largo São Bento, estações de metrô e no elevado<br />
Costa e Silva, todos em São Paulo.<br />
As imagens desta edição foram coletadas da internet e nos casos identificáveis cita<br />
a fonte de todas as obras aqui disponibilizadas. Em caso de violação de direitos,<br />
mau uso, uso inadequado ou erro entrar em contato; nos comprometemos a<br />
atender as exigências no prazo legal de 72 horas contadas do momento em que<br />
tomarmos conhecimento da notificação.<br />
Para participar da ideia, deve o poeta consultar o espaço<br />
set7aces.blogspot.com, para ler as regulagens e enviar o material; ou<br />
solicitar ao editor através do contato pedro.letras@yahoo.com.br o envio<br />
das regulagens.
é preciso que venha o impreciso<br />
inesperado como a rosa<br />
ou como o rio<br />
o poema necessário<br />
Dora Ferreira da Silva, Andanças<br />
Selo Letras in.verso e re.verso