Ricardo Reis - Obra Poetica e em Prosa.pdf - Sistema Afinando as ...
Ricardo Reis - Obra Poetica e em Prosa.pdf - Sistema Afinando as ...
Ricardo Reis - Obra Poetica e em Prosa.pdf - Sistema Afinando as ...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
<strong>Ricardo</strong> <strong>Reis</strong><br />
Ao longe os montes têm neve ao sol,<br />
M<strong>as</strong> é suave já o frio calmo<br />
Que alisa e agudece<br />
Os dardos do sol alto.<br />
Hoje, Neera, não nos escondamos,<br />
Nada nos falta, porque nada somos.<br />
Não esperamos nada<br />
E t<strong>em</strong>os frio ao sol.<br />
M<strong>as</strong> tal como é, goz<strong>em</strong>os o momento,<br />
Solenes na alegria lev<strong>em</strong>ente,<br />
E aguardando a morte<br />
Como qu<strong>em</strong> a conhece.<br />
16-6-1914<br />
<strong>Ricardo</strong> <strong>Reis</strong><br />
Para ser grande, sê inteiro: nada<br />
Teu exagera ou exclui.<br />
Sê todo <strong>em</strong> cada coisa. Põe quanto és<br />
No mínimo que fazes.<br />
Assim <strong>em</strong> cada lago a lua toda<br />
Brilha, porque alta vive.<br />
14-2-1933<br />
<strong>Ricardo</strong> <strong>Reis</strong><br />
Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo,<br />
E ao beber n<strong>em</strong> recorda<br />
Que já bebeu na vida,<br />
Para qu<strong>em</strong> tudo é novo<br />
E imarcescível s<strong>em</strong>pre.
Coro<strong>em</strong>-no pâmpanos, ou her<strong>as</strong>, ou ros<strong>as</strong> volúteis,<br />
Ele sabe que a vida,<br />
P<strong>as</strong>sa por ele e tanto<br />
Corta à flor como a ele<br />
De Átropos a tesoura.<br />
M<strong>as</strong> ele sabe fazer que a cor do vinho esconda isto,<br />
Que o seu sabor orgíaco<br />
Apague o gosto às hor<strong>as</strong>,<br />
Como a uma voz chorando<br />
O p<strong>as</strong>sar d<strong>as</strong> bacantes.<br />
E ele espera, contente qu<strong>as</strong>e e bebedor tranquilo,<br />
E apen<strong>as</strong> desejando<br />
Num desejo mal tido<br />
Que a abominável onda<br />
O não molhe tão cedo.<br />
19-6-1914<br />
<strong>Ricardo</strong> <strong>Reis</strong><br />
V<strong>em</strong> sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.<br />
Sossegadamente fit<strong>em</strong>os o seu curso e aprendamos<br />
Que a vida p<strong>as</strong>sa, e não estamos de mãos enlaçad<strong>as</strong>.<br />
(Enlac<strong>em</strong>os <strong>as</strong> mãos.)<br />
Depois pens<strong>em</strong>os, crianç<strong>as</strong> adult<strong>as</strong>, que a vida<br />
P<strong>as</strong>sa e não fica, nada deixa e nunca regressa,<br />
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,<br />
Mais longe que os deuses.<br />
Desenlac<strong>em</strong>os <strong>as</strong> mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.<br />
Quer goz<strong>em</strong>os, quer não goz<strong>em</strong>os, p<strong>as</strong>samos como o rio.<br />
Mais vale saber p<strong>as</strong>sar silenciosamente<br />
E s<strong>em</strong> des<strong>as</strong>sosegos grandes.<br />
S<strong>em</strong> amores, n<strong>em</strong> ódios, n<strong>em</strong> paixões que levantam a voz,<br />
N<strong>em</strong> invej<strong>as</strong> que dão movimento d<strong>em</strong>ais aos olhos,<br />
N<strong>em</strong> cuidados, porque se os tivesse o rio s<strong>em</strong>pre correria,<br />
E s<strong>em</strong>pre iria ter ao mar.<br />
Am<strong>em</strong>o-nos tranquilamente, pensando que podíamos,<br />
Se quiséss<strong>em</strong>os, trocar beijos e abraços e caríci<strong>as</strong>,<br />
M<strong>as</strong> que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro<br />
Ouvindo correr o rio e vendo-o.<br />
Colhamos flores, pega tu nel<strong>as</strong> e deixa-<strong>as</strong>
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —<br />
Este momento <strong>em</strong> que sossegadamente não cr<strong>em</strong>os <strong>em</strong> nada,<br />
Pagãos inocentes da decadência.<br />
Ao menos, se for sombra antes, l<strong>em</strong>brar-te-ás de mim depois<br />
S<strong>em</strong> que a minha l<strong>em</strong>brança te arda ou te fira ou te mova,<br />
Porque nunca enlaçamos <strong>as</strong> mãos, n<strong>em</strong> nos beijamos<br />
N<strong>em</strong> fomos mais do que crianç<strong>as</strong>.<br />
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,<br />
Eu nada terei que sofrer ao l<strong>em</strong>brar-me de ti.<br />
Ser-me-ás suave à m<strong>em</strong>ória l<strong>em</strong>brando-te <strong>as</strong>sim — à beira-rio,<br />
Pagã triste e com flores no regaço.<br />
12-6-1914<br />
Fernando Pessoa, <strong>Obra</strong> Poética e <strong>em</strong> <strong>Prosa</strong>, ed. António Quadros. Porto, Lello & Irmão, 1986.