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Marina da Silva Bordin (UFSM) - Revista Ao Pé da Letra

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A influência do meio em<br />

O Crime do Padre Amaro<br />

<strong>Marina</strong> <strong>da</strong> <strong>Silva</strong> <strong>Bordin</strong> *<br />

Universi<strong>da</strong>de Federal de Santa Maria<br />

Resumo:<br />

Este trabalho se propõe a analisar a influência do meio social sobre o indivíduo no romance de<br />

tese O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. Esse aspecto é trabalhado, principalmente, levando-se<br />

em consideração as influências sofri<strong>da</strong>s pelos protagonistas dessa obra, Amaro e Amélia. A socie<strong>da</strong>de<br />

corrupta, <strong>da</strong> qual eles fazem parte, é fun<strong>da</strong>mental para determinar o destino de ambos: a morte de<br />

Amélia e o final hipócrita de Amaro.<br />

Segundo Massaud Moisés (1999:166), os adeptos de Taine condicionavam a<br />

obra de arte ao ambiente, à herança, e ao momento. Dessa forma, entendiam que<br />

todo ser vivo estaria à mercê <strong>da</strong>s mesmas leis universais que regem os seres inanimados,<br />

de modo que o homem estaria submetido às condições gerais de vi<strong>da</strong> existentes<br />

no planeta. Esse condicionamento <strong>da</strong> obra de arte ao influxo do meio, <strong>da</strong> raça e do<br />

momento chamou-se teoria determinista. Dentre os três aspectos que compõem essa<br />

teoria, optou-se por observar a influência do meio social sobre o indivíduo em O<br />

Crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós, sem porém aderir a tal ideologia. Trata-se,<br />

somente, de verificar a eficácia de uma construção ficcional .<br />

1.Amaro, Amélia e o Ambiente<br />

Amaro e Amélia, desde a infância, são cercados por um ambiente impregnado<br />

de uma religiosi<strong>da</strong>de deturpa<strong>da</strong>. O que é pregado pela palavra dos seguidores <strong>da</strong><br />

Igreja não é respeitado pelos atos dos próprios pregadores e os padres subvertem os<br />

valores éticos do Catolicismo a fim de se beneficiarem. Esse meio corrompido vai<br />

criar os protagonistas, deformá-los e será decisivo para o final que se ajusta a eles. O<br />

ambiente mol<strong>da</strong> esses dois personagens como um artista dá forma ao barro e o transforma<br />

numa obra que pode retratar o seu tempo, o seu povo. Amaro e Amélia (que,<br />

aliás, também vêm do barro, segundo os preceitos do Catolicismo) parecem igualmente<br />

ser a representação de uma socie<strong>da</strong>de hipócrita, pois ambos fingem possuir<br />

virtudes que não têm.<br />

1.1 O A<strong>da</strong>ptado Amaro<br />

Amaro, aos seis anos, perde os pais e é adotado por uma marquesa beata que<br />

tem um respeito devoto pelos padres de S. Luís e está sempre preocupa<strong>da</strong> com os<br />

interesses <strong>da</strong> Igreja. Ele vive em uma casa com capela, freqüenta<strong>da</strong> por padres, onde<br />

a mo<strong>da</strong> é tão cultua<strong>da</strong> quanto a religião. Esse meio não é modesto e simples (como o<br />

* Texto resultado de trabalho realizado na disciplina de Literatura Portuguesa II, sob orientação <strong>da</strong> Prof. Ms. do<br />

Departamento de <strong>Letra</strong>s Vernáculas <strong>da</strong> <strong>UFSM</strong>, Eni de Paiva Celidonio.<br />

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pregado por Cristo), onde o vestir é unicamente uma necessi<strong>da</strong>de, mas, ao contrário,<br />

é cercado pela vai<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s filhas <strong>da</strong> marquesa 1 :<br />

“As suas duas filhas, educa<strong>da</strong>s no receio do céu e nas preocupações<br />

<strong>da</strong> Mo<strong>da</strong>, eram beatas e faziam o chique falando com igual<br />

fervor <strong>da</strong> humil<strong>da</strong>de cristã e do último figurino de Bruxelas. Um<br />

jornalista de então dissera delas: - Pensam todos os dias na toalete<br />

com que hão-de entrar no Paraíso.<br />

No isolamento de Carcavelos, naquela quinta de alame<strong>da</strong>s aristocráticas<br />

onde os pavões gritavam, as duas meninas enfastiavam-se.<br />

A Religião, a Cari<strong>da</strong>de eram então ocupações avi<strong>da</strong>mente aproveita<strong>da</strong>s:<br />

cosiam vestidos para os pobres <strong>da</strong> freguesia, bor<strong>da</strong>vam frontais<br />

para os altares <strong>da</strong> igreja. De Maio a Outubro estavam inteiramente<br />

absorvi<strong>da</strong>s pelo trabalho de salvar a sua alma; liam os livros<br />

beatos e doces; como não tinham S. Carlos, as visitas, a Aline, recebiam<br />

os padres e cochichavam sobre a virtude dos santos. Deus era<br />

o seu luxo de Verão.” (p.30)<br />

A religião é apenas um passatempo para as meninas que, no isolamento de um<br />

Portugal que dorme às margens do Tejo, sonham com os centros <strong>da</strong> mo<strong>da</strong> européia. A<br />

presença <strong>da</strong> capital <strong>da</strong> Bélgica em “figurino de Bruxelas” em detrimento de outras<br />

ci<strong>da</strong>des mais famosas <strong>da</strong> época, como Paris ou Londres, parece contribuir para a aproximação<br />

entre religião e mo<strong>da</strong>, presente em todo o fragmento, já que a ci<strong>da</strong>de de<br />

Bruxelas nasceu de uma capela erigi<strong>da</strong> numa ilha do Sena 2 . Os pares céu/Mo<strong>da</strong>, beatas/chique,<br />

humil<strong>da</strong>de cristã/figurino de Bruxelas, Paraíso/toalete demonstram, através<br />

<strong>da</strong> seleção lexical, essa relação religião/mo<strong>da</strong>, que vai culminar em Deus/luxo.<br />

Além <strong>da</strong>s filhas <strong>da</strong> marquesa, as cria<strong>da</strong>s também fazem parte <strong>da</strong> infância de<br />

Amaro, período em que ele é quase só cercado por mulheres:<br />

“As cria<strong>da</strong>s de resto feminizavam-no; achavam-no bonito, aninhavam-no<br />

no meio delas, beijocavam-no, faziam-lhe cócegas, e ele<br />

rolava por entre as saias, em contato com os corpos, com gritinhos<br />

de contentamento. Às vezes, quando a senhora marquesa saía, vestiam-no<br />

de mulher, entre grandes risa<strong>da</strong>s; ele abandonava-se, meio<br />

nu, com os seus modos lânguidos, os olhos quebrados, uma roseta<br />

escarlate nas faces. As cria<strong>da</strong>s, além disso, utilizavam-no nas suas<br />

intrigas umas com as outras: era Amaro o que fazia as queixas. Tomou-se<br />

enre<strong>da</strong>dor, muito mentiroso.” (p.31)<br />

E assim vai crescendo Amaro: envolto em um ambiente sensual (“feminizavamno”,<br />

“aninhavam-no no meio delas”, “beijocavam-no”, “rolava por entre as saias”, “em<br />

contato com os corpos”, “gritinhos de contentamento”, “vestiam-no de mulher”, “nu”,<br />

“modos lânguidos”), trazendo sempre as mãos nos bolsos, constantemente metido<br />

nos quartos <strong>da</strong>s cria<strong>da</strong>s, remexendo as gavetas, bulindo nas saias sujas, cheirando os<br />

1 A simplici<strong>da</strong>de do vestir, na Bíblia, pode ser encontra<strong>da</strong> em Mat 6.28,29: “E, quanto ao vestido, porque an<strong>da</strong>is<br />

solicitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem: não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem<br />

mesmo Salomão, em to<strong>da</strong> a sua glória se vestiu como qualquer deles.”<br />

2 Essa informação sobre a origem <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de de Bruxelas pode ser encontra<strong>da</strong> no Dicionário Enciclopédico Ilustrado<br />

Forma (1968:711).<br />

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algodões postiços, extremamente preguiçoso, e chamado pelos criados de o padreca.<br />

O jovem desenvolve um temperamento apático e passivo, e, nesse meio consagrado<br />

pela bênção do clero, “A senhora marquesa resolvera desde logo fazer entrar<br />

Amaro na vi<strong>da</strong> eclesiástica.”, pois ele estava “ já afeiçoado às coisas de capela” (p.30).<br />

A influência sofri<strong>da</strong> por Amaro para tornar-se padre fica patente:<br />

“Nunca ninguém consultara as suas tendências ou a sua vocação.<br />

Impunham-lhe uma sobrepeliz; a sua natureza passiva, facilmente<br />

dominável, aceitava-a, como aceitaria uma far<strong>da</strong>.” (p.32)<br />

Através <strong>da</strong>s expressões “natureza passiva”, “facilmente dominável”, “aceitavaa,<br />

como aceitaria uma far<strong>da</strong>.”, nota-se que Amaro a<strong>da</strong>ptava-se facilmente ao que lhe<br />

era imposto, sem contestar, sem defender os seus desejos, os seus sentimentos. Aceitava<br />

a vestidura eclesiástica assim como aceitaria o uniforme militar ou qualquer outra<br />

roupa, qualquer outra profissão. Isso demonstra que as influências que Amaro<br />

recebia eram decisivas para a determinação do seu destino.<br />

A idéia que Amaro tem de ser padre foi forma<strong>da</strong> pela convivência na casa <strong>da</strong><br />

marquesa. Segundo esse convívio, ser padre não exige sacrifícios nem lástimas, sendo<br />

uma vi<strong>da</strong> muito prazerosa:<br />

“De resto não lhe desagra<strong>da</strong>va ser padre. Desde que saíra <strong>da</strong>s rezas<br />

perpétuas de Carcavelos conservara o seu medo do Inferno, mas<br />

perdera o fervor pelos santos; lembravam-lhe porém os padres que<br />

vira em casa <strong>da</strong> senhora marquesa, pessoas brancas e bem trata<strong>da</strong>s,<br />

que comiam ao lado <strong>da</strong>s fi<strong>da</strong>lgas, e tomavam rapé em caixas de<br />

ouro; e convinha-lhe aquela profissão em que se cantam bonitas<br />

missas, se comem doces finos, se fala baixo com as mulheres, -<br />

vivendo entre elas, cochichando, sentindo-lhes o calor penetrante,<br />

- e se recebem presentes em bandejas de prata. Recor<strong>da</strong>va o padre<br />

Liset com um anel de rubi no dedo mínimo; monsenhor Saavedra<br />

com os seus belos óculos de ouro, bebendo aos goles o seu copo<br />

de Madeira. As filhas <strong>da</strong> senhora marquesa bor<strong>da</strong>vam-lhes chinelas.<br />

Um dia tinha visto um bispo que fora padre na Baia, viajara,<br />

estivera em Roma, era muito jovial; e na sala, com as suas mãos<br />

ungi<strong>da</strong>s que cheiravam a água-de-colônia, apoia<strong>da</strong>s ao castão de<br />

ouro <strong>da</strong> bengala, todo rodeado de senhoras em êxtase e cheias<br />

dum riso beato, cantava, para as entreter, com a sua bela voz” (p.32)<br />

Os interesses materias, tão condenados por Jesus Cristo 3 , são ostentados pelos<br />

próprios padres, que deveriam ser seus seguidores mais fiéis. Eles são bem tratados,<br />

recebem presentes em bandejas de prata, comem doces finos, bebem o melhor vinho<br />

e usam água-de-colônia. Nesse pequeno fragmento, a palavra “ouro” chega a ser<br />

repeti<strong>da</strong> três vezes, salientando a idéia de riqueza associa<strong>da</strong> à vi<strong>da</strong> dos padres, além<br />

<strong>da</strong> presença <strong>da</strong> pedra preciosa “rubi”. A classe social freqüenta<strong>da</strong> pelos sacerdotes<br />

(representa<strong>da</strong> pela marquesa e pelas fi<strong>da</strong>lgas) também está associa<strong>da</strong> à abastança, já<br />

3 Pode-se observar a condenação dos interesses materiais por Jesus Cristo, por exemplo, em Luc 12.22: “E disselhes:<br />

Acautelai-vos e guar<strong>da</strong>i-vos <strong>da</strong> avareza; porque a vi<strong>da</strong> de qualquer não consiste na abundância do que possui.”<br />

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que é composta por pessoas ricas, com títulos nobres. <strong>Ao</strong> contrário do que falou o<br />

padre Natário (“Para que somos nós sacerdotes de Cristo? Para exaltar os humildes e<br />

derrubar os soberbos” p.331), Amaro só pretende ser padre para viver nesse ambiente<br />

farto e rodeado de senhoras em êxtase.<br />

Quando Amaro entra no seminário, seus novos amigos falam <strong>da</strong>s sau<strong>da</strong>des <strong>da</strong><br />

existência livre que tinham deixado, <strong>da</strong>s esfolha<strong>da</strong>s cheias de cantigas e de abraços,<br />

<strong>da</strong>s ruas tortuosas e tranqüilas de onde se namoravam as vizinhas. Ladeados pelos<br />

altos muros sonolentos, invejavam todos os destinos livres, e, às vezes, falavam em<br />

fugir, antevendo balcões de tabernas onde se bebe, salas de bilhar, alcovas quentes<br />

de mulheres. Nesse ambiente, em que o seminário toma o aspecto de prisão, Amaro<br />

revolvia-se sem dormir e, no fundo <strong>da</strong>s suas imaginações e dos seus sonhos, “ardia<br />

como uma brasa silenciosa o desejo <strong>da</strong> Mulher” (p.35).<br />

Essa casa de educação e ensino, onde se preparam candi<strong>da</strong>tos para o sacerdócio,<br />

não parece conduzir seus alunos para que se devotem de alma e coração a uma<br />

causa católica. Através de vários vocábulos do texto (namoravam, tabernas, bebe,<br />

bilhar, alcova quente de mulheres), observamos que os futuros padres não possuem<br />

vocação para o ofício, já que o sacerdócio exige o desprendimento desses aspectos<br />

mun<strong>da</strong>nos.<br />

Amaro sempre a<strong>da</strong>ptou-se ao que lhe era conferido, inclusive à imposição <strong>da</strong><br />

marquesa de que ele seguisse o sacerdócio. Essa influência, sofri<strong>da</strong> quando Amaro<br />

ain<strong>da</strong> era um menino, vai causar um forte rancor no protagonista, pois sendo padre,<br />

não podia realizar o que era considerado comum aos outros homens, os “homens<br />

livres”:<br />

“que a odiava! - menos que ao outro porém, o outro que triunfava<br />

porque era um homem, tinha a sua liber<strong>da</strong>de, o seu cabelo todo, o<br />

seu bigode, um braço livre para lhe <strong>da</strong>r na rua! Repassava então a<br />

imaginação rancorosamente nas visões de felici<strong>da</strong>de do escrevente:<br />

via-o trazendo-a <strong>da</strong> igreja triunfantemente; via-o beijando-lhe o<br />

pescoço e o peito... E a estas idéias <strong>da</strong>va pata<strong>da</strong>s furiosas no soalho<br />

- que assustavam a Vicência na cozinha” (p.143)<br />

O padre invejava tudo que lhe era proibido. Coisas simples nos outros homens,<br />

como o cabelo e o bigode, eram considera<strong>da</strong>s parte <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de que a ele faltava.<br />

Ter o braço livre para <strong>da</strong>r à Amélia e poder beijá-la eram possíveis para João Eduardo,<br />

que era um homem livre. Amaro era padre, e por conseguinte, era um preso.<br />

O pároco, muitas vezes, vai maldizer a influência, advin<strong>da</strong> <strong>da</strong> marquesa, que o<br />

tornou um prisioneiro <strong>da</strong> religião:<br />

“E todo o homem feio e estúpido podia ir à Rua <strong>da</strong> Misericórdia,<br />

pedi-la à mãe, vir à Sé dizer-lhe: “Senhor pároco, case-me com esta<br />

mulher”, e beijar, sob a proteção <strong>da</strong> Igreja e do Estado, aqueles<br />

braços e aquele peito! Ele não. Era padre! Fora aquela infernal pega<br />

<strong>da</strong> marquesa de Alegros!...” (p.103)<br />

“voltavam as antigas lamentações: não ser livre! não poder entrar<br />

claramente naquela casa, pedi-la à mãe, possuí-la sem pecado, como<strong>da</strong>mente!<br />

Por que o tinham feito padre? Fora “a velha pega” <strong>da</strong><br />

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marquesa de Alegros! Ele não abdicava voluntariamente a virili<strong>da</strong>de<br />

do seu peito! Tinham-no impelido para o sacerdócio como um<br />

boi para o curral!” (p.114)<br />

A incapaci<strong>da</strong>de de realizar seus desejos vai fazer com que não só a marquesa de<br />

Alegros seja responsabiliza<strong>da</strong> pelo destino de Amaro, como também a Igreja, que<br />

tinha consentido em torná-lo padre:<br />

“À idéia <strong>da</strong>quelas felici<strong>da</strong>des inacessíveis, os olhos arrasaram-selhe<br />

de lágrimas. Amaldiçoou, num desespero, “a pega <strong>da</strong> marquesa<br />

que o fizera padre”, e o bispo que o confirmara!” (p.82)<br />

“Oh! que desejo furioso de bater àquela porta <strong>da</strong> quinta, precipitarse<br />

para o quarto de Amélia, meter-lhe o pequerruchinho na cama,<br />

muito agasalhado, e todos três ficarem ali como no conchego dum<br />

céu! Mas que, era padre! Maldita fosse a religião que assim o esmagava!”<br />

(p.333)<br />

As hipocrisias do clero vão sendo descobertas por Amaro, e é através delas que<br />

ele vai conseguir realizar o desejo de possuir Amélia:<br />

“Nunca suspeitara um tal escân<strong>da</strong>lo! A S. Joaneira, a pachorrenta S.<br />

Joaneira! O cônego, seu mestre de Moral! E era um velho, sem os<br />

ímpetos do sangue novo, já na paz que lhe deveriam ter <strong>da</strong>do a<br />

i<strong>da</strong>de, a nutrição, as digni<strong>da</strong>des eclesiásticas! Que faria então um<br />

homem novo e forte, que sente uma vi<strong>da</strong> abun<strong>da</strong>nte no fundo <strong>da</strong>s<br />

suas veias reclamar e arder!... Era, pois, ver<strong>da</strong>de o que se cochichava<br />

no seminário, o que lhe dizia o velho padre Sequeira, cinqüenta<br />

anos padre <strong>da</strong> Gralheira: - “Todos são do mesmo barro!” Todos são<br />

do mesmo barro, - sobem em digni<strong>da</strong>des, entram nos cabidos, regem<br />

os seminários, dirigem as consciências envoltos em Deus como<br />

numa absolvição permanente, e têm no entanto, numa viela, uma<br />

mulher pacata e gor<strong>da</strong>, em casa de quem vão repousar <strong>da</strong>s atitudes<br />

devotas e <strong>da</strong> austeri<strong>da</strong>de do ofício, fumando cigarros de estanco e<br />

palpando uns braços rechonchudos!” (p.79)<br />

Amaro vê que seu próprio mestre de moral não respeita os bons costumes, a decência,<br />

as leis do sacerdócio. A ironia do texto faz-se presente quando coloca o mestre de<br />

moral como sendo o maior exemplo de imorali<strong>da</strong>de. O discípulo do cônego será<br />

influenciado pelo seu mestre e seguirá os seus passos como um aplicado aprendiz:<br />

“A noite caíra, com uma chuva fina. Amaro não a sentia, caminhando<br />

depressa, cheio de uma só idéia deliciosa que o fazia tremer:<br />

ser o amante <strong>da</strong> rapariga, como o cônego era o amante <strong>da</strong> mãe!<br />

Imaginava já a boa vi<strong>da</strong> escan<strong>da</strong>losa e regala<strong>da</strong>; enquanto em cima<br />

a grossa S. Joaneira beijocasse o seu cônego cheio de dificul<strong>da</strong>des<br />

asmáticas - Amélia desceria ao seu quarto, pé ante pé, apanhando<br />

as saias brancas, com um xale sobre os ombros nus... Com que<br />

frenesi a esperaria! E já não sentia por ela o mesmo amor sentimental,<br />

quase doloroso: agora a idéia muito magana dos dois padres e<br />

as duas concubinas, de panelinha, <strong>da</strong>va àquele homem amarrado<br />

pelos votos uma satisfação deprava<strong>da</strong>! Ia aos pulinhos pela rua. -<br />

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Que pechincha de casa!” (p.80)<br />

<strong>Ao</strong> contar ao cônego Dias que sabia sobre sua relação com a S. Joaneira e que,<br />

assim como o meste, também tinha uma amante, seu mestre de moral ain<strong>da</strong> tentou<br />

reprimir a falta de decoro de Amaro:<br />

“O cônego escutava-o, bamboleando a cabeça, na aceitação mu<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>quelas ver<strong>da</strong>des. Tinha-se deixado cair numa cadeira, a descansar<br />

de tanta cólera inútil; e erguendo os olhos para Amaro:<br />

-Mas você, homem, no começo <strong>da</strong> carreira!<br />

-E você, padre-mestre, no fim <strong>da</strong> carreira!” (p.257)<br />

Mas já não era possível obrigar Amaro a cumprir as regras <strong>da</strong> Igreja se o próprio<br />

mestre de moral não as respeitava. Nas faltas de seu mestre, Amaro encontrou a<br />

oportuni<strong>da</strong>de de pôr fim às suas ansie<strong>da</strong>des de consciência no julgamento dos seus<br />

próprios atos:<br />

“Desde esse dia Amaro gozou uma completa tranqüili<strong>da</strong>de de alma.<br />

Até aí incomo<strong>da</strong>va-o, por vezes, a idéia de que correspondera ingratamente<br />

à confiança, aos carinhos que lhe tinham prodigalizado<br />

na Rua <strong>da</strong> Misericórdia. Mas a tácita aprovação do cônego viera<br />

tirar-lhe, como ele dizia, aquele espinho <strong>da</strong> consciência. Porque<br />

enfim, o chefe de família, o cavalheiro respeitável, o cabeça - era o<br />

cônego. A S. Joaneira era apenas uma concubina... E Amaro mesmo,<br />

às vezes agora, em tom de galhofa, tratava o Dias de seu caro<br />

sogro.” (p.258)<br />

E o cônego Dias continuou sendo a principal influência vin<strong>da</strong> do sacerdócio e<br />

sofri<strong>da</strong> por Amaro:<br />

“Decidiu-se então a ir falar ao cônego Dias: a sua natureza fraca<br />

necessitava sempre receber forças duma razão, duma experiência<br />

alheia: costumava consultar ordinariamente o cônego que, pelo<br />

hábito <strong>da</strong> disciplina eclesiástica, ele julgava mais inteligente por<br />

ser seu superior na hierarquia; e não perdera, desde o seminário, a<br />

sua dependência de discípulo.” (p.96)<br />

Mas não seriam só as amantes de cônegos que surpreenderiam Amaro. A hipocrisia<br />

desses religiosos não se deteve apenas aos assuntos amorosos, espalhou-se<br />

para os políticos também.<br />

Através do padre Natário, receberam-se, na freguesia, cartas vin<strong>da</strong>s do Céu e assina<strong>da</strong>s<br />

pela Virgem Maria, pedindo, com promessas de salvação e ameaças do Inferno,<br />

votos para o candi<strong>da</strong>to do governo. <strong>Ao</strong> saber disso, Amaro ficou surpreendido:<br />

“- Homem! disse o abade com ingenui<strong>da</strong>de, disso é que eu cá precisava.<br />

Eu então tenho de an<strong>da</strong>r aí a estafar-me de porta em porta. -<br />

E sorrindo bondosamente: - Com o que se faz ain<strong>da</strong> alguma coisita<br />

é com o relaxe <strong>da</strong> côngrua!<br />

- E com a confissão, disse o padre Natário. A coisa então vai pelas<br />

mulheres, mas vai segura! Da confissão tira-se grande partido.<br />

O padre Amaro, que estivera calado, disse gravemente:<br />

- Mas enfim a confissão é um ato muito sério, e servir, assim para<br />

eleições...<br />

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O padre Natário, que tinha duas rosetas escarlates na face e gestos<br />

excitados, soltou uma palavra imprudente:<br />

- Pois o senhor toma a confissão a sério?<br />

Houve uma grande surpresa.<br />

- Se tomo a confissão a sério? gritou o padre Amaro recuando a<br />

cadeira, com os olhos arregalados.” (p.87)<br />

Quando o padre Natário fala que através <strong>da</strong> confissão também era possível alcançar<br />

proveitos, mais uma vez Amaro é tomado por um espanto de quem tem como<br />

ver<strong>da</strong>de absoluta tudo o que é pregado pela Igreja e pelos seus representantes. To<strong>da</strong><br />

essa hipocrisia que cerca o protagonista vai ser por ele assimila<strong>da</strong>, e fará com que<br />

Amaro perca a sua ingenui<strong>da</strong>de inicial. A transgressão de preceitos católicos será por<br />

ele atribuí<strong>da</strong> às várias classes <strong>da</strong> Igreja, à própria Igreja e até mesmo aos santos, numa<br />

generalização que demonstra a per<strong>da</strong> de confiança em relação aos preceitos católicos:<br />

“Ah! Era nos seus tempos de inocência, de exagerações piedosas e<br />

de terrores noviços! Agora tinha aberto os olhos em redor à reali<strong>da</strong>de<br />

humana. Abades, cônegos, cardeais e monsenhores não pecavam<br />

sobre a palha <strong>da</strong> estrebaria, não - era em alcovas cômo<strong>da</strong>s,<br />

com a ceia ao lado. E as igrejas não se aluíam, e S. Miguel Vingador<br />

não abandonava por tão pouco os confortos do Céu!” (p.225)<br />

Conforme o exemplo que teve, Amaro tornar-se-á mais um padre que vai obter<br />

ganhos para seu proveito pessoal através do sacerdócio:<br />

“Prometera-lhe de resto procurar outro sítio para se verem; e mesmo<br />

com o fim de a distrair, aproveitando a solidão <strong>da</strong> sacristia,<br />

mostrava-lhe às vezes os paramentos, os cálices, as vestimentas,<br />

procurando interessá-la por um frontal novo ou por uma antiga ren<strong>da</strong><br />

de sobrepeliz, provando-lhe, pela familiari<strong>da</strong>de com que tocava<br />

nas relíquias, que era ain<strong>da</strong> o senhor pároco e não perdera o seu<br />

crédito no Céu.” (p.247)<br />

Amélia foi a principal vítima <strong>da</strong> astúcia de Amaro, pois aproveitando-se <strong>da</strong> sua<br />

condição sacerdotal, ele utilizou todos os apetrechos <strong>da</strong> Igreja que podiam causar<br />

admiração ou medo em Amélia, para demonstrar autori<strong>da</strong>de.<br />

No final do romance, como auge <strong>da</strong> influência que Amaro sofreu do seu<br />

padre-mestre, o cônego Dias, eles se reencontram e Amaro conta que agora só<br />

confessa as casa<strong>da</strong>s, o que leva o cônego a se abandonar em grande hilari<strong>da</strong>de.<br />

2.2 A Ampara<strong>da</strong> Amélia<br />

A infância de Amélia também é marca<strong>da</strong> pela convivência com religiosos. <strong>Ao</strong>s<br />

oito anos, ela foi para a mestra, tacho <strong>da</strong>s freiras de Santa Joana de Aveiro, que lhe<br />

contava as histórias do convento. Esses relatos em na<strong>da</strong> lembravam uma moradia de<br />

comuni<strong>da</strong>de com escrúpulos religiosos: as perrices <strong>da</strong> escrivã; a madre rodeira, preguiçosa<br />

e pacata; a mestra de cantochão, admiradora de Bocage; e a legen<strong>da</strong> de uma<br />

freira que morrera de amor.<br />

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Nas histórias remotas e na reali<strong>da</strong>de próxima, estava sempre a cingir Amélia,<br />

como o próprio ar que ela respirava, a presença de pessoas que se julgavam religiosas:<br />

“A mama era muito visita<strong>da</strong> por padres. O chantre Carvalhosa, um<br />

homem velho e robusto, que soprava de asma ao subir a esca<strong>da</strong> e<br />

tinha uma voz fanhosa, vinha todos os dias, como amigo <strong>da</strong> casa.<br />

Amélia chamava-lhe padrinho. Quando ela voltava <strong>da</strong> mestra, à tarde,<br />

encontrava-o sempre a palestrar com a mãe, na sala, de batina<br />

desabotoa<strong>da</strong>, deixando ver o longo colete de veludo preto com<br />

raminhos bor<strong>da</strong>dos a amarelo. O senhor chantre perguntava-lhe<br />

pelas lições e fazia-a dizer a tabua<strong>da</strong>.<br />

À noite havia reuniões: vinha o padre Valente; o cônego Cruz; e um<br />

velhito calvo, de perfil de pássaro, com óculos azuis, que fora frade<br />

franciscano e a quem chamavam frei André. Vinham as amigas<br />

<strong>da</strong> mãe, com as suas meias; e um capitão Couceiro, de caçadores,<br />

que tinha os dedos negros do cigarro e trazia sempre a sua viola.<br />

Mas às nove horas man<strong>da</strong>vam-na deitar; pela frincha do quarto ela<br />

via a luz, ouvia as vozes; depois fazia-se um silêncio, e o capitão,<br />

repenicando a guitarra, cantava o lundum <strong>da</strong> Figueira.” (p.59)<br />

O fragmento acima demonstra a freqüência com que Amélia era visita<strong>da</strong> por<br />

padres e que esse convívio foi capaz de estipular horários para determina<strong>da</strong>s ocupações.<br />

Depois <strong>da</strong>s palestras com a mestra, sobre freiras, Amélia vai para casa onde<br />

encontra padres e, até mesmo na hora de dormir, adormecia ao som <strong>da</strong>s vozes desses<br />

presbíteros do Senhor. Não só as vozes acompanhavam o crescimento de Amélia,<br />

mas, o próprio hálito do padre Valente a cercava (“Gostava de a ter entre os joelhos,<br />

torcer-lhe devagarinho a orelha, e ela sentia o seu hálito impregnado de cebola e de<br />

cigarro” p.60). Dessa forma, a proximi<strong>da</strong>de e o convívio foram formando e deformando<br />

o feitio moral <strong>da</strong> menina que “Foi assim crescendo entre padres” (p.60).<br />

A visão que Amélia tem de Deus está relaciona<strong>da</strong> a um comportamento Senhor-<br />

Servo, no qual Deus é o Senhor cruel e ela é a sua serva, que deve viver em absoluta<br />

sujeição para evitar ser castiga<strong>da</strong>. Como os padres são os representantes de Deus na<br />

terra, era a eles que ela se submetia:<br />

“Já então sabia o catecismo e a doutrina: na mestra, em casa, por<br />

qualquer “bagatela”, falavam-lhe sempre dos castigos do Céu; de<br />

tal sorte que Deus aparecia-lhe como um ser que só sabe <strong>da</strong>r o<br />

sofrimento e a morte, e que é necessário abran<strong>da</strong>r, rezando e jejuando,<br />

ouvindo novenas, animando os padres. Por isso, se às vezes<br />

ao deitar lhe esquecia uma Salve-Rainha, fazia penitência no outro<br />

dia, porque temia que Deus lhe man<strong>da</strong>sse sezões ou a fizesse cair<br />

na esca<strong>da</strong>.” (p.59)<br />

O trecho destacado acima indica a idéia de um Deus que se compraz em fazer<br />

sofrer e, ain<strong>da</strong>, que se dedicando aos padres (“animando os padres”), Amélia poderia<br />

abran<strong>da</strong>r esse Deus tão temido.<br />

A história sobre a paixão impossível entre um homem e uma freira, que fin<strong>da</strong><br />

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com a morte <strong>da</strong> mulher e o sacerdócio do homem, conta<strong>da</strong> pelo Tio Cegonha à Amélia,<br />

muito a impressionou:<br />

“Amélia todo o dia pensou naquela história. De noite veio-lhe uma<br />

grande febre, com sonhos espessos, em que dominava a figura do<br />

frade franciscano, na sombra do órgão <strong>da</strong> Sé de Évora (...). Então o<br />

sonho mu<strong>da</strong>va: era um vasto céu negro, onde duas almas enlaça<strong>da</strong>s<br />

e amantes, com hábitos de convento e um ruído inefável de beijos<br />

insaciáveis, giravam, leva<strong>da</strong>s por um vento místico; mas desvaneciam-se<br />

como névoas, e na vasta escuridão ela via aparecer um<br />

grande coração em carne viva, todo traspassado de espa<strong>da</strong>s, e as<br />

gotas de sangue que caíam dele enchiam o céu duma chuva<br />

escarlate.”(p.63)<br />

Esse fragmento mostra uma relação entre o sensualismo e o misticismo <strong>da</strong> personagem,<br />

na qual o amor ávido, defeso, veste-se em hábitos de convento e se desvanece<br />

dilacerado. Essa história vai influenciar Amélia (já então com quinze anos), quando<br />

ela descobre que Agostinho, o homem a quem ela ama, vai se casar com outra moça.<br />

Como o homem <strong>da</strong> história que decidiu fazer-se padre por não poder realizar seu<br />

amor, Amélia também pensa em tornar-se freira:<br />

“Ain<strong>da</strong> lembra<strong>da</strong> <strong>da</strong>quele moço <strong>da</strong> história do Tio Cegonha, que<br />

por amor se escondera na solidão de um convento, começou a pensar<br />

em ser freira: deu-se a uma forte devoção, manifestação exagera<strong>da</strong><br />

<strong>da</strong>s tendências que desde pequenina as convivências de padres<br />

tinham lentamente criado na sua natureza sensível; lia todo o dia<br />

livros de rezas; encheu as paredes do quarto de litografias colori<strong>da</strong>s<br />

de santos; passava longas horas na igreja, acumulando Salve-<br />

Rainhas à Senhora <strong>da</strong> Encarnação. Ouvia todos os dias missa, quis<br />

comungar to<strong>da</strong>s as semanas - e as amigas <strong>da</strong> mãe achavam-na “um<br />

modelo, de <strong>da</strong>r virtude a incrédulos” !” (p.68)<br />

O trecho “manifestação exagera<strong>da</strong> <strong>da</strong>s tendências que desde pequenina as convivências<br />

de padres tinham lentamente criado na sua natureza sensível” é outro exemplo<br />

<strong>da</strong> influência exerci<strong>da</strong> pelo meio em que vive Amélia. A forma como vê esse<br />

conjunto de elementos religiosos (rezas, igreja, missa, comunhão, etc) que a cercam<br />

vai mu<strong>da</strong>r quando ela tiver vinte e dois anos:<br />

“o que amava agora na religião e na igreja era o aparato, a festa - as<br />

belas missas canta<strong>da</strong>s ao órgão, as capas recama<strong>da</strong>s de ouro, reluzindo<br />

entre os tocheiros, o altar-mor na glória <strong>da</strong>s flores cheirosas,<br />

o roçar <strong>da</strong>s correntes dos incensadores de prata, os uníssonos que<br />

rompem briosamente no coro <strong>da</strong>s aleluias. Tomava a Sé como a sua<br />

Ópera: Deus era o seu luxo. Nos domingos de missa gostava de se<br />

vestir, de se perfumar com água-de-colônia, de se ir aninhar sobre<br />

o tapete do altar-mor, sorrindo ao padre Brito ou ao cônego<br />

Sal<strong>da</strong>nha.” (p.69)<br />

O que a encanta agora na Igreja é to<strong>da</strong> a exuberância que dela se pode aproveitar. A<br />

religião já não é o centro dos motivos que a levam ao templo cristão, o essencial, para<br />

Amélia, é a pompa, como se a Igreja se tornasse um grande salão de baile, com<br />

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ópera, padres bonitos e ela, bem vesti<strong>da</strong> e cheirosa, no centro <strong>da</strong> festa, no altar-mor.<br />

Da mesma forma que acontecia com as filhas <strong>da</strong> marquesa, Deus era o seu luxo.<br />

A influência que Amaro vai exercer sobre Amélia está relaciona<strong>da</strong> a esse poderio<br />

<strong>da</strong> Igreja e do próprio padre, que, como seu representante, utiliza-o:<br />

“Era este poder divino do padre, esta familiari<strong>da</strong>de com Deus, tanto<br />

ou mais que a influência <strong>da</strong> sua voz - que a faziam crer na promessa<br />

que ele lhe repetia sempre: que ser ama<strong>da</strong> por um padre chamaria<br />

sobre ela o interesse, a amizade de Deus; que depois de morta<br />

dois anjos viriam tomá-la pela mão para a acompanhar e desfazer<br />

to<strong>da</strong>s as dúvi<strong>da</strong>s que pudesse ter S. Pedro, chaveiro do Céu; e que<br />

na sua sepultura, como sucedera em França a uma rapariga ama<strong>da</strong><br />

por um cura, nasceriam espontaneamente rosas brancas, como prova<br />

celeste de que a virgin<strong>da</strong>de não se estraga nos braços santos dum<br />

padre...” (p.244)<br />

Para Amélia, Amaro é um representante de Deus, por isso ela não está caindo<br />

em culpa. Ela entrega-se inteiramente ao seu amor, é ampara<strong>da</strong> por ele, obedece-lhe,<br />

segue-o como os apóstolos seguiram Jesus Cristo. Ele era o seu refúgio (“Corria para a<br />

sacristia para se refugiar em Amaro” p.247), assim como a sua batina a abrigava (“abrigar-se<br />

à autori<strong>da</strong>de sagra<strong>da</strong> <strong>da</strong> sua batina” p.247). Ela simplesmente é uma “boa católica”,<br />

vai seguindo o que os religiosos do seu meio dizem, como uma pena levemente<br />

vai sendo carrega<strong>da</strong> pelo vento:<br />

“-Escuta. E a rapariga, descartando-se de ti em obediências às<br />

instruções do senhor padre fulano ou sicrano, comporta-se como<br />

uma boa católica. É o que te digo. To<strong>da</strong> a vi<strong>da</strong> do bom católico, os<br />

seus pensamentos, as sua idéias, os seus sentimentos, as suas palavras,<br />

o emprego dos seus dias e <strong>da</strong>s suas noites, as sua relações de<br />

família e de vizinhança, os pratos do seu jantar, o seu vestuário e os<br />

seus divertimentos - tudo isto é regulado pela autori<strong>da</strong>de eclesiástica<br />

(abade, bispo ou cônego), aprovado ou censurado pelo confessor,<br />

aconselhado e ordenado pelo diretor <strong>da</strong> consciência. O bom<br />

católico, como a tua pequena, não se pertence; não tem razão, nem<br />

vontade, nem arbítrio, nem sentir próprio; o seu cura pensa, quer,<br />

determina, sente por ela. O seu único trabalho neste mundo, que é<br />

ao mesmo tempo o seu único direito e o seu único dever, é aceitar<br />

esta direção; aceitá-la sem a discutir; obedecer-lhe, dê por onde<br />

der; se ela contraria as suas idéias, deve pensar que as suas idéias<br />

são falsas; se ela fere as suas afeições, deve pensar que as suas<br />

afeições são culpa<strong>da</strong>s. Dado isto, se o padre disse à pequena que<br />

não devia nem casar, nem sequer falar contigo, a criatura prova,<br />

obedecendo-lhe, que é uma boa católica, uma devota conseqüente,<br />

e que segue na vi<strong>da</strong>, logicamente, a regra moral que escolheu.<br />

Aqui está, e desculpa o sermão.” (p.182)<br />

Tudo em volta de Amélia caminhava para uma mesma direção, rumo a Amaro.<br />

As beatas com as quais Amélia convivia sempre elogiavam-no ( “- Olha para ele! É de<br />

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inspirar fervor. É a honra do clero. Não há outro!...” p.116), e depreciavam João Edurdo<br />

(“E to<strong>da</strong>s elas achavam em João Eduardo ‘um presta para na<strong>da</strong>’”! p.116), a casa sempre<br />

freqüenta<strong>da</strong> por padres, as histórias que ouviu na infância e os seus pensamentos de<br />

boa católica a conduziam ao que ela tinha aprendido desde pequena, isto é, à Igreja:<br />

“O seu cérebro de devota apenas lhe fornecia soluções devotas -<br />

entrar num recolhimento, fazer uma promessa a Nossa Senhora <strong>da</strong>s<br />

Dores “para que a livrasse <strong>da</strong>quele apuro”, ir confessar-se ao padre<br />

Silvério...” (p.135)<br />

“Era um silêncio seco, uma hostili<strong>da</strong>de gela<strong>da</strong> de divin<strong>da</strong>de ofendi<strong>da</strong>.<br />

Ela conhecia o crédito que Nossa Senhora tem nos concílios do<br />

Céu; desde pequena lho tinham ensinado; tudo o que ela deseja o<br />

obtém, como uma recompensa devi<strong>da</strong> aos seus prantos no Calvário;<br />

seu Filho sorri-lhe à sua direita, o Deus Padre fala-lhe à esquer<strong>da</strong>...<br />

E compreendia bem que para ela não havia esperança - e que alguma<br />

coisa medonha se preparava lá em cima, no Paraíso, que lhe<br />

cairia um dia sobre o corpo e sobre a alma, esmagando-a com um<br />

desabamento de catástrofe... Que seria?” (p.260)<br />

To<strong>da</strong> a devoção de boa católica, que Amélia manteve durante sua vi<strong>da</strong>, não foi suficientemente<br />

reconheci<strong>da</strong> pela Igreja. Na hora <strong>da</strong> morte, ao receber o seu último sacramento,<br />

o abade falou: “não devemos aproximar-nos duma mulher em parto ilegítimo<br />

senão num caso extremo” (p.341), demonstrando que Amélia, sempre tão ampara<strong>da</strong><br />

por padres, torna-se a mais desampara<strong>da</strong> <strong>da</strong>s mulheres, longe <strong>da</strong> mãe, de seu filho<br />

recém-nascido, de Amaro, de sua casa e de Deus.<br />

3. O bondoso Deus do Abade Ferrão (a exceção <strong>da</strong>s influências)<br />

Quando Amélia sai do seu meio habitual, para ganhar seu filho longe <strong>da</strong>s pessoas<br />

que sempre a influenciaram, ela conhece o abade Ferrão, o outro lado <strong>da</strong> Igreja<br />

Católica.<br />

O abade Ferrão não considerava Deus um ser cruel, como sempre Amélia acostumou-se<br />

a considerar:<br />

“O bom Ferrão não se moveu, atordoado. Enfim, vendo-a olhar ansiosa<br />

para ele à espera <strong>da</strong>s suas palavras e dos seus conselhos,<br />

disse:<br />

- E há muito que sente esses terrores, essas dúvi<strong>da</strong>s...?<br />

- Sempre, senhor abade, sempre!<br />

- E tem convivido com pessoas que, como a senhora, são sujeitas a<br />

essas inquietações?<br />

-To<strong>da</strong>s as pessoas que conheço, dúzias de amigas, todo o mundo...<br />

O inimigo não me escolheu só a mim... A todos se atira...” (p.294)<br />

Através desse diálogo, entre o abade e Amélia, ele pode constatar como é que<br />

muitos fiéis eram instruídos pelos seus colegas de ofício:<br />

“O abade Ferrão ficou calado um momento: sentia-se triste, pensando<br />

que por todo o reino tantos centenares de sacerdotes trazem<br />

assim voluntariamente o rebanho naquelas trevas de alma, mantendo<br />

o mundo dos fiéis num terror abjeto do Céu, representando Deus<br />

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e os seus santos como uma corte que não é menos corrompi<strong>da</strong>,<br />

nem melhor, que a de Calígula e dos seus libertos.” (p.295)<br />

A indignação do abade foi segui<strong>da</strong> por uma reestruturação <strong>da</strong> educação religiosa<br />

de Amélia que passa a conhecer um Deus bondoso e misericordioso. A interpretação<br />

do abade Ferrão mostrava todo o amor infinito de Deus e <strong>da</strong>va esperança à<br />

Amélia:<br />

“naquela suave interpretação <strong>da</strong> outra vi<strong>da</strong>, como um bom bisavô<br />

risonho; Nossa Senhora era uma irmã de cari<strong>da</strong>de; os santos, camara<strong>da</strong>s<br />

hospitaleiros! Era uma religião amável, to<strong>da</strong> banha<strong>da</strong> de graça,<br />

em que uma lágrima pura basta para remir uma existência de<br />

pecado. Que diferente <strong>da</strong> soturna doutrina que desde pequena a<br />

trazia aterra<strong>da</strong> e trêmula! Tão diferente - como aquela pequena capela<br />

de aldeia <strong>da</strong> vasta massa de cantaria <strong>da</strong> Sé. Lá, na velha Sé,<br />

muralhas <strong>da</strong> espessura de côvados separavam <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana e<br />

natural: tudo era escuridão, melancolia, penitência, faces” (p.312)<br />

Somente mu<strong>da</strong>ndo de meio, longe <strong>da</strong> sua casa infesta<strong>da</strong> de beatas e padres, é<br />

que Amélia, influencia<strong>da</strong> pelo abade Ferrão, pode repensar sobre sua vi<strong>da</strong> e descobrir<br />

o que Amaro realmente significava para ela:<br />

“Ela, com efeito, já não pensava no senhor pároco com a comoção<br />

de outrora: o terror do pecado, a influência penetrante do abade,<br />

aquela brusca separação do meio devoto em que o seu amor se<br />

desenvolvera, o gozo que sentia numa sereni<strong>da</strong>de maior, sem sustos<br />

noturnos e sem a inimizade de Nossa Senhora, tudo concorrera<br />

para que o fogo ruidoso <strong>da</strong>quele sentimento se fosse reduzindo a<br />

alguma brasa que ain<strong>da</strong> rebrilhava sur<strong>da</strong>mente. O pároco estivera<br />

ao princípio na sua alma com o prestígio dum ídolo coberto de<br />

ouro; mas tantas vezes, desde a sua gravidez, sacudira, nas horas<br />

de terror religioso ou de arrependimento histérico, aquele ídolo,<br />

que todo o dourado lhe ficara nas mãos, e a forma trivial e escura<br />

que aparecia por baixo já a não deslumbrava; viu por isso o abade<br />

derrubar-lho inteiramente, sem chorar e sem lutar.” (p.313)<br />

O que vai levar Amélia ao seu fim trágico não será mais a influência <strong>da</strong> autori<strong>da</strong>de<br />

sacerdotal de Amaro, será o prazer <strong>da</strong> carne, a única coisa que o abade Ferrão não<br />

pôde mu<strong>da</strong>r nos pensamentos de Amélia (“Se ain<strong>da</strong> pensava em Amaro, é porque não<br />

podia deixar de pensar na casa do sineiro; mas o que a tentava ain<strong>da</strong> era o prazer e<br />

não o pároco.”p.313).<br />

4. O descrente João Eduardo<br />

João Eduardo é o personagem que percebe to<strong>da</strong> a hipocrisia que rodeia Amélia.<br />

Ele teme que ela seja influencia<strong>da</strong> pelo meio beato em que vive e tenta apressar o<br />

casamento para evitar isso:<br />

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“E desejaria sobretudo apressar o casamento, para tirar Amélia <strong>da</strong>quela<br />

socie<strong>da</strong>de de beatas e padres, receando ter mais tarde uma<br />

mulher que tremesse do Inferno, passasse horas a rezar estações<br />

na Sé, e se confessasse aos padres “que arrancam às confessa<strong>da</strong>s<br />

os segredos de alcova”!” (p.116)<br />

O escrevente vivia inquieto por saber que Amaro freqüentava diariamente a<br />

casa de Amélia (“amargurava-o encontrar o pároco instalado ali to<strong>da</strong>s as noites” p.<br />

118) e porque temia que ela fosse “lentamente penetra<strong>da</strong> por aquela admiração caturra<br />

<strong>da</strong>s velhas, para quem o senhor pároco era um anjo”(p.127). Ele sabia o poder de<br />

convencimento que Amaro possuía devido ao fato de ser padre:<br />

“... Mas o perigo são certos padres novos e ajanotados, párocos por<br />

influências de condes <strong>da</strong> capital, vivendo na intimi<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s famílias<br />

de bem onde há donzelas inexperientes, e aproveitando-se <strong>da</strong><br />

influência do seu sagrado ministério para lançar na alma <strong>da</strong> inocente<br />

a semente de chamas criminosas!” (p.127)<br />

João Eduardo acreditava que Amélia, por causa do seu espírito fraco, de fácil persuasão,<br />

tinha desistido de casar com ele por influência dos padres:<br />

“Ela amava-o, decerto... Mas que, tinham-lhe dito que ele era o<br />

autor do Comunicado, que era herege, que tinha costumes devassos;<br />

o pároco, na sua voz pe<strong>da</strong>nte, ameaçara-a com o Inferno; o<br />

cônego, furioso, e todo-poderoso na Rua <strong>da</strong> Misericórdia porque<br />

<strong>da</strong>va para a panela, falara teso - e a pobre menina, assusta<strong>da</strong>, domina<strong>da</strong>,<br />

com aquele bando tenebroso de padres e de beatas a cochicharem-lhe<br />

ao ouvido, coita<strong>da</strong>, cedera! Estava talvez persuadi<strong>da</strong>,<br />

de boa-fé, que ele era uma fera! E àquela hora, enquanto ele ali<br />

an<strong>da</strong>va pelas ruas, escorraçado e desgraçado, o padre Amaro, na<br />

saleta <strong>da</strong> Rua <strong>da</strong> Misericórdia, enterrado na poltrona, senhor <strong>da</strong> casa<br />

e senhor <strong>da</strong> rapariga, de pema traça<strong>da</strong>, palrava de alto! Canalha!”<br />

(p.178)<br />

O escrevente sabia que a rapariga com a qual queria casar morava numa casa<br />

“que era mais freqüenta<strong>da</strong> por padres que a sacristia <strong>da</strong> Sé...”(p.190) e, por isso,<br />

acreditava que a carta que Amélia lhe escreveu rompendo o noivado derivou <strong>da</strong>s<br />

influências que sofria nessa casa (“ela decerto, coita<strong>da</strong>, fora leva<strong>da</strong> a escrever num<br />

terror do Inferno, sob a pressão dos padres furiosos...” p.191).<br />

O ódio que ele nutria pelos padres levá-o a perder o emprego e Amélia, pois os<br />

sacerdotes não deixam de se vingar do cético João Eduardo.<br />

5. Conclusão<br />

O crime do padre Amaro tornou-se o marco do Naturalismo na Literatura Portuguesa<br />

e, como naturalista, o escritor defende a idéia de que o homem é fruto do meio<br />

em que vive. Esse determinismo é responsável pelo amol<strong>da</strong>mento do caráter do homem.<br />

A influência do meio se sobressai nesse romance, atuando nos indivíduos, que<br />

passam a agir impulsionados por essa força irresistível. Amaro e Amélia são os protagonistas<br />

dessa situação: ele, padre sem vocação, incapaz de uma reação pessoal que<br />

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demonstrasse personali<strong>da</strong>de forte, ingressou na carreira eclesiástica visando status<br />

social; ela, totalmente identifica<strong>da</strong> com a hipocrisia em que crescera, vê a igreja<br />

como um espaço de luxo e pompa. Finalmente, ambos se deixam arrastar, sem reagir,<br />

para a paixão carnal.<br />

No final <strong>da</strong> obra, como num juízo final, Amélia fica sem o filho, sem Amaro,<br />

sem a própria vi<strong>da</strong>, enquanto o padre passa a “confessar somente mulheres casa<strong>da</strong>s”.<br />

O mal-aventurado fim de Amélia é proporcional às desgraças que ela esperava de um<br />

Deus imperioso. O futuro com muitos amores para Amaro condiz com o que ele<br />

aprendeu com o clero e se revela em harmonia com a hipocrisia do meio em que ele<br />

vive.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:<br />

ALMEIDA, João Ferreira de (Tradutor).(1969). A Bíblia Sagra<strong>da</strong>, Contendo o Velho e o<br />

Novo Testamento. Brasília –DF, Socie<strong>da</strong>de Bíblica do Brasil.<br />

Dicionário Enciclopédico Ilustrado Formar (1968), São Paulo: Editora e Encadernadora<br />

Formar Lt<strong>da</strong>. vol. II, p.711.<br />

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 30.ed. São Paulo, Cultrix.<br />

QUEIRÓS, Eça de (2000). O Crime do Padre Amaro. 15.ed. São Paulo, Ática.<br />

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