O Delfim - hora absurda IV
O Delfim - hora absurda IV
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XXII.<br />
Sentado à beira da cama, o caçador em vésperas de expedição contempla<br />
vagamente a braseira que a dona da casa mandou pôr no quarto. Pensa em tudo e em<br />
coisa nenhuma - no padre e no Engenheiro; em enguias (e a propósito de enguias num<br />
provérbio africano: «Não é por estar muito tempo no rio que o pau se faz cobra de<br />
água»); pensa no fatalismo sentimental com que fala dos animais, seus adversários na<br />
caça, e que não lhe agrada nada (acha as antropomorfizações uma bravata, acredite ou<br />
não o Padre Novo, acha um termo feio, an-tro-po-mor-fi-za-ções) e com isto tem a<br />
consciência de estar a adiar o sono. Depois, há o ruído da rua, música, e campainhas;<br />
dirige-se à janela para a fechar.<br />
Pelas vidraças descidas até meio entra o ar da noite que, percebe-se agora, vem<br />
cortado de um ligeiro travo de fumo. É bom estar assim, num quarto com borralho na<br />
braseira, e receber de frente uma aragem temperada por um fio de aroma. Excelente<br />
ideia, a da braseira. Raros caçadores terão tido tantas atenções da parte de uma formiga-<br />
mestra estalajadeira.<br />
No passeio do café alinham-se as bicicletas, cada qual com uma cesta de enguias<br />
enfiada no guiador. À porta e ao balcão os camponeses-operários fazem grupo, são<br />
inconfundíveis por trazerem samarras de gola levantada (como quando desciam a serra)<br />
e pelas calças apertadas com molas nos tornozelos. No meio deles giram os filhos e<br />
algum cachorro curioso, e todos, homens, crianças e cachorros curiosos, oscilam da<br />
penumbra da rua para a loja iluminada donde emanam a música e o vinho. Compreende-<br />
se, é a festa. Espectáculo completamente moral. Amanhã Ano Primeiro da era dos<br />
Noventa e Oito. (Li isto algures, «Espectáculo completamente moral». Anúncio de<br />
feira? Mas em que sítio e quando?) Amanhã 98-Espingarda-da-Região-98 hão-de<br />
participar nas provas da lagoa com todo o aparato dos grandes dias. Haverá romaria<br />
entre as árvores, baile e concertina - Patos, Garrios, Galeirões / & Demais Aves da<br />
Época / Cortejo de Barcaças / Cães ao gosto dos Srs. Caçadores. É a festa. O próprio<br />
Regedor acaba de fazer a sua entrada, parando à porta do café, com um rolo de papel na<br />
mão e chapéu revirado para cima, chapéu a desprender-se para distantes alturas. Viva,<br />
Regedor de largos sonhos, capitão dos Noventa e Oito.<br />
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