Sabores & Lembranças narrativas sobre alimentação, saúde e cultura

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Sabores Sabores Sabores Sabores & & & & & Lembranças Lembranças Lembranças Lembranças Lembranças narrativas sobre alimentação, saúde e cultura Mabel Imbassahy Shirley Donizete Prado Andrea Estevam de Amorim (Organizadoras) Myriam Lanna Augusta Alvaralhão Josepha Soares Wilson Soares Rio de Janeiro, 2006 CRDE UnATI UERJ ISBN 85-8797-14-4

<strong>Sabores</strong> <strong>Sabores</strong> <strong>Sabores</strong> <strong>Sabores</strong> & & & & & <strong>Lembranças</strong> <strong>Lembranças</strong><br />

<strong>Lembranças</strong><br />

<strong>Lembranças</strong><br />

<strong>Lembranças</strong><br />

<strong>narrativas</strong> <strong>sobre</strong><br />

<strong>alimentação</strong>, <strong>saúde</strong> e <strong>cultura</strong><br />

Mabel Imbassahy<br />

Shirley Donizete Prado<br />

Andrea Estevam de Amorim<br />

(Organizadoras)<br />

Myriam Lanna<br />

Augusta Alvaralhão<br />

Josepha Soares<br />

Wilson Soares<br />

Rio de Janeiro, 2006<br />

CRDE UnATI UERJ<br />

ISBN 85-8797-14-4


Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

Reitor: Nival Nunes de Almeida<br />

Vice-Reitor: Ronaldo Lauria<br />

Sub-Reitora de Graduação: Raquel Marques Villardi<br />

Sub-Reitora de Pós-graduação e Pesquisa: Albanita Viana de Oliveira<br />

Sub-Reitora de Extensão e Cultura: João Regazzi Gerk<br />

Universidade Aberta da Terceira Idade<br />

Direção: Renato Peixoto Veras<br />

Vice-Direção: Célia Pereira Caldas<br />

Centro de Referência e Documentação <strong>sobre</strong> Envelhecimento<br />

Coordenação: Célia Pereira Caldas<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

2


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

CRDE UnATI UERJ<br />

Série Livros Eletrônicos<br />

Textos & Memórias<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Narrativas <strong>sobre</strong> <strong>alimentação</strong>, <strong>saúde</strong> e <strong>cultura</strong>.<br />

UnATI<br />

UERJ<br />

Rio de Janeiro<br />

2006<br />

3


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Mabel Imbassahy<br />

Socióloga, Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Oswaldo Cruz,<br />

Coordenadora da Oficina de Produção de Textos da Universidade Aberta da Terceira<br />

Idade da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />

Shirley Donizete Prado<br />

Nutricionista, Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da<br />

Fundação Oswaldo Cruz, Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social<br />

da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professora Adjunta do Departamento de<br />

Nutrição Social e Vice Diretora do Instituto de Nutrição da Universidade do Estado do<br />

Rio de Janeiro.<br />

Andrea Estevam de Amorim<br />

Socióloga, Mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da<br />

Fundação Oswaldo Cruz, Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina<br />

Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Coordenadora Assistente da<br />

Oficina de Produção de Textos da Universidade Aberta da Terceira Idade da<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro.<br />

Myriam Lanna<br />

Myrian é mineira, de família numerosa, nascida em uma fazenda e, hoje, reside no Rio<br />

Comprido, bairro carioca, somente com uma irmã. Adolescente, se propôs a seguir a<br />

vida religiosa, o que fez por 27 anos. Depois, deu aulas de português e francês e,<br />

desde então, se dedica a escrever com cuidado extremo, exigindo de si mesma<br />

fidelidade à língua portuguesa, da qual é admiradora e discípula.<br />

Augusta Alvaralhão<br />

Augusta é carioca do Estácio. Nasceu no Morro de São Carlos, quando os subúrbios do<br />

Rio guardavam semelhanças significativas com a vida rural; seus sítios, engenhos,<br />

morros, onde a filha do garçom convivia com coelhos, galinhas, pintinhos e colhia<br />

verduras fresquinhas da horta; acompanhava os pregões, as feiras e o<br />

desenvolvimento do comércio urbano, que foi se seguindo. Enfrentado limitações<br />

importantes, estudou e se formou em Contabilidade. Demonstra antiga vocação para<br />

4


escrever, sendo autora de um livro e, assim como Myrian, de textos livres em<br />

coletâneas publicadas. Páginas e páginas parecem pouco para que ela possa nos<br />

conduzir pelas cozinhas, quintais, hortas, pomares, na lida doméstica quotidiana,<br />

quase o tempo todo ao lado da mãe, da irmã, da mucama, da vizinha, da avó, das<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

mulheres.<br />

Wilson e Josepha Soares<br />

Formam um belo casal; a felicidade transparece em cada gesto, em cada olhar, nos<br />

largos sorrisos, nas dificuldades que enfrentam juntos. Nascidos ambos na cidade do<br />

Rio de Janeiro, encontram-se hoje aposentados – ela da vida de secretária e ele de<br />

servidor púbico – e dedicados à reconstrução da história do bairro do Méier por meio<br />

de imagens e textos. Trazem-nos referenciais da cidade: mencionam, com freqüência,<br />

lojas tradicionais do Centro do Rio e suas preocupações com a <strong>saúde</strong> e com os perigos<br />

que cercam a <strong>alimentação</strong> moderna<br />

5


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Copyright © 2003 UnATI-UERJ<br />

Todos os direitos desta edição reservados à Universidade Aberta da Terceira Idade.<br />

É permitida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de parte do mesmo, para<br />

uso interno ou pessoal, desde que sejam consignados a fonte de publicação original e<br />

o autor.<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

Sub-Reitoria de Extensão e Cultura<br />

Universidade Aberta da Terceira Idade<br />

Centro de Referência e Documentação <strong>sobre</strong> Envelhecimento<br />

Rua São Francisco Xavier, 524, 10 0 Andar, Bloco F, Maracanã<br />

Rio de Janeiro – RJ – Brasil<br />

CEP: 20 559 – 900<br />

Telefones: (+55 – 21) 587 – 7236, 587 – 7121 ou 587 – 7199<br />

Fax: (+55 – 21) 264 – 0120<br />

E. mail: unati@uerj.br ou crde@uerj.br<br />

Internet: www.unati.uerj.br<br />

CATALOGAÇÃO NA FONTE<br />

UERJ / UnATI / CRDE<br />

I32 Imbassahy, Mabel.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong>: <strong>narrativas</strong> <strong>sobre</strong> <strong>alimentação</strong>, <strong>saúde</strong> e <strong>cultura</strong><br />

/ Mabel Imbassahy, Shirley Donizete Prado, Andréa Estevam de<br />

Amoriam, Augusta Alvaralhão, Wilson [Soares], Josepha Soares.- Rio<br />

de Janeiro: UnATI / UERJ, 2006.<br />

(Série Livros Eletrônicos. Textos & Memórias)<br />

172p.<br />

ISBN 85-8797-14-4<br />

1.Idoso. 2. Alimentos 3. Cultura 4. Acontecimentos que mudam a<br />

vida 5. Narrativas pessoais<br />

Coordenação de publicação eletrônica: Shirley Donizete Prado<br />

Coordenação de produção: Conceição Ramos de Abreu<br />

Revisão: Maria Claudia Narciso<br />

CDU 616-053.9<br />

6


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Sumário<br />

Prefácio...........................................................................................9<br />

Narrativas: <strong>alimentação</strong>, identidade e as transformações do<br />

mundo moderno...........................................................................9<br />

Introdução ....................................................................................13<br />

Myriam Lanna...................................................................16<br />

O capado ...................................................................................... 17<br />

O pescado..................................................................................... 21<br />

Mesa de jantar............................................................................. 24<br />

Sacrossanto altar ......................................................................... 24<br />

O arroz .........................................................................................26<br />

O feijão........................................................................................ 30<br />

A carne ......................................................................................... 33<br />

O angu à mineira .........................................................................34<br />

Torresmo......................................................................................38<br />

Verduras ....................................................................................... 39<br />

Ovos fresquinhos, à vontade! .................................................... 40<br />

Guisado......................................................................................... 41<br />

Canja.............................................................................................45<br />

O macarrão – macarronada domingueira..................................46<br />

Sobremesas...................................................................................48<br />

O café........................................................................................... 50<br />

As frutas da fazenda.....................................................................54<br />

Café da manhã e lanche................................................................61<br />

Banquetes na fazenda ..................................................................64<br />

A escola ........................................................................................68<br />

A canjiquinha...............................................................................72<br />

O leite........................................................................................... 73<br />

A carne seca no varal...................................................................74<br />

O colégio interno ........................................................................75<br />

7


Viver melhor ................................................................................77<br />

Finito. ...........................................................................................79<br />

Augusta Alvaralhão ................................................... 80<br />

Crianças ........................................................................................ 81<br />

Farinha de rosca ........................................................................... 96<br />

Sopa de camarão ..........................................................................97<br />

Pão, rabanada. Natal! ..................................................................98<br />

Hoje: o Natal, a filha, a escola e ............................................... 101<br />

o doce de abóbora..................................................................... 101<br />

Doces, docinhos... Lembram-me aniversários!........................105<br />

Engravidei!! ................................................................................108<br />

Primeira comunhão três vezes? ................................................ 110<br />

Ventre-virado e quebranto........................................................112<br />

Vó! Traz pipocas? ........................................................................115<br />

Fim...............................................................................................117<br />

Josepha Soares ................................................................118<br />

Neste lar vive uma família feliz! ................................................119<br />

Fim.............................................................................................. 154<br />

Wilson Soares................................................................. 155<br />

Eu e Zefinha ............................................................................... 156<br />

Fim.............................................................................................. 172<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

8


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Prefácio<br />

Narrativas: <strong>alimentação</strong>, identidade e as<br />

transformações do mundo moderno<br />

Shirley Donizete Prado<br />

que saudade de falar aquela língua que é como o ar que eu respiro e de comer<br />

aquela comida que, além de me nutrir, traz à tona gostos e cheiros que estão<br />

Este livro tem alguns significados muito especiais.<br />

enfurnados dentro do meu ser!<br />

Roberto DaMatta 1<br />

Em primeiro lugar, por ter sido gerado através da experiência ímpar que é<br />

trabalhar, conviver com Mabel Imbassahy. Ao longo de alguns anos, aprendi com esta<br />

mulher sábia <strong>sobre</strong> os tortuosos caminhos a serem trilhados para que se possa<br />

compreender a complexidade das razões e emoções que envolvem a velhice. Gostaria<br />

de poder ter muitos outros anos mais em sua companhia cotidiana.<br />

Mabel sempre recusou os rótulos; sempre questionou, com aguda<br />

profundidade, os trabalhos dirigidos a chamada “terceira idade”, colocando em foco a<br />

existência e a realização das pessoas que participam desses programas. Seu trabalho<br />

pioneiro na Oficina de Produção de Textos desenvolvida na UnATI-UERJ voltou-se,<br />

inicialmente, para pacientes em processo de alta após tratamento de doenças<br />

1 DAMATTA, Roberto. Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de<br />

Janeiro: Rocco, 1993. p. 17.<br />

9


complexas como a depressão, por exemplo. Orientando para a geração de pequenos<br />

trechos escritos individualmente e discutidos em grupo, Mabel tratava da gramática, da<br />

qualidade da redação, das dores e das alegrias passadas e futuras das pessoas ali<br />

presentes. Daí, foi publicado no ano de 2001, o livro da Série Textos & Memórias<br />

que recebeu o delicado título Mil Novecentos e Antigamente... Uma vitória editorial<br />

para a UnATI! Uma realização de vida para os autores! Um presente para o leitor, que<br />

pode se defrontar com imagens singelas e ao mesmo tempo vigorosas do cotidiano de<br />

seres muitíssimo humanos que se dispuseram a colocar-se frente a fadas e monstros,<br />

ora com toda a sua força, ora apenas com o possível.<br />

A idéia de dar prosseguimento a esse projeto de forma mais focada surgiu em<br />

um de nossos cafés à tarde. Alimentação e memórias. O belo tema cativou mais uma<br />

vez um pequeno e, em parte, renovado grupo, que passou a se reunir regularmente às<br />

quartas feiras. Pouco a pouco, as lembranças da vida rural no interior de Minas Gerais<br />

ou dos subúrbios do Rio foram tomando corpo. Páginas e mais páginas foram se<br />

colocando diante de nós. Muito mais que quantidade de papel e palavras, a<br />

recomposição de pedaços quase que perdidos de história e de tensões relativas a<br />

alimentos, <strong>saúde</strong> e vida. Os alimentos e a <strong>alimentação</strong> como parte essencial de suas<br />

identidades.<br />

Por esses caminhos nasceu <strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong> como segundo volume da<br />

Série Textos & Memórias. Contamos aqui com a participação entusiasta de Andrea<br />

já na fase de seleção, organização e revisão dos textos concluídos.<br />

Um segundo e não menos importante motivo me leva a ter este livro como<br />

muito especial. As experiências vividas durante todo o processo de produção dos<br />

textos com Myriam, Augusta, Josepha e Wilson e ao longo das saborosas discussões<br />

sempre presentes nos cafés com Mabel resultaram em algumas reflexões que<br />

considero indispensável registrar. Trata-se de transformações que vem acontecendo<br />

em nossa história e que aparecem, por meio de formas inespecíficas e mesmo<br />

contraditórias, nas <strong>narrativas</strong> <strong>sobre</strong> comidas, alimentos e práticas alimentares desses<br />

dedicados autores.<br />

Aspectos econômicos, urbanização, gênero, mudanças em padrões de<br />

comportamento e desenvolvimento científico estão aí, manifestados ou ocultos,<br />

correspondendo a fios de uma complexa trama, sempre presentes, como uma<br />

paisagem de fundo ou como uma moldura, sem a qual o enredo principal – a cena<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

10


dramática das transformações ocorridas nos padrões alimentares ao longo deste século<br />

– torna-se frágil e desprovido de contexto social.<br />

Seguindo os caminhos de Benjamim 2 , encontramos uma trama central<br />

abordada através de alguns caminhos mais específicos e próprios da <strong>alimentação</strong>. A<br />

obtenção dos alimentos: da produção doméstica voltada, predominantemente, para<br />

família na primeira metade do Século XX às compras no supermercado de hoje. O<br />

preparo dos alimentos: as transformações tecnológicas no interior da cozinha. O<br />

consumo de alimentos: as transformações nos padrões de comportamento da família<br />

tradicional e numerosa ao redor da mesa à <strong>alimentação</strong> individualizada numa outra<br />

estrutura familiar, nuclear, em franco processo de reordenamento, onde muitas vezes,<br />

comer só e fora de casa é a referência. As transformações nos critérios para definição<br />

dos cardápios: da <strong>alimentação</strong> (o matar a fome, a comida que tem sustança e o<br />

prazer em saborear, à vontade, o alimento disponível) à nutrição (a <strong>alimentação</strong><br />

saudável, equilibrada e tecnicamente normatizada, a prescrição dietoterápica, a vida<br />

ideal vista como aquela onde não há lugar para nem as gorduras nem para os<br />

açúcares, a fantasia da magreza num corpo real obeso).<br />

A evidência de transformações fundamentais nas formas de lidar com os<br />

alimentos, antes plenas de vínculos afetivos e hoje - e cada vez mais - congeladas em<br />

algum freezer de supermercado. Alimentos que antes eram plenos de sabor e de<br />

prazer e que hoje - e cada vez mais - tornam-se prescrições, como medicamentos.<br />

Saudades das costelinhas de porco que hoje são gorduras saturadas e colesterol.<br />

<strong>Lembranças</strong> das deliciosas frutas roubadas do quintal da vizinha zangada que hoje são<br />

valorizadas pelos profissionais de <strong>saúde</strong> por suas fibras, vitaminas e minerais. Cultura e<br />

ciência. Um mundo de tensões a serem exploradas. Sem dúvida, ver-me frente a essas<br />

questões e ao desejo de lhes dar respostas foi um dos grandes prêmios que ganhei por<br />

ter tido o privilégio de participar dessa Oficina de Produção de Textos ao lado de<br />

Mabel, Myriam, Augusta, Josepha e Wilson.<br />

Finalmente, este livro tem um especial significado por ser produzido em<br />

formato eletrônico. Representa uma importante iniciativa no sentido de propiciar o<br />

encontro entre pessoas idosas e tecnologia avançada de informação. A valorização de<br />

perspectivas de cunho fortemente democrático está aqui presente por meio do acesso<br />

2 BENJAMIN, W. O narrador: considerações <strong>sobre</strong> a obra de Nikolai Leskov. In: Obras<br />

escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, v. 1, pp 197-221.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

11


livre a todo o seu conteúdo. Este é um dos caminhos definidos para o Centro de<br />

Referência e Documentação <strong>sobre</strong> Envelhecimento: o investimento na ampliação cada<br />

vez maior da inclusão digital para os idosos e para toda a população.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

12


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Introdução<br />

Mabel Imbassahy<br />

Andrea Estevam de Amorim<br />

O tema "<strong>alimentação</strong> e memória" foi apresentado ao grupo de alunos<br />

convidados a participar da "Oficina de Produção de Textos". Houve inicialmente falta<br />

de motivação, demonstrada de forma mais evidente pela aluna Myriam Lanna, que<br />

apesar de sua vocação em produzir textos, já evidenciada anteriormente, achou o<br />

assunto sem graça, assim se manifestando: "falar de comida!?...". O envolvimento,<br />

porém, logo se fez presente, não só pela parte de Myriam como dos demais<br />

participantes: Augusta Alvaralhão, Josepha Soares, Wilson Soares, ao perceberem que<br />

havia diante deles a oportunidade de reconstruir valiosos fatos de suas vidas em que a<br />

<strong>alimentação</strong> figuraria como fio condutor, quase sempre ganhando novos significados,<br />

principalmente quando a visão retrospectiva fornecia os opostos: o ontem e o hoje. A<br />

lembrança é uma forma de encontro.<br />

Com surpresa, observamos o grupo, ao escavar suas lembranças, trazer de<br />

volta fatos já recolhidos ao esquecimento, ligados aos hábitos alimentares; da sua<br />

infância aos dias de hoje. Dando ênfase as mudanças ocorridas, tempo a tempo em<br />

suas vidas. Nessas insondáveis buscas trouxeram informações que consideravam<br />

importante registrar. O que escreviam estava sempre intimamente ligado às suas<br />

vidas: havia cores, cheiros, sabores, emoções, desejos, negações, culpas.<br />

Ao contarem e recontarem momentos de escassez de alimentos e outros de<br />

abundância, dentro de contextos diversos, delinearam, com sutileza, aquilo que nos<br />

passa desapercebido. Ontem comiam bacalhau com freqüência, hoje dependem de<br />

ocasiões festivas, raras. Tornou-se luxo o que antes era casual. Esse e outros fatos são<br />

evocados estabelecendo conexões entre eles, e comparações conflituosas por vezes.<br />

Temas recorrentes – como o relacionamento com os animais, a não<br />

mercantilização dos alimentos, a <strong>saúde</strong> como bem a ser preservado e sua conquista<br />

13


acarretando mudanças de hábitos – estão presentes nas narrações. Como as<br />

lembranças do preparo do café e da coleta dos grãos às canecas, mantêm ainda hoje o<br />

calor e ânimo propiciados pela bebida que vem ter nas casas brasileiras a sua presença<br />

obrigatória. Oferecer um café para alguém conserva até hoje o gesto de afabilidade.<br />

As <strong>narrativas</strong> referentes ao preparo dos alimentos registram procedimentos singulares<br />

e comuns percorridos pelos autores.<br />

A matança dos animais, fato naquela época corriqueiro: ver a mão generosa da<br />

mãe ou da mucama torcer o pescoço de uma ave e colher o sangue; morto, o animal<br />

era colocado em água fervendo para facilitar a retirada de suas vestes de penas.<br />

Aquilo lhes era mais sadio do que comprar hoje, em supermercados, aves congeladas<br />

envoltas em papel com registros de tempo de validade e outras informações exigidas.<br />

"Não dá trabalho como dantes, mas o gosto não se compara".<br />

Nossos narradores vivenciam o envelhecimento de formas distintas apesar de<br />

terem influencias afins, todos nasceram em casa, tinham o vizinho como uma figura<br />

presente no dia a dia, reconheciam os vendedores ambulantes, por vezes pelo seu<br />

nome, que percorriam suas ruas. Discorrem suas histórias nos conduzindo a tempos<br />

remotos. O século XX sem dúvida marca diferenças visíveis em qualquer relato de vida,<br />

basta constatarmos que foi o século de extraordinárias invenções: do primeiro<br />

automóvel a primeira aeronave a lua.<br />

Este compêndio é uma pequena amostra da amplitude de vivências definidas<br />

como sendo dos idosos. Foram eles participantes de um momento já findo e pleno de<br />

acontecimentos memoráveis, e do começo de outro momento por vezes inquietante<br />

em suas monumentais conquistas e avanços acelerados. Essas pessoas registraram<br />

modificações de uma época que não havia restrição médica no uso, preparo e<br />

consumo dos alimentos.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Será que alguém, há mais de meio século, atrás,<br />

procurava uma orientação para alimentar-se sadiamente?<br />

- Alimentar-se bem, sem prejudicar a <strong>saúde</strong>? Qual nada!...<br />

Pelo menos não vem à mente a menor referência a isso...<br />

(Myriam Lanna)<br />

14


Vemos aí que a <strong>saúde</strong> passa a ser um bem associado às prescrições ditadas<br />

pelos médicos e nutricionistas, e até pela mídia. Aqui temos um painel, ainda que<br />

despretensioso, de <strong>narrativas</strong> que mostram a passagem de um tempo onde os hábitos<br />

alimentares eram outros, e bem distintos.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

15


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Myriam Lanna<br />

16


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O capado<br />

Colesterol? Qual Nada...<br />

Nutrição – Esse nome era conhecido “in illo, tempore” lá em casa.<br />

Será que alguém há mais de meio século, atrás, procurava uma orientação<br />

para alimentar-se sadiamente? Alimentar-se bem, sem prejudicar a <strong>saúde</strong>? Qual<br />

nada!... Pelo menos não vem à mente a menor referência a isso, e na prática, eu,<br />

criança ainda, era atraída pôr aquele cheirinho delicioso que me abria o apetite, eu,<br />

criança inapetente, tão enjoada para comer.<br />

Costelinha de porco! Costelinha frita! Enquanto o prato não ia para a mesa, a<br />

gente, pequenada, passava pela cozinha, – quando papai não estava, é lógico, e,<br />

sorrateiramente, zás: era uma, eram duas, eram três; se deixassem, aquilo era um<br />

nunca acabar. Que coisa! Tão gostosa! Néctar dos deuses! O prazer, de que a gente<br />

gozava, chupando aqueles ossinhos até ficarem brancos, brancos – nem me falem.<br />

Depois, Nero, o nosso cão de guarda que ficava de vigília, junto de nós, mastigava,<br />

barulhentamente os ossos, já lisos e quase transparentes que nós lhe jogávamos.<br />

Morávamos, como se diria hoje, na zona rural. Uma fazenda onde tudo se<br />

plantava, onde se cultivava tudo, onde se criavam vários tipos de animais domésticos:<br />

bois, carneiros, cabritos, coelhos, porcos, e grande número de aves: galinhas, patos e<br />

marrecos. Tudo para o consumo interno, quero dizer, dos moradores e dos colonos: a<br />

vida se impunha em sua plenitude e era valorizada, ainda que as pessoas não tivessem<br />

consciência disso. Era dia de se matar capado; nem sei quantas vezes por mês isso era<br />

feito – penso que todas às vezes necessárias. “Capado”, como o nome já diz – acho<br />

que todo mundo sabe do que se trata – é porco, suíno castrado para a engorda. E<br />

ficava tão volumoso o coitado que mal podia se arrastar no chiqueiro; só fazia dormir.<br />

Eu me lembro tão bem: o pobrezito, de patas dianteiras e traseiras amarradas, era<br />

agarrado por mãos criminosas que lhe enfiavam um punhal do lado do coração. Ele<br />

custava a morrer, agarrava-se à vida, gritava que fazia dó e nós, a petizada, corríamos<br />

17


para longe tampávamos os ouvidos e achávamos os adultos cruéis demais. Contudo,<br />

depois de morto o bichinho, gostávamos de ver o esquartejamento.<br />

Mamãe, aquela mulher corajosa, que sempre estava a postos, genuinamente<br />

mineira – lenço na cabeça, avental branco, comprido, comprido, começava cedo o<br />

trabalho que durava quase o dia todo. E isso não era feito dentro da cozinha para não<br />

atrapalhar o andamento do almoço. Havia uma cobertura do lado de fora da casa,<br />

anexa à cozinha com forno e fornalha de tijolos, funcionando à lenha, naturalmente,<br />

porque a energia elétrica por volta dos anos 20 do século passado, quero dizer de<br />

1900, só era usada mesmo para a iluminação, por sinal bastante precária, pelo menos,<br />

na nossa fazenda – privilégio para poucas. O próprio motor de gabinete dentário<br />

montado lá em casa era de pedal, movido pelo pé daquele desumano que afastava os<br />

colonos: iam uma primeira vez, quando o dente estava doendo muito, mas não<br />

voltavam à segunda.<br />

Rodeávamos mamãe que, pacientemente, ia cortando aquela banha em<br />

pedaços fininhos, colocando-a num enorme tacho de cobre reluzente, temperando-a<br />

com bastante sal e alho socado. Depois de quase cheio o tacho, era levado a fornalha<br />

que já estava acesa. Uma vez no fogo, a banha frigia por algum tempo – parecia um<br />

mar de ondas borbulhantes que espalhavam um cheiro enjoativo por toda a<br />

redondeza; mãos experientes de alguma mulher da fazenda mexiam de vez em<br />

quando aquilo tudo com uma longa colher de pau. E um outro tacho de água fervendo<br />

que servira para escaldar o bichão por várias vezes, a fim de depená-lo, diríamos hoje.<br />

O torresmo do toucinho tinha que ir com aquela pele, já fininha – papai gostava e<br />

mamãe fazia-lhe à vontade.<br />

– Puxe a achas para fora, Maria Antônia, o fogo está alto demais, pode queimar<br />

a banha. Dizia Dona Luiza.<br />

Pronto. Crianças, longe! Perigo à vista – o líquido viscoso era revirado em<br />

panelões de pedra sabão (artesanato de mineiros), dividido com os colonos e, o<br />

restante, destinado a conservar as enormes postas de carne, temperadas e feitas<br />

anteriormente: pernis, costelas, lombo, cabeça... Nada se perdia; com os torresmos da<br />

banha era feito o sabão para o consumo da pequena comunidade.<br />

E o toucinho? Aquela camada, alta, branca, bonita? Sim. Lembro-me, até hoje:<br />

era cortado em faixas, com pele e tudo, salgado com sal grosso, aquele sal puro – não<br />

como o sal de hoje, dito “light” (na palavra inglesa todo mundo confia; será?) – e, para<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

18


espanto de muitos, dependurado <strong>sobre</strong> o comprido fogão da cozinha a fim de se<br />

converter, diariamente, em torresmos saborosos que aguçavam o apetite dos adultos.<br />

E a <strong>saúde</strong>?... Qual nada! Disse um glutão outro dia, na casa do mano, que<br />

costuma fazer churrasco nos fins de semana para os vizinhos e amigos:<br />

– Meu pai está com 92 anos; durante toda sua vida fumou e, cigarro de palha;<br />

gosta da carninha bem engordurada. Vende <strong>saúde</strong>, meu velho.<br />

E um motorista, levando-me certa vez, ao hospital Pedro Ernesto:<br />

– Olhe só!<br />

apontou para um grupo de médicos, todos de branquinho<br />

– Lá vão para a churrascaria. O prato de hoje é feijoada. Aquela bem<br />

incrementada. Para a gente, receitam legumes cozidos. Assim, até eu.<br />

Não resta dúvida de que, um dos alimentos básicos naquela época, pelo menos<br />

nas zonas rurais de Minas Gerais era a carne. Mamãe procurava variar, mandando que<br />

se fizesse em um dia frango ensopado – os pequenos brigavam pela oveira e pelo<br />

sangue da galinha – coelho assado, bolinhos de miolo de porco, bucho frito ou<br />

refogado, panqueca recheada de carne moída, lingüiça frita. Ah! Ia esquecendo-me da<br />

lingüiça. Acho que nós menores gostávamos muito de lingüiça frita. Ignorando o<br />

trabalho que mamãe tinha para fazê-la: tripas finas, esvaziadas sempre debaixo da<br />

bica de água corrente que havia na coberta, tripas viradas e desviradas uma por uma,<br />

postas de molho em água avinagrada. Enquanto isso, a carne e o toucinho eram<br />

passados pelo moinho tocado à mão – as crianças se revezavam nesse mister –<br />

tempero forte, cheirando longe, minha mãezinha, assentada num banco<br />

desconfortável, – nada de luvas ou máscara – ia enchendo as tripas com aquela<br />

mistura condimentada.<br />

– Vai, menina, ali no paiol, apanhar algumas palhas de milho; não quero muito<br />

duras, está bem?.<br />

– E você filha, suba ao pomar e me traga alguns espinhos de laranjeira, os mais<br />

fortes que encontrar.<br />

Cortava as palhas em tiras fininhas e amarrava as tripas para que o recheio não<br />

saísse. Com os espinhos, furavam-se as tripas, a fim de que o ar intruso fosse posto<br />

para fora e não ficasse nenhum vazio nas lingüiças. Eu gostava de furar para mamãe;<br />

achava interessante aquele barulhinho: troc, troc, troc, depois de cada furadela. E<br />

aquele cano fino, transparente, ia ficando escuro – era a carne.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

19


Faz-se isso ainda? Claro que não. A indústria invadiu os grandes centros.<br />

Pessoas, mesmo as que residem no interior, preferem comprar aqueles rolos horríveis,<br />

ensebados, mal cheirosos, infectados de remédios para não se corromperem depressa.<br />

As tripas mais tenras, que não resistiam ao enchimento, eram cheias, sim, mas<br />

de vento – sopradas através de um cabo da folha do mamoeiro. (A natureza é pródiga,<br />

ela fornece-nos tudo de que precisamos).<br />

Que gostosas para os consumidores lá de casa que não eram poucos. Os<br />

portugueses, chamados de tripeiros, porque eram bons comedores de tripas, passaram<br />

esse costume para nós; hoje eu sei de gente do meu prédio que compra tripas ali no<br />

tripeiro da esquina e as refoga com molho de tomate e cebola.<br />

E o chouriço? Assim que o punhal assassino era enfiado debaixo da pata<br />

dianteira esquerda do capado, vasilha na mão a fim de recolher o sangue e, depressa,<br />

vinagre <strong>sobre</strong> ele para que não se talhasse, de todo. Uma vez temperado, fim;<br />

tínhamos um belo de um chouriço. Os colonos adoravam essa iguaria feita de sangue.<br />

Para conservá-lo, também, coloca-se <strong>sobre</strong> o fogão de lenha.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

20


criança.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O pescado<br />

O pescado não era muito comum lá em casa, quando eu ainda era<br />

O peixe tem sido alimento do homem desde os tempos primitivos. Grandes<br />

civilizações surgiram às margens dos rios – basta apontar o Egito que teve o Rio Nilo<br />

como fonte de vida e das zonas marítimas, terras banhadas por esses lindos mares,<br />

que oferecem aos homens sem nada lhes cobrar, alimento farto e sadio. Que eles<br />

apenas se dêem ao trabalho da pesca e o milagre se faz.<br />

Quem está acostumado a ler a Bíblia depara com cenas que comprovam ser o<br />

peixe a <strong>alimentação</strong> básica nos primórdios da era cristã. Basta citar: “A pesca<br />

milagrosa” (Sc.5,1-11) e a multiplicação dos pães e peixes.<br />

Mamãe sabia das coisas. Estou acabando de ler agora que já “O Almanaque<br />

Saemmert", de 1843, incluía em suas páginas ótimas receitas, algumas conservadas<br />

até nossos dias. Ele ensinava a conservar a carne, salgando-a e defumando-a depois.<br />

E, na semana passada, ao assistir no Canal Futura, da NET, uma aula de defumação,<br />

dada por um técnico da Faculdade de Agronomia de Viçosa, disse ele que o frango,<br />

depois de bem temperado com sal, pimenta-do-reino e pimenta malagueta, noz<br />

moscada, deve ser perfurado por dentro para que o tempero penetre bem. Deixar<br />

nessa solução durante 24 horas, depois amarrá-lo. E embrulhá-lo no papel celofane.<br />

Com o peixe, o procedimento é semelhante: uma vez limpo, o peixe deve ser<br />

espalmado e receber bastante tempero. Depois disso é que se procede a defumação.<br />

Achei o método bastante tradicional, semelhante ao que mamãe usava: numa chaminé<br />

grossa, com diâmetro quase igual ao de um tambor, feita de manilha ou de tijolo,<br />

soca-se serragem de madeira, molhando-a um pouco para que fique bem grudada,<br />

colocando um objeto roliço em baixo a fim de ter espaço para acender o fogo. Quando<br />

a serragem começa a queimar – fogo brando – solta por cima uma fumaça branca. As<br />

carnes devem ser dependuradas <strong>sobre</strong> essa fumaça, à pequena distância do<br />

defumador, numa temperatura que a mão humana possa suportar. Deixar durante<br />

quatro horas. Depois, tirar o papel e conservá-las ali por mais duas horas. Pronto, é só<br />

21


assar ou refogar. Fazendo isso, deve-se pingar água durante o cozimento, pois, as<br />

carnes perdem água e devem ser reidratadas.<br />

Essa dica dada por um catedrático da Faculdade de Viçosa, no fim do século XX<br />

– mamãe já praticava esse método nas primeiras décadas do mesmo século, parece<br />

até que o técnico aprendeu com ela.<br />

Estive pensando, por que o homem destrói, com seu decantado progresso, com<br />

sua complexa técnica, o que recebeu de mão beijada? Agora mesmo, há menos de<br />

quinze dias, o vazamento de óleo na linda Baía de Guanabara. Vidas destruídas, não<br />

sei quantas. Os pescadores à procura de zonas não atingidas para sua pesca. Mesmo<br />

assim – quem tem coragem de comprar peixe, sabendo que ele vai ser prejudicial a<br />

sua <strong>saúde</strong>?... Lá se vai o sustento de uma classe já sofrida. É... Mas eles indenizam. A<br />

firma é poderosa – o país de regime capitalista – dólar em primeiro plano.<br />

– Será que tudo é resolvido pelo “money”?<br />

Como disse anteriormente, o peixe, apesar de ser tão preconizado pelos<br />

nutricionistas atuais, não era o alimento forte lá em casa, sendo eu ainda criança, e<br />

menos ainda agora, que percorri pelos caminhos da vida mais de sete décadas e meia.<br />

Eu explico: desde que uma de minhas irmãs se engasgou com uma espinha de peixe,<br />

mamãe tinha o máximo de cuidado ao servi-lo. As grandes traíras ou piabas, trazidas<br />

pelos irmãos que armavam o anzol, durante a noite, no córrego bem junto de nossa<br />

casa, repito, aqueles peixes eram endereçados somente para os adultos.<br />

Minhas irmãs mais velhas, às escondidas, subiam córrego acima, com peneiras<br />

de arame em punho. Depois de alguma caminhada, as peneiras estavam cheias de<br />

lambaris. Esses, a gente comia porque as espinhas eram mastigáveis, depois de<br />

torradinhas.<br />

Já o pescado tinha que ser feito no dia, mamãe falava:<br />

– Peixe dormido é veneno.<br />

Ela não adotava o costume antigo dos portugueses, recebido dos romanos na<br />

época da conquista: salgar o pescado para que não se estragasse. É lógico que os<br />

lusos tinham que usar tal método, pois eram eternos navegadores, passavam grande<br />

parte da vida nos mares onde, nem sempre, a pesca é promissora; mais ainda<br />

desconheciam, como a maioria das civilizações daquela época, o sistema da<br />

conservação por congelamento – não havia “freezer” ou geladeiras ainda. Até nossos<br />

dias, temos resquícios desse costume: basta citar o bacalhau, de que os portugueses<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

22


gostam tanto. Na minha terra, todo mundo comprava bacalhau na época da quaresma,<br />

porque a Igreja católica prescrevia jejum e abstinência de carne, em todas as quartas<br />

e sextas-feiras da quaresma, mas permitia o consumo do peixe na quarentena. Mamãe<br />

obedecia religiosamente; papai apenas sorria – era cético declarado. Esse costume,<br />

contudo já vai longe: O quinto mandamento da Igreja “jejuar e abster-se de carne,<br />

como manda a Santa Madre Igreja” foi suavizado, a penitência é só na Sexta-Feira<br />

Santa, lembrando a morte de cristo.<br />

Adulta, já morando no Rio de Janeiro, cidade praiana, tentei colocar peixe no<br />

meu cardápio, pelo menos uma vez por semana, mas acabei desistindo. Ia às quartas-<br />

feiras à uma feira livre aqui em baixo, no Estácio, a fim de comprar peixe fresco.<br />

Horrorizada, vi, um dia o feirante abrir o “freezer” de isopor e despejar um produto lá<br />

dentro. Uma senhora disse-me que aquilo era detergente e eu pude constatar: quando<br />

cheguei a casa com um lindo filé de namorado, fui lavá-lo e ele espumava muito. Uma<br />

vez refogado, pois minha dieta proíbe-me frituras, o bichinho dissolveu-se todo,<br />

tornando-se uma verdadeira maçaroca. Postas de salmão, trazidas de um<br />

supermercado, não cozinharam, nem depois de uma hora de fogo.<br />

Peixe de água doce, como o dourado e o piaúçu, nativos no pantanal, não são<br />

trazidos para o comércio, pelo menos eu nunca vi, talvez, porque a pesca, antes<br />

predatória naquela região tão abundante em peixes, hoje é controlada pelo IBAMA, é<br />

mais um esporte destinado a turistas, principalmente aos estrangeiros, que se<br />

extasiam com aquele pedaço de paraíso nosso.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

23


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Mesa de jantar<br />

Sacrossanto altar<br />

Mesa comprida, no meio da sala de jantar, também comprida,<br />

repito, mesa forrada com toalha e guardanapos impecáveis, quase sempre de linho,<br />

trocados diariamente – coitadas das serviçais (papai não iria aceitar os guardanapos<br />

descartáveis de hoje), pratos colocados no lugar de cada um, copos reluzentes,<br />

talheres de prata, com relevo nos cabos (não se conhecia ainda o prático inox) areados<br />

antes de cada refeição, moringa de água filtrada (lembro-me do filtro num canto da<br />

sala <strong>sobre</strong> um tripé de metal, um copo de alumínio para as crianças num suporte –<br />

Filtro Fiel), água apanhada naquela mina clarinha que jorrava entre as pedras brancas<br />

– nada de cloro, bom para eliminar bactérias, mas que agride o organismo da gente.<br />

Água gelada? Não me recordo de ter ouvido falar em geladeira, pelo menos na minha<br />

infância – segunda e terceira décadas do século XX.<br />

Onde papai aprendera tudo aquilo? Ele não era um homem letrado mas<br />

bastante exigente consigo mesmo e conosco. Nós, menores não nos assentávamos à<br />

mesa – graças a Deus.<br />

Entre as regras que os franceses apresentavam nos seus manuais de bom tom<br />

estava a proibição de se levar à mesa crianças e cães (As amantes de cachorro, como<br />

a minha cunhada postiça, estão alheias a toda etiqueta sadia, além de exporem os<br />

convivas a doenças próprias dos caninos. Na noite de Natal, Bina, o cãozinho de cama<br />

e mesa, trepou numa cadeira e estava devorando, tranqüilamente a coxa de um peru<br />

assado de pernas para o ar, antes que nós assentássemos para a ceia).<br />

– Que gracinha!<br />

Disse Aparecida, beijando o “maledetto” na boca.<br />

– Ave! Deus do Céu! Em que mundo nós estamos?<br />

Seria por causa das etiquetas francesas que papai não gostava que os<br />

pequenos almoçassem com os adultos?... A hora da refeição era sagrada para ele e, se<br />

algum de nós chorasse ou fizesse traquinagem na cozinha, o almoço estava estragado.<br />

24


As mucamas serviam-nos lá dentro. Mesmo assim, as cadeiras da sala de jantar<br />

eram todas ocupadas – filho é que não faltava: doze ao todo. Papai, solenemente à<br />

cabeceira, mamãe ao lado direito e os mais velhos nos outros lugares, fora os<br />

comensais que apareciam, não raro.<br />

esmero.<br />

Da cozinha, eu via passar aquelas travessas fumegantes, arranjadas com<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

25


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O arroz<br />

Os árabes transmitiram para o resto do mundo, o costume de cultivar<br />

arroz; (do árabe; “ar-rus”, segundo Aurélio) todavia, eles o usavam mais para fazer<br />

doces. O hábito de alimentar-se com arroz, às refeições, foi adotado, primeiramente na<br />

África, depois, nas Américas e nestas, o Brasil.<br />

O arroz lá de casa nunca era misturado, como se faz, atualmente, com brócolis,<br />

cenoura ou mesmo com lentilha para o dia de ano novo. Minha cunhada, baiana da<br />

gema, diz que a lentilha é símbolo de dinheiro e servi-la com arroz, na virada do ano, é<br />

sinal de que o “money” não vai faltar durante os trezentos e sessenta e cinco dias que<br />

começam.<br />

Como ia dizendo, o arroz que se comia lá em casa era branquinho, soltinho,<br />

lisado por cima, quando, na travessa. Mineiro é gente tradicional; adotando um<br />

costume, só muda se está mesmo convicto que é para melhor; mineiro não tem pressa<br />

das coisas, traz sempre um ditado popular para as ocasiões: “O apressado come cru”,<br />

“Macaco velho não põe a mão em cumbuca”, “Devagar se vai ao longe” e assim por<br />

diante.<br />

Conhecem a anedota do mineiro e do paulista?<br />

Diz-se que um mineiro lá ia pela estrada, feliz da vida, na sua carroça puxada<br />

por um cavalinho magro e trotão. De repente, um ronco e atrás dele, um carro do ano,<br />

todo incrementado, dirigido por um paulista esnobe que lhe disse:<br />

– Ô amigo, deste jeito você não vai chegar nunca ao seu destino. Por que não<br />

faz como eu? Meu carro tem a potência de oitocentos cavalos-vapor.<br />

E o mineiro, cismado:<br />

– Uai! É mesmo?... Vá, amigo, segue o teu caminho que eu fico por aqui com o<br />

meu bichinho. Que Deus te acompanhe.<br />

Os dois partiram, estrada afora, o paulista, a 180 Km por hora e o mineiro,<br />

coitado, ao trote de seu cavalinho que já estava cansado.<br />

26


Já de tardinha, sol morrendo atrás da serra, o mineiro olhou a margem da<br />

estrada, ribanceira abaixo, lá estava o paulista com o seu carrão, metade dentro do<br />

córrego.<br />

Perguntou-lhe, em tom de ironia:<br />

– Ô amigo, tu tá dando de beber os seus oitocentos cavalos?...<br />

Pois bem, o costume de comer arroz branquinho era sagrado, lá em casa. Para<br />

que ele chegasse àquela alvura, necessitava-se de grande e trabalhosa caminhada.<br />

Lembro-me do arrozal verde, verde, plantado lá em baixo num terreno encharcado;<br />

depois, os pendões mesclavam o verde com um ouro velho, reluzente ao sol. Mais<br />

tarde, mãos calosas, mas seguras colhiam-no a foiçadas, estocavam-no num paiol: só<br />

então o arroz era batido a marretadas para que os grãos se soltassem. Uma vez<br />

armazenado, ele era socado aos poucos, num pilão de madeira e soprado numa<br />

peneira de abano – trabalho árduo – eu, menina descuidada para quem tudo é festa,<br />

ficava admirando aquela chuva dourada, de cascas que subiam em forma piramidal, na<br />

porta do paiol e, às escondidas, nadava naquele mar espinhoso que me irritava a pele<br />

fina e rosada daqueles tempos áureos.<br />

– Cate para mim os marinheiros, minha filha.<br />

Dizia Berata.<br />

Os marinheiros eram tantos que enchiam uma cumbuca e a garotinha<br />

prazerosa jogava para as galinhas: ti, ti, ti, pru... ti, ti, ti, pru... Um exército de<br />

galinhas com seus pintinhos, galos imponentes, galinhas de Angola; tô fraco, tô fraco,<br />

tô fraco... Aproximavam-se da porta da cozinha e bicavam avidamente o chão<br />

atapetado de arroz com casca.<br />

Diz a história que já, em 1766, El Rei Dom José havia autorizado o<br />

estabelecimento de uma fábrica de descascar arroz no Rio de Janeiro, mas esse<br />

benefício demorou a chegar aos cantões de Minas Gerais. Naturalmente, a carência de<br />

estradas e de meios de transportes dificultava, mais impedia mesmo que ele atingisse<br />

as fazendas. Na cidade mais próxima da nossa nem a célebre Maria Fumaça passava.<br />

Só mesmo o carro de boi com sua toada triste. Os carreteiros faziam questão de que o<br />

carro emitisse aquela melodia angustiante: im, im, im, im, im,... Para isto, passavam<br />

sebo nos eixos de madeira.<br />

Como já tive oportunidade de dizer, tudo consumido no nosso pequeno feudo<br />

era produzido e beneficiado ali mesmo. Nosso cantão diferenciava das outras fazendas<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

27


da época que se dedicavam exclusivamente ao plantio do café ou da cana de açúcar,<br />

lavouras favorecidas antes com a mão de obra dos escravos, depois dos imigrantes<br />

que vinham para a “terra prometida” a fim de procurar trabalho.<br />

O arroz preparado com pouca gordura a fim de “ajudar a diminuir a acidez<br />

gástrica” do arroz, lá em casa era feito numa panela de pedra grossa, mas quebrável –<br />

trabalho artesanal que ainda se encontra no interior de Minas Gerais.<br />

Por que seria? Hoje, reflito: tais vasilhas conservam o calor por muito tempo e,<br />

como todos devem saber, o arroz, depois de refogado e seca a água, deve ser<br />

colocado para suar, no fogo brando, a fim de ficar soltinho. Lá em casa, isso era feito<br />

na última trempe do fogão de lenha, puxando as achas em fogo para a parte da<br />

frente. Os técnicos atuais – tantas especialidades – devem ter pesquisado isso e a<br />

indústria fornece-nos hoje, ótimas panelas de inox, com fundo interno de cobre; a<br />

gente economizava gás e não se desgasta tanto para areá-las, pois, elas só escurecem<br />

se colocarmos o fogo alto, o que não parece ser recomendável. Temos algumas, são<br />

caras, mas vale a pena.<br />

O costume mineiro de comer arroz branquinho não sei se é assim tão saudável.<br />

Diz o Frei Raul de Lima Sertã – em seu manual de 52 páginas apenas “Reconstruindo a<br />

Saúde” – que “o arroz branquinho é arroz morto, não tem energia vital, não alimenta<br />

nada” ao passo que o arroz integral é arroz vivo e cheio de energia; e mais abaixo: “o<br />

arroz branquinho prende o intestino e o arroz integral combate a prisão de ventre”<br />

(pág.21)<br />

Agora, aos setenta e seis anos de idade, tinha vontade de mudar o meu<br />

costume – usar arroz integral – eu que me sirvo, diariamente dessa iguaria. Cheguei a<br />

tentar, mas não gostei. Pensei comigo mesma:<br />

– Será que nesta idade vai adiantar alguma coisa, vai melhorar minha <strong>saúde</strong><br />

que não é nada animadora?<br />

– Serei tão renitente como o mineiro da carroça?...<br />

É, mas minha mãe já dizia:<br />

– Mais vale um gosto do que duas patacas.<br />

Frei Raul, no seu livrinho, dá até o modo de fazer o arroz integral para que ele<br />

fique apetitoso:<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

28


Por o arroz numa caçarola e levar ao fogo, mexendo até ficar meio dourado e<br />

estalando; depois cozinhar em água fervendo, como se cozinha o arroz branquinho.<br />

Em meia hora, mais ou menos, estará pronto; temperar a gosto e servir. O arroz<br />

Quem quiser que aproveita a receita.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

integral cozido se conserva na geladeira por uma semana.<br />

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<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O feijão<br />

As tribos nativas da América Central e da América do Sul cultivavam<br />

diferentes espécies de feijão: “frijoles”, feijão preto, feijão mulatinho, feijão rajado,<br />

feijão branco, feijão vermelho. Feijão manteiga, feijão fradinho e outros. Também os<br />

africanos conheciam o uso do feijão; daí o brasileiro tê-lo adotado como alimento<br />

básico.<br />

Apesar de ser espalhado por aí que o feijão é indigesto, possui grande teor de<br />

proteína – disso somos informados hoje. Mas a sabedoria popular é infusa: lá em casa,<br />

a papa das criancinhas era feijão coado com angu do dia e algum tubérculo cozido e<br />

amassado como batata, inhame, cará... E a gente crescia robusta – muito trabalho,<br />

não resta dúvida.<br />

As papinhas atuais, dizem vir balanceadas: proteínas, sais minerais, vitaminas...<br />

Não há disponibilidade para serem preparadas em casa: o mercado de trabalho invadiu<br />

os lares, as mães têm que sair cedo, é dispendioso manter uma auxiliar durante vinte<br />

e quatro horas.<br />

– E isto seria a mesma coisa?...<br />

É claro que não. Eu criança, senti na pele esta carência: mamãe não tinha<br />

tempo para nós. Doze filhos vivos não é para qualquer uma. Ainda estava<br />

amamentando quando ficava grávida. Aí a gente ia para os cuidados de uma irmã mais<br />

velha ou da mucama que, graças a Deus, era uma verdadeira mãe. Nós disputávamos<br />

o canto da cama da Berata:<br />

– Hoje sou eu, você dormiu com ela ontem.<br />

E a agregada ficava feliz.<br />

Lembro-me de Ilza, uma de minhas saudosas irmãs, falecida há pouco tempo,<br />

com oitenta anos. Mulher corajosa, dinâmica, valente mesmo com marido folgadão,<br />

levantava-se pela madrugada preparava a papinha dos pequenos, a merenda da<br />

maiorzinha que ia, com ela para o colégio, fazia o café e adiantava o almoço, pois<br />

tinha que estar no trabalho às sete horas em ponto. As dez, o esposo ia buscá-la –<br />

pelo menos isso – para terminar o almoço, comer qualquer coisa depressa e correr<br />

30


para a repartição porque era funcionária do Arquivo Nacional, na parte da tarde. A<br />

casa podia estar de pernas para o ar – a secretária, nem sempre, caprichava no<br />

trabalho, mas a <strong>alimentação</strong> era sagrada e fresca – nada de forninho de microondas.<br />

E, ainda, durante uma boa temporada, teve que fazer super <strong>alimentação</strong> para o<br />

marido que ficava tuberculoso e era exigente na mesa. De certa feita, na véspera de<br />

Natal, ficava horrorizada com a coragem da mana: ela matou e preparou em casa,<br />

uma leitoinha – o esposo, que andava por essas periferias, trouxera a bichinha na mala<br />

do carro. Para os domingos, o frango era comprado vivo, num galinheiro na rua do<br />

Matoso e Ilza, valente, cortava-lhe o pescoço, depenava-o em água fervendo e a gente<br />

tinha frango assado, com gosto de frango mesmo, no dia seguinte.<br />

Voltando à fazenda: papinha fresca, preparada no dia, quase na hora. Não era<br />

como os copinhos de hoje, com as “alertadoras” datas: fabricado dia tal, vencimento,<br />

tal dia.<br />

Podemos confiar? Não sei, pode até ser; entre nós, o controle de qualidade, a<br />

fiscalização – quimeras puras; uma de minhas irmãs quase morreu com iogurte – que<br />

estava dentro do vencimento. E, a mídia está aí, denunciando casos e mais casos de<br />

intoxicação coletiva nas escolas – ali, a <strong>alimentação</strong> se diz balanceada, fiscalizada e<br />

utilizada somente se estiver dentro do prazo.<br />

No principio da colonização aqui no Brasil, os mantimentos eram levados às<br />

cidades ou a outros locais nos lombos de burros ou cavalos, chamados de carga.<br />

Papai, também, saía com a tropa para seus eternos negócios: comprar e vender gado,<br />

levar os produtos das safras e trazer de volta, as variedades que não havia lá em casa.<br />

Daí o feijão tropeiro, colocado em vários caldeirões, feito por mamãe com aquele<br />

capricho. Nós, menores, íamos às sobras, mas ela não gostava que comêssemos<br />

aquele prato que dizia forte demais.<br />

Pelos caminhos, naturalmente, os tropeiros paravam para o descanso, em<br />

alguma sombra – e sempre havia muitas – à beira de alguma mina d’água ou à<br />

margem de um regato cristalino para dessedentarem e dar de beber aos animais.<br />

Faziam fogo, aqueciam os caldeirões e matavam a fome para continuarem a jornada.<br />

No regresso, ficavam elogiando a mamãe pelo saboroso feijão e contando as<br />

peripécias da viagem. Era cada mentira cabeluda!...<br />

numa pedra.<br />

– Eu matei uma surucucu dourada, pegando no rabo dele e batendo sua cabeça<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

31


Dizia um.<br />

– E aquele saci-pererê, pulando numa perna só e botando fogo pela ventas.<br />

Viram o que fiz com ele?<br />

Acrescentava outro mentiroso. A gente ficava atenta, ouvindo aquelas histórias,<br />

cada vez que a tropa voltava.<br />

O feijão tropeiro é um prato típico da cozinha mineira, com base no feijão<br />

preto. Cozido, esse, retira-se-lhe o caldo e refoga-o em muita gordura, alho e cebola.<br />

Depois é misturá-lo com um pouco de farinha de mandioca ou de milho e enriquecê-lo<br />

com torresmos e pedaços de lingüiça.<br />

E a feijoada? Deus do Céu! Era antigamente a comida dos escravos, feijão<br />

preto misturado com os piores pedaços do porco, rezam as crônicas. Essa comida tão<br />

incrementada não caiu de moda nas churrascarias e em alguns restaurantes<br />

apregoam-na com prato de certos dias e muita gente, inclusive turistas estrangeiros<br />

regalam-se com essa especialidade nossa.<br />

O feijão, lá em casa, também passava fumegando naquela travessa funda<br />

(papai não admitia panelas à mesa como nós fazemos hoje. Também, tais vasilhas<br />

deviam ser enfumaçadas, pretas mesmo – feijão de lenha. As nossas panelas reluzem<br />

de tão clarinhas e conservam o alimento quente, Com o arroz nada de mistura: nem<br />

carne seca, nem chouriço, nem paio ao cozinhá-lo.<br />

De vez em quando, era o tutu, com ovo em rodelas ou lingüiça frita por cima<br />

que recendia pela casa toda.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

32


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

A carne<br />

Proteína animal – Carne à vontade e sempre. Mesmo ignorando o<br />

valor protéico da carne – sabemos hoje que existe grande quantidade de proteína nos<br />

alimentos de origem animal – a carne nunca faltava na mesa lá de casa, quando eu<br />

era criança.<br />

Era carne de todo o jeito: ora cozida, ora assada, ora em ensopadinhos... Os<br />

portugueses colonizadores passavam para nós o costume de não dispensar a carne às<br />

refeições; devem ter aprendido com os mouros em suas infindáveis expedições e,<br />

inconscientemente, papai era fiel à tradição. Quando não restava mais carne de<br />

capado, papai saia com meus irmãos mais velhos para uma caçada na mata vizinha e<br />

trazia um preá, espécie de roedor parecido com o coelho, quando não, um filhote de<br />

capivara que escapava da vigilância materna.<br />

Raramente, a carne bovina fazia parte do cardápio; papai criava gado, mas<br />

para que tivéssemos leite à vontade e com o objetivo de negociar com outros<br />

fazendeiros e com poucos abatedores das cidades mais próximas.<br />

33


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O angu à mineira<br />

Fazia parte do menu diário. Era à mineira mesmo, sem sal. Ficava no<br />

fogo, exatamente, uma hora. Depois desse tempo, a cozinheira rodava o conteúdo da<br />

panela com uma colher de pau, a fim de torná-lo liguento. Era despejado, em seguida,<br />

numa travessa de louça e, na hora de ir para a mesa, virado ao contrário, para ficar<br />

com a nata por baixo e a parte lisa por cima, bonito, bonito.<br />

– Por quê?<br />

Pensava eu.<br />

O fubá para fazer o angu tinha que ser do dia, como tudo mais – nada de fubá<br />

guardado em latas. Zé Magnólia, nosso irmão pretinho ia buscá-lo diariamente, lá em<br />

baixo, no moinho tocado à água, onde nós éramos proibidas de ir. É perigoso, dizia<br />

mamãe. O acesso àquele local era através de uma cancela <strong>sobre</strong> o córrego, cujas<br />

águas moviam uma grande roda gradeada de madeira, fazendo o moinho funcionar.<br />

Diz Lieselotte Ornelas, no seu livro, “Alimentação através dos tempos” 3 que tal<br />

<strong>cultura</strong> nos foi passada pelos portugueses que a receberam dos árabes, ainda no<br />

século XII, quando os iberos exploravam o Mediterrâneo, com suas arrojadas<br />

navegações.<br />

Através de uma espécie de bica de madeira dentro do moinho, também de<br />

madeira, o fubá saia fininho e caía numa espécie de cuba. Esse benefício era-nos<br />

concedido pela mãe natureza, que não pedia nada em troca – a água do riacho não<br />

parava nunca de correr – era solidária de verdade.<br />

– A gente come angu hoje, setenta anos depois?...<br />

Sim, mineiro é sempre mineiro, em qualquer lugar que esteja, mas a gente<br />

sabe que o fubazinho tão bem embalado vem com grande mistura de agrotóxicos e<br />

conservantes. Fará tão bem à <strong>saúde</strong>, como antigamente? Quem sabe? A gente tem<br />

que seguir a orientação de profissionais que estudam o valor nutritivo dos alimentos e<br />

3 ORNELLAS, Liezelotte Hoeschl. A <strong>alimentação</strong> através dos tempos. Rio de Janeiro: FENAME,<br />

1978.<br />

34


dizem que o milho contém vitaminas – bom para nós que já cruzamos o Cabo da Boa<br />

Esperança e nos cansamos com o mínimo esforço.<br />

Diz, Gilberto Freyre em sua obra “Casa Grande e Senzala” 4 que a religiosidade<br />

dos portugueses, dos índios e dos negros fê-los adotar santos protetores para tudo.<br />

Assim é que São João Batista foi escolhido como protetor da agri<strong>cultura</strong> em geral e do<br />

milho particularmente. No dia do onomástico do santo, celebra-se a festa do milho,<br />

época da colheita desta gramínea tão nutritiva.<br />

Na minha terra (aí eu já era quase adolescente e morava na cidade de meus<br />

pais, dos meus avós), Rio Casca, no dia 24 de junho, data em que a Igreja Católica<br />

comemora o nascimento de São João Batista, uma grande fogueira era erguida no<br />

centro do parque da cidade. Nela se assavam o milho verde e a pamonha (de origem<br />

tupi PAM’NÃ – Que bom! Coisa boa essa.) uma espécie de bolo de milho verde, enrolada<br />

em folha de bananeira. As mulheres serviam graciosamente canjica (cada um levava<br />

sua vasilha e sua colher – não adviera a época dos descartáveis), pipoca e pedaços de<br />

bolo de milho.<br />

Ali se reuniam o povão e as classes privilegiadas; em todo lugar elas existem.<br />

Cantávamos e dançávamos em volta da fogueira – até que era gostoso nosso<br />

aquecimento, pois junho era o mês mais frio em minha cidade. Todos agradeciam ao<br />

santo padroeiro a colheita farta daquele ano.<br />

Um enorme pau de sebo era plantado num lugar de destaque do parque. Lá em<br />

cima, estava fixada uma prenda bem embrulhadinha, tentando quem se achava cá em<br />

baixo. Então, os mais afoitos arriscavam-se a subir como macaco, pau acima e, já se<br />

sabe, escorregavam-se quase todos. Quando o vencedor alcançava o topo e retirava a<br />

prenda, era uma festa só.<br />

Eu não sabia, aliás, nem podia saber; estava, num desses dias de crise – e são<br />

tantos – fazendo a minha abençoada água de fubá. Carminha, uma de minhas irmãs<br />

aproximou-se e quis saber do que se tratava. Mostrei para ela e fiquei surpresa com a<br />

informação que me passou:<br />

– Papai depois que foi baleado, alimentou-se de água de fubá nos dois dias que<br />

lhe restaram de vida.<br />

Por que ignorava eu esse fato?<br />

4 FREIRE, Gilberto. Casa grande e senzala. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1966.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

35


Na verdade, eu era muito pequena ainda quando aquela tragédia caiu <strong>sobre</strong><br />

nós; em segundo lugar, minha irmã mais velha mandava que fôssemos brincar lá fora<br />

a fim de não presenciarmos coisa tão dolorosa. Só nos permitiu beijar o rosto do papai<br />

depois que ele veio a falecer, o que eu achei muito estranho: rosto gelado, papai<br />

imóvel – nunca havia contatado com a morte, antes; também lá em casa, ninguém<br />

jamais teceu comentário <strong>sobre</strong> esse assunto, tão grande o trauma que marcou mamãe<br />

e os filhos todos.<br />

Lembro-me vagamente de uma garrafa incolor, dependurada de cabeça para<br />

baixo, com uma borrachinha roliça, saindo do seu gargalo, indo fixar-se no braço do<br />

meu querido pai – soro abençoado; graças a Deus, ele já existia nos idos de 1931.<br />

Lembro-me também de minha irmã mais velha, pondo a água de fubá, às colheradas,<br />

na boca do papai. Aí não devia existir o alimento pré-fabricado que a medicina hoje<br />

usa, entubando o nariz do moribundo.<br />

Só agora, a memória veio à tona e eu compreendi porque sou tão devota da<br />

água de fubá; mamãe fazia esse alimento para nós quando estávamos com indigestão<br />

e não eram poucas às vezes; aqui, vou seguindo sem dificuldades as dicas maternas<br />

ainda depois de setenta anos.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Receitinha:<br />

Coloca-se, a ferver, um litro de água filtrada com uma colherinha de café de sal<br />

e uma colher de sopa de açúcar. À parte, num recipiente, quatro colheres cheias fubá.<br />

A gente vai amolecendo vagarosamente o fubá, sempre com água filtrada, até que ele<br />

se transforme numa pasta dura. Com ambas a mão, vai fazendo bolinhas apertando-as<br />

bem. Depois, colocar essas bolinhas uma a uma, na água que já deve estar fervendo.<br />

Em fogo brando, deixar cozinhar durante uma hora.<br />

Esta milagrosa água de fubá que deve ser tomada aos poucos; ela tira o enjôo<br />

e sustenta quem está incapacitado de ingerir qualquer alimento.<br />

Outra receita que não fazemos mais é a da conserva do milho verde feita,<br />

muitas vezes, lá em casa. Não se conseguem espigas de milho verde fresquinho, cujos<br />

grãos sejam bem tenros. É pena.<br />

Debulha-se as espigas verdes, cujos grãos sejam bem molinhos;<br />

36


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

cobri-los com uma mistura de água fervendo, vinagre e sal;<br />

cozinhá-los em seguida.<br />

Está pronta a conserva agora, é só esperar que esfrie; depois, guardá-la, até o<br />

dia seguinte, num lugar fresco (sim tinha que ser um lugar fresco, pois lá em casa não<br />

havia geladeira – 1929 – ainda que o primeiro barco americano de gelo tenha aportado<br />

no Brasil por volta 1800. Com a técnica da propaganda que tem aquele povo, o uso do<br />

gelo depressa foi introduzido no Brasil. Daí à geladeira não demorou muito tempo,<br />

registra o Jornal do Comércio de 23 de agosto de 1834). A conserva do milho verde<br />

era servida no almoço do dia seguinte.<br />

37


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Torresmo<br />

O torresmo fazia parte do cardápio diário. Já à mesa com pele, bem<br />

tostadinha. Ao mastigá-lo – aquele ruidozinho característico.<br />

Papai não passava sem o torresmo: aguça o apetite, dizia; mamãe temia um<br />

acidente conosco, os menores, mas a gente gostava e não deixava de tirar uma<br />

casquinha.<br />

38


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Verduras<br />

Nós crianças, tínhamos horror a tais pratos, não adiantava Berata<br />

insistir. Ainda bem que comíamos na cozinha – ali nos sentíamos libertas de entraves.<br />

A verdura era a última travessa a passar. Horta bem perto da enorme cozinha:<br />

extenso manto verde ondulando-se à brisa; couve, taioba, espinafre, agrião, alface.<br />

Chicória... Eu ficava olhando a Negra fazer o verde: depois do preparo, poucos minutos<br />

no fogo, “fica amarelada, feia mesmo”, dizia. Tinha a sabedoria infusa. Os anjos lhe<br />

ensinaram que o cozimento demorado pode tirar parte do valor nutritivo das verduras.<br />

Já estavam todos à mesa e eu via a gordura chiar, a fumaça cobrir a panela<br />

como um véu de noiva antiga e, depressa, ela revirar aquele alimento salutar numa<br />

travessa e, mais rápido ainda, levar à sala de jantar.<br />

Ainda que fosse servido algum legume ou diferente iguaria, a verdura era<br />

indispensável. Meus pais certamente não sabiam que existiam as recomendações de<br />

comer cruas certas verduras como a alface, a chicória, o agrião.... Conosco, porém,<br />

por volta de 1927-1931, não se comia nenhuma hortaliça sem ir ao fogo; (a horta era<br />

adubada com esterco bovino, bem curado, e mamãe temia uma contaminação.) Mas<br />

nós, crianças peraltas, condicionadas àquele espaço rural, quando à sós, na horta<br />

saboreávamos tomate e alface com sal sem, pelo menos, lavá-los.<br />

Sopa de couve (caldo verde?) agrião, cebola e alho ou couve rasgadinha com<br />

fubá – de remota origem egípcia, contribuição dos portugueses, recebida dos mouros,<br />

ainda no século XII, havia sempre no jantar.<br />

39


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Ovos fresquinhos, à vontade!<br />

Gordura saturada! Que importa. Gostávamos mais do ovo frito,<br />

suando banha, gema bem molinha misturada ao arroz. A clara, que dizem ser de mais<br />

valia, a gente desdenhava. Vendo meus irmãos comerem, pela manhã, ovos quentes<br />

com um pouquinho de sal, meu estômago revirava todo.<br />

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<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Guisado<br />

Várias hortaliças refogadas juntas como chuchu com jiló, berinjela<br />

com abóbora vermelha, quiabo com abóbora d’água, alimentos feitos rapidamente e de<br />

fácil digestão.<br />

Assim como o caldo verde, os mouros ensinaram aos portugueses essa culinária<br />

e, lá em casa, faziam-na sempre.<br />

Quiabo – dizem os pesquisadores, que era grande o cultivo do quiabo na África.<br />

Seus habitantes torravam as sementes dos frutos, quando maduros e faziam uma<br />

bebida semelhante ao café; quando verde e tenro, constituía um elemento<br />

indispensável na culinária africana, principalmente para os que residiam na Costa do<br />

Marfim. Os negros – Escravos nossos. Que horror, Deus meu! – acabaram por nos<br />

legar o costume de cultivar e comer quiabo, mas não conseguiram passar-nos a <strong>cultura</strong><br />

de torrar as sementes – Terra fecunda, os cafezais cobriam os campos.<br />

Eu não sabia que gosto os adultos achavam em comer quiabo; hoje sei: é<br />

saboroso o fruto cônico, quando verde e tenso, daqueles arbustos que papai mandava<br />

plantar, à margem dos canteiros de hortaliças para lhes fornecer um pouco de sombra<br />

e serem adubados e regados jutamente com as verduras.<br />

Franguinho refogado junto com quiabo é muito gostoso, mas só o mineiro para<br />

fazê-lo: algumas gotinhas de limão ao fritá-lo, em fogo brando, eliminarão a substância<br />

viscosa, característica do fruto. Só então é que deve ser refogado ou misturado ao<br />

frango. A experiência é mestra cem vezes melhor do que muitos livros de receita.<br />

Várias lendas indígenas contam como surgiu a mandioca e uma delas reza:<br />

Criança loira, de olhos claros nasceu entre os índios; deram o nome de Mãdi. Mas<br />

crianças loiras não pertenciam à raça, negava as origens; precisavam eliminá-la. Então,<br />

resolveram num conselho, enterrá-la viva na oca, deixando os cabelos de fora. Tempos<br />

depois, nasceu ali um arbusto. Os indígenas arrancaram-no e, com ele, veio àquela raiz<br />

grossa, alimento salutar “MADI-OG” que Mãdi, a criança loira, legou aos de sua tribo,<br />

apesar de ter sido sacrificada.<br />

41


Mandioca, aipim, macaxeira no norte e nordeste; mandioca e seus derivados,<br />

alimentos básicos dos nossos índios.<br />

Foi logo aceita pelos conquistadores portugueses e era de inteiro agrado dos<br />

negros. Chegou até nós, naturalmente, porque seu cultivo é muito fácil e seus<br />

tubérculos radiculares de grande valor alimentício.<br />

Prova de que a mandioca e seus derivados constituíam o alimento básico dos<br />

habitantes do Brasil nos primeiros tempos de seu descobrimento e nos séculos<br />

seguintes é a Cláusula que o governador da Capitania Hereditária da Bahia mandou<br />

registrar no seu código de leis. Queria ele que os agricultores plantassem mil covas de<br />

mandioca correspondentes a cada escravo que possuíssem.<br />

Entre nós, quando eu era criança, preparava–se a mandioca de vários modos;<br />

todavia, a gente gostava mais da mandioca frita, douradinha, cheirosa.<br />

Midipi-ró (pirão em tupi), tribo que apreciava a mandioca e seus derivados e<br />

nos ensinavam a fazer o pirão. Fico feliz com esse legado – gente nossa, passando<br />

para nós a sua <strong>cultura</strong>. Nada de desnacionalização, como acontece em nossos dias,<br />

com a imposição de costumes estrangeiros que só fazem mal ao organismo. Exemplo<br />

disso, é o cachorro quente, tão divulgado entre nós. Em cada esquina um carrinho,<br />

com bujão de gás e tudo.<br />

O Jornal Nacional da Rede Globo (25-01-2000) estava citando o aumento dos<br />

casos de emergência nos hospitais públicos. Cerca de quarenta a cinqüenta pessoas<br />

com intoxicação alimentar recorrem, diariamente, aos hospitais públicos depois de<br />

terem ingerido sanduíches que dizem naturais: pão, recheado com maionese, salsicha,<br />

presunto, tomates e outros ingredientes, molho que fica em aquecimento o dia todo.<br />

Os médicos dizem que o aumento de bactérias é grande em alimentos servidos assim –<br />

o aparelho digestivo da pessoa não resiste à tamanha agressão.<br />

Gostoso o pirão lá de casa, com molho de frango ou de carne e com ovos<br />

estrelados. E a farinha de mandioca de que era feita, mamãe mesmo fabricava. Ficava<br />

horas, ralando aquela quantidade de mandioca. Uma gamela de madeira recebia a<br />

massa grossa que era misturada em um pouco de água filtrada e, depois, coada em<br />

fina peneira de taquara de bambu verde. Na peneira, ficava o que iria ser farinha de<br />

mandioca; parte, mamãe torrava; a outra parte era colocada ao sol para secar. Na<br />

gamela, a água branca que virava polvilho após a evaporação, dois ou três dias depois.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

42


Então, os biscoitos de polvilho ocupavam outro dia inteiro de minha incansável<br />

genitora, que enchia latas e mais latas, para alimentar a sua numerosa prole e<br />

proporcionar-lhe uma vida saudável.<br />

Outros tubérculos eram cultivados e servidos lá na roça, como, por exemplo, o<br />

inhame, o cará, a batata inglesa, mas refogados em forma de mingau, o que os<br />

pequenos recusavam. Gostávamos mesmo era da batata doce frita ou assada na<br />

brasa. Sei agora, que preparada desse último jeito ela não perda nada do seu valor<br />

nutritivo, mantendo sua concentração de amido.<br />

Ah! Que saudade do palmito trazido pelos agricultores, quando estavam<br />

roçando alguma área para o plantio. Quem não conhecesse nem adivinharia do que se<br />

tratava: pedaços de troncos de palmeira nativa, mais nada. O gomo macio do caule<br />

custava a aparecer; cascas e mais cascas eram retiradas, as primeiras, mais duras e as<br />

outras, bem maleáveis. Cortado em pequenos pedaços, aquele núcleo era refogado<br />

com alho e cebola.<br />

Prato delicioso, nutritivo, já usado como alimento entre os indígenas,<br />

principalmente os do Amazonas. É preciso, contudo, ter cuidado ao colhê-lo: existem<br />

palmeiras bravas muito semelhantes ao palmito, que são venenosas; os camponeses<br />

conhecem-nas – são bons observadores.<br />

Nunca mais comi palmito fresco. Comprei-o, algumas vezes, em conserva, mas<br />

corri o risco de uma intoxicação alimentar. A Mídia está alertando sempre: várias<br />

marcas já foram condenadas por conter bactérias. E sabemos como é o controle de<br />

qualidade entre nós.<br />

Havia, na horta lá de casa, um plano elevado, feito de bambu trançado, por<br />

onde as plantas trepadeiras, em vez de espalharem ramas pelo chão, subiam para que<br />

seus frutos não se estragassem ao contato com a terra e não fossem comidos por<br />

insetos ou larvas.<br />

Quem nos passou o modo de preparar essas hortaliças devia ignorar que suas<br />

cascas também devem ser aproveitadas para sopas, purês e em cozidos. Lá em casa<br />

cozinha juntinha da horta, poder-se-ia fazer isso, mas não.<br />

Os livros de nutrição estão aí apregoando que os brotos, as folhas e as flores<br />

são partes ricas da abóbora, podendo ser refogados ou utilizados em sopas.<br />

Por que a gente raspa a abobrinha e descasca o chuchu ao prepará-los se é ali<br />

que reside a maior parte de suas fibras? Já experimentei fazer o chuchu com casca e<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

43


semente notei que o gostinho é melhor, porque o sabor desse legume não aguça o<br />

apetite.<br />

Na nossa horta, as abóboras chamadas de porco, cresciam tanto que a turma<br />

não dava conta de consumi-las e mamãe não gostava de fazer doce de abóboras.<br />

Então, depois de colhidas, eram cortadas em pedaços, com casca, semente e tudo;<br />

postos a cozinhar naquele tachão de cobre constituíam o alimento dos porcos, melhor<br />

e mais substancioso do que qualquer ração atual.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

44


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Canja<br />

Quem não provou, principalmente sendo membro de uma grande e<br />

tradicional família mineira?...<br />

O mais interessante era a tradição de ir selecionando as galinhas poedeiras, lá<br />

pelos sétimo e oitavo meses de gravidez da forte mulher mineira, que parecia ser<br />

responsável pela povoação do mundo. O “Crescei e multiplicai-vos” (Gn.1–28) da Bíblia<br />

era apregoado aos quatro ventos e, nos púlpitos, os padres faziam questão de<br />

ressaltar continuamente essa passagem. Pobres, sacrificadas esposas!<br />

Um longo resguardo, sete dias sem sair da cama. Depois de um parto doloroso,<br />

cheio de mistérios para nós, (Dona Marta, a parteira, dizia trazer o bebê na sua<br />

malinha, que a gente queria abrir de todo jeito, antes que ele fosse entregue à<br />

mamãe) sete dias, alimentando-se, no almoço e no jantar de canja de galinha gorda e<br />

fecunda. E a gente entrava na canja, melhor dizendo, a canja entrava na gente que<br />

adorava aquele modismo. Ficávamos esperando, diariamente a facada no pescoço da<br />

galinha, de pés e asas pisadas pela nossa Berata, para disputar o sangue e a oveira,<br />

que comíamos, quase sempre na mesma hora, cozidos em água e sal.<br />

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O macarrão – macarronada domingueira<br />

Marco Pólo, nas suas arriscadas viagens ainda no século XIII (1277-<br />

1292) trouxera da China para Veneza vários costumes, entre eles, o da <strong>alimentação</strong>.<br />

Dessa cidade da Itália, depressa foram passados para a Península Ibérica tais hábitos;<br />

o que pegou mais, todavia, foi o do consumo do macarrão. Os portugueses que vieram<br />

nos “colonizar”, segundo pesquisas, eram sóbrios na <strong>alimentação</strong>, mas outros povos<br />

aportaram aqui e, com eles, nós brasileiros fomos adotando os costumes, inclusive o<br />

da culinária. Assim, italianos imigrados, para trabalharem nas lavouras de café,<br />

ensinaram-nos a comer a bela e saborosa macarronada.<br />

Lá em casa, como na casa de Paola da novela “Terra Nostra”, exibida pela Rede<br />

Globo, era mamãe quem fabricava o macarrão para a macarronada que era servida<br />

aos domingos.<br />

Cedo, D. Luiza começava a fazer a massa e nós, garotas solidárias, querendo<br />

ajudar, muitas vezes, atrapalhávamos. Ovos, farinha de trigo, água, sal, lá estava ela<br />

com as mãos na massa, batendo aquele bolo branco numa gamela (vasilha de<br />

madeira, em forma de alguidar). Não adiantava nossa impaciência infantil, ansiosa por<br />

ver pronto o que iríamos saborear no almoço, a massa tinha que descansar dizia<br />

mamãe.<br />

Só mais tarde, com um rolo de madeira é que a industrial improvisada, mas<br />

cheia de prática, punha-se, como a "nostra" Paola da novela, a abrir a massa, pedaço<br />

por pedaço; aqueles bocados ficavam grandes quase do tamanho da mesa da<br />

dispensa, fininhos, transparentes mesmos. E não estava pronta ainda – a bendita e tão<br />

esperada massa era posta ao sol, para secar, <strong>sobre</strong> outra grande mesa, salpicada de<br />

farinha de trigo, às vezes do lado de fora da cozinha, a fim de captar os raios solares.<br />

Meia hora depois, a serrinha manual trabalhava (quem dera que fosse como<br />

hoje: minha cunhada possui máquina de amassar, de abrir e de cortar a massa e, nem<br />

por isso, sai tão gostoso o macarrão) mamãe enrolava cada pedaço da massa aberta,<br />

cortava em tiras fininhas, desgarrava e separava aquelas tiras, jogando-as para cima.<br />

Daí para a mesa, poucos minutos. Eu olhava curiosa minha genitora levantando<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

46


aquelas tiras brancas (sempre fui assim, acompanhava os adultos nos seus misteres e<br />

era capaz de repeti-los à risca, sendo embora, um pingo de gente) colocando-as em<br />

água fervendo. Depois com uma escumadeira e um garfo grandes, ir retirando-as aos<br />

poucos, arranjando-as numa travessa, entremeando queijo ralado e molho de tomates<br />

feito anteriormente.<br />

Como a gente gostava daquilo.<br />

– Dio mio!<br />

Nunca mais comi macarronada tão saborosa!<br />

“O gosto dos alimentos, como muitas outras preferências, não é natural e sim<br />

aprendido. Nós não desejamos uma coisa porque ela é boa... ela é boa porque<br />

desejamos” diz B. Spinosa (1632-1677).<br />

– Será?<br />

As mãos diligentes de minha mãe operavam milagres. Fico admirando Paola da<br />

novela e fico lembrando de minha mãe. Se alguém lhe houvesse patrocinado uma<br />

fábrica de macarrão, certamente, nós não teríamos passado tanta necessidade, depois<br />

da morte prematura de meu pai.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

47


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Sobremesas<br />

Acho que papai devia gostar muito de doce – não mais do que nós,<br />

garotos, é lógico – porque mamãe vivia fazendo tachos e mais tachos de goiabada,<br />

doce de cidra cristalizada, doce de figo e de laranja da terra em calda... Era um nunca<br />

acabar. E a gente adorava raspar o tacho.<br />

A goiabada cremosa ia à mesa na própria caixeta, antes assaltada por nós na<br />

dispensa, e o queijo mineiro ralado, numa travessa de louça.<br />

Eu não entendia porque os adultos só comiam doce à <strong>sobre</strong>mesa, quando já se<br />

está com a barriguinha cheia. Por mais que papai proibisse, entrávamos às escondidas,<br />

na dispensa, subíamos pelas prateleiras, puxávamos a tampa de uma daquelas<br />

caixetas e... Que maravilha! A doçura vinha às colheradas, uma atrás da outra. Doce<br />

de leite cremoso, todas as segundas-feiras.<br />

Figos – antes que amadurecessem, lá ia minha laboriosa mãezinha apanhá-los<br />

para fazer doce em calda – era aquela luta durante vários dias: ferve, escorre a água,<br />

ferve, escorre a água até que saísse aquele sumo característico. Para mim, era uma<br />

eternidade aqueles dias, ficava ansiosa, queria comer logo a gostosura que demorava<br />

tanto a sair. O doce de mamão verde ficava pronto mais depressa. Comeram, vocês,<br />

algum dia, os pequenos espelhos, nadando numa calda grossa? Então, não sabem o<br />

que é bom. O cheirinho, o gostinho de canela em pedra, do cravo da Índia, especiarias<br />

responsáveis pelo descobrimento (ou invasão) do solo pátrio, aguçavam a gula.<br />

Já lhes falei da azáfama quando se matava capado lá em casa, disse-lhes que<br />

mamãe não deixava nada perder, nem mesmos os pés do porco – mocotós. Depois de<br />

lavadinhos, sapecados os pêlos e raspados, eram postos a cozinhar durante várias<br />

horas, sempre naquele tacho, que dava trabalho para ficar reluzente, na fornalha<br />

alimentada por lenha. Calor? Não faltava à beira do fogão de uma trempe só, mas<br />

mamãe ficava ali firme, vigilante.<br />

Uma vez cozidos, os ossinhos já todos separados, coava-se aquela mistura.<br />

Duas ou mais horas depois, para que o conteúdo esfriasse, a gordura talhada por<br />

cima, como uma nata, era retirada pacientemente pela doceira. Só então, aquela<br />

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substância cor de chumbo era novamente coada numa peneira de taquara e levada ao<br />

fogo com uma dose proporcional de açúcar. Mexe pra lá, mexe pra cá, tira-se ponto<br />

em água fria, fogo brando para não queimar e... Finalmente. Mas, nós gostávamos da<br />

geléia bem branquinha, partida, depois, em pedaços e não daquele creme de cor<br />

indefinida, que lembrava pés de porco.<br />

Então, outro exercício forçado se impunha: mãos corajosas, colher de pau<br />

enorme, rodavam o doce no tacho já fora do fogo até que ficasse consistente.<br />

– Esperem esfriar, crianças, senão vai dar dor de barriga.<br />

Dizia mamãe.<br />

A geléia industrializada de hoje, bonita, transparente, vindo embalada num<br />

copo de vidro ou numa caixinha de papelão. – Será que é feita de mocotó mesmo? Só<br />

se for de mocotós de anjos, tão fina, tão vidrada ela é.<br />

A gente compra assim mesmo – que importa? É preciso encher os bolsos dos<br />

empresários, engordar-lhes as contas bancárias para que eles possam construir ricas<br />

mansões e fazer turismo todos os anos pela Europa e pêlos Estados Unidos. “C’est la<br />

vie”.<br />

Mineiro é mesmo uma gente tradicional. – Será pelo fato de Minas Gerais ser<br />

um estado interiorano? Até pode ser.<br />

Pois bem, no interior de Minas, as mulheres dedicam-se até hoje, a fazer doces<br />

deliciosos, como minha mãe. Agora mesmo, a Hélia me trouxe de São Pedro dos<br />

Ferros, onde esteve em visita a minha irmã doente, duas compotas de doces em calda,<br />

uma de figos outra de goiaba fabricadas por uma amiga nossa. E que doces! Nossa<br />

amiga faz até sob encomenda.<br />

Também Maria das Graças, uma amiga, que veio passar a semana de carnaval<br />

conosco, foi portadora de saborosas rosquinhas caseiras que uma amiga faz e até<br />

abastece os mercados lá de Visconde do Rio Branco. Tradição! Cultura mineira! Nós a<br />

reverenciamos!<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

49


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O café<br />

Cafezinho após o almoço.<br />

– Venha, menina, moer o café para mim; já estão tirando a mesa, ainda que<br />

estejam entretidos na conversa.<br />

Dizia Berata, a afilhada de meus pais, agregada à nossa família desde pequena<br />

– negra que a gente adorava, mãezona para nós. Eu, aquele tico de gente, subia num<br />

banco e rodava a manivela do moinho, um milhão de vezes, ora com a mão esquerda,<br />

ora com a direita.<br />

Num intervalo de quinze minutos, o líquido forte, escuro, fumegante era levado<br />

à sala de jantar por uma de minhas irmãs mais velhas.<br />

Como este hábito persistiu, não só em Minas como no Brasil inteiro! Até nos<br />

restaurantes de comida a quilo, a garrafa térmica fica na saída, para aqueles que não<br />

dispensam o cafezinho, após as refeições.<br />

Desde a Segunda metade do século XVIII, foi introduzido no Brasil, o costume<br />

de tomar café, embora as primeiras mudas tivessem vindo antes, de Caiena. Pobres e<br />

negros tomavam-no imoderadamente.<br />

Debret, artista francês, registrou em seus desenhos negras ambulantes<br />

vendendo café nas ruas do Rio de Janeiro, à semelhança com que se fazia com o leite,<br />

antigamente.<br />

Na zona rural, porém, isso não acontecia: o café chegava à mesa, sim, mas só<br />

depois de um longo caminho, percorrido por ali mesmo.<br />

Senão, vejamos:<br />

Linda a plantação – terreno preparado anteriormente, adubo feito em casa<br />

mesmo com dejetos bovinos, depois de secos e “imunizados”, por assim dizer, pela<br />

“diquada” que mamãe fazia: coava a cinza, socava-a bem numa lata de querosene<br />

vazia, perfurada por baixo e posta num tripé. Depois, ia colocando por cima a água,<br />

que saia cor de chumbo por baixo e era recolhida num recipiente.<br />

Pés de café enfileirados, vigilância constante por causa das pragas e dos<br />

passarinhos insaciáveis, quando o café começava a amadurecer. Para afastá-los, eram<br />

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colocados bem alto em vários pontos, de braços abertos, espantalhos de forma<br />

humana. O vento sacudia aqueles fantasmas e a passarinhada gulosa retrocedia com<br />

medo.<br />

Os espaços entre os pés de café eram arruados. Quando chegava a época da<br />

colheita e mãos humanas poderosas, grossas, calejadas, sem luvas mesmo, faziam o<br />

café cair em balaios de taquara ou mesmo no chão, puxando os ramos, galhos abaixo,<br />

sem recuar diante do incômodo que isto lhes causava.<br />

Diariamente, aquela enorme quantidade de frutos pequenos era espalhada no<br />

terreiro para secar e recolhida à noite. Lembro-me, perfeitamente, de como esse<br />

terreiro era preparado – nada de asfalto, cimento ou coisa similar.<br />

Os excrementos colhidos no curral eram colocados num poço, por cima deles a<br />

tal “diguada” para amolecê-los e matar as bactérias. Passava-se, então, aquela massa<br />

mole, retirada com balde, no terreiro destinado à secagem do café.<br />

Vejam o que pode acontecer com crianças: minha irmã, levada da breca, e eu<br />

estávamos brincando à beira daquele poço e... num dado momento... zás... Ela,<br />

inadvertidamente, empurrou-me e lá fui direto ao fundo. Agricultores que estavam por<br />

perto retiraram-me em poucos segundos. Mas eu era uma torta escura dos pés à<br />

cabeça – olhos, ouvidos, nariz cheios daquela massaroca. Recordo só de quando<br />

estava na bacia e de duas ou três mucamas jogando, sem parar, água <strong>sobre</strong> minha<br />

cabeça. Papai não estava em casa, contudo, mamãe, imediatamente mandou que<br />

entupissem o poço, ela que sempre procurava fazer as coisas com anuência do papai.<br />

Minhas irmãs, quando brigavam comigo, diziam que eu tinha sido batizada na... ; eu<br />

morria de raiva.<br />

Retornemo-nos à preparação trabalhosa e longa do café: serviçais reviravam-<br />

no, várias vezes ao dia, com um rodo grande, de cabo longo. Os grãos demoravam a<br />

ficar secos. Só então, como o arroz, socavam-no e sopravam até que as cascas e peles<br />

desgarrassem todas. E não acabava aí; faltava a torrefação que se fazia num tacho<br />

enorme, <strong>sobre</strong> a fornalha de fogo à lenha. Aquele cheirinho anunciava aos colonos que<br />

viessem apanhar as suas cotas; a nossa era guardada em latas grandes, bem<br />

fechadas, para que o odor não escapasse. Lá em casa, só era moída a porção para a<br />

hora do café, coado duas a três vezes por dia. E era no coador de flanela, tripé e tudo.<br />

Acho que meu pai iria por obstáculos ao uso dos práticos descartáveis atuais. Uma<br />

sobrinha minha, carioca morando no Rio de Janeiro a vida toda, só usa o coador de<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

51


pano, diz ela que o cafezinho sai muito mais gostoso. – Será?... Comigo, não. Estou<br />

partindo para as coisas mais práticas, mais fáceis. A idade me tem imposto muitas<br />

limitações. Ficar de pé durante muito tempo é um suplício e para lavar louça tenho que<br />

usar luvas, por causa de um mal estranho que me apareceu na cutícula de algumas<br />

unhas (e olhem que eu nunca fiz unhas como as mulheres atuais que cortam as<br />

cutículas para aumentar o tamanho das unhas) e que nenhum profissional, até hoje,<br />

acertou a medicação. Deve ser mal crônico como quase toda a doença de idoso.<br />

Pergunto: – Qual o brasileiro que, andando por aí, não pára a fim de tomar um<br />

cafezinho? Os senhores médicos dizem que agride o estômago. É verdade, mas<br />

somente tomado em excesso. Ouço sempre a rádio CBN, que é especialista em<br />

notícias, informações úteis e várias dicas científicas. Outro dia um médico falava algo<br />

de interessante: disse que o café contém nove substâncias estimulantes,<br />

principalmente para o cérebro, substâncias até então desconhecidas pela Medicina<br />

Tradicional. É por isso que a gente fica tão viva quando toma o gostoso cafezinho,<br />

depois das refeições quando a preguiça se anuncia.<br />

Já notaram que o cafezinho aquece o corpo? Nas nossas pescarias, há duas<br />

décadas atrás, o frio maltratava-nos à beira das lagoas. Meu cunhado então, preparava<br />

a célebre caipirinha – pinga com limão e nos dava para beber. Qual o que? A danada<br />

descia queimando esôfago abaixo, mas subia era para a cabeça; corpo e pés<br />

continuavam gelados. Então recorríamos à garrafa térmica de café. Aí sim o sangue<br />

voltava quente aos pés que nos sustentavam, às mãos que mantinham <strong>sobre</strong> a água<br />

gelada molinetes e varas com iscas.<br />

O Governador do Pará, João da Maia da Gama, enviou uma expedição à<br />

Guiana, em 1727, comandada pelo Sargento-Mor Francisco de Mello Palheta, com<br />

finalidade diplomática, e a de obter sigilosamente alguns grãos de café.<br />

Tão bem desempenhou Palheta a sua missão, que acabou conquistando a<br />

confiança e a amizade do governador da Guiana, Claude d’Orvilliers, e de sua esposa.<br />

Graças a sua habilidade, Palheta conseguiu da madame d’Orvilliers algumas mudas de<br />

café, o que contrariava ordens do Governo Francês. Iniciou-se, assim, a plantação de<br />

um produto básico da economia brasileira, que viria a dar ao Brasil o título de maior<br />

produtor e exportador de café.<br />

Desde de que solicitaram na UnATI para escrever <strong>sobre</strong> a história da<br />

<strong>alimentação</strong> no Brasil, estou atenta a tudo a que se refere este tema. Fiquei toda<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

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contente, quando encontrei esta informação na embalagem do café que usamos. Ela<br />

vem confirmar os dados da pesquisa que fiz <strong>sobre</strong> o café.<br />

Será o Brasil ainda o maior produtor e exportador de café do mundo?<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

53


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

As frutas da fazenda<br />

Um pomar bem grande, com muita variedade de frutas nossas, muito<br />

nossas, muito brasileiras. Gurias levadas, optávamos pelo fruto proibido: goiaba verde,<br />

tenrinha ainda, comida com sal, às escondidas de papai. Achávamos aquilo uma<br />

delícia.<br />

Na época da jabuticaba era um “Deus nos Acuda”. Trepávamos no pé<br />

escorregadio de tronco grosso, mas de galhos finos e quebradiços, salpicados de frutos<br />

pretinhos e agarrados árvore. A colheita era consumida ali mesmo: troc, troc, troc,<br />

com semente e tudo. No dia seguinte, o trabalho que dávamos não está no gibi: ao<br />

visitarmos o “water-closed”, sofríamos e até chorávamos – não conseguíamos realizar<br />

a tarefa tão salutar. Naquele tempo, só mesmo “Óleo de Rícino” ou “Sal de Glauber” a<br />

que tínhamos horror. E o pior era ficar em jejum até que o problema fosse resolvido.<br />

Então mamãe, filha de boticário e meio inclinada a médico, aplicava em nós "Clister" e<br />

era bater e valer.<br />

No outro dia, lá estávamos nós na jabuticabeira, saboreando aqueles frutos<br />

docinhos, de casca fina mas de semente grande, que engolíamos de uma só vez.<br />

Depois de colhidas, essas frutas não podem ser guardadas por muito tempo: perdem o<br />

sabor; naturalmente, por esta razão, elas não são comercializadas. É raríssimo a gente<br />

encontrar num hortifruti ou num supermercado jabuticabas para vender.<br />

Os índios tupis apreciavam esses deliciosos frutos e, como nós crianças,<br />

comiam-nos também nos próprios pés.<br />

As carambolas não eram muito cobiçadas pelos infantes gulosos lá de casa.<br />

Quando amadureciam, acabavam caindo ou eram comidas pelas maritacas pabadeiras<br />

que faziam uma enorme algazarra.<br />

Nós, crianças gulosas e impacientes como toda a criança, não queríamos perder<br />

tempo, descascando as laranjas que colhíamos nos pés baixinhos lá da roça. Também<br />

mamãe não permitia que saíssemos com faca na mão, desde o acidente que cegou<br />

uma das vistas de Cyro, meu terceiro irmão: Milton, o mais velho, estava descascando<br />

cana com o facão e o outro se aproximou demais. Foi uma coisa horrível, não houve<br />

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como recuperar o olho esquerdo do mano, vazado inteiramente com aquele golpe de<br />

criança que não vê o perigo. Desde esse acontecimento, como já disse, criança não<br />

pegava em faca lá em casa e mamãe mandou cerrar as pontas das tesouras com que<br />

gostávamos de brincar, fazendo roupinhas para bonecas. Temos guardado uma dessas<br />

tesouras sem pontas até hoje.<br />

Lembro-me de como nos fartávamos daquelas laranjas deliciosas e cheias de<br />

caldo; sentadas em rodinhas, à volta da cozinheira que as descascava para nós, não<br />

tirando a pele. Fazendo uma aberturinha em cima, o que chamávamos de mamurcha.<br />

E era caldo que não acabava mais. Hoje em dia, a gente não consegue fazer isso mais,<br />

pelo menos com as laranjas-lima que usamos: são duras e muitas vezes ressecadas.<br />

Faço diariamente laranjada para Hélia (sim, para Hélia porque não posso tomar<br />

suco de espécie alguma... É uma tristeza: meu estômago não funciona. Há poucos<br />

anos atrás, tínhamos no lugar do jantar, uma batida de frutas e legumes crus que era<br />

uma beleza e... me sentia bem) e, tenho dificuldade em espremer as laranjas apesar<br />

de o espremedor ser elétrico: as cascas são grossas, possuem quase um centímetro de<br />

pele e os gomos tem os bagaços duros.<br />

Bóris Casoy, 18/02/2000, no jornal da Record, às 7:15 da noite, estava falando<br />

<strong>sobre</strong> a chilela, bactéria que ataca o laranjal, causando manchas duras e amareladas<br />

nas laranjas a que os agrônomos chamam de amarelinhas. Pesquisadores brasileiros<br />

da Universidade Rural de Viçosa, MG, descobriram a genética das tais bactérias e<br />

encontraram meios de combatê-las sem prejudicar o laranjal com o execrável<br />

agrotóxico.<br />

Mexericas (mexer+icar). O povo sabe das coisas: chamou a tangerina de<br />

mexerica porque, realmente, ela é intrigante, denuncia a gente. Cheiro forte, sumo<br />

acre, fazendo a criançada derramar lágrimas ao descascá-la, nem por isso deixavam de<br />

comê-la – não ficava, sequer, uma no pé carregadinho, cujos frutos amadureciam<br />

quase todos ao mesmo tempo. A mexeriqueira acusava logo a nossa arte. Mamãe fazia<br />

de contas e papai que era mais exigente, como já tive oportunidade de dizer, nem<br />

ficava sabendo. Mas, ele investigou de certa feita qual era o comilão que tirara uma<br />

fatia na linda melancia, posta na dispensa, para acabar de amadurecer. Essa fruta,<br />

depois de cortada, estraga-se depressa, ainda mais quando não é conservada na<br />

geladeira.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

55


Lá em casa não deixavam que ela acabasse de amadurecer no pé para que não<br />

se estragasse, pois conserva sua cor esverdeada por fora, apesar de vermelhinha e<br />

suculenta por dentro. Para saber se está madura, corta-se um quadradinho. Testa-o e<br />

torna-se a colocá-lo no lugar tampando a melancia.<br />

A melancia é produzida por uma planta da família das curcubitáceas, a que<br />

pertencem também o melão, o maxixe, o pepino, abóbora, a bucha e o chuchu. É<br />

oriunda da Índia e aclimatada no Brasil, sendo cultivada em todos os estados do país.<br />

Junto da porta da cozinha, ficava uma enorme parreira de uvas pretas, cada<br />

cacho que começava a mudar de cor era revestido com um saquinho de pano que<br />

mamãe fazia a fim de proteger os deliciosos frutinhos dos pássaros gatunos: canários,<br />

pardais, carriças faziam a festa quando descobriam algum cacho maduro sem<br />

proteção.<br />

A gente investigava todos os dias para ver se os cachos já estavam no ponto;<br />

aí, então, já se sabe, a vez era nossa até que mamãe desse conta.<br />

Só conheci a uva branca no último natal que papai passou conosco, em 1930.<br />

Elas chegaram à nossa casa num caixote grande, protegidas por serragem de madeira,<br />

assim como as lindas maçãs. A pequenada atenta e inquieta em volta dos caixotes –<br />

papai pos-se a retirar as tábuas que os vedavam. Que odor! A casa inteira recendeu.<br />

Frutas lindas, vermelhinhas começaram a aparecer, quando se ia afastando a<br />

serragem.<br />

No meu mundo infantil, imaginação cheia de fantasias, pensei com meus<br />

botões: devem ter vindo do céu; mamãe disse que lá existem coisas boas e belas; os<br />

anjos, naturalmente, passam bem o tempo todo comendo essas deliciosas maçãs<br />

Mais tarde, quando morávamos na cidade e meu pai já havia falecido, quase<br />

menina-moça, eu vi as maçãs pela segunda vez (naquele recanto só se vendiam frutas<br />

nacionais); foi quando um parque de diversões – novidade ansiosamente esperada –<br />

se instalou no centro daquele lugarejo: foguetes, bandas de música, luzes, muitas<br />

luzes. À noitinha, junto com minha melhor amiga – havíamos ido ver aquele mundo<br />

encantado – senti novamente o inebriante odor e pude ver empilhadas, em forma de<br />

pirâmide, aquelas maçãs reluzentes, convidativas. Falei a Yayá, minha amiga:<br />

– Certamente isto aqui não é o túmulo de algum faraó do Egito, como<br />

aprendemos na escola, e sim a morada dos deuses no Olimpo.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

56


Hoje em dia, não sinto mais o cheiro da maçã que me inebriava, meu olfato<br />

está comprometido, assim como a minha visão e minha audição.<br />

– Estou tão decadente, assim Deus do Céu, que as frutas, outrora deliciosas já<br />

não me sabem bem? Como as ingiro somente por ingerir? É preciso fazer a carcaça<br />

ficar de pé. A vida continua e o alimento é vida, bem único, intransferível.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

“Naqueles tempos ditosos...<br />

Eu ia colher as pitangas.<br />

Trepava a tirar as mangas...”<br />

(Meus Oito Anos, Casemiro de Abreu)<br />

Pit-tãg (do tupi – vermelho). Os pés eram baixinhos, copados a ponto de a<br />

gente não ver os frutinhos vermelhos, escondidos entre as folhas. Mas nós, marotas já,<br />

sondávamos todo o pomar e disputávamos com as abelhas e marimbondos aquelas<br />

delícias que os céus mandavam.<br />

Já as mangueiras eram altas, mas a gente subia assim mesmo, apesar das<br />

proibições constantes.<br />

Os portugueses fizeram bem em trazer da Índia, três a quatro anos após o<br />

descobrimento, as sementes desta fruta tão saborosa, tão nutritiva e tão fácil de<br />

adaptar-se.<br />

São muitas as variedades de manga, todavia, a mais saborosa é a manga ubá,<br />

justamente a que tínhamos no nosso pomar – dois pés carregadinhos davam para<br />

satisfazer a meninada gulosa, que tirava a casca com os dentes e chupava até que a<br />

semente ficasse branquinha.<br />

Era só entrar no paiol e lá estavam dependurados cachos e mais cachos, uns já<br />

maduros, outros de vez. Ficava olhando os serviçais cortarem os cachos prestes a<br />

amadurecer. Com eles, foiçava também as bananeiras e eu me intrigava com aquilo.<br />

Dias depois, ao voltar ao local, lá estava a bananeira, esquecida da foice que lhe tirava<br />

a vida, brotando novamente; os empregados diziam que a próxima safra seria mais<br />

abundante e os frutos mais saborosos. “Bananeira que já deu cacho” – sabem o que<br />

quer dizer?<br />

Banana prata. Banana nanica – enorme, que ironia! Banana da terra – Berata<br />

fritava-a para ser servida com açúcar e canela, à <strong>sobre</strong>mesa. Banana d’água – cozida é<br />

57


muito gostosa e o doce que mamãe fazia com ela era mais gostoso ainda. Banana<br />

maçã – casca fininha, sabor delicioso, todavia, fácil de se estragar depois de madura:<br />

incha e a casca arrebenta, difícil de ser encontrada em supermercados e nos hortifrutis<br />

justamente por esta razão.<br />

Hélia, minha irmã, sabe que eu gosto de banana-maçã, por isto, trouxe lá do<br />

interior de Minas, onde esteve agora, três pencas lindas para mim, apesar do peso.<br />

Banana ouro, ouro mesmo, amarelinha, cacho dobrado em frutos, mais cheios<br />

que os outros todos. Uma dúzia para cada um dos pequenos lá de casa era pouco. Elas<br />

são miudinhas e apetitosas. Todo mundo gosta, todo mundo come: pobres e ricos,<br />

idosos e crianças, doentes e sãos. Fácil de descascar, no mundo apressado de hoje, ela<br />

pode matar a fome e revigorar o organismo debilitado.<br />

Outro dia na TV, um técnico de atletismo disse que, antes das disputas, faz os<br />

seus atletas comerem bananas – dá força, dá vigor, dá resistência.<br />

Que consolo saber que o Brasil é o maior produtor de bananas do mundo! Entre<br />

nós, não é como na Europa ou nos países do hemisfério norte, onde se compra banana<br />

por unidade, com um selinho em cada uma, como as frutas importadas e raras por<br />

aqui. E lá, dão grande valor à banana, ela é servida nos hotéis de cinco estrelas. Deus<br />

é brasileiro mesmo!<br />

O abacaxi não atraía muito a pequenada lá de casa, pois colhê-lo não é fácil: é<br />

preciso um facão amoladinho para não cortar as mãos nas suas folhas serrilhadas.<br />

Além do mais, sua casca é grossa e áspera, é capaz de espetar também; não é<br />

qualquer um que pode descascá-lo. Aliás, o povo, quando se refere a uma coisa difícil,<br />

desagradável, diz: “Que abacaxi”.<br />

Mamãe falava que o abacaxi fazia mal.<br />

– É ácido meninas.<br />

Mas a gente gostava de coisas ácidas, como já disse. É verdade que minha<br />

genitora ignorava o valor nutritivo do abacaxi, descoberto com as pesquisas atuais. Ele<br />

é rico em vitaminas, em sais minerais! E 100 gramas de abacaxi contém 93 gramas de<br />

água.<br />

Somos tão descuidadas nesse ponto; minha nutricionista prescreveu-me tomar,<br />

no mínimo, 2 litros de água por dia e eu, que me esforço tanto para isso, não chego a<br />

tomar meio litro, apesar de colocar a garrafinha junto de mim, quando estou<br />

trabalhando. Acho o gosto da água ruim e misturo a ela um pouco de água mineral<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

58


com gás, mas assim mesmo tenho dificuldade em tomá-la. Invejo as pessoas que<br />

reviram um copo duplo de uma só vez. Uma de minhas amigas já me perguntou<br />

porque eu bebo só três ou quatro golinhos. Eu não havia reparado nisto, tentei ingerir<br />

um pouco mais e... Uma forte dor no estômago maltratou-me durante alguns minutos.<br />

Louvado seja!<br />

Fico imaginando as gerações futuras sem a água potável natural, que<br />

recebemos sem restrições; sim, porque os cientistas estão profetizando a carência da<br />

água no globo terrestre nos vindouros séculos. Não sabia eu que, apesar de nosso<br />

planeta ser formado de três quartas partes de água e somente uma de terra, apenas<br />

um por cento deste precioso líquido é potável. Estão quase implorando que se<br />

economize água, que não deixemos as torneiras abertas, que não se lavem carros e<br />

calçadas com jatos de mangueiras. Preocupação tola essa minha, não? Sei que os<br />

cientistas vão pesquisar e conseguir que a água saborosa seja transformada em<br />

potável; como já tive oportunidade de assistir na TV, experiências desse tipo estão<br />

sendo realizadas nas Universidades.<br />

Claude Bernard, um grande fisiologista do século XIX, descobriu que bilhões de<br />

células do corpo humano vivem em um líquido que mantém para elas um ambiente<br />

adequado. Precisamos tomar muita água, ainda mais nós, idosos, que vamos perdendo<br />

grande quantidade desse líquido abençoado à medida que os anos se acumulam. E, a<br />

maioria das frutas contém uma porcentagem enorme de água, tanto assim que,<br />

quando estou com a boca seca, uma laranja, um caqui e até mesmo uma banana me<br />

dessedentam.<br />

Berata descascava o abacaxi para nós, cortava-o em fatias redondas e a gente<br />

consumia um inteirinho em poucos minutos. Lembro-me ainda do gostinho de uma<br />

espécie de um suco delicioso que mamãe fazia com as cascas do abacaxi: a “Gasosa”.<br />

Mergulhava-se em água filtrada e ai as deixava durante dois ou três dias, para que<br />

fermentassem. Depois, apenas coar e colocar açúcar; aí, era servida às refeições.<br />

Graças a Deus, papai não tinha o hábito de bebida alcoólica: a caipirinha não era de<br />

forma alguma o aperitivo lá de casa; presenciei, quando criança, vizinhos nossos,<br />

parente inclusive, consumindo pinga, antes das refeições e até mesmo em outras<br />

oportunidades. Então, pensava com os meus botões: isto deve ser uma coisa horrível,<br />

pois todos que a tomam raspam fortemente a garganta e fazem uma careta horrorosa.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

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O araçá é uma fruta azedinha, azedinha... Mas a criançada gostava de ficar<br />

debaixo dela e ficava ali, naquela sombra refrescante, enquanto havia fruta no pé.<br />

Já a jambosa – muito vermelha, quase grená por fora, cor de neve e esponjosa<br />

por dentro é uma fruta inofensiva, ninguém proibia comê-la e a casquinha fina,<br />

semelhante à da pêra, não engasgava a pequenada que se sentia atraída por toda<br />

aquela beleza carmim. E o caju, segurava-se pela castanha marrom e era levado à<br />

boca, sem lavar, sem nada; era uma questão de segundos. Nunca aproveitamos<br />

aquela noz que o caju tem como apêndice, como fazem em alguns estados brasileiros<br />

que o cultivam mais por causa da castanha. Dizem que, depois de torrada, tem um<br />

agradável sabor, além de ser nutritiva.<br />

Pergunto-me: com este festival de frutas, teríamos nós apetite para ingerir o<br />

arroz com feijão, os legumes e verduras que nosso pai determinava?<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

60


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Café da manhã e lanche<br />

A família não se reunia nem para o café da manhã nem para o lanche<br />

quando eu ainda era menina ainda. Papai levantava-se pela madrugada, acordava<br />

meus três irmãos mais velhos, que eram ainda menores e lá iam ao rastro das<br />

formigas cabeçudas – saúvas terríveis – que voltavam ao formigueiro – verdadeiro<br />

arrastão – com o fruto do assalto feito às nossas plantas tão bem cuidadas pelo meu<br />

pai.<br />

Mesa posta, sim, com as variedades providenciadas pela esposa diligente do<br />

um agricultor que provia. A casa cheia de rebentos era surtida de biscoitos de polvilho,<br />

roscas doces, cuscuz, broas de fubá, requeijão feito em casa e a miraculosa manteiga<br />

– nunca a manteiga importada da Irlanda, desde o tempo do Império, restrita à mesa<br />

dos afortunados, mas aquela que nossa abençoada mãe se dava ao trabalho de bater.<br />

Fervido o leite, era colocado em dois grandes caldeirões esmaltados. Na dispensa,<br />

ficava coberto apenas com um pano de prato, afim que esfriasse logo e formasse<br />

aquela nata grossa, suculenta, generosa. À tarde, era retirada e guardada para se<br />

juntar à do dia seguinte. Aí, mamãe se punha a batê-la numa gamela com uma colher<br />

de pau. A operação era bem demorada. Bate... Bate... Roda... Roda... Aquela<br />

substância branca. Devagarzinho, um soro cor de champanhe começava a se soltar e a<br />

nata, antes opaca, ia ficando transparente e se juntando num bolo grande. Batia mais<br />

– coitada de mamãe –, mais um pouco, escorria o soro. Pronto! Ali estava a manteiga,<br />

agora era só lavá-la e colocar um pouco de sal. Que coisa saborosa, passada na rosca-<br />

doce e na broa de fubá. Atualmente – ano 2000 – é a margarina “diet”, quase sem<br />

sabor, determinada pela nutricionista, que usamos.<br />

Não sou afortunada como nossos vizinhos – família Peixoto de Castro – que<br />

eram donos de uma enorme mansão, verdadeira chácara, que ocupava a rua Santa<br />

Amélia inteirinha e mandavam vir, diariamente de suas fazendas, uma bem tratada<br />

vaca holandesa que era ordenhada “in loco” a fim de que tomassem o leite fresquinho.<br />

Nem jamais experimentei o leite de búfala.<br />

61


Na Ilha de Marajó, e agora em alguns estados do nordeste como o Ceará, estão<br />

praticando a criação de búfalos, mais resistentes, mais mansos e mais lucrativos do<br />

que o gado bovino. Sabe-se que uma búfala chega a procriar até aos trinta anos de<br />

idade e produz diariamente, de dez a doze litros de leite. Que generosidade...<br />

Aqui em casa, adotava-se, atualmente, o consumo de leite em pó, mais prático<br />

para nós – o idoso tem que ir se adaptando às suas limitações – não podemos descer<br />

três lances de escada todos os dias, para comprar os saquinhos, que dizem ser frescos<br />

e trazem validade, como fazíamos há duas décadas atrás. A gente até compreende,<br />

numa grande metrópole como o Rio de Janeiro, que tudo tem que vir mesmo pré-<br />

fabricado, pré-embalado. Não teria sentido, seria mesmo impraticável, o burrinho, com<br />

dois latões no lombo, puxado pelo leiteiro gritando: Olhem o leite! Olhem o leite! Como<br />

se fazia antigamente ou como se prática ainda em pequenas cidades do interior.<br />

Coisa que eu fui prestar atenção somente agora, em que me sinto tomada pela<br />

temática da <strong>alimentação</strong>, é nas embalagens e nos rótulos. Outro dia ouvi perplexa, um<br />

técnico em nutrição dizer que, às vezes demoram até cinco anos pesquisando a<br />

maneira mais convincente de elaborar uma embalagem. É por esta razão que vivem<br />

trocando de embalagem e comunicam isso com tanta ênfase – A mídia está aí para<br />

que?...<br />

Voltamos à longínqua infância: nutritivo realmente o nosso antigo lanche, como<br />

disse antes, apesar do trabalho que dava para ser preparado. Atualmente, não há<br />

tempo para tanto, é caixinha disso, potinho daquilo e não sei mais o quê, do mercado<br />

direto para o estômago da criança, na rua mesmo com o célebre canudinho. Os<br />

tempos mudaram e tinham mesmo que mudar. O pior é o divulgado refrigerante que<br />

resolve rápido todos os problemas; chega uma visita, em vez de se oferecer um<br />

cafezinho no inverno ou suco natural no verão (dá trabalho, sejamos práticos, pra que<br />

ficar com a barriga no fogão?) Lá vai o refrigerante geladinho. Quem não gosta?<br />

Não damos oportunidade ao guaraná tão sadio, produto nosso, já preparado há<br />

séculos pelos índios, especificamente os mahués, que o serviam como refresco e<br />

mesmo para saciar-lhes a fome, quando lhes faltavas o que comer.<br />

E o mate, folhas que os guaranis mascavam, atribuindo-lhe virtudes curiosas.<br />

Só mesmo entre os gaúchos que o consomem no decantado chimarrão. Nós muito<br />

raramente, nos servimos dele.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

62


Os fast food da vida estão aí forçando, impulsionando o consumo dos<br />

malfadados hambúrgueres. E os cachorros quentes vendidos nas lanchonetes!<br />

Naqueles caldos conservados quentes, o dia inteiro. Proliferam bactérias e bactérias<br />

que prejudicam a <strong>saúde</strong>.<br />

Outro dia, tive enorme tristeza, ao ver na TV um comercial, por sinal muito bem<br />

feito: crianças de cinco a seis anos, com mochila nas costas, chorando e agarrando-se<br />

aos pais porque iam para a escola pela primeira vez. Então, os pais lhes mostravam os<br />

tais sanduíches de presunto da uma certa marca que lhes haviam preparado como<br />

merenda; imediatamente, as criancinhas se alegraram e, pegando a mochila, foram<br />

contentes para a escola (felizmente esse comercial saiu do ar pelo menos por<br />

enquanto).<br />

Sorvetes deliciosos, mas cheios de gordura, e outras coisas mais, atraem, são<br />

irresistíveis às vezes, não resta dúvida. Dizem que os americanos gastam mais de 20<br />

milhões de dólares com sorvete – dinheiro que daria para matar a fome de todas as<br />

crianças pobres do mundo. Que eles se restrinjam aos seus ricos estados e não fiquem<br />

impondo tais costumes para nós – brasileiro valoriza muito o que vem de fora! Essa<br />

mania já é antiga. Nos tempos coloniais, nem se fala. Mesmo com o Brasil<br />

independente, as iguarias importadas da Europa eram usadas, principalmente, nas<br />

altas rodas: vinhos franceses, cervejas alemãs (já popularizadas), queijos do Reino,<br />

conservas e doces vários.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

63


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Banquetes na fazenda<br />

Nas comemorações de aniversário, quando eu era criança, não<br />

havia bolo confeitado como hoje, com velhinhas a apagar, nem salgadinhos, muito<br />

menos docinhos sofisticados. Papai oferecia aos amigos e parentes fartos banquetes<br />

cuja fama corria o mundo.<br />

Neste ponto, meu irmão mais novo – que vai fazer setenta anos – puxou meu<br />

pai, apesar de não tê-lo conhecido, pois estava apenas com oito meses quando meu<br />

progenitor faleceu; aos domingos, os vizinhos e amigos do Engenho Novo já sabem;<br />

vêm chegando de mansinho, como alguém que não quer nada, para o churrasco que<br />

se anuncia pelo odor e, o pior, para a cervejada. Bebida alcoólica não entrava lá em<br />

casa. Para os banquetes, o tradicional vinho e... em pequenos cálices.<br />

Recordo-me da casa cheia dos que se diziam amigos e daquela azáfama na<br />

preparação durante toda a semana que antecedia os festejos. Mamãe não poupava<br />

esforços e minhas irmãs mais velhas ajudavam-na o dia inteiro.<br />

Leitoa assada era imprescindível para o almoço festivo: lembro-me da pobre<br />

coitada, que gritava tanto para morrer, mergulhada no tempero e esticadinha numa<br />

gamela grande desde a véspera. A gente metia o dedo para provar – hum! Ardia como<br />

fogo – no outro dia era recheada com farofa e ia ao forno na postura de viva, pata<br />

dianteiras para frente, cabeça reta, boca aberta onde, depois de assada, colocava-se<br />

ovo cozido, além de azeitonas nas cavidades de onde tinham sido retirados os olhos.<br />

Dentro de algumas horas, coradinha, cheirosa, era levada à mesa num bandejão de<br />

garçom com rodelas de limão enfeitando-lhe o dorso e farofa ao redor. Parecia que a<br />

bichinha estava viva, espojada na farofa, prestes a dar um basta e saltar pela mesa<br />

impecável causando pânico aos glutões que já estavam com a boca cheia d’água. Eu<br />

torcia para isso. Mas... Que pena... Jamais aconteceu. Contentava–me em esgueirar-<br />

me sorrateiramente pelos cantos das paredes até a dispensa onde provava, com o<br />

indicador arteiro, cada uma das desejadas <strong>sobre</strong>mesas que se ostentavam convidativas<br />

naqueles grandes pratos de cristal. Aquilo sim, valia a pena. É verdade que não podia<br />

64


satisfazer de todo minha guloseima infantil. Mas surrupiava um quindim ou um<br />

bombocado e depressa ajeitava os outros para que não dessem pela minha façanha.<br />

Assar carne é um costume antigo que conservamos até hoje. É só prestar<br />

atenção quando se passa por um botequim ou padaria: frangos rodopiando dentro de<br />

um forno elétrico, deixando escorrer parte da gordura que tem sob a pele. E o carioca<br />

leva sempre essa gostosura para casa, completando principalmente, o cardápio do<br />

Domingo.<br />

Por que tantos banquetes? Papai não era dado à comida como nosso Dom João<br />

VI vindo governar seu império aqui no Brasil para escapar da fúria Napoleônica. Rezam<br />

as crônicas da época que a Corte oferecia freqüentemente banquetes com mais de<br />

cem iguarias para os ditos nobres daquele tempo. O imperador trouxera de Portugal na<br />

sua comitiva cozinheiros franceses, mestres afamados. Era um comilão inveterado;<br />

segundo contam, levava pedaços de frango desossados nos bolsos para comê-los nos<br />

intervalos das refeições suculentas, que não eram poucas. Estava refletindo comigo<br />

mesma: se fosse nos nossos dias, garanto que o Imperador não teria tanto gosto<br />

assim em deglutir os frangos congelados que chegam até nós sem nenhum sabor,<br />

depois de terem recebido os conservantes miraculosos. Tolice minha o que estou<br />

dizendo; o rei guloso ordenaria que fizesse uma granja no terreno do próprio palácio<br />

ou em outro lugar qualquer para que pudesse gozar das delícias de comer frangos bem<br />

fresquinhos.<br />

E agora, atualmente, será como outrora?... A mídia está de olho na verba que é<br />

destinada ao regalo do senhor Presidente da República. Apesar de toda a parcimônia<br />

das informaçõe,s a imprensa já apurou que mais de cinco mil reais por mês são<br />

destinados ao “menu” do mandatário de um país, dito democrata e pobre. Valha-me<br />

Deus! Os menos bafejados pela sorte jamais sonharam que tanto dinheiro do povo<br />

fosse destinado ao paladar do Presidente de um País quase faminto. Sempre foi assim;<br />

os mais afortunados do tempo do Império não se privavam de tudo aquilo que a<br />

França, Alemanha, Itália e outros países da Europa podiam oferecer para a satisfação<br />

dos gostos mais refinados, mesmo no reinado de Dom Pedro, que era um governante<br />

comedido e criterioso.<br />

Voltemos aos banquetes lá de casa na década de vinte de 1900.<br />

Nós crianças gostávamos daqueles acontecimentos, pois escapávamos da<br />

vigilância dos adultos que estavam absorvidos na trabalheira ao oferecer tais<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

65


ecepções. Caíamos na vida. Muitas vezes nos jantares festivos havia música ao vivo;<br />

um show diríamos hoje. Meus irmãos mais velhos estudavam música, tocavam vários<br />

instrumentos tradicionais, formavam um verdadeiro conjunto: violão, violino, bandolim,<br />

cavaquinho... A valsa Branca ainda me soa nos ouvidos.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

“Há tempos que a vi,<br />

Eu a conheci<br />

Ela era linda, primor<br />

De amor<br />

Misto de estrela e de Flor... ”<br />

Interessante que eu associo esta música à <strong>sobre</strong>mesa: aqueles pratos<br />

apetitosos sendo servidos e os amigos do peito, com um apetite voraz, satisfazendo os<br />

dois mais importantes sentidos ao mesmo tempo.<br />

O pior era quando papai interrompia a nossa farra infantil, chamando-nos para<br />

que recitássemos ou cantássemos – distraindo os convivas, após o almoço – aquilo que<br />

aprendíamos na escola. (Não havia TV naquele tempo. Que pena!).<br />

A década de trinta, do século XX, rastejou na nossa vida como passos de<br />

tartaruga, pois a hecatombe desabada <strong>sobre</strong> a numerosa e organizada família<br />

desestruturou tudo. Os alimentos antes tão vistosos nos sabiam amargos: o prazer ao<br />

ingeri-los, para fortalecer e dar continuidade à vida, desapareceu por completo,<br />

principalmente, para os que já podiam compreender a ausência daquele que fazia<br />

questão sempre de uma mesa apetitosa e farta. A imagem da mesa de jantar,<br />

sacrossanto altar, ficou apenas nas lembranças cravadas nos cérebros e nos corações<br />

por flechadas, sem razão de ser. Mesmo porque, as condições financeiras jamais<br />

baixaram a terra, à nossa casa, do lar desfeito.<br />

Nunca mais um banquete para comemorar o que quer que fosse.<br />

No primeiro casamento lá de casa, oito anos depois do falecimento do papai,<br />

mamãe persistia na resolução de não se fazer coisa alguma, de não se convidar<br />

ninguém. Acabou aceitando, mau grado, uma pequena recepção no clube da cidade do<br />

qual meu cunhado era sócio e as amigas fizeram questão de organizar. Tudo que<br />

lembrava papai era coberto com um véu espesso, com um silêncio sepulcral para que<br />

os corações não voltassem a sangrar. Nós, crianças, não entendíamos muito daquilo; a<br />

66


vida continuava cor-de-rosa para nós, o poente lindo em todas as tardes e as coroas<br />

de boninas enfeitando-nos sempre as angelicais frontes infantis, apesar disso<br />

desagradar continuamente à mamãe que as tinha como flores venenosas e<br />

destruidoras da vida.<br />

Quanto às azedinhas (pequenos frutos do trevo azedo, que o povo chama de<br />

bananinhas, por causa do seu formato), nós as apanhávamos e comíamos às<br />

escondidas, em frente à varanda de nossa casa, em Rio Casca. Constituíam as delicias<br />

do nosso fim de tarde.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

67


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

A escola<br />

Fui matriculada, turno da manhã, na escola primária, a única que<br />

havia em nossa terra. E, pela avaliação de meus poucos graus de conhecimento,<br />

colocaram-me logo no terceiro ano primário. Estava alfabetizada, sabia ler, escrever e<br />

contar, não me lembro de como e de quando aprendi.<br />

Retrocedendo um pouco: recordo-me de que minhas irmãs freqüentavam a<br />

escolinha particular (uma sala apenas) que minha tia fazia questão de manter na<br />

pequena cidade de Santo Antônio do Grama, perto da fazenda onde morávamos. De<br />

vez em quando, eu as acompanhava; mas em casa, sempre ficava agarrada a elas<br />

enquanto faziam seus deveres; pacientes explicavam-me todas as novidades do dia a<br />

dia e eu, com muito interesse, ia absorvendo aqueles conhecimentos básicos. Dona<br />

Jovelina, minha tia professora, dava aula para os quatro anos escolares ao mesmo<br />

tempo. É verdade que os alunos particulares eram em número reduzido e ela tinha<br />

tempo para dedicar-se <strong>sobre</strong> cada um. Tico de gente ainda, eu, quando me sentia<br />

desinteressada, deitava-me no chão e ficava olhando num buraquinho do assoalho de<br />

tábuas largas para ver se descobria no porão escuro espíritos maus ou os anjos bons<br />

que povoavam minha cabecinha infantil.<br />

Papai mandava nos levar e apanhar no “dodge” que meu irmão ostentava em<br />

dirigir com a capota descida. Carro alemão, diziam que tinha os pneus grandes e finos<br />

que dava saltos como um potro antes de ser domado nas picadas de terra batida,<br />

cheias de altos e baixos.<br />

Há uma grande ligação entre freqüentar o grupo escolar e a história de minha<br />

<strong>alimentação</strong>. Quando chegava a casa meu prato estava feito, guardado na estufa do<br />

fogão de lenha que a esta altura, não era mais aquele compridão de tijolo e muitas<br />

trempes e sim de ferro chapa com apenas quatro bocas. O almoço tinha que estar<br />

pronto mais cedo, por causa da minha irmã menor que freqüentava o turno da tarde.<br />

Eu, que já tinha grande dificuldade para alimentar-me, não comia mesmo, pois, apesar<br />

de o trivial estar temperadinho, a comida ficava ressecada. Se fosse como nos dias de<br />

68


hoje, em que as escolas públicas fornecem alimento às crianças, com cardápio<br />

balanceado – assim apregoam – talvez eu tivesse me alimentado melhor.<br />

Um parêntese: como já disse, estou ligadona na temática “<strong>alimentação</strong>”, sua<br />

história principalmente no Brasil, seu valor, sua eficácia. Ontem, 16.05.2000, entristeci-<br />

me novamente com a desoladora informação do Jornal Nacional: as toneladas de<br />

alimentos encaminhadas às escolas públicas “miraculosamente” examinadas por um<br />

técnico em nutrição, denotaram carência das vitaminas e proteínas anunciadas nos<br />

invólucros. Que pena! As crianças não vão crescer sadias e dispostas a batalhar pela<br />

vida se continuarem a se alimentar desse jeito – e vão continuar assim porque o<br />

controle de qualidade entre nós é uma quimera. Felizmente, a mídia tem que arranjar<br />

notícia para os jornais diários e “escarafunchando” tudo por aí.<br />

popular.<br />

Basta uma denúncia anônima e... “O medo faz o gato pular” diz o ditado<br />

As frutas são abundantes lá na roça, na cidade eram raras: poucos moradores<br />

tinham um pé de fruta em seu quintal. Eu namorava as goiabas da vizinha, Dona<br />

Lolota, cujos galhos debruçavam-se carregadinhos <strong>sobre</strong> o nosso terreno, bem do lado<br />

oculto de nossa casa, longe da vista dos adultos; mas...<br />

– Só quando Dona Lolota der.<br />

Dizia mamãe. É claro que eu não agüentava: de vez em quando, com um<br />

pequeno salto, surrupiava uma para matar meu desejo, mas, depois, quase me<br />

matavam.<br />

Dona Lolota via tudo: parecia Deus, aquele que a gente estava aprendendo a<br />

conhecer nas aulas de catequese, ministrada por uma segunda Dona Lolota. E ela<br />

perguntava:<br />

pensamentos.<br />

– Onde está Deus?<br />

– Deus está no céu, na terra, em todo lugar.<br />

Respondia à turma.<br />

– Deus vê todas as coisas?<br />

E a criançada em coro:<br />

– Sim, Deus vê todas as coisas: o presente, o passado, o futuro e até os nossos<br />

E eu borboleteava no colorido das asas de minha imaginação: duvido de que<br />

Deus também não tenha vontade de comer uma daquelas goiabas cheirosas. Mas<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

69


Dona Lolota – “a deusa da minha rua” – era bem capaz de impedi-lo. Se não pudesse<br />

impedir, ela constrangeria, na certa. Do cantinho da janela, apenas com uma parte do<br />

rosto à vista, ela foi a testemunha de várias peraltices minhas.<br />

Senão vejamos: mamãe continuava a fazer aquelas roscas doces saborosas<br />

com que abastecia, outrora, a dispensa da fazenda e os colonos todos; mas, agora, em<br />

menor quantidade, para nós e para colocá-la à venda no bar do Juquinha. De certa<br />

feita, mandou que eu levasse à Dona Hipólita, um prato daquelas delícias, ainda<br />

quentinhas como sempre; eu descia o pequeno morro a galope e pior ainda, os<br />

tamancos estavam na moda. De repente... Tibum... Lá se foram prato para um lado,<br />

rosca doce para outro e eu... Estendida na areia. Não fiz por menos, apanhei as<br />

roscas, soprei-as uma por uma e tornei a colocá-las no prato. Cobrindo-as com o<br />

guardanapo, entreguei-as toda faceira à Dona Hipólita as roscas doces polvilhadas sem<br />

açúcar e areia ao mesmo tempo, certa de que minha façanha jamais iria ser<br />

descoberta. Mas qual, o anjo cujo rosto era só olho, via tudo e delatou.<br />

De outra feita foi pior ainda, ela contou à Dona Hipólita que eu lambera o<br />

açúcar das roscas todas que mamãe mandara levar a uma amiga. E não mentiu porque<br />

na verdade não pude resistir o cheirinho daquele manjar, a menos de dois palmos do<br />

meu nariz, aquele açúcar meio derretido, brilhando como um cristal, com gosto de<br />

quero mais.<br />

É, mas nós estávamos falando <strong>sobre</strong> frutas e interrompi. Pois bem, Dona<br />

Zizinha, nossa incomparável professora levava sempre a turma para o quintal da casa<br />

dela, a fim de ensaiar alguma festinha cívica ou mesmo continuar suas aulas – ali eram<br />

práticas: nada de papel e lápis na mão. Ela tinha prazer de estar com seus alunos. O<br />

povinho do interior, que sabe ou adivinha as coisas, dizia que ela desejava muito ser<br />

mãe, mas não lhe fora satisfeito esse desejo, por isto aquela dedicação, aquele amor<br />

por nós.<br />

O pomar da casa de nossa professora era grande mas o Senhor Juquinha<br />

Farmacêutico, seu esposo, era implicante, não permitia que tocássemos sequer numa<br />

fruta. Dona Zizinha, contudo mandava que um aluno mais esperto subisse nas árvores<br />

e apanhasse algumas já maduras, mas só as maduras, dizia ela. Lembro-me da fruta<br />

de conde que eu conheci ali. Ela, de justiça ímpar, dividia igualmente para todos e a<br />

gente se regalava.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

70


Não, não podíamos desvendar os mistérios daquele bosque encantado, para<br />

nós, morada de fadas bondosas como a nossa professora e de sacis carrancudos como<br />

seu marido, que agarravam as crianças desobedientes. O chão era úmido, tão<br />

diferente do chão lá do nosso bosque; muitas folhas secas atapetavam-no, pois<br />

raramente se andava <strong>sobre</strong> ele.<br />

Eu, que na minha primeira infância, alimentava-me quase exclusivamente de<br />

frutas. Eu, que então tinha que me satisfazer apenas com a visão fantástica do pomar<br />

tão desejado de nossa querida professora. Pertinho, nós nos reuníamos assentados em<br />

uns bancos de pedra que formavam um grande círculo, à sombra de árvores<br />

frondosas. Mamoeiros carregados; mamão no ponto de ser colhido; e aqueles de corda<br />

– o tal de mamão macho – bem ao alcance de nossas mãos, eram frutos proibidos.<br />

Meu organismo infantil apelava pelo mamão que agora sei, faz tão bem ao intestino e<br />

ao coração. Um pouquinho adiante, os maracujás eram abundantes, mas só para<br />

deleitar a vista daquelas crianças agitadas; e justamente essa fruta é tão recomendada<br />

para o sistema nervoso. Que judiação!<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

71


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

A canjiquinha<br />

Escrevi, neste trabalho, <strong>sobre</strong> o milho, como era a plantação lá em<br />

casa, quando, toco de gente, eu ainda morava na roça. O milho entrava na nossa<br />

<strong>alimentação</strong> sob várias formas: no tradicional angu à mineira, na farinha de biju, no<br />

mingau de milho verde, canjica cozida... Aludi à comemoração do Santo protetor da<br />

colheita do milho – São João, com fogueira e balões quando, menina moça, eu morava<br />

em Rio Casca.<br />

No tempo de vacas magras, na minha pré-adolescência, mamãe não teve outra<br />

alternativa senão introduzir a canjiquinha no cardápio diário; era muito mais barato<br />

que o arroz e feijão, base da <strong>alimentação</strong> em Minas. Aquela sopa grossa, misturada<br />

com lombo de porco ou costelinha, constituía o nosso jantar.<br />

A canjiquinha, comida de pobre – chamada pelo povo de "pela égua" porque<br />

demorava muito a esfriar – da qual a gente não gostava. Ignorávamos seu valor<br />

nutritivo, analisado por Maria Stela Libânio em um programa da GNT-NET: programa<br />

de 20.03.2000, "Minas Sabor e Saber". Disse que o primeiro livro que a mulher mineira<br />

recebia era o de receita que ensinava vários modos de fazer a canjiquinha, inclusive,<br />

misturando-se a ela uma verdura qualquer, bem picadinha depois de refogada. A<br />

mulher mineira sempre foi sábia, como minha saudosa mãe que procurava uma<br />

<strong>alimentação</strong> saudável para nós, mesmo sendo muito carentes depois da morte de<br />

papai. Graças a Deus crescemos fortes e sadios, preparados para as lutas da vida.<br />

72


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O leite<br />

É óbvio que o leite não podia faltar em todos os lares da minha pequena<br />

cidade, pelos idos de 1935. E a gente o comprava na porta, aquele leite grosso, opaco<br />

mesmo, que depois de fervido, fornecia nata grossa, com a qual fazíamos manteiga.<br />

Meu tio possuía um sítio nas imediações da cidade e seu filho, meu primo,<br />

trazia para vender diariamente o leite em latões, mas não eram aqueles de torneirinha<br />

em baixo. Retirava-se o líquido branco por cima; a medida de um litro possuía um cabo<br />

comprido que ia até o fundo do latão.<br />

O povo comentava que o leiteiro era malandro: misturava água ao leite a fim<br />

de ficar com os trocados. Mais ainda: contava o absurdo de várias pessoas terem<br />

encontrado peixinhos nadando no leite que compravam. Se meu tio viesse a saber<br />

disso, o pau ia comer, não resta dúvida. Mesmo assim, os latões no dorso do burrinho<br />

de carga continuavam a rodar pela cidade e o leite era consumido com peixe e tudo.<br />

Só mais tarde é que apareceram na minha terra aqueles latões de torneirinha em<br />

baixo. Não cheguei a ver lá as embalagens de vidro retornáveis como foi costume aqui<br />

no Rio, durante muito tempo. Agora não é mais assim: a técnica desenvolveu vários<br />

meios de embalar leite; o mais usado entre nós é o saquinho plástico descartável que<br />

a gente pode conservar na geladeira, durante alguns dias sem que o leite se estrague.<br />

Prático para mim é o leite em pó; não azeda, não dá trabalho para preparar e alimenta<br />

do mesmo modo.<br />

73


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

A carne seca no varal<br />

Foi no tempo em que um dos meus irmãos tinha açougue na cidade e a<br />

carne era de vaca. Dizia-se vaca porque, como sabemos, sua carne é mais tenra e<br />

mais saborosa; muitas das vezes, porém, era novilho ou mesmo um boi cansado que ia<br />

para o matadouro. Lá, a vaca era sacrificada uma vez por semana, a fim de alimentar<br />

o animal homem.<br />

Lá se vai mais de meio século, naquela época não era como hoje: técnica<br />

superdesenvolvida, refrigeração em tudo e para tudo, produtos químicos usados para<br />

conservar... Então, a carne que sobrava, meu irmão tinha o cuidado de abri-la,<br />

espalmá-la, salgá-la de um lado e de outro com aquele sal grosso, puro e dependurá-la<br />

no varal lá de casa para que se secasse ao sol. À tarde, era recolhida e estocada. Esta<br />

operação trabalhosa repetia-se até que a carne ficasse no ponto. Assim era vendida na<br />

semana seguinte e a gente, lá em casa comia à vontade: misturada ao feijão,<br />

refogadinha aos pedaços e até crua, por incrível que pareça, pois já estava para lá de<br />

curtida.<br />

Velho costume português passado para nós – seus colonos querendo ou não –<br />

como já tive oportunidade de escrever quando enfoquei o costume mineiro de comer<br />

carne todos os dias. Meu cunhado está com 85 anos e, até hoje, só almoça se na mesa<br />

houver uma costelinha bem gordurosa ou um bife de lombo de porco. Mas, como já ia<br />

dizendo, os portugueses tinham mesmo que defumar ou secar a carne, pois eram<br />

eternos navegantes e o “mar nem sempre está para peixe”.<br />

74


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O colégio interno<br />

Faca do lado direito, garfo à esquerda do prato, jamais os cotovelos à<br />

mesa (sempre os pulsos, às vezes o antebraço), guardanapo no colo, nunca enfiado na<br />

gola da blusa, boca fechada ao mastigar; o garfo é que vai à boca – o contrário são os<br />

animais que fazem; pegar o osso do frango com a mão: falta grave, a gente perdia<br />

ponto; falar com a boca cheia – era contra a etiqueta; aliás, de praxe, quase sempre o<br />

silêncio no refeitório, a não ser quando a vigilante permitia que se falasse com aquele<br />

célebre “Benedicamus, Dominum” ao que, as 160 alunas respondiam: “Deo Gratias”.<br />

Então era uma algazarra só.<br />

O serviço à francesa sempre: primeiro prato, segundo prato e, por último, a<br />

<strong>sobre</strong>mesa. As alunas detestavam aquele sistema importado – a maioria era filha de<br />

fazendeiro e muitas estavam acostumadas à liberdade total às refeições, mas tinham<br />

que obedecer – a vigilante era toda atenção.<br />

Iguarias poucas; a gente no primeiro prato por exemplo, comia uma salada ou<br />

legume cozido com carne. Então vinha a servente, retirava os pratos e uma segunda<br />

moça uniformizada passava servindo o tradicional arroz com feijão, mais algum<br />

refogadinho.<br />

Nos dias em que não se anunciava “Benedicamus”, a mestra ia dando<br />

instruções em voz alta e inteligível:<br />

– Mastiguem bem, dez, doze ou mais vezes antes de engolir; a mastigação<br />

desperta a saliva e prepara o estômago para a digestão. Quanto mais mastigamos,<br />

mais nutridos ficamos, caso contrário, a gente engorda e não fica bem alimentado.<br />

Vez por outra, uma aluna lia algo de interessante, uma história, um conto ou<br />

mesmo alguns capítulos de um livro que tinha seqüência na outra refeição.<br />

Seria a <strong>alimentação</strong> balanceada? Não creio. Acho que a cadeira de nutricionista<br />

não existia naquela época, mas a gente notava que os cuidados com a <strong>alimentação</strong><br />

eram muitos e, o melhor, quase tudo fresco, pois o colégio tinha uma grande horta<br />

cuidada pelo Sr. Manuel, um português amante da terra e dedicado à horti<strong>cultura</strong><br />

desde a mais tenra idade.<br />

75


Muitas domésticas passavam o dia inteiro na cozinha, avental branco e lenço na<br />

cabeça, preparando a próxima refeição – sempre havia uma próxima.<br />

Em regra geral, a <strong>sobre</strong>mesa era um pedaço de goiabada, marmelada ou<br />

pessegada que nós, alunas, encontrávamos já servido; quando não doce, uma fruta<br />

nacional: banana, laranja, manga ou tangerina que tinha que ser descascada e comida<br />

com faca e garfo – jamais podíamos saborear aqueles gomos deliciosos que fazem dar<br />

água na boca, jamais cuspir as sementes no prato e, sim, apanhá-las com a colher,<br />

tendo o cuidado de tampar a boca com a mão esquerda. No jantar, ainda era servido<br />

um terceiro prato, a sopa, que vinha em primeiro lugar; no lanche e pela manhã, o<br />

tradicional café com leite e pão francês com manteiga.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

76


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Viver melhor<br />

Hoje, como podem constatar, aprendi, há alguns anos, com pessoas<br />

carismáticas aqui da UnATI, que a gente deve fazer tudo para ter uma qualidade de<br />

vida melhor. A <strong>alimentação</strong> é um dos elementos que proporciona resistência,<br />

metabolismo real, a produção de energia necessária para a Vida e Vida Melhor. Mas –<br />

Ai de mim... – com o estômago faltando um pedaço, sem o duodeno, sem a vesícula<br />

biliar, preciso muita atenção e criatividade para descobrir determinada <strong>alimentação</strong> que<br />

digira facilmente, que não me faça mal. Sabemos que a vesícula biliar encaminha a<br />

bílis, esta substância viscosa, fabricada pelo fígado, para o duodeno, a fim de colaborar<br />

na digestão; no entanto, em mim, ela vai para o estômago ou para o intestino<br />

delgado, dizem os médicos; daí o mal estar que sinto sempre. Os nutricionistas<br />

prescrevem-me a dieta mas, cabe à gente mesma ir testando o que cai bem.<br />

Ontem, dia 02.10.00 submeti-me ao “gostoso” exame de endoscopia digestiva e<br />

a doutora falou-me:<br />

– Seu estômago está bastante congestionado. Veja a quantidade de bílis que<br />

extraí dele. Naturalmente isto o irrita. Além disso, ele ficou pequeno com a cirurgia e<br />

só pode digerir uma quantidade mínima de alimento; de cada vez coma pouco e mais<br />

vezes; nada de alimentos fritos e <strong>sobre</strong>carregados de temperos.<br />

Por isso, quando saio de casa, levo para aonde eu vou, uma sacola com<br />

algumas coisinhas para comer: frutas, biscoitos, pãezinhos, suspiros e água, sempre<br />

água, apesar de não poder tomar um copo inteiro de cada vez, como já escrevi à<br />

anteriormente – três, quatro goles e pronto. Agora estou usando alguns medicamentos<br />

que ressecam o organismo, minha língua fica colada ao céu da boca; só um pouco de<br />

água permite-me articular palavras.<br />

Meu médico diz-me sempre:<br />

– No mínimo dois litros de água por dia.<br />

E eu:<br />

– Sim, senhor.<br />

77


Mas não chego a esvaziar a garrafinha de um quarto de litro, que coloco perto<br />

de mim, quando estou trabalhando.<br />

Minhas colegas da UnATI estranham porque nunca compareço aos almoços de<br />

confraternização organizados pelas turmas. Quem dera poder fazê-lo sem que meu<br />

sistema digestivo fosse molestado! Ainda bem que minha cuidadosa irmãzinha presta<br />

muita atenção naquilo que como, pelo menos com mais facilidade; e está sempre<br />

comprando e preparando para mim. A couve-flor, por exemplo, que vim a conhecer<br />

somente aqui no Rio, é uma dessas variedades: cozidinha, mesmo com água e sal, vai<br />

bem. Fico almoçando e admirando essas milhares de florzinhas, minúsculas mesmo,<br />

apertando-se num abraço fraternal na extremidade do caule. Como a natureza é bela e<br />

generosa para conosco! E a gente deixa passar esses momentos de prazer, de<br />

felicidade... E fica concentrada nos negativos da vida que, não resta dúvida, absorvem<br />

o nosso cérebro...<br />

Aquelas folhas verdes, verdes, compridas, que protegem principalmente os<br />

buquês das beiradas, são comestíveis também; mas, infelizmente já constatei que a<br />

mim são nocivas. – Dizem os estudiosos que elas e os talos constituem parte rica<br />

dessa hortaliça e podem ser aproveitadas.<br />

Não devemos cozinhar a couve-flor durante muito tempo para que ela não<br />

perca muito de seu valor nutritivo; bastam poucos minutos; os talos é que resistem<br />

mais, todavia fendados antes, ficam logo no ponto; mais rápido ainda se a cozinhamos<br />

no vapor. Nós temos em casa uma vasilha dessas, é de aço inoxidável e abre-se à<br />

semelhança de um leque, quando a quantidade de legumes é maior. A panela, onde<br />

vai ser colocada a vasilha com os ingredientes para cozinhar, não precisa conter muita<br />

água o bastante para produzir vapor. Tampada, o cozimento é mais rápido e a perda<br />

de nutrientes é pequena, nenhuma, principalmente aquelas que combatem a prisão de<br />

ventre.<br />

É verdade que esse procedimento demanda um pouco mais de trabalho,<br />

contudo, para nós idosos, para mim com eterno problema no aparelho digestivo, é um<br />

achado: não preciso tomar os benditos anti-ácidos químicos e não gasto o meu rico<br />

dinheirinho, que me vem tão generosamente de uma aposentadoria, graças a Deus,<br />

depois de trinta e seis anos de suada contribuição.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

78


No nosso cardápio de pobres e de idosas pouco saudáveis, a vagem é<br />

constante. Não há uma semana que a gente não coma esse feijão verde, de que gosto<br />

tanto – a mana já percebeu.<br />

Até pouco tempo, comprávamos somente a vagem macarrão: essa espécie é<br />

fininha, tem as sementes bem pequenas que não demoram a cozinhar, mas ouvimos,<br />

pela TV que a hortaliça mais carregada de agrotóxico é justamente a vagem macarrão.<br />

Então, passamos a adquirir a vagem manteiga. A mana demora horas a catar as<br />

sementes quando está preparando o almoço. Diz que as sementes não cozinham e não<br />

pegam tempero.<br />

Como a couve-flor, a vagem contém vitaminas e minerais. As fibras dessas<br />

hortaliças ajudam também ao bom funcionamento do intestino.<br />

– Faça do alimento o seu medicamento.<br />

Diz um médica.<br />

Meu arroz é cozidinho, meu feijão é coado e raramente comemos peixe, como<br />

já tive oportunidade de escrever, mas quando o fazemos é sempre refogado.<br />

Nada de salada crua, apesar de muito recomendada pela nutricionista.<br />

Usamos sempre, para temperar os alimentos, um sal especial: sal light. Diz-se<br />

que ele vem com uma dosagem obrigatória de iodo que evita o bócio que é a<br />

hipertrofia da glândula tireóide. O Ministério da Saúde, agora depois de constatar a<br />

enorme porcentagem de anemia, principalmente entre idosos e crianças, informam que<br />

se adicionasse ferro ao sal, em determinada proporção (Rede Globo de Televisão –<br />

Jornal Nacional de 04.05.00). Também o óleo de cozinha, por determinação do<br />

Governo, falam que deve ser enriquecido com uma boa dosagem de vitamina E.<br />

Estarão fazendo isso os nossos “patriotas” industriais... Se pelo menos<br />

houvesse um sério controle de qualidade como em outros países, mas...<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

FFFFFFFFiiiiiiiinnnnnnnniiiiiiiittttttttoooooooo..<br />

79


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Augusta Augusta Augusta Alvaralhão<br />

Alvaralhão<br />

80


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Crianças<br />

Tentei recordar-me do passado, o mais antigamente possível e<br />

chequei à conclusão de que, a partir dos meus quatro anos, ou seja, 1930, já as<br />

lembranças vinham fluindo a ponto de poder começar a fazer alguns relatos.<br />

Meu pai veio de Portugal e minha mãe da Espanha, rumo ao Brasil,<br />

aproximadamente, no mesmo ano. Conheceram-se, amaram-se e casaram-se. Foram<br />

morar junto com os pais dela, no Bairro Estácio de Sá, ou melhor dizendo, no Morro de<br />

São Carlos, num pequeno barracão adaptado para eles. Eu fui a primeira filha, dos três<br />

que tiveram. Nasci em 1926.<br />

Baseando-me agora no que ouvia dizer, todos os filhos foram alimentados com<br />

leite de cabra que eles criavam.<br />

Lembro-me, perfeitamente, de quando tive sarampo. Vejo-me ainda pequenina<br />

deitada num bercinho improvisado, chorando sem saber porque e recusando o leite<br />

que tentavam forçar-me a tomar. E a aquele pano vermelho na janelinha? Só muitos<br />

anos após, vim a saber que se tratava de uma simpatia. Quanto à coqueluche, até hoje<br />

não consegui entender o absurdo que me apavorava, quando dentro de um recipiente<br />

colocavam piche e o acendiam; imediatamente começava a sair fumaça, que eu tinha<br />

que aspirar.<br />

A casa era pequena, mas possuía um grande terreno que eles, sabiamente,<br />

aproveitavam para criar galinhas, coelhos, cabras e porcos.<br />

Quando meu pai estava desempregado, dedicava-se também ao cultivo de uma<br />

pequena horta, apenas para uso da casa. Nela colhia-se salsa, manjericão, pimenta<br />

malagueta, hortelã, quase tudo para temperos, além de couve, alface, pimentão,<br />

tomate, etc.<br />

Recordo-me de que, certa vez, deu tanto tomate que minha mãe aproveitou e<br />

fez muito doce; nada sofisticado, apenas com calda de açúcar refinado. Para nós, foi<br />

uma festa pois doces em casa só no dia de São Cosme e São Damião.<br />

81


Ovos, nós comíamos sempre fresquinhos. Minha mãe, à proporção que as<br />

galinhas os “punham”, escrevia neles as datas. Havia sempre um galo para cada grupo<br />

de galinha pois apenas os ovos galados serviam para chocar.<br />

As galinhas eram alimentadas com milho, couve cortada fina misturada com<br />

farelo e água. Cresciam gordas e saudáveis. Punham ovos durante certo tempo,<br />

algumas diariamente, outras em dias alternados. Eram sempre observadas para que<br />

não pegassem pixilinga (piolho de galinhas). Quando paravam de por ovos,<br />

começavam a cacarejar, abrindo as asas... Mamãe dizia que elas estavam<br />

engravidando. Nós colocávamos num caixote forrado com palha e capim seco,<br />

aproximadamente dezoito a vinte ovos escolhidos, levando em conta raça e data; e<br />

<strong>sobre</strong> eles a galinha. Esse caixote ficava num canto reservado. Todos os dias ração e<br />

água. A galinha quase não saía do ninho, ninguém podia aproximar-se, pois ficava<br />

agressiva. Isso durava vinte e três dias, tempo da gestação. Pedíamos a Deus que não<br />

houvesse temporal, pois acredito que, de acordo com a crença popular, isso poderia<br />

interferir fazendo com que alguns ovos gorassem.<br />

Chegava, enfim, o dia do parto. Alguns pintinhos iam quebrando a casca do ovo<br />

e saindo; entretanto, outros não conseguiam e nós ajudávamos, com muito cuidado<br />

para não feri-los, retirando pedacinhos da casca a fim de libertá-los. Minha mãe tinha<br />

que afastar a galinha; do contrário, ela partia para cima de nós na ânsia de proteger<br />

seus filhotes. Dos dezoito ou vinte ovos, que havíamos colocado para chocar,<br />

geralmente nasciam uns quinze. Daí em diante a galinha andava cacarejando de<br />

felicidade com seus filhinhos ao redor. Para que eles dormissem, ela abria as asas...<br />

Crescia... Crescia... E todos se acomodavam bem resguardados. Eu era criança e tinha<br />

muita curiosidade e admiração por aquele processo de vida. Acompanhava, dia a dia, o<br />

crescimento dos pintinhos. Chegava, através do corpo, das penas, da postura, a<br />

distinguir quando seria frango ou franga. Hoje, ao recordar-me com saudade daquele<br />

tempo, creio que sentia um pouco de inveja daquelas asas protetoras.<br />

Duas vezes por mês, sempre aos domingos ou feriados, meu pai fazia aquele<br />

almoço... Matava a galinha mais gorda. Aproveitava tudo, até as tripas. Ele a abria com<br />

uma tesoura, lavava-a e esfregava limão, colocando-a com asas, pescoço, pés e parte<br />

da gordura na canja, que era completada com cenoura picadinha, arroz e manjericão.<br />

O sangue era utilizado para molho pardo. Completando o almoço, galinha ensopada<br />

com batatas, salada de alface e tomate colhidos fresquinhos da nossa pequena horta.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

82


Algumas vezes, compravam uma garrafa de cerveja da marca ABC (preta e doce) e<br />

uma garrafa de vinho tinto que minha mãe não dispensava; para nós, refresco do dito.<br />

Nada se perdia, pois até a gordura era aproveitada para ungüento.<br />

Hora das refeições: ninguém podia atrasar-se. Toalha simples, bordada por nós,<br />

bonitinha, colocada <strong>sobre</strong> a mesa velha. As cadeiras também possuíam capas<br />

combinando com ela. Muitas vezes, só havia feijão, arroz e algum legume e verduras.<br />

Éramos obrigados a comer tudo o que colocássemos no prato; não podíamos deixar.<br />

– Peguem apenas o que irão comer. Não deixem que os olhos sejam maiores<br />

do que a barriga.<br />

Ainda <strong>sobre</strong> galinhas, lembro-me de que as mulheres, ao darem à luz, ficavam<br />

três dias ou mais comendo apenas canja. O resguardo assim o exigia, diziam. Eram<br />

também orientadas a comer canjica e beber cerveja preta pois desta forma teriam<br />

bastante leite para seus nenéns.<br />

Hoje: ano 2000. Eu com 74 anos, encontro-me comendo galinha congelada,<br />

totalmente sem pele, sem gordura, pois como dizem os entendidos:<br />

– É um veneno.<br />

Carne vermelha (boi e vaca). Nesta primeira etapa de minha vida, nada tenho a<br />

relatar. Era alimento de luxo em nossa casa. Não posso deixar de lembrar da açorda<br />

que minha mãe fazia. Dizia-nos que era uma comida espanhola. Era feita da seguinte<br />

maneira.<br />

Bacalhau de molho, na véspera. Dia seguinte, tirar as espinhas, deixando-o em<br />

pedaços pequenos. Fazer refogado com azeite, alho, cebola, pimentão, azeitona preta,<br />

salsa e colorau. Deixá-lo cozinhando com um pouquinho de água. Quando o molho<br />

estiver grossinho, junte o bacalhau. Colocar pão dormido cortado em cubos. Abafar,<br />

Uma delícia!<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

tendo cuidado para não secar totalmente.<br />

Naquele tempo, certamente, o bacalhau era barato; do contrário, como explicar<br />

seu freqüente uso pela família de um garçom pobre?<br />

O ensopadinho de vagem, cortada bem fininha, com bacalhau desfiado e um<br />

molho feito com capricho, sem faltar o azeite português, era também muito gostoso.<br />

83


E o bolinho de bacalhau? Minha mãe fazia questão de dizer que o dela era<br />

diferente porque não o passava na máquina de moer.<br />

Deixava-o de molho trocando a água duas vezes e, no dia seguinte, dava-lhe<br />

uma “fervura”. Estando ele ainda quentinho ia desfiando com as mãos, retirando todas<br />

a espinhas. Depois, juntava a batata cozida e espremida, ovos de acordo com a<br />

quantidade e um molho feito separadamente com bastante azeite, cebola, alho,<br />

tomates sem peles, azeitonas pretas, muita salsinha e farinha de trigo. Ligava tudo<br />

com as mãos, colocando mais farinha de trigo, se necessário, até que ficasse no ponto<br />

para ser enrolado. Fritava-os com banha e azeite colocando <strong>sobre</strong> um papel<br />

Era tão cheiroso que a vizinha perguntava curiosa:<br />

– Dona Manoela, tem bolinho, né? Não esqueça de mim.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

absorvente.<br />

Procuro compreender, mas como? Por que as famílias pobres de hoje só fazem<br />

bolinho de bacalhau no Natal e Ano Novo? Preguiça? Creio que não, pois o que os<br />

impede certamente é o seu preço elevado.<br />

Lembrei-me agora do nosso café da manhã. Dificilmente comíamos pão,<br />

entretanto não faltava angu (fubá cozido com água e sal) bem grosso, cortado em<br />

pedaços, batata doce ou aipim cozidos, queijo de leite de cabra feito por minha mãe e<br />

café (puro sem leite). Analisando agora, observo que até parece que estou escrevendo<br />

<strong>sobre</strong> hábitos do povo mineiro, não encontrando nenhuma ligação com minhas<br />

origens. Certamente as necessidades nos fazem buscar soluções.<br />

– Olha aí, Dona Maria! Traz a bolsa ou a bacia!<br />

Assim avisava num alto-falante o vendedor de laranjas que subia o morro com<br />

o seu caminhão. O eco espalhava-se pelos becos. Quase todos corriam pois era a única<br />

oportunidade de comprarem laranja barata. Mais tarde, sentados nos portões que<br />

davam para o “beco”, comiam à vontade, conversando, brincando, sorrindo como se<br />

estivessem fazendo um piquenique.<br />

Certa vez, ficou decidido que no fim do ano comeríamos cabra assada no forno<br />

da padaria. Levamos um susto, pois éramos muito apegados aos nossos animais,<br />

principalmente às cabritinhas: Morena, Branquinha, Malhada e Dengosa. Nós havíamos<br />

escolhido estes nomes e as chamávamos carinhosamente. Meu pai tentou convencer-<br />

84


nos a aceitar, explicando-nos que as criava para que não nos faltasse leite, mas<br />

podíamos, vez ou outra, variar o “cardápio”. Choramos muito, pois apesar de crianças,<br />

já conhecíamos bem o temperamento do nosso pai. Fim do ano, realmente comemos<br />

carne de cabra, mas tivemos um consolo: a que foi parar à mesa, pertencia ao vizinho.<br />

Meu pai a comprara.<br />

Os porcos eram animais difíceis de cuidar, mas valia a pena a sua criação. No<br />

restaurante onde meu pai trabalhava, guardavam restos de comida; lavagem como<br />

diziam. Havia o suficiente para os suínos ficarem bem alimentados e cresciam gordos e<br />

saudáveis. No Ano Novo, matavam um leitãozinho e, após temperá-lo bem,<br />

mandavam-no assar na padaria. Comemorávamos a data com ele inteiro <strong>sobre</strong> a mesa,<br />

juntamente com batatas coradas, arroz com passas e cenoura picadinha, farofa feita<br />

com os miúdos, salada e vinho. Não faltavam também rabanadas, aletria e os<br />

indispensáveis bolinhos de bacalhau.<br />

Aproximadamente, duas vezes por ano, meu pai matava um porco (o mais<br />

pesado e gordo). Nunca fez isto na nossa presença. Grande parte da carne ele a<br />

vendia para vizinhos e alguns negociantes do bairro. A gordura era cortada em<br />

pedaços, colocada numa panela de ferro <strong>sobre</strong> o fogão de lenha e minha mãe,<br />

pacientemente, ia derretendo os pedaços brancos, separando para nós os torresmos<br />

deliciosos. A banha, depois de fria, era colocada em latas de 10 quilos e dentro,<br />

pedaços de carne para serem conservados e por nós usados durante o ano.<br />

Dificilmente era feita alguma fritura, não se usava óleo de espécie alguma para<br />

substituir a banha: acho mesmo que não existia óleo naquele tempo; porém, muito<br />

vagamente, me vem à lembrança de uma certa lata de gordura de coco.<br />

Para encerrar alguns relatos <strong>sobre</strong> criação de animais em nossa casa, não<br />

posso me esquecer dos coelhos. Eram todos branquinhos e grandes. Reproduziam-se<br />

rapidamente. Viviam numa espécie de gaiola (grande) cercada de arame. Comiam<br />

capim que íamos buscar no campo.<br />

A carne do coelho era preparada com certa técnica. Ficava muito saborosa...<br />

Lembro-me da alegria que sentíamos todo 27 de Setembro, dia de São Cosme e<br />

São Damião. As pessoas tinham o hábito de distribuir saquinhos com bolos, cocadas,<br />

balas, suspiros e até brinquedos em homenagem a esses Santos agradecendo,<br />

certamente, alguma graça alcançada. Chegávamos a encher três a quatro bacias<br />

médias. Os doces não perecíveis eram separados e guardados para serem consumidos<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

85


durante o ano e os demais logo acabavam. Nosso pai dava uma trégua, livrando-nos<br />

da hora certa das refeições. Na minha opinião, esse deveria ser considerado o “Dia das<br />

Crianças".<br />

O tempo passou e esse costume ainda prevalece; infelizmente com menos<br />

intensidade. Hoje, as coisas são problemáticas; a violência impera, as crianças não<br />

podem e não devem sair sozinhas. Mesmo assim, a gente ainda encontra algumas<br />

felizes da vida, enchendo sacolas de guloseimas.<br />

Brincar de roda... Apareceu a Margarida, olé, olé, olá; A carrocinha pegou três<br />

cachorros de uma vez; O cravo brigou com a rosa; Samba lê lê tá doente e muitas<br />

outras cantigas... Pular corda. Esconder, um, dois, três...; 31 de janeiro, galinha choca<br />

no poleiro, posso ir?<br />

Infância sem brinquedos caros, mas que nos dava a oportunidade de<br />

improvisar, criar, como por exemplo: fazer um fogãozinho com uma lata pequena<br />

(vazia), para brincar de comidinha!<br />

Seu Agenor, homem envelhecido, cansado, com um cesto à cabeça, forrado de<br />

folhas de bananeiras, anunciava, percorrendo as vielas do morro.<br />

– Olha o peixeiro! Quem vai querer? Tá fresquinho...<br />

– Moço, espera um instantinho, mamãe já vem!<br />

Dizíamos nós. Gostávamos tanto de peixe que não queríamos perder aquela<br />

oportunidade. Na nossa porta ele limpava-os, cortando em postas.<br />

Naquele refogado gostoso, que só mamãe sabia fazer, era colocado o peixe,<br />

inclusive a cabeça. Depois de cozido, retirado para uma travessa e no molho, mexendo<br />

bem para não embolar, entrava a farinha de mandioca, completando assim um<br />

delicioso pirão. O cheiro do refogado e do azeite português, com muita salsinha nos<br />

tentava. Aguardávamos ansiosos para saboreá-los. A corvina, a anchova e robalo eram<br />

os peixes preferidos para fazer essa iguaria. Costumavam comprar, também, peixe-<br />

galo para fritar. Ele quase não possuía espinhas e sua carne macia, muito apetitosa<br />

nos atraia.<br />

Devo esclarecer que havia obediência às datas. Durante a Semana Santa, que<br />

minha mãe respeitava religiosamente de acordo com sua crença, na terça, quarta e<br />

quinta-feira não era permitido comer carne de espécie alguma, assim como lavar,<br />

passar, arrumar a casa. Meu pai não participava desse ritual, mas eu e meus irmãos<br />

tínhamos que acompanhar a minha mãe, embora sem nada entender. Ficávamos<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

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contando os dias na expectativa do Sábado de Aleluia. Era costume fazer grandes<br />

bonecos com roupas velhas, caracterizadas (quanto mais feios, melhor) usando, com<br />

malícia, nomes de negociantes, vizinhos indesejáveis, colocando cartazes <strong>sobre</strong> eles e<br />

pendurando-os nos postes. Sábado, bem cedinho, saíamos à procura dos fantoches,<br />

anotando o que estava escrito. Muitos se aproveitavam para, clandestinamente,<br />

colocar suas insatisfações contra os donos dos armazéns, das quitandas ou de outra<br />

pessoa, avisando:<br />

– Cuidado, tua mulher tá saindo muito. Advinha com quem?<br />

– Seu João! Não cansou de ser ladrão?<br />

Os bonecos eram feitos às escondidas; ninguém sabia quem os havia<br />

confeccionado.<br />

Às 9 horas da manhã as igrejas começavam a tocar os sinos – quando<br />

arrebentava a Aleluia – e, então, os Judas eram retirados dos postes, começando aí a<br />

malhação. Com pedaços de paus nas mãos, iam batendo, gritando com raiva:<br />

– Malha o Judas! Malha o Judas!<br />

até que os destruíssem totalmente.<br />

Domingo de Páscoa, comemoração da Ressurreição de Cristo. As pessoas<br />

ficavam alegres, felizes, festejando essa data. Nós íamos à missa e tínhamos um<br />

almoço especial. Não me recordo de ter recebido presentes, como ovos de Páscoa e<br />

chocolates; acredito até que naquele tempo esse hábito ainda não era cultivado.<br />

Aproveitando as <strong>narrativas</strong> anteriores, me veio imediatamente à lembrança,<br />

nossa ansiedade para que chegasse o dia de irmos assistir A Vida de Cristo, no cinema<br />

Colombo, no Largo do Estácio, por ser perto e mais barato. Na Semana Santa exibiam<br />

o mesmo filme de todos os anos, repetindo o nascimento do Menino Jesus, os Três<br />

Reis Magos, Jesus carregando a Cruz e crucificado; depois a Ressurreição miraculosa,<br />

o aparecimento às santas mulheres que foram ao sepulcro e finalmente a ascensão aos<br />

Céus. Nós assistíamos deslumbrados com os olhos fixos na tela não querendo perder<br />

nem um pedacinho. Ficávamos no cinema a tarde inteira, pois além da vida de Cristo,<br />

exibiam outros filmes: desenhos, fita em série, propagandas, etc. Levávamos merenda:<br />

pão com goiabada e alguns trocadinhos para comprar pipocas e balas. Beber alguma<br />

coisa? Só água corrente da pia do banheiro. Coca-Cola, Guaraná.... Creio que ainda<br />

não existiam.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

87


Tínhamos que voltar para casa antes de escurecer, pois não havia luz elétrica e<br />

usávamos lamparina e lampião de querosene. Chegávamos com fome pensando, com<br />

ansiedade, na comida da vovó Dolores (mãe de nossa mãe); embora de nacionalidade<br />

espanhola, fazia feijão preto muito gostoso. Pedaços de carne seca bem gorda, de<br />

toucinho paulista (aquele gordo, branco, intercalado com carne de porco) e paio,<br />

juntava-se ao incrementado feijão, juntamente com um refogado com banha, cebola,<br />

alho e louro. Quando o feijão já estava quase cozido, colocava uns 3 a 4 jilós.<br />

Algumas vezes vovó me chamava, por ser eu a mais velha, para aprender a<br />

cozinhar. Quando papai não estava por perto ela dizia feliz:<br />

– Comam, comam a vontade.<br />

Quando sobrava feijão, ela imaginava fazer alguma coisa para aproveitar tudo,<br />

nada podia estragar-se. Passava o feijão numa peneira – não tínhamos liqüidificador<br />

(será que já existia?). A partir daí, começava a deliciosa sopa da vovó, com carne de<br />

músculo, paio, legumes, predominando a batata, tudo em pedaços. Por último,<br />

bastante agrião.<br />

Gente, até hoje, lembro-me muito bem do paladar e principalmente do cheiro<br />

da comida da minha querida vovó e madrinha.<br />

Nostalgia... É o que estou sentido neste momento ao recordar-me da tristeza<br />

que foi para nós abandonar o Morro e os nossos animais, para morar em Irajá,<br />

subúrbio da Leopoldina. Passamos a conviver com nossos avós paternos. Começo aqui<br />

a narrar fatos da segunda etapa de minha vida.<br />

Chegamos a Irajá. Enfim um casarão – cercado de muitas árvores frutíferas, de<br />

horta e córrego com agrião, tendo nos fundos um pequeno morro com plantação de<br />

batata doce, aipim e abacaxi – nos esperava.<br />

Tudo mudou, inclusive os hábitos alimentares. A banha de porco foi substituída<br />

por gordura de coco. A carne de coelho, de cabra, de porco, por carne de vaca (boi),<br />

comprada eventualmente, no açougue. Galinhas e ovos, num aviário ou em algum<br />

vizinho. Não possuímos nenhuma criação de animais. Que saudade daquela canja<br />

gorda, daquele leitãozinho <strong>sobre</strong> a mesa!<br />

Todos os dias, bem cedo, acordávamos com o barulho da buzina estridente da<br />

“vaca leiteira”, um caminhão velho com latão (vasilha de zinco estanhada, própria para<br />

transportar leite) e conduzido pelo senhor Manuel, português, pessoa alegre, muito<br />

falante.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

88


– Chegou o leite minha gente!<br />

Não me façam esperar.<br />

Querem, por acaso,<br />

ver seu leite estragar?<br />

Nossa <strong>alimentação</strong> era praticamente baseada em muito legume e verdura, não<br />

faltando o feijão preto. Minha mãe dizia que sem ele a comida não dava rendimento.<br />

Gostávamos muito quando ela fazia maxixe ensopado com carne e vagem também.<br />

Contudo, na maioria das vezes, ia sem carne mesmo. E a salada de jiló? Amargava<br />

muito, mas nós raspávamos o prato. Falavam que jiló abria o apetite. Mamãe,<br />

brincando, argumentava:<br />

– Nossa Senhora! Abrir mais ainda? Assim não há quem agüente!<br />

Não posso esquecer-me da grande quantidade de milho plantado, também, no<br />

morro da casa. Com ele, minha mãe, sabiamente, inventava pratos que nós não<br />

dispensávamos. Um deles era o pudim.<br />

Feito com milho ralado, coado, misturado ao leite, maizena, ovos e açúcar.<br />

Levado ao fogo, mexia-se para não embolar, até que engrossasse. Após isto, era<br />

colocado numa forma untada com açúcar queimado. Depois de frio, desenformado.<br />

Uma delícia! Ah! A pamonha tão conhecida. Pena que minha mãe não a fazia. E<br />

nem valia a pena, dizia ela, pois uma vizinha mineira era especialista no seu preparo,<br />

precisava vendê-la para ajudar no orçamento da casa e era barato.<br />

– Papai, cadê a rapadura?<br />

Assim nós o recebíamos quando chegava do trabalho. Normalmente trazia uma<br />

pedra daquela delícia. Partia em pedaços pequenos e dividia entre nós. Ele nos<br />

explicava que a rapadura era muito nutritiva, por ser feita do caldo cana.<br />

Quando eu ia para a escola, levava rapadura para merendar. Sim, eu já<br />

estudava, realizando o que tanto eu desejara (apesar de ter oito anos). Já não<br />

precisava fingir que estava lendo. Saía bem cedinho, compenetrada com meu único<br />

uniforme e sacola de pano feita por mamãe. Andava a pé mais de vinte minutos.<br />

Nunca cheguei atrasada. Gostava tanto de estudar, de ler, que num ano pulei da 1ª<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

89


para a 3ª série. As professoras emprestavam-me livros e revistas; não davam conta da<br />

minha ansiedade.<br />

Nossa Senhora! Que temporal! Tudo escuro. Mamãe chamando-nos:<br />

– Vamos crianças, rápido, apanhem tudo que puderem.<br />

Referia-se às frutas que caíam no chão. Para nós, que não entendíamos o<br />

porquê daquilo tudo, chegava a ser divertido, uma aventura quando, com as roupas<br />

molhadas, descalços, escorregávamos, caindo e dando risadas.<br />

– Por favor, falem baixo. Não deixem que seus avós escutem.<br />

Mamãe não era feliz. Nossos avós paternos, muito severos a insensíveis, não<br />

gostavam dela nem de nós. Proibiam-nos de tudo. A partir daí até o seguinte temporal,<br />

comeríamos frutas à vontade; não podíamos, contudo, deixar vestígios. Algumas<br />

frutas, ainda verdes, eram enroladas em jornal para amadurecerem. É claro que nem<br />

todas caíram naquele dia, apenas as frutas da estação. Nós gostávamos de todas, isto<br />

sem termos conhecimento do valor nutritivo que possuem e do quanto são importantes<br />

para a <strong>saúde</strong>.<br />

Papai já nos havia falado a respeito da festa junina, que seria realizada num<br />

pequeno sítio não muito distante de nossa casa. Um amigo convidara-o, insistindo para<br />

que nos levasse. Certa noite, ao chegar do trabalho, disse-nos:<br />

– Sabem de uma coisa? A tal festa será dia 24 junho.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

– Mas já está muito perto. Eles precisam ir vestidos de caipiras?<br />

Falou mamãe.<br />

– Claro mulher! Do contrário, não acharão graça...<br />

A partir daí, mamãe começou a juntar retalhos de chita e, usando a<br />

imaginação, fez para nós (eu e minha irmã) as caipiras mais bonitas e originais, não<br />

esquecendo, é claro, dos chapéus de palha, das trancinhas e das caras pintadas. Para<br />

meu irmão, calça comprida, com remendos coloridos, blusa quadriculada e um lenço<br />

no pescoço. Ele sentiu-se muito importante, quando lhe pintaram um bigodinho. Ficou<br />

tão engraçado!<br />

Todos os anos havia várias festas beneficentes, inclusive esta a que estou me<br />

referindo, cujos recursos eram entregues à igreja Paroquial para serem destinados aos<br />

menos favorecidos pela sorte.<br />

Todos cantavam com empolgação:<br />

90


E muitas outras lindas canções.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

São João, São João!<br />

Acende a fogueira<br />

do meu coração!<br />

Uma grande fogueira no centro do terreno, aquecia o ambiente frio do mês de<br />

junho, porém as batatas-doces eram assadas em outra, que servia para a brincadeira<br />

de pular a fogueira aliás, muito perigosa.<br />

A dança da quadrilha, da qual nós não participamos por não termos ensaiado,<br />

foi linda. Os pares dançavam e cantavam com empolgação, felizes, sorrindo para o<br />

público que os aplaudia, demonstrando gratidão por aqueles momentos inesquecíveis.<br />

Para qualquer lugar que olhássemos, vinha a impressão de que um grande arco-íris<br />

nos envolvia.<br />

Divertidos eram os leilões:<br />

– Atenção! Dizia um senhor, segurando um frango assado. Vejam que beleza,<br />

tá tostadinho. Quem vai dar o primeiro lance? Ah! O senhor aí escondidinho... Quem<br />

dá mais? Quem da mais, repetia. Vou bater o martelo; dou-lhe uma... dou-lhe duas ...<br />

dou-lhe três. Pronto o frango é daquela senhora de peito grande.<br />

variadas.<br />

Risada geral. Tudo era motivo para brincadeira.<br />

Assim leiloavam garrafas de vinho, de pinga, leitõezinhos, brinquedos e coisas<br />

– Moço, fica com uma rifa?<br />

As rifas, nessas festas não podem faltar, fazem parte do sonho, da esperança.<br />

Minha irmã escolheu o numero treze e acertou. Ganhou uma boneca de celulóide. Sua<br />

alegria foi tão grande que não largou mais.<br />

As barracas enfeitadas, coloridas, em muito contribuíam para o êxito da festa.<br />

Como resistir àquela canjica macia, com caldinho e bastante coco? De um modo geral,<br />

cada um especializava-se em quitutes diferentes. Os bolos de aipim e de fubá, ambos<br />

com coco, eram os mais procurados; mesmo assim davam oportunidade de consumo<br />

para o milho cozido, os pés-de-moleque, pamonhas e muitos outros tipos de<br />

guloseimas.<br />

91


Interessante, é que havia barracas vendendo caldo-verde, caldo de mocotó e<br />

caldo de feijão. As pessoas tomavam aqueles pratos bem quentinhos para<br />

afugentarem o frio.<br />

Balõezinhos que as crianças podiam manusear e fogos de artifício sem perigo,<br />

como as estrelinhas, o chicotinho, etc. Eram distribuídos, aumentando assim, a euforia<br />

da garotada.<br />

À meia noite realizava-se o casamento. Era muito divertido... O noivo – com<br />

calça pescando siri, alguns dentes pintados, chapéu de palha desfiado, bigode e<br />

cavanhaque, também pintados – puxava a noiva toda de branco, caracterizada à<br />

caipira, fazendo cara de boba. Iam para um altar improvisado. As damas, nas mesmas<br />

circunstâncias, seguiam na frente e o padre, correndo, para alcançá-los.<br />

surdo!<br />

fugir!<br />

verdadeiro.<br />

– O senhor aceita a senhorita Filó para esposa? ... Aceita ou não? ... Parece<br />

Dizia ele.<br />

As crianças empolgadas gritavam:<br />

– Aceita, aceita, aceita...<br />

– Craro, seu padre. Tô lôco prá casá...<br />

– E você, linda noiva (que Deus me perdoe!)? Vai aceitar o elegante rapaz?<br />

Muitas risadas.<br />

– Vô sim, padre. Tô necessitada. Segurem ele minha gente! Não deixem ele<br />

Olhos fixos, voltados para o ato, as crianças vibravam, algumas acreditando ser<br />

Foi uma noite maravilhosa: meus irmãos e eu nunca nos divertimos tanto.<br />

Lembrando, porém, um ditado popular: Tudo que é bom dura pouco. Ouvimos nosso<br />

pai dizendo:<br />

espera.<br />

– Bem, crianças... por hoje, chega. Temos que ir. Uma grande caminhada nos<br />

Saímos cansados e felizes.<br />

Já estávamos andando há bastante tempo, por ruas escuras e desertas, quando<br />

papai, na tentativa de encurtar o trajeto, resolveu atravessar certo quintal que lhe<br />

pareceu inofensivo. De súbito, olhou para trás e avistou um boi que se aproximava de<br />

nós, ameaçador.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

92


– Corram todos!<br />

– Deus do Céu! A Percy está com caipira vermelha.<br />

Dizia mamãe apavorada.<br />

Existia uma crença, e nós sabíamos disso, de que o boi não gostava da cor<br />

vermelha. O animal avançava! Nós corríamos! E meu pai, sacudindo um guarda-chuva,<br />

gritava:<br />

– Chô! Chô! Chô!<br />

Meu irmão, ao fugir, não enxergou uma cerca de arame farpado e bateu com o<br />

rosto ferindo-se. Foi, na verdade, um grande susto.<br />

Chegamos, finalmente, em casa, cansados, mas felizes, apesar dos ferimentos<br />

leves do meu irmão. Valeu a pena! Como valeu!<br />

pequeno...<br />

Dolores.<br />

Continuamos em Irajá, naquele enorme casarão que nos pareceria tão<br />

– Felicidade! Felicidade! Você é realmente imprevisível!<br />

Que alegria ao receber, de braços abertos, nossos queridos avós. Julio e<br />

Comunicaram-nos que voltariam para a terra deles, a Espanha. Já estavam,<br />

inclusive, com toda documentação necessária. Sabedores das dificuldades de<br />

relacionamento com a família de nosso pai, entenderam (e estavam certos) que o<br />

melhor para nós seria retornar para a casa do morro, onde já havíamos vivido com<br />

eles. Crianças que éramos, só pensávamos na liberdade que nos esperava. Pulamos de<br />

alegria.<br />

– Vamos, sim, papai! Vamos mamãe. Por favor!<br />

Mal sabíamos que jamais voltaríamos a vê-los. Assim que chegaram à tão<br />

querida terra, iniciou-se a violenta Guerra Civil Espanhola. Como conseqüência,<br />

ficamos, de imediato, sem qualquer notícia deles. Expectativa, ansiedade, medo,<br />

saudade, foram os sentimentos que nos acompanharam durante anos, embora a<br />

esperança estivesse sempre dentro nós. Fomos crescendo conscientes do ocorrido e<br />

não deixávamos de participar das orações, pedindo a Deus que os protegesse.<br />

Não me recordo de quantos anos se passaram, até o recebimento da carta de<br />

um primo, comunicando que nossa avó havia falecido durante a guerra e que vovô<br />

estava mal. Mesmo assim, ele conseguiu escrever-nos duas cartas. Onde estarão elas?<br />

Com quem? Ah! Como eu gostaria de tê-las em minhas mãos!<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

93


Enfim de volta. Outra vida, maiores dificuldades. Imediatamente senti o<br />

cheirinho da sopa da vovó, tão intenso e gostoso... Procurei minha cabritinha Morena<br />

e, claro, não poderia encontrá-la; já não existiam nossos animaizinhos.<br />

Estávamos com fome e mamãe logo resolveu o problema. Tirou de uma sacola,<br />

alguns pães dormidos, (duros mesmo) e perguntou-nos:<br />

– Que tal uma açorda?<br />

– Eu quero também.<br />

– Só têm uma coisa: não há bacalhau.<br />

– Faz assim mesmo mãe...<br />

Ela preparou um refogado caprichado e colocou o pão partido em<br />

quadradinhos, deixando-o amolecer naquele molho. Para melhorar, incrementou-o<br />

adicionando pimenta do reino em pó e manjericão. Estava tão cheiroso que até parecia<br />

que o bacalhau encontrava-se presente. Fez um arroz branco (diziam que era à moda<br />

mineira) e uma boa salada com alface, agrião, cebola crua e tomate. Com que<br />

satisfação saboreamos aquele manjar, feito com muito carinho e amor.<br />

Meu Deus, quantas e quantas vezes, para alimentar minhas filhas, tive que<br />

fazer pão duro ensopado!<br />

As crianças tinham o hábito de percorre a vizinhança, perguntando:<br />

– Moça, tem pão duro?<br />

Em nossa casa, toda sobra de pão era guardada numa sacola de pano,<br />

apropriada para protegê-lo de impurezas, ficando assim em condições de ser usado<br />

quando necessário. Eventualmente, atendíamos a alguns pedidos, pois era gratificante<br />

poder ajudar alguém, mesmo que fosse com um pedaço de pão duro.<br />

Percebo a grande diferença entre o antigamente e o agora. Será que<br />

comprávamos mais pão? Acredito que não. Talvez a razão estivesse na distância que<br />

tínhamos a percorrer até chegar à padaria. Sendo ela um tanto afastada,<br />

comprávamos sempre pão a mais para evitar a caminhada pela manhã.<br />

Atualmente, já não resido no morro. Próximo à minha casa existem várias<br />

padarias que, para atraírem o público, fazem pão a cada meia hora. É o progresso...<br />

Confesso que preferia ouvir:<br />

– Moça tem pão duro?<br />

Do que:<br />

– Moça me arranja um real?<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

94


Acredito porém, que, infelizmente, em muitas localidades menos favorecidas, o<br />

costume de pedir pão duro ainda persista; aliás, não é um costume e sim a pobreza.<br />

Essa coisa de pão duro foi tão marcante que, até hoje, eu, minha família e<br />

conhecidos, ao recebermos uma visita inesperada, brincamos dizendo:<br />

– Hoje não tem pão duro...<br />

Estive pensando e lembrei-me de coisas boas que podemos fazer com o pão,<br />

além, é claro, da já mencionada açorda. Vou dar um exemplo feito por mim e minha<br />

gente, deixando claro que a imaginação humana não tem limites e a criatividade está<br />

presente, principalmente, entre os mais necessitados, quando lutam pela<br />

<strong>sobre</strong>vivência.<br />

Aproveitando o pão. Quantas coisas podemos fazer!<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Pudim de pão<br />

Tirar a casca de alguns pedaços de pão duro, colocá-los de molho na água,<br />

espremê-los bem e passá-los numa peneira (já tentei bater no liquidificados, mas não<br />

deu certo). Juntar dois ovos inteiros, uma colher de sopa de manteiga, uma pitada de<br />

sal, um pouquinho de canela em pó (se gostar), algumas passas sem caroços e leite,<br />

aos poucos, até formar uma massa consistente. Açúcar a gosto. Não precisa bater,<br />

basta misturar bem. Fazer uma calda de açúcar queimado (cuidado para não escurecer<br />

muito), espalhar num tabuleiro ou forma e despejar a massa. Levar ao forno médio,<br />

durante uns trinta minutos. De vez em quando, espetar um palito para verificar se a<br />

massa está secando. Retirar do forno, esperar esfriar e desenformar.<br />

95


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Farinha de rosca<br />

Desde criança, aprendi a prepará-la em casa. Meus pais tinham<br />

restrições quanto à higiene do pão que as padarias aproveitavam para esse fim.<br />

Ralar, num ralador de alumínio, o pão duro (não precisa descascar). Peneirá-lo,<br />

e se achar que a farinha ficou muito branca, basta colocá-la, aos poucos, numa<br />

frigideira seca e levar ao fogo baixo, mexendo até que fique torrada no ponto<br />

desejado. Atenção: tirar imediatamente a farinha da frigideira para não ficar queimada.<br />

Parece complicado, mas devo esclarecer que estes simples conhecimentos eu<br />

fui desenvolvendo através do tempo. Aproveito para esticar receitas e prosseguir com<br />

uma em que o pão não está presente.<br />

Certa vez, fiz uma “violência”; é verdade, comprei um quilo de camarão, dos<br />

grandes, para usá-los: parte ensopado com chuchu e parte para rechear um pequeno<br />

peixe. Ao separar as cabeças para limpar os camarões, tive pena de jogá-las fora.<br />

Estavam tão fresquinhas... Pensei, pensei e resolvi “inventar” uma receita modesta,<br />

mas gostosa.<br />

96


pede:<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Sopa de camarão<br />

Todos gostavam. E, sempre que compramos camarões, a turma<br />

– Não esquece a sopa...<br />

Lavei bem as cabeças e coloquei-as para cozinhar. Depois de algum tempo,<br />

após tê-las socado um pouco, passei tudo na peneira e joguei <strong>sobre</strong> um refogado com<br />

azeite, cebola, alho, tomate (sem pele), colocando imediatamente pão duro cortado<br />

em pedaços pequenos. Sal a gosto. Deixei ferver até amolecerem os pães e apaguei o<br />

fogo. Só então coloquei um molho inteiro de salsinha.<br />

Enfim, a criatividade aliada à economia funcionou: com um quilo de camarão,<br />

fiz três receitas diferentes e aproveitei o pão duro. Creio que antes o aproveitamento<br />

era comum às pessoas; hoje é a época do tudo pronto para ser descartado.<br />

97


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Pão, rabanada. Natal!<br />

Continuar a escrever <strong>sobre</strong> pão... Teria uma infinidade de coisas. Das<br />

receitas, a tradicional “rabanada” me faz recordar, com saudades, do Natal na minha<br />

infância e adolescência.<br />

Só comecei a ouvir falar de Papai Noel quando, esperta como eu era, já não<br />

dava para acreditar. Inconscientemente, me vingava, divertindo-me, quando insistia<br />

com meus irmãos e outras crianças <strong>sobre</strong> a existência dele.<br />

Aguardávamos ansiosos a chegada do Natal, pensando em quantas coisas<br />

gostosas iríamos saborear e, também, em receber os presentes que nos haviam<br />

prometido.<br />

– Se passares de ano, ganharás uma pasta nova.<br />

Dizia meu pai.<br />

– E talvez roupas e sapatos.<br />

Concluía mamãe.<br />

Certa vez, passei de ano com louvor, ganhado mais uma medalha. Eles ficaram<br />

orgulhosos e com dificuldade, deram-me uma capa para chuva. Naquela época usava-<br />

se muito. Ela era bege, com botões grandes, capuz e cinto largo amarrado para frente.<br />

Daí por diante, vivi de expectativas. Queria usar minha capa, mais não chovia...<br />

Acordava, ainda escuro e dizia:<br />

– Mãe, o tempo tá feio, né? Acho que vai chover...<br />

Logo o sol começava a raiar. Um dia ao voltar da escola, caiu um temporal e eu<br />

molhada, só sabia dizer:<br />

– Que pena. E agora? Quando usarei minha capa?<br />

Não esqueço a bela ceia de Natal, com tantas iguarias, que meu pai nos<br />

oferecia. Refletindo hoje, me pergunto, como um garçom com mulher e três filhos<br />

conseguia, honestamente, aquele milagre?<br />

Lembro-me que morávamos ainda num barraco no morro de São Carlos<br />

(naquele tempo, era barracão mesmo, feito de estuque, revestido de latas, coberto<br />

98


com zinco, sem saneamento básico, sem água potável, sem energia elétrica); não<br />

tínhamos ainda nos mudado para Irajá.<br />

Antes de descrever nosso “banquete”, quero deixar claro que admiro<br />

profundamente a filosofia de vida de meus pais. Para eles não importava o luxo, a<br />

grandeza e não era permitida a ambição. Honestidade acima de tudo. É bem verdade<br />

que para nós, ficava difícil entender e aceitar a severidade excessiva de nosso pai, nos<br />

obrigando a comer tudo, o que muitas vezes o fazíamos revoltados.<br />

– Feliz Natal!<br />

Dizíamos uns aos outros. Éramos meu pai, minha mãe, tio Antônio (irmão da<br />

minha mãe), meu irmão, minha irmã e eu.<br />

Não ficávamos sem presentes, graças à muito querida Sra. Darcy Vargas,<br />

esposa do presidente Getúlio Vargas. Ela presidia uma obra social grandiosa. Com<br />

antecedência distribuíam cartões no Palácio do Catete, através da Legião Brasileira de<br />

Assistência, para que, antes do Natal recebêssemos brinquedos “bons”, como bonecas,<br />

carros, velocípedes, bolas e até bicicletas. Roupas e alimentos não faltavam. Aproveito<br />

par mencionar a “Casa do Pequeno Jornaleiro” a quem ela tanto se dedicou.<br />

Extraordinária Mulher!<br />

Voltando a nossa festa: uma mesa grande e velha. Sobre ela minha mãe<br />

colocava um pano de mesa bordado por nós durante o ano para esse dia. As cadeiras<br />

também recebiam capas. No centro, um grande tabuleiro com bacalhoada à<br />

portuguesa, arroz feito com a água do bacalhau, rabanadas no leite e ovos, rabanada<br />

no vinho, os indispensáveis bolinhos de bacalhau, aletria, arroz doce, castanhas<br />

cozidas e assadas no fogão de carvão, nozes, avelãs, passas, figos. Nada de frutas<br />

cristalizadas – eram muito caras. Não tinham o hábito de colocar frutas <strong>sobre</strong> a mesa,<br />

como hoje o fazemos. Um costume que conservo até hoje – e dele não abro mão: é<br />

um simples molho que papai fazia.<br />

Amassava bastante alho (não possuíamos espremedor), colocava numa vasilha,<br />

juntava bastante azeite “português”, vinagre de vinho, salsinha bem picadinha e sal.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Misturava bem.<br />

À proporção que colocávamos a bacalhoada nos pratos, íamos cobrindo com o<br />

molho. Gente, só em lembrar me dá “água na boca”.<br />

99


O vinho tinto, de boa qualidade, também não faltava. Puro para os adultos e<br />

misturado com pouquinho de água para as crianças.<br />

Interessante é o que sempre digo e é verdade: nós éramos pobres! Porém, com<br />

certa revolta com a crise absurda por que passamos atualmente, dá-me vontade de<br />

gritar:<br />

– Pobre sou hoje, que dificilmente posso comprar um bom bacalhau; e azeite<br />

puro “português”, nem pensar.<br />

Certo ano minha mãe nos surpreendeu ao dizer:<br />

– Sabem de uma coisa? Estou me sentindo como se estivesse renegando<br />

minhas raízes; ajudem-me, por favor, a reagir, aceitando de bom grado minha<br />

sugestão. Que tal esse ano comemorarmos o Natal com uma bacalhoada à espanhola?<br />

– Claro! Mas é gostosa?<br />

Ela então explicou-nos que era parecida com a portuguesa. A diferença estava<br />

no molho feito com azeite, cebola, pimentão, alho, salsinha, azeitonas pretas e<br />

colorau. Esse molho era feito à parte e jogado quente, na hora de servir, <strong>sobre</strong> a<br />

bacalhoada, que continha batatas, cebolas inteiras, couve tronchuda, ovos e bacalhau<br />

em postas, tudo previamente cozido.<br />

Havia semelhança; ficava igualmente uma delícia.<br />

No dia seguinte, não precisava fazer nada, pois as sobras eram aproveitadas<br />

com criatividade. Desfiava-se o bacalhau bem fininho, cortava-se a batata em rodelas,<br />

a cebola e a couve bem picadinhas e juntava-se uma maionese feita por meu pai.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Ele misturava duas gemas cozidas com duas gemas cruas. Batia-as bem,<br />

colocando azeite devagar. Quando estava ligado, “engrossado”, ia pingando gotas de<br />

limão, batendo sempre. Sal a gosto. Acredito que nesse tempo ainda não existia<br />

liqüidificador. Para completar, fazia farofa com passas e maçãs picadas.<br />

O Natal é tradicionalmente comemorado a partir da meia noite do dia 24 de<br />

dezembro. Meu pai fazia questão de seguir essa tradição.<br />

100


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Hoje: o Natal, a filha, a escola e<br />

o doce de abóbora.<br />

O Natal foi maravilhoso! Todos felizes. Entretanto, eu, como boa<br />

observadora, ainda mais em se tratando da família, senti que havia alguma coisa<br />

preocupando minha filha Rose Mary, que muito sutilmente, disfarçava. O que seria?<br />

Precisava falar-lhe; quem sabe, ajudá-la! Meu coração estava apertado, ansioso... Por<br />

isso decidi encontrar-me com ela na Escola Irmã Zélia, no Largo Vaz Lobo, onde ela<br />

lecionava.<br />

Estava aguardando-a, quando tocou a campainha, avisando que chegaria a<br />

hora do recreio. Alegria geral! A maioria das crianças iria fazer a única refeição. Ainda<br />

que pareça incrível, apesar de tantos anos passados, lembro-me perfeitamente do que<br />

foi servido para a merenda: tutu de feijão, couve à mineira, ovos cozidos e uma laranja<br />

para a <strong>sobre</strong>mesa.<br />

– Mãe, almoça comigo. Tá gostosa.<br />

Aceitei e percebi que era exatamente igual à dos alunos. De repente, comecei a<br />

observar um menino miudinho, isolado, comendo avidamente. Gente! Além da<br />

refeição, foi “devorando” um ovo cozido atrás do outro. Comecei a ficar preocupada e<br />

chamei minha filha:<br />

– Mary, pelo amor de Deus, esse menino vai passar mal, já contei seis ovos.<br />

Não será melhor avisar a merendeira?<br />

– Não vai não mãe. Igual a ele existem vários, e a maior motivação para virem<br />

à Escola é a fome! Há uma ordem: enquanto houver merenda, ela não pode ser<br />

negada.<br />

O passado correu para mim, buscando um lugarzinho na minha lembrança e<br />

conseguiu encontrar-me na querida Escola Rio Grande do Norte. Lá estava eu,<br />

representante dos alunos, percorrendo todas as salas de aula para saber quem queria<br />

“Comprar Merenda”. Naquele tempo o Governo não fornecia merenda escolar. Quem<br />

101


pudesse pagava ou então a trazia de casa, como eu, que muitas vezes levei<br />

“sanduíche” de pão com feijão.<br />

Qual a razão de tantas lembranças e saudades da minha escola? Fecho os olhos<br />

e vejo-a todinha, detalhe por detalhe. O gabinete da Diretora, Dona Célia, onde eu era<br />

encarregada de distribuir materiais, listas de chamadas... Tínhamos mesas e cadeiras<br />

individuais e um grande quadro negro. O gabinete dentário muito me atraía; chegava a<br />

mentir dizendo que estava com dor de dentes, só para sentar-me naquela cadeira<br />

confortável.<br />

Tinha enorme admiração por todos os professores, mas Dona Carmem era<br />

especial e logo compreenderão:<br />

– Descrevam o que fizeram no fim de semana.<br />

Dizia.<br />

Ah! Eu adorava, pois confesso que descrevia o que queria que tivesse<br />

acontecido. Meu trabalho quase sempre ia para o mural. Também, pudera, divertindo-<br />

me num lindo jardim florido, com vestido novo, correndo, brincando com outras<br />

crianças, bonitas e felizes... Arriscar descrever minha realidade? Nem pensar...<br />

Biblioteca, também foste minha mestra, meu refúgio. Contigo aprendi a<br />

defender-me das bruxas malvadas, a acreditar nas fadas madrinhas... Transformava-<br />

me numa linda princesa, brincando com a Branca de Neve e os Setes Anões. Viajava<br />

através dos livros. Sonhava... Sonhava...<br />

pressões.<br />

Atividades Culturais, Patriotismo eram cultivados de forma tranqüila, sem<br />

Foi criado o Centro de Brasilidade e através dele aprendi a votar. Um dia<br />

dezenove de novembro (dia da Bandeira), foi dada a partida para esse trabalho.<br />

Colocaram no centro do pátio uma urna. Teríamos que escolher: Presidente, Vice-<br />

presidente, Secretário, Vice-secretário e um aluno para cada estado. Tudo foi feito com<br />

a máxima lisura e nós nos sentíamos importantes com as responsabilidades que nos<br />

esperavam. Fiquei muito feliz ao saber que fora eleita por unanimidade, presidente do<br />

Centro de Brasilidade. Daí por diante, nos grandes festejos, lá estava eu, com o braço<br />

direito esticado para frente e o esquerdo <strong>sobre</strong> o coração, falando bem alto para que<br />

todos repetissem:<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

102


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Juro amar a Bandeira.<br />

Minha grande Pátria<br />

que desejo sempre livre, forte e generosa...<br />

Hoje, tenho tantas dúvidas e dificuldades para entender as mudanças que vêm<br />

acontecendo através dos anos! Apesar do interesse das autoridades “competentes”<br />

para que não falte a merenda nas escolas, ainda há muito que fazer, até que<br />

possamos evitar o constrangimento de assistir um menino, miudinho, magrinho,<br />

comendo avidamente, na escola, tantos ovos cozidos, para saciar sua fome.<br />

Realmente, o menino comedor de ovos, foi para mim surpreendente, curioso!<br />

Pensei então em amenizar aquela situação, convidando minha filha para irmos<br />

saborear um doce de abóbora com coco, que eu fizera e ela gostava; mesmo porque<br />

eu ainda não havia esclarecido a preocupação que sentira, com ela, no encontro no dia<br />

de Natal.<br />

– Mãe, você é demais, observa tudo... e olha que eu procurei esconder...<br />

Felizmente, não foi nada grave, sendo rapidamente contornado.<br />

– Hum... Tá uma delícia este doce de abóbora (nós o comemos com queijo de<br />

Minas), já tentei fazê-lo, mas é muito cansativo.<br />

Disse a Mary.<br />

Vou explicar-te a história desse doce: a primeira vez que o fiz, ensinaram-me a<br />

cozinhar a abóbora e espremê-la, retirando toda a água, passando-a inclusive num<br />

pano fininho. Pois bem, por minha conta decidi simplificar, tornando-o mais fácil e<br />

gostoso.<br />

Cortar a abóbora em pedaços, descascar e colocar numa panela, juntamente<br />

com açúcar (mais ou menos na mesma quantidade e se não desejar muito doce,<br />

colocar menos açúcar). Não leva água, pois ela cozinha no próprio açúcar que se<br />

transforma numa calda. Fogo baixo. Assim que amolecer, começar, numa<br />

escumadeira, com um garfo, a amassar dentro da própria panela, que deverá ser<br />

retirada do fogo, durante esse processo, do contrário, ao pipocar, poderemos nos<br />

queimar. Depois de bem desmanchada, colocar o coco ralado, com canela em pau e<br />

cravinho. Mexer sem parar durante algum tempo. Se desejar para compota, deixar<br />

com um pouco de caldo. Porém para docinhos de festas, deixar mais tempo, até<br />

103


aparecer o fundo da panela. Também aí a atenção tem que ser redobrada, pois se<br />

endurecer demais não dá para enrolá-los. O açúcar cristalizado é melhor para isto. Em<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

todo preparo do doce, deve-se usar colher de pau.<br />

Finalizando, lembro-me de um fato engraçado. No aniversário de todos os meus<br />

netos sempre preparei os docinhos. Certa vez, na hora do doce de abóbora, percebi<br />

que havia errado no ponto, mesmo assim, arrisquei e os enrolei. Quando desci para o<br />

Salão de Festas, me diverti muito, pois não é que os meninos estavam jogando bola de<br />

gude com meus docinhos de abóbora?<br />

104


Doces, docinhos... Lembram-me aniversários!<br />

Pensei... Pensei... Procurei no baú dos meus pensamentos, algo que<br />

me fizesse lembrar se, algum dia, eu tivera uma festinha, um bolinho mesmo sem<br />

confeitar ou ouvido alguém dirigir-se a mim para bater palmas e cantar “Parabéns pra<br />

você”... Entretanto, tenho sempre presente a voz de meus pais, na tentativa de<br />

amenizar a decepção que eu certamente demonstrava, dizendo-me:<br />

– No fim do ano ganharás um vestido novo.<br />

Sabem de uma coisa? Parecia tão pouco, mas me sentia feliz, percebendo que<br />

eles não haviam esquecido.<br />

Talvez esta frustração me fizesse desejar, ansiosa, que chegasse o dia 20 de<br />

maio, data do aniversário da Fany; ela fazia questão de uma festa bem badalada. Já a<br />

Aninha, irmã mais velha, gostava apenas de ajudar. Éramos tão amigas, que por<br />

decisão nossa, resolvemos ser primas, e somos até hoje.<br />

Tia Guilhermina – mãe delas – fazia pastéis, pizzas, canapés e cachorro quente.<br />

Naquele tempo não se usava salgadinhos. Um grande bolo confeitado não faltava,<br />

além do bolo de milho, pudim de leite condensado, manjar, bolo de chocolate, doces<br />

em calda... Para acompanhar tantas iguarias, era servido chocolate, bem quentinho.<br />

– Deus do céu, já são cinco horas? Gente, não posso me demorar...<br />

Elas preparavam-me um prato, com um pouco de cada coisa e iam comigo para<br />

a cozinha para que eu tomasse meu chocolate. Fazia-o escondido das outras crianças,<br />

pois ficava com vergonha de dizer que não podia esperar a hora dos parabéns. Meu<br />

pai ao deixar-me sair, dizia, categórico:<br />

– Às sete horas, quero-te em casa.<br />

Eu tinha medo, pois da Rua São Januário, onde elas moravam, até o Morro São<br />

Carlos, era necessário tomar um bonde para o Largo do Estácio e andar a pé uns vinte<br />

minutos para chegar à minha casa. Ainda hoje, no aniversário delas, mesmo que não<br />

haja o “tal chocolate”, dizem brincando:<br />

– Já para a cozinha, esqueceu?<br />

Nós nos divertimos com essas lembranças.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

105


Já que estou falando <strong>sobre</strong> minha prima Fany, tenho algo pitoresco para<br />

contar-lhes, mas como toda boa história, só saberão como acabou, é claro, no fim.<br />

Fomos realmente muito amigas. Estudávamos, saíamos para passear na Quinta<br />

da Boa Vista, íamos à praia de Paquetá quase todos os domingos... Certa vez,<br />

estávamos deitadas na areia, recebendo bastante sol para nos bronzear, quando dois<br />

rapazes se aproximaram e disseram:<br />

– Seria a sereia ou a sereia seria!<br />

Rimos tanto... Claro que todas estas saídas eram às escondidas do meu pai.<br />

Eu freqüentava a casa delas com toda liberdade. Fany emprestava-me seus<br />

vestidos e acessórios, mais infelizmente, seus sapatos me ficavam grandes. Assim, não<br />

havia outro jeito: vestido bom e bonito e sapatos usados.<br />

Várias vezes saí para encontrar com um namorado toda produzida. Um dia, ele,<br />

ao avistar-me, disse:<br />

– Você está linda. Esse vestido fica-lhe tão bem!<br />

– Ah! Eu não gosto dele. Só coloquei, porque na hora de sair com outro meu<br />

irmão respingou-me café.<br />

Eu me protegia, pois não sabia se voltaria a usar o vestido que lhe agradara.<br />

Mesmo sendo muito amigas, minha prima ainda não fora na minha casa, apesar<br />

da insistência dela. Com vergonha de morar no morro, numa casa humilde, eu<br />

protelava o convite, dando desculpas, aproveitando-me da imagem severa que lhe<br />

passava do meu pai. Um dia ela disse-me:<br />

mão.<br />

– Sabe de uma coisa? Sábado vou à tua casa e dormirei lá; desta vez não abro<br />

Ela foi e meus pais a receberam com carinho.<br />

– Por que não veio almoçar conosco?<br />

– Fica para outra vez, obrigada.<br />

À tarde, colocaram toalha <strong>sobre</strong> a mesa – a toalha bordada dos dias de festa –<br />

e fomos todos lanchar, inclusive meus irmãos.<br />

– Comprei pão quentinho e a “mortadela” de que tanto gostam. Disse papai.<br />

Tem também um chocolate no capricho, bem grossinho.<br />

Eu, sem graça, pensava:<br />

– Com pão?<br />

Felizmente a Fany adorou pão com mortadela e até hoje uso.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

106


Começou a escurecer. Havia um quarto pequeno com uma cama para mim e<br />

minha irmã e outra menor para meu irmão, que nesse dia ficou na casa de um colega.<br />

A casa só possuía uma sala que servia de quarto para meus pais. Mamãe ajeitou da<br />

melhor forma possível e nos deitamos. Estava uma noite linda, com luar maravilhoso e,<br />

graças a Deus, não foi necessário acender a “lamparina”. Não havia luz elétrica, usava-<br />

se lampião a querosene na sala e, para os demais locais, a lamparina.<br />

De repente, Fany acordou-me:<br />

– Augusta! Augusta! Olha só: estou vendo vaga-lumes.<br />

Abracei-a, procurando tranqüiliza-la, pois eu já os conhecia. Era a claridade do<br />

luar atravessando alguns pequenos buracos do “telhado” coberto de latas.<br />

– Fany, você está sonhando, não tenha medo querida, vire de lado e cubra o<br />

rosto, que eles irão embora.<br />

Quando a claridade desapareceu, foram-se também os vaga-lumes.<br />

Hoje, minha prima Ana está com 84 anos e Fany com 80, com relativa <strong>saúde</strong> e<br />

muito lúcidas. De vez em quando, no meio de netos e sobrinhos, como eu também,<br />

nos divertimos muito ao contar-lhes: à noite dos vaga-lumes.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

107


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Engravidei!!<br />

Meu grande sonho ia realizar-se! Após três meses de casada,<br />

engravidei. Apesar das dificuldades, consegui, durante a gestação ser feliz; “curtindo”<br />

cada dia, cada hora, cada minuto, a emoção de ter no ventre um filho querido,<br />

desejado e amado.<br />

Comecei a fazer o enxoval, todo à mão, ponto “ajour”, bordado com linha “Ilha<br />

de Madeira”. Levei quase três meses para terminar a primeira camisola. Era comprida,<br />

toda intercalada de renda. E, ao mesmo tempo, ia fazendo lençóis com aplicações,<br />

cueiros de flanela com bichinhos, camisinhas de pagão, casaquinhos, sapatinhos,<br />

mantas de croché, quarenta fraldas, aproximadamente, de tecido apropriado que<br />

comprava na Fábrica Bangu. É gente... Não havia descartável! Hoje é fácil.<br />

Aconselhavam-me a comer canjica e tomar cerveja preta para ter bastante<br />

leite. Eu, na medida do possível, seguia “à risca”. Certa vez, estava acariciando minha<br />

barriga, pensando curiosa:<br />

– Como será você? Por acaso terás olhos verdes como o pai? Será moreninha,<br />

cabeluda, menino ou menina?<br />

De uma coisa eu não esquecia: era pedir a Deus que me desse uma criança<br />

perfeita, saudável... Num desses momentos, levei um susto maravilhoso. O neném<br />

mexeu-se pela primeira vez, como se quisesse dizer-me:<br />

– Mãe, estou aqui. Aguarde um pouquinho, logo estaremos juntos.<br />

Era comum usarem a cor azul para menino e rosa para menina. Não sei a<br />

origem desse costume; resolvi fazer tudo branco.<br />

O pré-natal, o fiz num postinho de <strong>saúde</strong>, anexo à Igreja Nossa Senhora de<br />

Salete, no Catumbi. Aliás nela me casei. Já estava completando nove meses de<br />

gravidez, quando no dia 21 de janeiro às 7:30 h, assustei-me com o que estava<br />

ocorrendo. Na verdade eu era complemente leiga, nunca tivera a orientação adequada.<br />

Tia Áurea, com quem residia, preocupando-se disse:<br />

Janeiro.<br />

– A bolsa estourou. Leve-a, imediatamente para a Policlínica Geral do Rio de<br />

108


Cheguei lá em trabalho de parto. Sofri muito, pois somente às 22:45 h, minha<br />

filha Rose Mary, acordou para o mundo, pesando 3.400 kg e 50 cm de comprimento.<br />

Era moreninha, olhos castanhos, tão cabeluda que, quando a trouxeram para mamar<br />

fizeram vários cachinhos. Graças a Deus, era perfeitinha. Poderia haver alegria melhor?<br />

No dia seguinte, estranhei ao entregarem-me o almoço. Feijão, arroz, repolho<br />

ensopado e carne assada. Dirigi-me à servente e disse-lhe:<br />

– Deve estar havendo engano, eu tive neném ontem à noite.<br />

Ela rindo com certa compreensão, respondeu-me:<br />

– Ah! Você esperava uma bela canja, né?<br />

Lembrei-me da minha infância e até adolescente, do que diziam das galinhas<br />

gordas, do resguardo... Sem entender, almocei o que me foi oferecido, que aliás<br />

estava gostoso e não me fez mal algum.<br />

Fiquei dois dias no hospital e tive de sair escondida, sabem porque? Quando eu<br />

estava fazendo o pré-natal, informaram-me que na Policlínica era de graça. Se assim<br />

não fosse, não teria ido para lá, pois meu marido estava desempregado e não<br />

tínhamos recursos. Algumas pacientes avisaram-me. Fiquei muito nervosa,<br />

principalmente, quando uma freira chegou, dizendo-me que eu teria que pagar certa<br />

quantia, antes de sair.<br />

secar.<br />

– Olha, não fica nervosa. Procure controlar-se, do contrário seu leite pode<br />

Meu Deus, isso não! Eu queria amamentar minha filha... No Domingo, durante<br />

a visita (o médico já havia dado alta), enrolei o neném num cueiro, pequei uma<br />

pequena bolsa, e, junto com meu marido nos encaminhamos para o elevador e saímos<br />

“de mansinho”, assustados.<br />

Rose Mary quase nasceu no dia de São Sebastião, por isso até hoje brinco com<br />

ela, dizendo-lhe:<br />

– Por pouco você se chamaria Sebastiana!<br />

– Pelo amor de Deus mãe, ainda bem que esperei um pouco.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

109


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Primeira comunhão três vezes?<br />

É isso mesmo... Tive a ousadia de cometer esse “pecado”, como diria meu<br />

confessor. Engraçado, é que, em nenhum momento me arrependi; pelo contrário, foi<br />

tão gratificante que, até hoje, passados sessenta e cinco anos, recordo-me de tudo nos<br />

mínimos detalhes e sinto, sem falsa modéstia, orgulho por ter seguido minhas<br />

intuições.<br />

O Morro de São Carlos, onde nasci e me criei, não era apenas fonte de<br />

inspiração para poetas e compositores. Pobreza havia por todo lado, mas isso não<br />

impedia que recebêssemos boa orientação religiosa. Na Rua Laurindo Ribeiro, próxima<br />

ao Lago da Bica, encontra-se, até hoje, a Igreja de Santo Antônio de Pádua que foi<br />

criada em 1904 por um grupo de dissidentes de um bloco carnavalesco. Nela<br />

batizaram-me, estudei catecismo e fiz a “Primeira Comunhão”. Criança, não entendia<br />

bem e me perguntava:<br />

– Por que o padre ficava de costa para nós, e não entendíamos o que dizia?<br />

Os padres e catequistas, muito rigorosos, não admitiam que faltássemos à<br />

missa e ao catecismo. Era exigido silêncio absoluto dentro da igreja. Tínhamos medo<br />

até de espirrar. Aprendíamos a rezar o Pai Nosso, Ave Maria, Salve Rainha... Além de<br />

cânticos muito bonitos, como por exemplo, um dos que perduram até hoje:<br />

Queremos Deus, homens ingratos, ao Pai Supremo Redentor...<br />

Para a Primeira Comunhão, marcaram a data com antecedência a fim de que<br />

preparássemos os enxovais. A sorte é que no Beco morava a Lurdes, uma humilde<br />

costureira, caprichosa e amiga nossa. Ela fez tudo, inclusive a grinalda.<br />

Grande dia: a Igreja por dentro coberta de flores, por fora, toda enfeitada com<br />

bandeirinhas coloridas e mesas improvisadas com papel crepom, cobrindo-as. Havia<br />

bolos de diversos tipos, sanduíches, pastéis, refrescos... As mães e responsáveis,<br />

orgulhosamente, encarregavam-se desse trabalho.<br />

110


Antes mesmo de começar a festa, meus pais levaram-me ao fotógrafo no Largo<br />

do Estácio. Adorei... Como não havia condução, tivemos que ir a pé e assim tive a<br />

oportunidade de mostrar-me, sentido-me como uma rainha... Durante os festejos, com<br />

muito cuidado, resguardava toda minha roupa, pois já me passava pela cabeça, fazer<br />

outra “Primeira Comunhão” na Escola Rio Grande do Norte – atual Escola Canadá –<br />

onde eu estudava. Lá havia aula de catecismo administrada por Dona Marina, uma<br />

senhora compreensiva, carinhosa, sempre atenta para qualquer dúvida. A aula de<br />

catecismo era alegre, clara e a professora muito tolerante: podíamos até “espirrar”...<br />

A missa da minha Segunda “Primeira Comunhão” foi celebrada num bonito altar<br />

erguido no centro do pátio da Escola. Estavam presentes autoridades, mestres,<br />

familiares. Convidaram-me para hastear a Bandeira, como sempre o fazia.<br />

Recebi Jesus pela segunda vez, através da hóstia sagrada... Foi lindo! Senti<br />

algo sublime... Por que teria sido diferente desta vez?<br />

Iguarias, refrescos, lembrancinhas e o Diploma completavam nossa alegria.<br />

Entretanto, uma coisa sempre me incomodou: Dona Marina nunca soube que aquela<br />

era Segunda vez que eu fazia a “Primeira Comunhão”.<br />

Mas, eu não tinha jeito mesmo: não é que ao sermos convidados para a<br />

Primeira Comunhão da escola Maria Rayth, na Rua Haddock Lobo, senti que poderia,<br />

uma vez mais repetir aqueles lindos momentos?<br />

Os alunos da 5ª série da Escola Rio Grande do Norte estudavam música lá, por<br />

causa do piano – inclusive eu. Indaguei que poderia fazer a Primeira Comunhão,<br />

mesmo sem ter estudado catecismo com eles. É claro, entretanto, tem que confessar<br />

aqui. Desta vez não falei com minha mãe, ela certamente não deixaria. Apanhei a<br />

roupa às escondidas – sempre pedindo perdão a Deus – e a levei para a casa de uma<br />

colega, que morava perto da minha escola. Chegando o dia, aprontei-me com a ajuda<br />

da mãe dela, que nada sabia. Toda arrumada, bonitinha, cheguei ansiosa ao topo da<br />

escada. Tropecei e rolei até a entrada. Todos correram assustados e eu, de assustada<br />

não tinha nada. Estava, sim, preocupada com minha roupa, que, aliás, nada sofreu.<br />

– E agora, vamos chamar os alunos da Primeira Comunhão.<br />

Lá estava eu!<br />

– Aplausos por favor! Lembrem-se que esta data é muito importante para eles,<br />

irão receber o Senhor (hóstia) pela primeira vez!<br />

– Perdão meu Deu, perdão.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

111


Rezava eu baixinho, mas em nenhum momento arrependida por estar<br />

recebendo a minha Terceira “Primeira Comunhão”.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Ventre-virado e quebranto.<br />

Saí da Avenida 28 de Setembro, onde morava com tia Áurea, para uma<br />

casinha humilde, nos fundos de um armazém, em Olaria, subúrbio da Leopoldina. Tive<br />

medo; eu era muito inexperiente e minha filha Rose Mary tinha apenas cinco meses.<br />

Meu marido viajava fazendo fretes para outros estados, ausentando-se por vários dias,<br />

seguidos. A casa era composta de quarto, sala, cozinha e banheiro. Não havia gás e eu<br />

cozinhava em fogão a querosene. Sempre que precisava sair para compras, enrolava<br />

minha filha numa manta e a levava comigo. Não a deixava só, em hipótese alguma.<br />

Ela passou a trocar o dia pela noite. De certa forma me aliviava, dando-me<br />

tempo de lavar, passar, arrumar... Mas à noite? Deus do Céu! Era uma tortura. Eu não<br />

conseguia dormir, pois ela só queria colo e mamar. Algumas vezes tentei deixar que<br />

chorasse, mas ela chegava a “dobrar o choro” como diziam.<br />

Um dia, minha senhoria, ao ver-me passar, disse-me:<br />

– Como você deixa essa criança chorar tanto? Ela está com “quebranto” e “mau<br />

olhado”, precisa mandar rezá-la.<br />

Fiquei sem saber o que dizer, uma vez que eu e minha família, nunca nos<br />

interessamos por essas coisas. Para não desgostá-la, perguntei o que deveria fazer.<br />

Amanhã, disse-me ela, virá um rezador para minha neta; pedirei a ele que cuide da<br />

sua menina. Esteja aqui as sete, bem cedo; caso precise comprar alguma coisa, pode<br />

deixar que o farei. Agradeci e, meio atônita, segui meu caminho.<br />

Dia seguinte, lá estava eu, tímida, tentando esconder minha ignorância a<br />

respeito. Precisava de um bom relacionamento com aquela senhora e sua gente, pois a<br />

cada dia, as ausências de meu marido eram maiores e minha solidão, sem tamanho.<br />

Um senhor distinto, educado me foi apresentando como sendo o rezador. Era<br />

completamente diferente do que eu imaginava. Sobre uma pequena mesa, estavam<br />

velas, copos com água, arruda... Estou tentando descrever, mas confesso que não me<br />

112


ecordo exatamente de tudo e talvez a causa tenha sido minha incredibilidade e<br />

ansiedade para que aquilo terminasse. Estavam presentes o rezador (chamava-se<br />

Eduardo), eu, a senhoria Dona Rosa e minha filha. Ele dirigiu-se a nós e disse-nos:<br />

– Este ato é apenas uma reza para espantar o mau. Não pensem que é<br />

macumba ou milagre! Sua filha está com “ventre-virado” e “quebranto” (segundo a<br />

superstição popular, mau olhado).<br />

Virou a menina de cabeça para baixo, mediu as perninhas dela, salpicou água<br />

de arruda, acendeu uma vela de sete dias, e, baixinho, ficou rezando durante algum<br />

tempo.<br />

– Este trabalho tem que ser repetido durante três dias. Disse-nos.<br />

– E agora? Pensava eu. – Quanto será que vai cobrar?<br />

Dona Rosa parecendo adivinhar meu pensamento, esclareceu.<br />

– Este homem é uma pessoa muito caridosa, atende a todos que recorrem a ele<br />

e não aceita nenhuma remuneração. Diz que a felicidade, que por acaso possa das às<br />

pessoas, é para ele a recompensa de Deus.<br />

Bem, por favor, acreditem: a partir do terceiro dia, minha filha passou a dormir<br />

todas a noites, tranqüilamente! Eu nem conseguia acreditar... Foi bom demais meu<br />

Deus! Até hoje, para mim é um mistério...<br />

A casa era pequena mas possuía um bom pedaço de terra. Meu pai vinha<br />

visitar-me de quinze e quinze dias e começou a incentivar-me a plantar, principalmente<br />

chuchu, bertalha e tomate que, como dizia ele, nasciam e desenvolviam-se<br />

rapidamente. O ideal seria termos um “caramanchão” (construção ligeira de ripas)<br />

mas, com essa impossibilidade, começamos a deixar o chuchu e a bertalha,<br />

desenvolverem-se em cima do muro, separados é claro .<br />

Plantamos tomates bem afastados. Eram frágeis. Papai dizia-me:<br />

– Para que nasçam de boa qualidade, o fator principal é a semente, que devia<br />

vir de tomates sadios. Elas devem ser colocadas para secar e, só então, jogadas <strong>sobre</strong><br />

a terra revolvida.<br />

Eu acompanhava dia a dia seu crescimento e, a cada tomate que aparecia,<br />

vibrava feliz! É muito gratificante e saudável comer o que plantamos, que assistimos<br />

crescer e frutificar, apenas com nossos cuidados, sem agrotóxicos, sem intermediários.<br />

Ah! Se pudesse ser sempre assim!<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

113


Comecei a fazer chuchu com camarão, com bacalhau, na salada, ensopado,<br />

passado no ovo e farinha de trigo e frito, bolinho de chuchu, ensopado com carne...<br />

Bertalha com óleo e alho, na sopa, apenas cozida em água e sal... Tomate na salada,<br />

nos molhos e até doce em calda (como havia aprendido com minha mãe.)<br />

Papai levava de tudo para casa e eu distribuía com vizinhos. Além disso, havia<br />

meu pequeno jardim do qual me orgulhava. Antúrios, orelha de burro, costela de Adão<br />

– esses, eu os colocava em vasos. Tinha apenas duas roseiras, uma vermelha e outra<br />

amarela. Não faltavam flores: as margaridas amarelas e brancas estavam sempre<br />

presentes, assim como onze horas, cravo, crista de galo... Na entrada, havia um pé de<br />

manacá, exalando sempre seu perfume agradável.<br />

A casinha humilde, pequenina, distante, me trouxe muitos momentos de<br />

alegria, de descobrimentos, gratidão e aceitação.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

114


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Vó! Traz pipocas?<br />

Este pedido alertou-me para escrever <strong>sobre</strong> o milho, que esteve sempre<br />

presente em minha vida. Foi em Irajá que papai resolveu plantá-lo. A terra encontrava-<br />

se improdutiva e, para tanto, tornou-se necessário ará-la. Sem ferramentas<br />

adequadas, apenas com uma pá e uma picareta, ia revolvendo e adubando-a. Eu<br />

deveria estar com cinco anos e gostava de acompanhá-lo nessa tarefa. Com uma<br />

pazinha de pedreiro, ia imitando, certa de que meu trabalho muito o ajudava. Acredito<br />

que foi a partir daí que passei a interessar-me por tudo que a terra nos oferece.<br />

Papai procurou semear grãos selecionados. Molhava a terra quando ficava<br />

algum tempo sem chover e eu o acompanhava, muito compenetrada, com meu<br />

regadorzinho. A gente precisava estar sempre vigiando e tratando por causa das<br />

pragas. Agrotóxicos não eram usados, acredito que sequer existiam.<br />

Certamente São João Batista, protetor da colheita do milho, olhava por nós.<br />

Papai percorria todo o milharal, eufórico e eu o acompanhava...<br />

Mamãe estava certa quando usava o cabelo do milho (barba de milho), fazendo<br />

chás para ajudar a eliminar pedra nos rins, tonificar a pele e cicatrizar espinhas.<br />

Papai gostava muito da espiga de milho verde assada no fogareiro de carvão,<br />

porém, eu e meus irmãos preferíamos a pamonha: enroladinha na palha de espiga. E<br />

também o cuscuz de fubá, cozido no vapor. O difícil era abrir mão do pudim.<br />

Mamãe ralava o milho – não tinha liquidificador – coava, adoçava e juntava<br />

duas gemas batidas. Levava ao fogo, misturando bem, sem parar, até engrossar.<br />

Untava com manteiga uma forma redonda com “buraco no meio” e jogava ali o pudim.<br />

Deixava esfriar. Algumas vezes colocava a forma dentro de uma bacia com água fria e<br />

ia renovando a água. É bom lembrar que não possuíamos geladeira. Quando ele já<br />

estava bem consistente, virava-o para uma travessa, fazia uma calda de açúcar<br />

queimado e jogava <strong>sobre</strong> aquela gostosura. Algumas vezes dava para confeitar com<br />

ameixas pretas.<br />

115


Hoje, temos milhos industrializados, em latas, porém naquele tempo, mamãe<br />

debulhava e juntava o milho a diversos molhos.<br />

portuguesa.<br />

Meus pais faziam “papa”, espécie de sopa, que diziam ser de origem<br />

Colocavam numa panela com água, pedaços de lombo e costela de porco,<br />

paios, tudo devidamente escaldado e levado ao fogo até estar cozido. Cortavam nabos<br />

em pedaços, juntando ao caldo, por pouco tempo, quando então adicionavam a nabiça<br />

(folha dos nabos em desenvolvimento) e o fubá dissolvido num pouco d’água para não<br />

embolar. Era necessário mexer sem parar. Ao colocarmos no prato, pingávamos azeite<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

português.<br />

Era tão gostoso que, normalmente, repetíamos. O fubá mais fino é conhecido<br />

no nordeste como fubá mimoso.<br />

Do fubá, faz-se também uma deliciosa farinha de biju.<br />

Basta molhar um pouquinho o fubá e peneirar numa taxa grande <strong>sobre</strong> uma<br />

fornalha de fogo brando. Dentro de minutos ficará torrado e é um suplemento<br />

delicioso.<br />

Em nossa casa o fubá era usado quase que diariamente; nos bolos simples,<br />

mingaus, angu à baiana, bolinhos, para fritar peixes, bolos com coco...<br />

Ah! Não posso esquecer que o milho é o principal alimento para aves, feito de<br />

qualquer forma.<br />

E o milho cozido? Nas festas juninas, no carnaval em algumas ruas muito<br />

movimentadas, encontramos pequenas barracas especializadas nesse comércio. Vocês<br />

já o comeram? Não? Vale a pena experimentar.<br />

Caminhando pelo trilho de antigos trens<br />

Brilha dourada a espiga de milho<br />

Saudades do meu bem<br />

No casarão, crianças alegres<br />

116


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Brincam e comem paçoca<br />

No fogão de lenha já distraída, eu lhes preparo a pipoca.<br />

FFFFFFFFiiiiiiiimmmmmmmm<br />

117


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Josepha Soares<br />

118


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Neste lar vive uma família feliz!<br />

De repente, a missão mais bonita que uma mulher pode ter na vida<br />

torna-se realidade: a maternidade.<br />

O pequeno ser, delicado e carente de tudo, é colocado em seus braços. Grande<br />

responsabilidade! Através do choro demonstra suas necessidades e outra grande<br />

missão feminina tem início: o aleitamento materno. Para a mãe, ter leite é uma<br />

riqueza!<br />

Começa, assim, a <strong>alimentação</strong> do bebê que, aconchegado ao peito da mamãe,<br />

às vezes inexperiente, não sabe a importância do alimento que jorra de seu seio e que<br />

vai proteger o pequeno ser de enfermidades.<br />

O dom do aleitamento cabe às fêmeas. Antigamente, as vizinhas e as comadres<br />

aconselhavam as mães, quando de suas visitas ao bebê ao levarem sapatinhos e talco<br />

Jonhson, a comer muita canjica e beber cerveja Malzibier para ter muito leite.<br />

Enquanto isso, a parturiente ficava de “resguardo”, tomando canja de galinha, se o<br />

bebê fosse do sexo masculino seriam quarenta dias e se feminino trinta dias.<br />

Passados mais alguns meses o bebê tem necessidade de outros tipos de<br />

alimentos. A primeira sopinha, as mamães nunca esquecem. Geralmente, o pimpolho<br />

se recusa a aceitar, transformando a mãe, muitas vezes, num rio de lágrimas e<br />

frustração pela recusa do alimento feito com carinho, onde batata, cenoura, abóbora e<br />

músculo estavam presentes. O pediatra é consultado e tranqüiliza a inexperiência<br />

materna. A criança, aos poucos, vai aceitando novos alimentos.<br />

Aconteceu comigo, com você e com todos: aceitar e rejeitar alguns alimentos.<br />

Entretanto, comer é uma das boas coisas da vida...<br />

São necessários para nossa <strong>saúde</strong> alimentos variados. Em cada refeição<br />

devemos ter um alimento de cada grupo, pois nenhum alimento isolado supre as<br />

necessidades do organismo.<br />

Minha mãe fazia uma sopa consistente, chamada “sopa de entulho”, levava:<br />

osso de tutano (hoje chamado de ossobuco), batata, feijão manteiga, cenoura,<br />

119


abóbora, couve e padre nosso (massa). Na época eu fazia “charminho” para comer;<br />

hoje tenho saudades de ambas: sopa e mamãe.<br />

Não tínhamos fogão à gás e a comida era feita num fogão a carvão que meu<br />

pai comprara na Loja Dako; tinha até forno. Na época, o carvoeiro chegava à nossa<br />

casa com um imenso saco de linhagem na cabeça; difícil era descobrir a cor do nosso<br />

“herói”, pois uma tremenda maquiagem de pó de carvão o encobria. Para acender o<br />

dito fogão, era empregada força até o carvão transformar-se em brasas; um abanador<br />

confeccionado em palha, comprado na quitanda de D. Castorina, era acionado, muitas<br />

vezes. Vencida pelo cansaço minha mãe pedia:<br />

– Zefinha, abana um pouquinho.<br />

Mas eu logo cansava e passava-lhe novamente o “troféu”.<br />

Meu pai vivia comprando outros tipos de fogões. Aliás era muito dedicado à<br />

família, ia à cidade e comprava roupas de cama na Casa Mathias e utensílios no “O<br />

Dragão”, “O Rei dos Barateiros”, “Queijo de Cuia”, na loja “O Grilo”, no centro da<br />

cidade. Certa vez comprou um fogão aquecido a querosene, achando maravilhoso.<br />

Alguns dias depois a tampinha do depósito do combustível pulou longe e densa fumaça<br />

tomou conta da cozinha e das panelas. Até achei graça na explosão, enquanto minha<br />

mãe avaliava o trabalho que teria para os alumínios brilharem novamente, ante a<br />

frustração de meu pai.<br />

Num belo dia ele chegou muito contente declarando:<br />

– Fui na Companhia do Gás e me inscrevi. Vamos ter gás em nossa casa.<br />

Adeus ao abanador, ao carvão e ao querosene. Na época não havia gás de<br />

botijão. Chegava à nossa casa esplendorosa o fogão Cosmopolita, branco como a paz<br />

que nos traria, de quatro bocas, que se tivessem dentes sorriria para aquela família<br />

feliz de cinco bocas.<br />

Minha mãe ficou muito orgulhosa a partir da nova aquisição e passou a<br />

caprichar mais ainda no preparo da comida que nos reunia em volta da mesa. O feijão<br />

preto, o fradinho, o manteiga, a ervilha, a lentilha, o grão de bico chegavam à nossa<br />

mesa com variações. A célebre feijoada, um dos pratos mais populares do Brasil, com<br />

carne seca, lombo, paio, toucinho, costela acompanhado de farofa e couve à mineira.<br />

Oh, delícia!<br />

Uma salada de feijão fradinho também era bem recebida em nossa casa e o<br />

guisado de feijão manteiga com bacalhau que minha mãe fazia era saboroso; a lentilha<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

120


até hoje é muito consumida na passagem de ano para garantir fartura durante o ano<br />

inteiro; o grão de bico também aguça o paladar.<br />

Minha mãe e outras donas de casa da época compravam no açougue banha de<br />

porco e a derretiam. A parte que tinha vestígio de couro do porco era transformada em<br />

torresmos. Mais tarde entrou em nossa casa a Gordura de Coco Carioca, acondicionada<br />

em latas com estampas de coqueiros. A famosa Banha Rosa. O azeite português não<br />

faltava em nossa mesa, regando a bacalhoada tradicional na Ceia de Natal,<br />

acompanhada pelo vinho português “Gatão”, dá pra notar qual a minha descendência.<br />

Mamãe também fazia bolinhos de bacalhau, com batata, salsa e azeitonas.<br />

Certa vez, quando os estava fritando, cheguei-me e perguntei:<br />

– Posso polvilhar açúcar?<br />

Distraída, talvez preocupada com os próximos afazeres, respondeu<br />

afirmativamente. Não pestanejei: enchi-os de açúcar e canela. Já pensou... Bolinho de<br />

bacalhau com açúcar e canela? Confundi com os bolinhos de fubá que ela fazia. Minha<br />

mãe quase teve um troço, mas transformou minha arte em piada familiar: daquelas<br />

que todas as mães gostam de contar <strong>sobre</strong> os filhos ao longo dos anos e os filhos<br />

adoram...<br />

O mais importante é que meu traseiro ficou a salvo de umas palmadas. Aliás,<br />

ela nunca me bateu, nem meu pai.<br />

Já que comecei, tenho que completar, de vez em quando era entoado um coro:<br />

– Mamãe faz bolinhos de fubá?<br />

Embora não estando muito interessada, lá ia mamãe para a cozinha e<br />

misturava o fubá, farinha de trigo, ovo, leite, açúcar e fermento e fritava às<br />

colheradas; então, eram colocados açúcar e canela por cima. Doces frituras,<br />

apropriadas para reter os pequenos dentro de casa nos dias chuvosos. Era<br />

aconchegante o lanche da família em volta da mesa, onde um bule de café quente,<br />

geralmente das marcas “Cruzeiro Extra” e “Globo” – que havia sido coado por coador<br />

de flanela suspenso por um “apetrecho” de madeira – deixava exalar aquele cheirinho<br />

gostoso. O bule era de ágata azul com margaridas estampadas em relevo. As canecas<br />

eram semelhantes, variando somente as cores, para cada um identificar a sua.<br />

Estávamos, assim, consumindo o fubá, alimento muito usado e que se presta a muitos<br />

pratos. Mamãe também fazia em dias frios as papas, semelhantes a uma sopa, porém<br />

mais para a consistência de angu, regadas a azeite. Mingau de fubá com canela em<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

121


cima também era usado em nossa casa. Até hoje sou fã dos pratos feitos com os<br />

derivados do milho que têm sido a salvação da lavoura em lares carentes.<br />

Salve o nosso milho! Não foi à toa que Monteiro Lobato deu vida através de<br />

suas histórias ao Visconde de Sabugosa: simpática espiga de milho. O cabelo do milho<br />

também é muito usado nos distúrbios das nossas vias urinárias. Mas vamos lá, nosso<br />

caso é culinária. Estou escutando um alto-falante:<br />

– Olha a pamonha. Quem quer pamonha?<br />

E o carro vai circulando pelas ruas, despertando o apetite. E a carrocinha de<br />

pipocas? Quem resiste? Doce ou salgada é deliciosa. Outra delícia que minha mãe fazia<br />

era o bolinho de aipim. Em nossa mesa também estava presente a farinha de<br />

mandioca que chamávamos farinha de mesa, principal ingrediente da deliciosa farofa.<br />

Os portugueses introduziram temperos na cozinha brasileira. Lembro de como<br />

minha mãe ficava frustrada quando salgava demais um alimento. Na época, o sal, que<br />

geralmente era o Ita e o Águia, vinha embalado em saquinhos de pano fininho. Certa<br />

vez ela comentou com uma vizinha:<br />

– Não sei mais o que fazer para a Zefinha, está tão magrinha e sem apetite.<br />

A vizinha, com experiência no raquitismo filial, receitou:<br />

– Vitamina com cenoura, laranja e tomate.<br />

Na época não havia liqüidificador e logo depois, vi minha mãe ralando cenoura<br />

e tomate no ralador de alumínio e espremer laranja num espremedor de vidro. Pegou<br />

um dos saquinhos de sal, previamente lavado, colocou nele os ingredientes e toca de<br />

espremer até sair aquele líquido que mal encheu um copo, fruto de seu sacrifício,<br />

colocou açúcar e chamou:<br />

– Zefinha, vem tomar vitamina pra você ficar forte.<br />

Eu olhei com desdém, mas não houve jeito de despojar-me daquele invento;<br />

seus olhos estavam atentos até a última gota. Nos dias seguintes, lá chegava a hora<br />

da vitamina, oh! martírio. Para ela também não só havia o trabalho na elaboração<br />

como a súplica que tinha que fazer para eu aceitar. Minha mãe merecia uma estátua.<br />

Ela também fazia lencinhos com os saquinhos de sal.<br />

Mas do que eu gostava mesmo era de furtar açúcar do açucareiro. Era um doce<br />

delito. Atualmente o açúcar tem fama de vilão. Oriundo da cana de açúcar, enriqueceu<br />

muitos senhores de engenho: Engenho Novo, Engenho da Rainha, Engenho de Dentro,<br />

levando o progresso e criando bairros. Nas casas grandes, o açúcar era sinal de<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

122


opulência. As mães negras, além de amas de leite, transformavam a doçura branca<br />

nos mais variados quitutes, numa mistura de receitas portuguesas, africanas e mouras.<br />

Assim, foram possíveis a goiabada, doce de banana, de abóbora, a cocada, além de<br />

bolos das mais variadas misturas. Os nomes bizarros dos doces vêm de época remota:<br />

bolinhos do amor, beijos de freira, papos de anjo, barrigas de freiras, baba de moça,<br />

espera marido, etc. Até hoje estes nomes são mantidos. A rapadura, a cachaça e o pé<br />

de moleque eram consumidos pelos escravos para completar a refeição pobre.<br />

disse:<br />

Certa vez nossa vizinha, Dona Glória, chamou-nos no portão de nossa casa e<br />

– Fiz um bolo!<br />

Enquanto nos dava fatias para teste, todos batíamos palmas pelo grande feito.<br />

Dona Glória falou:<br />

– Dona Isabel, compra uma forma americana.<br />

Forma de alumínio com buraco no meio. Dias depois o bolo entrou em nossa<br />

vida, não precisávamos mais mandar assá-lo na padaria.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Resolvi escrever <strong>sobre</strong> o pão neste dia: 13 de junho. Não poderia escolher<br />

melhor data, pois é dedicada a Santo Antônio, protetor dos pobres. No meu bairro há<br />

inúmeras padarias, cada qual apresentando as mais diversas iguarias, entretanto, para<br />

mim, não há alimento mais gostoso do que um pão quentinho, seja doce ou salgado.<br />

As padarias e seu precioso produto até me inspiraram a fazer versos. Quando criança<br />

as padarias ficavam longe de nossa casa. Meu irmão ia a mais próxima manuseando<br />

um arame e um arco deslizando pelas ruas até chegar ao estabelecimento. A bisnaga,<br />

como era chamada, era vendida a peso; sempre vinha o contrapeso, um pedaço de<br />

pão que completava a compra – na volta, ele consumia o contrapeso; trazia também<br />

as revistinhas da época: Gibi Mensal, Mirim e Tico Tico. Em nossa casa, o pão era<br />

venerado pois, além de alimento, ele significa o corpo de Cristo. Em nossa sala de<br />

jantar havia a tradicional Ceia de Cristo, onde o pão e o vinho estavam estampados.<br />

Mamãe nos ensinava que, quando não quiséssemos o pão, antes de nos desfazermos<br />

dele, teríamos que beijá-lo. Até hoje não posso ver pão ser desperdiçado. Havia um<br />

ditado que dizia:<br />

123


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Onde não há pão todos brigam e ninguém tem razão.<br />

Quando uma pessoa era de má índole, costumava-se dizer:<br />

E pensar que o padeiro levanta-se de madrugada<br />

para fazer pão para essa gente...<br />

Quando as pessoas queriam comprar imóveis, geralmente procuravam saber se<br />

havia padaria nas proximidades e também as padarias anunciavam quando alguma<br />

casa estava à venda. Havia uma música carnavalesca que ressaltava a mulher do<br />

padeiro. Mais tarde o padeiro veio oferecer seus préstimos em nossa casa, pela manhã<br />

colocava o pão em nossa porta enrolado num papel que tinha o nome de “papel de<br />

pão” e que servia para fazerem os deveres escolares, pois não havia essa fartura de<br />

blocos como acontece hoje. À tarde, o padeiro trazia o pão numa cesta de vime onde o<br />

pão doce com açúcar cristalizado por cima era uma tentação. Eu gostava muito de pão<br />

com açúcar e manteiga; manteiga mesmo, não havia a margarina. Minha mãe colocava<br />

as sobras do pão numa sacola de pano com bordados em ponto de haste.<br />

Na parede, em cima de nosso fogão, mamãe colocava um pano bordado e num<br />

deles havia a inscrição: “Neste lar vive uma família feliz”. Era verdade. Éramos cinco<br />

corações entrelaçados, tocando a vida pra frente, com dificuldades, mas com muito<br />

amor. O pão nosso de cada dia não nos faltava, nem o aconchego de família. O quadro<br />

do Sagrado Coração de Jesus, sempre presente em nossa casa, até hoje; não importa<br />

que digam que é démodé, Ele está entre nós.<br />

Voltemos à data de hoje: as igrejas costumam distribuir pães bentos ao final<br />

das missas, em louvor a Santo Antônio. Nesse, dia esses pães são doados pelas<br />

padarias das proximidades. Um Santo Antônio, numa redoma, trazido de Portugal,<br />

sempre nos acompanha.<br />

* * *<br />

124


Uma lembrança muito presente em minha memória era das prateleiras da<br />

cozinha feitas por meu pai, mamãe fazia recortes em bicos em papéis de embrulho<br />

coloridos. Nessas prateleiras eram colocadas as latas de mantimentos; eram de lata<br />

mesmo e estampavam o nome dos produtos estocados: feijão, arroz, açúcar, café.<br />

Papai fazia bancos com caixotes, lhes dava forma e os pintava. O meu banco era o<br />

mais alto, pois eu era a menor da família; ele até me chamava de “pequena”.<br />

Nossas compras de armazém eram feitas nos Armazéns São Domingos Ltda. e<br />

enquanto meu pai encomendava os gêneros, eu aproveitava sua distração para furtar<br />

lascas de bacalhau e comia com todo aquele sal. Também gostava de manusear o<br />

arroz e o feijão que ficavam expostos em sacos nas portas dos empórios e os<br />

fregueses compravam a quantidade que precisavam; eram medidos numas canecas<br />

cônicas e pesados em balanças que já tinham os pesos de diversos tamanhos. Ao<br />

mesmo tempo em que o caixeiro pesava o produto envolto em saco de papel pardo o<br />

fechava num remelexo de habilidade, tal a prática que tinha em servir.<br />

A caixa registradora era grande e emitia um som estridente, obedecendo a uma<br />

manivela acionada, geralmente, pelo dono do empório. O troco era feito de cabeça,<br />

como se dizia, nem se sonhava com máquina eletrônica e muito menos com<br />

calculadora.<br />

Geralmente, nas casas havia despensas, onde eram colocadas as mantas de<br />

carne seca, o lombo, o toucinho, o bacalhau, as réstias de cebolas e outros<br />

mantimentos. Em nossa casa havia o guarda-comida, armário com prateleiras, cuja<br />

porta era de tela bem fininha que arejava o móvel e não deixava que os insetos o<br />

invadissem. Nele guardávamos as sobras do almoço, não tínhamos geladeira e nem<br />

pensávamos nisso. Quem as tinha, era através de importação, aumentando seu custo<br />

e a distância para nossas posses.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Meus tios moravam na Rua São Francisco Xavier, 358 e aos domingos eu e<br />

minha irmã íamos visitá-los. Aliás, nasci na casa deles, na Rua Luiz Pinto, atualmente<br />

terrenos do Metrô, no centro da cidade. Vim ao mundo pelas mãos de uma parteira,<br />

que trabalhava na casa deles há muitos anos; seu nome era Glória. Realmente, foi<br />

125


uma glória eu vir ao mundo e ter a oportunidade de conhecer a magnitude que Deus<br />

me oferece a cada momento de minha vida.<br />

Voltemos à Rua São Francisco Xavier, era uma casa grande, com varanda em<br />

volta, tinha até porão. Inesquecíveis os prendedores de janelas em ferro e em forma<br />

de bonecos. Ficava admirada porque eles tinham “banheiro completo”, como era<br />

chamado o banheiro social; nesse banheiro, eu admirava o sabonete-bola pendurado<br />

na direção do lavatório. Meus olhos curiosos e ingênuos corriam a casa toda, cujos<br />

móveis eram antigos, entretanto o lugar mais almejado era a sala de jantar com mesa<br />

redonda e cadeiras de palhinha. A mesa era coberta por diversas toalhas para<br />

conservar o verniz; o material plástico não chegara até nós. Em cima da última toalha,<br />

geralmente bordada ou de xadrez, era servido o café, com uma infinidade de<br />

porcelanas e talheres e o ponto alto era a lata de biscoitos Aymoré; aquela que tinha<br />

estampada um índio – não era o “Uga-uga” i . A minha gula é que era imensa;<br />

entretanto, minha mãe a havia refreado antes de sair de casa:<br />

– Zefinha, não vai comer muito biscoito na casa de seus tios. Come pão antes.<br />

Biscoito é coisa cara.<br />

Na ocasião eles eram comercializados em latas; não havia a varejo nem em<br />

pacotes como temos atualmente: essa variedade incalculável das mais diversas<br />

marcas. Ganhar uma lata de biscoitos era sinal de opulência ou doença quando alguém<br />

a levava ao visitar um enfermo. Não esqueço de como eu gostava de adoecer para<br />

ganhar bolachinhas de água e sal compradas na padaria; eu as molhava no chá até<br />

ficarem infladas e explodirem na boca deliciando meu paladar.<br />

Na casa dos meus tios havia geladeira de colocar gelo e um telefone, de cor<br />

preta, da Companhia Telephônica Brasileira (CTB). Eu ficava fascinada ao chegar em<br />

casa; junto com meu irmão Agostinho, brincávamos de telefone com duas caixas de<br />

fósforos, dois palitos de fósforos e um carretel de linha que furtivamente apanháramos<br />

na cesta de costura de nossa mãe; esticávamos o fio e um se instalava na frente da<br />

casa e outro nos fundos e naquele “alô”, que saia dos meus lábios eu mentalizava o<br />

telefone preto que tanto me seduzira durante a visita.<br />

A casa deles ficava perto da Hípica e era lá que eu encontrava minhas primas;<br />

com a mais nova, Miriam, passeávamos pelo quarteirão, quando ainda não existia o<br />

Estádio Municipal do Maracanã. Quando se falou em sua construção, parecia um<br />

sonho. Entretanto, no dia 16 de junho de 1950, o sonho tornou-se realidade. Quando<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

126


eu já estava no ginásio, tive a honra de assistir à sua inauguração. Foi muito lindo e<br />

mais ainda a revoada de pombos em toda sua extensão. Assim, o templo do esporte<br />

completou cinqüenta anos nos quinhentos anos do Brasil, no ano 2000.<br />

Depois de uma visita à casa de meus tios, retornávamos no bonde Piedade nº<br />

77, apelidado de dois machados. A casa simples e acolhedora nos aguardava. Muitas<br />

vezes trazíamos embrulhos de roupas – Graças a Deus, as primas, para nossa alegria,<br />

tinham feito o favor de crescer e nós éramos suas herdeiras. Desfilávamos, então,<br />

pomposas, com vestidos bordados em casa de abelha, ponto paris e agasalhos feitos<br />

de tricô. Não havia banlon, moleton, acrílico, etc.<br />

Minha mãe cerzia as meias de meu pai e de meu irmão que eram de fio de<br />

escócia. Ela tinha um ovo de madeira e o colocava dentro da meia, no lugar em que a<br />

mesma apresentasse furo, esticava bem e ia cerzindo. Ela também fazia roupas para<br />

minhas bonecas em crochê. Cantava muito para mim. Recitava também muitos<br />

versinhos, dentre os quais me lembro destes:<br />

versos:<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Mandei fazer um relógio<br />

da casca de um caranguejo<br />

para contar os minutos<br />

das horas que não te vejo.<br />

Pinheiro dá-me uma pinha<br />

Pinheiro dá um pinhão<br />

Menina dá-me teus olhos<br />

que dou-te o meu coração.<br />

Eu era muito biqueira para comer, era o termo que ela usava e falava estes<br />

Menina levada, você quer salada?<br />

Não mamãezinha, está muito salgada.<br />

Menina levada, você quer pudim?<br />

Não mamãezinha, está muito ruim.<br />

Menina levada, você não quer nada,<br />

127


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

menina levada, pois tome palmada...<br />

Inesquecíveis eram os cavalinhos de chocolate que meu pai, de vez em quando,<br />

trazia. Eu os comia bem devagar para que durassem muito, eram umas delícias.<br />

Quando eu ia à feira com meu pai levava uma bolsinha de lona, onde só cabia a ilusão<br />

de o estar ajudando. Ele parava na barraca da melancia e meus olhos brilhavam na<br />

expectativa pelo prêmio da “grande ajuda” que lhe dera. Ele então, comprava uma<br />

fatia generosa que passava às minhas mãos. A cada dentada gulosa escorria pelos<br />

meus braços aquela doce seiva que deliciava o meu paladar. Voltava para casa um<br />

tanto melada, mais feliz da vida, por desfrutar a companhia de papai e pela fruta<br />

gostosa. Até hoje, tudo que é doce me atrai, acho que devemos procurar doçura nas<br />

coisas da vida para torná-la agradável.<br />

Minha mãe teve um trabalhão por causa do açúcar ser o meu eleito. Tomava<br />

Licor de Cacau Xavier, Erva de Santa Maria (também chamada de mastruço) e a<br />

terrível Limonada Purgativa. Tapava-me o nariz, dava-me a dita cuja e era só correr<br />

para o lugar apropriado onde meus “invasores” seriam depositados. Não faltavam os<br />

tônicos para me abrirem o apetite, como ela os denominava: Biotônico Fontoura,<br />

Emulsão de Scott, Vinho Reconstituinte Silva Araújo, Pílulas do Dr. Mckoy, Vinol e<br />

muitos outros.<br />

Mas eu gostava era do xarope Grindelia de Oliveira Junior, era muito doce.<br />

Também havia o Phimatosan. De vez em quando eu estava resfriada e mamãe não<br />

conversava, fazia chá de cambará, guaco, folhas de laranjeira e outras especiarias que<br />

tínhamos no quintal. Comprava na padaria os célebres Rebuçados de Lisboa, balas que<br />

tinham em sua composição: guaco e mel. Eram deliciosas. Embrulhados em papel<br />

branco com letras roxas. Ficavam acondicionadas nos baleiros, espécie de compoteira<br />

de vidro com tampa de metal. As pessoas pediam de acordo com o dinheiro disponível:<br />

10 tostões de balas, etc.<br />

Meus irmãos iam ao Dispensário do Méier, hoje Hospital Salgado Filho, apanhar<br />

óleo de fígado de bacalhau, que era distribuído às crianças e na volta entravam no<br />

parque e comiam mata-fome ou quebra queixo, doces vendidos por ambulantes.<br />

Lembro das caixas de madeira onde era acondicionada a goiabada, da marca Colombo<br />

128


ou Peixe, que meu pai comprava. Ficava meio intrigada com os nomes. Será que a<br />

primeira foi descoberta a exemplo da América? Será que a segunda é feita de peixe?<br />

Mas logo era tranqüilizada ao saber que eram apenas marcas de fabricação. A<br />

marmelada já era acondicionada em lata com desenhos da cor verde. Levei muito pão<br />

recheado com um desses doces para a minha merenda escolar, envolto em<br />

guardanapo de pano. Sinto saudades da mistura de sabores: pão, doce e guardanapo.<br />

Na época não apreciava muito, mas era o que se apresentava na hora do recreio.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Aliás, inesquecível minha entrada para a Escola 9-9 Hercílio Luz, cuja diretora<br />

era Dona Ariadne. Minha primeira professora foi Dona Risoleta e a seguinte Dona<br />

Juracy que me acompanhou até o final do curso primário. Inesquecível o caderno “De<br />

Março a Dezembro” que estampava na capa crianças se dirigindo à escola e na contra<br />

capa as letras dos Hinos Nacional e o da Bandeira. O livro era o Clube dos Sete Amigos<br />

e uma das personagens era “D. Suavidade” – e D. Juracy passou a chamar-me por<br />

esse apelido.<br />

Um dia feliz para os alunos acontecia quando D. Felicidade batia à porta da sala<br />

de aula e entrava. Todos se levantavam, pois no dia anterior nossa professora havia<br />

advertido para que estivéssemos com o uniforme impecável, cadernos encapados e<br />

limpos. D. Felicidade era a supervisora da rede escolar, uma senhora de idade<br />

avançada, de estrutura baixa e gordinha, mas de semblante, embora austero,<br />

agradável. Usava chapéu enterrado na cabeça com um passarinho. Nossa professora<br />

ressaltava as qualidades dos melhores alunos. Depois de alguns minutos D. Felicidade<br />

se retirava, prometendo voltar no mês seguinte. Aguardávamos, então o próximo mês;<br />

suas visitas eram uma felicidade para nós, pois passávamos momentos sem os<br />

exercícios extenuantes.<br />

Lembro que, num concurso de redação, ganhei uma réplica de sala de jantar de<br />

madeira que muito me encantou: era uma mesinha e quatro cadeiras pintadas de azul<br />

com decalcomanias estampadas. A propósito, quem se lembra dos cromos e<br />

decalcomanias? Meus cadernos eram repletos.<br />

Lembro que quando o prefeito do então Distrito Federal, Henrique Dodswort,<br />

foi visitar nossa escola, eu e meu colega José Ney apresentamos uma peça, que foi<br />

129


muito aplaudida; eu me admiro de como eu gostava dessas apresentações e hoje sou<br />

tão tímida. Ganhei uma casa toda bem montada em papelão duro que muito me<br />

encantou e o abraço do prefeito e de sua esposa.<br />

As recordações de nossa primeira escola permanecem para sempre na<br />

memória. Os célebres cadernos de versos que trocávamos para que dedicatórias<br />

marcassem o tempo feliz que estávamos vivenciando. Hoje verifico, com saudades,<br />

que o que neles estava escrito, traduz fielmente a realidade. Hoje, ao abri-los em suas<br />

páginas amarelecidas, os nossos cabelos brancos, ao ler aquelas palavras jogadas ao<br />

sabor do tempo, fico emocionada e me pergunto:<br />

– Onde estarão os colegas de outrora?<br />

Inesquecível foi a dedicatória de D. Juracy, minha professora:<br />

E você querida Josepha, há de ser uma estrela rediviva que brilhará sempre para<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

aqueles que lhe dedicam uma sincera amizade.<br />

* * *<br />

Sua mestra e amiga<br />

Juracy Lessa – 8/11/46.<br />

Na escola também havia a catequese. Uma professora de religião vinda da<br />

Igreja dos Sete Santos Fundadores, atual Paróquia do Sagrado Coração de Jesus,<br />

apresentou-se na sala de aula a fim de preparar aqueles alunos que quisessem para a<br />

primeira eucaristia. Muito convicta, logo me apresentei e através do primeiro catecismo<br />

de Doutrina Cristã aprendi as sagradas orações e outros preceitos ligados à religião.<br />

Todos os domingos tínhamos que assistir à missa; assistir sim, pois eu nada entendia<br />

pois era em latim, onde o Dominus Vobiscum era muitas vezes repetido. O sacerdote<br />

ficava de costas para os fiéis.<br />

Mesmo sem entender, eu gostava de ver as pessoas na missa, muito bem<br />

vestidas. Sim, bem vestidas, pois os trajes sumários de hoje não eram aceitos:<br />

bustiers, calças compridas, bermudas, bermudinhas e bermudões, nem existiam. As<br />

moças usavam na cabeça véu branco e as senhoras, véu negro; ninguém do sexo<br />

feminino exibia a cabeça descoberta, enquanto nenhum homem cobria a cabeça,<br />

tinham que tirar o chapéu e também o faziam ao passar por uma igreja. Atualmente as<br />

130


missas são celebradas com maior participação dos fiéis na língua-pátria, os sacerdotes<br />

já não são tão austeros; dentro do respeito, se comunicam com os fiéis. As músicas<br />

embora mostrando a religiosidade, são mais alegres; todos participam tornando os<br />

atos de fé alegres e descontraídos.<br />

Voltemos à catequese: depois de alguns meses eu já sabia o que o Catecismo<br />

ensinava e foi marcado o grande dia da minha primeira comunhão. Vieram os<br />

preparativos: o tecido para o vestido, minha madrinha fez questão de dar; também o<br />

livrinho de missa e o terço, comprados na Casa Cruz que tem mais de um século.<br />

Havia no centro da cidade casas especializadas em artigos religiosos, a Casa Cruz, a<br />

Casa Sucena... Entretanto, um contra-tempo: a fazenda era pouca e não quisemos<br />

molestar minha madrinha. Pobre de nossa costureira, Dona Antônia: estica daqui,<br />

estica dali e inventou de colocar uns entremeios de renda para o vestido render, isto é<br />

arrematar. Depois de muita mão de obra, ficou pronto e bonito. A costureira também<br />

armou o véu com a grinalda. Os sapatos de camurça branca foram dados por minha<br />

irmã, que já trabalhava.<br />

Chegou o grande dia: jejum absoluto desde a meia-noite. Muitas<br />

recomendações: não pode engolir saliva, não pode trincar a hóstia e contavam fatos<br />

escabrosos, decorrentes dessas desobediências. Lembro que eu ia nervosamente pela<br />

rua cuspindo, fraca pelo jejum e temerosa, já pensando em escancarar a boca para a<br />

hóstia consagrada entrar sem que eu a maculasse; ia decorando as músicas, uma<br />

delas inesquecível:<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Queremos Deus, homens ingratos...<br />

As orações aprendidas na catequese povoavam meu pensamento. E não podia<br />

ter maus pensamentos, más palavras, nem más ações, pois as tinha deixado<br />

inteirinhas no dia anterior através dos furinhos do confessionário. Eu me sentia leve,<br />

pura e feliz, pois ia ao encontro de Jesus. Sentia-me até um pouco noiva naquele dia 5<br />

de novembro de 1945. Nós, os catequizados, nos encontramos na escola e, em fila,<br />

fomos à igreja. Os lírios em minhas mãos se tornavam líricos, como se traduzissem a<br />

pureza dos anjos naquele grande dia. Tudo deu certo, após a cerimônia os<br />

cumprimentos de parentes e amigos e o que mais almejávamos a partir dali<br />

aconteceu: um lanche na escola nos aguardava. Uma mesa com linda toalha branca e<br />

131


canecas de louça branca estavam enfileiradas esperando que nossas boquinhas, cheias<br />

de pureza, sorvessem um chocolate quente como o amor que tínhamos declarado a<br />

Jesus. Foi o chocolate mais gostoso que já tomei, compartilhado com meus colegas e<br />

acompanhado de biscoito e bolo. Para não faltar nada, a diretora deu a todos os<br />

alunos um marcador de livros em cartolina prateada, tendo um santinho circundado<br />

por purpurina onde estava escrito:<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Jesus, inflamai meu coração de amor por vós!<br />

No verso havia o nome da escola. Dali, fui ao Foto Quesada tirar minha<br />

fotografia para a posteridade.<br />

Em casa, um lauto almoço nos aguardava: carne assada, macarrão, salada feita<br />

por minha mãe e pastéis que meu pai fazia como ninguém.<br />

Após a mistura habitual,<br />

esticava a massa com o rolo de pastel de madeira,<br />

cortava com a carretilha<br />

e os recheava com carne assada moída, azeitonas, salsa e ovo cozido.<br />

Fritava-os.<br />

Ficavam imensos com bolhas crocantes que enchiam nossa boca e aguçavam o<br />

paladar. Sobremesa: salada de frutas e arroz doce. Foi um dia muito doce em minha<br />

vida.<br />

* * *<br />

Outra recordação muito presente é a época natalina, onde o cheirinho gostoso<br />

das rabanadas ou do bacalhau cozinhando em panelas imensas, como imensa é a<br />

emoção dessa data ao recordar de minha mãe fritando os bolinhos ou de meu pai<br />

fazendo arroz doce com cobertura de chocolate; da presença de meu irmão Agostinho,<br />

de minha irmã Conceição em volta da mesa e eu, caçula, esperando meu presente de<br />

Papai Noel. Éramos cinco num só coração!<br />

132


Só depois que eu dormisse conseguiria o almejado presente que o “bom<br />

velhinho” traria. Lembro que eu preparava um prato bem generoso com iguarias<br />

natalinas para subornar o Papai Noel. Geralmente colocava uma camisola bonita e ia<br />

dormir, o sapatinho colocado na janela. Jamais esquecerei de um embrulho coberto de<br />

castanhas que Papai Noel em retribuição ao meu agrado tinha deixado para mim. Era<br />

uma boneca de pano com pernas compridas e um chapéu de abas escondia a calvície,<br />

pois os cabelos só existiam em volta do rosto. Quando a vi fiquei encantada:<br />

– Mirandolina, era você mesmo que eu queria!<br />

E abracei-a e beijei-a muito. Mirandolina passou a ocupar um lugarzinho na<br />

minha caminha e no meu coração.<br />

Antes de Mirandolina eu tivera outras bonecas de celulóide – um material<br />

japonês – que eram ocas e amassavam com facilidade. Quando isso acontecia<br />

tínhamos que colocá-las em água fervendo para voltarem ao normal; era uma<br />

desilusão... No melhor da brincadeira acontecer esse traumatismo... Geralmente, essas<br />

bonecas eram dadas por minha madrinha; elas vinham com selos e estampilhas nas<br />

costas, pois eram importadas. Havia também as de louça e de pano como Mirandolina.<br />

Certa vez, fui comprar carne no açougue do Sr. Joaquim acompanhada de Alice, minha<br />

bonequinha. Entretanto, o embrulho vazou sangue da carne – na época a carne era<br />

envolta num pequeno papel branco e em jornal; o rosto de Alice foi atingido e foi uma<br />

choradeira tremenda; quando cheguei em casa, mamãe tentou limpar mas a mancha<br />

não saiu e a solução foi passar rouge Royal Briar para disfarçar. O Natal é um misto de<br />

alegria, saudade, beleza. É o dia em que amamos ao próximo indiscriminadamente, o<br />

que deveria ser realizado diariamente. O Feliz Natal, nesse dia, realmente é transmitido<br />

pelo coração.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Na infância, lembro que minha mãe fazia tripa com batatas e paio, hoje a tripa<br />

é denominada de dobradinha. Também fazia coração de boi ensopado, que eu<br />

repudiava. Eu gostava de fígado com batatas acebolado, era muito gostoso.<br />

Comprávamos no tripeiro que ia passando pela rua puxando um burrinho.<br />

Na época era comum um ditado:<br />

133


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Quem tem burro e anda a pé, mais burro é.<br />

Seguia o tripeiro e seu burrinho com uma caixa de cada lado onde os chamados<br />

miúdos estavam acondicionados; trazia também uma balança para pesar o produto.<br />

Gostava de apreciar o vendedor, um senhor português; mas, o que mais me prendia a<br />

atenção era um dente de ouro que ele exibia ao sorrir, quando agradecia a compra aos<br />

fregueses. Para mim era como se fosse um porta jóias falante. Achava que ele devia<br />

ser muito rico pelo brilho daquele dente e também tinha vontade de possuir um<br />

semelhante.<br />

Como o açúcar era meu doce companheiro, não tardou para que precisasse de<br />

cuidados odontológicos. Pobres dos dentistas que me atenderam. Na época o motor<br />

mais parecia uma britadeira e para mim aquela cadeira móvel era como se subisse<br />

rumo ao martírio, uma verdadeira cadeira elétrica. Berrava e distribuía chutes que meu<br />

pai, envergonhado com o vexame, procurava contornar me repreendendo, mas<br />

prometendo alguma coisa, caso eu me acalmasse, na saída do consultório.<br />

O dentista, ao mesmo tempo em que abria minha boca, procurava esquivar-se<br />

para se livrar dos pontapés, dizendo:<br />

– Criança é assim mesmo...<br />

Mas seus pensamentos... Talvez fossem os piores possíveis. Quando eu já sabia<br />

rezar, nas idas ao dentista eu prometia ave-marias para o dentista não aparecer. Após<br />

alguns dentistas fui atendida por um casal que me dominou: prometeu-me um dente<br />

de ouro igual àquele do tripeiro que conseguira fazer morada em meu pensamento.<br />

Passei a ficar quietinha. A promessa nunca se concretizou... Graças a Deus!<br />

Atualmente, minha boca é um tanto metálica e um dente amarelou, ocasionado,<br />

talvez, por um dentista não muito confiável. O meu sorriso não é de alívio, mas<br />

amarelo; esteticamente, é horrível; mas enquanto não incomodar na função da<br />

mastigação, fará parte do meu frontispício... Até quando Deus quiser.<br />

Na nossa rua passava o peixeiro, italiano, com dois cestos presos numa<br />

madeira roliça que levava às costas. Ele gritava:<br />

– Olha o peixeiro!<br />

As donas de casa corriam de prato na mão. A freguesa escolhia, ele pesava,<br />

escamava os peixes, cortava em postas e os gatos não se faziam esperar, rodeando o<br />

vendedor numa alegre e esperançosa sinfonia felina. O peixe frito que mamãe fazia era<br />

134


divino. As sardinhas também eram bem recebidas em nossa mesa. Quando sobravam,<br />

mamãe fazia escabeche: era um molho de tomate e cebola, onde os peixes eram<br />

afogados e o nosso nariz pescava ao longe aquele cheiro delicioso. Era muito<br />

saboroso.<br />

O sorveteiro, que as crianças ouviam ao longe, tinha alegre recepção. Não sei<br />

como numa caixa de madeira, transportada em sua cabeça, conseguia conservar os<br />

picolés. Ele bradava:<br />

– Olha o picolé de uva, coco, maracujá. Venha comprar, vou embora, venha já.<br />

Eram de gelo puro colorido, mas eram os únicos na época. Quando surgiram as<br />

carrocinhas Kibon, foi uma gélida novidade. Lembro que, certa vez, desci as escadas<br />

da vila – sim, porque eu morava numa vila, onde o acesso à nossa casa era de cem<br />

degraus – escorreguei e fui deslizando de costas. Parecia que estava nos Alpes rumo<br />

ao doce gelo. Fiquei toda ralada, mas não desisti. De posse de meu picolé, ao chegar<br />

em casa, desatei a chorar, ao mesmo tempo em que o saboreava, mostrando meu<br />

infortúnio.<br />

Minha mãe falou:<br />

– Zefinha, porque correu? Devia ter voltado!<br />

Numa choradeira imensa respondi:<br />

– Eu ia ficar sem meu picolé?<br />

Em 1948 entrei para a Escola Bento Ribeiro. Funcionava em horário integral,<br />

das 7 às 17 horas. Almoçávamos lá e eu, que era difícil para me alimentar, tive que<br />

comer a comida feita em panelões. Pasmem! Postas de bacalhau eram expostas em<br />

travessas com a maior naturalidade; ainda não era considerado alimento de elite. A<br />

carne seca com abóbora também lotava as panelas ferventes em fogões imensos. As<br />

turmas entravam, uma de cada vez, enfileiradas no refeitório. As merendeiras enchiam<br />

os pratos, que previamente havíamos colocado no bandejão, e rumávamos para as<br />

mesas redondas com toalhas de matéria plástica. Para ser franca, eu quase não<br />

conseguia comer. Não era de se admirar: eu era bem enjoadinha. A maior parte das<br />

colegas se deliciava. A <strong>sobre</strong>mesa, geralmente, era banana ou queijo com goiabada. À<br />

tarde, ganhávamos biscoitos com generoso pedaço de queijo prato. Em casa, eu dizia<br />

que comia tudo, para não desgostar a família; entretanto, minha magreza revelava a<br />

mentira.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

135


Quando íamos a algum passeio com a escola, ganhávamos sanduíche e<br />

biscoitos embalados em sacos de papel. A irreverência da juventude era de<br />

enlouquecer as inspetoras que sempre faziam inúmeras ameaças. Na época, as moças<br />

tinham que ser prendadas e íamos para as chamadas oficinas aprender a fazer flores,<br />

tricô, bordado e as famosas rendas: irlandesas e valencianas. Certa vez houve uma<br />

exposição dos trabalhos no Teatro Municipal e uma bolsa de “faille” com uma rosa<br />

bordada em ponto cruz que eu fiz, foi ofertada à esposa do prefeito da época de quem<br />

não me lembro o nome. Fiquei envaidecida.<br />

Tínhamos, também, que ter aulas de culinária, das quais eu sempre me<br />

esquivava para não ter que descascar batatas e outros legumes. Lá ia eu para a copa.<br />

Colocávamos a mesa e servíamos as professoras que, na época, almoçavam no<br />

colégio. Aqueles de quem mais gostávamos, recebiam os melhores quitutes. Pobre da<br />

professora de matemática: para ela eu reservava a faca mais pesada e tentava não a<br />

servir. Apesar de trabalhoso era divertido. Às vezes, sem querer, derrubávamos as<br />

travessas e era um tremendo estrago a comida esparramada no chão.<br />

Atualmente, dou valor àquela época em que, sem nos darmos conta, muito<br />

estávamos aprendendo, não só através do estudo como também com o convívio com<br />

outras pessoas de diversas classes sociais. Muita saudade do canto orfeônico, onde<br />

extravasávamos os dotes musicais; chegamos a ter a regência do imortal maestro Villa<br />

Lobos. Nós brincávamos dizendo que ele era “Vira Lobo”, por ser muito<br />

temperamental. O canto do Pajé, além dos hinos patrióticos, eram então entoados.<br />

Depois que saí da Escola Bento Ribeiro, não pude continuar meus estudos.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Meu sonho era ingressar no Instituto de Educação, mas o destino traçou outro<br />

rumo. Levada por minha prima Zélia, fiz concurso para a Light, na época Companhia<br />

de Carris, Luz e Força do Rio de Janeiro; o nome era quilométrico, posto que a<br />

empresa não atendia somente aos serviços de eletricidade. Este meu primeiro emprego<br />

aconteceu em 1954; entrei para a Holerith, trabalhando em máquinas IBM. Em 1955<br />

tive uma grande tristeza, meu pai faleceu. Eu nunca havia conhecido de tão perto<br />

tamanha perda.<br />

136


Eu que já era muito magra e difícil de me alimentar, fiquei ainda mais avessa às<br />

refeições. Minha mãe preparava a marmita e eu, muitas vezes, a jogava fora. Certo dia<br />

a prima Zélia encontrou com meu irmão e contou-lhe esse tremendo delito. Minha mãe<br />

ficou triste, chegando a chorar; e toca de dar-me novamente fortificantes para abrir<br />

meu apetite.<br />

Muito interessada em estudar, matriculei-me no curso de secretariado onde<br />

uma das matérias era a taquigrafia. Esse curso funcionava na sala de reuniões da<br />

Light, onde ao redor de uma mesa grande com vidro em cima, os alunos se<br />

posicionavam.<br />

Meu olhar esquivo bateu no de um jovem magro de terno; aliás o terno era<br />

obrigatório. Nos dias subseqüentes, meu coração teve os batimentos acelerados<br />

sempre que eu me deparava com o jovem na aula ou nos corredores. Timidamente,<br />

disfarçava meus sentimentos, coisas de uma época em que a mulher era reprimida e<br />

não podia demonstrá-los. O rapaz, do outro lado da mesa, fazia graça para eu ir. Certa<br />

vez, íamos conversando pelo corredor com outras colegas; uma delas fez-lhe pergunta<br />

indiscreta e eu o defendi. Notei que ficou grato. Outra vez ele impediu que eu entrasse<br />

de cabeça num poste no corredor da Light, pois perto dele eu ficava perturbada.<br />

namorei.<br />

No dia 23 de março de 1956, no ponto do bonde, em frente a Light, ele falou:<br />

– Você me daria resposta sem eu fazer a pergunta?<br />

Austeramente respondi:<br />

– Não há resposta sem pergunta, mas eu quero que você saiba que eu nunca<br />

Então, ele respondeu:<br />

– Era o que eu queria ouvir. Posso ir na sua casa no sábado?<br />

Justamente, o sábado era de Aleluia e no dia seguinte, 31 de março, eu<br />

completaria 21 anos. Ele mostrou-me a carteira para mostrar que era solteiro. No<br />

sábado olhei o portão: lá em baixo na rua e vi o jovem andando de um lado para o<br />

outro, à minha espera. Meu coração parecia que ia saltar; se coração competisse nas<br />

olimpíadas, o meu naquele dia ganharia todas as provas.<br />

Vesti-me rapidamente, penteei-me, fazendo tudo para que nenhum fio de<br />

cabelo ficasse em desalinho. No meu vestido listradinho, branco e cinzento, com<br />

imensa saia godê eu me sentia uma princesa; meu príncipe encantado me esperava;<br />

não vinha num cavalo branco, tinha chegado de bonde. Andamos na rua pra lá e pra<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

137


cá, mas antes das 21 horas subi novamente as escadas para casa. Na despedida ele<br />

beijou-me a mão. Fiquei até assustada, pois o achei ousado nesse gesto, entretanto,<br />

até hoje seguro aquele momento como um dos mais bonitos de minha vida.<br />

No dia seguinte, ele subiu e falou com minha família. Lembro-me que fiz para<br />

ele refresco de limão com gelo quebrado da geladeira; era a que tínhamos na época.<br />

Os dias e meses foram se sucedendo e num sábado de carnaval fomos assistir ao filme<br />

“Suplício de Uma Saudade”. A música desse filme marcou muito e virou o símbolo de<br />

nosso amor e, até hoje, quando a ouvimos, corremos um para o outro entre beijos e<br />

abraços. Como sempre, muito organizado, meu namorado trouxe uma lista de enxoval,<br />

fiquei ruborizada. Assim, fomos juntando peças de cama e mesa e demais utensílios;<br />

comecei a bordar meus lençóis. No dia 18 de agosto de 1958 ficamos noivos; houve<br />

um almoço em família e um bolo em forma de coração. Ele vestiu um terno cinza novo,<br />

gravata combinando e eu um vestido azul de bolinhas brancas, como sempre desejei<br />

que fosse nossa vida: azul de bolinhas brancas.<br />

Trocamos nossas alianças de ouro maciço. Foi outra emoção, eu me sentia<br />

dona do mundo com aquele elo reluzente no dedo anelar.<br />

Dava vontade de gritar para todo mundo: “– Eu amo o Wilson. Eis aqui o elo de<br />

nossa união!” Entretanto, eu me contentava em andar de dedo duro e resguardar<br />

minha aliança de arranhões. Na época todas as pessoas tinham o direito de exibir o<br />

estado civil com aliança de ouro. E nem havia outros tipos pois não existiam ladrões;<br />

no cotidiano, as pessoas usavam jóias sem medo. Como os tempos mudaram...<br />

Dois anos depois foi marcado o grande dia: 19 de março de 1960. Grandes<br />

preparativos: escolha dos padrinhos, da igreja, dos móveis, o terno, o vestido de<br />

noiva... Os doces, os salgadinhos, as bebidas e o bolo: castelo de três andares,<br />

branquinho como a neve com rosinhas em tons suaves e guirlandas com laços, como<br />

os laços que estavam unindo aquele casal com tanto amor. Na época as noivas<br />

mostravam o enxoval e o quarto de núpcias, a camisola e o robe, quase sempre em<br />

seda pura ou lingerie, dando água na boca às solteiras da família.<br />

Voltando ao bolo de casamento, era um castelo de três andares, como já disse,<br />

cheio de laços, guirlandas e pombinhos; no alto, um casal. Era todo branquinho,<br />

ornamentado por glacê mármore, que era feito de açúcar de confeiteiro, manteiga e<br />

claras em neve. Na época era tudo manual, o glacê era colocado no saco de confeitar<br />

e espremido até tomar as formas açucaradas de pitangas.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

138


Lembro que a última camada do bolo era feita especialmente para a volta do<br />

casal da lua de mel. O papel dos bolos é importantíssimo em qualquer aniversário,<br />

casamento ou outras festividades. Geralmente, quando convidamos alguém para uma<br />

festa dizemos:<br />

– Venha comer um pedaço de bolo.<br />

É desfeita recusar uma fatia de bolo oferecida nessas ocasiões..<br />

O bolo traduz uma mistura de elementos que além de energéticos, significam a<br />

mistura de nossos sentimentos e a sua divisão simboliza a partilha de nossa vida. O<br />

primeiro pedaço, geralmente, é para a pessoa mais querida, o que às vezes causa<br />

embaraço. Ao cantarmos o tradicional “Parabéns Prá Você” o fazemos na presença do<br />

gostoso e cobiçado personagem: o bolo. Indiretamente, ele está sendo homenageado<br />

com as exclamações: “Ele é bonito!” ou “Ele está gostoso, hum...”<br />

Lembro também dos docinhos que as amigas ajudavam a confeccionar. Era<br />

uma participação alegre, onde eram feitos os cajuzinhos, os brigadeiros, os olhos de<br />

sogra e outros. Lembro que na época os pirex também faziam parte da festa; era a<br />

novidade do momento. Eram refratários e não havia noiva que não tivesse, em meio<br />

aos presentes de casamento, uma forma pirex, com tampa ou sem tampa, não<br />

importava. As galinhas assadas também faziam parte das festas de casamento, além<br />

dos salgadinhos: rissoles, pastéis, empadas e canapés. Ganhei de minha cunhada uma<br />

linda bolsa de barbante em crochê. Minha mãe não conversou, envolveu galinha<br />

assada em guardanapos e também salgadinhos para levarmos na viagem de lua de<br />

mel. Assim rumamos para São Lourenço. Nós dois? não, nós três: Wilson, eu e a<br />

galinha, que comíamos furtivamente nas paradas dos ônibus. Como sempre a<br />

preocupação de minha mãe era a minha magreza.<br />

Lembro que pela manhã, no dia do casamento, ela me pegou no colo e disse:<br />

– Olha o que guardei para você...<br />

E deu-me um enorme caqui, que saboreei em seu colo. Infelizmente aquele foi<br />

seu doce e último presente. Inesquecível foi o garçom acordar-nos para jantar ao som<br />

de La Cumparsita. Foi pena que o coração de minha mãe parou e dez dias após<br />

tivemos que regressar.<br />

O primeiro almoço que fiz para meu marido foi sensacional! Eu não me<br />

preocupara em aprender a cozinhar, porque teria minha mãe para ajudar. Na época o<br />

jeito era mesmo enfrentar a pia e o fogão. Lavei o feijão, botei na panela para cozinhar<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

139


e fui lavar umas roupas, na época era no tanque mesmo. Enquanto isso, Wilson<br />

encerava a casa que era de tábuas corridas. De repente exclamei:<br />

– Alguém deve estar torrando amendoim...<br />

Alguns minutos depois o Wilson falou rindo:<br />

– Sabe o que esse amendoim? É nosso feijão que queimou.<br />

Aí eu falei:<br />

– Ah! Eu dou um jeito.<br />

Lavei um pedaço de carne seca e joguei dentro da panela que exibia o feijão<br />

estorricado. Foi um desastre total. Mas no fim tudo deu certo. Minha irmã passou a ser<br />

minha instrutora, pois já sabia que meus dotes culinários eram zero. Às vezes, já<br />

mandava a comida pronta. A sorte do Wilson é que ele almoçava na Light.<br />

Mais uma vez todos esses fatos ligados ao casamento demonstraram a<br />

importância dos alimentos, que estão sempre presentes em nossa vida e trazem<br />

recordações de fatos inesquecíveis.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Sou muito observadora; no outro dia, ao descer a rua onde minha filha e<br />

marido moram, deparei-me com o Teatro Sergio Porto. Muito interessante é que esse<br />

teatro muda o cartaz de suas peças de maneira curiosa; um artista plástico o renova.<br />

Isso desperta minha curiosidade porque as pinturas são perfeitas e variadas de acordo<br />

com a peça. Dessa vez, num fundo de tonalidade verde, estava estampado o título em<br />

letras pretas: “A Sopa”. Não sei do conteúdo da peça, mas meu apetite foi aguçado e<br />

lembrei-me das sopas que minha mãe fazia.<br />

Mentalizei então uma sopa de ervilha, verde como a esperança. Voltei para<br />

casa, coloquei um pacote de ervilhas de molho e no dia seguinte cozinhei juntamente<br />

com um pedaço de carne magra, paio e temperos na panela de pressão, durante meia<br />

hora. Por falar em panela de pressão, meu aplauso para esse grande invento.<br />

Antigamente, o feijão preto e outros grãos levavam três horas de cozimento.<br />

Atualmente, em poucos minutos, temos a vantagem de saborear uma suculenta sopa<br />

que, acompanhada de torradinhas, torna-se mais apetitosa.<br />

Interessante como tanta coisa fluiu em meu pensamento a partir do título da<br />

peça teatral. Muitas pessoas quando querem se referir a alguém que quer levar<br />

140


vantagem em tudo dizem: “Você quer é sopa”. Ou em outras ocasiões: “Não dá sopa”.<br />

Através desses ditos populares a sopa tem significado leve de algo bom.<br />

Nos regimes alimentares ela é muito usada e na enfermidade logo nos<br />

lembramos de uma sopinha, que alimenta sem congestionar o organismo. Na<br />

Inglaterra, por ser um país muito frio, existem quiosques de sopas de todas as<br />

variedades para aquecer o transeunte.<br />

Aqui no Rio, existe uma casa de chá e confeitaria, cuja sopa é servida<br />

diariamente às 18 horas. Muitas pessoas idosas e solitárias para lá se dirigem<br />

procurando este prato. Assim, aquecem o organismo e o coração, antes solitário em<br />

algum apartamento. A sopa é um alimento tão importante, que as igrejas, através de<br />

suas pastorais, serve-na à noite, nas vias públicas, para os excluídos. A sopa é o<br />

veículo da caridade.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Em alguns dias da semana escuto um caminhão estacionar no restaurante em<br />

frente ao prédio onde residimos. Corro à janela, através da cortina, gosto de<br />

bisbilhotar a carga descarregada. Fico encantada com o que denomino “a carga da<br />

<strong>saúde</strong>”, pois os transportadores levam às costas para dentro do restaurante sacos de<br />

laranjas, limões, maçãs, bananas, mamões e abacaxis.<br />

Aqueles trabalhadores talvez não saibam do precioso conteúdo que ali está<br />

exposto. As frutas formam um lindo colorido, digno de telas de pintores.<br />

Em outros dias chegam pelo mesmo veículo verduras e legumes: couve,<br />

brócolis, tomates, alface, vagem, agrião, espinafre e outros. Novamente o colorido da<br />

carga me encanta e penso: como a natureza é pródiga e nosso solo?<br />

O nosso sol vibrante faz com que nossos alimentos tenham mais beleza e<br />

sabor, mesmo recebendo os agrotóxicos. Pessoas estrangeiras declaram que, aqui no<br />

Brasil, os alimentos são mais saborosos. Outro fato muito importante é a variedade<br />

que nosso solo produz. Cada época possui sua safra e assim, procuramos tudo que<br />

esteja dentro da safra, para economizarmos e porque tudo é colhido no tempo certo.<br />

Tudo tem seu tempo, tempo de plantar e tempo de colher.<br />

* * *<br />

141


No outro dia, ao levar o resultado da densitometria óssea para minha médica,<br />

fiquei decepcionada, pois ela alertou que estou com osteoporose lombar. Apesar de<br />

declarar que nada sinto, ela esclareceu que a osteoporose é uma doença que afeta os<br />

ossos, que todo osso é um tecido vivo, que necessita de nutrientes para manter força<br />

e elasticidade. A osteoporose reduz a densidade dos ossos afetados, tornando-os<br />

frágeis e propensos a fraturas. A doutora aconselhou-me a ingerir alimentos ricos em<br />

cálcio, dentre eles: queijo branco, leite de preferência desnatado, iogurte, couve. E o<br />

mais importante: os exercícios físicos, a caminhada e sol. Sai do consultório triste, eu<br />

que tinha orgulho dos meus ossos, verifiquei que não vão bem.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Domingo pela manhã, toca o telefone. É nossa filha!<br />

– Oi, oi! Posso almoçar aí?<br />

– Claro, filhinha, já estou esperando.<br />

É dia de festa a visita de filhos. Mais uma vez verificamos como a comida é<br />

importante. Ela aproxima as pessoas. E sempre quando sabemos ou desconfiamos que<br />

alguém nos visitará, logo pensamos no quê vamos oferecer aos visitantes. Para os<br />

inesperados que gostam de nos surpreender, às vezes nas horas mais críticas, nunca<br />

falta um cafezinho com biscoitos, suco ou refrigerante ou um simples copo d’água para<br />

aqueles que relutam em aceitar algo. Gosto de ter sempre na despensa um doce em<br />

calda que, servido com creme de leite, agrada ao paladar.<br />

Depois do telefonema da filha fomos ao supermercado.<br />

Fiquei mentalizando o que fazer para o almoço domingueiro. Compramos filé<br />

para fazer bifes. Já tinha em casa brócolis, batatas e cenouras cortadas em<br />

quadradinhos para a maionese. Arroz também já tinha deixado refogado. Comprei<br />

alface que por sinal estava em promoção: a R$ 0,25 um pé generoso.<br />

Passamos na padaria do supermercado e compramos o pão ainda quentinho.<br />

Também pão de forma que sempre gostamos de ter nos fins de semana. Compramos<br />

dois bolos Plus Vita, novo sabor: maçã, passas e canela; entretanto, não o<br />

recomendamos: achamos enjoativo.<br />

142


Compramos alguns refrigerantes e não resistimos ao apelo da Malzibier à nossa<br />

frente e a colocamos no carrinho.<br />

Havíamos desfilado no dia anterior pelo bairro, levando em sacolas<br />

transparentes do sacolão: bananas, mamão, melão, laranjas, maçãs, berinjelas,<br />

brócolis, beterraba e cebolas. As pessoas que circulavam na calçada nos olhavam e às<br />

nossas compras, talvez pensando, “também preciso usar desses alimentos”. Nós<br />

éramos quitandas ambulantes, espalhando bom exemplo de <strong>alimentação</strong> à nossa volta.<br />

Voltemos ao domingo: pagamos nossas compras, subimos ao estacionamento,<br />

colocamos tudo no veículo e fomos para casa. Lavei mãos e rosto, mudei de roupa e a<br />

cozinha me esperava. Coloquei legumes no fogo, temperei os bifes com alho e sal,<br />

lavei a alface, coloquei-a de molho em água e uma colherzinha de água sanitária, fiz o<br />

arroz, fiz o refogadinho dos brócolis e cortei e recortei tomates, cebolas e pimentões,<br />

fritei os bifes e ainda fiz uma farofinha com ovo cozido.<br />

Ao meio dia estava tudo pronto e a mesa arrumada. Às 13:30 horas os<br />

hóspedes do coração chegaram: a filha e o genro. Beijinhos prá lá, beijos prá cá.<br />

– Oi, mãe! Estou com uma fome! Põe tudo que tenho direito.<br />

– Oi, sogra! Cadê meus pasteizinhos?<br />

Descobri que falhei:<br />

– Ih! Hoje eu não fiz... Na quarta-feira nós vamos lá e levamos.<br />

– A sogra está despedida...<br />

Durante o almoço a filha falou que está consumindo leite de soja e carne de<br />

soj;, está cortando o açúcar e o refrigerante; mas não resistiu a Malzibier e disse<br />

brincando:<br />

– Mãe, eu estou “vêvada”...<br />

Assim, tudo transcorreu num clima de alegria. Antes de saírem, filha e genro<br />

tomaram um suco de maracujá com o bolo que não foi muito apreciado.<br />

Levamos os dois até o local onde estava estacionado o carro e beijos prá lá e<br />

beijos prá cá. Desejamos boa viagem à filha que, no dia 26 próximo, irá à Inglaterra a<br />

serviço; ficará dez dias no país que ela muito aprecia.<br />

Este relato foi feito para demonstrar como a <strong>alimentação</strong> é importante. Primeiro<br />

foi a reação ao telefone, de como agradar a quem amamos numa refeição, procurando<br />

caprichar ao máximo. Depois a ida ao supermercado. Mais adiante o pensamento<br />

rápido do que comprar para tornar o almoço agradável. A elaboração carinhosa dos<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

143


alimentos. A arrumação da mesa, que muito valoriza a convivência da família reunida.<br />

A pergunta bem humorada dando falta de uma iguaria. O mais importante, a família<br />

em volta da mesa, compartilhando dos alimentos.<br />

Realmente, foi um bom domingo e esperamos muitos outros. Brindemos à<br />

<strong>saúde</strong>, à vida, à <strong>alimentação</strong>.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Uma lembrança que tenho na memória é de que as festas familiares eram<br />

comemoradas nas casas. Até porque existiam as casas espaçosas e com quintais. Hoje,<br />

as comemorações são externas. Geralmente, nos restaurantes, nas casas de festas ou<br />

lanchonetes.<br />

As pessoas se reúnem e o recinto de um restaurante torna-se o ponto de<br />

encontro. No mês passado fomos com um grupo de familiares comemorar o vigésimo<br />

aniversário de nossa neta postiça no Rincão Gaúcho, da Tijuca, por determinação da<br />

própria. Era um ambiente requintado, com música ao vivo, muito bem decorado. O que<br />

mais me chamou a atenção foi um grupo imenso de pessoas ao redor de mesas<br />

enfileiradas ao longo do restaurante, reservadas para essa família numerosa, onde<br />

estava presente um casal de cabeça branca. Só descobri a causa do evento, quando<br />

não contive a curiosidade e perguntei ao garçom que respondeu ser a comemoração<br />

das Bodas de Ouro.<br />

Todos muito alegres, eram diversas gerações homenageando o galante casal,<br />

bem conservado, elegantemente trajados. O noivo de outrora estava impecável em seu<br />

terno e a noiva vestia um lindo vestido azul. Pediam à orquestra as músicas preferidas<br />

e eram atendidos. Não pude, nem ficava distinto bisbilhotar o cardápio escolhido, até<br />

porque o grupo era numeroso. Tínhamos que nos preocupar com a nossa<br />

comemoração, também bonita: os vinte anos de uma jovem.<br />

Em dado momento, ouvimos a orquestra tocar e todos os participantes das<br />

bodas acompanharam de pé, enquanto imenso bolo branco e dourado chegava à<br />

mesa. Muitas garrafas de champagne espoucavam trazendo alegria aquele<br />

acontecimento festivo. O casal cortou o bolo, talvez recordando o momento vivido há<br />

cinqüenta anos, quando tudo era tão diferente, na época eles nunca pensariam que<br />

144


esse dia chegaria e que a comemoração seria num restaurante. Como os tempos<br />

mudaram...<br />

O importante foi estarem juntos todo o tempo, coisa que está se tornando difícil<br />

nos dias atuais.<br />

Tive vontade de mandar-lhes uma mensagem, nem que fosse através de um<br />

guardanapo, mas pensei que seria inadequado; não combinando com o momento de<br />

delicadeza ali presenciado, talvez me tornasse indesejável. Pedi, então, a Deus,<br />

mentalmente, felicidades para o casal.<br />

Voltei ao prato que saboreava: salada, arroz, grão de bico, peixe e banana frita,<br />

acompanhado de guaraná. Após o almoço o garçom trouxe várias <strong>sobre</strong>mesas<br />

diferentes em uma bandeja, achei interessante esse processo que eles usam em vez<br />

de escolhermos no papel, escolhemos ao vivo o que mais nos agrada; ele recolhe a<br />

bandeja e traz o que cada um pediu.<br />

Eu, muito gulosa, escolhi uma torta de coco, que parecia ter sido feita no céu<br />

de tão gostosa que era. Ao final nos retiramos, mas nossos vizinhos, unidos pelo<br />

matrimônio há cinqüenta anos, permaneceram naquele recinto festivo.<br />

Na minha opinião esse tipo de comemoração é interessante, pois exige menos<br />

trabalho para a dona de casa; eu só acho é que não há privacidade, o que é<br />

constatado até por minha curiosidade; indiretamente, também participei do evento.<br />

Há um restaurante em frente ao nosso apartamento, onde assisto muitas<br />

comemorações. Geralmente são jovens que se reúnem para comemorar aniversários e,<br />

em dado momento, escuto o tradicional “Parabéns pra você!”. Fico imaginando se, em<br />

casa, os pais não ficaram esperando o aniversariante com uma surpresa ou simples<br />

bolo para comemorar a data. Fico feliz quando vejo uma família reunida participando<br />

de um evento dessa natureza.<br />

As casas de festas também oferecem tudo o que há de imaginável e<br />

inimaginável nas festas infantis: animação, carroça de pipoca, piscina de bolas, música<br />

da Xuxa, chegando exageros que muitas vezes assustam os baixinhos. Tudo mudou,<br />

tudo faz parte da mudança.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

145


Hoje, dia 28 de outubro, é o dia do Halowen, comemoração trazida de outros<br />

países. As crianças se fantasiam grotescamente de bruxas, vampiros, fantasmas,<br />

esqueletos e há até fantasias luxuosas no gênero; batem em nossa porta pedindo<br />

doces e balas; fingimos que não os reconhecemos e ficam felizes.<br />

Acho nosso Cosme e Damião mais simpático. É uma festa vestida de<br />

simplicidade, onde as crianças, às vezes de pé no chão, ficam felizes ao receber o<br />

saquinho de papel com a estampa dos dois santos, onde o pé de moleque, a cocada, a<br />

Maria Mole, a mariola, o doce de abóbora, a paçoca enchem de alegria a doce ilusão<br />

infantil. Aquele saquinho trazido em mãozinhas carentes representa o troféu<br />

conquistado na “olimpíada” pelo bairro rumo às guloseimas.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Assisto também no mesmo restaurante as filas às sextas-feiras para conseguir<br />

lugar. Fico indignada – olha a bisbilhotice outra vez – quando vejo um casal com bebê<br />

após as 22 horas no recinto; acho inadequado pelo barulho. Não acho um local próprio<br />

para crianças à noite.<br />

Havia um senhor que até bem pouco tempo, chegava no local, ocupava seu<br />

lugar determinado e ali permanecia. Era um senhor forte de espesso bigode e cabelos<br />

grisalhos e eu o chamava de “o velho solitário”; tomava chopp, acompanhado de<br />

salgados, de vez em quando o maitre trocava algumas palavras com ele. Geralmente<br />

adormecia, mas sem incomodar ninguém. Ele já fazia parte do folclore do restaurante.<br />

Entretanto, sumiu.<br />

Há um que chega no restaurante que parece louco; dá gargalhadas tão altas<br />

que é ouvido, mesmo com todas as nossas janelas fechadas. É forte e enquanto ri dá<br />

tapas nas costas dos garçons, que agüentam fingindo achar graças; afinal o freguês<br />

tem sempre razão... Parece que o estoque da conversa jogada fora é grande e<br />

hilariante.<br />

Estendi muito meu relato e saí do assunto, apesar de que, mesmo não falando<br />

especificamente nos alimentos, eles norteiam a nossa mente em todos os momentos e<br />

os recintos onde os encontramos também estão ligados à <strong>alimentação</strong>.<br />

Vou encerrar por hoje, o Wilson fez o café e foi buscar pão quentinho para o<br />

saborearmos. Até a próxima. Estão servidas?<br />

146


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Hoje é o dia em que nos lembramos dos entes queridos que partiram para a<br />

vida eterna. Muitas vezes, quando saboreamos algo, nos lembramos de como<br />

determinadas pessoas que não mais estão entre nós tinham preferências por algum<br />

alimento; assim, eles são importantes e estão presentes em todas as ocasiões.<br />

Divagando, lembrei-me de um livro que possuo e fui buscá-lo num cantinho da<br />

estante. Não se trata de um romance, nem de um livro de história, nem de<br />

matemática. É, simplesmente, um livro de receitas, tão ou mais importante do que<br />

qualquer outro. Seu valor prende-se ao fato de ter-me sido ofertado por meu saudoso<br />

irmão Agostinho. O livro está velhinho, amarelecido pelo tempo, nele está registrado<br />

meu nome, ainda escrito com caneta tinteiro e a data: 1950. Seu título: “Dona Benta.<br />

1001 Receitas de Bons Pratos”. Aí, eu tinha quinze anos e passava longe da cozinha.<br />

Acho que meu irmão já pensava no meu futuro e também no seu estômago.<br />

Era guloso. Lembro que deu o mesmo presente à minha irmã.<br />

O livro tem início com o título “Conselhos úteis”; apresenta os utensílios de<br />

cozinha: uma das preocupações mais sérias de uma dona de casa é a escolha do<br />

vasilhame de cozinha. Há utensílios de ferro, cobre, alumínio, níquel, pedra, porcelana,<br />

ferro, ágata e vidro inquebrável. Daí em diante era apregoada a qualidade de uns e o<br />

perigo de outros. Em outro capítulo são abordados os diversos tipos de fogão, os pesos<br />

e medidas, os cardápios, o arranjo da mesa e as guarnições usuais. Os temperos ou<br />

condimentos também mereceram um capítulo especial.<br />

Para nossa felicidade, nos dias atuais, basta pegarmos um pacotinho de<br />

qualquer um deles. O trabalho que tiveram os nossos antepassados, para nós foi<br />

simplificado. Que diriam nossas avós se vissem sopa em pó nas prateleiras dos<br />

supermercados? Elas, para cozinhar uma sopa teriam que perder horas e horas à beira<br />

do fogão.<br />

No capítulo dos molhos achei interessante a definição de Ramalho Ortigão:<br />

O molho é como a essência da flor e o suco da fruta.<br />

É ele que define o acepipe e lhe transmite as qualidades peculiares.<br />

147


Muitas vezes, a excelência de um prato ou de uma iguaria depende do molho<br />

que o completa. Pode-se dizer que os molhos são imprescindíveis na boa cozinha. O<br />

livro apresenta uma infinidade deles. Separei o de maionese, pois é interessante o<br />

modo de fazê-lo, numa época em que não existia o liqüidificador e nem era<br />

industrializado.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Molho de Maionese<br />

Deite numa vasilha funda ou numa tigela três gemas cruas e três cozidas.<br />

Misture-as muito bem. Depois, mexendo sempre,<br />

vá juntando, às gotas, um azeite fino qualquer,<br />

até formar uma espécie de creme de boa consistência.<br />

Tempere de sal e na hora de servir junte o caldo de meio limão galego.<br />

Quer um conselho? Vá ao supermercado e pegue um pote de maionese.<br />

O livro apresenta preparações das verduras e legumes diversos, em ordem<br />

alfabética, cada um em várias formas. A salada é um dos pratos que mais põe em<br />

evidência o capricho e o bom gosto de uma dona de casa. Antigamente, a salada era<br />

um prato modesto, sem grandes foros de valia. As rendilhadas chicórias, as viçosas<br />

alfaces e os requestados agriões se contentavam em ser apresentados com a simples<br />

graça de uma ponta de sal e um fiozinho de azeite e vinagre. Hoje, não! O seu nível<br />

subiu e ela ganhou não só o prestígio dos demais pratos, como ainda permitem, na<br />

sua apresentação as misturas mais extravagantes e originais.<br />

Por hoje eu vou ficar nas saladas.<br />

E pensar que todas essas recordações gastronômicas devo ao livro de receitas<br />

que recebi há cinqüenta anos atrás e à saudade do meu irmão, sempre presente em<br />

minha vida.<br />

pouco...<br />

Nesta data meu irmão completaria setenta e três anos. Vou recordar mais um<br />

* * *<br />

Achei interessante o capítulo <strong>sobre</strong> os sanduíches e sua origem. Da página 112<br />

do livro “Comer Bem” de D. Benta.<br />

148


Havia, na Inglaterra, um lorde, proprietário de ricas terras e jogador<br />

inveterado, o qual passava horas e horas diante do pano verde, esquecido da vida e do<br />

mundo. Tal era sua obsessão pelo jogo, que nem a fome o fazia arredar o pé da mesa<br />

recoberta de pano verde.<br />

Um dia esse gentil homem que se chamava Sandwich, ou porque estava mais<br />

excitado mais que de costume ou porque se interessasse mais pela partida em que se<br />

empenhara, esqueceu-se das suas refeições habituais. Sua atenção, presa ao sortilégio<br />

dos naipes, nem sequer fazia conta do tempo e só alta madrugada notou que era<br />

preciso fortalecer o estômago, para poder prosseguir sem fadiga. Pediu então que lhe<br />

trouxessem qualquer coisa para comer ali mesmo.<br />

Assim que o criado lhe apresentou a bandeja, o nosso lorde, sem abandonar o<br />

seu posto, cortou com uma faca algumas fatias de carne e, colocando-as entre dois<br />

pedaços de pão, foi mastigando sem perder um só movimento do jogo e nem<br />

interrompê-lo por um segundo sequer.<br />

Os companheiros de partida, aplaudindo o expediente, seguiram-lhe o exemplo<br />

e deram à rápida e pronta refeição, cada vez que a reclamavam, a designação<br />

abreviada de sandwich.<br />

Tal foi a popularidade que adquiriu a nova maneira de refeição que Lord<br />

Sandwich não teve dúvida em mencioná-la em testamento como um bom legado que<br />

deixava ao seu país e como uma das coisas mais importantes que havia inventado na<br />

sua vida, mais importante talvez que as sessões da Câmara Grave e as complicadas<br />

cerimônias de coroação.<br />

Hoje, o nome sandwich corre mundo. Enquanto outros lordes famosos ficaram,<br />

com o tempo, esquecidos ou apenas deles se tem menção na lombada dos livros ou<br />

pelas complicadas genealogias e brasões dos vetustos castelos da Escócia ou da<br />

Irlanda, Sandwich se universalizou de tal forma que até as crianças de todos os países<br />

sabem o seu nome e o apreciam desta ou daquela maneira, como um excelente amigo<br />

nas horas de merenda, nos lanches, pique-niques, etc.<br />

Não faz muito, realizou-se em Budapest a célebre Exposição de Sanduíche,<br />

promovida pela Associação dos Cozinheiros Húngaros. Do êxito desse certame, basta<br />

dizer que foi preciso organizar, depois, uma exposição de consolação para os que não<br />

puderam, por motivos vários, comparecer à primeira.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

149


A concorrência foi a maior e a mais seleta. Chefes de cozinha dos grandes<br />

hotéis e restaurantes, senhoras e senhoritas das casas mais aristocráticas e opulentas<br />

enviaram as suas contribuições, verdadeiras maravilhas do gênero.<br />

A perícia e a habilidade dos magiares revelaram-se numa infinidade de receitas,<br />

cada uma mais original e apetitosa do que a outra. Havia retratos feitos com<br />

sanduíches, flores, recortes bizarros de figuras, bonecas, corações, cartas de jogar,<br />

brasões e escudos e uma relação minuciosa de mais de trezentas maneiras e<br />

variedades de sanduíches.<br />

A repercussão foi tal, que idênticos certames se têm realizado em diversas<br />

partes da Europa e nos Estados Unidos, onde há hoje uma verdadeira industria dessas<br />

pequeninas maravilhas culinárias, tão populares na terra de Tio Sam como em outras<br />

paragens.<br />

O sanduíche, como vimos, nada mais é do que um recheio entre duas fatias de<br />

pão. A qualidade do pão deve, portanto, ser escolhida de acordo com o recheio.<br />

Atualmente, os sanduíches são vendidos nas carrocinhas e vans espalhadas pela<br />

cidade.<br />

Entretanto, a “mídia” invadiu as cidades e é impossível resistir aos coloridos<br />

comerciais, onde as fotos iluminadas dos sanduíches saltam aos nossos olhos, quase<br />

os tornando reais.<br />

É difícil uma criança passar pelo Bob’s ou McDonald´s sem arriscar o olho no<br />

interior dessas lanchonetes ou aprontar uma baita pirraça ou uma choradeira<br />

convincente para ter seu “Mc-Dia-Feliz”.<br />

Estas duas cadeias gastronômicas exercem poder e magia através dos acepipes<br />

oferecidos com criatividade.<br />

E pensar que nem todos os freqüentadores desses espaços de quitutes<br />

saborosos sabem que tudo começou com Lord Sandwich.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Os alimentos estão presentes a todo o momento. Quando acordamos, ao<br />

fazermos a higiene matinal, logo nos defrontamos com a abençoada água, grande<br />

partícipe no preparo dos alimentos; muitas vezes o cheiroso sabonete que usamos é<br />

feito de frutas, de aveia, de capim limão, etc. Ao escovarmos os dentes novamente a<br />

150


hortelã refrescante, contida no creme dental, que também é responsável pelo sabor de<br />

diversos pratos, se faz presente.<br />

O cheirinho do café, vindo da cozinha, também é nosso despertador e logo<br />

pensamos no seu acompanhamento: pão, manteiga, leite e outras iguarias, de acordo<br />

com o gosto e as posses de cada um.<br />

Até na oração o alimento está presente:<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O pão nosso de cada dia, nos dai hoje.<br />

Mal acabamos o desjejum, logo o pensamento no almoço nos domina. O que<br />

fazer? Ou, onde comer. Ou, o que comer?<br />

As prateleiras dos supermercados e dos sacolões desfilam em nossa mente e<br />

também as bandejas dos self-service. Cereais, legumes, verduras, frutas, sucos, são<br />

personagens importantes.<br />

Mal acabamos de degustar os escolhidos pratos do almoço e já pensamos no<br />

lanche. Mal acabamos de consumir o lanche, o jantar já desafia nosso pensamento. E<br />

após o jantar? Ainda vai sobrar um lugarzinho para uma xícara de chá ou um copo de<br />

leite.<br />

Feliz de quem tem o privilégio de tornar tais pensamentos em realidade. Muitos<br />

têm apenas miragem, pois seus estômagos estão vazios quase constantemente. Muitas<br />

vezes, apesar de bem alimentados, sonhamos que estamos preparando ou nos<br />

deliciando com uma iguaria. Nem dormindo os alimentos se omitem de nossa mente.<br />

Ontem a filha chegou e disse:<br />

– Mãe, pode fazer um doce com estas bananas que estão um pouco<br />

passadinhas? Não tenho tido tempo de comê-las.<br />

Fui para a cozinha; as cascas estavam pintadas, mas boas e com açúcar<br />

queimado fiz um doce que agradou.<br />

Olhei em volta: uma penca de bananas amarelinhas, um mamão, maçãs,<br />

laranjas e, de repente, não sei como, pensei: “O que é que a baiana tem?"<br />

Lembrei-me de Carmem Miranda, que era a “Xuxa” da minha geração. Usava<br />

na cabeça turbante de cetim e em cima uma cesta com as mais diversas frutas<br />

tropicais de nosso país: laranjas, bananas, abacaxis estavam presentes no seu<br />

151


emelexo. Carmem Miranda era de nacionalidade portuguesa, levou nossas músicas<br />

aos Estados Unidos e seu maior sucesso foi “Taí”.<br />

Outra música alusiva ao prazer da <strong>alimentação</strong> foi:<br />

Quem não lembra de...<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Banana, menina, tem vitamina,<br />

Emilinha Borba também homenageou as bananas com a música:<br />

banana engorda e faz crescer.<br />

No tabuleiro da baiana tem...<br />

vatapá, oi, mugunzá, oi...<br />

Chiquita Bacana lá da Martinica,<br />

se veste com uma casca de banana nanica...<br />

Quem pode esquecer o romantismo do nosso “Rei” Roberto Carlos, que<br />

interpreta “O Café da Manhã”. A “Marcha do Gafanhoto” também lembra os alimentos<br />

quando diz:<br />

Xô gafanhoto, xô, xô,<br />

deixe um pé de agrião<br />

pro meu pulmão,<br />

gafanhoto, isso não se faz,<br />

deixa a minha horta em paz.<br />

Muitas outras músicas nacionais alusivas aos alimentos poderiam ser citadas.<br />

Há também músicas estrangeiras que fazem alusão a eles; vejamos o fado:<br />

A Rosinha dos Limões<br />

Quando ela passa<br />

152


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Apregoando os limões<br />

A sós com os meus botões<br />

Do vão da minha janela<br />

Fico pensando<br />

Que qualquer dia, por graça<br />

Vou comprar limões à praça<br />

E depois caso com ela...<br />

“Uma casa portuguesa” ressalta hospitalidade, solidariedade e à partilha do<br />

amor, do pão, do vinho e do caldo verde quentinho...<br />

Uma Casa Portuguesa<br />

De R. Ferreira, V.M. Sequeira e A. Fonseca<br />

Gravado por Amália Rodrigues<br />

Numa casa portuguesa<br />

Fica bem<br />

Pão e vinho <strong>sobre</strong> a mesa<br />

Quando à porta humildemente<br />

Bate alguém<br />

Senta-se à mesa com a gente<br />

Fica bem essa franqueza<br />

Este trabalho demonstra que a <strong>alimentação</strong> está ligada ao dia-a-dia do ser<br />

humano. Ela é fator de <strong>saúde</strong>, quando balanceada e causa de enfermidade quando mal<br />

administrada; excesso e deficiência trazem sérias conseqüências.<br />

* * *<br />

Atualmente, a televisão nos mostra regiões carentes de nosso país, onde a<br />

fome impera. Vemos pessoas deprimidas, quase morrendo, o mesmo acontecendo com<br />

o gado. É um quadro muito triste que ocorre em nosso Brasil e que é transmitido para<br />

153


o mundo inteiro, envergonhando-nos. Fiquei revoltada ao assistir que alimentos<br />

doados não foram distribuídos, porque a população faminta não havia sido cadastrada.<br />

Será que o estômago vazio tem cadastro?<br />

Felizmente, outra reportagem mostrou pessoas simples se empenhando em<br />

levar alimento aos desamparados, usando criatividade e transformando folhas e<br />

legumes desprezados pelos mercados em sopa suculenta para amenizar a fome da<br />

comunidade de diversos lugares e a satisfação, principalmente, das crianças ao<br />

receberem o alimento; até emociona. As pastorais também distribuem sopa nas ruas.<br />

Muito triste, também, é a procura de alimentos nos lixões; é deprimente.<br />

Vamos esperar que as autoridades se emocionem também com essa situação, fazendo<br />

com que dias melhores venham realizar o desejo do saudoso Betinho.<br />

O racionamento de energia elétrica no nosso Estado também fez com que os<br />

hábitos mudassem; os hábitos alimentares também sofreram influência, pois alguns<br />

aparelhos elétricos tiveram que ser desligados e o “freezer”, o liqüidificador e outros<br />

estão de férias e não sabemos até quando.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Através deste trabalho recordei minha infância, tenho saudades do guarda-<br />

louça imenso, do assoalho de tábuas corridas por onde eu corria num alarido de<br />

alegria espontânea daquela época.<br />

Era prazeroso ver a família reunida. Na época, eu não me dava conta da<br />

felicidade presente na casa simples, na horta, no jardim, na imensa mangueira.<br />

Mais tarde a recordação da escola, do trabalho, do namoro, casamento e dos<br />

filhos: nossos tesouros...<br />

Quando parecia que já estava tudo realizado, eis que a vida mostrou que há<br />

mais a ser feito e nós dois, como no tempo de namoro, voltamos a freqüentar, lado a<br />

lado, os bancos escolares na UnATI-UERJ.<br />

Bendito seja Deus que da terra abençoada faz brotar tudo que é necessário à<br />

manutenção do ser humano, numa diversidade deslumbrante.<br />

FFFFFFFFiiiiiiiimmmmmmmm<br />

154


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Wilson Soares<br />

155


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Eu e Zefinha<br />

Quando nascemos abre-se para nós um livro e sua primeira<br />

página é a nossa certidão de nascimento. A partir daí, e enquanto vivermos, muitos<br />

capítulos virão, uns alegres, outros tristes, mas sempre fazendo parte de nossa<br />

trajetória nesta dimensão.<br />

Um dos capítulos mais importantes na minha vida foi o meu casamento com a<br />

Josepha, em 19 de março de 1960, e a partir daí outros bons fatos foram acontecendo<br />

graças ao carinho e sabedoria com que ela sempre conduziu o nosso lar, em todos os<br />

aspectos, principalmente no que se refere à <strong>alimentação</strong>.<br />

O nascimento de nossos filhos. Um casal, realizou nosso sonho de ter uma<br />

família, limitada a quatro membros, mas feliz. Mais uma vez, Josepha demonstrou, sua<br />

capacidade em administrar as questões relativas às crianças, principalmente nos<br />

primeiros meses de vida. Graças a Deus e ao desejo de amamentar nossos bebês, seu<br />

organismo propiciou o alimento mais indicado e saudável: o leite materno que possui o<br />

equilíbrio perfeito de nutrientes. Contém, ainda, anticorpos da mãe e proteínas<br />

específicas que protegem os bebês contra infecções. Está sempre disponível, já vem<br />

esterilizado e na temperatura correta. O contato físico entre mãe e bebê estreita o<br />

relacionamento entre os dois. Bebês amamentados ao seio têm menos tendência à<br />

obesidade pois, assim, não há excessos na <strong>alimentação</strong> nessa primeira idade.<br />

Aos seis meses, nossos filhos começaram a experimentar novo tipo de<br />

<strong>alimentação</strong>, ou seja, sopinha de legumes com músculo, abóbora, cenoura e batatas,<br />

que era passada na peneira, pois o médico não gostava que passasse no liqüidificador,<br />

para incentivar a mastigação. Como complemento, era oferecido às crianças banana<br />

amassada, suco de laranja lima ou maçã raspadinha. As fibras consistem nas partes<br />

indigeríveis dos alimentos de origem vegetal e ajudam a prevenir doenças cardíacas e<br />

câncer nos intestinos.<br />

Com o devido acompanhamento médico, as refeições ministradas aos nossos<br />

filhos, fora do aleitamento materno, foram suficientes para uma vida saudável nos<br />

primeiros doze meses de vida.<br />

156


Nossos filhos, primeiro o garoto e depois a menina, foram crescendo;<br />

crescendo, também, foi a nossa responsabilidade em proteger a nossa prole. Josepha<br />

com os cuidados maternos e eu procurando ser cada vez melhor no trabalho, para<br />

garantir no final do mês o combustível necessário para todos nós, ou seja, o meu<br />

salário.<br />

Depois dos doze meses de vida, nossas crianças passaram a ser alimentadas<br />

com caldinho de feijão, que a Zefinha passava no liquidificador juntamente com<br />

espinafre e beterrab, cozidos e como <strong>sobre</strong>mesa comiam geléia de mocotó Colombo.<br />

A sopinha, que foi muito empregada na <strong>alimentação</strong> de nossos filhos, até hoje<br />

continua sendo administrada aqui em casa. Quando voltamos do encontro com Mabel,<br />

Myriam e duas estagiárias, almoçamos um pratinho de sopa bem gostosa preparada<br />

pela Zefinha, cujos ingredientes foram repolho, cenoura, batata, massinhas e caldo de<br />

carne e sem muito sal. Algumas gotinhas de azeite, pão picado e água acompanhando.<br />

Para adoçar um pouquinho esta refeição, comemos uns biscoitinhos finos ofertados<br />

pela cunhada. Para completar nossa refeição, tomei um indispensável cafezinho.<br />

Consultando enciclopédias para ilustrar-me <strong>sobre</strong> certos produtos que me<br />

despertam maior atenção, detive-me no café: fruto do cafeeiro e infusão feita com<br />

esse fruto, depois de torrado e moído.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Então me levantei,<br />

Bebi o café que eu mesmo preparei.<br />

Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...<br />

Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.<br />

* * *<br />

(Manuel Bandeira)<br />

Quando o enterro passou<br />

Os homens que se achavam no café<br />

Tiraram o chapéu maquinalmente...<br />

(Manuel Bandeira)<br />

157


Enquanto a Zefinha ia participar de um evento <strong>cultura</strong>l na Biblioteca Popular do<br />

Méier – Lima Barreto, eu me dirigi ao centro da cidade. Quando embarquei num trem<br />

da Supervia (antiga Estrada de Ferro Dom Pedro II, inaugurada em 1858), comecei a<br />

recordar do tempo em que, entre 1948 e 1983, o trem foi o meu meio de transporte<br />

favorito no trajeto casa-trabalho, trabalho-casa. Inicialmente Riachuelo-Central e por<br />

último Engenho de Dentro-Central. Graças a ele, enquanto trabalhei, meu índice de<br />

pontualidade foi considerado satisfatório. Foi realmente uma volta ao passado quando,<br />

ao chegar na gare de Dom Pedro II senti aquela brisa que circula naquele grande<br />

espaço... Sempre foi assim. Chamou-me a atenção o sistema de comunicação da<br />

ferrovia que transmitia os sons de uma música suave. Apreciei, também, o imponente<br />

monumento dedicado a Cristiano Benedicto Ottoni, primeiro diretor da ferrovia. Nunca<br />

havia reparado nele. Passei em seguida em frente ao Quartel General da Primeira<br />

Região Militar (antigo Ministério da Guerra) e mais adiante a sede histórica do Palácio<br />

Itamarati, do Ministério das Relações Exteriores. Emoção ainda maior senti quando<br />

passei em frente ao número 168 da Av. Marechal Floriano, prédio da Light – Serviços<br />

de Eletricidade S.A., onde, ainda menino (14 anos), ingressei como “office-boy”. Na<br />

volta fiz o mesmo trajeto e até dei uma estradinha no prédio da Light, construído em<br />

1911, e que hoje abriga o Centro Cultural Light. O pisar naquele solo me trouxe<br />

emoções fortes.<br />

A propósito, está ocorrendo uma exposição – O Rio Antigo – mostrando, com<br />

fotos de Augusto Malta, a nossa cidade no início deste século. Vemos os bondinhos<br />

“caixa de fósforos” puxados a burros, a tradicional Confeitaria Colombo com seus<br />

freqüentadores "almofadinhas" e os prédios que mais chamavam a atenção na primeira<br />

década deste século: o Hotel Avenida, onde se acha, hoje, o imponente Edifício<br />

Avenida Central e o tradicionalíssimo Park Royal, o “point” da época.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Recentemente fomos passear pelo Méier, era dia de colher algumas fotos para<br />

o livro que estamos escrevendo <strong>sobre</strong> o Méier, em fase final. Passamos inicialmente<br />

pelo terminal rodoviário localizado nas imediações do viaduto Castro Alves; aí batemos<br />

uma foto do pôster em que aparece o Cristo Redentor, colocado nos abrigos dos<br />

ônibus. Lindo! Já do outro lado, passamos pelo novo terminal rodoviário Comendador<br />

158


Américo Ayres, localizado na antiga estação de bondes da Light, passamos também<br />

pelo Colégio Estadual Visconde de Cayru, tradicional no bairro desde o início do século,<br />

onde estudou o sobrinho bisneto do Camarista Meyer e seguimos rumo às Ruas<br />

Marques Leão e Vaz Toledo, onde íamos tirar fotos de duas casas do século passado.<br />

Fomos muito bem recebidos pela Sra. Aida Favre; a casa, com amplo quintal<br />

arborizado, é bem antiga, mas conservada e tem ainda o forro de madeira. Depois de<br />

um gostoso papo com aquela senhora simpática e afável, seguimos nosso caminho.<br />

Ganhamos de um rapaz que trabalha para D. Aida duas gostosas mangas que foram a<br />

nossa <strong>sobre</strong>mesa no almoço deste dia tão gostoso. Quando passamos em frente ao<br />

número 215 da Rua Vaz de Toledo batemos fotos da casa construída em 1879, que<br />

pertenceu à família de Osório Duque Estrada, autor do nosso querido Hino Nacional.<br />

Já de volta para casa, nas esquinas das Ruas Miguel Fernandes com Capitão<br />

Resende, assistimos à passagem da procissão motorizada de Nossa Senhora Aparecida,<br />

cuja igreja fica nas imediações; os motoqueiros eram mais de duzentos. Foi um<br />

espetáculo de fé religiosa que nos comoveu. Fomos atrás para documentar este<br />

grande acontecimento. Não ficamos para assistir à missa campal porque o sol de meio-<br />

dia estava muito forte e já tínhamos andado muito.<br />

Na Rua Aristides Caire, que homenageia o Dr. Aristides Caire (1880-1924),<br />

grande médico do bairro, paramos na Confeitaria Nova Glória a fim de saciar a sede, e<br />

para isso, pedimos um pequeno lanche constando de uma fatia de pizza e refresco de<br />

caju. Apesar de estar bem quente, não dispensei um cafezinho. Contraditório, não!<br />

Aliás, a pizza que comemos na confeitaria, em nada se parecia com a pizza,<br />

que conheço que é um prato de origem italiana feita com massa similar à do pão,<br />

geralmente em forma de disco, que se assa no forno, coberta fartamente com queijo<br />

mussarela, acrescentando-se tomates e orégano; depois de assada, pode-se colocar<br />

azeite de oliva (a inventividade dos pizzaiolos criou grande variedade, como a toscana,<br />

margherita, calabresa, etc.).<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Depois de nossa reunião da "Oficina", por sinal bem proveitosa, passamos na<br />

Alicantina, uma das padarias do bairro, e compramos duas roscas, com massa de<br />

sonho salpicadas de açúcar, para oferecer ao sobrinho e um colega que viriam aqui em<br />

159


casa. Pareciam apetitosas. Quando chegamos em casa, verificamos que, pela<br />

embalagem, as mesmas estavam bem gordurosas, portanto, impróprias para uso de<br />

pessoas da terceira idade. Nossas visitas não vieram, assim, tivemos que degustar<br />

aqueles tentadores acepipes, porém com um certo receio (não recheio), pois<br />

estávamos cometendo um delito alimentar. De fato, embora não fazendo mal, o meu<br />

organismo não digeriu a contento aquela tentação e no dia seguinte ainda sentia os<br />

efeitos de uma <strong>alimentação</strong> inadequada.<br />

Por falar em delitos alimentares, é só dar um passeio pela nossa cidade para<br />

sentir que estamos cercados de muitos deles. Senão, vejamos: quando fazemos uma<br />

refeição fora de nossa casa, embora as condições de higiene do estabelecimento<br />

comercial sejam boas, nem sempre os seus bastidores confirmam isso e até mesmo o<br />

manuseio dos alimentos está fora das especificações recomendadas pelas autoridades<br />

da Fiscalização Sanitária, o que, muitas vezes, prejudica o nosso organismo.<br />

No comércio informal da <strong>alimentação</strong>, as carrocinhas que vendem sanduíches<br />

apresentam risco à nossa <strong>saúde</strong>. É perigosa, também, a venda de produtos do mar e<br />

de outros tipos de <strong>alimentação</strong>, através deste tipo de negócio pois, além dos produtos<br />

não serem de origem conhecida, ficam expostos ao sol, à poeira e sem uma<br />

refrigeração adequada, reduzindo sensivelmente o tempo de duração de sua<br />

qualidade. A venda de água e refrigerante em frascos pequenos aos passageiros dos<br />

ônibus e ocupantes dos automóveis, parados nos pontos e nos sinais, em época do<br />

verão, está crescendo e o manuseio dessas embalagens, pelo vendedor, também deixa<br />

a desejar. Nos supermercados também devemos tomar cuidados para não levar<br />

produtos fora do prazo de validade e latas amassadas, pois nesses casos, a qualidade<br />

do produto fica reduzida.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Desde que comecei a trabalhar, sempre almocei no serviço e, felizmente,<br />

sempre me dei bem com a comida que era preparada no restaurante da firma. Até<br />

mesmo quando o serviço foi terceirizado e a comida vinha congelada, não tive<br />

qualquer problema. O cardápio consistia de feijão, arroz e o prato do dia: carne<br />

assada, carne moída com macarrão, bife à milanesa, peixe, vatapá, purê de ervilha<br />

160


com língua defumada, dobradinha e como <strong>sobre</strong>mesa vinha o tradicional queijo com<br />

goiabada e pudins variados.<br />

Em casa, nossas refeições eram saudáveis e contavam regularmente com<br />

feijão, arroz, carne, massas e, com boa freqüência, dos ensopadinhos que até hoje são<br />

servidos. Um prato que marcou muito as mesas das famílias cariocas foi a “carne<br />

assada com macarronada”. Aos domingos, as famílias se reuniam para aqueles<br />

gostosos bate-papos dos homens, enquanto as senhoras colocavam a conversa em<br />

dia, principalmente o desenvolvimento das crianças nas escolas e suas artes.<br />

Neste vai e volta do presente ao passado, estou me lembrando de uma poesia<br />

que retrata bem um prato gostoso que fazia parte constante do cardápio dominical da<br />

maioria das famílias brasileiras.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Carne assada com macarronada<br />

Domingo<br />

Família reunida<br />

Em volta da mesa<br />

Toalha branquinha<br />

Que beleza!<br />

Família unida<br />

Qual a comida?<br />

Carne assada com macarronada.<br />

Tinha até salada<br />

Da cozinha o cheirinho<br />

Da comida feita com carinho.<br />

Qual a comida?<br />

Carne assada com macarronada.<br />

O suco, o vinho, a cerveja,<br />

Não importados.<br />

Só a alegria importava<br />

161


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

O amor não se esgotava.<br />

E a <strong>sobre</strong>mesa?<br />

Era a alegria!<br />

Compotas e aletria,<br />

Laranja, banana,<br />

Manga, mamão.<br />

Tudo ali na mão<br />

Muitas frutas com certeza<br />

Que beleza a nossa mesa!<br />

Mas o progresso chegou<br />

O micro-ondas simplificou.<br />

Já não se faz<br />

Carne assada com macarronada<br />

Que massada!<br />

Sobremesa?<br />

Industrializada.<br />

E a família?<br />

Desintegrada,<br />

Simplificada.<br />

Já não se faz mais<br />

Carne assada com macarronada<br />

Nem salada.<br />

O suco? a cerveja?<br />

Industrializadas<br />

Ficaram enlatadas.<br />

Resta no coração<br />

A recordação,<br />

162


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

Da família tão amada,<br />

Em volta da mesa<br />

E da:<br />

Carne assada com macarronada.<br />

Talvez,<br />

No fim da jornada,<br />

Talvez no céu<br />

Que beleza,<br />

Jesus reuna em sua mesa<br />

A família abraçada<br />

Com certeza.<br />

E para não faltar nada<br />

Haverá uma surpresa:<br />

Carne assada com macarronada<br />

Que beleza!<br />

(Josepha Barbosa Soares)<br />

A poesia acima nos conduz a duas reflexões. A reunião familiar, tão tradicional,<br />

que acontecia nos encontros dominicais, aos poucos se dilui cada vez mais, pois os<br />

costumes modernos (compromissos imperiosos, trabalho, etc) terminam impondo a<br />

impossibilidade do comparecimento de todos neste ato de confraternização familiar.<br />

Outro aspecto importante da questão é a diminuição acentuada das casas com quintais<br />

e as novas moradias que estão surgindo estão cada vez mais reduzidas, destinadas a<br />

famílias cada vez menores e transformadas em apenas dormitórios.<br />

Outro hábito na maioria dos lares brasileiros, principalmente os católicos, era a<br />

presença indispensável de um quadro retratando a “Ceia de Jesus com seus<br />

Apóstolos”, simbolizando a união da família, principalmente nesta hora tão sagrada<br />

que é a <strong>alimentação</strong>.<br />

* * *<br />

163


Como será no futuro o regime alimentar das pessoas? A modernidade está aí e<br />

a cabeça do ser humano é inesgotável quando procura descobrir algo em prol da<br />

população, mesmo que, para isso, às vezes resulte no sacrifício de alguns... Já há<br />

algum tempo, os soldados que combatiam na guerra recebiam um “kit” de <strong>alimentação</strong><br />

para <strong>sobre</strong>viver em situações de extrema dificuldade. O mesmo já está acontecendo<br />

com os astronautas em seus vôos espaciais, onde, em reduzidos espaços, <strong>sobre</strong>vivem<br />

até seu retorno a Terra. Com a construção de estações orbitais, ou seja, plataformas<br />

de baldeação para novos planetas, o tempo de permanência dessas pessoas deverá<br />

aumentar. Até agora, a utilização de alimentos concentrados em forma de pílulas, que<br />

contém todos os ingredientes necessários à <strong>saúde</strong>, parece que satisfaz.<br />

Os avanços tecnológicos estão chegando a uma boa parte da população do<br />

mundo, trazendo conforto e comodidade. Contudo, um grande contingente humano,<br />

jamais terá acesso a essas melhorias. O número de pessoas que passa fome no mundo<br />

é cada vez maior. No Brasil, este quadro não é diferente e, enquanto isto acontece, a<br />

quantidade de alimentos desperdiçados, desde o produtor até o consumidor, é<br />

enorme.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Um fato interessante que ainda acontece quando ocorrem as reuniões<br />

dominicais é a distribuição da sobra do almoço ou jantar para os animais domésticos:<br />

cães, galinhas, gatos e até mesmo porcos. A reunião da bicharada em torno do<br />

alimento, cada um procurando sorver o mais rápido possível seu quinhão; às vezes, o<br />

mais bobinho fica a ver navios e a fome continua. Hoje, contudo, o tipo de <strong>alimentação</strong><br />

para os bichos, já facilita e garante a ração constante para os mesmos, pois se<br />

apresentam na indicação correta para cada raça. Neste aspecto, os cachorros e gatos<br />

estão levando vantagem pois são considerados quase que um membro da família.<br />

Tenho uma irmã com problemas de <strong>saúde</strong>, sofre do mal de Alzheimer, que tem um<br />

animalzinho de estimação, recomendado pelo médico que a assiste.<br />

Sempre tivemos animais em casa, mas no momento, só temos um canarinho<br />

belga, que já está na terceira idade. Sentimos muita pena dele, pois canta de tristeza<br />

por estar preso. Infelizmente já nasceu preso e soltá-lo agora será a sua morte.<br />

164


Ganhamos de um vizinho quando tinha pouco tempo de vida. É uma espécie destinada<br />

ao cativeiro, mas mesmo assim considero uma crueldade mantê-lo preso. Já tomamos<br />

uma decisão: quando ele falecer, não vamos ter animais em nossa casa. Temos duas<br />

tartarugas, uma com trinta e nove anos (a Fusquinha) e a outra com trinta e três (a<br />

Joinha), que estão na casa de Nicola e Conceição. As nossas tartarugas são primas de<br />

uma outra que lá vive há muitos anos. Elas se alimentam só de verduras e legumes e<br />

muitas vezes entram no estágio de hibernação e ficam semanas quietinhas num canto<br />

que nem parece que existem naquele quintal.<br />

Atualmente, contribuímos mensalmente com a União Societária Protetora de<br />

Animais, na Ilha do Governador. Um dia, o filho viu uma pomba ferida na rua;<br />

recolheu-a e levou ao veterinário que a curou, mas, infelizmente, a bichinha não pode<br />

mais voar. Ficou algum tempo com ela, mas preocupado, pois este tipo de animal<br />

transmite doenças graves nos seres humanos, inclusive a cegueira. Quando viajou, a<br />

bichinha ficou aqui em casa, mas nos deixou a incumbência de colocá-la em uma<br />

organização que cuidasse dela e assim o fizemos, localizando uma senhora que cuida<br />

de vários animais domésticos: quinze cães e dezessete gatos, estes dentro de sua<br />

casa. Quando deixamos a pombinha naquele local, sentimos um aperto no coração,<br />

mas infelizmente não podíamos retê-la em nosso apartamento. Será que ainda vive?<br />

Até mesmo agora, quando escrevo esta parte do trabalho, sinto isto. Foi dura a<br />

separação de Jujuba, Cocada e Agatha, nossos cães de estimação, mas a vida<br />

continua!!!<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Drupa – s.f. (Do lat. drupa, azeitona). Fruto carnoso, formado por apenas um<br />

carpelo, que contém só uma semente. A semente concresce com endocarpo e juntos<br />

formam o caroço (exemplo: pêssego, ameixa, azeitona, amêndoa).<br />

O verde oliva da azeitona, mencionado acima, faz-me recordar o período de<br />

junho de 1953 a abril de 1954, quando servi ao Exército Brasileiro, no Regimento<br />

Floriano – 1º RO-105 na Vila Militar. Procurei servir da melhor maneira enquanto<br />

estava nesta obrigação militar, para retornar à vida civil de ficha limpa, o que<br />

felizmente aconteceu. Ainda guardo duas fotografias do grupo de colegas e também<br />

documentos em que meus superiores comentam o meu desempenho no período em<br />

165


que servi naquela unidade militar. No período em tela, graças a Deus, não houve<br />

nenhum movimento que perturbasse a ordem interna, a não ser uma ou outra<br />

escaramuça e nessas ocasiões nem saí do quartel. Que bom!<br />

É um período da vida do rapaz que deve ser visto com carinho por cada um,<br />

pois o aprendizado dentro das forças armadas torna-o responsável para o resto de sua<br />

vida. É uma verdadeira escola de civismo.<br />

Quanto à <strong>alimentação</strong>, deixava muito a desejar no seu preparo e variedade;<br />

mas, mesmo assim, atendia aos meus anseios, porquanto não tinha recursos<br />

financeiros para complementar minha dieta na cantina. Saía bem cedinho de casa para<br />

chegar à Vila Militar antes do café da manhã e aproveitar a chance, pois gostava muito<br />

do pão que era servido. O almoço, meio brabo, eu encarava com democracia e comia<br />

tudo. Achava que “saco vazio não fica em pé”. Lembro-me dos ensopados,<br />

principalmente, o de cenoura, cujo caldo era verde, pois cozinhavam com as folhas do<br />

produto. Quando vinha aipim, tínhamos que ter dentes fortes para traçar aquele<br />

alimento.<br />

Em datas festivas, lembrando acontecimentos importantes e heróis militares da<br />

nossa história, não vou negar, a comida era bem mais gostosa e até uma dose de<br />

pinga era servida.<br />

Os exercícios eram bem puxados e deles nunca fugi, inclusive as marchas de 8,<br />

l6, 24 e 32 quilômetros que tínhamos que fazer, munidos de fuzil e mochila, com os<br />

equipamentos necessários para os acampamentos. Vi, às vezes, colegas desmaiando<br />

durante o trajeto e recolhidos pela ambulância que dava assistência à tropa. Só não<br />

participei de um desses exercícios porque me acidentei no trem que conduzia à Vila<br />

Militar, no dia 23 de agosto de 1953 (Dia de Maria Quitéria). Fui atendido no Hospital<br />

Guarnição da Vila Militar por recrutas. Imaginem que atendimento... Mas valeu. Hoje,<br />

com satisfação, ostento uma linha extra na palma da minha mão esquerda, dando um<br />

toque de bom acabamento ao “M” de Maria, mãe de Jesus, de melancia, melado,<br />

melão, maçã, mamão, marmelada, de Méier e muitas outras.<br />

Foi um bom período da minha vida. Entrei como recruta, passei a soldado,<br />

depois cabo; só não cheguei a sargento porque o emprego aqui fora estava me<br />

aguardando. Tanto meus superiores, como meus colegas formaram um conjunto legal.<br />

Atualmente, as Forças Armadas estão recrutando moças para a caserna.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

166


<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

São quatro horas da manhã de 27 de outubro e, sem sono, meu cérebro<br />

começa a funcionar fazendo com que os pensamentos registrem inúmeros assuntos<br />

como um caleidoscópio. Entre eles este trabalho que estou realizando com um grupo<br />

muito seleto, composto de Myriam, Augusta, Zefinha, Mabel, Shirley, Renata e<br />

Alessandra. Faz-me sentir importante dentro do complexo <strong>cultura</strong>l que é a UERJ. Em<br />

dado momento, abraço de leve Zefinha para não acordá-la, protegendo-a. Sinto-me<br />

também protegido. Ser sincero ao declarar que é protegido pela esposa é fazer justiça<br />

à mulher, que desempenha todos os magníficos papéis que herdou ao nascer. É muito<br />

bom ter a esposa ao lado para compartilhar nossa existência. Espero que papai do céu<br />

nos conserve juntinhos ainda por muito tempo.<br />

* * *<br />

Aproxima-se o dia 2 de novembro, dia de finados, neste dia, acompanho<br />

Zefinha e Conceição ao Cemitério de São Francisco Xavier, no Caju, para uma visita<br />

aos restos mortais de nossos familiares, o que fazemos há muitos anos. Neste<br />

momento, pensamos: é último capítulo de nossa vida. Quanto aos demais parentes e<br />

amigos, os recordamos, com saudade, com nossas orações.<br />

É dia, também, de lembrar do Barão do Rio Branco (José Maria da Silva<br />

Paranhos, estadista e historiador brasileiro que nasceu no Rio de Janeiro em 1845 e<br />

aqui faleceu em 1912), cujo túmulo está nas imediações. No Jardim do Méier há um<br />

monumento homenageando este grande brasileiro.<br />

* * *<br />

Madrugada de 28 de outubro – sábado. Movimento intenso no Sindicato do<br />

Chopp, um restaurante nas imediações de minha casa; se deixarmos as janelas<br />

abertas, mesmo dormindo, nos alimentaremos a noite toda com o aroma das comidas<br />

servidas.<br />

Foi uma madrugada muito barulhenta devido à realização, na noite anterior, do<br />

jogo de futebol entre as equipes dos Clubes de Regatas Flamengo e Vasco da Gama,<br />

167


tradicionais no Rio de Janeiro. A partida foi vencida pelo Flamengo (4x0) e , depois do<br />

jogo, alguns dos seus torcedores vieram festejar, movidos pela alegria e pelo álcool.<br />

Para gozar os torcedores adversários cantavam hinos debochados e entre eles<br />

um destacava o bacalhau que eu aproveito para inserir neste meu trabalho: muito<br />

apreciado pela carne e pelo óleo de seu fígado, rico em vitaminas A e D. Por isso, é tão<br />

pescado que poucos indivíduos atingem o desenvolvimento máximo. Em geral, aparece<br />

no mercado depois de seco e prensado.<br />

Nas nossas ceias natalinas, o bacalhau é muito apreciado, em forma de<br />

bolinhos e também na salada em que a batata, a azeitona e azeite contribuem para<br />

que este prato fique mais gostoso. Aqui no Rio de Janeiro temos o canal do Bacalhau,<br />

que fica entre a restinga da Marambaia e o continente.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Recebemos, hoje, a visita do Sr. Manoel, senhor de oitenta anos, para receber<br />

nossa contribuição para a União dos Cegos no Brasil, com sede no Encantado e que<br />

funciona desde 1924, onde se encontram trinta deficientes visuais. É um senhor bem<br />

alegre, atualizado e que tem muitas histórias para contar. Conversamos <strong>sobre</strong> riqueza<br />

e pobreza e ele citou que “Pobre é bicho de goiaba”, e então me lembrei que a goiaba,<br />

fruto da goiabeira, foi citada na reunião passada.<br />

Interessante, esta semana, sinto-me fraco para colocar idéias no papel. Uma<br />

coisa está acontecendo: à medida que o programa avança, fica mais e mais aguçada a<br />

minha vontade de aprender <strong>sobre</strong> o nosso corpo, principalmente os órgãos ligados às<br />

funções digestivas. Acho maravilhoso quando pessoas dedicam anos de sua vida<br />

aprendendo a passar para os outros, a maneira correta de se alimentar, para ter uma<br />

vida saudável. No trabalho da Josepha de 23 de outubro, ela mencionou um almoço<br />

festivo no Rincão Gaúcho. Observei que uma Nutricionista, constantemente, se<br />

apresentava no salão, onde estavam sendo servidas as iguarias, para verificar se<br />

estavam em ordem para serem consumidas. Fiquei tranqüilo, tudo estava perfeito. Um<br />

prato que não me atrai muito em restaurante é a salada, pois já senti, em duas<br />

oportunidades, que o mesmo já estava ficando passado.<br />

Coloquei no papel, nos mínimos detalhes, os órgãos encarregados da nossa<br />

<strong>alimentação</strong>, desde a boca até os intestinos, porém, achei que era demais, e que não<br />

168


acrescentaria muita coisa. Por isso risquei tudo, só aproveitando os nomes: então lá<br />

vai: boca, faringe, laringe, esôfago, estômago, fígado, pâncreas e intestinos. Corrijam-<br />

me se falei demais ou esqueci de mencionar mais algum órgão. Se o conjunto destes<br />

órgãos estiver em perfeita harmonia com o que comemos, ou seja, uma dieta<br />

saudável, eles funcionarão a contento por muitos e muitos anos.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Na ocasião em que estava procurando as tais explicações, encontrei o seguinte:<br />

Boca-de-Forno. Brincadeira infantil em que são postas à prova a destreza e a coragem<br />

dos participantes, através de fórmula fixa:<br />

Boca de forno?<br />

Forno.<br />

Tirando o bolo?<br />

Bolo.<br />

Farei tudo o que o mestre mandar?<br />

Por falar em brincadeiras infantis, lembro-me que brinquei muito de “garrafão”,<br />

“carniça”, “pique-esconde”, “cabo de guerra”; para isto tínhamos um imenso quintal de<br />

uma casa de cômodos à Rua José Eugênio nº 23, ao lado da Quinta da Boa Vista.<br />

Nesta ocasião, a rua ainda não tinha calçamento. Lembro-me também que, quando<br />

chovia, eu percorria toda a extensão da rua e geralmente encontrava alguma moeda<br />

que possibilitava a compra de alguma guloseima no botequim de Dona Deuzina,<br />

especialmente as famosas cavacas.<br />

* * *<br />

Desde cedo, gostei muito de futebol. Quando comecei meus estudos primários,<br />

em 1944 no Colégio Salesiano do Jacaré, procurava chegar bem cedo ao colégio, antes<br />

das rezas, para poder participar das “peladas” em que a maioria dos alunos<br />

participava. Havia três campos de futebol que eram usados de acordo com a faixa<br />

etária. Sob os olhares vigilantes dos padres e seminaristas, a garotada corria a valer<br />

169


atrás da bola. Tocada a sineta para a entrada, era um avanço nas torneiras para<br />

lavagem dos pés e a recolocação dos calçados e que, muitas vezes, isto não era<br />

possível, devido ao rigor com que os padres exigiam no cumprimento dos horários<br />

regulamentares. Por causa deste esporte tão gostoso, dez anos mais tarde, ganhei três<br />

parafusos de platina no punho esquerdo, que até hoje fazem parte do meu esqueleto.<br />

Foi um período doloroso para mim, pois além de duas intervenções cirúrgicas,<br />

na segunda fiz companhia a um menino, de pouco mais de um ano, que precisava ser<br />

operado numa das pernas para ficar no mesmo tamanho da outra. Sua cama ficava<br />

mais alta nos pés e sua perninha mais curta ficava presa a um peso de cinco quilos,<br />

preparando para dita cirurgia. A criança ficava muito impaciente e sofria muito e sem<br />

nenhuma companhia, ele se agarrava em mim, como um protetor. Até hoje, aquele<br />

quadro é emociona. Hoje, acredito que a medicina tenha outra forma de resolver casos<br />

como este.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Hoje pela manhã, no programa Bom Dia Brasil, da TV Globo, vimos a entrevista<br />

da Myriam, aluna da UnATI, <strong>sobre</strong> os riscos que cercam as pessoas de idade dentro de<br />

nossas próprias casas. A reportagem acabou focalizando uma casa especialmente<br />

construída para pessoas "jovens" como nós, onde o construtor pensou nos mínimos<br />

detalhes para termos mais conforto e segurança.<br />

Emoção. Assim começo o trabalho desta semana, após assistir na Segunda<br />

Edição do Bom Dia Rio, a última reportagem em que foram focalizados alguns<br />

deficientes físicos se aprimorarem em Dança de Salão, orientados pelo grande<br />

dançarino Carlinhos de Jesus. Não há barreiras quando se tem muita força de vontade<br />

e dedicação, mesmo para pessoas impossibilitadas de se locomoverem normalmente.<br />

* * *<br />

Bem. Não preciso dizer qual foi o nosso almoço desta segunda-feira. Só que<br />

houve uma pequena diferença, ou seja, uma tentação. Isso mesmo, não resistimos ao<br />

desejo de tomar um traguinho do licor Frangelico, um brinde de nossa sobrinha<br />

quando veio aqui em casa. Dividimos uma dose, bem comportada, e creio que não<br />

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chegou a fazer mal, a não ser umas quenturas pelo corpo. No jantar repetimos o<br />

pecado e houve uma surpresa: a Zefinha preparou, como <strong>sobre</strong>mesa, um gostoso<br />

arroz-doce, coisa que não fazia ha bastante tempo.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Para registrar um fato que me ocorreu há muitos anos. Fui visitar um irmão que<br />

residia em Suruí, Distrito de Magé, e sua casa ficava em meio a um quintal com<br />

inúmeras árvores frutíferas, inclusive um frondoso abacateiro, que gentilmente estava<br />

oferecendo os frutos que produzira. Sem hesitar, subi naquela árvore, em busca de<br />

alguns abacates para oferecer à minha namorada, e assim ganhar alguns pontos<br />

perante sua família. Só não contei, na ocasião, com uma residência de marimbondos<br />

que, sem pena atacaram e ferroaram o intruso carioca. Resultado: quando cheguei à<br />

casa da Zefinha, estava meio irreconhecível, principalmente nos lábios, o que foi<br />

hilariante, apesar dos cuidados que fez para não me magoar. Naquela noite, quase não<br />

pude falar, nem beijar a minha amada. São coisas da vida.<br />

Há uma fruta que, nos grandes centros urbanos, como os animais, são<br />

consideradas extintas pela redução, cada vez mais freqüente, de casas com quintais.<br />

Por isso, a título de recordação dos saudosos tempos que não voltam mais, lembrarei<br />

do Abricó. Para ser franco, não me lembro se comi esta frutinha algum dia; e, se comi,<br />

não me lembro do gosto que tem.<br />

* * *<br />

Terminando o meu trabalho desta semana, hoje (20 de novembro), comi uma<br />

comidinha bem gostosinha preparada pela Zefinha, composta de feijão, arroz, uma<br />

farofinha supimpa e uma gostosa roupa velha (roupa velha: carne assada desfiada,<br />

passada na frigideira). Estava muito gostoso este almoço bem simples. Como<br />

<strong>sobre</strong>mesa: maçã.<br />

Sexta-feira é o dia em que, nas imediações de onde residimos, as pessoas se<br />

dirigem aos bares, lanchonetes e restaurantes para, depois de cinco dias de trabalho,<br />

praticarem uma boa dose de descarrego emocional para suportar a pressão a que são<br />

submetidas. O “baixo Méier”, impropriamente denominada a área do centro do nosso<br />

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airro, pelo Projeto Rio Cidade – numa infeliz alusão ao “Coração do Méier” – fica em<br />

reboliço. Muitos aniversários são comemorados entre colegas e amigos, e às vezes, os<br />

pais ficam em casa chupando dedo, aguardando o filho ou a filha aniversariante. São<br />

coisas do modernismo.<br />

Aproveitando este embalo, eu e a Zefinha fomos até à galeria do Imperator,<br />

onde está montada uma feira comercial, que vai até o Natal, e tomamos duas porções<br />

de vinho do Rio Grande do Sul, da marca Graviollo, acompanhadas de uns bolinhos de<br />

bacalhau. Tanto o vinho como os bolinhos estavam gostosos e ao sairmos dali, tivemos<br />

que caminhar um pouquinho, pois estávamos um tanto alegrinhos. Não foi uma<br />

refeição normal, mas valeu. Para arrematar a noite, tomamos um bom copinho de leite<br />

desnatado e fomos deitar. Foi um fim de noite alegre e diferente.<br />

<strong>Sabores</strong> & <strong>Lembranças</strong><br />

* * *<br />

Hoje foi a última reunião do grupo Alimentação e Memória. Como as outras,<br />

esta foi uma manhã bem gostosa. Fomos para o encontro, munidos de garrafa<br />

térmica, xícaras, colheres, açúcar, saches de chá, guardanapos, toalha e biscoitos. Foi<br />

uma confraternização de encerramento das aulas muito doce. Só faltaram as<br />

bolachinhas de água e sal... A colega Augusta não pode comparecer, em virtude de<br />

uma fratura no ombro esquerdo, devido a uma queda em sua residência. Com Mabel,<br />

Shirley, Myriam, Zefinha e eu, compusemos o grupo que no decorrer das reuniões<br />

semanais, vamos colocando no papel, passagens de nossa vida dentro do tema:<br />

Alimentação.<br />

i Nome de novela da Rede Globo<br />

FFFFFFFFiiiiiiiimmmmmmmm<br />

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