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Câmara dos Deputados<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong>
mesa DiRetoRa Da CâmaRa Dos DePutaDos<br />
53 a legislatuRa – 1 a sessão legislativa<br />
Presidente<br />
Arlindo Chinaglia<br />
1 o Vice-Presidente<br />
Narcio Rodrigues<br />
2 o Vice-Presidente<br />
Inocêncio Oliveira<br />
1 o Secretário<br />
Osmar Serraglio<br />
2 o Secretário<br />
Ciro Nogueira<br />
3 o Secretário<br />
Waldemir Moka<br />
4 o Secretário<br />
José Carlos Machado<br />
1 o Suplente de Secretário<br />
Manato<br />
2 o Suplente de Secretário<br />
Arnon Bezerra<br />
3 o Suplente de Secretário<br />
Alexandre Silveira<br />
4 o Suplente de Secretário<br />
Deley<br />
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Plenarium. - Ano IV, n. 4 (jun. 2007) - Brasília : Câmara dos<br />
Deputados, Coordenação de Publicações, 2007.<br />
271 p. : il. color.<br />
ISSN 1981 - 0865<br />
1. <strong>Reforma</strong> política, Brasil. 2. <strong>Política</strong> e governo, Brasil. 3.<br />
Biossegurança, Brasil. 4. Meio ambiente, Brasil.<br />
CDU 32.001.7(81)
Apresentação .............................. 4<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Alexandre Cardoso .................................................. 10<br />
<strong>Reforma</strong> política: prioridade da democracia<br />
Maurício Rands ...................................................... 14<br />
A inadiável reforma do sistema eleitoral<br />
Ronaldo Caiado ...................................................... 24<br />
Com o atual sistema, não há salvação<br />
Sandra Starling ...................................................... 30<br />
A reforma política desejável<br />
Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff .............. 38<br />
O próximo passo<br />
Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi .......... 50<br />
<strong>Reforma</strong> política: notas de cautela sobre<br />
os efeitos de escolhas institucionais<br />
Fabiano Santos ...................................................... 60<br />
Agenda oculta da reforma política<br />
Jairo Nicolau ......................................................... 70<br />
Cinco opções, uma escolha: o debate sobre a reforma<br />
do sistema eleitoral no Brasil<br />
Bruno P. W. Reis ..................................................... 80<br />
O presidencialismo de coalizão sob pressão: da<br />
formação de maiorias democráticas à formação<br />
democrática de maiorias<br />
Octavio Amorim Neto .............................................104<br />
Valores e vetores da reforma política<br />
José Antônio Giusti Tavares .....................................112<br />
Quatro questões pontuais da reforma política<br />
Wilhelm Hofmeister ................................................128<br />
Democracia, governabilidade, estabilidade:<br />
os pilares do Direito Eleitoral alemão como<br />
referência para reflexões, visando a uma<br />
reforma do sistema eleitoral brasileiro<br />
Olhar Externo<br />
Brian Kerr ............................................................142<br />
O artigo 2º da Convenção Européia de Direitos<br />
Humanos e o dever de efetivamente investigar<br />
Idéias e Leis<br />
Palavras e História<br />
Casimiro Neto .......................................................226<br />
<strong>Reforma</strong> eleitoral – Lei nº 842, de 1855<br />
(Lei dos Círculos Eleitorais)<br />
Leituras<br />
Sumário<br />
Balanço da 52 a Legislatura<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo . 154<br />
Para um balanço da 52 a legislatura<br />
José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella .......198<br />
Transgênicos, biossegurança e o Congresso Nacional<br />
Meio Ambiente<br />
Fábio Feldmann ....................................................216<br />
Mudanças climáticas: o grande desafio da Humanidade<br />
Antônio Octávio Cintra ...........................................250<br />
A origem é o sistema eleitoral<br />
Paulo Roberto de Almeida .......................................253<br />
O seu, o meu, o nosso dinheiro…<br />
Fronteiras da sociedade global<br />
Perfil do Artista<br />
Luis Humberto ......................................................264<br />
Fotografia: a reinvenção do real
4 |<br />
Apresentação<br />
A reforma política, tema deste número de Plenarium, tem freqüentado o<br />
debate público brasileiro de longa data, com acentuada presença, em particular,<br />
nos anos recentes, após o começo da Nova República.<br />
Seria idiossincrasia brasileira querer reformar os lineamentos da política do<br />
país tão pouco tempo após uma Assembléia Nacional Constituinte? Não nos pa-<br />
rece ser o caso. Em política, como em outras esferas de decisão, impõe-se uma<br />
perspectiva experimental. De tempos em tempos, é preciso reexaminar a moldura<br />
política do país e ver como está funcionando, se está ajudando ou não o país a<br />
enfrentar com competência os desafios do tempo presente e capacitando-o para<br />
um futuro melhor, num contexto global de muita competição entre as nações. A<br />
democracia não é um regime estático, senão arranjo cuja possibilidade de aper-<br />
feiçoamento deve estar sempre presente.<br />
Se o tema “reforma política” é recorrente entre nós, as propostas concretas<br />
de reforma não têm, todavia, prosperado em sua tramitação legislativa. Em boa<br />
parte, tal se deve à incerteza quanto a seus efeitos sobre as carreiras dos próprios<br />
parlamentares. Novas regras trazem insegurança. Por essa razão, em várias das<br />
propostas contempladas ao longo dos anos, com prudência se estipula, quase<br />
sempre, uma data futura para as disposições entrarem em pleno vigor. Entretan-<br />
to, essa estipulação não tem bastado para facilitar as coisas.<br />
Um outro fator importante milita contra as tentativas de reformar a política,<br />
ou seja, o problema que as propostas visam a enfrentar não é visto sob a mesma<br />
ótica por todos. Raramente, quando se louva ou se critica nosso sistema político,<br />
os valores contemplados são os mesmos. Em conseqüência, discrepam os diagnós-<br />
ticos e as propostas corretivas. Mais séria ainda, entre muitos dos que tratam do
tema, seja em defesa de reformas, seja em oposição a elas, é a falta de explicitação<br />
dos critérios usados. Quais merecem maior ponderação e por quê? Avaliar em fun-<br />
ção de apenas um critério, qualquer que ele seja – governabilidade, participação<br />
e incorporação políticas, clareza das opções em jogo nas eleições, liberdade de<br />
o eleitor escolher o candidato, e não apenas o partido, solidez das agremiações<br />
partidárias, lisura dos pleitos, inteligibilidade dos resultados para o eleitor, entre<br />
outros – é sem dúvida insuficiente, mas é o que quase sempre se faz.<br />
Pode-se talvez alegar que muito do que se vê como “problema” em nossa<br />
política seja na verdade peculiar ao funcionamento democrático. Não se pode, na<br />
democracia, liminarmente excluir interesses da mesa de negociações, como fazem<br />
as ditaduras. As decisões democráticas tendem a ser mais demoradas, a governa-<br />
ção se torna bem mais árdua e é sempre vulnerável a críticas.<br />
Entretanto, continua de pé a necessidade de avaliar o próprio funcionamento<br />
democrático, não para condenar o regime, mas para aperfeiçoá-lo. A qualidade<br />
da democracia não é um valor constante, senão uma variável. Há democracias<br />
que funcionam bem, outras nem tanto. E a democracia brasileira, pela escolha<br />
constitucional do presidencialismo, defronta-nos com desafios especiais. Para<br />
operar bem, sem perder a essência democrática, esse sistema requer uma delicada<br />
e complexa engenharia política. Já a teremos atingido? Ou é o chamado “presi-<br />
dencialismo de coalizão” um arranjo precário, demasiado dependente de extraor-<br />
dinárias virtudes de seus praticantes para funcionar, em vez de assegurado pela<br />
boa operação de suas instituições? Eis aí, sem dúvida, um dos cernes do debate<br />
que é preciso fazer nesta altura.<br />
Em suma, a reforma política não tem receita pronta e consensual. Não se<br />
justifica, porém, pôr de lado a discussão do regime que temos e adiar o esforço de<br />
aprimorá-lo com medidas factíveis, mesmo quando falte certeza absoluta sobre<br />
todos os efeitos que elas possam ter. Se o status quo é ruim, não há por que lhe<br />
dar prioridade no confronto com propostas de mudança que, no cômputo geral,<br />
ofereçam perspectivas melhores, com o argumento de já conhecermos como as<br />
coisas operam nos arranjos presentes e desconhecermos o que nos reservam as<br />
reformas. A assim proceder, o conformismo levará sempre a melhor, quando há<br />
ainda muito a fazer para nosso regime lograr, de forma equilibrada, estabilidade,<br />
eficácia e legitimidade.<br />
O leitor encontrará, no núcleo temático de Plenarium, uma ampla discussão<br />
da reforma política, vista tanto sob a ótica de líderes políticos quanto sob a de ex-<br />
Revista Plenarium | 5
6 |<br />
Apresentação<br />
poentes da academia. Os prós e contras de algumas das propostas mais conhecidas<br />
são tratados com rigor de argumentação e empenho persuasivo, e certamente irão<br />
iluminar, sem simplificá-lo, o debate do assunto entre os cidadãos interessados e,<br />
em particular, entre os que sobre ele vão decidir no Congresso. É o que almejamos<br />
ao dedicar este número de Plenarium a matéria tão crucial e controversa.<br />
Note-se que, ao lado dos textos atuais relativos à reforma política, Plenarium<br />
publica também um valioso documento histórico, comentado e transcrito pelo<br />
historiador Casimiro Neto. Trata-se da defesa do projeto de que resultou a Lei dos<br />
Círculos Eleitorais (Lei nº 842, de 1855), feita pelo deputado Eduardo Ferreira<br />
França, representante da Bahia, em sessão de 25 de agosto de 1855. A manifes-<br />
tação do parlamentar é um sólido arrazoado em prol do voto distrital e é subsídio<br />
para o debate de hoje.<br />
Assim como nos números anteriores, Plenarium traz, em sua seção Olhar<br />
Externo, um texto relevante para o cotejo de nossa realidade com a de outras<br />
sociedades democráticas contemporâneas. Trata-se de palestra de Sir Brian Kerr,<br />
chefe do Judiciário na Irlanda do Norte, proferida na Conferência Inter-Regional<br />
sobre Sistemas de Justiça e Direitos Humanos, realizada em Brasília, em 2006,<br />
com patrocínio do Conselho Britânico. Kerr tratou do art. 2º da Convenção para<br />
a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. Por ser a<br />
Convenção, essencialmente, um tratado entre Estados soberanos e não uma lei<br />
devidamente promulgada no âmbito do Reino Unido, a jurisprudência lhe proibia<br />
a aplicação no direito interno. Depois, no entanto, da entrada em vigor do Hu-<br />
man Rights Act, em 2 de outubro de 2000, a Convenção tornou-se diretamente<br />
aplicável nos tribunais britânicos. O artigo, além da importância substantiva do<br />
tópico, chama-nos a atenção para o crucial problema de integração das normas<br />
de convenções internacionais ao direito nacional.<br />
A seção Idéias e Leis deste número trata de uma das proposições mais<br />
significativas produzidas pela 52ª Legislatura – a Lei nº 11.105/2005 (Lei de<br />
Biossegurança). O artigo dos consultores legislativos José Cordeiro de Araújo e<br />
Rodrigo H. C. Dolabella, que assessoraram os relatores da matéria ao longo de sua<br />
tramitação na Câmara mostra, com objetividade, como o Legislativo desincum-<br />
biu-se com elevado espírito democrático e proficiência da difícil missão de elabo-<br />
rar uma lei cujo objeto, crítico para o desenvolvimento nacional, é extremamente<br />
complexo e conflituoso. Nele, os aspectos técnicos e científicos são indissociáveis<br />
dos ideológicos e políticos, e a decisão exigiu muito debate, audiência da comu-
nidade científica, consulta aos setores interessados e demorada negociação, para<br />
que a deliberação, impossível de contentar a todos na inteireza de suas posições,<br />
fosse entretanto considerada legítima, porque democraticamente feita.<br />
Plenarium considerou oportuno, também, trazer um balanço da 52ª Legisla-<br />
tura. Três cientistas políticos, Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo<br />
Melo, examinam imensa gama de dados da atividade legislativa no quadriênio<br />
passado, provendo um retrato bastante completo e isento de como operou a Câ-<br />
mara dos Deputados no período.<br />
Uma nova seção integra também a matéria deste número, a dedicada ao<br />
meio ambiente. O tema ganhou urgência neste começo de século. Uma revista<br />
do Poder Legislativo tem de acolhê-lo e contribuir para que se torne um dos fo-<br />
cos do debate público nos anos vindouros. Para inaugurar a seção, convidamos o<br />
ex-deputado Fábio Feldmann, um dos mais ativos e constantes propugnadores da<br />
causa ambiental entre nós.<br />
Queremos expressar nosso agradecimento aos inúmeros colaboradores que<br />
nos honraram com seus artigos neste número de Plenarium. Além dos anterior-<br />
mente citados, agradecemos ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ao<br />
ex-ministro Eduardo Graeff, aos deputados federais Alexandre Cardoso, Maurício<br />
Rands e Ronaldo Caiado, à ex-deputada federal Sandra Starling e aos professo-<br />
res Argelina Cheibub Figueiredo, Bruno Reis, Fabiano Santos, Fernando Limongi,<br />
Jairo Nicolau, José Antônio Giusti Tavares, Octavio Amorim Neto, Paulo Roberto<br />
Almeida e ao Diretor do Centro de Estudos da Fundação Konrad Adenauer no<br />
Brasil, o cientista político Wilhelm Hofmeister.<br />
Nada mais apropriado para ilustrar uma revista que trata da reforma política<br />
do que as imagens feitas por um repórter fotográfico que conviveu durante anos<br />
com o poder. Plenarium traz neste número uma pequena mostra do trabalho de<br />
quarenta anos do fotógrafo Luis Humberto. Um dos maiores nomes do fotojorna-<br />
lismo brasileiro, além de professor universitário e pensador da Fotografia, Luis<br />
Humberto trabalhou nos anos 60 e 70 em revistas semanais, retornou à Uni-<br />
versidade nos anos 80 e nos últimos anos publicou diversos livros sobre o fazer<br />
fotográfico. É mais uma participação que nos honra.<br />
Jorge Henrique Cartaxo<br />
Revista Plenarium | 7
Palácio do Planalto, 1979. Foto de Luis Humberto.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
• Alexandre Cardoso<br />
<strong>Reforma</strong> política: prioridade da democracia<br />
• Maurício Rands<br />
A inadiável reforma do sistema eleitoral<br />
• Ronaldo Caiado<br />
Com o atual sistema, não há salvação<br />
• Sandra Starling<br />
A reforma política desejável<br />
• Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff<br />
O próximo passo<br />
• Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi<br />
<strong>Reforma</strong> política: notas de cautela sobre<br />
os efeitos de escolhas institucionais<br />
• Fabiano Santos<br />
Agenda oculta da reforma política<br />
• Jairo Nicolau<br />
Cinco opções, uma escolha: o debate sobre a<br />
reforma do sistema eleitoral no Brasil<br />
• Bruno P. W. Reis<br />
O presidencialismo de coalizão sob pressão: da formação<br />
de maiorias democráticas à formação democrática de maiorias<br />
• Octavio Amorim Neto<br />
Valores e vetores da reforma política<br />
• José Antônio Giusti Tavares<br />
Quatro questões pontuais da reforma política<br />
• Wilhelm Hofmeister<br />
Democracia, governabilidade, estabilidade:<br />
os pilares do Direito Eleitoral alemão como referência<br />
para reflexões, visando a uma reforma do sistema eleitoral brasileiro
10 |<br />
Alexandre Cardoso*<br />
<strong>Reforma</strong> política:<br />
prioridade da democracia<br />
A raiz da maioria dos problemas políticos brasileiros está na ineficiência histórica da<br />
educação no país. Sem conhecimentos necessários para distinguir as funções e interdependências<br />
de cada poder constitutivo de nossa democracia, o cidadão confunde atribuições e<br />
“compra gato por lebre”. Prova disso é que, três meses após a eleição, um terço dos eleitores<br />
não lembra mais em quem votou para deputado. Por oportunismo ou ignorância, os candidatos<br />
a parlamentar reforçam o modelo “toma lá, dá cá”, prometendo benefícios que não<br />
podem ou não deveriam cumprir. Recente levantamento sobre o perfil da nova composição<br />
da Câmara dos Deputados aponta que dois terços dos parlamentares foram eleitos, direta<br />
ou indiretamente, graças ao assistencialismo.<br />
O atual e exaurido modelo Centros sociais ou religiosos, apesar de necessários diante da omissão<br />
político-eleitoral é o do Estado, oferecem assistência médica, odontológica e alimentícia como<br />
principal ingrediente do instrumento de realização de projetos políticos individuais, desvirtuando o<br />
desprestígio e da corrupção objetivo filantrópico. Poucos se apresentam ao eleitor com idéias, ideais ou<br />
do parlamento brasileiro propostas de debate sobre, por exemplo, o papel do Mercosul, da reforma<br />
em todas as esferas tributária ou do marco regulatório do saneamento básico.<br />
O atual e exaurido modelo político-eleitoral é o principal ingrediente<br />
do desprestígio e da corrupção do parlamento brasileiro em todas as esferas. Um modelo em<br />
que o voto no candidato “A” elege o candidato “B”. Somente seis por cento dos candidatos<br />
atingem o quociente eleitoral, enquanto o restante se beneficia de votos alheios. Esse tipo<br />
de política, aliado à manipulação da assistência social, é a responsável pela eleição de “simpatizantes”<br />
do narcotráfico, do roubo de cargas e do tráfico de armas.<br />
Além do óbvio investimento em educação, acredito ser necessária a redivisão geográfica<br />
do país e, conseqüentemente, a revisão dos conceitos de município dentro do mapa<br />
político-eleitoral do Brasil. O princípio de igualdade entre as unidades da Federação está<br />
resguardado pela distribuição equânime de vagas no Senado Federal. No entanto, é preciso<br />
rever os critérios das eleições proporcionais. Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, concentra<br />
mais eleitores que todo o Estado do Amapá. O ex-território e seus cerca de quinhentos mil<br />
habitantes elegem tantos deputados federais quanto o Distrito Federal, que tem população<br />
na casa dos dois milhões. Ou seja, um voto amapaense vale cinco vezes mais que o voto<br />
brasiliense.<br />
*Alexandre Cardoso, deputado federal, PSB/RJ, é atualmente secretário estadual de Ciência e Tecnologia do Rio de<br />
Janeiro. Presidiu a Comissão Especial da <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong> na 52ª legislatura (2003-2007).
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Revista Plenarium<br />
| 11
12 |<br />
Alexandre Cardoso<br />
A reforma possível<br />
A Comissão Especial de <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong>, que tive a oportunidade de presidir, realizou<br />
dezenas de reuniões, audiências públicas e seminários, com especialistas brasileiros e estrangeiros,<br />
para discutir as vantagens e desvantagens dos sistemas político, partidário e eleitoral<br />
do Brasil. Nenhuma das proposições decorrentes desse debate, como a PEC 548-B e os<br />
Projetos de Lei de nos 5.268, 1.712 e 2.679, obtiveram pleno consenso dos parlamentares.<br />
Em dezembro de 2003, a comissão aprovou o anteprojeto de lei nº<br />
No modelo atual, os 2.679, o mais completo entre todos, que dispõe sobre o voto de legenda em<br />
recursos de campanha são listas partidárias preordenadas, o financiamento de campanha, as coligações<br />
provenientes de desvio de partidárias, a instituição de federações partidárias, o funcionamento parla-<br />
verbas públicas, dinheiro mentar, a propaganda e pesquisas eleitorais. A proposição seguiu para a Co-<br />
do narcotráfico, do tráfico missão de Constituição e Justiça e de Cidadania, recebeu análise do relator,<br />
de armas, do roubo de deputado Rubens Otoni, no final de 2004, e durante todo o ano de 2005<br />
cargas e do abuso do poder ficou estagnada por falta de vontade política. A última ação que consta do<br />
econômico. A comissão controle de tramitação da matéria é um requerimento de urgência de minha<br />
chegou à conclusão de autoria, assinado por todos os líderes da Câmara em agosto de 2006.<br />
que somente vinte por Entre as principais divergências ao PL nº 2.679/2003 estão a lista<br />
cento do dinheiro de fechada de candidatos, a fidelidade partidária e o financiamento de cam-<br />
campanha é declarado<br />
panha. No entanto, essas são as mudanças mais prementes e possíveis de<br />
serem votadas diante da atual cultura política de nosso país.<br />
No sistema de listas fechadas, os filiados de um partido votam e escolhem uma relação de<br />
candidatos que concorrerão às eleições pela legenda. Esse mecanismo fortalece as siglas e, indiretamente,<br />
estimula aqueles que quiserem ser candidatos a manterem-se fiéis aos ideais e projetos<br />
do seu partido, sob pena de serem excluídos do processo eleitoral pelos correligionários.<br />
Atualmente, apenas Brasil, Chile, Peru, Polônia e Finlândia adotam listas abertas.<br />
A fidelidade partidária como obrigação legal não existe em democracia alguma do<br />
planeta, mas as migrações entre legendas podem ser desencorajadas por medidas simples.<br />
Recentemente, a Câmara alterou seu Regimento Interno estipulando que as comissões permanentes<br />
da Casa serão distribuídas entre os partidos, proporcionalmente, de acordo com o<br />
resultado das eleições. Antes, o aumento ou redução do número de comissões de uma determinada<br />
legenda dependia do vaivém de parlamentares, instigados pelo balcão de negócios<br />
promovido anualmente pelos partidos. Entre janeiro de 2003 e outubro de 2005, mais de<br />
180 deputados federais trocaram de partido.<br />
As listas fechadas, mistas ou não, são pressupostos para a implementação do financiamento<br />
público de campanha porque facilitam o controle contábil dos recursos. Depois de<br />
definidos os critérios e pré-requisitos para a obtenção do financiamento, a Justiça Eleitoral<br />
fiscalizaria as contas do partido, e não do candidato. Isso significa que o TSE e os TREs<br />
focariam sua atenção nas contas das trinta agremiações políticas existentes hoje.<br />
Aos que duvidam da eficácia do financiamento público, vale apresentar o resultado de<br />
uma pesquisa que a Comissão Especial de <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong> realizou sobre o tema. No modelo<br />
atual, os recursos de campanha são provenientes de desvio de verbas públicas, dinheiro
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
do narcotráfico, do tráfico de armas, do roubo de cargas e do abuso do poder econômico. A<br />
comissão chegou à conclusão de que somente vinte por cento do dinheiro de campanha é declarado.<br />
Todo o resto é “caixa dois”. Afinal, ninguém crê que nas eleições municipais de 2004<br />
um vereador gastou, em média, apenas R$ 916,45 para se eleger, conforme dados do TSE.<br />
Também foi possível determinar as origens lícitas: nas campanhas para prefeito, as<br />
doações são de empresas de lixo, de ônibus, de iluminação e de serviços; para governador, o<br />
dinheiro vem de empreiteiras e obras; para presidente, do Sistema Financeiro. Nesses casos,<br />
cada centavo vem acompanhado de expectativa de retorno por parte do doador.<br />
A reforma política já foi declarada prioridade pelo então presidente Fernando Henrique<br />
Cardoso, pelos ex-presidentes do PT José Dirceu e José Genoíno, pelo ex-presidente<br />
da Câmara dos Deputados Aécio Neves, e pelo presidente Lula na campanha de 2002. A<br />
importância da reforma foi novamente reforçada por Luiz Inácio Lula da Silva após a confirmação<br />
de sua reeleição. Desta vez, diante dos acontecimentos políticos recentes, creio<br />
que a sociedade não permitirá que a Justiça, o Palácio do Planalto ou o Congresso Nacional<br />
negligenciem a votação de uma proposta que pretenda disciplinar, racionalizar e modernizar<br />
nosso sistema político-eleitoral.<br />
A renovação de cerca de cinqüenta por cento da Câmara dos Deputados exigirá novos<br />
debates sobre a reforma política. Porém, o tripé financiamento-fidelidade-listas foi amplamente<br />
discutido e está pronto para ser votado em 2007. De minha parte, acredito que essa<br />
é a reforma possível, mas não a desejável. Esses três mecanismos pavimentarão o caminho<br />
para uma outra reforma, mais ampla, mais profunda.<br />
Ao longo do período em que presidi a comissão especial, tive a oportunidade de conhecer<br />
experiências bem-sucedidas de outros países, ouvir especialistas, realizar pesquisas e<br />
debruçar-me sobre vasta bibliografia política, partidária e eleitoral. Influenciado por todas<br />
essas informações, construí um modelo de reforma política que necessitaria de uma constituinte<br />
exclusiva para a implementação do voto distrital misto, os candidatos nacionais, das<br />
câmaras municipais regionais e do fim do sistema bicameral no Congresso brasileiro. Mas<br />
essa é uma outra história.
14 |<br />
Maurício Rands*<br />
A inadiável reforma<br />
do sistema eleitoral<br />
1) Breve diagnóstico do atual sistema<br />
Concluídas as eleições gerais de 2006, algumas patologias do atual sistema eleitoral<br />
brasileiro repetiram-se no país inteiro. Foi muito grande o abuso do poder econômico. Bairros<br />
e municípios inteiros transformados em “bocas de urnas” remuneradas, mero disfarce à<br />
compra de votos declarada. Uma mesma pessoa integrando mais de uma<br />
A mercantilização lista. Houve um recrudescimento das formas individualistas de solução de<br />
do voto é maior nas problemas: como a ação do Estado ainda é lenta e burocrática, as pessoas<br />
eleições legislativas, mas inclinam-se a se valer da eleição para obter favor imediato dos políticos.<br />
também contamina o Nessa busca por extrair proveito imediato das eleições, vai se fortalecendo<br />
voto para os executivos<br />
o personalismo na política. A mercantilização do voto é maior nas eleições<br />
legislativas, mas também contamina o voto para os executivos. No processo,<br />
os programas e princípios partidários empalidecem. Multiplicam-se as estratégias de<br />
“chapinhas” aglutinando legendas de aluguel cuja capacidade de atingimento do quociente<br />
eleitoral é inversamente proporcional à força do programa. Tudo somado, a conclusão é<br />
fácil. Embora o problema tenha causas profundas em nossa distorcida cultura política e<br />
no próprio processo de formação do Estado patrimonialista, fica difícil negar que as atuais<br />
regras do sistema eleitoral facilitam o fenômeno.<br />
No dizer de Giovanni Sartori (1994), os sistemas eleitorais classificam-se de dois modos.<br />
Primeiro, segundo o modo como os votos são transformados em vagas: sistemas majoritário<br />
ou proporcional. Depois, segundo o modo como se selecionam os candidatos e se<br />
definem os eleitos. O mais importante, porém, é saber a quem cabe a definição da ordem<br />
dos eleitos: se aos eleitores ou se aos partidos. Num extremo, a completa personalização<br />
do voto proporcional verifica-se no caso do voto singular transferível, conhecido como<br />
Sistema de Hare, onde o eleitor assinala o(s) nome(s) de seu(s) candidato(s) em ordem de<br />
preferência, sem qualquer referência ao partido. Tal sistema prevaleceu no Japão até 1993.<br />
No outro extremo, o voto de lista partidária fechada atribui ao partido a definição da ordem<br />
dos nomes a serem eleitos, não podendo o eleitorado inverter essa ordem. Diversos arranjos<br />
intermediários atribuem maior ou menor peso ao eleitor ou ao partido na fixação da ordem<br />
dos eleitos. Nesta área está a lista aberta – não preordenada –, em que o partido apresenta a<br />
sua “chapa”, mas os eleitores é que vão definir a ordem dos eleitos. O Brasil, como se sabe,<br />
*Maurício Rands, Doutor pela Universidade de Oxford, é deputado federal pelo PT/PE e professor de Direito da UFPE.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
adota para a escolha de deputados e vereadores esse sistema proporcional de lista partidária<br />
aberta; para o Executivo e senadores, o sistema majoritário.<br />
Na legislatura passada, a Câmara dos Deputados deu andamento à reforma política<br />
através do Projeto de Lei nº 2.679/2003, que, depois de aprovado em Comissão Especial<br />
e na Comissão de Constituição e Justiça, encontra-se pronto para ser votado em Plenário.<br />
Ou, ao menos, para servir de ponto de partida de uma nova rodada de discussões que, espera-se,<br />
conduzam ao tão aguardado aperfeiçoamento do atual sistema.<br />
2) Dois valores a perseguir: representatividade e governabilidade<br />
A representação política do povo brasileiro tem defeitos e virtudes que refletem a sociedade.<br />
Esta Casa é espelho da diversidade e do pluralismo que é inerente às democracias contemporâneas.<br />
De um modo ou de outro, as reivindicações de diferentes segmentos sociais<br />
encontram uma forma de manifestação nas comissões e no Plenário. O que nem sempre<br />
ocorre é a inteira correspondência entre os interesses populares e as decisões do Legislativo,<br />
pelo menos na proporção e intensidade sentida pelos setores sociais mais desfavorecidos e<br />
com menos poder de representação. Se isso é verdade, uma das explicações<br />
A representação política para essa falta de correspondência pode residir nas regras do nosso sistema<br />
do povo brasileiro tem eleitoral. Elas favorecem ou dificultam uma melhor expressão dos reais<br />
defeitos e virtudes que interesses de cada setor e do conjunto da sociedade? Trata-se de um proble-<br />
refletem a sociedade. ma comum a todas as democracias: o da representatividade, autenticidade<br />
Esta Casa é espelho ou legitimidade da representação política. É anseio democrático básico a<br />
da diversidade e do busca da realização deste valor, o valor da representatividade.<br />
pluralismo que é Um outro valor perseguido pelas sociedades democráticas é o da ca-<br />
inerente às democracias pacidade de governar. Quando os cidadãos delegam poderes às autoridades<br />
contemporâneas<br />
para que estas administrem o Estado, eles o fazem na expectativa de que<br />
suas necessidades de segurança, justiça, educação, saúde e demais serviços<br />
públicos sejam satisfeitas. Inúmeras pesquisas realizadas recentemente sobre cultura política<br />
(cf., por exemplo, Os Brasileiros e a Democracia, de José Álvaro Moisés) mostram que a<br />
adesão à democracia representativa tem forte correlação positiva com a capacidade do Estado<br />
de direito democrático de cumprir com efetividade suas atribuições. Como lembra o<br />
Prof. Ronald Dworkin, em sua monumental obra sobre o Princípio da Igualdade (2000), a<br />
própria legitimidade do Estado contemporâneo passa a depender da sua capacidade de tratar<br />
igualmente todos os cidadãos. O que vale dizer, a legitimação do Estado depende de sua<br />
capacidade de cumprimento de atribuições que assegurem um tratamento igualitário básico<br />
para todos. Quanto mais eficazes as políticas públicas para satisfação das necessidades da<br />
população, mais o Estado ganhará legitimidade. E, portanto, mais fortalecido será o regime<br />
democrático. Daí se segue que o regime democrático, para sua própria sustentabilidade, deve<br />
enfrentar o problema da governabilidade e da eficiência do funcionamento do Estado. Por<br />
isso, a discussão sobre a nossa reforma política, à luz desta reflexão, precisa levar em conta o<br />
importante elemento da capacidade de governo do Estado brasileiro. Precisa responder à indagação<br />
sobre os efeitos do atual sistema eleitoral na eficiência das nossas políticas públicas.<br />
Revista Plenarium | 15
16 |<br />
Maurício Rands<br />
3) O sistema eleitoral brasileiro favorece o valor<br />
representatividade ou autenticidade da representação política?<br />
Quando se contrapõem os sistemas majoritário e proporcional, é comum o argumento<br />
de que o último favorece uma melhor representatividade da sociedade na medida em que a<br />
diversidade de interesses encontraria expressão nos diferentes partidos que expressam essas<br />
posições. Os interesses minoritários ficariam mais bem protegidos porque não precisariam<br />
da aprovação majoritária para obter representação no parlamento. Pois bem, o regime hoje<br />
seguido no Brasil é o proporcional e não existem muitas proposições objetivando a introdução<br />
do sistema majoritário através do voto distrital. Penso que não estão presentes as<br />
condições para uma alteração tão brusca quanto seria a adoção do sistema majoritário para<br />
eleição dos membros da Câmara dos Deputados, das assembléias legislativas e das câmaras<br />
municipais, visto que importantes correntes de opinião e interesses específicos poderiam<br />
ficar ainda mais sub-representados do que já o são.<br />
Mas será que o regime proporcional fundado no voto uninominal favorece a<br />
representatividade? Como se sabe, o senso comum dominante é o de que, no Brasil, vota-se nas<br />
pessoas e não nos partidos. Porque a nossa tradição partidária é débil, a melhor qualidade do<br />
voto transcenderia os limites dos partidos. A pouca adesão aos partidos e aos seus programas<br />
vem de mãos dadas com o troca-troca de agremiações. Se o eleitor votou<br />
A pouca adesão aos no candidato e não no partido, o eleito não tem maiores obrigações com a<br />
partidos e aos seus legenda. Sua fidelidade restringe-se ao eleitor. Ocorre que não é apenas a um<br />
programas vem de mãos único eleitor. Como ele é eleito com milhares de votos, o comum é que as<br />
dadas com o troca-troca opiniões desses eleitores sejam diversas. E que estejam em contradição direta<br />
de agremiações. Se o e frontal em muitas das questões sobre as quais o eleito se deve pronunciar. A<br />
eleitor votou no candidato solução para o conflito é a escolha pessoal do eleito. Sua opção nas matérias<br />
e não no partido, o em discussão passa a ser, no mais das vezes, uma opção pessoal. Ainda que,<br />
eleito não tem maiores a posteriori, ele possa buscar fundamentação em algumas das opiniões em<br />
obrigações com a legenda<br />
conflito entre os que o elegeram. Ao invés da representatividade, o que se<br />
verifica é a preponderância da vontade individual do eleito. Se o partido,<br />
mesmo assim, continuar a pressioná-lo com o fechamento de questão, ele simplesmente<br />
pode mudar de partido. O que, aliás, ocorreu em demasia na legislatura passada, quando 125<br />
parlamentares resolveram abandonar as legendas e os programas com base nos quais se elegeram.<br />
A atual legislatura já começa com cerca de duas dezenas de trocas partidárias. Somente entre<br />
1985 e 2001, nada menos que 846 parlamentares trocaram de partido no Congresso Nacional.<br />
O parlamentar, uma vez eleito, comporta-se como se o seu mandato fosse seu apenas. Ele não<br />
precisa pautar seus pronunciamentos e votos no programa da legenda, visto que a legenda é<br />
algo institucionalmente muito frágil. A autenticidade e a legitimidade da representação passa<br />
a ser algo que depende quase que tão-somente da consciência individual do parlamentar.<br />
Tais regras são reproduzidas (ou decorrem) de uma cultura política individualista, infensa a<br />
qualquer disciplina da ação coletiva. Como a democracia pode ser vista como um sistema
Como a democracia pode<br />
ser vista como um sistema<br />
organizador da ação<br />
coletiva, fica evidenciado<br />
o déficit democrático de<br />
um regime que alimenta o<br />
individualismo na política<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
organizador da ação coletiva, fica evidenciado o déficit democrático de um<br />
regime que alimenta o individualismo na política.<br />
Os mecanismos institucionais que favorecem o individualismo de nossa<br />
representação política, como visto, fragilizam a ação coletiva organizada<br />
em torno de projetos e programas de governo. A adesão aos programas<br />
pode facilmente resumir-se ao nível da retórica. Na prática, o parlamentar<br />
pode votar ou deixar de votar em propostas que se contrapõem ao programa<br />
sob o qual se elegeu. A representatividade dos mandatos fica, desta<br />
forma, gravemente prejudicada.<br />
4) O sistema eleitoral brasileiro favorece a governabilidade?<br />
Já vimos que o voto uninominal com fidelidade partidária frouxa ajuda a reproduzir a<br />
cultura do excessivo individualismo na política. Uma outra característica que seguramente<br />
atua no mesmo sentido é a influência do poder econômico. À parte o financiamento público<br />
dos fundos partidários e da propaganda gratuita, cada candidato organiza e registra seu próprio<br />
comitê financeiro, mobilizando contribuições pessoais, de simpatizantes e de empresas.<br />
Com tamanhos recursos muitas candidaturas encontram êxito nos currais onde o voto é<br />
dado sem que o eleitor sequer conheça as propostas dos candidatos. São milhões os brasileiros<br />
que sequer podem lembrar o nome do parlamentar que escolheram nas últimas eleições.<br />
Alguns eleitos, nessas condições, devem muito maior fidelidade aos que providenciaram<br />
os recursos da campanha do que aos próprios eleitores, aos partidos e aos programas que retoricamente<br />
adotaram. Sua ação no parlamento é, de conseqüência,<br />
guiada muito mais por interesses individuais. Essa<br />
multiplicidade de interesses individuais desagregados e desarticulados,<br />
naturalmente, não gera campo propício para a<br />
eficiência das políticas públicas concebidas em tal ambiente.<br />
A propósito, não são poucos os estudos que mostram<br />
que a qualidade das ações do Estado está diretamente<br />
relacionada<br />
com a capa-<br />
Revista Plenarium | 17
18 |<br />
Maurício Rands<br />
cidade de ação coletiva e cooperativa das respectivas sociedades. Com base em pesquisa feita<br />
durante dez anos nas regiões administrativas da Itália e, portanto, munido de farto material<br />
empírico, Robert Putnam (1990) demonstrou que, nas regiões onde as instituições tinham<br />
melhor funcionamento (como em Bologna, p. ex.), as respectivas populações demonstravam<br />
maior capacidade de ação coletiva.<br />
A quase ilimitada liberdade de influência do poder econômico nas campanhas<br />
atua, assim, como mais um fator para a fragmentação programática dos parlamentos. A<br />
conseqüência é que, não obstante uma determinada plataforma governamental ter sido a<br />
escolhida através do voto direto majoritário para o Executivo, nem sempre a maioria dos<br />
eleitos para o parlamento atua em consonância com essa vontade da sociedade expressa nas<br />
urnas. A capacidade da ação governamental, portanto, fica muito comprometida. Passa a<br />
depender de esforços de arregimentação pontuais, feitos caso a caso em cada proposição<br />
submetida ao Legislativo. A execução do programa escolhido pela sociedade no voto dado<br />
ao Executivo passa a se defrontar com enormes obstáculos no Legislativo. A independência<br />
e autonomia do Legislativo, em vez de servir de temperamento e aperfeiçoamento das<br />
iniciativas do Executivo, em alguns casos leva-o a atuar com independência (e às vezes até<br />
mesmo em contraposição) da vontade majoritária da população. A capacidade de atuação<br />
do Estado para concretizar aquele programa votado pelo povo resulta, em seu conjunto,<br />
muito debilitada. As conseqüências desta pouca capacidade de governabilidade, num<br />
país com um déficit de desenvolvimento e cidadania como o nosso, é algo que deve ser<br />
enfrentado com o maior senso de urgência possível. O aperfeiçoamento do nosso sistema<br />
eleitoral pode ser um dos fatores para atenuar o problema, se conseguir forjar uma maior<br />
capacidade de ação coletiva programática nos parlamentos. Se lograr reduzir a fragmentação<br />
e o individualismo das bancadas parlamentares, agregando-as nos partidos ou coligações<br />
com base nos programas com os quais os candidatos disputaram as eleições.<br />
Essa dificuldade de atuação coletiva e programática das bancadas é agravada pelo fato<br />
de que o sistema brasileiro conjuga o presidencialismo com um multipartidarismo excessivo.<br />
Gera-se instabilidade e baixa governabilidade porque a proliferação partidária dificulta a<br />
formação de maiorias sólidas capazes de aplicar o programa do governo eleito. Parte-se para<br />
a construção de coalizões frouxas às vezes à base de cooptação caso a caso, com evidente<br />
fragilidade e diminuição da qualidade da política.<br />
5) O PL 2.679 e as perspectivas para maior<br />
representatividade e governabilidade<br />
O PL 2.679/2003 propõe uma ruptura com a tradição cujas conseqüências para a representatividade<br />
e a governabilidade acabamos de analisar. Visa diminuir a atomização das<br />
bancadas e a falta de compromisso programático que decorrem da proliferação de partidos,<br />
do individualismo e da excessiva influência do poder econômico. Propõe fazer da disputa<br />
eleitoral um momento de confronto coletivo de diferentes programas partidários. Naturalmente<br />
a tentativa de mudança da cultura política de um país através da reforma institucional<br />
encontra fortes limitações, como bem adverte o cientista político Fábio Wanderley Reis,
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
da UFMG (2003). Para ele, os adeptos da chamada “engenharia política” precisam temperar<br />
a excessiva crença no potencial transformador das mudanças institucionais. Por isso, deve-se<br />
prestar atenção no ceticismo das interpretações “burkeanas”, que não se entusiasmam com o<br />
“artificialismo” das modificações meramente legislativas. Todavia, não se pode desconhecer<br />
que as instituições exercem um efeito recíproco na cultura política e não podem limitar-se a<br />
reproduzi-la. Mormente em seus aspectos menos conducentes ao desenvolvimento de uma<br />
democracia moderna, participativa e de massas. Por isso, ainda que nos abstenhamos de<br />
nutrir expectativas demasiadamente otimistas, podemos antever na reforma política atualmente<br />
em discussão na Câmara dos Deputados um passo a mais na criação de instituições<br />
eleitorais que ajudem a corrigir alguns defeitos de nossa cultura política.<br />
5.1) Sistemas de listas fechadas ou de listas flexíveis<br />
No vigente sistema de lista aberta, o eleitor pode votar no candidato ou na legenda de<br />
sua preferência. A maior parte das vezes vota num candidato e, assim, a definição da lista<br />
dos eleitos vai sendo construída a partir da soma dos votos dados aos candidatos. A ordem<br />
dos eleitos é fixada inteiramente pela manifestação dos eleitores.<br />
Num sistema de lista fechada, no outro extremo, a ordem dos eleitos é estabelecida<br />
pelos partidos através de suas instâncias de deliberação. A convenção partidária, ao escolher<br />
os candidatos, preordena-os de modo a que os eleitores votem nos partidos e respectivos<br />
programas. Os votos das legendas garantem um certo número de cadeiras e elas são atribuídas<br />
aos primeiros da lista partidária. Nesse desenho institucional, a ênfase é dada no aspecto<br />
coletivo e programático da política, assumindo-se que os partidos representam idéias, projetos<br />
e programas.<br />
Uma posição intermediária é o sistema de lista flexível. O partido preordena uma determinada<br />
lista de candidatos. O eleitor continua podendo votar na legenda ou no candidato.<br />
Os candidatos mais votados ganham as cadeiras em disputa. Mas o voto dado apenas<br />
à legenda, em vez de ser distribuído entre os que recebem mais votos dos eleitores, passa a<br />
ser distribuído para que os primeiros da lista partidária completem o quociente partidário.<br />
Nesse sistema, a lista feita pelos partidos serve apenas para efeitos de atribuição dos votos de<br />
legenda. O eleitor continua podendo definir uma ordem de eleitos diferente daquela decidida<br />
pela instância partidária. Porém, a adesão do eleitor ao partido através do voto apenas<br />
na legenda pode fazer com que a ordem dos eleitos sofra influência da legenda. Se todos os<br />
eleitores votarem na legenda, o resultado seria equivalente ao do sistema de lista fechada,<br />
em que a ordem dos eleitos é aquela que foi definida pela instância partidária. Se, ao invés,<br />
todos votarem em candidatos, o resultado seria equivalente ao sistema de lista aberta, em<br />
que a ordem dos eleitos é construída tão-somente pelo voto do eleitor. O mais provável<br />
é uma combinação intermediária, onde os partidos e respectivos programas teriam uma<br />
determinada influência na ordem dos eleitos, mas a última palavra continuaria a ser dada<br />
pelo eleitor. Cresceria a coesão das bancadas eleitas, visto que os partidos tendem a colocar<br />
nos primeiros lugares das listas os candidatos mais identificados com a vida partidária e seu<br />
programa. Esse sistema aproxima-se do atualmente vigente em países como a Bélgica, de<br />
reconhecida estabilidade democrática.<br />
Revista Plenarium | 19
20 |<br />
Maurício Rands<br />
Alguns argumentos brandidos contra os sistemas que aumentam a influência do partido<br />
na seqüência dos eleitos, sejam as listas abertas, sejam as listas flexíveis, encontram muita acolhida<br />
no atual debate. Para uns, os partidos em sua maioria são controlados por burocracias<br />
(“a lei de ferro das oligarquias”, tal como propunha Pareto ainda no século XIX). Haveria a<br />
ditadura das cúpulas partidárias na confecção das listas. Isto significaria subtrair a liberdade<br />
de escolha dos eleitores, que ficariam impedidos de sufragar o seu preferido. O poder econômico<br />
continuaria a correr solto, determinando a ordem de inscrição dos candidatos em<br />
legendas de aluguel. Em primeiro lugar, responda-se que qualquer alteração neste sentido<br />
deve vir acompanhada de regras que obriguem um conteúdo democrático mínimo nas regras<br />
de funcionamento dos partidos. Mas o verdadeiro antídoto às manipulações partidárias pode<br />
ser encontrado no próprio mercado político. Uma oligarquia partidária que elabore a lista<br />
com base nos critérios de favorecimento ou mesmo de obtenção de vantagens econômicas<br />
não fará tais escolhas sem se submeter aos seus resultados. Uma lista assim confeccionada<br />
irá à disputa política com candidatos nem sempre qualificados e reconhecidos pela opinião<br />
pública. A qualidade inferior de uma tal lista diminuirá a performance daquele partido e isto<br />
diminuirá seu apelo nas eleições subseqüentes. Essa legenda ficará sujeita a uma forte pressão<br />
para escolher a próxima lista com candidatos mais qualificados e<br />
com mais serviços prestados à comunidade. O exemplo do Reino<br />
Unido é eloqüente. A qualidade das bancadas, cujos candidatos<br />
são escolhidos pelas instâncias partidárias para concorrer no sistema<br />
distrital, é aumentada pelo fato de que os membros do gabinete<br />
de ministros têm que ser escolhidos pelo chefe de governo<br />
dentre os deputados eleitos para a Câmara dos Comuns. Além<br />
disso, o fraco desempenho ou os casos de corrupção dos eleitos<br />
nas listas passariam a sofrer controle dos próprios deputados<br />
do partido, que seriam afetados na próxima eleição pela<br />
má-conduta dos seus colegas.<br />
A tendência de sistemas de lista flexível<br />
ou fechada é o<br />
incentivo à
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
formação de listas com pessoas experimentadas, dotadas de vocação política demonstrada<br />
na vida partidária e nas organizações da sociedade civil. Haveria um incentivo à maior coesão<br />
das bancadas eleitas por um partido que disputou a eleição com base em projetos e programas.<br />
Seria eliminada a atual regra em que um candidato tem como principal adversário o<br />
companheiro de partido, com conseqüências muito negativas para o dia-a-dia parlamentar.<br />
Poderia haver uma diminuição do individualismo e um aumento das potencialidades para<br />
a ação coletiva baseada em idéias e programas.<br />
5.2) Federações partidárias e proibição de coligações proporcionais<br />
Em relação ao valor A prática das coligações partidárias nas eleições proporcionais tem<br />
governabilidade, a sido acusada de incentivar distorções representativas. Muitas vezes o eleitor<br />
frouxidão das coligações vota num candidato de um certo partido motivado pelos compromissos<br />
pouco programáticas daquela agremiação. Como as coligações nem sempre são feitas por afini-<br />
também traz conseqüências dades programáticas, o resultado é que o voto daquele eleitor muito co-<br />
negativas, pois aumenta mumente beneficia candidatos cujas idéias com as dele não se coadunam.<br />
a falta de coesão das Trata-se de uma distorção daquele valor representatividade/autenticidade,<br />
bancadas eleitas e, sem o qual uma democracia dá sinais de evidente fragilidade. Em relação<br />
conseqüentemente, ao valor governabilidade, a frouxidão das coligações pouco programáticas<br />
o compromisso de também traz conseqüências negativas, pois aumenta a falta de coesão das<br />
sustentação dos projetos bancadas eleitas e, conseqüentemente, o compromisso de sustentação dos<br />
majoritariamente projetos majoritariamente apoiados pelo eleitorado.<br />
apoiados pelo eleitorado<br />
Visando enfrentar o problema, o projeto de reforma política em curso<br />
cria o instituto da federação de partidos, com duração mínima de três anos.<br />
É a seguinte a redação dos dispositivos que tratam da matéria, tal como dispõe o art. 3º do<br />
PL 2.679/2003, ao acrescentar o art. 11-A à Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995 (Lei<br />
Orgânica dos Partidos Políticos):<br />
Art. 11-A Dois ou mais partidos políticos poderão reunir-se em federação, a qual,<br />
após a sua constituição e respectivo registro perante o Tribunal Superior Eleitoral, atuará<br />
como se fosse uma única agremiação partidária, inclusive no registro de candidatos e no<br />
funcionamento parlamentar, com a garantia da preservação da identidade e da autonomia<br />
dos partidos que a integrarem.<br />
§ 1º A federação de partidos políticos deverá atender, no seu conjunto, às exigências do<br />
art. 13, obedecidas as seguintes regras para a sua criação:<br />
I – só poderão integrar a federação os partidos com registro definitivo no Tribunal<br />
Superior Eleitoral;<br />
II – os partidos reunidos em federação deverão permanecer a ela filiados, no mínimo,<br />
por três anos;<br />
III – nenhuma federação poderá ser constituída nos quatro meses anteriores às eleições.<br />
§ 2º O descumprimento do disposto no § 1º deste artigo acarretará ao partido a perda<br />
do funcionamento parlamentar.<br />
Revista Plenarium | 21
22 |<br />
Maurício Rands<br />
§ 3º Na hipótese de desligamento de um ou mais partidos, a federação continuará em<br />
funcionamento, até a eleição seguinte, desde que nela permaneçam dois ou mais partidos.<br />
Ao mesmo tempo, o projeto de lei proíbe as coligações para as eleições proporcionais<br />
dentro da mesma circunscrição, permitindo-as apenas para as majoritárias, segundo dispõe<br />
o novo art. 6º proposto para a Lei Orgânica dos Partidos Políticos. Com a providência,<br />
busca-se atribuir maior nitidez e representatividade ao nosso sistema eleitoral.<br />
5.3) Financiamento público<br />
A proposta de financiamento público das campanhas eleitorais talvez seja uma das que<br />
mais despertam resistências. Como a reputação média dos políticos não é lá das melhores,<br />
a sociedade resiste em destinar recursos para suas campanhas. Todavia, deve-se perguntar se<br />
ela já não financia as eleições. Além do fundo partidário e da propaganda gratuita no rádio<br />
e na televisão, não existem custos adicionais para a administração pública e para a sociedade<br />
como um todo?<br />
Quais são os custos impostos ao país pelas distorções que resultam da influência do<br />
poder econômico no processo eleitoral?<br />
Visando uniformizar e controlar os gastos com as eleições, o PL 2.679/2003 estabelece<br />
que os recursos para as campanhas serão unicamente provenientes do Tesouro Nacional,<br />
sendo as despesas realizadas exclusivamente através dos partidos, federações ou coligações.<br />
Por força do art. 5º do PL, o art. 17 da Lei nº 9.504, de 1997 (Lei das Eleições), passa a<br />
dispor que a dotação específica a ser incluída na Lei Orçamentária terá valor equivalente ao<br />
número de eleitores multiplicado por R$ 7,00 (sete reais). Pelo número atual de eleitores,<br />
de cerca de 116 milhões, o total desses recursos orçamentários chegaria a aproximadamente<br />
R$ 812 milhões, para financiamento de toda a campanha eleitoral no país. Seguramente<br />
as eleições de 2006, realizadas para presidente da República, senadores, deputados federais,<br />
governadores e deputados estaduais, envolveram um total de recursos muito superior a esse<br />
montante. E o que é mais grave, recursos nem sempre provenientes de fonte lícitas, pois<br />
os valores apresentados à Justiça Eleitoral muitas vezes são subdimensionados. O financiamento<br />
privado, infelizmente, tem permitido a influência de atividades ilícitas, até mesmo<br />
ligadas ao narcotráfico, nos legislativos e executivos do país. Essa influência deletéria nas<br />
instituições seria drasticamente eliminada em virtude da proibição de qualquer financiamento<br />
privado das campanhas.<br />
Ainda por força do art. 5º do PL 2.679/2003, o art. 19 da Lei nº 9.504, de 1997, passa<br />
a dispor que os partidos, as federações ou coligações serão obrigados a constituir um único<br />
comitê financeiro para toda a campanha na União, no estado ou no município. A primeira<br />
prestação de contas será feita com antecedência de 45 dias da data das eleições. A prestação<br />
de contas definitiva será feita até 10 dias após a data do pleito. O art. 24, a seu turno, estabelece<br />
pesadas multas às pessoas físicas e jurídicas que fizerem qualquer doação às campanhas,<br />
ainda que em bens ou serviços meramente estimáveis em dinheiro, punindo os candidatos<br />
e partidos com a cassação dos registros das candidaturas, cumulada com a imposição de<br />
multas e demais penas por abuso de poder econômico.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Um aspecto importante que nem sempre tem sido devidamente realçado é a ampliação<br />
da capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral. Por força do art. 25-A da nova redação<br />
proposta para a Lei nº 9.507/2003, a fiscalização do abuso de poder econômico será exercida<br />
por uma comissão instituída pela Justiça Eleitoral em cada circunscrição. Como o<br />
financiamento público será destinado tão-somente aos partidos ou às federações, segue-se<br />
que a capacidade fiscalizatória da Justiça será muito ampliada. Em vez das<br />
Em vez das dezenas de dezenas de milhares de comitês financeiros hoje constituídos pelos can-<br />
milhares de comitês didatos individuais, majoritários ou proporcionais, a comissão da Justiça<br />
financeiros hoje Eleitoral fiscalizará no máximo algumas dezenas de comitês financeiros<br />
constituídos pelos dos partidos ou federações. Essa drástica redução das contas a serem acom-<br />
candidatos individuais, panhadas, antes e depois do pleito, inclusive com a suspensão antecipada<br />
majoritários ou das campanhas com sinais exteriores de abuso econômico (art. 25-A, par.<br />
proporcionais, a comissão 3º), pode significar uma redução sem precedentes na influência do poder<br />
da Justiça Eleitoral econômico nos resultados eleitorais. Cada um pode julgar por si o quanto<br />
fiscalizará no máximo isto pode melhorar a representatividade e governabilidade das nossas ins-<br />
algumas dezenas de tituições democráticas.<br />
comitês financeiros dos Certamente muitos outros aspectos do nosso sistema representativo<br />
partidos ou federações<br />
reclamam cuidadosa revisão. Embora não possamos alimentar expectativas<br />
demasiadamente otimistas quanto à reforma política ora em discussão na<br />
Câmara dos Deputados, não podemos deixar de considerar que alguns progressos estão<br />
sendo propostos para avançar na democratização do nosso sistema. Deixar de experimentálos<br />
seria permanecer numa atitude resignada diante de mecanismos que reconhecidamente<br />
distorcem a vontade popular e dificultam o processo de desenvolvimento democrático do<br />
país. Mais que isto, a manutenção do atual sistema implica a perpetuação de distorções que<br />
dificultam o próprio desenvolvimento econômico e social do Brasil.<br />
Referências<br />
Benevides, Vannuchi e Kerche (orgs.). 2003. <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong> e Cidadania. São Paulo: Fundação Perseu Abramo.<br />
Dworkin, Ronald. 2000. Sovereign Virtue – The Theory and Practice of Equality. Cambridge-Massachusetts: Harvard<br />
University Press.<br />
Putnam, Robert. 1990. The Civic Culture – Making Democracy Work. Cambridge: Harvard University Press.<br />
Reis, Fábio Wanderley. 2003. “Engenharia e Decantação” in: <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong> e Cidadania, p. 13-32.<br />
Sartori, Giovanni. 1994. Ingegneria Costituzionale Comparata. Bologna: Il Mulino.<br />
Revista Plenarium | 23
24 |<br />
Ronaldo Caiado*<br />
Com o atual sistema,<br />
não há salvação<br />
Se havia ainda alguma dúvida sobre a necessidade de ampla e radical reformulação do<br />
sistema político-eleitoral brasileiro, esta se desfez nestas últimas eleições. O pleito de 2006,<br />
de forma sintomática, restou caracterizado por autêntica esquizofrenia partidária, excessos<br />
de gastos eleitorais, com “caixa dois” ou “recursos não contabilizados”, corrupção da máquina<br />
pública, posta a serviço de candidaturas preferenciais, e, por fim, pela comprovação<br />
na prática daquilo que eu próprio já tive ocasião de denunciar por várias vezes: nem o TSE<br />
nem os TREs, em face do modelo eleitoral adotado, dispõem de condições de fiscalização<br />
dos gastos das campanhas eleitorais. A Justiça Eleitoral fixa regras que sabe que na prática<br />
não serão respeitadas; partidos e candidatos as contornam e desobedecem, cientes de que<br />
não serão apanhados. Tudo como na música de Nelson Sargento: “Nosso amor é tão bonito/<br />
Ela finge que me ama / E eu finjo que acredito”.<br />
A solução passa por se conseguir que os partidos políticos se tornem reais, comprometidos<br />
com programas e propostas; pelo banimento das legendas de aluguel; pelo financiamento<br />
público das campanhas eleitorais; pela adoção de regras que impeçam os governantes<br />
(candidatos ou não a reeleição) de se valer seja de obras ou de recursos públicos como meio<br />
*Ronaldo Caiado, deputado federal, DEM/GO, foi o relator da Comissão Especial da <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong> na 52ª legislatura<br />
(2003-2007).
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
de interferência nas eleições, seja das verbas desviadas do Orçamento da União ou provenientes<br />
do narcotráfico, do jogo do bicho, entre outros, que tanto têm financiado as eleições<br />
no Brasil. Assim, haverá possibilidade de controle e fiscalização, pela Justiça Eleitoral, tanto<br />
das eleições quanto do próprio cotidiano político.<br />
Defendo, para isso, a adoção do sistema de listas fechadas nos pleitos proporcionais para<br />
impedir o troca-troca partidário, que tanto vem desmoralizando o Legislativo brasileiro<br />
(193 deputados federais em 3 anos e 10 meses trocaram de partido 337 vezes), permitir o<br />
verdadeiro controle da Justiça Eleitoral sobre os gastos nas campanhas eleitorais e dar a condição<br />
de implantarmos o financiamento público e exclusivo de campanhas,<br />
A Justiça Eleitoral fixa conforme o Projeto de Lei nº 2.679/2003. Com essa inovação, fechar-se-á<br />
regras que sabe que o cerco aos pontos que tanto vêm desmoralizando a prática política em<br />
na prática não serão nosso país pela expulsão dos homens de bem do processo e estímulo ao<br />
respeitadas; partidos e avanço da “bandidagem” cada vez mais na vida política nacional. Com<br />
candidatos as contornam essas duas mudanças (financiamento público exclusivo e listas fechadas) a<br />
e desobedecem, cientes de Justiça Eleitoral passa a ter condições de promover uma efetiva fiscalização<br />
que não serão apanhados<br />
e punição dos ilícitos eleitorais.<br />
A democracia representativa só funciona bem quando existem partidos,<br />
isto é, organizações intermediárias capazes de recrutar líderes e militantes, fazer campanhas<br />
em torno de plataformas e programas de governo, atuar disciplinadamente no Legislativo<br />
e, em conquistando o governo, executar as políticas mediante as quais conquistaram<br />
a confiança do eleitor.<br />
Um grave equívoco que cumpre esclarecer já de saída é o de que o voto por lista fechada<br />
seja antidemocrático, ou ainda que impeça a livre manifestação do eleitor. Mundialmente,<br />
ele é a regra sob o sistema proporcional. Sua adoção visa a preservar precisamente a unidade<br />
partidária: o voto para os parlamentos é dado em lista partidária fechada, na ordem elaborada<br />
pela própria legenda, e não aberta, em candidatos individuais. As disputas se dão no<br />
interior dos partidos, que com isso adquirem autonomia, legitimidade e unidade de ação.<br />
Por outro lado, o voto em lista fechada não ofende o princípio do voto direto, cláusula<br />
pétrea da Constituição. Voto direto não é sinônimo de voto em pessoas individuais. Significa<br />
que o voto conduz diretamente à apuração do resultado da eleição, sem decisão intermediária.<br />
Fica excluída, por exemplo, a eleição por meio de delegados num colégio eleitoral.<br />
No pleito por lista fechada, o eleitor escolhe diretamente o partido, ou seja, um grupo de<br />
candidatos organizados em lista, os quais, eleitos na ordem em que nela se apresentam, vão<br />
desempenhar sua função no parlamento. E, eleitos dessa forma, podem ser cobrados tanto<br />
pelo partido quanto pelos eleitores. Terão que atuar, sob pena de perda do mandato, de<br />
acordo com o programa partidário em nome do qual foram incluídos na lista e eleitos, e não<br />
como hoje, mercadejando seu voto individual.<br />
Aos que argumentam que, com tal sistemática, o eleitorado seria privado de um direito,<br />
o de votar no candidato, na pessoa, obrigando-o a votar numa coletividade, há que lembrar<br />
que, mesmo sob a forma atual de voto em lista aberta, o eleitor não vota na pessoa que bem<br />
entender dentro do universo de seus concidadãos. Vota em candidatos filiados a um partido,<br />
que são por este selecionados, colocados numa lista e assim apresentados ao eleitorado.<br />
Revista Plenarium | 25
26 |<br />
Ronaldo Caiado<br />
O eleitor não votará em quem quiser, mas apenas em alguém que integre um partido e que<br />
tenha sido por ele selecionado em convenção, e muitas vezes seu voto serve para eleger outro<br />
candidato com o perfil oposto daquele em quem votou.<br />
Votar em nomes, na escala de um estado, e não em partidos, tem um custo elevado e<br />
inúmeras desvantagens. O parlamentar eleito em sistema de lista aberta não está compromissado<br />
por qualquer modo com o eleitor que o elegeu, e sua atividade não se sujeita a qualquer<br />
controle a não ser o seu próprio interesse pessoal. Ele não atua por força de princípios<br />
ou programas, mas no âmbito de conveniências, pessoais ou grupais. Por outro lado, pela<br />
inexistência de fidelidade partidária, acompanhada de sanções efetivas, a ação parlamentar<br />
é marcada por aguda incoerência e total imprevisibilidade pela possibilidade de que vereadores<br />
e deputados migrem à vontade entre as legendas partidárias. Esse quadro predispõe<br />
os parlamentos a “mensalões”, subornos e negociatas, tanto de governantes<br />
Votar em nomes, na quanto da iniciativa privada, e viola, na prática, a vontade do eleitor. Mais<br />
escala de um estado, e que isso, impede qualquer tipo de estabilidade institucional e compromete<br />
não em partidos, tem o prestígio e a legitimidade das instituições políticas perante a sociedade.<br />
um custo elevado e Com o voto em lista fechada, assegura-se, de imediato, a estabilidade<br />
inúmeras desvantagens<br />
do quadro partidário. Assim, o debate eleitoral se modifica, pois as legendas<br />
serão forçadas a discutir com o eleitorado as questões importantes em<br />
jogo na sociedade e as propostas de cada grupo para lidar com elas. Vale lembrar que, diferentemente<br />
do que existe hoje, somente partidos organizados e estabilizados em torno de<br />
plataformas são capazes de fazer compromissos e cumpri-los, de interagir responsavelmente<br />
uns com os outros nas negociações políticas e na composição dos governos de coalizão, que<br />
em nosso país são a forma habitual de exercício do Poder Executivo.<br />
Mas não é suficiente legitimar e tornar reais os partidos políticos. É igualmente fundamental<br />
minimizar o custo das eleições e, simultaneamente, impedir a corrupção eleitoral,<br />
seja por interferência direta do poder econômico no financiamento das campanhas, seja ela<br />
por influência indireta de governantes, mediante obras e favores com recursos públicos. A<br />
situação é ainda mais grave do que aparentava, pois, paradoxalmente, mesmo com a proibição<br />
de gastos em showmícios e distribuição de brindes, com o objetivo de reduzir os custos<br />
e a prática de “caixa dois”, os candidatos gastaram muito mais com a campanha de 2006 do<br />
que haviam feito com a de 2002.<br />
Na raiz do problema está também o atual sistema eleitoral, que, tanto por força da mudança<br />
dos meios de comunicação e difusão quanto pela pulverização individual nas eleições<br />
proporcionais, demanda recursos cada vez maiores, em especial nestas últimas. Como cada<br />
candidato teve que cuidar individualmente de sua campanha, todas as campanhas, majoritárias<br />
ou proporcionais, se tornaram proibitivas, exigindo abundantes recursos financeiros,<br />
em geral não disponíveis para partidos e candidatos.<br />
A necessidade de recursos é suprida seja pelas contribuições privadas, de cidadãos e,<br />
sobretudo, de grandes empresas, seja pelo uso da máquina administrativa. Em ambos os<br />
casos, acabam maculadas e severamente comprometidas a normalidade e a legitimidade das<br />
eleições. Na primeira situação, a força do dinheiro substitui a das idéias; além disso, gera-se<br />
dependência da representação parlamentar com respeito aos seus financiadores, o que não é
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
sadio para a vida democrática. Na segunda, configura-se uma deturpação ética do princípio<br />
republicano, levando governantes a lançar mão indevidamente da coisa pública em benefício<br />
próprio ou de terceiros.<br />
As democracias têm procurado apelar, modernamente, por essas razões, para esquemas<br />
de financiamento público, fórmula que, entre outras virtudes, possibilita a partidos e candidatos<br />
sem acesso a fontes privadas competir em igualdade de condição com os demais.<br />
Já foi dito, e nunca será demais repetir, que o sistema de financiamento público eleitoral<br />
não tem como ser adotado e muito menos funcionar com o atual sistema político-eleitoral,<br />
sem a adoção do sistema de lista fechada. O voto em candidato e não em partido não<br />
inibe a ação do poder econômico, razão pela qual minha opção é no sentido de adotarmos<br />
eleições com financiamento público exclusivo. E, para tanto, teremos que mudar o sistema<br />
eleitoral, adotando o voto partidário, em lista fechada.<br />
Revista Plenarium | 27
28 |<br />
Ronaldo Caiado<br />
O financiamento público exclusivo, em torno do qual já se têm mobilizado as principais<br />
lideranças políticas do Congresso, insisto, é incompatível com a sistemática atual do<br />
voto em lista aberta. A campanha em bases individuais, peculiar a essa modalidade, exige a<br />
divisão da dotação partidária pelos candidatos. Com isso, os recursos se diluiriam e, inevitavelmente,<br />
teriam de ser complementados com recursos de outras fontes, corrompendo e<br />
tornando ineficaz o próprio sistema.<br />
Com financiamento a partidos que apresentam listas fechadas, a cam-<br />
Com financiamento a panha eleitoral – tanto a proporcional quanto as majoritárias – será da<br />
partidos que apresentam agremiação como um todo. Os programas eleitorais, os comícios, a propa-<br />
listas fechadas, a ganda, enfim, serão empreendimentos partidários, devendo todos traba-<br />
campanha eleitoral – tanto lhar pela causa comum. O custo da campanha diminuirá sensivelmente e<br />
a proporcional quanto as mais se reforçará a legitimidade do processo político.<br />
majoritárias – será da Também a fiscalização dos pleitos pela Justiça Eleitoral tornar-se-á<br />
agremiação como um todo<br />
muito mais simples. Em vez de deparar-se ela com milhares de prestações<br />
de contas, produzidas por milhares de candidatos, o que leva à presente<br />
incapacidade de exame significativo das contas, examinará as contas dos partidos. Em<br />
cada estado, mesmo quando haja muita fragmentação do quadro partidário, essas contas<br />
vão constituir um número perfeitamente manejável pelos seus auditores. O confronto do<br />
declarado com as evidências indiretas de gastos e o confronto com custos pesquisados pela<br />
própria Justiça poderão ser feitos com autoridade. Mais que isso, a Justiça Eleitoral terá<br />
maior clareza e maior legitimidade para, em sendo o caso, cassar e alijar da vida pública candidatos<br />
ou eleitos que, por corrupção no processo eleitoral ou no exercício de seus cargos,<br />
desrespeitem a legislação eleitoral.<br />
Com o voto partidário e o financiamento público integral e exclusivo das eleições, por<br />
outro lado, a própria Justiça Eleitoral poderá vir efetivamente a existir, e não, como se queixou<br />
o presidente do TSE, Marco Aurélio Mello, entregar-se a um jogo de faz-de-conta.<br />
Por fim, mas não menos importante e significativo em nossa vida política, cumpre<br />
prestigiar a cláusula de barreira e eliminar os desvãos que favorecem uma absurda proliferação<br />
de legendas, em especial a existência de normas legais demasiado permissivas para a<br />
criação de partidos, conduzindo a uma fragmentação do quadro partidário e a um progressivo<br />
enfraquecimento da vida política como um todo.
Pedro Simon, 1976. Foto de Luis Humberto.
30 |<br />
Sandra Starling*<br />
A reforma política desejável<br />
É lugar comum a afirmativa de que não se logra a realização de uma reforma política –<br />
sobretudo a reforma eleitoral – quando se tem um Congresso Nacional (e até uma Presidência<br />
da República) que tenha sido escolhido e que pretenda atuar segundo certas regras do<br />
jogo. Esse, de fato, parece ser um problema. Mas será que permanece inarredável no Brasil<br />
de hoje? Faço essa indagação porque a eleição de 2006, no entendimento de muitos analistas,<br />
revelou um amadurecimento político da sociedade brasileira impensável alguns anos<br />
atrás. Segundo Marcos Coimbra, por exemplo, em artigo publicado na Carta Capital logo<br />
após o segundo turno das eleições:<br />
*Sandra Starling, advogada, é ex-deputada e ex-líder do PT na Câmara dos Deputados.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
A vitória de Lula mostra como se estrutura hoje a opinião pública brasileira e revela<br />
quanto o nosso povo recusa a tutela daqueles que, até agora, gostavam de se considerar<br />
formadores de opinião. Se tivessem que ouvi-los, os eleitores teriam, há muito tempo, batido<br />
em retirada da candidatura Lula. Foi largamente majoritário, nos últimos meses, o discurso<br />
contrário a ela, seja na chamada grande imprensa, seja nos círculos bem-pensantes.<br />
Se for assim que se comporta, hoje, a opinião pública brasileira, o primeiro movimento<br />
que deve ser feito pelo Governo Federal (que tem manifestado o desejo de fazer a reforma<br />
política logo no início do novo mandato) deve ser o de popularizar o tema (ou, melhor, os<br />
temas) em lugar de apenas buscar articular a vontade política dos que, tendo assento em<br />
uma das Casas do Congresso Nacional, terão de votá-la. Seria, portanto, de bom alvitre<br />
que se patrocinasse a difusão pública de cada item que se pretende mudar, indicando qual a<br />
conseqüência de sua adoção, por meio de inserções em cadeia de rádio e televisão e nos sites<br />
apropriados da estrutura da alta administração pública.<br />
Mas penso que há, ainda, outro movimento, que a este se deve somar: o diálogo claro<br />
com todas as forças políticas, que de fato exponha confluências e dissensos, ou, dito de outra<br />
forma, não relegar a discussão da reforma política à arena competitiva das comissões, especiais<br />
ou não, das duas Casas do Congresso, porque isso seria, de antemão, definir que nada<br />
de novo sairá. O ambiente das comissões cria emulações que, bem aproveitadas, ensejam<br />
que esta ou aquela proposta seja rotulada de “conservadora”, ou de “antidemocrática” ou<br />
outros epítetos quaisquer, antes que seja minimamente discutida, o que se torna obstáculo<br />
para a realização de qualquer reforma. Um exemplo pode ser esclarecedor: a cláusula de<br />
barreira é quase sempre qualificada como instrumento não-democrático,<br />
De meu ponto de vista, o porque impede que sejam efetiva e proporcionalmente representadas, no<br />
principal deve ser ampliar plano institucional, certas plataformas partidárias que espelham interesses<br />
o controle popular sobre minoritários no tecido social. Mas as mesmas forças que reivindicam a<br />
a escolha dos governantes não-existência da cláusula de barreira, baseando-se no respeito ao direito<br />
ao mesmo tempo em que de representação de interesses, ainda que minoritários, são as que defen-<br />
se amplia, também, o dem, com mais ardor, a existência das coligações proporcionais, que ense-<br />
acesso do maior número jam, na realidade, a manipulação da vontade do eleitor, pois este, votando<br />
de pessoas aos cargos de em candidato de certo partido, ou numa legenda coligada a outra, pode<br />
decisão, num ambiente vir, na verdade, a eleger alguém que não queria ver eleito.<br />
onde a transparência e Por isso, entendo que, a se desejar efetivamente a reforma, deve o Go-<br />
o conhecimento do que verno Federal tomar a iniciativa de procurar uma a uma as diversas forças<br />
esteja sendo feito se torne políticas, cada uma de per se, para ouvi-las sobre os mais variados temas.<br />
o mais público possível<br />
E formular sua própria proposta, explicitando que objetivos tem com ela.<br />
Porque em matéria de reforma política, muito mais que em matéria de<br />
reforma sindical, se o próprio governo não tem uma proposta, só vai ficar indefinidamente<br />
buscando consensos progressivos que jamais virão. Ademais, apresentar publicamente uma<br />
proposta consistente (capaz também de deixar claro por que é desejável tal ou qual mudança)<br />
poderá levar o governo à obtenção de legitimidade na sociedade, para que esta também<br />
se coloque ao lado das modificações pretendidas.<br />
Revista Plenarium | 31
32 |<br />
Sandra Starling<br />
Como mostra magistralmente Fábio Wanderley Reis, em matéria de reforma política<br />
não há sistema perfeito: tudo depende do objetivo que se quer atingir. Trata-se de ampliar<br />
a representatividade dos diversos interesses existentes na sociedade? O caminho para isso<br />
pode vir a colidir com a necessidade de tornar mais fácil o relacionamento entre o Executivo<br />
e o Legislativo, reduzindo-se o coeficiente de governança, quanto à adoção de certas medidas<br />
que se têm por necessárias. Em outras palavras, muitos podem estar falando da urgência<br />
da reforma política, mas há reformas e reformas.<br />
De meu ponto de vista, o principal deve ser ampliar o controle popular sobre a escolha<br />
dos governantes ao mesmo tempo em que se amplia, também, o acesso do maior número<br />
de pessoas aos cargos de decisão, num ambiente onde a transparência e o conhecimento do<br />
que esteja sendo feito se torne o mais público possível.<br />
Os trabalhos das últimas comissões parlamentares de inquérito, notadamente a dos<br />
Correios e a dos Bingos – mesmo com todas as falhas resultantes do excesso de exposição<br />
à mídia e da ausência de efetiva vontade de investigar – ofereceram elementos a mancheias<br />
para que se constate a necessidade de se pensar em efetivos controles sociais sobre as ações (e<br />
omissões) governamentais. À guisa de ilustração, aponto um, resultante do chamado “presidencialismo<br />
de coalizão”, que, se foi saudado por alguns analistas, não resiste ao exame acurado<br />
do que significa a entrega de um ministério “com porteiras fechadas” para que este ou<br />
aquele partido venha a compor a base parlamentar de apoio ao governo. Dados coletados,<br />
e às vezes não tornados públicos nessas comissões, mostraram práticas idênticas e reiteradas<br />
de aparelhamento de órgãos administrativos em proveito de redes espúrias de financiamento<br />
dos partidos ou das burocracias partidárias com recursos públicos. Por exemplo, salta aos<br />
olhos a semelhança entre o episódio denunciado em 1997, envolvendo dado partido, então<br />
na direção da Datamec, e os noticiados repasses a parlamentares de prebendas ali obtidas, e<br />
a narrativa de Maurício Marinho, funcionário dos Correios, também a serviço, segundo o<br />
próprio, de dada sigla partidária, no recolhimento de propinas para parlamentares. Outra<br />
revelação a confirmar os meandros da privatização do Estado brasileiro tem a ver com as<br />
denúncias sobre o Fundo Visanet como fornecedor de recursos para o esquema do “valerioduto”<br />
e a auditoria interna determinada em 2005 pelo Banco do Brasil, cujos resultados levam<br />
à conclusão de que os mesmos expedientes de drenagem de dinheiro, no mesmo Fundo<br />
Visanet, eram levados a efeito, entre 2001 e 2002, para empresas de publicidade, inclusive<br />
a DNA, de que Marcos Valério era sócio, em montantes deveras semelhantes: naqueles dois<br />
primeiros anos, o montante repassado foi de quase 50 milhões de reais; no atual governo,<br />
até 2004, 54 milhões de reais! Isso está a reclamar, no mínimo, para combater a corrupção,<br />
a integração de sistemas que hoje não se comunicam, a exemplo do Tribunal de Contas da<br />
União, da Controladoria Geral da República, da Polícia Federal e do Ministério Público.<br />
A mesma razão deveria levar à reintrodução do controle a priori sobre áreas sensíveis da<br />
moderna administração pública com adequados sistemas de licitação para dar conta de vultosos<br />
contratos que se mostram cruciais centros para o funcionamento de esquemas para sustentação<br />
financeira de partidos e eleições, a partir dos gastos públicos, quando não alimentação desses<br />
esquemas, com o direcionamento de atos de privatização de domínios econômicos estatais.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Não por acaso, no mesmo instante em que aqui eram expostos os problemas da Empresa<br />
dos Correios e Telégrafos, assistia-se no Japão a verdadeira guerra de gigantes pelo<br />
controle dessa área da administração. Para quem não tem podido seguir de perto os acontecimentos<br />
brasileiros, é bom frisar como passam ao largo do conhecimento público os<br />
problemas de terceirização, como o processamento do seguro-desemprego ou o processamento<br />
das loterias, envolvendo poderosas multinacionais da área de informática, com suas<br />
repercussões indescritíveis para a vida da sociedade brasileira. Foi-se o tempo em que apenas<br />
os grandes empreiteiros detinham a batuta na condução dos negócios do Estado. Hoje, a<br />
área de prestação de serviços, autorizados, permitidos, concedidos, sustentação logística de<br />
atividades-meio, é palco de batalha de vida ou morte entre interesses conflitantes que disputam<br />
as dádivas do Estado. Para não falarmos da luta em torno das parcerias societárias com<br />
as entidades de previdência complementar fechada, detentoras de grande parte da poupança<br />
interna brasileira a esta altura dos acontecimentos.<br />
Em outras palavras, o Estado brasileiro não tem instrumentos para controlar as áreas hoje<br />
mais sensíveis da administração pública. A própria lei de licitações não está mais adequada a<br />
dar conta de várias necessidades da máquina pública, como a da informática, por exemplo.<br />
Em oportunas conversas com integrantes da atual e da anterior administração, pudemos<br />
notar a necessidade de se criar uma agência estratégica de comunicação intragovernamental:<br />
cada área é tratada isoladamente, não obstante o desiderato, cantado e decantado<br />
no governo Lula de se praticar a “transversalidade”. Como fazê-lo, se nem ao menos se sabe<br />
com que meios e instrumentos trabalham cada um dos ministérios?! E, apesar da constatação<br />
dessa necessidade, seria isso possível, quando vicejam vaidades e disputas, mesmo quando<br />
os titulares das pastas que demandam entrosamento pertencem a um mesmo partido?!<br />
Outro problema a ser equacionado para democratizar as instituições brasileiras é o da<br />
proibição de os altos escalões ministeriais serem preenchidos por parlamentares, vedação<br />
adotada no constitucionalismo dos EUA. É óbvio que a permissão diminui a capacidade de<br />
independência do Legislativo em relação ao Executivo, ensejando, inclusive, o expediente<br />
de retornar o parlamentar à Casa apenas para determinada votação de interesse do chefe<br />
do Poder Executivo (para não lembrar o quiproquó da definição de quebra, ou não, do<br />
decoro parlamentar se o titular de uma pasta ministerial é acusado de prática intolerável<br />
aos olhos de seus pares no Legislativo). Ao adotar a limitação aqui proposta, seria de bom<br />
alvitre também exigir a sabatina de todo ministeriável pelo Senado Federal, novamente ao<br />
estilo norte-americano. As vantagens, neste caso, são enormes: tanto porque esse mecanismo<br />
proporciona a co-responsabilidade do Legislativo na montagem do governo, como, ao<br />
revés, torna os ministros mais acessíveis aos integrantes do Congresso Nacional, sem que<br />
isso signifique o estabelecimento de laços de subserviência.<br />
Embora o fato de alguém ser servidor efetivo não o tornar imune à improbidade (a<br />
CPMI dos Correios mostrou isso), não custa fincar pé na exigência de formação de uma burocracia<br />
profissionalizada, multifuncional e, portanto, de trânsito em todas as funções da alta<br />
administração, mediante a exigência de freqüência em escola de governo, durante o período<br />
de estágio probatório. Certamente, nada disso fará diferença se não houver a drástica redução<br />
do número de cargos comissionados. Na fase ascendente da crise que colheu o governo Lula,<br />
Revista Plenarium | 33
34 |<br />
Sandra Starling<br />
em 2005, a revista Desafios<br />
do Desenvolvimento, do Ipea,<br />
lembrava que no Brasil havia<br />
quase vinte mil cargos de<br />
confiança no Governo Federal,<br />
ante cinco mil nos EUA.<br />
Essa necessária redução,<br />
contudo, não pode servir de<br />
argumento para ampliação<br />
da terceirização, como vem<br />
preconizando o economista<br />
Yoshiaki Nakano. A recente<br />
operação da Polícia Federal,<br />
denominada “Mão-de-<br />
Obra”, mostra-nos que o<br />
caminho não é por aí.<br />
No capítulo das reformas<br />
do processo eleitoral,<br />
cumpre abordar e opinar<br />
sobre quais seriam as principais<br />
alterações a serem introduzidas:<br />
financiamento<br />
de campanha e seus limites,<br />
listas partidárias, proibição<br />
de coligações, cláusula de<br />
barreira, fidelidade partidária,<br />
limitação do número de<br />
mandatos, a questão dos suplentes<br />
de senadores, o papel<br />
da Justiça Eleitoral, crime de compra de voto ou promessa de favor que coaja o eleitor.<br />
Comecemos pelo financiamento de campanha. Penso que a melhor forma combinaria<br />
o financiamento público com o financiamento privado, proibidas as doações de empresas.<br />
Vale aqui registrar que um dos maiores defensores dessa tese nos EUA, o deputado Martin<br />
Meehan, democrata do Estado de Massachusetts, arrecadou, para as eleições do último dia<br />
7 de novembro de 2006, cerca de US$ 5 milhões, amealhados apenas de cidadãos. Tão<br />
popularizada ficou a sua luta, que o Partido Republicano sequer lançou um desafiante à<br />
sua reeleição no seu distrito. Aliás, como nos EUA, as doações de eleitores deveriam ser<br />
feitas em contas abertas antes mesmo do período eleitoral, sob monitoramento da Justiça<br />
Eleitoral. Obviamente, deve ser fixado um teto legal para tais doações, e não arbitrado pelos<br />
partidos, além do que deve ser coibido o mecanismo de triangulação de doadores anônimos<br />
que entregam o dinheiro à agremiação para posterior repasse a candidatos preferenciais,<br />
como se assistiu nas eleições de 2006.
Na primeira vez em que for<br />
adotado o financiamento<br />
público, o critério de<br />
distribuição deve ser<br />
igualitário, proporcional<br />
apenas ao número de<br />
vagas em disputa. E,<br />
evidentemente, há que se<br />
fixar um limite de gastos<br />
e impedir que os partidos<br />
possam destinar doações<br />
a campanhas de seus<br />
candidatos<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Faz-se a opção pela combinação dos sistemas para evitar que a proibição radical acabe<br />
se tornando estímulo para a adoção do “caixa dois”, em benefício de alguns. Proibir a doação<br />
de empresas e estimular a dos cidadãos contribui para que o eleitor se conscientize de<br />
que a democracia tem custos em dinheiro e que ele também é responsável por coletá-lo. Na<br />
primeira vez em que for adotado o financiamento público, o critério de distribuição deve ser<br />
igualitário, proporcional apenas ao número de vagas em disputa. E, evidentemente, há que<br />
se fixar um limite de gastos e impedir que os partidos possam destinar doações a campanhas<br />
de seus candidatos.<br />
E por falar em vagas, por que não ousar quebrar a regra que se originou do “pacote de<br />
abril” de 1977 e que superestimou a representação do Norte e do Centro-Oeste? 1<br />
No que diz respeito à lista partidária fechada, como alternativa ao nosso atual modelo<br />
proporcional de lista aberta, tendo acompanhado a trajetória do Partido Socialista em Portugal,<br />
manifesto minha opinião contrária à sua adoção, pura e simplesmente. Naquele país<br />
houve grave crise entre a direção partidária, encarregada da feitura da lista, e os candidatos,<br />
com reflexos na insatisfação do próprio eleitorado. Penso que o modelo<br />
belga, adotado por nossos senadores no substitutivo ao Projeto de Lei do<br />
Senado nº 300, de 1999 (Projeto de Lei nº 3.428, de 2000, na Câmara dos<br />
Deputados), segundo o qual o eleitor dá dois votos – um para a legenda de<br />
sua preferência e outro para, na legenda escolhida, o candidato de sua preferência<br />
– é a melhor fórmula para evitar tanto a dominação da burocracia<br />
partidária quanto a violação da vontade do eleitor, sem que os eleitos se<br />
sintam “donos de seus mandatos”. As vagas obtidas são combinadamente<br />
preenchidas: a primeira metade, com os mais votados na lista fechada, e a<br />
segunda, com as escolhas pessoais dos eleitores. É claro que, nessas circunstâncias,<br />
os candidatos, individualmente, não poderão fazer campanha, mas<br />
tão-somente participar de reuniões, comícios e debates, sem a distribuição<br />
de material pessoal de propaganda.<br />
As coligações para as eleições proporcionais devem ser totalmente proibidas<br />
para evitar o fenômeno da eleição de quem o eleitor não escolheu.<br />
Para auxiliar os pequenos partidos, é preferível permitir o bem sucedido modelo uruguaio<br />
de “federação de partidos” (que se mantêm unidos por toda a legislatura) – que, aliás, também<br />
pode suprir os problemas oriundos da adoção da cláusula de barreira. E, quanto a esta,<br />
para que não se constitua em obstáculo ao desempenho dos partidos, deve ser mitigadamente<br />
considerada, para as assembléias legislativas e câmaras municipais, de forma a combinar<br />
estímulo à capilarização partidária com o necessário respeito às normas de preordenamento,<br />
em matéria de engenharia institucional, que informam o federalismo brasileiro.<br />
Não pode haver nenhum vacilo em relação à exigência de fidelidade partidária. Em<br />
um país no qual a ninguém é dado concorrer a mandato eletivo se não estiver filiado a uma<br />
agremiação partidária, clama aos céus aceitar que, uma vez eleito, essa pessoa possa pura e<br />
simplesmente abandonar a sigla que usou e passar para outra sem que nada lhe aconteça.<br />
Mesmo que, de início, a fidelidade partidária só sirva para a aplicação da proporcionalidade<br />
para efeitos internos ao parlamento (montagem das comissões a partir do número de inte-<br />
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36 |<br />
Sandra Starling<br />
grantes das bancadas na data da diplomação), um curto prazo de tempo deve ser fixado para<br />
que se adote o sistema segundo o qual quem abandone uma sigla por sua livre vontade não<br />
possa vir a se candidatar ao final desse mandato. Quanto aos cargos executivos, desde o primeiro<br />
instante da reforma, deve ser expressamente proibida a troca de legenda, sob pena de<br />
imediata perda do mandato. Aqui deve ser também colocado o problema dos suplentes de<br />
senadores: tornou-se verdadeiro estelionato eleitoral a prática contumaz de<br />
Não pode haver nenhum colocar como suplente um parente ou o financiador da campanha. Temos,<br />
vacilo em relação à por isso, assistido, perplexos, a senadores tão biônicos quanto os do perío-<br />
exigência de fidelidade do militar, ilustres desconhecidos, jamais submetidos ao voto popular. Há<br />
partidária. Em um país que se estudar o problema e encontrar-lhe urgente solução.<br />
no qual a ninguém é dado Particularmente, sou partidária da limitação do número sucessivo de<br />
concorrer a mandato mandatos parlamentares: o desejável rodízio e a possibilidade igualitária<br />
eletivo se não estiver de que a maioria possa ter a oportunidade de ocupar um cargo público<br />
filiado a uma agremiação sugere que se estabeleça um teto: dois mandatos sucessivos para um dado<br />
partidária, clama aos nível e um mandato para nível diferente. Isso incluiria também mandatos<br />
céus aceitar que, uma executivos, totalizando sempre três, em ordem seqüencial.<br />
vez eleito, essa pessoa A recente iniciativa popular capitaneada pela Conferência Nacional<br />
possa pura e simplesmente dos Bispos do Brasil (CNBB) que levou à normatização da punição com a<br />
abandonar a sigla que usou perda do diploma e/ou do mandato quando o candidato houver se valido<br />
e passar para outra sem de meios escusos para obter o voto (compra ou promessa de emprego, por<br />
que nada lhe aconteça<br />
exemplo) – art. 41-A da Lei nº 9.504, de 1997 – deve ser acompanhada<br />
de sanção que contribua para afastar tais práticas em definitivo da vida<br />
política brasileira. Refiro-me a que o infrator da norma deva também ser impedido de<br />
concorrer a outro mandato por oito anos – à semelhança de interdição prevista na Lei das<br />
Inelegibilidades para quem violou o decoro parlamentar, a fim de evitar que, mal terminado<br />
o trânsito em julgado da decisão sobre o abuso eleitoral, o punido venha a candidatar-se<br />
a novo pleito. E quem sabe, valendo-se outra vez dos mesmos expedientes escusos. Sou<br />
contrária a que se apene quem violou a norma com a privação da liberdade, tanto porque<br />
ou o juiz não a aplicaria, por julgá-la desproporcional à falta cometida, ou ela seria inócua<br />
porque mereceria as benesses que sempre acompanham penas muito leves. Ademais, com<br />
o fracasso do sistema penitenciário brasileiro, estaríamos criando outros problemas para as<br />
nossas já apinhadas prisões.<br />
Questão complexa a exigir seu enfrentamento sem subterfúgios é o das condutas vedadas<br />
ao agente público, onde se inscreve a proibição de que o candidato, quando no exercício<br />
de mandato, possa valer-se do trabalho de servidor público, comissionado ou não. A<br />
própria Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, estabelece a proibição, mas menciona<br />
tão-somente os servidores do Poder Executivo. Ora, é evidente que os servidores do Judiciário<br />
também não podem trabalhar para candidatos. Mas e quanto aos servidores, efetivos ou<br />
comissionados, do Poder Legislativo, mormente os que estejam lotados nos gabinetes dos<br />
parlamentares candidatos a reeleição ou a outro cargo? A exceção, obviamente, feriria a isonomia<br />
de tratamento que se quer dar a todos os candidatos indistintamente. A lei estabelece<br />
que só pode participar de campanha o funcionário em gozo de licença, e a jurisprudência e a
Nota<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
doutrina equiparam a licença às férias regulamentares. Além dessas hipóteses, apenas no horário<br />
pós-expediente. Isso não afasta de todo o problema porque, em verdade, em verdade,<br />
ou os servidores passam o período eleitoral recebendo remuneração para nada fazerem, ou a<br />
lei será de alguma maneira burlada, já que a tendência (e a necessidade) é a de que todos os<br />
que trabalham em gabinetes venham a se engajar nos trabalhos da campanha. Não há rotina<br />
específica de gabinete parlamentar sem a presença do titular.<br />
Last, but not least é o problema dos poderes e da composição dos tribunais eleitorais:<br />
o rodízio de seus componentes, se por um lado vem a obviar a possibilidade de que seus<br />
integrantes tenham majoritariamente uma dada posição partidária, por outro lado torna o<br />
Direito Eleitoral verdadeiro tormento para quem a ele se dedica ou dele depende, com a<br />
possibilidade de interpretações muito distintas em pequenos intervalos de tempo. Por outro<br />
lado, a impossibilidade de atuação ex officio em inúmeras situações tem impedido que a Justiça<br />
Eleitoral cumpra com rigor seu papel de igualar, tanto quanto possível, candidatos concorrentes.<br />
Em que pesem os prazos muito exíguos no decorrer do período eleitoral, ainda<br />
impera a morosidade, devido à sujeição à jurisdição de elevado número de contenciosos que<br />
tornam esse ramo do Direito – especialíssimo para a democracia – caricatura diante do que<br />
decide, quando as decisões incidem sobre mandatos impugnados quando esses caminham<br />
para seu termo final. Daí porque são ainda raros, em nosso país, os casos de reconhecimento<br />
de abuso do poder econômico, político e administrativo, quando salta aos olhos de qualquer<br />
um a realidade da prática desses delitos.<br />
Interpretações ao longo do processo eleitoral também podem impedir que a disputa<br />
igual permaneça assim: o recente pleito de 2006 foi um exemplo disso. A estrita observância<br />
do dispositivo que proibia camisetas, bottons e outros brindes, ao início da campanha, foi,<br />
depois, substituída pela interpretação de que a utilização deles pelo eleitor não estaria abrangida<br />
pela lei, em virtude do primado constitucional da liberdade de expressão. Ora, como<br />
essa decisão veio tarde demais, só os candidatos que tinham maiores recursos puderam pagar,<br />
para que fossem feitos a toque de caixa para serem usados no dia das eleições...<br />
1 A sobre-representação acentuada das duas regiões começa durante a ditadura militar, com a criação dos Estados do<br />
Mato Grosso do Sul e Rondônia, e se aprofunda a partir da nova Constituição, com a criação dos estados de Roraima,<br />
Amapá e Tocantins (sem a diminuição correspondente da representação de Goiás). Vale registrar que a região Nordeste,<br />
ao contrário do que comumente se pensa, não tem apresentado sobre-representação na Câmara desde a década de 60.<br />
Mesmo no Senado, o número de representantes excede em pouco o que corresponderia por distribuição proporcional.<br />
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Fernando Henrique Cardoso* e Eduardo Graeff**<br />
O próximo passo<br />
A reforma política entra e sai da agenda nacional desde o ocaso do regime militar. Para<br />
trazer alguma idéia nova ao debate, é bom parar para pensar por que ele avançou tão pouco<br />
até hoje e por que sempre volta à ordem do dia.<br />
Alguns questionam a razão de ser de uma discussão que não pára nem aparentemente<br />
vai a lugar nenhum. “O político, quando não tem o que fazer, começa a falar de reforma política”,<br />
alfinetou Leôncio Martins Rodrigues recentemente, desconfiado de que a proposta<br />
de tratar da reforma numa miniconstituinte seja “um factóide para desviar da questão central,<br />
que é a corrupção”. 1 Wanderley Guilherme dos Santos, de outra perspectiva política,<br />
também enxerga motivos ocultos na discussão. “Não existe relação sistemática entre tipos<br />
de sistema político-eleitoral e nível de corrupção ou desempenho de desenvolvimento”,<br />
argumenta, para concluir que as propostas de alteração do sistema de representação proporcional<br />
encobrem uma reação conservadora à invasão da política pelas massas de eleitores e<br />
candidatos desvinculados das elites tradicionais. 2<br />
Qualquer proposta de mudança das regras do jogo político comporta a suspeita, senão<br />
a certeza, de favorecer uns e prejudicar outros – candidatos, partidos, situações, setores da<br />
sociedade. Feita a ressalva óbvia, sustentamos que, apesar disso ou por isso mesmo, o debate<br />
não pode ser afastado como mera cortina de fumaça. Se há mais de vinte anos a reforma<br />
política volta à pauta, embalada por interesses diferentes em circunstâncias diferentes, é porque<br />
nossas instituições têm de fato problemas graves de eficiência e transparência. Ocorre<br />
que o foco dos problemas e sua percepção pelos atores envolvidos foram mudando com o<br />
tempo, o que não ajuda a clarificar as alternativas em jogo. O retrospecto feito na primeira<br />
parte deste artigo sugere que nesses vinte e poucos anos o eixo do debate se deslocou da<br />
*Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República.<br />
**Eduardo Graeff, sociólogo, é assessor do PSDB na Câmara dos Deputados e analista político do site e-agora (www.<br />
e-agora.com.br). Foi secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
liberdade em face do autoritarismo para a governabilidade democrática, para a legitimidade<br />
das instituições representativas.<br />
A boa proposta não é a que aponta para um desenho institucional ótimo abstrato, mas<br />
a que permite a convergência de opiniões e interesses concretos, necessariamente diversos,<br />
“impuros” e variáveis, para dar um passo adiante no processo de democratização do país. É<br />
para isso que tentamos apontar na conclusão, aprendendo com os avanços que ocorreram,<br />
apesar de tudo, e com os tropeços das tentativas de reforma.<br />
Casuísmos no caminho da transição<br />
Comecemos pelo balanço histórico. A mudança da legislação eleitoral e partidária entrou<br />
na pauta da transição democrática brasileira sob o signo dos “casuísmos” destinados<br />
a manter o processo político no trilho da “abertura lenta, gradual e segura” do presidente<br />
Ernesto Geisel, firmando a jurisprudência histórica de que não há propostas inocentes nessa<br />
matéria. A isso a oposição respondeu sustentando a bandeira das liberdades democráticas –<br />
anistia, direitos humanos, livre organização partidária, eleições diretas em todos os níveis – e<br />
mantendo o cerco ao regime – um cerco pacífico, mas que excluiu acordos explícitos sobre<br />
as etapas e o ponto de chegada da transição.<br />
O “pacote de abril” de 1977, baixado com o Congresso fechado temporariamente,<br />
tentou frear o crescimento do MDB mantendo as eleições indiretas de governador, torcendo<br />
a proporcionalidade da representação na Câmara a favor dos estados menos urbanizados,<br />
introduzindo o senador “biônico” – eleito pelo mesmo colégio indireto do governador – e<br />
alterando a composição do colégio eleitoral indireto para presidente. Isso não impediu a<br />
oposição de crescer mais em 1978, sobretudo nas eleições para o Senado. Em agosto de<br />
1979 o presidente João Figueiredo sancionou a Lei da Anistia. No fim do ano, mobilizou<br />
sua maioria no Congresso para abolir o bipartidarismo compulsório e extinguir a Arena e<br />
o MDB, esperando fragmentar os oposicionistas, inclusive os que voltavam do exílio, enquanto<br />
os governistas continuariam unidos no mesmo partido com outro nome.<br />
A reformulação partidária induzida deu certo a medias para o governo. A Arena converteu-se<br />
em PDS quase sem perda de substância. O velho trabalhismo voltou à cena dividido<br />
em duas legendas, PTB e PDT, por artes do general Golbery do Couto e Silva. O novo<br />
sindicalismo aliado a setores de esquerda católicos e comunistas fundou o PT. Mas o PP,<br />
criado por Tancredo Neves e Magalhães Pinto para ser uma “terceira via”, inviabilizou-se<br />
depois que o governo recorreu a mais casuísmos – proibição de coligações e voto vinculado<br />
para deputado e governador – para favorecer o PDS. Reincorporou-se ao PMDB, a bordo<br />
do qual a maioria da oposição optara por continuar.<br />
Em 1980 o governo propôs e o Congresso aprovou por unanimidade a volta das eleições<br />
diretas de governador e da totalidade dos senadores, acabando com o “biônico”. Em<br />
1982 o PMDB elegeu nove governadores, entre eles Franco Montoro em São Paulo e Tancredo<br />
Neves em Minas Gerais; o PDT, somente Leonel Brizola no Rio de Janeiro; o PDS,<br />
doze, dos quais nove no Nordeste. 3 Estava pronto o cenário do cerco final ao regime, para<br />
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Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff<br />
o qual convergiram as oposições unidas, com respaldo dos novos governadores, e a insatisfação<br />
difusa da sociedade com os sinais de crise econômica.<br />
Em abril de 1984, vendo seu PDS vacilar às vésperas da votação da Emenda Dante de Oliveira,<br />
o governo apresentou uma alternativa de negociação. A Emenda Figuei-<br />
A literatura política redo, inspirada pelo chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu, adiava as eleições<br />
apelidou “doble minoria” diretas de presidente para 1988 em troca de diretas para prefeito das capitais<br />
a situação, recorrente em 1986 e da devolução de prerrogativas do Congresso, entre vários pontos.<br />
na América Latina, de Em outras circunstâncias a proposta poderia atrair a oposição. Com o<br />
presidentes em dificuldade clamor das Diretas Já ecoando nas ruas, mesmo depois da derrota na Câ-<br />
para governar sem respaldo mara, não havia clima para negociar. Nem clima nem interlocutor do lado<br />
da maioria absoluta do governo, dividido entre as candidaturas de Mário Andreazza e Paulo<br />
do eleitorado nem da Maluf, ambos inaceitáveis para a oposição como fiadores de uma transição<br />
maioria do Legislativo<br />
pactuada. Acontece que o PMDB tinha o candidato alternativo capaz de<br />
somar o respaldo das ruas, o apoio dos dissidentes do PDS e o nihil obstat<br />
dos chefes militares. Os dissidentes deixaram o PDS e criaram o PFL. E a maioria, que não<br />
alcançara quórum qualificado de dois terços para reintroduzir na Constituição as eleições<br />
diretas de presidente, se recompôs na Aliança Democrática para eleger Tancredo pelo colégio<br />
indireto. A morte de Tancredo às vésperas da posse acrescentou o toque do acidente aos<br />
caprichos da História, levando à Presidência não o candidato da oposição, mas o vice, José<br />
Sarney, que representava em sua chapa a dissidência liberal do partido do governo.<br />
A devolução do poder aos civis sem mudança da regra de eleição presidencial imposta<br />
pelos militares foi, assim, o resultado imprevisto de um processo em que tanto as manobras<br />
protelatórias do governo quanto o cerco da oposição tiveram por horizonte a restauração das<br />
liberdades democráticas, mais do que a reforma das instituições.<br />
O presidente em minoria<br />
A literatura política apelidou “doble minoria” a situação, recorrente na América Latina,<br />
de presidentes em dificuldade para governar sem respaldo da maioria absoluta do eleitorado<br />
nem da maioria do Legislativo. 4 A eleição em dois turnos introduzida pela Constituição de<br />
1988 livrou os presidentes brasileiros do primeiro problema. A fragmentação do sistema<br />
partidário os expôs intensamente ao segundo. Os riscos à governabilidade acarretados pelo<br />
equilíbrio instável entre Executivo e Legislativo ocuparam o centro das discussões sobre<br />
reforma política no Brasil daí em diante.<br />
A Emenda Constitucional n° 25, de maio de 1985, saldou o compromisso da Aliança<br />
Democrática com a liberalização partidária, permitindo o registro dos partidos de esquerda<br />
e de toda uma safra de novas legendas. A Constituinte de 1987-88 completou o ciclo de<br />
restauração das liberdades democráticas e assistiu àquilo que o autoritarismo em declínio<br />
tentara em vão produzir: a implosão do PMDB, precipitada por divergências sobre temas<br />
importantes da pauta constitucional e pela ambigüidade em relação ao governo Sarney.<br />
Num primeiro momento o quadro partidário continuou concentrado, apesar da liberalização<br />
da legislação. De fato, mais concentrado. Em 1986, embalado pela popularidade
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
do Plano Cruzado, o PMDB elegeu 22 dos 23 governadores, mais de dois terços do Senado<br />
e a maioria absoluta da Câmara dos Deputados. Triunfo retumbante, desperdiçado por falta<br />
de clareza do que fazer com o país depois de virada a página do autoritarismo. O recrudescimento<br />
da inflação e os escândalos de corrupção, tendo por trás o revigoramento de velhas<br />
práticas patrimonialistas e clientelistas, frustraram as esperanças na Nova República, nome<br />
cunhado por Tancredo para o período de construção democrática que ele deveria presidir.<br />
O governo Sarney e os partidos que o apoiavam ou deveriam apoiar colheram um voto<br />
de repúdio acachapante na eleição presidencial de 1989. Collor de Mello, pelo quase inexistente<br />
PRN, liderou o primeiro turno com 30% dos votos válidos e ganhou o segundo turno.<br />
Lula, pelo PT, com 17%, e Brizola, pelo PDT, com 16%, disputaram a outra vaga para o<br />
segundo turno. Mário Covas, pelo recém-fundado PSDB, teve 11%; Ulysses Guimarães,<br />
pelo PMDB, menos de 5%; e Aureliano Chaves, pelo PFL, menos de 1%.<br />
As eleições gerais de 1990 trouxeram de volta um quadro partidário ainda mais fragmentado<br />
que o de antes de 1964, com dezenove partidos representados na Câmara – o PMDB com 21%<br />
dos assentos, o PFL com 16% e os demais, inclusive o PRN de Collor, com menos de 10%.<br />
A condição de presidente em minoria no Congresso não atrapalhou Collor no primeiro<br />
ano de governo, no auge da popularidade, diante de uma legislatura em fim de mandato.<br />
No segundo ano, quando ele acordou para a necessidade de se compor com os partidos<br />
numa legislatura recém-eleita, era tarde. Com a popularidade consumida pelo fracasso da<br />
política antiinflacionária e pela exposição dos negócios obscuros de seu caixa de campanha,<br />
a falta de uma base parlamentar consistente custou-lhe as condições de governar e, por fim,<br />
em dezembro de 1991, o próprio mandato.<br />
A forte participação popular e a obediência ao rito legal no processo de impeachment<br />
pareceram sinais de vitalidade democrática. Mas o fracasso do primeiro presidente eleito<br />
pelo voto popular depois da redemocratização acendeu o sinal amarelo sobre a questão da<br />
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Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff<br />
governabilidade e catapultou a reforma política ao topo da lista de prioridades de cientistas<br />
políticos, economistas e outros observadores e atores da cena política. A “mãe de todas as<br />
reformas”, diz-se desde então. Mas qual reforma?<br />
A forte participação Àquela altura as propostas sobre a mesa apontavam em duas direções<br />
popular e a obediência não excludentes. De um lado o parlamentarismo, rejeitado na Constituin-<br />
ao rito legal no processo te e que teria uma segunda chance no plebiscito marcado para 1993. Do<br />
de impeachment outro lado um conjunto de medidas destinadas a limitar a fragmentação<br />
pareceram sinais de dos partidos, torná-los mais coesos internamente e, assim, em tese, qualifi-<br />
vitalidade democrática<br />
cá-los como interlocutores do presidente na busca de maioria congressual<br />
para suas propostas.<br />
A segunda chance do parlamentarismo foi perdida no plebiscito sem que se desfizesse<br />
um equívoco básico: que ele viria deslocar o comando político do país do presidente para o<br />
Congresso. Na verdade o parlamentarismo típico garante o alinhamento quase automático<br />
da maioria do Legislativo com a chefia do Executivo, exercida pelo primeiro-ministro e seu<br />
gabinete. A maioria dos políticos que defenderam o parlamentarismo na Constituinte e dos<br />
eleitores que o rejeitaram no plebiscito parece ter acreditado no contrário. Na Constituinte,<br />
a defesa do parlamentarismo o contrapôs freqüentemente ao “presidencialismo imperial”<br />
moldado pelo regime militar. A discussão de suas regras específicas se deteve às hipóteses de<br />
rejeição ou destituição de ministros, minimizando a possibilidade recíproca de dissolução<br />
da Câmara, que é essencial na lógica do sistema parlamentar. No plebiscito, os defensores<br />
do presidencialismo aproveitaram a deixa e venderam a idéia de que o parlamentarismo se<br />
destinava a enfraquecer o presidente e trazer de volta a eleição indireta dos governantes, na<br />
contramão das Diretas Já. A situação típica é outra, como se sabe: o primeiro-ministro não<br />
sai do bolso do colete de uma maioria parlamentar ad hoc. Como candidato ao Parlamento<br />
e líder de partido ou coligação, é ele que faz a maioria na medida em que “puxa” a eleição<br />
de seus companheiros de chapa.<br />
Com ou sem equívoco, o plebiscito arquivou pelo menos por um bom tempo a alternativa<br />
parlamentarista. A pauta da reforma política afunilou, por exclusão, para propostas<br />
de mudança da legislação eleitoral e partidária. O ambiente em que essas propostas vêm à<br />
discussão, no entanto, já não é marcado por uma preocupação tão aguda com a governabilidade.<br />
Sem que ninguém se desse conta naquela altura, o impeachment foi o divisor de<br />
águas para um período de mudanças significativas, não tanto nas regras do jogo, mas no<br />
andamento de fato das relações Executivo-Legislativo.<br />
Governabilidade sem confiança<br />
O fantasma da “falta de condições políticas” pairou sobre o Plano Real desde seu primeiro<br />
esboço apresentado por Fernando Henrique Cardoso pouco depois de assumir o<br />
Ministério da Fazenda, em maio de 1993. O vice-presidente Itamar Franco, sucessor legal<br />
de Collor, montara um governo de coalizão ampla mas que não parecia ter respaldo popular<br />
nem tempo hábil, a pouco mais de um ano das eleições gerais, para levar a cabo um plano<br />
de controle da inflação. O que o novo presidente, o Congresso e a maioria do povo queriam
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
era congelamento de preços ao estilo do Cruzado. Analistas e atores políticos e econômicos<br />
acostumados a projetar o futuro como repetição do passado previam que as medidas<br />
de austeridade fiscal embutidas no Plano FHC, como foi chamado inicialmente, teriam o<br />
mesmo fim de propostas semelhantes nos governos Sarney e Collor: as gavetas da própria<br />
Presidência ou do Congresso.<br />
As medidas foram aprovadas, embora com dificuldade, à custa de muita negociação<br />
dentro do governo e com o Congresso. A queda da inflação a partir de julho de 1994 e a<br />
subida do candidato presidencial que, como ministro, coordenara o plano afinal venceram<br />
o ceticismo predominante.<br />
O ciclo de reformas aberto pelo Real envolveu tanto o aumento das iniciativas legislativas<br />
do Executivo como uma melhora substancial de sua acolhida pelo Congresso. O<br />
número de emendas feitas à Constituição de 1988 pode ser tomado como um indicador<br />
aproximado dessa inflexão. Foram 2 no governo Collor, ambas de iniciativa do Congresso;<br />
2 no governo Itamar, além das 6 emendas da revisão constitucional de março a junho de<br />
1994, todas de iniciativa do Congresso; e 35 nos dois períodos de governo FHC, das quais<br />
17 de iniciativa do Executivo.<br />
Há fatores circunstanciais que ajudam a explicar a passagem pelo Congresso dos pontos<br />
menos palatáveis do Plano Real. A saturação com a crise inflacionária predispunha a<br />
sociedade e os políticos a aceitar medidas heróicas, num efeito que Albert<br />
Hirschman constatou em outros países da região. 5 Isso ajudou a diminuir<br />
o apego ao velho Estado varguista e convencer setores influentes da sociedade<br />
da necessidade de reformar o Estado para adequá-lo às exigências e<br />
oportunidades da globalização, assim como à demanda interna por participação<br />
e justiça social. O apoio dos meios de comunicação contrabalançou<br />
a relutância ou franca oposição dos próprios aliados do governo a esta<br />
ou aquela proposta. O envolvimento de vários parlamentares – não só do<br />
“baixo clero” – no escândalo dos “anões do orçamento”, em 1993, neutralizou<br />
tradicionais adversários do controle do gasto público. A presença de um ministro,<br />
depois presidente, híbrido de universitário e parlamentar ajudou eventualmente a superar a<br />
brecha entre o mundo dos técnicos e o dos políticos.<br />
Há condições mais permanentes, por outro lado, que concorreram para melhorar as<br />
relações Executivo-Legislativo e dar passagem às reformas no período subseqüente. Alguma<br />
coisa a experiência ensina: a coligação PSDB-PFL-PTB na eleição presidencial de 1994 e<br />
a adesão posterior do PMDB e PPR (depois PP) deram ao governo FHC a ampla maioria<br />
parlamentar que faltara a Collor. O PT, embora crítico ferrenho das alianças à direita,<br />
seguiu o mesmo caminho em 2002: coligou-se ao PL na eleição presidencial e reproduziu<br />
uma coalizão tão ampla quanto a anterior em torno do governo Lula, incluindo o PTB, PP<br />
e parte do PMDB. Além disso, houve mudanças institucionais. A assincronia dos mandatos<br />
do presidente e do Congresso é reconhecidamente uma condição que dificulta a coordenação<br />
das respectivas agendas. 6 O ciclo de reformas<br />
aberto pelo Real envolveu<br />
tanto o aumento das<br />
iniciativas legislativas<br />
do Executivo como uma<br />
melhora substancial de sua<br />
acolhida pelo Congresso<br />
Com a redução do mandato presidencial para quatro anos<br />
na revisão constitucional, as eleições para os dois Poderes tornaram-se concomitantes desde<br />
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Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff<br />
1994. A possibilidade da reeleição desde 1998 também contribuiu para fortalecer o presidente<br />
diante dos partidos e do Congresso.<br />
Apoio de uma ampla coalizão partidária, coincidência de mandatos e reeleição ajudaram<br />
a manter a estabilidade política e consolidar a estabilidade econômica através das<br />
sucessivas crises financeiras externas que marcaram os oito anos do governo FHC.<br />
Uma conjetura é inevitável: sem esses mesmos três fatores, o presidente<br />
Apoio de uma ampla Lula teria sobrevivido politicamente, como conseguiu até agora, a denúncias<br />
coalizão partidária, de corrupção tão ou mais graves do que as que levaram ao impeachment<br />
coincidência de mandatos de Collor?<br />
e reeleição ajudaram a Não se pode dizer que a acolhida do Congresso às iniciativas do Exe-<br />
manter a estabilidade cutivo piorou. Recorrendo ao mesmo indicador, de 2003 até hoje foram<br />
política e consolidar a aprovadas treze emendas constitucionais, das quais três originárias do Exe-<br />
estabilidade econômica cutivo. O ritmo das iniciativas, sim, diminuiu.<br />
através das sucessivas De fato, não foi a falta de apoio ao presidente no Congresso que trou-<br />
crises financeiras externas xe a reforma política de volta à ordem do dia. Foi a exposição dos meios<br />
que marcaram os oito ilícitos usados por colaboradores do presidente e dirigentes do seu partido<br />
anos do governo FHC<br />
para conseguir apoio e o grande número de parlamentares que se deixaram<br />
cooptar por esses meios.<br />
Aos indícios de corrupção sistêmica no governo, o presidente e seus escudeiros contrapuseram<br />
a tese da corrupção endêmica das instituições. Fazendo da crítica às mazelas<br />
tradicionais do sistema eleitoral e partidário brasileiro a confirmação “sociológica” do senso<br />
comum de que na penumbra da política todos os gatos são pardos, conseguiram descolar o<br />
presidente dos escândalos. Ao preço, porém, de lançar ao descrédito o Congresso, os partidos<br />
e os políticos em geral.<br />
A reforma política volta à ordem do dia, assim, num contexto em que, mais do que a governabilidade,<br />
a confiança nas instituições – sua legitimidade, portanto – é a questão fundamental.<br />
<strong>Reforma</strong> política e reforma do Estado<br />
“A César o que é de César”. Instituições representativas defeituosas podem explicar por<br />
que tantos parlamentares aceitaram dinheiro ilegal dos emissários do governo ou de seu partido,<br />
como o presidente do PTB revelou em junho de 2005, uma CPI confirmou e o procurador-geral<br />
da República denunciou à Justiça. Para explicar por que e como o dinheiro chegou a<br />
ser oferecido, é preciso olhar para outro lado: para dentro do governo e de seu partido.<br />
Este não é o lugar para discutir os problemas internos do PT. Mas as brechas que permitiram<br />
ao partido usar o governo para “aparelhar” o Estado não podem ser ignoradas, sob<br />
pena de se criar, aí sim, uma cortina de fumaça ou, pior, um jogo de espelhos para fazer<br />
parecer que “a política” – entenda-se: as eleições, os partidos, o Congresso – é a fonte de<br />
todos os males.<br />
A fim de responder ao déficit de confiança em toda a sua extensão, a reforma política deve<br />
convergir com a reforma do Estado para aumentar tanto a eficiência como a transparência das<br />
estruturas do Executivo. Isso inclui medidas como o estabelecimento de critérios legais estritos
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
de profissionalismo e competência no preenchimento dos cargos de direção e assessoramento<br />
superior da administração direta e das empresas estatais; a redução dos cargos de confiança<br />
de livre provimento e o fortalecimento dos mecanismos de recrutamento, qualificação e promoção<br />
dos servidores de carreira; a regulamentação do uso dos meios de comunicação pelo<br />
governo para garantir o acesso público à informação e coibir a manipulação política da propaganda<br />
oficial e de suas verbas; o reforço dos mecanismos de controle interno, externo (pelo<br />
Congresso e TCU) e social da administração para impor obediência a todas essas regras.<br />
Representação em xeque<br />
Isto posto, as falhas das instituições representativas não podem ser subestimadas.<br />
A ênfase na questão da legitimidade não significa que a da governabilidade esteja superada.<br />
As duas se conjugam, na verdade. Apesar dos avanços assinalados na prática e nas<br />
regras do jogo, nosso sistema de governo ainda é um arremedo de “presidencialismo de coalizão”,<br />
no qual a presença de representantes dos partidos no ministério e em outros postos<br />
do Executivo não garante seu apoio efetivo às propostas do governo no Congresso. A multiplicidade<br />
de partidos e sua falta de comando sobre as respectivas bancadas parlamentares<br />
obrigam o presidente e seus articuladores políticos a um esforço de Sísifo para conseguir<br />
maioria parlamentar, no limite negociando projeto a projeto, voto a voto. Missão, se não<br />
impossível, terrivelmente árdua, sobretudo em matérias ao mesmo tempo complexas e controvertidas,<br />
como a reforma previdenciária – o que por certo não justifica o uso de meios<br />
ilícitos de cooptação de parlamentares. A contrapartida disso do ponto de vista do eleitor<br />
é a dificuldade de fazer escolhas significativas numa enorme multiplicidade de partidos e<br />
candidatos, principalmente à Câmara dos Deputados. O resultado final é o esgarçamento<br />
do vínculo entre representante e representados.<br />
O multipartidarismo é um efeito típico dos sistemas de representação proporcional, ainda<br />
mais numa federação grande e heterogênea como a brasileira. A frouxidão do<br />
O descolamento entre vínculo dos representantes eleitos com o partido é característica do sistema<br />
representantes e proporcional com lista aberta adotado no Brasil para a Câmara dos Deputa-<br />
representados pode soar dos e os legislativos estaduais e municipais. O descolamento entre represen-<br />
paradoxal num sistema tantes e representados pode soar paradoxal num sistema como esse, em que<br />
como esse, em que o o voto é dado geralmente à pessoa do candidato mais do que ao partido. O<br />
voto é dado geralmente vínculo pessoal se dilui, porém, numa sociedade de massa, quando centenas<br />
à pessoa do candidato ou milhares de candidatos disputam o voto de milhões de eleitores no mesmo<br />
mais do que ao partido<br />
colégio eleitoral. Nessas condições, a escolha de um candidato tende a ser bastante<br />
aleatória. É difícil para a maioria lembrar em quem votou e mais difícil<br />
ainda dizer quem é o “seu” deputado.<br />
Faz tempo que esse sistema eleitoral dá sinais de fadiga. Do ponto de vista dos representantes,<br />
a taxa de reeleição para a Câmara dos Deputados é sempre muito baixa, de 50%<br />
ou menos, sem que a alta rotatividade signifique renovação em qualquer sentido determinável,<br />
muito menos melhora de qualidade das legislaturas. As campanhas eleitorais custam<br />
cada vez mais caro. As chances de reeleição de um deputado dependem cada vez menos do<br />
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46 |<br />
Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff<br />
bom desempenho de suas funções de legislador e fiscal do governo e cada vez mais do seu<br />
atendimento a clientelas locais ou setoriais. Isso faz do deputado típico um representante<br />
em busca de representados, isto é, de novas clientelas que tentará atender<br />
Se o sistema eleitoral é via emendas orçamentárias, favores do governo ou vantagens legais. Nes-<br />
efetivamente tão ruim sa busca permanente de possíveis apoios e moedas de troca – de chances<br />
para representantes de sobrevivência eleitoral, em última análise – a mudança de partido no<br />
e representados, por meio do mandato tem sido uma opção cada vez mais freqüente. Do ponto<br />
que eles não se mexem de vista dos representados, a percepção de um toma-lá-dá-cá generalizado<br />
mais para mudá-lo?<br />
entre parlamentares, governo, partidos e clientelas alimenta o sentimento<br />
antipolítica e joga o Congresso para os últimos lugares nas pesquisas que<br />
medem a confiança do público nas instituições. O uso da urna eletrônica nas eleições gerais<br />
desde 1998 talvez explique por que esse sentimento não se traduziu mais recentemente<br />
numa enxurrada de votos brancos e nulos para deputado, como aconteceu em 1990 e 1994,<br />
quando passaram de 40%. Mas essa proporção voltou a subir nas eleições de 2006, para<br />
10%, depois de baixar consistentemente em 1998 e 2002.<br />
Voltamos à pergunta do início deste artigo, em termos mais específicos: se o sistema<br />
eleitoral é efetivamente tão ruim para representantes e representados, por que eles não se<br />
mexem mais para mudá-lo?<br />
Por duas razões, possivelmente: tradição e falta de alternativa.<br />
O mesmo sistema proporcional, com poucas modificações, está em uso no Brasil desde<br />
1945 – tempo para sucessivas gerações de políticos aprenderem a operar dentro dele, com<br />
todos os seus truques. O peso da tradição explica termos atravessado duas mudanças de<br />
regime, três Constituições, dois plebiscitos sobre sistema de governo, sem que nenhuma<br />
liderança, partido ou corrente política erguesse realmente a bandeira da reforma eleitoral.<br />
O tema passou praticamente em branco na Constituinte de 1987-88, com todas as atenções<br />
voltadas para o embate sobre o sistema de governo e a duração do mandato presidencial. Os<br />
defensores do presidencialismo alegavam que o parlamentarismo precisaria de partidos mais<br />
fortes para funcionar sem sobressaltos. Nem isso trouxe à baila os efeitos desagregadores do<br />
sistema eleitoral sobre o sistema partidário.<br />
Por falta de alternativa entenda-se: alternativa atraente ou pelo menos aceitável para<br />
representantes e representados. As propostas de sistema misto proporcional-distrital e proporcional<br />
com lista preordenada apresentadas nos últimos anos esbarram numa grande dificuldade:<br />
a incerteza dos deputados sobre suas chances de reeleição. Estas são longe de brilhantes<br />
no atual sistema, mas não seriam piores em outro? Os distritos do sistema misto se<br />
encaixariam nas bases dos atuais deputados? Qual seria a influência dos caciques regionais e<br />
do poder econômico na colocação dos candidatos na lista preordenada? A isso se acrescenta<br />
a dificuldade de os eleitores e boa parte dos próprios deputados entenderem as complexidades<br />
dos sistemas alternativos, principalmente do sistema misto.
A chance do voto distrital<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
O tema da reforma política volta à pauta, no entanto, trazido pelo mal-estar difuso<br />
com o status quo e pela cobrança da mídia e dos setores mais informados da sociedade diante<br />
da série sem fim de escândalos.<br />
Mudanças pontuais da legislação eleitoral e partidária aprovadas pelo Senado e ora em<br />
discussão na Câmara – financiamento público das campanhas eleitorais, regras mais estritas<br />
de filiação e fidelidade partidária – não deixariam de representar avanços, como parecia um<br />
avanço a “cláusula de desempenho” impugnada pelo STF antes de produzir efeitos. Mas,<br />
sem mudança do sistema eleitoral, elas parecem paliativas, se é que não são contraditórias<br />
com a manutenção do sistema vigente.<br />
Nesse contexto o voto distrital puro entra pela primeira vez em discussão no Congresso,<br />
por proposta de emenda constitucional do deputado Arnaldo Madeira.<br />
Pode-se antecipar objeções a essa alternativa, como às anteriores.<br />
Os pequenos partidos temem por sua sobrevivência num sistema majoritário, teoricamente<br />
desfavorável à representação de minorias, tendente ao bipartidarismo, segundo alguns.<br />
O temor parece exagerado quando se olha o número atual de partidos com prefeitos (23),<br />
senadores (11) e governadores (8), cargos eleitos desde sempre pelo princípio majoritário.<br />
Outra objeção é que deputados eleitos pelo sistema distrital seriam “vereadores federais”,<br />
voltados para os assuntos de interesse local de suas bases, deixando sem voz nem voto<br />
no Congresso correntes de opinião sobre temas mais gerais. Não é o que se observa em câmaras<br />
eleitas pelo voto distrital pelo mundo afora; o fato de representar uma localidade não<br />
impede o parlamentar de tomar posição sobre qualquer assunto. De resto, é de se perguntar<br />
quantos são hoje os “representantes de opinião” na Câmara dos Deputados. O certo é que<br />
a imensa maioria depende de clientelas locais e/ou setoriais, com a desvantagem de que sua<br />
relação com elas nem sempre tem a transparência nem a previsibilidade<br />
O certo é que a imensa desejáveis. O melhor caso talvez seja o do grande número de deputados<br />
maioria depende de cuja votação já é distritalizada de fato.<br />
clientelas locais e/ O sistema distrital enseja um tipo peculiar de casuísmo: a manipulação do<br />
ou setoriais, com a traçado dos distritos para favorecer um candidato, partido ou grupo de interesse.<br />
desvantagem de que A proposta do deputado Arnaldo Madeira previne o risco do gerrymandering –<br />
sua relação com elas como os americanos chamam essa arte tradicional na sua política – encarregando<br />
nem sempre tem a a justiça eleitoral de definir e redefinir os limites dos distritos (nos Estados<br />
transparência nem a Unidos isso costuma ser feito pelos legislativos estaduais).<br />
previsibilidade desejáveis<br />
E a influência dos caciques regionais ou/e do poder econômico na<br />
escolha dos candidatos, quererão saber os deputados e aspirantes? Este é<br />
um aspecto em que o sistema distrital provavelmente leva vantagem sobre o atual e sobre as<br />
demais alternativas, tanto do ponto de vista dos representantes como dos representados.<br />
No sistema atual, a composição das chapas para deputado federal, estadual ou vereador<br />
não costuma ser pacífica. Há disputas ferozes por “espaço” em dada região ou setor da sociedade.<br />
O poder econômico influencia o resultado? Eventualmente. E os caciques regionais?<br />
Com certeza. Acontece que essas e outras influências se dão nos bastidores, nas negociações<br />
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Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Graeff<br />
febris que antecedem a convenção estadual ou municipal. À convenção mesmo chega, invariavelmente,<br />
uma chapa única. Excepcionalmente há disputa aberta pelas candidaturas<br />
majoritárias. Sabe-se de um caso ao menos em que a composição das chapas proporcionais<br />
foi a voto na convenção? Quem prevê que vai “sobrar” muda de partido no prazo de filiação.<br />
A maioria dos aspirantes se acomoda na “cauda” de candidatos sem chance efetiva mas que<br />
somam votos para o partido.<br />
Num sistema misto ou proporcional com lista preordenada, a disputa tende a ser muito<br />
mais dura, porque não é só para entrar na chapa, mas por uma colocação que garanta<br />
a eleição do candidato individual dentro do número de vagas que o partido vier a ganhar.<br />
Isso torna crítico o risco de manipulação, em detrimento do eleitor –<br />
Há outro risco, menos privado de escolher pessoalmente seu candidato – e dos eleitos – sujeitos<br />
óbvio mas não menos a se tornarem reféns de oligarquias partidárias. As transgressões praticadas<br />
grave: o de bancadas pelas direções de vários partidos nos escândalos recentes recomendam cau-<br />
parlamentares tela em relação a essa possibilidade. Há outro risco, menos óbvio mas não<br />
estritamente subordinadas menos grave: o de bancadas parlamentares estritamente subordinadas às<br />
às direções partidárias direções partidárias travarem, em vez de facilitarem, as negociações Execu-<br />
travarem, em vez de tivo-Legislativo. A lógica do parlamentarismo contém suas defesas contra<br />
facilitarem, as negociações esse risco – no limite, com a dissolução da Câmara e a convocação de novas<br />
Executivo-Legislativo. A eleições. O presidencialismo, não. Seu funcionamento com partidos muito<br />
lógica do parlamentarismo fragmentados e pouco coesos é difícil. Mas com partidos rígidos demais<br />
contém suas defesas pode ser impossível ou quase, como demonstram em alguma medida o<br />
contra esse risco – no Chile pré-Pinochet e a Argentina de Alfonsín e De La Rua.<br />
limite, com a dissolução O sistema distrital dá peso à ligação do representante com seu partido,<br />
da Câmara e a convocação na medida em que cada partido lança somente um candidato por distrito.<br />
de novas eleições. O Mas não tanto peso que faça do mandatário eleito um representante do<br />
presidencialismo, não<br />
partido mais que do eleitor. É o partido que lança o candidato, mas é o<br />
candidato em pessoa que recebe os votos. Isso tende a moderar a influência<br />
da direção partidária e deixa o representante exercer o mandato prestando contas ao mesmo<br />
tempo ao partido e ao eleitorado de seu distrito, que inclui normalmente outras preferências<br />
partidárias. Melhor para o eleitor, que pode escolher entre um número razoável de candidatos<br />
e saberá sempre quem é o “seu” deputado – o de seu distrito – mesmo que não tenha<br />
votado nele. Bom para a governabilidade no presidencialismo, porque se reforça a capacidade<br />
dos partidos de mediar mas não de bloquear a formação de consensos.<br />
A alternativa distrital tem outra vantagem, que nos parece decisiva no ponto em que se<br />
encontra a discussão da reforma política: a sua simplicidade. A justiça eleitoral divide cada<br />
estado em tantos distritos quantos forem os representantes do estado na Câmara dos Deputados;<br />
cada partido lança um candidato por distrito; o candidato mais votado no distrito é<br />
eleito. Qualquer deputado ou candidato pode entender isso facilmente. Mais importante,<br />
qualquer eleitor pode entender e gostar disso.<br />
<strong>Reforma</strong> política é questão de oportunidade histórica mais do que de evidência lógica<br />
ou científica. Quem entra nessa discussão querendo chegar a algum resultado, e não simplesmente<br />
demonstrar um ponto de vista, tem que estar pronto para negociar e transigir.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Entre sistemas proporcionais e majoritários “puros” há uma gama de possibilidades intermediárias<br />
que dá margem à negociação: o sistema misto alemão, que em última análise é um<br />
sistema proporcional, embora com metade dos representantes eleitos por distritos uninominais;<br />
sistemas com mais de um representante por distrito (no Chile são dois), que podem ser<br />
mais ou menos proporcionais, dependendo do número de representantes.<br />
Uma coisa parece certa: dificilmente chegaremos a mudanças significa-<br />
Daí a vantagem decisiva tivas se a negociação ficar restrita aos políticos. O peso da tradição é muito<br />
do sistema distrital. grande. Para vencê-lo é preciso envolver mais amplamente a sociedade na<br />
Porque é uma alternativa discussão. Daí a vantagem decisiva do sistema distrital. Porque é uma alterna-<br />
facilmente compreensível tiva facilmente compreensível e atraente, é a que mais se presta para mobilizar<br />
e atraente, é a que mais apoio amplo da sociedade e vencer a inércia dos partidos e do Congresso.<br />
se presta para mobilizar Se for preciso concentrar energia para dar um passo à frente, ele pode-<br />
apoio amplo da sociedade ria ser: voto distrital para a eleição de vereadores a partir de 2008. Seria um<br />
e vencer a inércia dos avanço na linha de menor resistência, dando mais tempo aos deputados<br />
partidos e do Congresso<br />
para decidirem colocar os próprios mandatos em jogo na mudança. Não<br />
caberia a objeção de criar “vereadores federais”, pois se trata dos vereadores<br />
mesmo. Acima de tudo, seria um passo na direção certa – a direção do eleitor.<br />
Este é o nosso ponto, para concluir: se toda essa discussão tem sentido – e acreditamos<br />
que tem – dentro do processo de democratização do país, chegou o momento de colocar o<br />
cidadão eleitor no centro das opções de reforma política.<br />
Notas<br />
1 Rodrigues, Leôncio Martins. “’<strong>Reforma</strong> é falta do que fazer’, diz Leôncio”. Entrevista à Folha de S.Paulo, 19/11/06.<br />
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc1911200612.htm<br />
2 Santos, Wanderley Guilherme dos. “Fortalecimento da democracia não depende da <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong>”. Entrevista a Carta<br />
Maior, 19/10/06. http://agenciacartamaior.uol.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=12580<br />
3 Cf. Nicolau, Jairo (org.). Banco de Dados Eleitorais do Brasil. Rio de Janeiro: IUPERJ. http://jaironicolau.iuperj.br/<br />
database/deb/port/index.htm. Visitado em 3/12/06. Os demais resultados eleitorais mencionados neste artigo foram<br />
checados na mesma fonte.<br />
4 Lins, Juan e Valenzuela, Arturo (eds.). The Failure of Presidential Democracy: The Case of Latin America, vol. 2.<br />
Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1994.<br />
5 Hirschman, Albert. La matriz social y <strong>Política</strong> da la Inflación: elaboración sobre la Experiencia Latinoamericana. In<br />
Hirschman, Albert. De la Economía a la <strong>Política</strong> y más Allá. México: Fondo de Cultura Económica, 1984.<br />
6 Ver Jones, Mark. Electoral Laws and the Survival of Presidential Democracies. South Bend, Ind.: University of Notre<br />
Dame Press, 1995. Sobre o efeito dessa tendência no Chile, ver Siavelis, Peter M. The President and Congress in<br />
Postauthoritarian Chile; Institutional Constraints to Democratic Consolidation. University Park, Pen.: The Pennsylvannia<br />
State University Press. 2000. p. 178-183.<br />
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50 |<br />
Argelina Cheibub Figueiredo* e Fernando Limongi**<br />
<strong>Reforma</strong><br />
política: notas<br />
de cautela<br />
sobre os efeitos<br />
de escolhas<br />
institucionais<br />
As propostas de reforma política<br />
no Brasil têm sido abrangentes<br />
e em geral enfatizam os<br />
efeitos negativos da representação<br />
proporcional com lista aberta,<br />
do federalismo e da separação<br />
de poderes no desempenho dos<br />
governos. Visam, dessa forma, a<br />
alterar as instituições no sentido<br />
de favorecer o majoritarismo e<br />
estreitar as relações entre Executivo<br />
e Legislativo. Os debates<br />
para a elaboração da Constituição de 1988 e do Regimento Interno da Câmara dos Deputados<br />
em 1989 revelam a preocupação dos parlamentares com o que entendiam ser as “deficiências<br />
históricas” do Legislativo – a morosidade e a falta de especialização – e o temor de que,<br />
com a restauração de seus poderes, o Legislativo se tornasse um obstáculo à ação do Executivo.<br />
Por isso, muitos propunham a mudança para o sistema parlamentarista de governo, assim<br />
como a manutenção de um extenso rol de medidas que haviam sido implementadas durante<br />
o regime militar para aumentar o controle do Executivo sobre o processo legislativo, dentre<br />
elas a medida provisória, um sucedâneo do decreto-lei. O sistema parlamentarista não foi<br />
aprovado, mas as demais medidas foram incorporadas à Carta democrática.<br />
*Argelina Cheibub Figueiredo, cientista política, Doutora em Ciência <strong>Política</strong> pela Universidade de Chicago, é<br />
professora livre docente da Universidade Estadual de Campinas, professora associada do Iuperj e pesquisadora sênior do<br />
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.<br />
**Fernando Limongi, cientista político, Doutor em Ciência <strong>Política</strong> pela Universidade de Chicago, é professor<br />
livre docente do Departamento de Ciência <strong>Política</strong> da USP e pesquisador sênior do Centro Brasileiro de Análise e<br />
Planejamento.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
No debate que precedeu o plebiscito de 1993, que submeteria ao veredicto popular o<br />
sistema de governo, o movimento reformista ganhou força, preconizando um extenso pacote<br />
de reformas políticas, sendo o sistema de representação um de seus principais alvos. Com<br />
a ratificação do presidencialismo e o governo de oito anos do PSDB, partido mais doutrinariamente<br />
comprometido com a reforma política, o movimento reformista arrefeceu. Mas<br />
não morreu. Ressurgiu no atual governo, menos abrangente e sem uma definição clara dos<br />
objetivos pretendidos.<br />
Entre as principais medidas da atual proposta de reforma política, já aprovada na Comissão<br />
Especial da Câmara dos Deputados, estão: 1) a adoção da lista partidária fechada nas<br />
eleições para o Legislativo, ou seja, os eleitores passariam a votar em uma lista preestabelecida<br />
pelo partido, e não mais em candidaturas individuais, como ocorre hoje; 2) a proibição<br />
das coligações eleitorais para as eleições proporcionais, porém com permissão de formação<br />
de federações partidárias que devem se manter durante a legislatura; e 3) o financiamento<br />
de campanhas eleitorais feito integralmente com fundos públicos, ou seja, seria abolido o<br />
financiamento privado.<br />
O principal argumento a favor da lista fechada, amparado também por estudos acadêmicos<br />
de política comparada, é que o aumento do controle do partido sobre os deputados<br />
eleitos produz efeitos positivos no comportamento parlamentar, afetando, assim, sua relação<br />
com o Executivo. Em artigo na recém-criada revista da Câmara dos Deputados, Plenarium,<br />
David Fleischer, cientista político da Universidade de Brasília, resume os efeitos esperados<br />
da adoção da lista partidária fechada:<br />
No sistema de lista fechada, os mandatos dos deputados pertencem ao partido, e não<br />
mais aos próprios deputados. Assim o partido teria mais controle sobre os seus eleitos, e a<br />
migração [“troca-troca”] dos deputados de uma legenda para a outra não existiria mais. As<br />
bancadas seriam mais coesas e o trabalho parlamentar se tornaria mais eficaz e eficiente. A<br />
articulação com o Poder Executivo seria diretamente com os partidos, e não mais um a um<br />
com cada parlamentar. Por este raciocínio, os partidos seriam fortalecidos, o que, em grande<br />
parte, poderia aperfeiçoar a prática da democracia no Brasil. (p. 126)<br />
As correntes analíticas em que se apóiam os defensores da reforma política desenvolvem<br />
a seguinte linha de raciocínio. O individualismo na política brasileira decorreria da<br />
forma assumida pela “conexão eleitoral” no Brasil. O sistema proporcional de representação<br />
com listas abertas geraria incentivos para que os parlamentares estruturassem suas carreiras<br />
privilegiando laços pessoais, e não partidários, com seus eleitores. Os políticos procurariam,<br />
portanto, atender suas clientelas promovendo políticas públicas distributivistas. Além disso,<br />
a lista aberta subtrairia das lideranças partidárias os meios para punir o comportamento<br />
individualista e antipartidário dos políticos. Por essas razões, o conflito institucional com<br />
o Executivo, inerente ao sistema presidencialista de separação de poderes, se acirraria. No<br />
sistema de listas fechadas, ao contrário, como o partido tem poder de determinar as chances<br />
eleitorais dos parlamentares, estes se submetem às diretivas partidárias e de acordo com elas<br />
Revista Plenarium | 51
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Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi<br />
pautam suas relações com o eleitorado e com o governo. Não há, sob lista fechada, como<br />
construir uma carreira política sem uma identidade completa com a liderança do partido.<br />
As coligações nas eleições proporcionais, por sua vez, são vistas como uma deturpação<br />
do sistema eleitoral brasileiro. Formadas independentemente de afinidades ideológicas, associando<br />
partidos de diferentes perfis políticos, constituir-se-iam em ver-<br />
Essas propostas são dadeira anomalia que só se prestaria a garantir cadeiras para partidos sem<br />
baseadas em diagnósticos expressão. A proibição de coligações contribuiria, assim, para dar maior<br />
parciais, pouco racionalidade ao sistema partidário e reduzir o número de partidos. Com<br />
sistemáticos e, muitas isto, aumentariam as chances de controle majoritário do governo de um<br />
vezes, enviesados tanto lado e, de outro, diminuiriam os custos de transação na formação e fun-<br />
sobre a operação do cionamento dos governos.<br />
sistema político brasileiro Finalmente, o financiamento público de campanhas visaria a dimi-<br />
quanto sobre os efeitos nuir a dependência do financiamento das empresas, contribuindo para a<br />
das instituições vigentes<br />
diminuição dos gastos de campanha e coibindo a utilização de formas ilegais<br />
de financiamento.<br />
Em suma, a implementação dessas medidas tornaria possível combater os grandes males<br />
que afetam o sistema político brasileiro: o individualismo, a corrupção e as crises de<br />
governabilidade.<br />
Os que duvidam da eficácia dessas medidas, entre os quais nos encontramos, contestam<br />
tanto os diagnósticos a respeito do funcionamento do atual sistema como também os<br />
nexos estabelecidos entre as medidas propostas e os seus efeitos desejados. Essas propostas<br />
são baseadas em diagnósticos parciais, pouco sistemáticos e, muitas vezes, enviesados tanto<br />
sobre a operação do sistema político brasileiro quanto sobre os efeitos das instituições vigentes.<br />
Freqüentemente baseiam-se também em visões idealizadas e pouco informadas sobre o<br />
que ocorre em outras democracias. Muitas propostas de reformas são também decorrentes<br />
de premissas falsas sobre os reais efeitos das escolhas das instituições. Por vezes, o alvo está<br />
errado: alguns dos objetivos perseguidos poderiam ser obtidos com pequenas modificações<br />
de regras e regulamentos de menor abrangência, sem alteração das instituições políticas<br />
fundamentais, como o sistema presidencialista de governo, o sistema proporcional de representação<br />
e a forma federativa de organização do Estado. As propostas reformistas parecem<br />
desconsiderar inteiramente as inter-relações entre essas escolhas institucionais que tornam<br />
imprevisíveis os resultados finais de muitas das propostas em discussão.<br />
A sensação que se transmite à opinião pública é de que haveria um consenso e/ou um<br />
conhecimento acadêmico solidamente estabelecido em favor das propostas reformistas. São<br />
freqüentes as referências a possíveis singularidades da legislação eleitoral e partidária brasileira<br />
e a certos axiomas da ciência política que estabeleceriam uma relação direta entre performance<br />
democrática e determinadas escolhas institucionais. O fato é que não existem tais axiomas<br />
e tampouco se sabe (ou seria possível saber) quais são as melhores instituições. Sequer existe<br />
um consenso sobre os efeitos das escolhas institucionais que se pretende alterar.<br />
Por exemplo, o suposto de que o sistema eleitoral brasileiro geraria incentivos para o<br />
voto pessoal é discutível. Estudos recentes mostram que o sistema político brasileiro não<br />
gera condições motivacionais, e nem mesmo institucionais, para que os políticos baseiem
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
suas estratégias eleitorais exclusivamente em vínculos pessoais com seus eleitores ou que<br />
tenham preferências homogêneas quanto ao tipo de política a ser implementada. 1<br />
No que diz respeito ao controle partidário, a lista partidária no seu formato atual não<br />
é efetivamente aberta a todo e qualquer pré-candidato. As direções e lideranças dos partidos<br />
detêm de fato o controle sobre a elaboração das listas partidárias; só<br />
não as ordenam, tarefa que cabe ao eleitor. Se os partidos não tivessem<br />
controle, não haveria necessidade da “candidatura nata” garantindo aos<br />
parlamentares acesso automático à lista partidária. A abolição recente desse<br />
mecanismo aumentou o controle partidário na elaboração da lista, pois os<br />
deputados passaram também a disputar vaga na lista.<br />
No sistema atual, os partidos controlam ainda a distribuição de tempo<br />
no Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE) e dos recursos do<br />
Fundo Partidário. Há estudos mostrando que o HGPE é controlado pelos<br />
partidos e que nas eleições proporcionais o tempo dedicado aos diferentes<br />
candidatos acaba por funcionar como uma forma de o partido ordenar a<br />
lista. 2 A centralização do<br />
processo decisório<br />
nas mãos dos líderes<br />
partidários no Congresso<br />
afeta a capacidade dos<br />
parlamentares de aprovar<br />
políticas distributivas.<br />
Isto é, mesmo que a<br />
arena eleitoral gere<br />
incentivos para estratégias<br />
individualistas e Cabe lembrar, ainda, que o controle das lideranças sobre os parla-<br />
clientelistas, a arena mentares não se restringe à arena eleitoral. Deve-se levar em conta tam-<br />
legislativa lhes nega bém o peso das regras que regulam o processo decisório. A centralização<br />
esta possibilidade<br />
do processo decisório nas mãos dos líderes partidários no Congresso afeta<br />
a capacidade dos parlamentares de aprovar políticas distributivas. Isto é,<br />
mesmo que a arena eleitoral gere incentivos para estratégias individualistas e clientelistas, a<br />
arena legislativa lhes nega esta possibilidade.<br />
Um dos argumentos a favor do sistema de listas fechadas, em contraposição ao atual<br />
processo, em que os partidos apresentam uma lista a ser ordenada pelo próprio eleitor, como<br />
apresentado por um jornalista político, é que “os partidos escolherão suas listas de candidatos<br />
de acordo com critérios próprios, e não precisarão se submeter completamente à ditadura<br />
dos detentores de votos pessoais, pois a legenda terá mais importância” (Merval Pereira, O<br />
Globo, 21/11/2004, grifos nossos).<br />
Os que resistem em delegar mais poderes às lideranças partidárias, no entanto, alertam<br />
para os riscos de “oligarquização” da vida<br />
partidária e de “cartelização” da competição<br />
político-eleitoral. Esses riscos seriam<br />
maiores ou menores dependendo dos<br />
procedimentos adotados pelos partidos<br />
na definição da lista partidária. Na proposta<br />
aprovada pela Comissão, as listas<br />
partidárias devem ser elaboradas em cada<br />
estado da Federação, mas fica a critério<br />
do partido o método para a elaboração<br />
da lista. Há três alternativas a considerar.<br />
Na primeira, a comissão executiva ou o<br />
diretório estadual elaboraria uma lista<br />
Revista Plenarium | 53
54 |<br />
Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi<br />
com posições predefinidas dos candidatos; na segunda, a convenção estadual do partido<br />
seria responsável pela elaboração da lista; a última forma seria por meio de uma votação<br />
prévia de todos os filiados, sendo que o mecanismo para recebimento de<br />
No entanto, ainda que a candidaturas e sua inclusão na prévia seria determinado pelo partido.<br />
coligação possa ser uma Nas duas primeiras alternativas, além de outros critérios mais ques-<br />
forma de driblar a cláusula tionáveis, parece pouco provável que os partidos poderão de fato prescin-<br />
de barreira, não segue dir dos “puxadores” de voto. No entanto, ainda que venha a prevalecer o<br />
que sua proibição leve critério de maior democracia interna, ou seja, a ordenação da lista pelo<br />
necessariamente à redução voto do filiado, não se pode desprezar a possibilidade de manipulação nos<br />
do número de partidos processos de filiação e de organização das prévias partidárias. Como se trata<br />
a obter representação<br />
de uma questão partidária interna, não cabe controle por parte da justiça<br />
eleitoral. Sendo assim, a maior ou menor probabilidade de lisura no processo<br />
de formação da lista partidária depende da capacidade de controle e de mobilização<br />
dos próprios filiados e, em última instância, da sociedade. Comparando-se com o sistema<br />
atual, cabe perguntar quais as vantagens de transferir para o próprio partido e seus filiados<br />
funções que hoje cabem à Justiça Eleitoral e ao eleitorado. O eleitorado, com certeza, terá<br />
seu poder de interferir na luta interna dos partidos diminuído e, assim, poderá perder controle<br />
sobre os representantes. Ou seja, o perdedor e o ganhador desta alteração são fáceis de<br />
identificar: o eleitor e as lideranças partidárias.<br />
Os efeitos esperados da proibição de coligações nas eleições proporcionais – imprimir<br />
maior “racionalidade” ao sistema partidário e reduzir o número de partidos – são também<br />
incertos. As inconsistências nas coligações são em geral atribuídas à inexistência de bases<br />
ideológicas e sociais dos partidos brasileiros. A análise mais detalhada da sua composição<br />
mostra que as coligações são os elos entre as eleições majoritárias, sobretudo para o Executivo<br />
estadual, e as proporcionais. Em geral, a lógica que rege a formação das coligações é dada<br />
pelas eleições majoritárias, ou seja, as coligações fornecem a conexão possível entre os pleitos<br />
majoritários e proporcionais em cada um dos estados. Sendo assim, não é de esperar que<br />
as federações de partidos, que substituiriam as coligações, venham a adquirir a consistência<br />
ideológica desejada por seus idealizadores. Por que as federações partidárias seriam formadas<br />
por uma lógica diversa? O artifício imaginado, obrigar a sua continuidade ao longo da<br />
legislatura, apenas estenderia no tempo as supostas inconsistências ideológicas.<br />
O efeito da proibição das coligações na redução do número de partidos também requer<br />
uma compreensão mais acurada dos reais beneficiários do sistema atual e da análise das<br />
possibilidades lógicas e empíricas de coligações. Os pequenos partidos são em geral vistos<br />
como os principais beneficiários das coligações na medida em que recorreriam a elas para<br />
driblar a cláusula de barreira atualmente em vigor, a saber, o quociente eleitoral (pelas regras<br />
atuais, a coligação ou partido que não receber mais votos do que o quociente eleitoral do<br />
estado não participa da distribuição das sobras). Isto é, as coligações seriam a via de acesso<br />
dos pequenos e micropartidos ao Legislativo. Se for assim, com a proibição das coligações,<br />
o número de partidos a obter representação no Legislativo cairia.<br />
No entanto, ainda que a coligação possa ser uma forma de driblar a cláusula de barreira,<br />
não segue que sua proibição leve necessariamente à redução do número de partidos
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
a obter representação. Isto porque, em primeiro lugar, os partidos que se beneficiam desse<br />
recurso em um estado não necessariamente precisam dele em um outro estado. Isto é, quando<br />
os partidos são classificados em grandes e pequenos, em possíveis beneficiários e desfavorecidos<br />
pelas coligações, tende-se a esquecer que o tamanho dos partidos não é o mesmo<br />
em todas as unidades da federação. Nos últimos pleitos, o maior partido nacional sempre<br />
ganhou cadeiras que não receberia se não houvesse se coligado em pelo menos um estado.<br />
Tal fato aponta para uma característica positiva das coligações pouco notada pelos seus<br />
críticos, qual seja a de que o recurso às coligações nas eleições proporcionais contribui para<br />
a maior nacionalização dos partidos. Esse aspecto ganha ainda maior relevância quando se<br />
tem em conta que, no Brasil, os distritos eleitorais coincidem com os estados, impondo,<br />
assim, uma preponderância da competição estadual sobre a nacional. Dito de outra forma,<br />
as coligações não apenas fornecem o elo entre as eleições majoritárias e proporcionais em<br />
um mesmo distrito, como também permitem uma maior concatenação das disputas em<br />
diferentes distritos.<br />
Assume-se que as coligações favorecem os menores partidos, isto é, o maior partido no<br />
interior de uma dada coligação acabaria por ceder cadeiras para os menores. Nesses termos<br />
as coligações acabariam por falsear a vontade do eleitor ao transferir votos do partido mais<br />
votado para o menos votado. Note-se, antes de mais nada, que a transferência de votos pode<br />
se dar no sentido inverso, isto é, do menor para o maior partido. Pequenos partidos podem<br />
ser prejudicados ao se coligar. Por exemplo, um partido que receberia cadeiras concorrendo<br />
isoladamente pode, e isto de fato ocorreu, não receber cadeiras ao se coligar. Partidos que<br />
participam de uma coligação e que não recebem cadeiras estão, necessariamente, transferindo<br />
votos para os que recebem. E é isto o que ocorre com a maioria dos pequenos partidos<br />
que se coligam nas proporcionais. Os casos notórios de pequenos partidos que obtêm cadeiras<br />
com pequenas votações são generalizados como se esta fosse a única possibilidade.<br />
Na realidade, o que parece ser condenável nas coligações é o fato de a distribuição<br />
de cadeiras no seu interior não obedecer ao critério da proporcionalidade. As coligações<br />
deixariam de ser um método eficiente para driblar a cláusula de barreira e não levariam à<br />
transferência indevida de votos se a distribuição de cadeiras obtidas pela coligação se guiasse<br />
pelo princípio proporcional, isto é, se cada partido recebesse cadeiras na<br />
Os casos notórios de proporção da sua contribuição para o total de votos obtidos pela coliga-<br />
pequenos partidos que ção. O que os críticos das coligações não percebem é que, implicitamente,<br />
obtêm cadeiras com estão defendendo o método proporcional e condenando, tomando como<br />
pequenas votações são injusta, a distribuição baseada pura e simplesmente nas maiores votações<br />
generalizados como se esta pessoais dentro da lista, isto é, o princípio majoritário.<br />
fosse a única possibilidade<br />
Em resumo, as críticas às coligações perdem de vista o real papel que<br />
desempenham na arena eleitoral ao fornecer uma forma de coordenar as<br />
ações em pleitos regidos por lógicas distintas (eleições majoritárias e proporcionais) e em distritos<br />
autônomos. A eliminação das coligações nas eleições proporcionais, com a introdução<br />
de uma cláusula de barreira, ainda que esta venha a ser menor do que aquela prevista pela<br />
legislação em vigor, poderia ter o efeito contrário ao pretendido, levando à proliferação de<br />
pequenos partidos estaduais que, dado o substituto encontrado para as coligações, se trans-<br />
Revista Plenarium | 55
56 |<br />
Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi<br />
formariam em federações congressuais. Ademais, o principal problema identificado pelos<br />
críticos das coligações em eleições proporcionais não seria sanado por sua substituição por federações<br />
de partidos. A transferência de votos no interior da federação partidária continuaria<br />
a se dar pela concentração de votos pessoais, e não de acordo com o princípio proporcional.<br />
É bom frisar que a eliminação das coligações não necessariamente contribuirá para a<br />
diminuição do número de partidos representados ou mesmo contribuirá para a redução da<br />
fragmentação partidária. O número relativamente elevado de partidos a obter cadeiras e<br />
a fragmentação estão mais diretamente associados à diferente penetração<br />
Vale notar que, dos partidos pelos estados do que às coligações. Como dito anteriormen-<br />
atualmente, o principal te, partidos grandes em um estado podem ser pequenos em outros. Essa<br />
gasto de campanha, diversidade na nacionalização das forças partidárias também não depende<br />
o acesso ao rádio e à da adoção da representação proporcional. Isto é, mesmo que se adotasse<br />
televisão, já é financiado a representação majoritária pura e simples para as eleições da Câmara dos<br />
publicamente. Isto é, Deputados, não há garantias de que o efeito dessa transformação fosse a<br />
partidos e candidatos já redução do número de partidos a obter representação. A relação entre o<br />
não precisam angariar número de cadeiras em disputa e o número de partidos eleitorais, a conhe-<br />
fundos para financiar cida Lei de Duverger, se aplica distrito a distrito. Logo, se as eleições para<br />
a principal despesa a Câmara dos Deputados forem disputadas em 513 distritos, espera-se que<br />
de campanha<br />
sejam reduzidas a 513 disputas bipartidárias, mas não necessariamente pelos<br />
mesmos partidos em todos os distritos.<br />
O financiamento público integral das campanhas sem sombra de dúvidas contribuiria<br />
para reduzir o peso do poder econômico nas eleições e, provavelmente, sua influência<br />
posterior sobre o governo e o Congresso. Porém, não elimina a possibilidade de “caixa<br />
dois”. Sendo assim, seu efeito no custo das campanhas não é automático. O sistema atual,<br />
que combina financiamentos público e privado, também permite “caixa dois”, mas, como<br />
incentiva, ainda que de forma limitada, a notificação das doações em função da dedução<br />
fiscal, dá à Justiça Eleitoral maior controle sobre os gastos privados. Nos sistemas mistos,<br />
como o brasileiro, a redução dos custos de campanha depende do estabelecimento de um<br />
teto. O cumprimento do teto depende da capacidade de fiscalização das doações privadas,<br />
que por sua vez depende dos incentivos à notificação. Em suma, os resultados desejados,<br />
portanto, dependem mais fundamentalmente dos incentivos para a realização de doações<br />
legais, dos tetos de gastos e da capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral.<br />
Vale notar que, atualmente, o principal gasto<br />
de campanha, o acesso ao rádio e à televisão,<br />
já é financiado publicamente. Isto é, partidos e<br />
candidatos já não precisam angariar fundos para<br />
financiar a principal despesa de campanha. Ou<br />
seja, parece duvidoso argumentar que as campanhas<br />
induzam à corrida a recursos escusos. O<br />
custo calculado das campanhas tem variado de<br />
forma acentuada, caindo significativamente após<br />
escândalos que envolviam denúncias relativas a
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
desvio de dinheiro de campanha. Como dito acima, o principal problema não é o da escassez<br />
de recursos, mas sim de fiscalização. Não há porque esperar que os meios de fiscalização<br />
se tornem mais eficientes com o financiamento público da campanha. Não é certamente o<br />
que a experiência internacional nos ensina.<br />
No atual debate, a viabilidade do financiamento público é apresentada como dependente<br />
da aprovação da lista partidária fechada. Portanto, pela proposta aprovada, as direções<br />
partidárias centralizariam a prerrogativa de definir a lista, assim como os recursos para a<br />
campanha, aumentando dessa forma as dificuldades de controle tanto da Justiça Eleitoral<br />
como dos próprios eleitores.<br />
O último problema que as reformas viriam ajudar a solucionar, a governabilidade, é em<br />
geral medido pela capacidade do governo em implementar a sua agenda legislativa. Como<br />
mostramos anteriormente, porém, nos governos recentes o Executivo tem obtido altas taxas<br />
de sucesso na aprovação de seus projetos de lei. Verifica-se ainda que a predominância do<br />
Executivo na produção legal atinge patamares comparáveis aos encontrados em países de regime<br />
parlamentarista. Por outro lado, a atuação do Congresso está longe de ser irrelevante. O<br />
Legislativo brasileiro influi nas políticas de governo, impondo-lhes modificações, cumprindo<br />
o papel institucional que lhe cabe em qualquer democracia. Não pode porém ser visto<br />
como um obstáculo ao Executivo na medida em que este mantém de fato<br />
Nas atuais condições a direção e a liderança da agenda legislativa no período recente. Por outro<br />
institucionais – lado, o Legislativo tem tido importante papel na formulação de políticas<br />
concentração de poderes sociais, aprovando uma importante legislação de garantia de direitos, em<br />
legislativos no Executivo que medidas distributivas e paroquialistas são exceções, e não a regra.<br />
e um processo decisório Nas atuais condições institucionais – concentração de poderes legis-<br />
altamente centralizado no lativos no Executivo e um processo decisório altamente centralizado no<br />
interior do Legislativo – interior do Legislativo – a ação independente e individual dos parlamenta-<br />
a ação independente res tem poucas chances de sucesso. Torna-se racional, portanto, atuar por<br />
e individual dos meio dos partidos, a única forma mediante a qual os parlamentares serão<br />
parlamentares tem poucas capazes de exercer influência sobre a política pública e, dessa forma, pleite-<br />
chances de sucesso<br />
ar mandatos junto ao eleitorado.<br />
Não se pode considerar que o Executivo seja o contendor mais fraco<br />
nas negociações com o Legislativo. Os parlamentares não têm como colocar o Executivo em<br />
xeque individualmente. Para que essa ameaça seja efetiva, têm que coordenar suas ações. Já<br />
o Executivo deve levar a sério apenas as ameaças apresentadas coletivamente, uma vez que<br />
somente estas podem afetar os resultados de uma votação qualquer e, desta forma, aumentar<br />
o poder de barganha dos parlamentares em suas negociações com o Executivo. E, obviamente,<br />
o poder de barganha cresce com o tamanho da bancada, isto é, pequenos partidos<br />
não podem ser considerados como causadores de problemas para a governabilidade. Por<br />
definição, os pequenos partidos têm um poder de chantagem pequeno. Somente os grandes<br />
partidos podem trocar consistentemente apoio por políticas.<br />
Entende-se por que os parlamentares delegam poderes aos líderes partidários. Agindo<br />
individualmente, terão pouca capacidade de extrair benefícios do Executivo. Nestes termos,<br />
negociações individuais poderiam até favorecer o Executivo. No entanto, do ponto de vista<br />
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58 |<br />
Argelina Cheibub Figueiredo e Fernando Limongi<br />
do Executivo, negociar com partidos é vantajoso porque, dessa forma, obtém apoio mais<br />
estável e previsível no longo prazo, reduzindo os custos de transação ao não optar pela negociação<br />
caso a caso. Na verdade, dada a distribuição de direitos legislativos em favor dos líderes<br />
partidários, a possibilidade de os partidos serem desconsiderados quer<br />
O que os partidários das pelos parlamentares quer pelo Executivo é muito pequena. Ao resolverem<br />
reformas não notam é que o problema de coordenação com que os parlamentares se defrontam, os<br />
a concentração de poderes partidos passam a ser veículos das demandas coletivas.<br />
legislativos nas mãos do O papel dos partidos, porém, vai muito além da mera acomodação<br />
Executivo e dos líderes pragmática e não-programática dos pleitos dos parlamentares. Cabe aos<br />
partidários produz alguns líderes partidários a árdua tarefa de conciliar os interesses eleitorais indi-<br />
dos efeitos pretendidos<br />
viduais dos parlamentares com o seu posicionamento – a favor ou contra<br />
– em relação às medidas apresentadas pelo Executivo. A lógica da competição<br />
político-partidária na arena eleitoral não entra em conflito com a acomodação desses<br />
pleitos individuais. A legislação eleitoral não gera uma oposição inequívoca entre o interesse<br />
individual e o partidário. E os partidos desempenham papel fundamental em equilibrar as<br />
demandas diversas de suas clientelas eleitorais por bens particularistas e coletivos.<br />
O que os partidários das reformas não notam é que a concentração de poderes legislativos<br />
nas mãos do Executivo e dos líderes partidários produz alguns dos efeitos pretendidos.<br />
Não há qualquer evidência que dê apoio à noção de que o governo se encontra paralisado<br />
por falta de apoio partidário e parlamentar. Sendo assim, não há razões para diminuir o<br />
número de partidos e aumentar o poder de seus líderes, seja na arena congressual ou na eleitoral.<br />
Obviamente, isto não significa que se deva rechaçar ou ver como negativa qualquer<br />
reforma. Aperfeiçoamentos possíveis podem e devem ser buscados.<br />
A questão central diz respeito às relações entre os objetivos pretendidos e as variáveis<br />
institucionais manipuladas. Nem sempre há clareza quanto a quais os problemas a serem<br />
atacados e, muito menos, sobre a real contribuição das instituições vigentes para a geração<br />
do quadro negativo que se quer alterar. Deve-se ainda levar em conta as inter-relações entre<br />
as inúmeras variáveis a compor o quadro institucional em que se movimentam eleitores<br />
e políticos. Deduzir comportamentos de variáveis institucionais não é uma tarefa<br />
simples. A história está repleta de exemplos de reformas que produziram efeitos<br />
inversos aos pretendidos.<br />
Notas<br />
1 Ver Nelson Rojas de Carvalho, E no início eram as bases – geografia política do voto e do<br />
comportamento legislativo no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Revan, 2003; Argelina Cheibub<br />
Figueiredo e Fernando Limongi, “Incentivos Eleitorais, Partidos e <strong>Política</strong> Orçamentária”,<br />
Dados – Revista de Ciências Sociais, vol. 45, nº 2, 2002.<br />
2 Ver Schmitt, Carneiro e Kuschnir, “Estratégias de campanha no horário gratuito de<br />
propaganda eleitoral em eleições proporcionais”. Dados [on line], vol. 42, nº 2, 1999.
Senador Eurico de Rezende e deputado Ulysses Guimarães, 1977. Foto de Luis Humberto.
60 |<br />
Fabiano Santos*<br />
Agenda oculta da reforma política<br />
*Fabiano Santos, Doutor em Ciência <strong>Política</strong> pelo Iuperj, é professor e pesquisador.
1) Introdução<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Os estatísticos utilizam uma ótima expressão para caracterizar equívoco muito freqüente<br />
entre analistas que interpretam como relações de causalidade meras associações temporais<br />
entre dois fenômenos: correlação espúria. Trata-se de lição básica em cursos de metodologia<br />
– o fato de dois fenômenos ocorrerem ao mesmo tempo não permite a inferência de que um<br />
seja causado pelo outro. Pois bem, o atual debate em torno da reforma política é marcado<br />
por uma imensa correlação espúria. O fato de termos vivido crises políticas, oriundas da<br />
descoberta de práticas ilícitas de membros do governo, no passado e no presente, comportamento<br />
também observado no Legislativo, tem levado à conclusão de que existe uma relação<br />
de causalidade entre o sistema político em seu atual formato e a proliferação de corrupção.<br />
Por conseguinte, basta alterar as regras, em particular as que regem a competição eleitoral<br />
para a Câmara dos Deputados, que o sistema passará a produzir representantes éticos e de<br />
alto padrão moral. A fragilidade do argumento é gritante.<br />
O problema da corrupção e a proliferação de escândalos é fenômeno comum a todos os<br />
sistemas políticos nos quais os seguintes ingredientes se encontram associados: capitalismo,<br />
setor público ativo na economia, democracia com sufrágio universal, além de partidos em<br />
busca de financiamento para campanha. Ou seja, a corrupção é um problema em todos<br />
os lugares em que o capitalismo convive com democracia, independentemente do sistema<br />
político adotado. Os países que conseguiram diminuir as taxas de corrupção foram aqueles<br />
que aperfeiçoaram as instituições de controle, como Ouvidoria, Ministério<br />
O sistema político Público e Tribunais de Contas. É fato notório que no Brasil tais institui-<br />
brasileiro, apesar das ções têm aumentado sua participação e importância no processo político.<br />
aparências, funciona de O mérito das principais propostas de reforma política atualmente em<br />
maneira satisfatória<br />
voga pode ser avaliado, todavia, quanto a sua capacidade de qualificar o sistema<br />
político brasileiro com relação a outros quesitos. Tome-se, como exemplo,<br />
a estabilidade do quadro partidário e a proposta de implantação do chamado voto distritalmisto,<br />
o famoso modelo alemão. Não é objetivo deste artigo discutir as enormes dificuldades<br />
advindas da tentativa de adotar tal sistema em nosso país. Contudo, vale lembrar, à guisa de<br />
considerações introdutórias, que, de fato, alguns países adotaram o famoso modelo na esperança<br />
de conferir mais estabilidade e consistência, accountability, enfim, ao seu sistema de partidos.<br />
Infelizmente, o resultado foi que grande parte deles longe estiveram de alcançar os objetivos<br />
colimados. Casos como o da Venezuela, Bolívia, México e Itália, Rússia, nos quais alguma<br />
forma de sistema misto é utilizada, raramente são lembrados pelos defensores deste tipo de<br />
reforma, mas a verdade é que todas essas nações enfrentam quadros partidários fragmentados,<br />
pulverizados e polarizados, o que significa que os efeitos benéficos do sistema sobre a qualidade<br />
da democracia não estão sendo observados. Voltando ao início da argumentação, e se a linha da<br />
correlação espúria é livre, pode-se argumentar contra o sistema e, evidentemente que de forma<br />
anedótica, que o modelo alemão não funciona em países de língua latina e russa!<br />
O sistema político brasileiro, apesar das aparências, funciona de maneira satisfatória.<br />
Temos um sistema partidário estabilizado, com taxas de volatilidade cadentes, girando em<br />
torno de quatro a cinco partidos em equilíbrio de condições, e que expressa a pluralidade so-<br />
Revista Plenarium | 61
62 |<br />
Fabiano Santos<br />
cial radicada na sociedade. Temos uma disputa presidencial mais estabilizada ainda, baseada<br />
em torno de dois blocos, um de centro-esquerda e outro de centro-direita, que se revezam e<br />
continuarão a se revezar no poder, principalmente e à medida que a radicalização dê espaço<br />
ao bom senso e à disputa em torno de uma agenda para o país. Mudanças são bem vindas,<br />
desde que preservem o caráter radicalmente democrático de nossa arquitetura institucional,<br />
calcadas no presidencialismo, grande símbolo da incorporação política em um país desigual;<br />
no voto proporcional, garantia dos direitos de minoria em uma sociedade complexa e plural;<br />
e na lista aberta, espaço vital de preservação da accountability nas eleições para o Legislativo.<br />
Nas linhas que se seguem centrarei minhas observações sobre o debate em torno da reforma<br />
política na questão do sistema de governo. Argumento que a principal linha de aperfeiçoamento<br />
institucional passa pelo fortalecimento do Legislativo, especificamente na geração de incentivos<br />
para que os partidos de oposição possam participar do processo decisório e alocativo de “dentro”<br />
do Congresso, e não por meio de um movimento de cooptação por parte do Executivo.<br />
2) Sistema de governo: onde reside a diferença?<br />
Às vésperas das eleições de outubro, voltou às colunas dos jornais e discursos de políticos,<br />
principalmente de oposição, a questão do sistema de governo. Não basta a população<br />
ter se pronunciado duas vezes e com ampla maioria a favor do atual modelo – colocam-se<br />
os presidencialistas mais uma vez na defensiva. Ora, qual a grande diferença entre os dois<br />
sistemas? De imediato, é importante assinalar aquilo que não os distingue: estudos recentes<br />
e rigorosos sobre o assunto, bem como atenta observação da história recente dos países<br />
democráticos, comprovam que não existem vantagens de um sistema sobre o outro nos quesitos<br />
transparência e honestidade. Ademais, é também verdade que a suposta superioridade<br />
do parlamentarismo no que concerne à estabilidade do regime foi contestada de maneira<br />
vigorosa pelas análises do cientista político José Antonio Cheibub, da Universidade de Illinois<br />
– a aparente instabilidade dos regimes presidenciais não passa de mais uma correlação<br />
espúria, ilusão alimentada pelo fato de serem os países presidencialistas, em sua maioria,<br />
membros do continente sul-americano e nações vítimas de ditaduras militares, estas, sim, as<br />
nações herdeiras de ditaduras militares, parlamentaristas ou presidencialistas, mais propensas<br />
a enfrentar crises e retrocessos em sua trajetória de redemocratização.<br />
Mas, então, a pergunta retorna: qual a diferença entre os sistemas de governo? Vale<br />
a pena ainda explorar aquilo que, embora apareça como diferença, não distingue os dois<br />
sistemas em sua essência. Diz-se que os sistemas parlamentares garantem a emergência de<br />
governos majoritários, ao passo que os presidenciais permitiriam a formação de governos<br />
minoritários. Nada mais longe da verdade – em torno de 40% dos governos formados nos<br />
países parlamentaristas da Europa ocidental do pós-guerra não eram compostos por partidos<br />
que controlavam a maioria das cadeiras no Legislativo. Em uma palavra, a incidência de<br />
governos de minoria é tão comum no parlamentarismo quanto no presidencialismo. Argumenta-se,<br />
além disso, que os sistemas presidenciais não geram incentivos para a formação<br />
de governos de coalizão, o que, mais uma vez, longe está de corresponder aos fatos da vida.<br />
Só para ficarmos em nosso continente, desde a última onda de redemocratização, o modelo
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
institucional por excelência na América do Sul é o presidencialismo de coalizão, experiência<br />
rica, na qual se observam exemplos de sólida estabilidade como a Concertación no Chile,<br />
convivendo com momentos fugazes e turbulentos, como foi o caso, inédito na Argentina,<br />
de governo de coalizão com os radicais e a Frepaso.<br />
Voltemos então ao tema das diferenças. Uma pergunta talvez elucide a dúvida fundamental.<br />
Como é possível a formação de governos de minoria em sistemas parlamentaristas<br />
se a confiança da maioria do parlamento é necessária para a sustentação do governo? A explicação<br />
é simples: ter a confiança do parlamento significa basicamente existir uma maioria<br />
partidária que pelo menos tolera o governo. Ora, tolerar um governo não é o mesmo que<br />
dele participar. Portanto, freqüentemente, governos se formam sem que do gabinete façam<br />
parte partidos cuja soma das bancadas alcance a maioria das cadeiras. É assim a prática mais<br />
comum na Escandinávia, em algumas ocasiões na França, na Espanha e vários outros países<br />
da Europa. Contudo, quando uma oposição não tolera o governo, aí, sim, um voto de desconfiança<br />
é aprovado, ou ocorre a derrota do governo em algum ponto importante de sua<br />
agenda, equivalendo à perda de confiança no gabinete, o que força a convocação de novas<br />
eleições – e é aqui que reside a diferença fundamental entre um e outro sistema.<br />
Quando em um sistema parlamentar a maioria legislativa é formada por partidos que<br />
fazem oposição, o parlamento pode votar uma moção de desconfiança e haver a convocação<br />
de novas eleições, ao passo que essa possibilidade não existe no sistema presidencial, isto é,<br />
o governo pode sobreviver mesmo enfrentando uma oposição majoritária no Legislativo –<br />
outra não é a experiência predominante nos EUA do pós-guerra, os chamados governos<br />
divididos, nos quais a maioria que controla o Congresso não é formada pelo partido ao qual<br />
é filiado e pelo qual se elegeu o presidente. Vale lembrar a este respeito que as últimas eleições<br />
legislativas norte-americanas, consagrando os democratas como vitoriosos na Casa e no<br />
Senado, forneceram pedagógica oportunidade aos reformistas brasileiros de verificar como a<br />
possibilidade de um governo dividido não causou pânico em quem quer que seja. Do ponto<br />
de vista da condução do processo político e de negociação da agenda, os governos de minoria<br />
são certamente marcados por idas e vindas, negociações e, às vezes, conflitos abertos;<br />
todavia, isso em nada autoriza a conclusão segundo a qual as chances de estabilização do<br />
processo democrático, de sucesso econômico dos governos, da capacidade maior ou menor<br />
de aprovar agendas sejam maiores no parlamentarismo. De novo, todos os fenômenos que<br />
tornam o processo governativo mais lento e negociado, como, por exemplo, governos de<br />
minoria, de coalizão, ou os dois, ocorrem com a mesma freqüência num e noutro sistema.<br />
O que os diferencia, sim, é a competência do Executivo em dissolver o parlamento quando<br />
lhe parecer de conveniência política, na expectativa de aumentar seu poder de barganha no<br />
Legislativo, ou a prerrogativa deste de derrubar os mandatários do Executivo nas ocasiões<br />
em que a maioria parlamentar decide não tolerar a situação. No presidencialismo, a única<br />
forma, guardados casos extremos de má conduta, de interrupção de mandatos parlamentares<br />
e do chefe do Executivo é o velho e bom voto popular.<br />
É verdade também que o sistema presidencial brasileiro apresenta diferenças importantes<br />
em relação ao norte-americano. Discutir as especificidades de nosso modelo e ao mesmo tempo<br />
apontar alguns pressupostos de seu bom funcionamento é o objetivo da seção a seguir.<br />
Revista Plenarium | 63
64 |<br />
Fabiano Santos<br />
3) Presidencialismo de coalizão: como evitar erros do passado e<br />
estabilizar o processo político institucional<br />
Um governo normal tem ao final de<br />
seu mandato sempre coisas boas e ruins<br />
a mostrar. A reeleição do presidente<br />
Lula revela que boa parte da população<br />
aprova dimensões importantes<br />
de sua administração, mais especificamente<br />
pontos ligados ao desempenho<br />
da economia e do combate aos<br />
gravíssimos problemas sociais.<br />
Entre os aspectos<br />
positivos, todavia, não se<br />
pode incluir a estratégia<br />
adotada para se relacionar<br />
com o Congresso. Os problemas<br />
vividos pelo governo<br />
com a base aliada no parlamento,<br />
assim como o<br />
espaço conquistado pela<br />
oposição na organização e condução das CPIs constituem excelente aprendizado sobre o<br />
modo pelo qual não se deve dar a interação entre Executivo e Legislativo no Brasil.<br />
A separação de poderes e o multipartidarismo formam a base de funcionamento de nossas<br />
instituições democráticas. Como efeito direto dessas características, surge a necessidade<br />
de organizar coalizões de apoio ao presidente no Legislativo, uma vez que são remotíssimas<br />
as chances de que o partido do presidente conquiste a maioria das cadeiras nas duas Casas<br />
do Congresso. Esse contexto institucional define o presidencialismo de coalizão, modelo<br />
de governança adotado no Brasil e em vários países da América do Sul, onde é freqüente<br />
a conjugação de presidencialismo e fragmentação partidária. Quais são os pressupostos do<br />
bom funcionamento do presidencialismo de coalizão? O exame dos últimos mandatos presidenciais<br />
revela que pelo menos quatro pontos são fundamentais:<br />
1) a decisão de montar a coalizão e a disposição de distribuir poder entre os partidos que<br />
demonstram o desejo de fazer parte do governo;<br />
2) a redução tanto quanto possível do número de parceiros, assim como de sua<br />
heterogeneidade, a fim de reduzir os custos de transação política no interior da<br />
coalizão;<br />
3) a distribuição proporcional de cargos no Executivo ao peso que os partidos têm na base<br />
aliada;<br />
4) a definição de uma agenda legislativa que seja consenso na coalizão e a conquista dos postoschave<br />
no Congresso tendo em vista fazer tramitar os pontos principais de tal agenda.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
A importância dos pontos enumerados acima pode ser medida através de uma rápida<br />
comparação do primeiro mandato do presidente Lula com o que ocorreu ao longo dos dois<br />
mandatos de Fernando Henrique Cardoso. A tabela abaixo contém as informações necessárias<br />
para uma análise mais cuidadosa do tópico.<br />
Tabela 1 - Duração, composição partidária, apoio parlamentar,<br />
proporcionalidade e percentagem de ministros apartidários dos<br />
ministérios formados entre 1995 e 2006<br />
Presidentes<br />
e seus<br />
ministérios<br />
Período de<br />
duração<br />
Partidos representados no<br />
ministério<br />
Apoio na<br />
Câmara<br />
(nominal)<br />
FHC I-1 (01/95-04/96) PSDB-PMDB-PFL-PTB 56,3 0,57<br />
FHC I-2 (04/96-12/98) PSDB-PMDB-PFL-PTB-PPB-PPS 76,6 0,60<br />
FHC II-1 (01/99-03/99) PSDB-PMDB-PFL-PTB-PPB-PPS 74,3 0,70<br />
FHC II-2 (03/99-10/01) PSDB-PMDB-PFL-PPB-PPS 68,2 0,59<br />
FHC II-3 (10/01-03/02) PSDB-PMDB-PFL-PPB 62,0 0,68<br />
FHC II-4 (03/02-12/02) PSDB-PMDB-PPB 45,1 0,37<br />
LULA 1 (01/03-01/04) PT-PSB-PDT-PPS-PCdoB-PV-PL-PTB 49,3 0,64<br />
LULA 2 (01/04-06/05) PT-PSB-PPS-PCdoB-PV-PL-PTB-PMDB 62,0 0,51<br />
LULA 3 (06/05-08/05) PT-PSB-PCdoB-PV-PTB-PMDB-PL 59,8 0,56<br />
LULA 4 (08/05-09/05)<br />
PT-PSB-PCdoB-PV-PTB-PMDB-PL<br />
69,0 0,55<br />
LULA 5 (09/05-04/06)<br />
PT-PSB-PCdoB-PV-PTB-PMDB-PP-<br />
PRB-PL<br />
69,0 0,52<br />
LULA 6 (04/06- ) PT-PSB-PCdoB-PV-PTB-PMDB-PP 58,4 0,52<br />
Dados cedidos por Amorim Neto.<br />
Proporcionalidade<br />
na distribuição<br />
das<br />
pastas<br />
As diferenças são significativas e podem ser sintetizadas em três dimensões, até certo<br />
ponto relacionadas aos itens expostos inicialmente: a durabilidade; o número e a natureza<br />
dos parceiros; a proporcionalidade entre cadeiras e pastas ministeriais e a magnitude de<br />
ministérios técnicos, isto é, sem filiação partidária. Com relação à durabilidade, percebe-se<br />
maior estabilidade durante os dois mandatos de FHC do que durante o governo Lula. De<br />
1995 a 1998, apenas dois gabinetes foram compostos, número que se eleva um pouco no<br />
quadriênio 1999-2002. Nada que se compare, contudo, aos seis gabinetes montados pelo<br />
atual governo.<br />
A explicação para tal instabilidade surge ao levarmos em consideração o número de partidos<br />
presentes em cada ministério – durante os dois mandatos de FHC, esse número oscilou<br />
de três a seis, ao passo que com Lula variou de sete a nove partidos. Chamamos atenção acima<br />
para o problema da heterogeneidade política, e isto fica ainda mais claro após o exame da tabela.<br />
Enquanto FHC trabalhou com partidos dispostos de forma contígua no espaço ideológico<br />
(PPB, PFL, PSDB, PMDB, PPS), Lula negocia com parceiros tão diversos quanto PP, PTB,<br />
PL, PMDB, PV, PCdoB, além do próprio PT.<br />
Revista Plenarium | 65
66 |<br />
Fabiano Santos<br />
Vale a pena mencionar também o fato de terem presença importante no ministério<br />
Lula partidos que sobrevivem basicamente por conta do controle da patronagem e das<br />
verbas sob controle do setor público. A coexistência de partidos orientados<br />
Vale a pena mencionar essencialmente para cargos (office seeking, na acepção de Strom, 1990) com<br />
também o fato de terem partidos orientados para políticas (policy seeking, Strom, 1990) é difícil em<br />
presença importante qualquer contexto. Todavia, durante o governo Lula o peso do primeiro<br />
no ministério Lula tipo de partidos acabou se intensificando por conta do gradual abandono<br />
partidos que sobrevivem de partidos como o PDT e o PPS, de tradição de esquerda, abandono<br />
basicamente por conta do ocorrido em nome da discordância em torno de policies. A conseqüência,<br />
controle da patronagem no que tange à convivência entre Executivo e Legislativo foi a de que o já<br />
e das verbas sob controle frágil equilíbrio alcançado inicialmente com a coalizão se tornou fonte de<br />
do setor público conflitos insolúveis ao redor de cargos, recursos do Estado para o benefício<br />
de clientelas e partidos. Nesse contexto, o governo é sempre presa fácil de<br />
escândalos, o que implica a necessidade permanente de reajustes na composição partidária<br />
do ministério (ver Gallagher, Laver e Mair, 1992).<br />
O princípio da proporcionalidade entre percentual de cadeiras no Legislativo controladas<br />
por um partido que compõe a coalizão, isto é, seu peso na base de apoio, e o percentual<br />
de assentos no ministério é uma regra de ouro para a montagem de governos multipartidários<br />
– o desrespeito a esse princípio, quando feito de maneira extrema, pode causar desequilíbrios<br />
importantes no desempenho da base no parlamento.<br />
O indicador fundamental neste particular, ou seja, que permite averiguar o grau de<br />
correspondência entre pastas ministeriais e força parlamentar dos partidos é o sugerido por<br />
Amorim Neto (2000), denominado de Taxa de Coalescência. Os valores referentes a cada<br />
período presidencial em exame aparecem na quinta coluna. A taxa se baseia no índice de<br />
desproporcionalidade de Rose (1984), cuja função é medir a distorção entre cadeiras e votos<br />
ocorrida em cada eleição. No estudo de Amorim Neto, ministérios substituem cadeiras<br />
parlamentares e estas substituem os votos. Assim,<br />
Taxa de Coalescência = 1-1/2 somatório |Si-Mi|<br />
Onde,<br />
Mi= % de ministérios recebidos pelo partido i quando o gabinete foi escolhido;<br />
Si= % de cadeiras ocupadas pelo partido i no interior do conjunto de cadeiras sob controle<br />
dos partidos integrantes do ministério no momento em que este foi indicado.<br />
A necessidade de acomodar as várias facções internas do PT levou a que esse partido<br />
tivesse uma representação superdimensionada ao longo de todo o período do governo Lula,<br />
acarretando defecções e dificuldades de gestão da coalizão. O mesmo problema ocorreu de<br />
maneira significativamente mais tênue durante os oito anos de governo FHC – tirante o<br />
último ano deste e o primeiro do governo Lula, os demais sempre indicaram taxas de coalescência<br />
maiores de 1995 a 2002 do que de 2003 a 2006.<br />
Em resumo, durante seu primeiro mandato, o presidente Lula, de fato, decidiu montar<br />
uma coalizão e distribuiu poder aos partidos que revelaram disposição de participar de um
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
governo sob liderança petista; portanto, a primeira condição foi atendida. Contudo, o mesmo<br />
não ocorreu com relação aos demais pontos destacados acima. O número de parceiros<br />
foi extremamente alto, bem como a dispersão ideológica dos partidos integrantes da base.<br />
A distribuição de pastas ministeriais longe esteve da proporcionalidade relativamente ao<br />
peso dos partidos no Congresso – pode-se dizer que o PT controlou muito, pouco restando<br />
aos demais parceiros. Finalmente, com exceção do primeiro ano de mandato, no qual uma<br />
agenda de reformas constitucionais ficou bem estabelecida como prioritária pelo governo,<br />
o restante do período ficou marcado por uma grande indefinição quanto ao que, essencialmente,<br />
o governo gostaria de ver aprovado no Legislativo. Ademais, em vários momentos a<br />
oposição conseguiu emplacar nomes pouco palatáveis para o governo em postos-chaves da<br />
Câmara e do Senado, sendo o episódio que levou a vitória de Severino Cavalcanti à presidência<br />
da Câmara Baixa apenas o mais ruidoso deles.<br />
4) Uma inovação radical: apostar em governos de minoria<br />
Os problemas enfrentados pelo atual governo apenas em parte decorreram de suas<br />
próprias escolhas, ou seja, tiveram origem no puro e simples descuido em assunto que se<br />
mostrou de primeira importância. Todavia, parte significativa dos dilemas vividos por Lula<br />
e equipe derivou de restrições colocadas pelo ambiente político e institucional. Em primeiro<br />
lugar, a estrutura do conflito político-partidário, isto é, o modo pelo qual a força parlamentar<br />
dos partidos dispostos a uma conduta mais ou menos cooperativa foi distribuída.<br />
Em segundo e mais importante lugar para fins de reforma política, a pouca flexibilidade<br />
conferida pelo sistema político, em particular, pelo conjunto de atribuições<br />
Do jeito que as coisas decisórias depositadas nos Poderes Executivo e Legislativo. Do jeito que as<br />
funcionam na política coisas funcionam na política brasileira atualmente, poucas possibilidades<br />
brasileira atualmente, restam ao presidente brasileiro a não ser governar com maiorias, freqüente-<br />
poucas possibilidades mente com supermaiorias parlamentares. Utilizando-se de raciocínio con-<br />
restam ao presidente trafactual, poder-se-ia argumentar que boa parte das disfuncionalidades<br />
brasileiro a não ser observadas recentemente não ocorreria se o governo optasse por montar no<br />
governar com maiorias, Legislativo uma base de apoio minoritária, porém mais enxuta e coesa, e<br />
freqüentemente partisse para a negociação de sua agenda com a oposição e independentes.<br />
com supermaiorias Uma outra lógica governamental adviria de uma decisão dessa na-<br />
parlamentares<br />
tureza, como se viu, experiência comum no presidencialismo norte-americano<br />
e em diversos países parlamentaristas da Europa. A história revela,<br />
entretanto, que para o bom funcionamento desse tipo de governo é essencial que o governo<br />
encontre no Congresso atores que estejam dispostos e capacitados a negociar uma agenda<br />
para o país. Sob essa perspectiva, a atual estrutura institucional que rege as relações Executivo-Legislativo<br />
concentra muito poder no primeiro, principalmente no que tange o orçamento<br />
e o poder de iniciar legislação, através das MPs, e torna o segundo irresponsável, da<br />
ótica das políticas públicas de alcance mais geral.<br />
Em outras palavras, governos de minoria pressupõem a existência de algumas condições<br />
político-institucionais. No Brasil, os benefícios advindos da condição de ser governo<br />
Revista Plenarium | 67
68 |<br />
Fabiano Santos<br />
são muito altos, assim como os custos de estar na oposição, principalmente para pequenos<br />
partidos e partidos intermediários. Uma plataforma interessante que visa ao aperfeiçoamento<br />
democrático no Brasil consiste, pois, em capacitar o Legislativo para participar de<br />
maneira mais eficiente no processo decisório, na implantação de políticas públicas, através<br />
de seu acompanhamento, e do processo de alocação de recursos orçamentários. Retomando<br />
alguns pontos de artigo que publiquei em número anterior da Plenarium (Santos, 2004),<br />
destacaria, pelo menos, duas dimensões: 1) aumentar o poder de alocação de recursos do<br />
Congresso; 2) aumentar o poder decisório das comissões técnicas permanentes.<br />
Quanto ao primeiro aspecto, trata-se de discutir a inserção do Congresso no processo<br />
orçamentário brasileiro. Duas medidas são essenciais. A primeira é tornar o orçamento, que<br />
é aprovado a cada ano pelo Legislativo, imperativo e não apenas autorizativo. Retirar o poder<br />
de contingenciar o gasto da União é vital para conferir maior responsabilidade às decisões dos<br />
congressistas, assim como para redistribuir o poder político da burocracia<br />
No Brasil, os benefícios do Ministério da Fazenda em favor da dimensão representativa do regime<br />
advindos da condição de democrático. A segunda medida essencial, no sentido de se aumentar o po-<br />
ser governo são muito der de alocação do Congresso, diz respeito à própria forma pela qual a peça<br />
altos assim como os custos orçamentária é discutida e aprovada no Congresso. Atualmente o processo<br />
de estar na oposição, é concentrado em uma comissão mista, sendo de vital importância a figura<br />
principalmente para do relator do projeto, em geral escolhido entre os mais confiáveis membros<br />
pequenos partidos e da base aliada ao governo. Uma maneira de contornar essa situação é divi-<br />
partidos intermediários<br />
dir o projeto orçamentário por áreas e enviar os diversos subprojetos para<br />
comissões pertinentes, fornecendo-lhes o poder de modificar as estimativas<br />
de receitas e despesas ali contidas. Uma vez aprovada a proposta da comissão temática, esta a<br />
envia para a comissão de orçamento e suas subcomissões, que tratariam de apreciar a proposta<br />
de substitutivo daquela. Relevante ressaltar que tal divisão de tarefas implica modificar a forma<br />
de tramitação do projeto de orçamento, que deixaria de ser unicameral, passando a tramitar<br />
simultaneamente nas duas Casas do Congresso.<br />
A segunda dimensão relevante consiste no problema do ritmo e locus de tramitação das<br />
matérias enviadas às comissões permanentes. Duas questões básicas devem ser consideradas:<br />
a) a questão da urgência; e b) a questão das comissões especiais.<br />
Existem dois tipos de urgência: a constitucional, de prerrogativa unilateral do chefe do<br />
Executivo, e a regimental, que pode ser solicitada por parlamentares segundo vários critérios,<br />
mas cuja aprovação depende da concordância do Plenário. Em comum nos dois casos,<br />
o fato de uma matéria sob tramitação urgente ter necessariamente de estar em Plenário para<br />
votação em 45 dias, tendo ou não sido apreciada pela comissão de mérito. O ponto central<br />
é que os principais projetos de interesse do Executivo, excetuando-se projetos de emenda<br />
constitucional, recebem o carimbo de urgentes, seja mediante pedido do próprio presidente,<br />
utilizando-se de sua prerrogativa constitucional, seja pela via de acordo entre líderes.<br />
Não é difícil entender que o recurso sistemático do instrumento do pedido de urgência,<br />
incidindo especialmente sobre matérias importantes, acaba por enfraquecer o trabalho das<br />
comissões permanentes, diminuindo, por conseguinte, os incentivos para uma participação<br />
mais ativa nesses órgãos.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
A questão das comissões especiais é mais um mecanismo de amesquinhamento das<br />
atribuições das comissões permanentes. Projetos de emenda constitucional e projetos de<br />
código não tramitam em comissões permanentes. Ademais, matérias complexas, apreciadas<br />
por mais de três comissões permanentes, podem ser retiradas destas e enviadas para uma<br />
comissão especial, encarregada unicamente de proferir parecer sobre tais matérias. Uma<br />
comissão especial difere de uma permanente pelo fato de ser constituída apenas para dar<br />
conta da tarefa especificada no momento de sua criação, isto é, trata-se de comissão ad hoc<br />
cuja membership é escolhida caso a caso. O ponto central é que a composição das comissões<br />
especiais pode ser manipulada pelos líderes, responsáveis pela indicação de seus membros,<br />
independentemente de expertise no tema em apreciação, apenas para dar aquiescência às<br />
finalidades do governo. As decisões de uma comissão permanente, contudo, para cuja montagem<br />
algum grau de dedicação e especialização nos temas pertinentes é pressuposto de seus<br />
membros, não são de fácil manejo por parte das lideranças do bloco governista.<br />
A facilidade de se pedir urgência para a tramitação dos projetos de interesse do governo<br />
e a prática de montagem de comissões especiais diminuem dramaticamente os incentivos<br />
para que os parlamentares, governistas ou de oposição, participem do processo decisório,<br />
desprovidos que são de um locus a partir do qual sua contribuição possa ser levada em consideração.<br />
Impõe-se, portanto, por um lado, rediscutir os critérios tanto de indicação de<br />
tramitação especial para projetos, restringindo, por exemplo, o número destes que podem<br />
tramitar com urgência em um mesmo intervalo de tempo, ou o tamanho do apoio necessário<br />
para aprovar a urgência constitucional; e, por outro, permitir às comissões permanentes<br />
a apreciação de projetos de emenda constitucional e de código, além de aumentar os requisitos<br />
de complexidade tendo em vista criar uma comissão especial.<br />
5) Conclusão<br />
A conclusão é que a grande discussão em torno da reforma política encontra-se deslocada<br />
em seu foco mais precípuo, pois não se trata de intervir nos mecanismos eleitorais, mas<br />
sim de como tornar o Congresso definitivamente co-responsável, para o bem e para o mal,<br />
pela agenda governamental no Brasil. Além de atingir um fim em si mesmo louvável – o fortalecimento<br />
da Casa por excelência da representação política –, esse enfoque sobre a reforma<br />
institucional teria como conseqüência benéfica tornar o processo governativo mais flexível,<br />
conferindo ao presidente e à oposição um leque maior de alternativas no que tange a suas<br />
finalidades de tramitação e negociação da agenda e sobrevivência política respectivamente.<br />
Referências<br />
AMORIM NETO, Octavio (2000), “Gabinetes presidenciais, ciclos eleitorais e disciplina legislativa no Brasil”. Dados, vol.<br />
43, nº 3, p. 479-519.<br />
SANTOS, Fabiano (2004), “A reforma do Poder Legislativo”. Plenarium: Câmara dos Deputados, ano 1, nº 1, p. 26-40.<br />
Revista Plenarium | 69
70 |<br />
Jairo Nicolau*<br />
Cinco opções, uma escolha:<br />
o debate sobre a reforma do<br />
sistema eleitoral no Brasil<br />
*Jairo Nicolau, Doutor em Ciência <strong>Política</strong> pelo Iuperj, onde é professor e pesquisador.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
O novo Congresso que toma posse em fevereiro de 2007 deve, enfim, debater e votar a<br />
tão esperada reforma política. Entre os diversos tópicos que entrarão em pauta, um dos mais<br />
importantes é a reforma do sistema eleitoral usado nas eleições para a Câmara dos Deputados.<br />
O propósito deste artigo é avaliar as cinco opções de sistema eleitoral que freqüentam<br />
o debate sobre o tema no Brasil: as três versões de representação proporcional (lista aberta,<br />
lista fechada e lista flexível); o sistema majoritário-distrital; e a combinação do sistema majoritário<br />
com proporcional, conhecido no Brasil pelo impreciso nome de distrital-misto.<br />
Dois pontos devem ser salientados. O primeiro é que nada impede que, a exemplo de<br />
outros países, diferentes sistemas eleitorais sejam adotados para as eleições para Câmara dos<br />
Deputados, Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores. Por exemplo, o voto majoritário-distrital<br />
pode funcionar nos municípios, mas dificilmente produziria bons resultados<br />
na disputa para a Câmara dos Deputados.<br />
O segundo ponto é que, ainda que tenha preferência pessoal por um determinado sistema<br />
(a lista flexível), o propósito aqui não é fazer uma defesa dessa opção, mas mostrar os<br />
diversos aspectos (positivos e negativos) associados a cada proposta.<br />
A lista aberta<br />
O eleitor, em geral, vota A lista aberta está em vigor no Brasil desde 1945. Dezesseis legislatu-<br />
em um nome de sua ras da Câmara dos Deputados foram escolhidas por meio desse sistema. Já<br />
predileção, mas não nos anos 50, alguns políticos, tais como Carlos Lacerda e Milton Campos,<br />
sabe que, no processo chamaram a atenção para o fato de a lista aberta incentivar a competição<br />
de apuração, os votos entre os candidatos de uma mesma legenda, o que enfraqueceria os parti-<br />
desse candidato serão dos. Esse foi o principal argumento apresentado pelos críticos da lista aber-<br />
somados aos de outros. ta até recentemente, quando outros pontos passaram a ser salientados.<br />
Se o candidato tiver mais O primeiro deles refere-se à transferência de votos entre candidatos<br />
votos do que o quociente de um mesmo partido ou coligação. A eleição de Enéas Carneiro (2002) e<br />
eleitoral, ele ajuda outros Clodovil Hernandez (2006), ambos como deputados federais por São Pau-<br />
nomes da lista a se lo, é apresentada como caso exemplar dessa tendência. Os dois concorre-<br />
elegerem; se tiver menos, ram por micropartidos, obtiveram mais votos do que o quociente eleitoral<br />
será ajudado pelos votos e ajudaram os seus partidos a eleger deputados com reduzido número de<br />
de outros candidatos<br />
votos. Na realidade, o espanto com casos como esses deriva do desconhecimento<br />
de como é feita a conta para distribuir as cadeiras na disputa para<br />
deputado federal. Ainda que as campanhas sejam concentradas nos candidatos, a distribuição<br />
das cadeiras é feita a partir dos votos totais obtidos por uma legenda (ou coligação). O<br />
eleitor, em geral, vota em um nome de sua predileção, mas não sabe que, no processo de<br />
apuração, os votos desse candidato serão somados aos de outros. Se o candidato tiver mais<br />
votos do que o quociente eleitoral, ele ajuda outros nomes da lista a se elegerem; se tiver<br />
menos, será ajudado pelos votos de outros candidatos.<br />
Um segundo ponto refere-se à desigual distribuição geográfica dos deputados eleitos.<br />
Hoje, há uma crescente tendência ao municipalismo nas eleições para a Câmara dos Deputados<br />
e, sobretudo, para as Assembléias Legislativas: muitos eleitores escolhem candidatos<br />
Revista Plenarium | 71
72 |<br />
Jairo Nicolau<br />
com fortes vínculos com a cidade onde residem. Mas o sistema de lista aberta não garante<br />
que todas as áreas de um determinado estado (ou município, nas eleições para vereador)<br />
tenham representantes com vínculos mais diretos com essas áreas (domicílio eleitoral, carreira<br />
política). Muitas vezes, grandes municípios não elegem representantes (pois dispersam<br />
o voto entre muitos candidatos), enquanto pequenos municípios, por concentrarem o voto<br />
em um número reduzido de candidatos, acabam elegendo deputados. Sem contar que os<br />
padrões não são seguidos em duas eleições consecutivas. A aleatoriedade do sistema tem<br />
sido vista como um ponto frágil da lista aberta, sobretudo pelos que defendem o vínculo<br />
territorial como uma virtude a ser garantida em um sistema representativo.<br />
Uma terceira crítica atribui à lista aberta um estímulo ao clientelismo e à corrupção.<br />
Como os deputados são incentivados a criar vínculos territoriais ou de identidade (religioso,<br />
profissional, corporativo) com os eleitores durante a campanha, eles<br />
Poderia o sistema precisam cultivar, ao longo do mandato, algum tipo de prestação de con-<br />
eleitoral estar associado tas específico para essa “clientela”: emendas do orçamento; ação junto aos<br />
à corrupção? É pouco orgãos do Executivo federal ou estadual para implementar políticas que<br />
razoável creditar favoreçam as suas bases; apresentação de proposições legislativas.<br />
escândalos políticos so- O incentivo do sistema de lista aberta para que os deputados eleitos<br />
mente ao procedimento cultivem uma relação estreita com clientelas específicas não significa que<br />
adotado para escolha dos essa relação derivará necessariamente para a corrupção. Quanto às emen-<br />
representantes. A Itália e das do orçamento, há casos de corrupção (por exemplo, o escândalo do su-<br />
o Japão, dois países que perfaturamento das ambulâncias), mas na grande maioria das situações, os<br />
passaram por escândalos deputados procuram garantir que verbas sejam liberadas para a realização<br />
que envolveram boa de obras em suas bases eleitorais.<br />
parte da elite política Poderia o sistema eleitoral estar associado à corrupção? É pouco razo-<br />
nos anos 90, trocaram os ável creditar escândalos políticos somente ao procedimento adotado para<br />
seus sistemas eleitorais escolha dos representantes. A Itália e o Japão, dois países que passaram<br />
por sistemas mistos<br />
por escândalos que envolveram boa parte da elite política nos anos 90,<br />
trocaram os seus sistemas eleitorais por sistemas mistos; a Itália abandonou<br />
um sistema de lista aberta, e o Japão, uma variante de sistema majoritário em distritos que<br />
elegiam poucos representantes. Denúncias de corrupção eleitoral atingiram a Democracia<br />
Cristã alemã (sistema misto) e o PSOE espanhol (lista fechada).<br />
Na realidade, existem muito poucos estudos consistentes comparando o grau de corrupção<br />
entre os países. Também sabemos pouco por que alguns países são mais corruptos do<br />
que outros, e por que a corrupção é variável entre as diferentes regiões de um mesmo país.<br />
A razão é simples: o fenômeno é difícil de ser mensurado e avaliado. As pesquisas comparativas,<br />
que geralmente lidam com percepções da elite sobre o grau de corrupção em um dado<br />
país, são muito criticadas pela metodologia utilizada, que, em geral, padece de problemas<br />
de confiabilidade e de validade.<br />
Um estudo do cientista político finlandês Lauri Karvonem, que comparou o sistema<br />
eleitoral de setenta países, chamou a atenção para um ponto vulnerável dos sistemas de<br />
voto preferencial (lista aberta e flexível). Como o financiamento é obtido pelos candidatos<br />
individualmente, e a prestação de contas é de responsabilidade dos candidatos, haveria um
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Combinamos grandes controle menor dos dirigentes e dos órgãos centrais do partido sobre os gas-<br />
distritos eleitorais, tos de campanha. Acredito que a prática do sistema proporcional no Brasil<br />
um grande número nos anos recentes mostra tais dificuldades. Combinamos grandes distritos<br />
de candidatos e de eleitorais, um grande número de candidatos e de partidos. Na eleição para<br />
partidos. Na eleição para deputado federal em 2002 concorreram 702 candidatos em São Paulo e<br />
deputado federal em 560 no Rio de Janeiro. Mesmo em um pequeno estado como Alagoas, 75<br />
2002 concorreram 702 nomes disputaram. É quase impossível examinar cuidadosamente as contas<br />
candidatos em São Paulo de tantos candidatos.<br />
e 560 no Rio de Janeiro. Em resumo: não existe associação empírica ou lógica entre a lista aber-<br />
Mesmo em um pequeno ta e a corrupção, mas o controle dos gastos de campanha é mais difícil<br />
estado como Alagoas, em sistemas de representação proporcional com voto preferencial. Tal ten-<br />
75 nomes disputaram. É dência seria agravada no Brasil devido ao alto número de candidatos que<br />
quase impossível examinar disputam as eleições.<br />
cuidadosamente as contas O principal argumento em defesa do sistema de lista aberta é o grau de<br />
de tantos candidatos<br />
escolha que ele oferece aos eleitores. Em geral, a possibilidade de escolher<br />
um determinado candidato em uma lista de nomes é contrastada com o<br />
sistema de lista fechada, no qual o eleitor pode apenas votar em um partido. Essa liberdade<br />
de escolha permitiria aos eleitores utilizarem o voto como instrumento de punição e<br />
recompensa, enquanto no modelo de lista fechada candidatos impopulares e acusados de<br />
corrupção poderiam ser colocados nas primeiras posições da lista.<br />
A lista fechada<br />
A Comissão Especial de <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong> – presidida pelo deputado Alexandre Cardoso<br />
(PSB-RJ), e tendo como relator o deputado Ronaldo Caiado (PFL-GO) – apresentou<br />
seu relatório final em 2003, com a sugestão da lista fechada. Os eleitores deixariam de votar<br />
em nomes, e passariam a votar exclusivamente na legenda; cada partido ordenaria a lista de<br />
candidatos antes das eleições.<br />
O principal argumento em defesa da lista fechada é que ela fortaleceria os partidos. Em<br />
primeiro lugar, o processo de escolha dos candidatos ganharia enorme importância, o que<br />
vitalizaria os partidos. Em segundo lugar, os partidos passariam a ter um papel predominante<br />
nas campanhas, já que os eleitores passariam a votar exclusivamente nas legendas. Além<br />
disso, a lista fechada foi sugerida por ser a melhor opção no caso de adoção do financiamento<br />
de campanha feito exclusivamente com recursos públicos. Essa sugestão do Relatório<br />
Caiado é correta: se a prioridade da reforma é introduzir o financiamento público integral,<br />
a melhor escolha é a lista fechada.<br />
O fortalecimento dos partidos, visto pelos defensores da lista fechada como virtude, é<br />
considerado risco pelos seus críticos. O argumento é o de que a lista fechada produziria uma<br />
“oligarquização” (essa é a palavra utilizada) dos partidos brasileiros. Os chefes, os dirigentes<br />
de cada seção estadual controlariam a feitura da lista, colocando seus aliados nas primeiras<br />
posições, e seus adversários entre os últimos nomes. A tese da oligarquização é acompanhada<br />
por exemplos hipotéticos: imagine fulano organizando a lista no estado x; beltrano,<br />
Revista Plenarium | 73
74 |<br />
Jairo Nicolau<br />
sanguessuga notório, mas chefe do partido no estado z, posicionando-se na cabeça da lista.<br />
Restaria ao eleitor dos partidos x ou z a resignação, já que perderia a liberdade conferida<br />
pelo sistema de lista aberta de votar em nomes.<br />
Obviamente, as coisas poderiam se passar desse jeito. Mas há de se considerar dois<br />
aspectos. Muitos países se valem dos sistemas de lista fechada com sucesso. Portugal e Espanha,<br />
por exemplo, adotaram-na ainda na fase de redemocratização e conseguiram organizar<br />
um sistema partidário consistente. A África do Sul e Israel têm utilizado o sistema de lista<br />
fechada para favorecer determinados grupos étnicos e religiosos; a Argenti-<br />
A principal vantagem da na, para garantir a representação feminina no Legislativo. A Suécia utilizou<br />
lista flexível é a de poder com sucesso a lista fechada até 1994. Não há nenhuma evidência de que<br />
combinar simultaneamente os partidos nesses países sejam menos democráticos do que os de outras<br />
a vontade do partido e a democracias.<br />
dos eleitores. Os partidos Poderíamos esperar que a lista fechada estivesse associada a uma me-<br />
apresentam uma lista nor renovação parlamentar (uma evidência indireta de “oligarquização”).<br />
ordenada de candidatos; A pesquisa feita pelos cientistas políticos ingleses Richard Matland e David<br />
caso o eleitor concorde Studlar, que comparou 25 países diferentes, mostrou que não há nenhuma<br />
com a lista, vota na relação entre o sistema eleitoral e a taxa de renovação parlamentar.<br />
legenda; caso queira Outra premissa equivocada da crítica da “oligarquização” é imaginar<br />
votar em um candidato que o processo de seleção de candidatos não mudaria sob a vigência de um<br />
específico pode fazê-lo<br />
novo sistema eleitoral. Hoje os eleitores podem votar em um dos candidatos,<br />
mas a lista de nomes é selecionada pelos partidos de maneira fechada.<br />
Em geral, os nomes são escolhidos pelos dirigentes partidários e aprovados nas convenções<br />
pouco democráticas.<br />
Com a maior importância conferida aos partidos no sistema de lista fechada, também<br />
é plausível imaginar que poderíamos ter partidos menos “oligarquizados” (com primárias e<br />
convenções mais disputadas, por exemplo) do que os que temos hoje. Além disso, é possível<br />
introduzir na lei mecanismos “antioligárquicos”. O primeiro é garantir que os lugares na<br />
lista serão distribuídos na proporção dos votos obtidos pelas diversas chapas que disputarão<br />
a convenção. O segundo é assegurar que na convenção partidária, que escolherá os nomes<br />
da lista, se adote o voto secreto.<br />
Em vez da “oligarquização”, acredito que o maior problema do sistema de lista fechada<br />
é a ausência de um mecanismo de accountability personalizada, ou seja, uma forma de<br />
estimular uma ligação mais direta dos representantes com os seus eleitores. Sabemos que o<br />
sistema atual tem uma série de distorções, mas os deputados são movidos pela necessidade<br />
de sempre estarem conectados às suas bases. No sistema de lista fechada, a principal motivação<br />
do deputado é cultivar o trabalho partidário (pois é este que garante a boa posição<br />
na lista na eleição seguinte). Por isso, o parlamentar tem muito pouco interesse de prestar<br />
contas de seu mandato à população em geral. Não esqueçamos de que o sistema também<br />
poderia ser implementado nos estados e municípios, onde a relação entre representados e<br />
representantes é ainda mais forte.
A lista flexível<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Alguns países europeus (Bélgica, Holanda, Suécia, Dinamarca, Noruega, Áustria) têm<br />
empregado uma versão de representação proporcional, a lista flexível, sistema em que os<br />
partidos ordenam a lista de candidatos, tal qual o sistema de lista fechada, mas o eleitor<br />
pode votar em um candidato específico ou, em alguns casos, até reordenar a lista.<br />
A principal vantagem da lista flexível é a de poder combinar simultaneamente a vontade<br />
do partido e a dos eleitores. Os partidos apresentam uma lista ordenada de candidatos;<br />
caso o eleitor concorde com a lista, vota na legenda; caso queira votar em um candidato<br />
específico, pode fazê-lo.<br />
Que eu saiba, até hoje, nenhuma proposta de adoção da lista flexível foi apresentada<br />
no Congresso Nacional. Como acredito que ela pode ser uma alternativa para o aperfeiçoamento<br />
da representação proporcional no Brasil, apresento uma proposta de como poderia<br />
funcionar. Em linhas gerais, a principal mudança seria na contagem dos votos de legenda,<br />
que seriam transferidos para os primeiros nomes da lista:<br />
1. os partidos apresentam aos eleitores uma lista de candidatos em ordem de preferência;<br />
2. os eleitores continuam votando em um nome da lista ou na legenda;<br />
3. o total de votos obtidos por um partido (nominal mais legenda) é dividido pelo número<br />
de cadeiras que o partido elegeu, obtendo-se uma quota;<br />
4. os votos de legenda são transferidos para o primeiro nome da lista até que este atinja<br />
a quota, e os votos em excesso são transferidos para o segundo candidato, e assim<br />
sucessivamente;<br />
5. caso um candidato obtenha uma votação nominal superior à quota, ele tem prioridade<br />
na lista de eleitos.<br />
O exemplo hipotético abaixo ilustra como quatro cadeiras eleitas por um partido seriam<br />
alocadas para os candidatos da lista. Os 15 candidatos do partido, somados, obtiveram<br />
180 mil votos, e o partido obteve mais 20 mil votos de legenda, perfazendo um total de 200<br />
mil votos. O total de votos (200 mil) é dividido por quatro (as cadeiras eleitas), encontrando-se<br />
a quota de 50 mil votos.<br />
Os votos de legenda são transferidos para o primeiro nome da lista até que ele atinja a<br />
quota. No exemplo, o candidato 1 recebe mais 10 mil votos. Os votos de legenda remanescentes<br />
são transferidos para o segundo da lista, que recebe 10 mil votos.<br />
A primeira cadeira é alocada para o candidato 8, que obteve 55 mil votos nominais.<br />
A segunda iria para o candidato 1, que obteve 50 mil votos (40 mil nominais + 10 mil de<br />
legenda transferidos). A terceira iria para o candidato 5, com 32 mil votos nominais. A última<br />
cadeira é conquistada pelo candidato 2, com 22 mil votos (12 mil nominais + 10 mil<br />
de legenda transferidos).<br />
Revista Plenarium | 75
76 |<br />
Jairo Nicolau<br />
A principal vantagem<br />
da lista flexível seria a<br />
de fortalecer os partidos<br />
sem privar os eleitores da<br />
possibilidade de votar em<br />
candidatos individuais.<br />
Com a apresentação<br />
da lista ordenada, os<br />
partidos provavelmente<br />
teriam forte incentivo<br />
para paulatinamente<br />
concentrar a campanha na<br />
reputação do partido, num<br />
esforço de diferenciação<br />
com outras legendas<br />
Distribuição de cadeiras em um sistema de lista flexível<br />
Candidato Votos<br />
Transferências do<br />
voto de legenda<br />
Total Situação<br />
1 40.000 10.000 50.000 2° eleito<br />
2 12.000 10.000 22.000 4° eleito<br />
3 15.000 15.000<br />
4 10.000 10.000<br />
5 32.000 32.000 3° eleito<br />
6 1.000 1.000<br />
7 2.000 2.000<br />
8 55.000 55.000 1° eleito<br />
9 1.500 1.500<br />
10 1.000 1.000<br />
12 500 500<br />
13 18.000 18.000<br />
14 500 500<br />
15 1.000 1.000<br />
LEGENDA 20.000<br />
TOTAL 200.000<br />
Na prática, quanto mais eleitores votam na legenda, mais o sistema<br />
se aproxima de um sistema de lista fechada. Na situação oposta, com altos<br />
contingentes de votos nominais, o sistema se aproximaria do modelo de<br />
lista aberta vigente.<br />
A principal vantagem da lista flexível seria a de fortalecer os partidos<br />
sem privar os eleitores da possibilidade de votar em candidatos individuais.<br />
Com a apresentação da lista ordenada, os partidos provavelmente teriam<br />
forte incentivo para paulatinamente concentrar a campanha na reputação<br />
do partido, num esforço de diferenciação com outras legendas.<br />
À maneira da lista aberta, a lista flexível também não garantiria uma<br />
representação territorial equânime. Essas distorções poderiam, no máximo,<br />
ser minoradas, já que os partidos que julgarem relevantes podem levar em<br />
conta o critério geográfico como fundamental para ordenar os candidatos.<br />
O sistema majoritário (o voto distrital)<br />
Durante os anos 60 e 70 o voto distrital apareceu no meio político<br />
como a principal alternativa para a reforma eleitoral no Brasil. Mas desde a redemocratização<br />
esta opção foi perdendo adeptos. Somente na campanha eleitoral de 2006, o voto distrital passou<br />
novamente a ser defendido por alguns políticos e intelectuais ligados ao PFL e ao PSDB.<br />
O voto distrital é utilizado no Reino Unido e, sobretudo, nas ex-colônias britânicas<br />
(Estados Unidos, Canadá, Índia e Bangladesh). O movimento das reformas eleitorais no
O diagnóstico é que<br />
o sistema distorce a<br />
representação partidária de<br />
maneira grave, o que seria<br />
inadmissível nas modernas<br />
democracias. O voto<br />
distrital foi abandonado<br />
pela Nova Zelândia em<br />
1993, após duas eleições<br />
em que um partido com<br />
menos votos ficou com<br />
mais cadeiras na Câmara<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
mundo todo tem sido na direção de abandonar esse modelo. Na última década, treze países<br />
que adotavam o sistema majoritário-distrital mudaram para a representação proporcional<br />
ou para diferentes versões de sistemas mistos.<br />
O Reino Unido, matriz do modelo majoritário, já usa a representação proporcional<br />
com lista fechada nas eleições para o parlamento europeu, e variantes do sistema misto para<br />
eleger representantes do parlamento da Escócia, do País de Gales e de Londres. A Assembléia<br />
da Irlanda do Norte é escolhida por um sistema de representação proporcional. Nos<br />
últimos anos, duas comissões especiais propuseram o abandono do voto distrital no Reino<br />
Unido. O diagnóstico é que o sistema distorce a representação partidária de maneira grave,<br />
o que seria inadmissível nas modernas democracias. O voto distrital foi abandonado pela<br />
Nova Zelândia em 1993, após duas eleições em que um partido com menos votos ficou com<br />
mais cadeiras na Câmara.<br />
Dois argumentos aparecem com mais freqüência entre os defensores do sistema distrital.<br />
O primeiro é que ele reduz a fragmentação partidária. De fato, as democracias com<br />
Os sistemas mistos<br />
sistemas eleitorais majoritários tendem a ter sistemas partidários menos<br />
fragmentados. Mas estudos recentes mostram que em países nos quais o<br />
sistema partidário não é nacionalizado – casos da Índia e da parte majoritária<br />
do sistema eleitoral da Rússia – o voto distrital pode estar associado a<br />
alta fragmentação.<br />
O segundo argumento é que o voto distrital permitiria um maior<br />
controle dos eleitores sobre os seus representantes. A eleição de um único<br />
deputado por distrito facilitaria uma maior visibilidade da atividade parlamentar<br />
e uma relação mais freqüente entre eleitores e representantes. De<br />
fato, na média, os cidadãos têm mais contato com os deputados nos países<br />
que utilizam os sistemas majoritários do que nos outros. Mas a variação<br />
dentro de cada família de sistemas eleitorais é enorme, o que revela que<br />
outros fatores também influenciam a freqüência com que os eleitores procuram<br />
(ou são procurados) pelos deputados.<br />
Por conta das distorções produzidas na relação entre votos e cadeiras recebidos pelos<br />
partidos, o sistema majoritário vem deixando de ser uma opção, seja nas reformas eleitorais<br />
de antigas democracias, seja nas escolhas institucionais de novas. A garantia de uma relação<br />
mais ou menos equilibrada entre votação e representação é hoje um valor fundamental das<br />
modernas democracias. Isso explica o sucesso dos sistemas mistos, que procuram combinar<br />
características das duas famílias de sistemas eleitorais (majoritário e proporcional).<br />
No Brasil, desde os anos 60, diversas propostas de adoção de sistemas mistos, quase<br />
sempre inspiradas no sistema eleitoral da Alemanha, vêm sendo apresentadas no Congresso.<br />
Durante os anos 90, falar em reforma eleitoral foi quase sempre considerar a opção por<br />
alguma variação de sistema misto. Hoje, diversos políticos e intelectuais, sobretudo ligados<br />
ao PT e PSDB, defendem a introdução dos sistemas mistos no Brasil.<br />
Revista Plenarium | 77
78 |<br />
Jairo Nicolau<br />
O principal argumento em defesa dos sistemas mistos é que eles garantem simultaneamente<br />
a accountability territorial (deputados eleitos em distritos de um representante) e a<br />
representação partidária (deputados eleitos em listas partidárias).<br />
As confusões aparecem quando se começa a discutir para além dessa apresentação superficial.<br />
Existem muitas formas de combinar a representação proporcional e majoritária<br />
nas eleições para o mesmo cargo. Mas qualquer opção exige que uma série de perguntas<br />
sejam respondidas, alguma delas bastante técnicas. Quantos votos dará cada eleitor, um<br />
ou dois? A parte proporcional será eleita independentemente da majoritária, ou haverá um<br />
mecanismo de correção? Os candidatos podem concorrer simultaneamente na lista e no<br />
distrito? As cadeiras de cada estado na Câmara dos Deputados serão definidas previamente<br />
às eleições, ou variarão como na Alemanha? A contagem dos votos proporcionais será feita<br />
no âmbito nacional ou no dos estados? Quem será responsável por desenhar os distritos de<br />
um representante? O sistema será utilizado nas eleições para as Assembléias Legislativas e<br />
Câmaras de Vereadores? Haverá cláusula de barreira?<br />
Mais do que qualquer opção, o sistema misto exige a montagem de uma complexa engenharia<br />
institucional, sobretudo se ele também for adotado na disputa para as Assembléias<br />
e Câmaras Municipais, com impacto sobre o comportamento dos partidos e dos eleitores.<br />
Distritos terão que ser desenhados nos estados (que não serão os mesmos na disputa para<br />
deputados estaduais). Os dirigentes partidários deverão ordenar a lista de candidatos e ainda<br />
escolher os nomes dos que disputarão as eleições majoritárias nos distritos. Os eleitores terão<br />
que aprender a lidar com um sistema muito mais complexo, no qual ele poderá ter que<br />
fazer duas escolhas para a Câmara dos Deputados e duas para a Assembléia Legislativa.<br />
O maior obstáculo para a adoção de um sistema misto deve-se justamente à dificuldade<br />
de criar um consenso mínimo para responder a todos esses desafios técnicos. Os legisladores<br />
deverão examinar se a adoção de um sistema eleitoral complexo trará os benefícios desejados<br />
para o sistema representativo brasileiro. Decisão difícil.<br />
Esse “passeio” em torno dessas cinco opções deixa claro que todas elas têm pontos positivos<br />
e negativos. É quase impossível se convencer acerca da superioridade teórica de um<br />
modelo sobre o outro. Escolhas reais são feitas também em função de cálculos, de desinformação<br />
e de tentativas de favorecimento. Além da premissa da imperfeição dos sistemas<br />
eleitorais, nossos legisladores deverão não perder de vista a pergunta óbvia: que sistema<br />
eleitoral pode ajudar a aperfeiçoar a representação política no Brasil?
Delfim Netto, na CPI do Salário, 1978. Foto de Luis Humberto.
80 |<br />
Bruno P. W. Reis*<br />
O presidencialismo de<br />
coalizão sob pressão:<br />
da formação de maiorias democráticas<br />
à formação democrática de maiorias**<br />
*Bruno P. W. Reis, Doutor em Ciência <strong>Política</strong> pelo Iuperj, é professor de Ciência <strong>Política</strong> do Departamento de Ciência <strong>Política</strong> da UFMG e<br />
pesquisador do CNPq.<br />
**Este artigo deve a sua existência à confiança generosa de Antônio Octávio Cintra, que perseverou no convite, mesmo quando eu pareci<br />
fraquejar quanto à capacidade de escrevê-lo em tempo hábil. Ele tem sua origem no Seminário Nacional sobre Ética nas Eleições Municipais,<br />
realizado na Câmara dos Deputados em maio de 2004, onde tive ocasião de tomar parte em um painel que discutia a reforma política<br />
juntamente com o deputado Ronaldo Caiado e o senador Jefferson Peres, sob a coordenação do deputado Chico Alencar. Na última hora, o<br />
texto chegou a beneficiar-se também de sugestões tópicas de Dawisson Belém Lopes, Fábio Wanderley Reis e Mário Brockmann Machado. Quero<br />
agradecer a todos, e muito especialmente a meus alunos das disciplinas <strong>Política</strong> IV e <strong>Política</strong> Brasileira II do Curso de Graduação em Ciências<br />
Sociais, da UFMG, que ao longo destes dois anos me auxiliaram pacientemente no esforço de amadurecer algumas idéias vagas sobre o<br />
funcionamento da política no Brasil contemporâneo. É claro, porém, que todos os erros, lacunas e ingenuidades aqui presentes são de minha<br />
exclusiva responsabilidade.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
O sistema político que hoje opera no Brasil, nascido da transição democrática de 1985<br />
e formalmente estabelecido na Constituição Federal de 1988, reúne uma série de atributos<br />
paradoxais e – duas décadas depois – continua a desafiar nossa capacidade de diagnóstico.<br />
Num plano bastante imediato, o atual regime já é a mais longeva experiência propriamente<br />
democrática de nossa história – o que deveria torná-lo objeto de justas homenagens, por<br />
mais que parte desse sucesso possa ser atribuída também a circunstâncias externas. Porém,<br />
quando olhamos à nossa volta, nas ruas, nos jornais, o que encontramos não é exatamente<br />
uma atmosfera de júbilo e congratulações pela auspiciosa efeméride. Antes, um mal-estar<br />
difuso, que se revela sobretudo em diagnósticos pessimistas da conjuntura, ceticismo quanto<br />
ao futuro, cinismo generalizado nas ruas quanto aos políticos. Essa situação torna-se<br />
ainda mais intrigante se consideramos o crescente otimismo que predomina nos diagnósticos<br />
acadêmicos do regime, liderados pelas pesquisas conduzidas por Argelina Figueiredo e<br />
Fernando Limongi. Mesmo concedendo o necessário desconto às inevitáveis oscilações de<br />
humor da opinião pública – afinal tão volúvel – parece haver algo mais a se averiguar nas<br />
relações entre a “estrutura” e a “conjuntura” em nosso caso.<br />
1) A estrutura<br />
Nos circuitos acadêmicos, essa ambivalência se manifesta num debate intenso quanto<br />
aos méritos e vícios de nosso arranjo institucional. Preliminarmente, creio que não será de<br />
todo injusto dizer que a literatura sobre a operação de nosso sistema político – especialmente<br />
no que toca ao funcionamento da Câmara dos Deputados e sua relação com o Poder Executivo<br />
– terá sido despertada de seu “sono dogmático” pelos trabalhos de Argelina Figueiredo<br />
e Fernando Limongi. 1 Com saudável escrúpulo empírico, eles trataram de submeter a um<br />
sistemático escrutínio uma série de teses decorrentes de um diagnóstico pessimista sobre o<br />
sistema político brasileiro que – com variadas formulações ou ênfases – tinha ampla circulação<br />
antes deles: que nossos partidos eram arremedos de partidos, sem consistência organizacional<br />
ou disciplina em plenário; que a agenda de nossos governos era travada por uma rede<br />
imanejável de interesses particularísticos que dominavam o Congresso Nacional. Mais fundamentalmente,<br />
alegava-se com freqüência que a mistura específica que caracterizava a nossa<br />
experiência republicana – presidencialismo, federalismo, multipartidarismo, bicameralismo<br />
e representação proporcional, que Sérgio Abranches (1988) batizara como “presidencialismo<br />
de coalizão” – impunha pesados ônus ao governo, dificultando sua operação e tornando-o<br />
particularmente propenso a crises pelas dificuldades em produzir maiorias sólidas e estabilidade<br />
política. Figueiredo e Limongi argumentaram persuasivamente que semelhantes temores<br />
não se justificavam: descendo à análise de dados sobre votações em plenário na Câmara<br />
dos Deputados, eles mostraram que o governo brasileiro tem obtido, desde 1988, altíssimo<br />
grau de aprovação de suas matérias no Congresso, com taxas de sucesso comparáveis às<br />
de qualquer governo democrático; que os partidos brasileiros se comportam no plenário<br />
de maneira disciplinada, quanto aos encaminhamentos dos líderes, e consistente com uma<br />
classificação espacial de sua posição ideológica no eixo esquerda-direita; que o Plenário é,<br />
portanto, previsível – e que o governo brasileiro tem, tanto quanto qualquer outro governo,<br />
conseguido aprovar aquelas matérias pelas quais efetivamente se empenha.<br />
Revista Plenarium | 81
82 |<br />
Bruno P. W. Reis<br />
O curioso, entretanto, é que os achados de Figueiredo e Limongi não chegam a desautorizar,<br />
pelo menos não em termos teóricos, o ceticismo do diagnóstico de Abranches, pois<br />
a principal razão por eles apontada para a estabilidade e o sucesso dos governos brasileiros<br />
em sua relação com o Congresso reside em dispositivos adicionais, específicos à ordem<br />
jurídica posterior a 1988 – e obviamente ausentes, portanto, da caracterização feita por<br />
Abranches em 1988, com o propósito de descrever a experiência democrática brasileira até<br />
ali, entrecortada que fosse. Esses novos dispositivos incluem uma considerável centralização<br />
de prerrogativas nas mãos tanto dos líderes partidários no Congresso quanto, sobretudo, do<br />
próprio presidente da República, em parte resultantes do regime autoritário anterior. Além<br />
da instituição do Colégio de Líderes, bem como de uma série de novas competências dos<br />
mesmos líderes quanto à designação de membros de comissões, esses novos dispositivos incluem<br />
as prerrogativas presidenciais de editar medidas provisórias, iniciar matéria orçamentária<br />
e requerer urgência em matérias de seu interesse, assim como propor emendas constitucionais<br />
(Figueiredo & Limongi, 2006: 252-7). Na prática, a presença desses dispositivos<br />
resulta em grande concentração do poder de agenda no Executivo, contrabalançando o<br />
efeito paralisante diagnosticado por Abranches na conjunção de nossos traços institucionais<br />
básicos. Mas se esses dispositivos excepcionais são de fato necessários para a produção de<br />
maiorias em nosso sistema, então pode-se presumir que o diagnóstico básico se mantém, em<br />
alguma medida. E que, na ausência deles, o Congresso Nacional, tal como é hoje constituído,<br />
de fato se enredaria numa trama confusa de interesses relativamente paroquiais, difícil<br />
de deslindar rumo à produção de maiorias políticas minimamente estáveis e relativamente<br />
previsíveis. Figueiredo e Limongi não se cansam mesmo de lembrar, a propósito, que boa<br />
parte da literatura da época compartilhava preocupações análogas às de Abranches, com<br />
prognósticos um tanto desesperançados sobre as perspectivas do caso brasileiro (Linz, 1990,<br />
1991; Sartori, 1993, 1994; Lamounier, 1994).<br />
Assim, permanece um problema – ainda que ele talvez soe muito “acadêmico” à primeira<br />
vista: se, para mantermos funcionando o sistema presidencialista, multipartidário, federativo,<br />
bicameral, proporcional caracterizado por Abranches (e com lista aberta), o preço<br />
a ser pago é concentrar de maneira dramática o controle da agenda legislativa nas mãos de<br />
uns poucos atores estratégicos (sobretudo nas do próprio presidente da República), qual é o<br />
propósito de se manter tudo isso? Pra inglês ver? Com efeito, se se trata apenas de produzir<br />
maiorias e decidir rotineiramente, evitando paralisias decisórias, Figueiredo e Limongi nos<br />
mostram de maneira convincente que nosso sistema funciona – e que portanto é possível<br />
que essas coisas todas coexistam estavelmente, contrariamente ao que sugeria a literatura.<br />
Mas, como é óbvio, essa dimensão – embora incontornável – não é a única pela qual se pode<br />
avaliar um sistema político. Particularmente um sistema que se queira democrático.<br />
Para mantermos a parcimônia neste ponto e evitarmos listas um tanto arbitrárias de<br />
atributos desejáveis de um regime democrático, cabe reportarmo-nos − como fizeram há<br />
pouco Anastasia e Nunes (2006) − ao muito conhecido enquadramento que Arend Lijphart<br />
(1984, 1999) proporciona à análise política comparada. Muito fundamentalmente,<br />
Lijphart identifica dois imperativos a que podem servir as instituições políticas. De um<br />
lado, um imperativo de natureza decisionística, voltado para a viabilização de decisões e
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
do exercício do poder por uma autoridade constituída por alguma maioria que a legitime:<br />
o princípio majoritarista. Do outro lado, um imperativo de natureza consociativa, voltado<br />
para a desconcentração do poder e a proliferação de pontos de veto, que induzam persuasão<br />
e barganha entre atores-chave do processo político, de modo a evitar decisões unilaterais<br />
potencialmente tirânicas: chamêmo-lo o princípio consensualista. Mais abstratamente ainda,<br />
pode-se apontar nesse enquadramento a postulação de uma dimensão subjacente a todas as<br />
instituições políticas, cujos formuladores têm de decidir sobre a concentração ou dispersão<br />
relativa de pontos de veto no sistema. 2 Dispositivos de inspiração consensual dispersam<br />
os pontos de veto; dispositivos de natureza majoritária os concentram.<br />
Independentemente do Como se pode intuitivamente inferir, todo sistema político, considerado<br />
que costuma de fato se amplamente, consiste numa combinação peculiar de dispositivos<br />
passar no mundo real, majoritários e consensuais em busca de um desejável equilíbrio que lhe<br />
aqui as prerrogativas confira ao mesmo tempo capacidade de ação e aceitação ampla. As simpatias<br />
formais fazem diferença: do próprio Lijphart, no entanto, dirigem-se inequivocamente na direção<br />
conceder a um presidente de dispositivos consociativos – em reação a uma atenção desproporcional<br />
prerrogativas legislativas à dimensão majoritarista, que ele acredita existir na ciência política e faz<br />
comparáveis às de um remontar até o século XIX, pelo menos no que toca a sistemas partidários<br />
primeiro-ministro é montar (Lijphart, 1999: 64).<br />
um sistema com uma É importante reconhecer que Figueiredo e Limongi não afirmam pes-<br />
formidável concentração soalmente um ponto de vista que se possa dizer “majoritarista” – e com<br />
do poder político<br />
freqüência os vemos a sublinhar positivamente as eventuais derrotas e embaraços<br />
que chega a sofrer o governo em sua relação com o Congresso. Mas<br />
é inequívoco que o foco básico da controvérsia em que eles se vêem metidos já há uma década<br />
consiste em afirmar que o nosso governo governa, sugerindo uma polêmica implícita contra<br />
uma tese inicial de conteúdo fundamentalmente majoritarista: eles polemizam com autores<br />
que afirmavam que o governo brasileiro (com seu presidencialismo multipartidário) não<br />
conseguiria as maiorias necessárias para governar – ou que somente as conseguiria a um custo<br />
impraticável. Figueiredo e Limongi mostraram que isto não necessariamente se dá e, recentemente,<br />
Limongi (2006: 256) tem-se inclinado mesmo por desqualificar a própria idéia de<br />
um contraste nítido entre parlamentarismo e presidencialismo, comparando as prerrogativas<br />
legislativas do presidente brasileiro às do chefe de governo em regimes parlamentaristas.<br />
De um ponto de vista majoritarista, talvez caiba a analogia: sob o funcionamento rotineiro<br />
de ambos os casos, o chefe de governo enfeixa considerável poder de agenda e tornase<br />
o ator central do processo legislativo. Se contudo pensamos na questão sob uma ótica<br />
“consensualista”, preocupados com a dispersão relativa de pontos de veto e, portanto, com<br />
a existência de controles mútuos internos ao sistema decisório, a situação é dramaticamente<br />
distinta. Por mais que primeiros-ministros com freqüência disponham de delegações do<br />
parlamento para governarem com ampla liberdade de movimento, concentrando em larga<br />
medida prerrogativas legislativas de facto, não é irrelevante o fato de que seu mandato devese<br />
exclusivamente à confiança do parlamento, e é sumariamente revogável por uma mudança<br />
de opinião de uma parcela dos parlamentares que seja suficiente para deslocar a maioria<br />
prevalecente no Plenário. Em regimes presidencialistas, o presidente costuma ser ao mesmo<br />
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Bruno P. W. Reis<br />
tempo chefe de governo e chefe de Estado, dono de um mandato fixado numa eleição majoritária<br />
direta de caráter marcadamente plebiscitário; já o primeiro-ministro parlamentarista<br />
é, em princípio, um chefe partidário demissível ad nutum tanto pela maioria parlamentar<br />
quanto por seus próprios liderados. Independentemente do que costuma de fato se passar<br />
no mundo real, aqui as prerrogativas formais fazem diferença: conceder a um presidente<br />
prerrogativas legislativas comparáveis às de um primeiro-ministro é montar um sistema com<br />
uma formidável concentração do poder político.<br />
Figueiredo e Limongi nos mostraram de maneira convincente que o governo brasileiro<br />
consegue de fato as maiorias necessárias para governar – e a um custo praticável, pelo<br />
menos no curto prazo. Talvez, porém, esse custo ainda seja relativamente alto, ou – dito de<br />
outra forma – talvez haja razões para crer que ele possa ser significativamente reduzido, pois<br />
receio que o preço pago por nossa “governabilidade” nos moldes atuais seja a concentração<br />
da competência legislativa na figura do presidente da República a um ponto que roça o aviltamento<br />
da atividade parlamentar e arrisca desmoralizar gravemente o Congresso Nacional<br />
aos olhos da opinião pública, o que, patentemente, já está acontecendo.<br />
Mesmo sem pretender descurar da dimensão “majoritarista” do problema (pois sistemas<br />
políticos, obviamente, devem ser capazes de produzir decisões), acredito que concordaremos<br />
todos quanto à importância de um enquadramento equilibrado de nossa apreciação<br />
do sistema político, com igual atenção a ambas as dimensões, avaliando, sim, sua capacidade<br />
de governar, de tomar decisões tempestivas quanto à agenda pública, mas também a<br />
capacidade de fazê-lo sem prejuízo grave para o exercício do veto por minorias relevantes<br />
em pontos cruciais do processo – que force a eventual maioria a ouvi-las. Caso contrário,<br />
correríamos o risco de endossar um sistema que, embora aparentemente operacional, aliena<br />
apoio progressivamente, à medida que o tempo passa.<br />
É difícil alegar que nosso sistema se saia bem nesse escrutínio: o equilíbrio que logramos<br />
alcançar nos joga rumo a extremos. De um lado, como Figueiredo e Limongi nos mostram,<br />
o Regimento da Câmara e a Constituição de 1988 contêm dispositivos que asseguram<br />
extraordinário poder de agenda para o presidente da República, ele mesmo eleito por voto<br />
direto de âmbito nacional em dois turnos. Do outro, dispomos de um sistema eleitoral extremamente<br />
descentralizador no preenchimento das cadeiras parlamentares: representação<br />
proporcional, em 27 distritos estaduais, com listas abertas e competição intensa (e crescente),<br />
fortemente pulverizada entre muitíssimos candidatos disputando entre si as cadeiras de<br />
deputados por cada estado. Mesmo as cadeiras dos senadores, majoritárias, são preenchidas<br />
por maioria simples, em pleitos de turno único, com suplentes anônimos que não chegam<br />
a disputar a eleição de maneira visível durante a campanha. Por que consagrar a exigência<br />
de maioria absoluta para os cargos executivos e dispensá-la para o senado? Presumivelmente<br />
porque os senadores não têm tanta importância...<br />
Fabiano Santos, em linha análoga, tem insistido na relevância de se reverem, rumo a<br />
uma desconcentração de prerrogativas, os instrumentos normativos que regulam a relação<br />
entre os Poderes, a bem de uma redução da desorganização de nossa vida partidária. Num<br />
tom um tanto genérico, ele sugere que se poderia distribuir “de maneira mais equânime o<br />
poder alocativo entre o Executivo e comissões do Legislativo”, assim como onerar o acesso
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
a postos ministeriais, talvez pela perda do mandato parlamentar (Santos, 2006: 295). Pessoalmente,<br />
como está claro, compartilho sua preocupação. Receio, contudo,<br />
Acredito que, até pela que a conexão eleitoral constitua-se em variável incontornável na mudança<br />
percepção externa das da relação de forças entre Executivo e Legislativo vigente no Brasil.<br />
justificações normativas Não se pode imaginar que a melhor forma de equilibrar o sistema<br />
do regime, alcançaríamos político possa consistir na produção de uma compensação extremada entre<br />
equilíbrio mais confiável se um sistema eleitoral fortemente inclinado à dispersão de poder no pre-<br />
nos dispuséssemos a dotar enchimento das cadeiras parlamentares, de um lado, e regras fortemente<br />
as eleições parlamentares concentradoras na regulação da operação do Congresso e de sua relação<br />
de um nível mais alto de com o Executivo, do outro. Carlos Pereira e Bernardo Mueller (2003) já<br />
concentração de poder, se referiram em linhas análogas àquilo que Lucio Rennó (2006a) descre-<br />
sobretudo intensificando vera como “incentivos institucionais contraditórios” presentes no sistema<br />
o protagonismo partidário eleitoral brasileiro, que, não obstante, gerariam um regime político está-<br />
nas campanhas eleitorais, vel e equilibrado. Acredito que, até pela percepção externa das justifica-<br />
visando a constituir ções normativas do regime, alcançaríamos equilíbrio mais confiável se nos<br />
um parlamento mais dispuséssemos a dotar as eleições parlamentares de um nível mais alto de<br />
estruturado, povoado concentração de poder, sobretudo intensificando o protagonismo parti-<br />
de atores coletivos mais dário nas campanhas eleitorais, visando a constituir um parlamento mais<br />
poderosos que os de hoje<br />
estruturado, povoado de atores coletivos mais poderosos que os de hoje<br />
– em condições, talvez, de dispensar os extraordinários poderes de agenda<br />
até aqui conferidos ao Executivo brasileiro. Em suma, estaríamos mais próximos de um<br />
regime equilibrado de concentração/dispersão de pontos de veto se combinássemos um<br />
sistema eleitoral que dispersasse menos o poder com formas de regulação interna da vida<br />
parlamentar que não precisassem concentrar tantas prerrogativas nas mãos do presidente e<br />
dos líderes.<br />
2) A conjuntura<br />
O sistema político hoje vigente no Brasil porta consigo, assim, uma profunda ambivalência<br />
em sua própria lógica constitutiva: em seus traços mais grossos, visíveis à distância,<br />
trata-se de um sistema descentralizado e que dispersa poder; nas suas engrenagens mais<br />
miúdas, discerníveis apenas por um exame mais detido, descobre-se um sistema fortemente<br />
centralizado, que concentra extraordinárias prerrogativas no topo da hierarquia. Pior: esses<br />
dispositivos microscópicos, reconhecíveis apenas para o especialista ou o insider, parecem<br />
ter-se constituído até aqui em sua condição mesma de estabilidade.<br />
Para espíritos mais realistas, essa ambivalência normativa poderia ser em princípio relegada<br />
a um segundo plano na análise – desde que o sistema continuasse indefinidamente<br />
a produzir as maiorias e as decisões necessárias à continuidade de sua operação. Não fosse<br />
a possibilidade de vir a converter-se ela mesma num fator de corrosão e, no devido tempo,<br />
de risco para o sistema cuja operação a princípio favorece. Suspeito que já tenhamos testemunhado<br />
a operação desse efeito ao longo do tempo – com a erosão continuada da imagem<br />
dos políticos, dos partidos e do Congresso junto à opinião pública, com tonalidades particularmente<br />
dramáticas ao longo dos últimos dois anos.<br />
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Bruno P. W. Reis<br />
Sem dúvida, convém tomar com alguma cautela o clima que se depreende das conversas<br />
nas ruas, das leituras dos jornais e dos noticiários da tevê – sobretudo num país tão<br />
marcadamente desigual como o Brasil, e que acaba de reeleger seu presidente com 60% dos<br />
votos. De fato, certo desencantamento quanto à política pode mesmo ser<br />
É possível mesmo alegar lido como um sintoma saudável de amadurecimento da opinião pública,<br />
que, em certa medida, essa que ao longo do processo se torna, assim, mais desconfiada dos políticos,<br />
sucessão de escândalos menos maniqueísta em sua apreensão das disputas, mais propensa à vi-<br />
seja menos o sintoma de gilância e – ao fim e ao cabo – menos manipulável, talvez. Talvez certa<br />
uma degeneração recente ressaca quanto à política seja o preço natural a ser pago após vinte anos tão<br />
dos costumes do que – ao repletos de escândalos políticos – ainda mais depois que a safra mais recen-<br />
contrário – o reflexo da te de denúncias engolfou aquele que era aos olhos de muitos a última vestal<br />
operação de mecanismos da cena política, o PT. É possível mesmo alegar que, em certa medida, essa<br />
institucionais de controle sucessão de escândalos seja menos o sintoma de uma degeneração recente<br />
e de uma propensão dos costumes do que – ao contrário – o reflexo da operação de mecanismos<br />
crescente à vigilância institucionais de controle e de uma propensão crescente à vigilância inter-<br />
interna e externa dos na e externa dos atos dos agentes do setor público, desdobramento natural<br />
atos dos agentes do setor do processo mesmo de democratização política.<br />
público, desdobramento Ainda assim, receio que os impactos potenciais da crise deflagrada<br />
natural do processo mesmo com a denúncia do dito “mensalão” pelo ex-deputado Roberto Jefferson<br />
de democratização política<br />
sejam fundos o bastante para dividir a história do debate recente sobre reforma<br />
política no Brasil em dois momentos: antes e depois da crise política<br />
de 2005. Até o escândalo, a reforma política, independentemente do juízo que se faça sobre<br />
sua real importância para o país, era antes de mais nada um esporte cultivado por alguns intelectuais<br />
e uns poucos políticos especialmente insatisfeitos com as regras vigentes. De fato,<br />
é justo admitir que sua importância terá sido ocasionalmente exagerada por espíritos mais<br />
inclinados a aderir com entusiasmo a fórmulas mágicas, verdadeiras panacéias que – por<br />
encanto – resolveriam muitos de nossos males. As propostas variavam, mas freqüentemente<br />
evocavam-se desenhos que, numa penada, reorganizavam o sistema político de alto a baixo,<br />
sem atenção nem ao controle dos efeitos eventualmente contraditórios de tantas mudanças<br />
simultâneas, nem à viabilidade política da aprovação das propostas que poderiam requerer<br />
drásticas mudanças na própria Constituição.<br />
Predominantemente, a comunidade de cientistas políticos reagiu com louvável ceticismo<br />
a essas especulações e tendeu a participar do debate com a devida sobriedade. Particularmente<br />
depois da aparição dos primeiros resultados de Figueiredo e Limongi, houve um<br />
nítido reforço na atmosfera de ceticismo quanto às reformas – que talvez tenha tido o mérito<br />
de nos impedir de embarcar às cegas em experimentos institucionais de conseqüências<br />
imprevisíveis. Somando-se a isso a desconfiança política com que um intelectual do porte<br />
de Wanderley Guilherme dos Santos já vinha desde antes (1994) recebendo as sugestões de<br />
mudanças na legislação eleitoral, produziu-se no país um clima intelectual muito peculiar<br />
quanto a essa matéria. De um lado, uma deterioração progressiva da imagem dos políticos<br />
e do sistema político junto à opinião pública; do outro, uma disseminação crescente, entre<br />
os profissionais da ciência política, do referido ceticismo quanto às possibilidades de solu-
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
ção de nossos males por uma reforma<br />
política. Em favor dos meus colegas,<br />
deve-se admitir que essa<br />
reforma é freqüentemente<br />
evocada por seus defensores<br />
de uma forma, sim, meio<br />
mágica: a política tem problemas;<br />
então, reforme-se<br />
a política, e as coisas<br />
vão melhorar.<br />
Infelizmente,<br />
isso nem sempre<br />
é verdade,<br />
pois, por pior<br />
que esteja a<br />
situação, ela<br />
sempre pode piorar.<br />
A sensibilidade para essa<br />
possibilidade é uma das facetas<br />
mais saudáveis do conservadorismo<br />
político – e é verdade<br />
que, particularmente no que<br />
toca a redesenhos de regras eleitorais e partidárias, iniciativas legislativas normalmente se<br />
ramificam numa caótica rede de conseqüências concatenadas em cascata, dificilmente previsíveis<br />
de antemão.<br />
Muito se aprendeu sobre o funcionamento de nosso sistema político ao longo desses<br />
anos, sob essa atmosfera cética. O problema é que o predomínio desse “conservadorismo<br />
institucional”, para onde confluíram de fato perspectivas originariamente muito distintas<br />
quanto ao funcionamento ideal do sistema (Wanderley Guilherme, basicamente olhando<br />
para o que poderíamos chamar de sua representatividade democrática; textos de Argelina e<br />
Limongi, mirando realisticamente a governabilidade), terminou – ao sabor das polêmicas<br />
travadas – por induzir certa cristalização de posições no meio acadêmico que terá eventualmente<br />
prejudicado o debate arejado e a identificação de meios-termos possíveis que<br />
encaixassem, num mesmo diagnóstico, tanto as funcionalidades do sistema quanto suas<br />
mazelas (que, afinal, certamente também existem). 3 Receio, portanto, que aquela atmosfera<br />
sobriamente cética no meio profissional tenha em algum momento virado o fio rumo a um<br />
conservadorismo institucional um tanto militante, que começa a se aproximar do extremo<br />
de tratar com reservas a própria idéia de reformas políticas – tese que, tomada a sério, nos<br />
condenaria ao clã e ao tacape por toda a eternidade, com a possível ressalva dos casos de<br />
violência revolucionária.<br />
A natureza da crise de 2005 propiciou novo enquadramento para a questão da reforma<br />
política. Contudo, a comunidade da ciência política – talvez presa de seu, já àquela altura,<br />
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Bruno P. W. Reis<br />
instalado conservadorismo na matéria – reagiu à crise de maneira um tanto defensiva (foi<br />
possível ouvir colegas de profissão na televisão a alegar que a crise era moral...) e falhou em dar<br />
a importância necessária a esse deslocamento. Deixou-se pautar pela apropriação mais imediatamente<br />
jornalística da crise (quem sabia o quê... quem seria punido ou<br />
Assim como devemos não... os desdobramentos para 2006...) e não sublinhou com a devida ênfase<br />
ter aprendido que o a face institucional do escândalo.<br />
combate à corrupção Bem entendido, não se trata aqui de mais um esforço voltado para<br />
não se resume à troca de livrar a cara dos envolvidos no episódio, com a surrada alegação genérica<br />
bandidos por mocinhos, de “crise sistêmica”. Mas, muito simplesmente, de apontar que um aspecto<br />
mas à implementação relevante da crise de 2005, raramente mencionado, diz respeito ao fato de<br />
penosa e gradual de ela ter sido uma crise com importantes ramificações institucionais, mais do<br />
políticas anticorrupção, que, por exemplo, a crise que levou ao impeachment de Fernando Collor.<br />
devemos ter em mente E isso independentemente do juízo que façamos sobre o desempenho das<br />
agora que problemas instituições no episódio, ou mesmo da ausência de qualquer ameaça mais<br />
graves em pontos tão palpável à normalidade institucional, pois a crise de 1992 dizia respeito<br />
sensíveis de nosso mapa sobretudo a acusações de achaques, feitos por pessoas ligadas ao presidente,<br />
institucional clamam por sobre fornecedores do governo, com vistas a enriquecimento pessoal. Após<br />
soluções institucionais<br />
o dramático desfecho, o sistema político podia gabar-se de haver detectado<br />
e neutralizado a atuação da quadrilha – mesmo ao preço do mandato do<br />
presidente da República. As instituições pareciam robustas e sadias, portanto – cumprindo<br />
devidamente o papel que delas se espera.<br />
Desta vez, porém, embora os desdobramentos da crise não tenham chegado a ponto de<br />
derrubar o presidente, as denúncias se referiam muito mais diretamente ao cerne do sistema<br />
político – e não poderiam ser sanadas nem mesmo se Lula caísse, ou se todos os 513 deputados<br />
fossem cassados, pois a crise dizia respeito, afinal, ao relacionamento entre os poderes<br />
Executivo e Legislativo e, dada a linha de defesa adotada por Delúbio Soares, ao financiamento<br />
das campanhas eleitorais no Brasil. Dificilmente poderia haver dois temas mais sensíveis<br />
para a operação das democracias modernas – e cometeremos uma grave ingenuidade<br />
se imaginarmos que vícios graves de procedimento em temas institucionais tão centrais ao<br />
sistema podem ser resolvidos com a mera troca dos fulanos encarregados. De fato, muitos<br />
de nós embarcamos nesse mesmo gênero de ingenuidade maniqueísta em 2002, durante o<br />
“oba-oba” que cercou a ascensão de Lula ao poder. Porém, assim como devemos ter aprendido<br />
que o combate à corrupção não se resume à troca de bandidos por mocinhos, mas à<br />
implementação penosa e gradual de políticas anticorrupção, devemos ter em mente agora<br />
que problemas graves em pontos tão sensíveis de nosso mapa institucional clamam por<br />
soluções institucionais e que, portanto, a crise de 2005 nos defronta com o imperativo de<br />
revermos as regras que emolduram as relações Executivo-Legislativo, assim como o controle<br />
do financiamento das campanhas.<br />
É difícil exagerar a gravidade do que está em jogo aqui. A admissão pública, oficial, de<br />
que a democracia brasileira é incapaz de detectar o emprego em larga escala de recursos não<br />
contabilizados nas campanhas eleitorais (e de que o governo brasileiro ocasionalmente pode<br />
recorrer a esses mesmos recursos para irrigar sua influência junto a congressistas) implica
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
simplesmente admitir que não somos capazes de controlar o abuso do poder econômico<br />
na política brasileira. E, portanto, compromete as perspectivas de isolamento democrático<br />
do sistema político frente a influências espúrias provenientes das naturais (e, em nosso<br />
caso, profundas) desigualdades econômicas vigentes, produzindo uma grave fissura na legitimidade<br />
do regime político junto à população. (Voltaremos a esse tema<br />
adiante, quando discutirmos o financiamento público das campanhas. Reservemo-lo<br />
por enquanto.)<br />
Poder-se-iam, em princípio, ignorar essas mazelas de natureza, talvez,<br />
um tanto filosófica. Se os governos governam, se maiorias se produzem, se<br />
as votações se fazem e as decisões são tomadas, então, qual é o problema?<br />
O problema é que se nos habituamos à rotinização de práticas pouco justificáveis<br />
perante a opinião pública, então tenderá a disseminar-se junto<br />
ao público a opinião de que o modus operandi do sistema político é vil – e<br />
com tanto mais força quanto mais a estabilidade do sistema vier a depender<br />
em alguma medida dessas práticas. Isso, para dizer o mínimo, não favorece<br />
suas perspectivas de sobrevivência a longo prazo. E isso, espera-se, deveria<br />
preocupar conservadores institucionais – afinal de contas, não faz sentido empenharmo-nos<br />
contra modificações institucionais negociadas nas regras eleitorais se o preço desse empenho<br />
for o risco de eventual colapso do sistema como um todo na próxima esquina.<br />
Entendo que essa dimensão do problema ganha clara preeminência a partir de 2005. Pois<br />
“o rei está nu”. Já estava antes, alegar-se-á: “todo o mundo” sempre soube que financiamento<br />
de campanhas é um problema complicado em qualquer lugar do mundo, e de precário controle<br />
entre nós. Mas agora alguém já gritou, pra todo o mundo ouvir, que “o rei está nu”. Deu<br />
no Jornal Nacional durante meses, o próprio presidente falou que todo o mundo faz, o ex-presidente<br />
falou de joio e trigo (Reis, 2005: 13). Ou seja, agora, além de todo o mundo saber que<br />
“o rei está nu”, todo o mundo sabe que todo o mundo sabe − e ninguém pode mais, portanto,<br />
fingir não ter percebido. Conforme a circunstância, isso pode fazer toda a diferença. 4<br />
O Congresso teria cumprido<br />
melhor seu papel na<br />
crise se tivesse tratado<br />
de legislar. Outras<br />
instituições da República<br />
compartilham com ele a<br />
competência de investigar.<br />
Mas só o Congresso<br />
Nacional poderia ter<br />
legislado sobre a matéria<br />
Portanto, em vez de se refestelar no espetáculo televisivo das CPIs, o Congresso teria<br />
cumprido melhor seu papel na crise se tivesse tratado de legislar. Outras instituições da<br />
República compartilham com ele a competência de investigar. Mas só o Congresso Nacional<br />
poderia ter legislado sobre a matéria. Apesar de ser justo que se diga que, toda vez que<br />
um político falava em reforma política durante a crise, havia sempre um jornalista no dia<br />
seguinte a falar em “manobra diversionista”, “pizza”, que a hora era de punir os culpados<br />
etc. Agora, acabamos de cometer a temeridade de preencher muitos dos principais cargos<br />
da República numa eleição bastante desmoralizada e em um contexto com forte tendência<br />
à polarização política em torno da figura do presidente. Isso não é uma combinação promissora,<br />
ainda mais se o presidente concentra tantas prerrogativas. Oxalá a economia internacional<br />
nos poupe de turbulências nos próximos anos. Se não, alguma conjuntura adversa<br />
poderá nos apanhar com as portas escancaradas para os demagogos de plantão, candidatos<br />
a caudilho. Não terá sido prudente esperar para ver.<br />
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Bruno P. W. Reis<br />
3) A reforma<br />
Entretanto esperamos. Pelo menos até aqui.<br />
Não bastasse o fato de apoiarmos as condições de estabilidade do sistema numa concentração<br />
de prerrogativas legislativas presidenciais que expõe a imagem dos parlamentares<br />
a permanente vilificação pelos editoriais dos jornais, agora, quando os vícios do sistema<br />
político ricocheteiam rumo à face da própria Presidência, permitimo-nos ignorar riscos<br />
tangíveis e preenchemos os mandatos em todo o sistema legislativo e executivo estadual e federal<br />
do país sem alteração significativa de procedimentos. Em caso de crise aguda, o apelo<br />
ao respeito às autoridades democraticamente constituídas estará enfraquecido − e somente<br />
na hora dramática saberemos quanto.<br />
Desde que se instalou a crise, a reforma política começou a ser ocasionalmente brandida<br />
com mais força, tanto pelos seus defensores de sempre quanto pelo próprio governo,<br />
como pronta resposta institucional ao escândalo. Imediatamente começaram a proliferar<br />
propostas de modificações das mais diversas naturezas na legislação eleitoral, e o governo<br />
encarregou o ministro da Justiça de coordenar um grupo formado também pelo Ministério<br />
da Coordenação <strong>Política</strong> e pela Secretaria-Geral da Presidência da República, além do<br />
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (Agência MJ de Notícias 2005), para<br />
“analisar todas as propostas existentes sobre o tema” e entregar em 45 dias ao presidente “um<br />
diagnóstico para iniciar a reforma política no país” (alguém viu?). Do outro lado, alegavam<br />
os mais cautelosos que não seria muito adequado realizar uma reforma política num momento<br />
de crise como aquele, e que seria temerário improvisar uma reforma no afogadilho.<br />
O curioso é que não havia necessidade de improvisação alguma. Enquanto se fazia esse<br />
barulho todo, dormitava no Congresso, meio esquecido, o Projeto de Lei n o 2.679/2003, de<br />
autoria da Comissão Especial de <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong>, que apenas dois anos antes funcionara ao<br />
longo de 10 meses no lugar devido: a Câmara dos Deputados. E ainda executara com vagar<br />
(26 reuniões, 7 audiências públicas) a mesma tarefa que a comissão do Executivo se propunha<br />
fazer às pressas, em 45 dias: “estudar todos os projetos de reforma política apresentados<br />
na Casa e elaborar uma proposta ampla e unificada do tema” (Soares & Rennó, 2006: 14).<br />
Parece-me inequívoco que, se se trata de discutir a sério alguma reforma na legislação eleitoral<br />
e partidária brasileira, é esse o projeto que se reveste da legitimidade necessária para<br />
balizar os termos da discussão. É a ele que devemos nos reportar.<br />
No início dos anos 90, o debate que antecedeu a malograda reforma constitucional de<br />
1993 foi marcado por um voluntarismo muito mais entusiasmado do que a atmosfera que<br />
hoje cerca as discussões sobre o funcionamento do nosso sistema político. Até por anteceder<br />
o plebiscito sobre sistema de governo, o leque das opções cogitadas era muito mais vasto e<br />
abarcava literalmente qualquer modificação que se quisesse imaginar no desenho de nossas<br />
instituições políticas, como representação distrital uninominal, sistema distrital misto à<br />
maneira alemã, e incluía a discussão de variadas formas de regimes parlamentaristas, presidencialistas<br />
etc. Embora contando com um leque um tanto residual de simpatizantes, até<br />
mesmo o regime monárquico era considerado. Dada essa falta de enquadramentos mínimos<br />
e a dispersão resultante, o debate tendeu a produzir pouco mais que dogmatismo em uns<br />
poucos – e perplexidade na grande maioria. Naquele contexto, terminei por adotar como
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
minha a posição comparativamente sóbria e prudente então defendida por Jairo Nicolau<br />
(1993). Sem recusar liminarmente a discussão de mudanças no sistema, Jairo preconizava<br />
cautela: antes de partirmos para uma reorganização drástica que ninguém pode saber<br />
onde vai dar, seria bom nos dedicarmos a melhorias em nossa representação proporcional<br />
já existente. E haveria dois pontos onde claramente caberiam melhorias: o problema das<br />
coligações nas eleições proporcionais e, sobretudo, o das cadeiras alocadas não aos partidos,<br />
mas aos deputados.<br />
Se o deputado pode São dois pontos que violam a própria idéia de proporcionalidade que<br />
mudar de legenda, subjaz ao sistema. Sua premissa básica (idealizada que seja) é que os par-<br />
carregando consigo o seu tidos representam, grosso modo, diferentes correntes de opinião existentes<br />
lugar no parlamento, dentro da comunidade política. É por isso que os deputados se elegem den-<br />
então a distribuição das tro de um quociente que porventura tenha sido alcançado por seu partido<br />
cadeiras deixa de guardar (ou coligação). Seria fácil minimizar as pequenas distorções causadas pelas<br />
relação necessária com coligações com a observância de alguma forma de proporcionalidade inter-<br />
o resultado eleitoral – e na à coligação, como aponta Maria do Socorro Braga (2006: 235-7). Mas<br />
abre-se a possibilidade de é simplesmente contrário ao mero princípio da representação proporcional<br />
se barganhar a maioria que o deputado, uma vez eleito, se torne o dono da cadeira por ele ocupa-<br />
parlamentar para além da. Se o deputado pode mudar de legenda, carregando consigo o seu lugar<br />
do momento eleitoral<br />
no parlamento, então a distribuição das cadeiras deixa de guardar relação<br />
necessária com o resultado eleitoral – e abre-se a possibilidade de se barganhar<br />
a maioria parlamentar para além do momento eleitoral. Ora, se é possível negociar<br />
a maioria na forma de migrações partidárias, não podemos ter dúvidas: ela será negociada.<br />
Se, ao contrário, a cadeira pertence ao partido, imediatamente cristaliza-se no resultado<br />
eleitoral uma relação de forças partidárias parlamentares que perdurará até nova consulta ao<br />
eleitorado, e os partidos tornam-se naturais protagonistas de qualquer composição de maiorias<br />
governamentais no plenário. Toda a discussão um tanto arrevesada acerca de exigências<br />
de “fidelidade partidária”, prazos de filiação e mesmo cláusulas de barreira torna-se muito<br />
menos importante.<br />
O PL 2.679/2003 – que hoje tramita na Câmara dos Deputados – baseia-se em preocupações<br />
análogas, além de partilhar do mesmo ânimo relativamente parcimonioso. Claro,<br />
ao propor certas mudanças, o projeto desdobra-se em modificações subseqüentes, destinadas<br />
a dar coerência ao corpus jurídico a ele relacionado, assim como mitigar eventuais efeitos<br />
indesejáveis que toda modificação legal traz consigo. Mas atém-se de saída a propor apenas<br />
legislação infraconstitucional, dispensando o quórum qualificado e a tramitação especial<br />
das propostas de emenda constitucional, e claramente abraça as duas teses a que me referi<br />
acima. Preliminarmente, pela restrição a coligações nas eleições proporcionais (substituídas<br />
com vantagens do ponto de vista da inteligibilidade eleitoral pela criação da figura das federações<br />
partidárias, que pode também mitigar eventuais riscos quanto à sobrevivência política<br />
de legendas menores). Mas, acima de tudo, pela atribuição dos mandatos parlamentares<br />
aos partidos mediante a instauração da lista partidária fechada nas eleições de deputados e<br />
vereadores – esta sim, uma inovação mais relevante em relação ao status quo, embora mais<br />
afim ao princípio proporcional da representação política por partidos e mais comumente<br />
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Bruno P. W. Reis<br />
adotada mundo afora que a nossa lista aberta. Esta última medida tenderia, em princípio,<br />
a produzir um desejável fortalecimento organizacional dos partidos políticos, favorecendo<br />
também, a médio prazo, a própria penetração social dos partidos, pelo simples protagonismo<br />
que eles passam a exercer nas campanhas eleitorais. E ainda substitui com vantagens,<br />
nesse aspecto, as indesejáveis “cláusulas de barreira” draconianas, que fixam um percentual<br />
arbitrário de votos para o acesso dos partidos à representação parlamentar – de forma independente<br />
da vontade dos eleitores.<br />
Apesar de trazer inovações em muitos pontos da legislação eleitoral e partidária vigente<br />
(Soares & Rennó, 2006: 14-5), não será exagero dizer que o projeto se apóia fundamentalmente<br />
em dois pilares: o primeiro (sua proposta mais ousada) é o financiamento exclusivamente<br />
público das campanhas eleitorais; o segundo (decorrente do primeiro) é a adoção das<br />
listas fechadas, já referida. As demais proposições relevantes vinculam-se, de alguma forma,<br />
à viabilização dessas duas iniciativas, ou à minimização de efeitos colaterais a elas associados.<br />
E ambas são altamente polêmicas, expondo-se fortemente à difamação: o financiamento<br />
público, por entregar dinheiro público na mão dos políticos para fazerem suas campanhas;<br />
a lista fechada, por subtrair ao eleitorado uma prerrogativa que passa às convenções partidárias.<br />
Cabe, portanto, discuti-las com algum vagar.<br />
3.1) A lista fechada<br />
A controvérsia em torno do critério a ser adotado para a ordenação das candidaturas na<br />
lista partidária que irá preencher as cadeiras parlamentares em eleições proporcionais costuma<br />
girar em torno de uma disputa de simples compreensão – mas difícil de resolver. Os<br />
simpatizantes da lista fechada costumam alegar que ela fortalece os partidos ao favorecer seu<br />
protagonismo na cena eleitoral, já que eles passam a apresentar-se ao eleitorado com uma<br />
chapa de candidatos organizados numa ordenação pré-fixada para preencher as cadeiras<br />
com que porventura forem contemplados pelo voto dos cidadãos. A campanha é coletiva,<br />
liderada em cada partido pelo primeiro da lista. Já os defensores da lista aberta insistem em<br />
que ela é mais democrática, já que atribui ao eleitorado em geral uma prerrogativa que no<br />
caso da lista fechada fica restrita às convenções partidárias, ou – no jargão corrente, sempre<br />
depreciativo dos políticos – às “oligarquias” partidárias: a ordenação da lista.<br />
É inútil tentar dirimir a disputa nesses termos, já que ambos os lados estão corretos.<br />
Como em tantas outras disputas em ciência política, trata-se também de escolher entre<br />
valores e prioridades distintas, mas acima de tudo trata-se de obter o equilíbrio adequado<br />
entre os eternos imperativos contraditórios da política, de divisão do poder e produção<br />
de poder. Pois queremos conter o exercício do poder para que ele não seja arbitrariamente<br />
tirânico, mas ao mesmo tempo queremos que ele seja efetivamente exercido, para permitir<br />
à comunidade política que persiga com eficácia aqueles fins coletivos que venha a decidir<br />
(democraticamente, espera-se) perseguir (Reis, 1984: 11-5). De fato, não é outro o dilema<br />
subjacente aos critérios empregados por Lijphart, anteriormente referidos.<br />
A julgar pela importância hoje atribuída às prerrogativas legislativas do Poder Executivo<br />
brasileiro na viabilização estável de nossa rotina democrática, cabe perguntar se não teremos<br />
ido longe demais na dispersão de poder envolvida na constituição eleitoral de nosso Poder
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Legislativo. Se o preço da atual forma de composição da Câmara dos Deputados é dispersá-la<br />
e enfraquecer os partidos a ponto de forçar a atribuição ao presidente da República<br />
do status de principal legislador do país, desconectando em larga medida a representação<br />
legislativa de sua origem eleitoral, então dificilmente poderíamos imaginar algum procedimento<br />
a ser adotado em nossas eleições parlamentares que tivesse resultados mais autoritários<br />
que o nosso status quo vigente. Independentemente de suas boas intenções, ou de suas<br />
credenciais intrinsecamente democráticas. Isto porque o sistema em vigor, ao individualizar<br />
quase completamente a condução das campanhas parlamentares, compromete gravemente<br />
a coesão organizacional, a identidade eleitoral e a força política dos partidos, que serão de<br />
todo modo os intermediários mais importantes na organização das relações entre o governo<br />
e o parlamento – frágeis demais para produzirem um jogo minimamente equilibrado ante<br />
um governo determinado, como se tem visto.<br />
É comum a alegação de que o brasileiro vota nas pessoas, e não nos partidos. E que seria<br />
necessário dispor de partidos mais fortes para podermos passar a listas fechadas. A questão,<br />
porém, é: como fortalecer os partidos com a atual competição com listas abertas? Não<br />
está escrito no DNA dos brasileiros que eles têm que votar nas pessoas. É a regra eleitoral<br />
que lhes diz isso. Talvez se possa alegar justamente o contrário: dado o alto protagonismo<br />
reservado aos partidos nas campanhas com listas fechadas, e sua reduzida visibilidade sob<br />
listas abertas, talvez precisássemos de partidos muito mais fortes para podermos nos dar ao<br />
luxo de recorrermos a listas abertas sem desorganizar a vida partidária. Se presumimos que<br />
os partidos significam algo (e o sistema proporcional presume), por que não determinar que<br />
cada partido deve fixar e oferecer sua chapa, apresentar-se como organização política, e não<br />
como coleção de indivíduos, e induzir o público a decidir entre essas organizações? Será<br />
educativo a médio prazo, mesmo com todas as dores do parto que fatalmente suscitará.<br />
Em seminário promovido pela Câmara dos Deputados em meados de 2004, tive a<br />
oportunidade de ouvir o senador Jefferson Peres exprimir com franqueza o que de fato vai<br />
pela cabeça de muita gente quando se fala em listas fechadas. Embora se dissesse favorável<br />
à idéia, o senador não deixou de sublinhar sua reserva: “É mais fácil comprar quinhentos<br />
convencionais do que quinhentos mil eleitores.”<br />
Com todo o devido respeito ao senador Peres, tenho sérias dúvidas quanto a isso. Dada<br />
a massificação necessária à comunicação numa campanha que tem de atingir milhares (ou<br />
milhões) de pessoas, o dinheiro disponível se torna uma variável fundamental na avaliação<br />
das perspectivas de um candidato. De fato, quanto maior o eleitorado em disputa, maior o<br />
peso do orçamento da campanha. Nunca deixo de me espantar com a naturalidade desconcertante<br />
com que os americanos, por exemplo, avaliam as chances de diferentes candidatos<br />
à presidência a partir do volume de dinheiro amealhado por cada um. Eleições hoje, e cada<br />
vez mais, decidem-se pelo orçamento. Há fenômenos envolvidos na massificação de processos<br />
decisórios que tornam o dinheiro tanto mais decisivo quanto mais aumenta o tamanho<br />
do eleitorado chamado a decidir.<br />
E é preciso também não perder de vista que uma convenção partidária pelo menos é<br />
uma instância intermediária em que uma decisão política é tomada por pessoas que vão<br />
ter de se responsabilizar publicamente por ela. Ou seja, representa um foco de responsabi-<br />
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Bruno P. W. Reis<br />
lização, com possíveis sanções imediatas a serem produzidas já na eleição subseqüente. O<br />
projeto de lei ainda especifica que a montagem da lista se dê em votação secreta, e com composição<br />
proporcional entre as diversas chapas apresentadas. Como lembrou recentemente<br />
Jairo Nicolau (2006a: 135), se as convenções hoje são de fato espetáculos<br />
A fórmula atual não politicamente esvaziados, fortemente controladas por dirigentes partidá-<br />
só condena os partidos rios (as “oligarquias”), é preciso admitir que elas inevitavelmente mudarão<br />
a relativa irrelevância muito, caso passem a exercer maior protagonismo em decisões partidárias<br />
no momento eleitoral, realmente relevantes – como é patentemente o caso da confecção da lista.<br />
mas também submete Um momento crucial das disputas intrapartidárias passará a ter lugar nas<br />
previamente todos os convenções.<br />
candidatos a eleições Já na eleição propriamente dita, a menos que se disponha de controles<br />
proporcionais ao ritual rigorosos (e eficazes) contra abusos do poder econômico, a influência do<br />
humilhante da aparição dinheiro é magnificada, não diminuída. Para alcançar todo o eleitorado<br />
com poucos segundos é preciso muito dinheiro. Sem ele, não há mágica que se possa fazer. Daí<br />
de exibição na TV<br />
a sensação de que o processo eleitoral é cada vez menos idéia e cada vez<br />
mais propaganda – objeto de tantas queixas hoje em dia. Em parte isso é<br />
mesmo inevitável, já que o universo que uma campanha eleitoral busca alcançar pode chegar<br />
a dezenas de milhões de pessoas, e quando se opera nessa escala recorre-se à técnica publicitária:<br />
opera-se à distância, por meio de slogans, truques mnemônicos, compra de segundos<br />
na televisão etc. Mas é preciso reconhecer ainda que esse efeito é agravado se se multiplica<br />
o número de candidaturas na disputa. É preciso ser muito eficaz no marketing para vender<br />
o seu sabonete, com tanto sabonete parecido na praça. O jogo torna-se, em larga medida,<br />
uma disputa privativa entre celebridades diversas (que conseguem ser top of mind no meio<br />
daquela multidão de candidatos anônimos) e lideranças que querem representar clientelas<br />
específicas (e que ocasionalmente conseguem um relativo fechamento de sua base frente a<br />
outros candidatos).<br />
E aqui tocamos num ponto extremamente importante. É preciso ter em mente o efeito<br />
da lista fechada sobre a dinâmica das campanhas eleitorais – largamente negligenciado nas<br />
controvérsias sobre a matéria. Recentemente começamos enfim a dar bem-vinda ênfase ao<br />
problema da inteligibilidade do sistema político associada ao número de candidaturas e à<br />
complexidade do sistema, sua partidarização ou personalização (Nicolau, 2006b), às perspectivas<br />
de accountability parlamentar (Rennó, 2006b), à memória quanto ao voto para<br />
deputado (Almeida, 2006). Mas, para além de seus efeitos subseqüentes, deve-se notar a sua<br />
causa comum, que é o fato de que a campanha com lista fechada é dramaticamente distinta<br />
de uma campanha com lista aberta. Trata-se de uma competição entre partidos, protagonizada<br />
pelo primeiro nome de cada lista, e com dinâmica bastante semelhante à das campanhas<br />
majoritárias. As disputas internas de cada partido podem até se exprimir com força<br />
nas convenções, que podem ser bastante turbulentas (o que não seria mau). Mas, depois de<br />
montada a lista, nada mais resta ao candidato senão fazer campanha pelo seu partido, em<br />
nome do partido, em favor da plataforma parlamentar do partido – mesmo a contragosto.<br />
Em contraste, hoje a convenção é um evento largamente ritual, fortemente controlado<br />
pelos chefes partidários, e que transfere toda disputa interna para o “cada um por si” das
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
campanhas parlamentares – nas quais é suicídio qualquer tentativa pelos candidatos de se<br />
apresentar como um quadro do partido, que vai fazer o que a liderança determinar em Brasília.<br />
E, no entanto, mostra a literatura, é exatamente isso que ele vai fazer. Assim, a fórmula<br />
atual não só condena os partidos a relativa irrelevância no momento eleitoral, mas também<br />
submete previamente todos os candidatos a eleições proporcionais ao ritual humilhante da<br />
aparição com poucos segundos de exibição na TV, expondo de antemão nossos futuros representantes<br />
ao ridículo do esforço desesperado em busca de um slogan feliz o bastante para,<br />
com sorte, permitir-lhe ser lembrado por alguns eleitores a mais no meio daquele oceano. É<br />
impossível falar a sério de política ali (mesmo se os candidatos quiserem, o que já é incerto),<br />
sobretudo em termos minimamente universalistas. A maioria dos candidatos procura se<br />
apresentar identificada a algum subconjunto específico do eleitorado, de preferência corporativo:<br />
médico vota em médico, professor vota em professor, policial vota em policial, fiéis<br />
votam em pastores etc. Todos prometendo engajamento em causas que depois não poderão<br />
perseguir – já que depois será fatalmente necessário concentrar prerrogativas nas mãos dos<br />
líderes e do governo para poder dar um jeito de o Plenário funcionar. Porque da eleição não<br />
sai bancada alguma.<br />
Por muito tempo favoreci pessoalmente a tese da partidarização das cadeiras, porém<br />
mantendo-se a lista aberta. Mas hoje me parece que, para partidarizar as cadeiras, talvez seja<br />
preciso partidarizar minimamente a própria campanha, pois se a eleição é feita em lista aber-<br />
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ta, observada a dinâmica usual das campanhas entre nós, então poderia haver dificuldades<br />
de legitimação na remoção de um deputado eleito em campanha muito “pessoal”, direta,<br />
pouco partidarizada, junto a uma clientela qualquer, e atribuir essa vaga ao partido. Com a<br />
lista fechada, propõe-se – mal ou bem – uma bancada a ser eleita. Assim o candidato comparece<br />
perante o eleitor, e assim o eleitor terá de votar. Mesmo procurando evitar idealizações,<br />
não é um exagero imaginar a produção de um Plenário menos disperso do que com a regra<br />
atual. E não será um benefício desprezível se essa redução na dispersão de interesses puder<br />
nos dispensar de cláusulas de barreira arbitrariamente elevadas (algo a ser evitado, a bem da<br />
representação fiel da vontade do eleitor) e, sobretudo, nos livrar de regimentos que concentram<br />
tanto poder no topo da hierarquia durante a condução dos trabalhos.<br />
Cabe também, sem dúvida, cogitar mais seriamente do meio-termo que consiste na idéia<br />
de uma lista flexível: o partido elabora na convenção uma lista previamente ordenada, mas é<br />
facultado ao eleitor que se manifeste a respeito dela, eventualmente alterando-a mediante o<br />
voto pessoal em um dos nomes da lista ou, então, elaborando a sua própria ordenação. Não é<br />
necessariamente má idéia. Permanece, assim, nas mãos do eleitorado a possibilidade, ao menos<br />
formal, de se manifestar coletivamente a respeito do resultado de uma convenção que tenha<br />
sido mal recebido pelos simpatizantes de determinado partido. Mas deve ser dito de antemão<br />
que, nos países que adotam alguma forma de lista flexível (Áustria, Holanda, Bélgica, Suécia,<br />
Dinamarca e Noruega, segundo Nicolau, 2006a), o resultado prático tem sido a prevalência<br />
esmagadora da lista partidária original. Certamente isto se deverá à adoção de requisitos<br />
relativamente exigentes para a alteração da lista. À medida que estes requisitos se relaxarem,<br />
porém, deve-se observar uma dinâmica eleitoral semelhante à da vigência da lista aberta, pois<br />
aumentam os incentivos para que os candidatos peçam votos para si mesmos, e não para a sua<br />
lista – o que seria em princípio indesejável, se se trata de abandonar a lista aberta.<br />
Do ponto de vista da dinâmica pública do processo eleitoral, a instauração das listas<br />
fechadas é a alteração mais visível, e portanto a que mais nitidamente modificaria a paisagem<br />
dos processos eleitorais no Brasil. Porém, pelo que se pode depreender da própria<br />
“justificação” que acompanha o PL 2.679/2003 (Comissão Especial de <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
2003: 20-1), a opção da Comissão de <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong> por elas decorreu de opção anterior<br />
da mesma comissão pelo financiamento exclusivamente público das campanhas eleitorais,<br />
pois a redução das centenas de candidaturas individuais presentes em cada lista aberta à<br />
idéia de umas poucas chapas concorrentes a serem financiadas é condição necessária à viabilização<br />
– e mesmo à legitimação – do financiamento público das campanhas. Assim, para<br />
respeitarmos a própria lógica constitutiva do PL 2.679, e a história de sua concepção, cabe<br />
debruçarmo-nos ainda sobre o outro pilar fundamental do projeto.<br />
3.2) O financiamento público<br />
De fato, é difícil imaginar tema mais relevante, mais árido, menos estudado e mais<br />
central à nossa conjuntura política que o financiamento de campanhas eleitorais. Para além<br />
das nossas próprias desventuras nessa área, escândalos com “caixa dois” de campanha têm<br />
abalado governos em todo o mundo, embora, aparentemente, envolvendo um volume de<br />
recursos ilegais muito inferior àquele que veio à tona nas contas movimentadas pelos bene-
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
ficiários do nosso “valerioduto”. A nós, cientistas políticos, tipicamente intelectuais acadêmicos<br />
com pequena familiaridade com os tecnicismos contábeis envolvidos, cabe abordá-lo<br />
com a devida humildade, e modestamente tratar pelo menos de mobilizar alguns aspectos<br />
normativos implicados – mas com um olho nos efeitos práticos, é claro.<br />
A primeira coisa a ser mencionada para um enquadramento fecundo do problema<br />
geral do financiamento de campanhas eleitorais diz respeito a uma peculiaridade do sistema<br />
democrático de governo, consistente também com o ideário liberal que modernamente o<br />
conforma. Trata-se da ambição – talvez extravagante – de isolar a política das desigualdades<br />
que provêm da economia. É importante não perdermos de vista que, na história da<br />
humanidade, a riqueza e o poder normalmente estão juntos: em muitas formações políticas,<br />
a ostentação de riqueza pessoal chega mesmo a ser requisito da autoridade política. O<br />
liberalismo formula a ambição de separá-los na medida em que afirma serem todos iguais<br />
perante a lei, e ao mesmo tempo admite e encoraja a busca do sucesso e da realização pessoal<br />
na esfera econômica, o que fatalmente reproduzirá, neste âmbito, intensa desigualdade. O<br />
desafio que disso resulta, portanto, consiste em impedir que as assimetrias de recursos assim<br />
reproduzidas não resultem automaticamente em assimetrias sistemáticas no acesso ao poder<br />
político, caso em que toda promessa de igualdade perante a lei redundaria numa grande<br />
fraude. A ambição da separação total entre as fontes de poder econômico e de poder político<br />
acaba sendo, assim, um dos traços definidores da democracia moderna.<br />
Deve ser dito com clareza que o cumprimento desse ideal é uma tremenda exigência<br />
posta sobre a máquina do Estado, pois exige que se evite qualquer tipo de corrupção (sintoma<br />
mais corriqueiro de contaminação entre os dois sistemas) e que se evite todo abuso de poder<br />
econômico em eleições. De forma crua, envolve a capacidade de impor aos<br />
O problema fundamental mais ricos o consentimento a decisões favorecidas por uma eventual maio-<br />
que perdura é: como evitar ria pobre. Em seus traços mais simples, a solução institucional formal para<br />
que as desigualdades o problema consiste em não se permitir a ninguém comprar cargos políti-<br />
provenientes da cos – nem as decisões deles decorrentes. Para o preenchimento dos cargos,<br />
competição econômica fazem-se eleições; para as decisões, segue-se – após debate – a vontade da<br />
transbordem rumo maioria. Contudo, mesmo fazendo caso omisso da possibilidade de compra<br />
ao sistema político, das decisões por simples atos de corrupção, ou de golpes de Estado que im-<br />
influenciando peçam pela força o cumprimento de resultados eleitorais – mesmo quando<br />
sistematicamente os tudo corre bem, quando eleições são feitas e seus resultados são acatados –,<br />
resultados eleitorais e o problema fundamental que perdura é: como evitar que as desigualdades<br />
enviesando o sistema provenientes da competição econômica transbordem rumo ao sistema polí-<br />
político em favor das tico, influenciando sistematicamente os resultados eleitorais e enviesando o<br />
pessoas mais ricas?<br />
sistema político em favor das pessoas mais ricas? Como evitar abuso de poder<br />
econômico nas campanhas eleitorais? Muito fundamentalmente, é a essa<br />
meta que se dedica toda legislação sobre financiamento de campanhas em democracias.<br />
Nenhum regime democrático, em tempo algum, em país algum, pode se gabar de haver<br />
atingido essa meta. Acho que podemos, sem problemas, considerá-la de antemão inalcançável.<br />
O poder econômico e o poder político são como sistemas de vasos comunicantes, contra os<br />
quais se podem construir diques mais ou menos eficazes, mas nunca perfeitamente isolantes,<br />
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pois esta vinculação opera simultaneamente em vários planos. Há um plano, que se poderia dizer<br />
estrutural, que envolve a dependência do próprio bom andamento da economia em relação<br />
à remuneração adequada do investimento capitalista, de modo a produzir empregos, manter<br />
a economia crescendo e induzir novos investimentos futuros. E também um plano mais operacional,<br />
que diz respeito – entre outras coisas – justamente ao financiamento de campanhas.<br />
Quanto mais o plano estrutural parece mostrar-se inamovível, maior é a pressão por resultados<br />
no plano operacional. Assim, a própria suspeição intuitiva que paira sobre o sistema eleitoral<br />
em toda parte faz com que a existência de legislação contra abusos de poder econômico em<br />
eleições seja parte integrante do kit institucional de qualquer democracia contemporânea, em<br />
busca da minimização de seu viés econômico – admitidamente presente, de forma tácita. Em<br />
tese, o maior ou menor sucesso nessa tarefa dependerá de uma combinação mais ou menos feliz<br />
da legislação sobre financiamento de campanhas, de um lado, com as características básicas<br />
do sistema eleitoral adotado, do outro. Ao cabo, alguns regimes conseguem, mais que outros,<br />
isolar as decisões políticas de influência econômica indevida. Mas o controle sobre o financiamento<br />
das campanhas, particularmente em suas conexões com o desenho do sistema eleitoral,<br />
segue como uma das agendas mais importantes a serem ainda perseguidas satisfatoriamente<br />
pela ciência política contemporânea: a despeito de valorosos esforços preliminares (como uma<br />
série de trabalhos de David Samuels, voltada principalmente para o caso brasileiro), 5 um campo<br />
conceitual que relacione possíveis efeitos recíprocos entre sistemas eleitorais e fórmulas de<br />
financiamento de campanhas não se encontra sequer mapeado.<br />
Deve-se admitir de antemão que, ao decidir-se pelo financiamento público exclusivo,<br />
a Comissão de <strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong> formulou a proposição mais ousada do PL 2.679/2003.<br />
Até porque pouco se sabe sobre a matéria, em termos comparativos. Como aponta David<br />
Samuels (2003: 365-6),<br />
(...) são muito poucos os países que permitem aos candidatos arrecadar e despender<br />
fundos. A maioria dos países emprega alguma forma de financiamento público eleitoral ou<br />
proíbe os próprios candidatos de arrecadar e gastar, diretamente, as verbas de campanha. Neste<br />
último caso, a atribuição de angariar e despender os fundos de campanha é da competência<br />
das organizações partidárias nacionais, embora sejam poucos os países que as obriguem a<br />
declarar suas receitas ou despesas.<br />
O Brasil, juntamente com os Estados Unidos, é um dos poucos países que permitem<br />
aos candidatos arrecadar fundos independentemente dos partidos, e também um dos poucos<br />
a obrigar a declaração de receitas e despesas. Seja como for, se se aceita o igualitarismo<br />
político como um valor a ser perseguido, então a idéia de um financiamento exclusivamente<br />
público para as campanhas eleitorais torna-se, por princípio, atraente. De fato, uma solução<br />
quase impositiva ante o propósito de se isolar o sistema político das influências sistemáticas<br />
provenientes das desigualdades econômicas, pois se se autoriza a livre captação de recursos<br />
privados, contarão com claras vantagens quanto às perspectivas de arrecadação aqueles<br />
candidatos que atenderem aos interesses dos eleitores mais ricos – a começar pelas grandes<br />
empresas. E não só estes, mas simplesmente quaisquer candidatos que forem, eles mesmos,
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
mais ricos que os demais. Embora nos habituemos a tratar com naturalidade o fato de que<br />
um bilionário tem maiores chances de se eleger que um bóia-fria, é preciso lembrar que<br />
não há qualquer justificativa, em princípio, para que isto seja assim. Dadas as inevitáveis<br />
desigualdades econômicas, a credibilidade da democracia política depen-<br />
Os sete reais por eleitor derá de um permanente empenho em minimizar assimetrias quanto ao<br />
preconizados pelo PL 2.679 condicionamento econômico das chances eleitorais de seus cidadãos, o que<br />
resultariam em um gasto deveria nos conduzir não apenas à proibição da arrecadação de recursos<br />
total de aproximadamente privados pelos candidatos, mas mesmo à proibição da utilização de recur-<br />
R$ 900 milhões. Quase sos próprios em campanhas e, portanto, ao financiamento exclusivamente<br />
um bilhão, mas ainda público das campanhas eleitorais.<br />
assim apenas cerca de Se quisermos, porém, preservar um mínimo de realismo sociológico,<br />
20% daquilo que se devemos ter em conta que a proibição, por si só, não extinguirá o recurso<br />
gasta hoje em campanhas a fontes privadas. Se queremos reduzir o abuso de poder econômico nas<br />
eleitorais no Brasil<br />
eleições, a questão crucial é aumentar nossa capacidade de controle eficaz<br />
sobre o financiamento das campanhas. Minimizar, portanto, o chamado<br />
“caixa dois”. E ninguém pode se iludir com a crença de que alguma legislação sobre financiamento<br />
eleitoral tenha o condão de abolir o “caixa dois”. Até porque o “caixa dois”<br />
eleitoral é proveniente do “caixa dois” de empresas – e existirá forçosamente enquanto este<br />
existir. É preocupante, sob esse aspecto, o fato de que proibições análogas com freqüência<br />
magnificam o problema, ao instituir um mercado negro poderoso: assim, a Lei Seca alavancou<br />
o poder da Máfia nos Estados Unidos, e a criminalização do consumo de drogas criou<br />
a indústria do narcotráfico. Por outro lado, a mera alusão ao narcotráfico nesse contexto<br />
nos deve sensibilizar ainda mais para a importância dramática de se restringir o fluxo de<br />
recursos privados para o sistema político: trata-se, afinal, de coibir influências espúrias não<br />
apenas de grandes empresas – mas do próprio crime organizado. Idealmente, portanto, o financiamento<br />
público exclusivo deveria ser adotado acompanhado de uma série de medidas<br />
adicionais, destinadas a melhorar sensivelmente o controle sobre os recursos efetivamente<br />
empregados nas campanhas. E isso inclui desde a adoção de medidas como a instituição<br />
das listas fechadas (bem mais controláveis pelos tribunais eleitorais), um disciplinamento<br />
cuidadoso dos gastos admissíveis, a prestação de contas na Internet durante a campanha<br />
e a adoção de punições mais severas para os transgressores (efetivamente adotadas no PL<br />
2.679/2003, a começar pela derrubada integral da lista), até a aprovação de uma reforma<br />
bancária e tributária que induza à redução do volume de recursos ilegais em circulação no<br />
sistema (o que claramente está fora do alcance da discussão de qualquer reforma política).<br />
E há ainda a questão de uma estimativa realista do custo da campanha por eleitor, de modo<br />
a se evitarem tanto eventuais extravagâncias quanto um possível garroteamento que viesse a desmoralizar<br />
a lei. Os sete reais por eleitor preconizados pelo PL 2.679 resultariam em um gasto<br />
total de aproximadamente R$ 900 milhões. Quase um bilhão, mas ainda assim apenas cerca<br />
de 20% daquilo que se gasta hoje em campanhas eleitorais no Brasil, segundo as estimativas<br />
correntes (Samuels, 2003: 386). Isso é um mérito, mas também um ônus. O risco que se corre<br />
é aumentar o incentivo ao “caixa dois” pelo fato de se introduzir um garrote importante sobre o<br />
orçamento das campanhas. Pergunto-me: o que faria o TSE se efetivamente começasse a se dar<br />
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certa desobediência generalizada? Talvez o TSE e os tribunais eleitorais se vissem obrigados a<br />
coibir apenas os casos mais graves, e se encontrasse uma solução de compromisso que resultaria<br />
numa relativa desmoralização do preceito do financiamento exclusivamente público.<br />
É possível imaginar um sistema misto de natureza transicional, que comece o processo<br />
de expansão do financiamento público por uma redução importante do valor máximo de<br />
contribuições permitidas (em moldes análogos aos sugeridos por Samuels, 2006: 151-2) e<br />
produza um processo que talvez possa ter como horizonte o financiamento exclusivamente<br />
público no futuro. Em última análise, o crucial é avaliar o custo/benefício de cada valor estipulado<br />
e tentar identificar um ponto ótimo de implementação da lei, que minimize o nível<br />
esperado de recursos não declarados. Acredito não termos resposta precisa, ainda, quanto à<br />
melhor maneira de se fazer isso no Brasil.<br />
Seja como for, é importante evitar farisaísmos ao apreciarmos essa matéria. A idéia corrente<br />
de que o financiamento público das campanhas é indevido porque o Estado tem de<br />
gastar com educação, saúde, estradas é intoleravelmente simplória. Como se faltassem ralos<br />
por onde escoar o dinheiro público a partir das relações de dependência que o sistema atual<br />
estabelece entre políticos eleitos e seus principais financiadores. Lembro-me sempre – com<br />
um misto de irritação e perplexidade – do ex-deputado Roberto Jefferson em sua aparição<br />
no programa Roda Viva, da TV Cultura, no auge da crise do “valerioduto”, a brandir esse argumento<br />
contra o financiamento público poucos minutos depois de haver acuado seus entrevistadores<br />
chamando-os de “freirinhas” por exibirem indignação perante suas confissões<br />
a respeito de métodos e técnicas de captação de recursos privados para campanhas eleitorais<br />
a partir do exercício de cargos comissionados no governo. Pareceu-me inacreditável que nenhum<br />
dos circunstantes tivesse tido a presença de espírito de devolver-lhe o epíteto diante<br />
do argumento mais “freirinha” que se ouviu ali aquela noite. Se agentes privados se dispõem<br />
a irrigar os bolsos de ocupantes de cargos públicos com recursos que serão posteriormente<br />
usados em campanhas eleitorais, e se o valor estimado dos recursos levantados para campanhas<br />
chega a quintuplicar o quase um bilhão de reais previstos num eventual financiamento<br />
público, certamente é porque esses agentes esperam obter – na outra ponta, após as eleições<br />
– esse dinheiro de volta, e aumentado. Os políticos levantam o dinheiro privado de que<br />
precisam para ganhar seus votos; e os agentes privados ganham dinheiro público (maior que<br />
o investido, é claro) com as decisões desses políticos.<br />
Esse argumento é consistente com o achado do próprio Samuels (2002) de que não há<br />
relação estatística entre o engajamento do deputado em projetos distributivistas de alcance<br />
local (pork barrel) e os votos por ele obtidos numa tentativa de reeleição. Segundo os resultados<br />
de Samuels, a votação dos deputados guarda relação apenas indireta com as obras<br />
que ele porventura consegue canalizar para suas bases. A principal variável explicativa do<br />
seu desempenho eleitoral em tentativas de reeleição é o dinheiro, que ele obtém de agentes<br />
privados interessados em contratos governamentais para executar as obras inseridas no<br />
orçamento da União pela atuação dos deputados. Dessa perspectiva, a ênfase predominantemente<br />
“clientelística” da atuação parlamentar no Brasil decorreria não de uma relação de<br />
troca entre deputados e seus eleitores, mas antes de uma relação de troca entre deputados e<br />
os financiadores de suas campanhas (Samuels, 2002: 861).
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
4) Perspectivas<br />
Se isso é assim, então torna-se flagrante a necessidade de mudarmos o enquadramento<br />
institucional tanto do financiamento de campanhas quanto da própria forma de disputa por<br />
cadeiras parlamentares. A “conexão eleitoral” entre mandato parlamentar e eleitor está preocupantemente<br />
enfraquecida no Brasil, e tem na falta de memória do eleitor quanto ao voto dado<br />
apenas um de seus sintomas. Suas causas residem numa legislação permissiva quanto ao financiamento<br />
de campanhas e num sistema eleitoral despolitizador que dissolve a disputa num<br />
cipoal de nomes do qual ninguém pode se aproximar de maneira razoavelmente informada – a<br />
não ser por referências de natureza pessoal ou corporativa. O efeito combinado dos dois fatores<br />
é uma sensível diluição do protagonismo dos partidos na disputa pelo preenchimento de<br />
cadeiras parlamentares, o que acaba por desarticular nossa representação em Brasília, criando<br />
um vácuo político que – menos mal... – tem sido preenchido pelo protagonismo legislativo do<br />
presidente da República e do Colégio de Líderes. (Ou alguém se atreveria a interpretar o fato<br />
de o PMDB ter conseguido eleger o maior número de deputados em 2006 como reflexo de<br />
uma migração do eleitorado rumo às teses defendidas pelo PMDB na campanha?...)<br />
Pessoalmente, penso que o PL 2.679/2003 acena com um desenho institucional provavelmente<br />
superior ao status quo. E, concebido numa comissão especial da Câmara dos Deputados<br />
ao longo de dez meses, credencia-se legitimamente a pautar um debate sério sobre<br />
a possível reforma política, que me parece hoje oportuna. Mas seria tolo ignorar os riscos<br />
envolvidos. Paradoxalmente, na medida mesma em que melhorarmos a representatividade<br />
do Congresso, poderão produzir-se novas dificuldades de “governabilidade”, sobretudo<br />
enquanto não adaptarmos nossas rotinas e prerrogativas regimentais às mudanças acarretadas<br />
pela nova legislação. Na medida em que se lograr reduzir o troca-troca partidário e se<br />
cristalizarem as bancadas, aumentarão as dificuldades para um governo minoritário (cena<br />
provável) obter maioria. Nesse cenário, haverá um parlamento com maior peso e representatividade<br />
partidária, maior organicidade representativa – o que é bom –, mas, por outro<br />
lado, o regime permanecerá presidencialista, e não parlamentarista. O presidente eleito em<br />
minoria terá de enfrentar uma negociação mais dura com o Congresso se quiser governar<br />
com maioria. Talvez, porém, uma vez consumada, ela se mostre uma negociação mais facilmente<br />
administrável no tempo.<br />
Tudo isso provavelmente será vivido em meio a dificuldades e crises mais ou menos<br />
turbulentas. Como vimos, as mazelas de nosso regime têm sua razão de ser, nos ajudam a<br />
acomodar conflitos e – bem ou mal – permitiram-lhe funcionar até aqui. Agora, a exposição<br />
dos seus vícios ao escrutínio público, em plena luz do dia, à vista mesmo do mais desinteressado<br />
cidadão, deixa o sistema em xeque. Mesmo que se considere que os malfeitos estão sendo<br />
mais prontamente expostos e coibidos do que era nosso costume, existe a possibilidade<br />
de que essa exposição desmoralize o regime, minando sua autoridade independentemente<br />
do funcionamento de facto das instituições.<br />
O nosso dito “presidencialismo de coalizão”, que não parecia talhado para funcionar,<br />
no entanto funcionava – e nos trouxe até aqui, na mais duradoura experiência de normalidade<br />
democrática de nossa história. Agora ele se encontra sob pressão inédita para<br />
reformar-se. Idealmente, na direção de um reforço relativo na posição do Poder Legislati-<br />
Revista Plenarium | 101
102 |<br />
Bruno P. W. Reis<br />
O nosso dito<br />
“presidencialismo de<br />
coalizão”, que não parecia<br />
talhado para funcionar, no<br />
entanto funcionava – e nos<br />
trouxe até aqui, na mais<br />
duradoura experiência de<br />
normalidade democrática<br />
de nossa história. Agora<br />
ele se encontra sob pressão<br />
inédita para reformar-se<br />
Notas<br />
vo, com a subtração de algumas das prerrogativas excepcionais que o Executivo brasileiro<br />
acumula. Mas, para que isso não seja feito ao preço de uma paralisia geral do sistema, será<br />
prudente minimizar a dispersão de poder propiciada pelas regras eleitorais<br />
que conformam a disputa por cadeiras parlamentares. Buscar-se-ia, com<br />
isso, mover o país rumo ao aumento do controle sobre o financiamento<br />
das campanhas, e à institucionalização relativa das barganhas em torno da<br />
construção de maiorias no parlamento.<br />
Navegar é preciso. Se avançarmos com a devida cautela, cientes de<br />
que essas inovações contêm sempre um componente de tentativa e erro,<br />
mas ao mesmo tempo sensíveis à necessidade que a política nos impõe de<br />
perseguir continuamente imperativos tantas vezes contraditórios de eficácia<br />
e contenção, poderemos preservar a estabilidade de nossa democracia,<br />
mesmo enquanto perseguimos os objetivos mais altos.<br />
Belo Horizonte, novembro/dezembro de 2006.<br />
1 Trata-se de uma série extensa de artigos publicados em co-autoria, desde meados dos anos 90, por variados veículos.<br />
Uma amostra importante dos trabalhos mais relevantes encontra-se reunida em Figueiredo e Limongi (1999). Uma síntese<br />
recente do ponto de vista dos autores, que resulta numa vigorosa manifestação de ceticismo quanto à necessidade ou<br />
conveniência de uma reforma política, pode ser encontrada em Limongi (2006).<br />
2 Uma tentativa recente de se enquadrar sistematicamente a análise política comparada a partir da dispersão de pontos<br />
de veto no sistema pode-se encontrar em George Tsebelis (2002). Aqui, porém, não se fará uso do aparato técnico que<br />
ele mobiliza. Apenas entendo que, embora vazada em nível mais baixo de abstração, a dimensão analítica subjacente<br />
aos critérios de classificação de Lijphart é análoga àquela de que Tsebelis se ocupa com maior elaboração formal.<br />
3 O uso da expressão “conservadorismo institucional” para descrever a postura dominante na ciência política brasileira<br />
de hoje foi-me oferecida por Octavio Amorim Neto, em conversa telefônica já há vários meses. O que não quer dizer,<br />
naturalmente, que posições contrárias, ou intermediárias, não existissem. Para ficar com apenas um exemplo bastante<br />
familiar de trabalho que busca esse equilíbrio, ver Fábio W. Reis (2003).<br />
4 Essa situação em que todos sabem que todos sabem algo − chamada common knowledge (conhecimento comum) pela<br />
teoria dos jogos − tem efeito crucial nas possibilidades de ação coletiva espontaneamente coordenada e distingue-se<br />
de maneira sutil, porém importante, da outra, em que todo o mundo sabe de algo, mas não sabe se os outros também<br />
sabem. Ver Michael Chwe (2001) para um estudo saboroso que discute a lógica interna e os efeitos sociologicamente<br />
esperados do “conhecimento comum” assim compreendido.<br />
Referências<br />
5 Uma sinopse recente de seus resultados e pontos de vista pode ser encontrada em Samuels (2006).<br />
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Tsebelis, George (2002). Veto Players: How Political Institutions Work. Princeton: Princeton University Press.<br />
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104 |<br />
Octavio Amorim Neto*<br />
Valores e vetores da reforma política<br />
*Octavio Amorim Neto, Doutor em Ciência <strong>Política</strong> pela Universidade da Califórnia, San Diego, é professor de Ciência <strong>Política</strong> da Escola de<br />
Pós-Graduação de Economia (EPGE) da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Desde 1985 tem-se debatido incessantemente qual deve ser o perfil institucional do<br />
país e, desde a promulgação da Carta de outubro de 1988, o tema da reforma política<br />
sempre volta à tona. Porém, apesar dos inúmeros projetos de lei e de emenda à Constituição<br />
propondo mudanças nas regras do jogo e das centenas de conferências e publicações<br />
acadêmicas discutindo tais projetos, continuamos com os dois pilares constitucionais que<br />
adotamos em 1946: o presidencialismo e a representação proporcional com lista aberta.<br />
O fato de sessenta anos já terem se passado e de já termos tido três regimes políticos ao<br />
longo destes anos (o regime democrático de 1946-64, o regime autoritário de 1964-1985 e<br />
o novo regime democrático de 1985 ao presente) constitui prova do profundo enraizamento<br />
político dos nossos atuais sistemas de governo e eleitoral. Portanto, não à toa, temos advogados<br />
tão fervorosos do status quo institucional; portanto, tampouco é motivo de surpresa<br />
ser tão difícil fazer reformas políticas.<br />
Duas perguntas, então, se colocam imediatamente. Primeira, por que aqueles dois pilares<br />
foram e continuam sendo adotados? Segunda, são eles a melhor solução institucional para o<br />
país? Diversas respostas têm sido dadas. No que toca ao sistema de governo, alguns alegam que<br />
o presidencialismo é uma “tradição republicana”. Outros sustentam que a<br />
As posições relativas à eleição direta do chefe de governo, inerente ao presidencialismo, é o método<br />
reforma política estiveram, mais democrático de escolha do mandatário supremo de uma nação. No que<br />
até recentemente, concerne ao sistema eleitoral, há argumentos semelhantes. Tratar-se-ia já de<br />
associadas, em geral, a uma tradição nacional. Além desta virtude burkeana, a representação propor-<br />
determinados diagnósticos, cional com lista aberta traria a dupla vantagem democrática de formar uma<br />
visões e ideários referentes casa legislativa que espelha a pluralidade de opiniões e interesses dos eleitores<br />
à economia nacional<br />
e de permitir que estes determinem a identidade de seus representados.<br />
Por último, um dos mais fortes argumentos a favor da manutenção do<br />
status quo institucional tem como base um refinado cálculo utilitário: os custos de transição<br />
para um novo conjunto de regras podem ser maiores do que os possíveis benefícios de uma<br />
reforma política, razão pela qual a nossa classe política, intrinsecamente avessa a riscos, tem<br />
sabiamente se recusado a aprová-la.<br />
Uma vez identificadas as principais razões do conservadorismo institucional, tarefa que<br />
não trouxe novidade alguma, uma terceira questão naturalmente se põe à mesa: quais são<br />
os argumentos favoráveis à mudança do status quo institucional? E aqui, sim, chegamos a<br />
um dos pontos centrais deste ensaio: as posições relativas à reforma política estiveram, até<br />
recentemente, associadas, em geral, a determinados diagnósticos, visões e ideários referentes<br />
à economia nacional.<br />
Diria que, para aqueles que crêem que o país necessita de uma economia mais aberta<br />
e de uma política econômica mais favorável ao setor privado, a reforma política deve ser<br />
ampla e visar à criação de um arcabouço institucional que reduza a dispersão do poder,<br />
permitindo a formação de governos mais fortes, capazes, acima de tudo, de fazer frente a<br />
interesses estreitos, mas bem organizados, que se beneficiam da perversa estrutura do gasto<br />
público do país e geram grandes distorções e ineficiências econômicas. Já para aqueles que<br />
comungam de uma visão mais favorável ao papel do Estado na economia e se opõem às<br />
chamadas políticas neoliberais, a reforma política deve ser tópica. Para eles, não haveria<br />
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Octavio Amorim Neto<br />
grandes problemas com o padrão disperso de distribuição de poder vigente no país, sendo<br />
as instituições políticas estabelecidas pela Carta de 1988 adequadas às nossas necessidades.<br />
Em suma, quanto mais liberal um analista, mais favorável a reformas políticas concentradoras<br />
do poder. Contudo, essa proposição começou a perder validade a partir da chegada<br />
da esquerda à Presidência da República, em 2002. Até então, a esquerda estivera sempre na<br />
oposição a governos, em sua maioria comprometidos com reformas liberalizantes, principalmente<br />
durante os dois mandatos de FHC. Era natural, então, que pelejasse contra as reformas<br />
políticas defendidas por seus adversários, ainda que, em passado não muito distante, tivessem<br />
empunhado as mesmas bandeiras destes. O caso exemplar é a decisão do PT de apoiar<br />
o presidencialismo em 1993, apesar de, originalmente, o partido ter sido parlamentarista.<br />
Tendo a esquerda agora conhecido a dor e a delícia de estar no poder,<br />
Os governos unipartidários creio estarmos mais perto do que nunca de um consenso entre as diversas<br />
facilitam a vida do eleitor tendências políticas em torno de uma reforma política. Mas exatamente<br />
porque se sabe claramente que reforma política deveria ser esta? Gostaria de iniciar essa discussão com<br />
quem é o responsável uma reflexão a respeito do que se pode esperar – empírica, não normativa-<br />
pelos atos do governo. Já mente – de uma reforma política.<br />
sob governos de coalizão, Em primeiro lugar, não existe sistema de governo ou sistema eleitoral<br />
o eleitor está sempre em ideal. Qualquer que seja, gerará sempre o efeito de um cobertor curto, isto<br />
dúvida a respeito de quem é, se cobre a cabeça, descobre os pés.<br />
realmente fez o quê<br />
Tomemos o sistema eleitoral. De um lado, temos a representação proporcional;<br />
do outro, encontra-se a representação majoritária. A representação<br />
proporcional encoraja a existência de vários partidos. A representação majoritária tende<br />
a promover dois grandes partidos, enquanto a regra proporcional, como já dito, permite ao<br />
sistema partidário espelhar um amplo leque de interesses e ideologias, tornando a democracia<br />
mais representativa. A regra majoritária é, obviamente, restritiva neste aspecto, uma<br />
vez que favorece apenas poucas tendências políticas. Entretanto, por essa mesma razão, os<br />
sistemas majoritários facilitam a formação de maiorias parlamentares compostas por apenas<br />
um partido. Nos sistemas proporcionais, as maiorias têm que ser integradas por coalizões<br />
de partidos. Os governos unipartidários facilitam a vida do eleitor porque se sabe claramente<br />
quem é o responsável pelos atos do governo. Já sob governos de coalizão, o eleitor está<br />
sempre em dúvida a respeito de quem realmente fez o quê. Ou seja, o primeiro efeito do<br />
tipo “cobertor curto” gerado pelos sistemas eleitorais reside na disjuntiva representatividade<br />
versus responsabilização (o que, em inglês, se chama accountability).<br />
Há mais. Estudos recentes mostram que os países que se caracterizam por governos<br />
unipartidários são mais capazes de afetar o rumo da economia do que países com governos<br />
de coalizão (ver, entre vários outros, Alesina, Roubini e Cohen, 1997). Os governos unipartidários,<br />
justamente por terem maiorias coesas, dispõem de melhores condições políticas<br />
de influenciar o desempenho da economia do que os complicados governos de coalizão.<br />
Porém, é fato também que mudanças radicais são também sinônimo de instabilidade. Neste<br />
sentido, justamente por serem avessos a mudanças bruscas, os países regidos por governos<br />
de coalizão são mais capazes de manter um ambiente econômico menos incerto do que os<br />
países com governos unipartidários. Segundo Cox e McCubbins (2001), temos, assim, o
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
segundo efeito do tipo “cobertor curto” criado pelos sistemas eleitorais: a disjuntiva entre a<br />
capacidade de tomar decisões e a capacidade de sustentar decisões, sendo a regra majoritária<br />
associada à primeira e a regra proporcional, à segunda.<br />
Representatividade política, responsabilização governamental, capacidade de tomar decisões<br />
e capacidade de sustentar decisões são valores fundamentais. Contudo, não se pode<br />
tê-los em iguais doses em um mesmo regime democrático. Eis quiçá a grande lição da<br />
experiência mundial e dos estudos comparativos das últimas três décadas. Fazer escolhas<br />
constitucionais significa, portanto, optar por alternativas que maximizem certos valores e<br />
minimizem outros. A questão que se coloca, então, é saber que valores devem ser maximizados<br />
na quadra histórica em que se encontra o país.<br />
Não existe resposta única à pergunta acima. O que ofereço aqui é, pois, uma visão<br />
dos valores que devem animar uma reforma política, visão embasada em uma determinada<br />
interpretação do funcionamento da nossa ordem política.<br />
É fundamental aumentar a responsabilização governamental. Nosso sistema eleitoral<br />
favorece demasiadamente o quesito representatividade, a ponto de termos uma das legislaturas<br />
mais fragmentadas do mundo. Ainda que não seja o caso de se abandonar a representação<br />
proporcional, está na hora de facilitar a vida do eleitor, oferecendo-lhe um quadro<br />
partidário mais compacto e nítido. Por isso, a proibição de coligações elei-<br />
Ainda que não seja o torais nos pleitos legislativos e o fim do troca-troca partidário seriam muito<br />
caso de se abandonar a benfazejos à nossa democracia.<br />
representação proporcional, Porém, para haver uma redução efetiva do número de partidos, prin-<br />
está na hora de facilitar a cipalmente na Câmara dos Deputados e assembléias legislativas estaduais,<br />
vida do eleitor, oferecendo- existem duas alternativas: a imposição rigorosa de uma cláusula de barreira<br />
lhe um quadro partidário e a redução da magnitude média das circunscrições eleitorais, entenden-<br />
mais compacto e nítido<br />
do-se por magnitude o tamanho da representação política que essa circunscrição<br />
vai eleger. Com relação à última, não advogo aqui, de maneira<br />
nenhuma, a adoção exclusiva do sistema de distritos uninominais. Defendo a idéia de redesenhar<br />
as circunscrições eleitorais (os estados) do país. A legislação determinaria o tamanho<br />
mínimo das circunscrições eleitorais para garantir alta proporcionalidade na relação entre<br />
votos e cadeiras. A partir daí, os estados seriam “recortados” em uma ou mais circunscrições.<br />
O difícil seria justamente estabelecer tal recorte, que poderia levar a práticas semelhantes ao<br />
gerrymandering norte-americano, em que distritos são desenhados para atender a interesse<br />
de um ou outro partido, em virtude da distribuição espacial de seu eleitorado. Dada essa<br />
dificuldade, a solução de mais fácil adoção é, portanto, a aplicação rigorosa de uma cláusula<br />
de barreira de 5%, entendendo-se por aplicação rigorosa não dar nenhuma representação<br />
parlamentar aos partidos que não ultrapassem a barreira, tal qual vigora na Alemanha.<br />
Quanto ao segundo efeito do tipo “cobertor curto”, a equação é mais complexa. Em<br />
algumas áreas, precisamos de maior capacidade de tomar decisões (ex.: o ajuste fiscal e o seu<br />
duplo, a reforma da previdência). Em outras, precisamos de maior capacidade de sustentar<br />
decisões (ex.: a manutenção de uma baixa taxa de inflação). Aqui convém destacar que uma<br />
das mais fortes razões pelas quais é tão difícil formar um consenso em torno de uma reforma<br />
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108 |<br />
Octavio Amorim Neto<br />
política é justamente o fato de a eficiência de diferentes políticas de governo depender de<br />
diferentes estilos decisórios e padrões de distribuição de poder institucional.<br />
De qualquer modo, a alta fragmentação que caracteriza o nosso sistema partidário e a<br />
tendência geral à dispersão do poder institucional criada pela Constituição de 1988 levaram<br />
aqueles que desejavam a implementação, a um ritmo mais rápido, de reformas econômicas<br />
ao pessimismo e até mesmo ao desespero com o nosso sistema político.<br />
Independentemente da posição com respeito ao cobertor curto para cobrir tanto a<br />
capacidade de tomar decisões quanto a capacidade de sustentá-las, parece-me que nada<br />
ganhamos com o fato de termos uma das legislaturas mais fragmentadas do mundo (o número<br />
efetivo de partidos saído das eleições de 2006 para a Câmara é nada mais, nada menos<br />
do que 9,3, o mais alto de nossa história). Isso não facilita a tomada de decisões e, como<br />
veremos a seguir, também dificulta a formação de pactos para sustentar um programa econômico,<br />
mesmo um que já conte com o consenso das forças políticas.<br />
Dito isso, é verdade também que, mesmo sob o nosso presidencialismo multipartidário,<br />
entre 1995 e 2002 tivemos uma maioria política que tomou uma série de decisões de<br />
grande monta. Mas esse resultado deveu-se, em grande parte, a uma opção estratégica de<br />
FHC de negociar seriamente com os partidos a formação e manutenção de um governo<br />
de coalizão majoritário. A lição a ser daí extraída é que a estabilidade e eficácia dos nossos<br />
governos dependem demasiadamente dos incentivos conjunturais que têm os presidentes de<br />
organizar as suas administrações à maneira bem-sucedida de FHC1 .<br />
O ponto a ser feito, portanto, é que o nosso atual sistema de governo não garante a<br />
consolidação do estável e eficaz padrão de governança vigente entre 1995 e 2002. Nada<br />
impede que tenhamos novas presidências desastrosas, do ponto de vista<br />
das relações entre Executivo e Legislativo, como as de Collor e Lula2 .<br />
No entanto, um sistema de governo semipresidencial, do tipo francês ou<br />
português, criaria grandes barreiras constitucionais à emergência de tais<br />
presidências, ao gerar fortes incentivos para a formação e gestão eficaz de<br />
governos de coalizão, além de manter a tão reverenciada eleição direta para<br />
o cargo de chefe de Estado. O estabelecimento do semipresidencialismo<br />
significaria a institucionalização das virtudes do chamado “presidencialismo<br />
de coalizão” (Abranches, 1988) 3 A mudança do sistema<br />
de governo deveria ser<br />
precedida ou acompanhada<br />
da reforma eleitoralpartidária,<br />
pois governos<br />
de coalizão, para funcionar<br />
bem, precisam de um<br />
quadro compacto de<br />
.<br />
interlocutores previsíveis<br />
A reforma do sistema de governo, todavia, não é para agora. Dadas as<br />
condições políticas vigentes no país, a reforma do presidencialismo só viria<br />
no rastro da crise política terminal de uma presidência. A mudança do sistema de governo<br />
deveria ser precedida ou acompanhada da reforma eleitoral-partidária, pois governos de coalizão,<br />
para funcionar bem, precisam de um quadro compacto de interlocutores previsíveis.<br />
Daí o problema partidário. É preciso, pois, optar por partidos previsíveis, capazes de negociar<br />
e cumprir acordos. Neste sentido, o estabelecimento de listas fechadas, que fortalecem<br />
a disciplina legislativa dos partidos, proposto no Projeto de Lei nº 2.679/2003, aponta para<br />
o caminho correto.<br />
Na impossibilidade de se reformar o presidencialismo, o foco da discussão acerca do<br />
sistema de governo deve recair sobre as medidas provisórias, que enfraquecem o Legislativo
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
(e também criam grande insegurança jurídica). Como enfraquecem o Legislativo? Reproduzo<br />
aqui a passagem de um artigo de Amorim Neto e Santos sobre o assunto (2003):<br />
Nossa análise sobre quem consegue aprovar seus projetos mostra que o Congresso<br />
brasileiro tem um papel de menor importância no processo legislativo não só por causa (...)<br />
[da] ampla delegação ao Executivo da autoridade para tomar decisões sobre políticas públicas<br />
de abrangência nacional [através de medidas provisórias] –, mas também em virtude dos<br />
incentivos à construção das carreiras parlamentares. A essência desses incentivos é que o<br />
Poder Executivo é o locus fundamental da influência política, o que dissuade os deputados de<br />
tentarem construir uma carreira mais duradoura no Congresso. A falta de políticos dispostos<br />
a permanecer muito tempo no Congresso enfraquece ainda mais o papel do Legislativo na<br />
formulação de políticas nacionais. (p. 692)<br />
Em suma, na minha visão, os vetores fundamentais a nortear uma<br />
reforma política realista devem ser os seguintes: (1) a redução do número<br />
de partidos representados no Congresso, (2) o fortalecimento das organizações<br />
partidárias e (3) a limitação dos poderes legislativos da Presidência.<br />
Voltemos agora ao ponto inicial do ensaio: como tais mudanças nas regras<br />
políticas se associariam às reformas econômicas e, conseqüentemente, à<br />
melhoria do desempenho econômico do país? De duas maneiras: ao permitir<br />
a formação de governos mais fortes e ao suavizar os ciclos político-econômicos.<br />
O primeiro aspecto já foi explicado. Passo a seguir a elaborar sobre o segundo.<br />
Comecemos com as motivações dos políticos em época de eleição. O desejo de permanecer<br />
no poder estimula o governo a tentar melhorar a situação econômica dos cidadãos.<br />
São os chamados ciclos econômico-eleitorais, sob os quais, em anos de sucessão política, o<br />
gasto público tende a aumentar, o desemprego a diminuir e o PIB a crescer. O ano seguinte<br />
à eleição é a hora de ajustar as contas públicas e de debelar, por meio da elevação da taxa<br />
de juros, a inflação gerada pelo crescimento acima do normal do ano anterior, o que leva à<br />
queda da taxa de crescimento do PIB e ao aumento do desemprego4 .<br />
Se a oposição for vencedora, tentará reverter várias decisões tomadas pelo governo anterior<br />
a fim de executar o seu próprio programa. São os chamados ciclos partidário-econômicos,<br />
em função dos quais novos governos, formados por partidos que antes se encontravam<br />
na oposição, implementam políticas distintas das da administração antecessora5 A falta de políticos<br />
dispostos a permanecer<br />
muito tempo no Congresso<br />
enfraquece ainda mais<br />
o papel do Legislativo<br />
na formulação de<br />
políticas nacionais<br />
.<br />
Os ciclos político-econômicos são uma conseqüência natural da competição política<br />
democrática. Isso não significa, contudo, que não haja meios de atenuá-los quando tal se faz<br />
necessário, como é o caso no Brasil, país que já sofreu demais com a instabilidade econômica.<br />
Existem quatro maneiras de suavizar os ciclos.<br />
Uma primeira alternativa seria o estabelecimento de pactos entre os grandes partidos, pactos<br />
pelos quais estes se comprometem publicamente com uma agenda comum de política econômica.<br />
Um bom exemplo foram os pactos celebrados na Espanha entre 1977 e 1981.<br />
Em segundo lugar, há a possibilidade de proibir por lei certos comportamentos oportunistas.<br />
A Lei de Responsabilidade Fiscal visa justamente a coibir práticas predatórias em anos<br />
Revista Plenarium | 109
110 |<br />
Octavio Amorim Neto<br />
de sucessão política. Além disso, poderia também se submeter a uma lei específica um mínimo<br />
de desempenho fiscal, como, por exemplo, metas explícitas e obrigatórias para o resultado<br />
nominal ou primário das contas públicas. Porém, critérios legais de disciplina fiscal só conseguiriam<br />
impedir a manipulação de outros instrumentos de política econômica, como os juros<br />
nominais, caso se erguessem barreiras institucionais a outras esferas de decisão econômica.<br />
Isso nos leva à terceira alternativa de suavização dos ciclos: a despolitização de agências<br />
governamentais. É o que se tem em mente quando se dá autonomia operacional ao Banco<br />
Central referendada por lei.<br />
A última alternativa se funda na convergência programática entre os principais partidos,<br />
permitindo que a alternância no poder não cause grandes guinadas na política macroeconômica.<br />
É o que ocorreu no Brasil recentemente, com a marcha, ainda que tímida e não<br />
plenamente assumida, do PT para o centro em 2002. Ou seja, ainda falta muito para que alcancemos<br />
uma sólida convergência como a que houve entre trabalhistas e conservadores na<br />
Inglaterra pós-Thatcher ou entre socialistas e democrata-cristãos no Chile pós-Pinochet.<br />
Entre as quatro alternativas definidas acima, a mais factível para o<br />
A Lei de Responsabilidade Brasil, do ponto de vista político, seria uma combinação da primeira (os<br />
Fiscal visa justamente pactos interpartidários) e da última (a convergência programática entre os<br />
a coibir práticas partidos), pois dispensaria qualquer ação legislativa. Tratar-se-ia da mobi-<br />
predatórias em anos lização ativa do consenso em torno da política macroeconômica, mobili-<br />
de sucessão política<br />
zação que poderia levar a um amplo pacto, tal como se deseja há muito<br />
tempo no Brasil e que agora também é ambicionado pelo governo Lula.<br />
Se considerarmos que a economia brasileira ainda não é invulnerável a crises como a de<br />
2002, pode-se dizer que uma das grandes oportunidades perdidas nos últimos quatro anos<br />
foi justamente a de se mobilizar esse consenso, dado que Lula tem executado uma política<br />
idêntica, em seus fundamentos, à do segundo mandato de Fernando Henrique. Uma reforma<br />
política tal como a defendida aqui, ao reduzir o número de partidos e fortalecer as<br />
organizações partidárias, facilitaria a consecução dessa alternativa.<br />
Para concluir, estou ciente de estarem as reformas políticas sujeitas à lei das conseqüências<br />
não-antecipadas. A engenharia constitucional, para usar a feliz expressão de Sartori<br />
(1997), é, portanto, um exercício impreciso. Porém, o atual status quo institucional do<br />
país é ruim, justificando uma reforma política na linha da proposta pelo Projeto de Lei nº<br />
2.679/2003, sem medo de que seus custos sejam maiores do que seus benefícios. Podem-se<br />
discutir detalhes operacionais do projeto, mas não há espaço aqui para tanto. O fundamental<br />
é ser ele animado, a meu ver, por valores e vetores corretos.
Notas<br />
Referências<br />
1 Discuto essa questão em profundidade em Amorim Neto (2006a, cap. 5).<br />
2 Avalio todas as presidências brasileiras, de Sarney a Lula, em Amorim Neto (2006b).<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
3 Examino pormenorizadamente o semipresidencialismo e a sua aplicabilidade ao Brasil em Amorim Neto (2006c).<br />
4 O texto clássico sobre os ciclos econômico-eleitorais é o artigo de Nordhaus (1975).<br />
5 Ver o trabalho pioneiro de Hibbs (1977) sobre o assunto.<br />
ABRANCHES, Sérgio H. Hudson de. Presidencialismo de Coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, v. 31, p. 5-38,<br />
1988.<br />
ALESINA, Alberto; ROUBINI, Nouriel; COHEN, Gerald. Political cycles and the macroeconomy. Cambridge: The MIT Press,<br />
1997.<br />
AMORIM NETO, Octavio. Presidencialismo e governabilidade nas Américas. Rio de Janeiro: FGV e Fundação Konrad<br />
Adenauer, 2006a.<br />
AMORIM NETO, Octavio. As conseqüências políticas de Lula: novos padrões de recrutamento ministerial, controle de<br />
agenda e produção legislativa. Trabalho apresentado no Seminário de Pesquisa da Escola de Governo da Fundação<br />
João Pinheiro, Belo Horizonte, 24 de novembro de 2006b.<br />
AMORIM NETO, Octavio. A reforma do sistema de governo: rumo ao parlamentarismo ou ao semipresidencialismo? In:<br />
SOARES, Gláucio Ary Dillon; RENNÓ, Lucio. <strong>Reforma</strong> política: lições da história recente. Rio de Janeiro: FGV, p.<br />
316-344, 2006c.<br />
AMORIM NETO, Octavio, SANTOS, Fabiano. O Segredo Ineficiente revisto: o que propõem e aprovam os deputados<br />
brasileiros. Dados, v. 46, p. 661-698, 2003.<br />
COX, Gary W. e MCCUBBINS, Matthew D. The Institutional Determinants of Economic Policy. In HAGGARD, Stephan;<br />
MCCUBBINS, Matthew D. (orgs.), Presidents, Parliaments, and Policy. Cambridge: Cambridge University Press, p.<br />
21-63, 2001.<br />
HIBBS, Douglas. Political parties and macroeconomic policy. American Political Science Review, v. 71, p. 1467-1487,<br />
1977.<br />
NORDHAUS, William. The political business cycle. Review of Economic Studies, v. 174, p. 69-90, 1975.<br />
SARTORI, Giovanni. Comparative constitutional engineering: an inquiry into structures, incentives and outcomes. New<br />
York: New York University Press, 1997.<br />
Revista Plenarium | 111
112 |<br />
José Antônio Giusti Tavares*<br />
Quatro questões pontuais<br />
da reforma política<br />
Como sempre, a pauta da reforma política, no Congresso e fora dele, é extensa e hiperanalítica,<br />
e os projetos de lei que pretendem estatuí-la derramam-se em prolixidades e<br />
minudências sem preocupar-se aparentemente com a coerência entre as diferentes regras<br />
e mecanismos que introduzem e com os efeitos compósitos que produzem. Um exemplo<br />
brilhante de convivência entre superabundância e inocuidade reguladoras é a redação<br />
dada pelo Projeto de Lei 2.679/2003 ao art. 33, IV, da Lei 9.504/1997, que busca regular<br />
exaustivamente as pesquisas eleitorais. O exibicionismo fútil de alguns reformistas sequer<br />
considera se o momento atual é oportuno ou não para as reformas.<br />
Há, entretanto, algumas questões pontuais de natureza político-institucional que certamente<br />
devem ser objeto de decisão tão cedo quanto possível. O texto a seguir ocupa-se de<br />
quatro delas: três concernentes ao sistema eleitoral em sentido estrito – coligações interpartidárias,<br />
lista partidária e cláusula de exclusão em eleições proporcionais – e uma ao papel e ao espaço<br />
de poder dos partidos sobre o mandato representativo, a questão da fidelidade partidária.<br />
1) Coligações partidárias em eleições proporcionais<br />
O sistema de representação proporcional, consagrado pela tradição republicana brasileira,<br />
não é apenas um método de eleger representantes legislativos.<br />
Operando sobre circunscrições de magnitude elevada – isto é, circunscrições que elegem<br />
um número elevado de representantes, pelo menos igual ou superior a dez – os sistemas<br />
proporcionais viabilizam a representação política, segundo o volume relativo dos sufrágios de<br />
cada um, para todos os partidos minimamente relevantes. Ao assegurarem a cada partido, no<br />
corpo de representantes, uma presença individuada, nítida e proporcional à grandeza de que<br />
desfruta no conjunto de preferências do eleitorado, os sistemas proporcionais agem como<br />
métodos capazes de estruturar e solver o dissenso sócio-político, provendo-lhe a negociação<br />
e a arbitragem e produzindo a integração política e o consenso público por meio da<br />
diferenciação, da identidade, da independência e da especificidade de cada partido.<br />
Esses efeitos da representação proporcional sobre os partidos, sobre a representação<br />
política e sobre o governo derivam, como propriedades, do quociente<br />
eleitoral e, logo, do quociente partidário – ou do equivalente funcional<br />
*José Antônio Giusti Tavares, Doutor em Ciência <strong>Política</strong> pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro<br />
(Iuperj), é professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
de ambos, uma série de divisores –, que materializam a decisão de um colégio eleitoral nãoterritorial,<br />
essencialmente voluntário e unânime, embora anônimo, constituído por eleitores<br />
associados, sem qualquer equívoco ou ambigüidade, pelo apoio comum a um programa<br />
e a uma lista partidária.<br />
Mas coligações partidárias Contudo, a prática de alianças eleitorais interpartidárias em eleições<br />
não são apenas legislativas proporcionais compromete a identidade e a integridade do<br />
inconsistentes com quociente partidário e, por via de conseqüência, compromete igualmente<br />
eleições proporcionais; a correspondência, para cada um dos diferentes partidos, entre a densidade<br />
são, também, nelas, relativa de votos e a densidade relativa de cadeiras legislativas, que cons-<br />
desnecessárias. O método titui o objetivo essencial da representação proporcional. Mas, sobretudo,<br />
proporcional não só obscurece e, no limite, faz desaparecer a identidade e o alinhamento dos<br />
desestimula e em alguns partidos no parlamento.<br />
casos inibe a formação de Compreende-se, assim, que alianças eleitorais entre partidos são in-<br />
alianças eleitorais entre consistentes com a natureza, com os propósitos e com o método da repre-<br />
partidos, mas torna-as sentação proporcional porque, enquanto esta última busca a integração e<br />
desnecessárias porque o consenso políticos precisamente por meio da diferenciação, da especi-<br />
maximiza a probabilidade ficidade e da nitidez na expressão parlamentar de cada um dos partidos,<br />
de que cada partido, aquelas produzem o sincretismo, a ambigüidade, a equivocidade, a volatili-<br />
incluídos os pequenos, dade e a confusão não só no comportamento dos partidos, fora e dentro do<br />
conquiste, sozinho e parlamento, mas na própria composição partidária do parlamento.<br />
independentemente, a Mas coligações partidárias não são apenas inconsistentes com eleições<br />
representação parlamentar<br />
proporcionais; são, também, nelas, desnecessárias. O método proporcional<br />
não só desestimula e em alguns casos inibe a formação de alianças eleitorais entre<br />
partidos, mas torna-as desnecessárias porque maximiza a probabilidade de que cada partido,<br />
incluídos os pequenos, conquiste, sozinho e independentemente, a representação parlamentar.<br />
Contudo, ainda que neles se admita coligação eleitoral interpartidária, sistemas proporcionais<br />
que adotam listas partidárias fechadas ou flexíveis e quociente eleitoral, ou algum método<br />
de divisores, provêm quocientes partidários e, por este meio, viabilizam e consolidam<br />
identidades partidárias, sob a condição de que as cadeiras obtidas em um primeiro procedimento<br />
distributivo pela coligação sejam repartidas, em um segundo procedimento, por via<br />
de quocientes partidários ou de seu equivalente, entre os partidos que a compõem e segundo<br />
a participação relativa dos votos de cada um na totalidade dos sufrágios da coligação. Assim<br />
procede a maioria dos regimes proporcionalistas que admitem aliança partidária eleitoral.<br />
A esse respeito, o elemento disnômico e grave do preceito e da prática legais brasileiros<br />
das eleições proporcionais não consiste propriamente na existência de coligações interpartidárias,<br />
mas em que, estabelecida, a coligação partidária substitui literalmente o partido, e<br />
o quociente da coligação simplesmente elimina e substitui o quociente partidário, de modo<br />
que as cadeiras que aquela obtém não são distribuídas, em um procedimento ulterior, entre os<br />
partidos que a constituem e segundo a magnitude relativa da contribuição dos votos de cada<br />
um à votação daquela, isto é, segundo o quociente de cada partido no interior da coligação –<br />
como se faz na maioria dos regimes proporcionalistas que admitem alianças partidárias<br />
eleitorais –, mas simplesmente entre os diferentes candidatos que a compõem, na ordem<br />
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José Antônio Giusti Tavares<br />
decrescente da votação pessoal de cada um, fazendo-se completa abstração dos partidos e<br />
dissolvendo-se inteiramente a identidade partidária.<br />
Sem a previsão do mecanismo de distribuição das cadeiras entre os partidos que a<br />
compõem, a coligação interpartidária em eleições proporcionais por voto uninominal termina<br />
gerando aleatoriamente inúmeras distorções, entre as quais a super-representação de<br />
partidos minúsculos, ao prover-lhes mesmo um único assento parlamentar, em prejuízo de<br />
partido maior na coligação.<br />
Sob a lógica perversa que disciplina as eleições legislativas proporcio-<br />
Sob a lógica perversa nais com coligações interpartidárias no Brasil, as cadeiras legislativas nem<br />
que disciplina as eleições sequer, rigorosamente, pertencem aos partidos, mas à coligação e aos seus<br />
legislativas proporcionais candidatos, podendo eleger-se o candidato de um partido com os votos de<br />
com coligações candidatos de outro. Conseqüentemente, instalada a legislatura, o suplente<br />
interpartidárias no Brasil, de um parlamentar eleito pela coligação não é necessariamente o candidato<br />
as cadeiras legislativas imediatamente mais votado de seu partido mas o candidato imediatamen-<br />
nem sequer, rigorosamente, te mais votado da coligação. A ocupação do mandato vago por suplente<br />
pertencem aos partidos, que pertence a partido diferente daquele do titular altera arbitrariamente a<br />
mas à coligação e aos composição partidária do Legislativo, que deixa de corresponder à decisão<br />
seus candidatos, podendo periódica do eleitorado.<br />
eleger-se o candidato Em tais condições, cada partido, objetivando maximizar o ganho elei-<br />
de um partido com os toral, encontra-se diante da necessidade de recomendar ao eleitor não o<br />
votos de candidatos de voto na legenda, que, integrando um fundo comum de votos, pode apro-<br />
outro. Conseqüentemente, veitar a outro partido, mas o voto em candidato pessoal do partido, cuja pro-<br />
instalada a legislatura, babilidade de ser transferido para candidato de partido coligado é menor.<br />
o suplente de um Contudo, a importância das coligações na definição da representação<br />
parlamentar eleito na Câmara dos Deputados cresceu persistentemente ao longo do regime de<br />
pela coligação não 1946 e da Nova República.<br />
é necessariamente o Sabe-se a esse respeito que, no Brasil, como em vários outros países,<br />
candidato imediatamente a permissão de coligações é um mecanismo que tangencia a cláusula de ex-<br />
mais votado de seu clusão com o propósito de preservar partidos menores. Contudo, se é este<br />
partido mas o candidato o objetivo, é preferível, em princípio, do ponto de vista da natureza, dos<br />
imediatamente mais objetivos e do adequado funcionamento da representação proporcional,<br />
votado da coligação<br />
reduzir ou mesmo eliminar a cláusula de exclusão, ou ainda adotar uma<br />
fórmula menos concentradora de conversão de votos em cadeiras legislativas<br />
para os diferentes partidos, do que introduzir coligações eleitorais interpartidárias. Esse<br />
foi o exemplo da Suécia, que em 1952 substituiu funcionalmente a possibilidade de alianças<br />
eleitorais interpartidárias pela adoção da fórmula Sainte Lagüe modificada.<br />
Literalmente, o projeto de reforma política (Projeto de Lei nº 2.679/2003) não elimina<br />
as coligações partidárias em eleições proporcionais, como aparentemente pretende em sua<br />
justificação; simplesmente as substitui por federações de partidos, observado o preceito de<br />
que “os partidos reunidos em federação deverão permanecer a ela filiados, no mínimo, por<br />
três anos” (art. 3º, art. 11-A, § 1º, II).
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Mas, na distribuição e ocupação das cadeiras da Câmara dos Deputados, a federação, precisamente<br />
como a coligação eleitoral, elimina e substitui os partidos que a compõem, e o quociente<br />
da federação elimina e substitui os quocientes daqueles partidos. Permanecem intactos a esse<br />
respeito os artigos 107, 108 e 109 do Código Eleitoral, em sua redação de 1985. O enunciado<br />
pelo art. 11-A, caput, da “garantia da preservação da identidade e da autonomia dos<br />
partidos” que integrarem a federação, é pura retórica legal.<br />
Ora, substituir, em eleições proporcionais, coligações partidárias por federações partidárias,<br />
que exercem as mesmas funções e produzem os mesmos efeitos – ou seja, substituir<br />
um nome por outro para perpetuar o que pretensamente se quer eliminar – é um desrespeito<br />
à inteligência.<br />
2) Listas partidárias fechadas ou flexíveis<br />
Do ponto de vista da interação entre partidos, candidatos e eleitores, importa distinguir<br />
dois tipos de sistemas eleitorais: de um lado, (1) aqueles nos quais os partidos ocupam o<br />
centro de gravidade da competição pelo voto e são decisivos quanto à estruturação, à distribuição<br />
e à agregação das preferências do eleitorado, assegurando não só a responsabilização<br />
dos eleitos mas predictibilidade no comportamento legislativo e na formação do governo;<br />
de outro, (2) aqueles nos quais a interação fundamental no mercado de votos se realiza<br />
entre candidatos e eleitores, reduzindo a relevância dos partidos na competição eleitoral, no<br />
legislativo e no governo.<br />
A variável estratégica da qual depende a opção por um ou outro desses dois tipos – e,<br />
em suma, o vigor ou o desvanecimento da identidade partidária no processo eleitoral e na<br />
representação política – é a concepção de um elemento aparentemente inocente, o boletim<br />
de voto. Por meio da definição institucional da estrutura do boletim de voto cada um dos<br />
diferentes sistemas eleitorais decide primariamente acerca da distribuição, entre o partido<br />
e seus eleitores, do poder de hierarquizar, por antecipação, as probabilidades de eleição dos<br />
candidatos do próprio partido.<br />
Existem, a esse respeito, quatro variedades fundamentais de sistemas proporcionais.<br />
Nas eleições proporcionais por listas partidárias hierarquizadas, fechadas e bloqueadas<br />
pertence inteira e exclusivamente ao partido o poder de ordenar, por antecipação e com<br />
exclusividade, as probabilidades de eleição de seus próprios candidatos.<br />
Nas eleições por listas partidárias flexíveis os eleitores podem compartilhar secundariamente<br />
daquele poder, que, entretanto, continua a pertencer, no fundamental, ao partido.<br />
Nelas, permite-se ao eleitor definir a ordem de preferência ou, em regra, redefinir aquela<br />
estabelecida pelo partido, atribuir votos preferenciais e votar em um número menor de candidatos<br />
ou em um único candidato, entre os da mesma lista partidária.<br />
Essas duas variedades de sistemas alimentam e consolidam a coesão partidária ao mesmo<br />
tempo em que asseguram a mediação responsabilizadora exercida sobre os eleitos, quanto aos<br />
compromissos com o eleitorado, pela direção colegiada regional ou nacional do partido.<br />
Contudo, na eleição por listas abertas, os eleitores participam mais decisivamente, e em<br />
prejuízo do partido, do poder de determinar por antecipação a distribuição final das cadei-<br />
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José Antônio Giusti Tavares<br />
ras legislativas entre os candidatos, podendo não só reordenar a lista partidária e votar em<br />
um número menor de candidatos ou em um único, concentrar mais de um voto ou todos<br />
em um mesmo candidato (o voto cumulativo) ou simplesmente dar votos preferenciais, mas<br />
nela introduzir candidatos novos ou candidatos de outro partido (o panachage).<br />
Entretanto, de um modo geral, nos países que adotam uma ou outra dessas duas últimas<br />
variedades de lista eleitoral tem sido muito pouco relevante ou quase irrelevante a<br />
freqüência com que os eleitores empregam o espaço de poder que lhes é facultado, o que<br />
diminui consideravelmente os efeitos erosivos que a lista aberta ou mesmo a flexível poderiam<br />
causar sobre a identidade e o papel dos partidos.<br />
Mas há, enfim, a variedade extrema dos sistemas de eleição proporcional sem listas partidárias,<br />
da qual existem três casos particulares: o single transferable vote irlandês, em que o<br />
eleitor organiza e hierarquiza a lista de seus candidatos, na qual pode incluir candidatos de<br />
partidos diferentes, e os sistemas finlandês e brasileiro de eleições proporcionais pelo voto<br />
pessoal em um único candidato, o voto uninominal, admitindo-se apenas alternativamente, no<br />
caso brasileiro, o voto na legenda partidária. 1<br />
Nesses três últimos casos, o partido é inteiramente privado do poder de hierarquizar as<br />
probabilidades de eleição de seus próprios candidatos, as quais passam a depender diretamente<br />
das relações entre aqueles e os eleitores.<br />
Especialmente nos dois últimos, o voto em candidato individual que, contabilizado<br />
para a legenda, transfere-se aleatoriamente a outros candidatos do mesmo partido e, admitida<br />
a coligação interpartidária em eleições proporcionais, a candidatos de outros partidos,<br />
equivale ao voto em uma lista partidária virtual que constitui, entretanto, com sua ordenação,<br />
o resultado aleatório das escolhas de todos os eleitores do partido ou da coligação.<br />
Assim, ao fim e ao cabo, nem o eleitor nem o partido tem qualquer controle sobre o<br />
destino do voto e sobre a ordem de precedência dos candidatos nessa lista virtual, porque<br />
constituem efeitos compósitos e aleatórios.<br />
Há, contudo, uma diferença fundamental. Nos países que adotam alguma forma de<br />
votação que amplia o escopo da decisão individual dos eleitores, em detrimento dos partidos,<br />
na determinação final dos candidatos eleitos – como a Irlanda com o voto único transferível,<br />
a Finlândia com o voto pessoal preferencial e a Austrália com o voto alternativo –, a<br />
existência de partidos sólidos e coesos, com identidade enraizada histórica e culturalmente,<br />
precedeu a instituição desse mecanismo eleitoral. No Brasil, ao contrário, a adoção do voto<br />
uninominal, nos anos 30, precedeu em pouco mais de uma década a emergência, problemática,<br />
de partidos organizados e modernos de massas.<br />
Nas eleições proporcionais brasileiras, o voto uninominal converte o quociente partidário<br />
− calculado com base nos votos em candidatos e nos votos, em menor número, na<br />
legenda − no agregado bizarro das preferências dos eleitores por candidatos individuais. E<br />
a distribuição final das cadeiras do partido entre seus candidatos faz-se conforme a ordem<br />
decrescente dos votos uninominais de cada um.<br />
Não obstante a faculdade de votar na legenda, que nem sempre a legislação lhe facultou,<br />
o eleitor brasileiro vota em regra em um único candidato; e esse voto, computado para<br />
o partido do ponto de vista da escolha interpartidária, é contabilizado, do ponto de vista da
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
decisão intrapartidária, que o sistema confere ao eleitor, apenas para o candidato, podendo<br />
aproveitar aos demais candidatos do mesmo partido apenas quando a votação daquele excede<br />
o quociente ou dele permanece aquém.<br />
Entre 1945 e 1964, na ausência da cédula oficial, não era em regra sequer permitido<br />
aos eleitores votar na legenda. A referência à legenda não constava na cédula eleitoral que,<br />
elaborada pelos candidatos, consagrava, não raro, dois nomes de partidos diferentes concorrendo,<br />
“em dobradinha”, um para deputado federal e o outro para deputado estadual. Em<br />
1986 e em 1990 a cédula continha, além do espaço reservado para registrar o nome ou o<br />
código do candidato, uma lista de siglas partidárias, de modo que o eleitor podia votar ou<br />
no candidato ou na legenda.<br />
Entretanto, nas eleições de 1994, embora fosse permitido, em princípio, ao eleitor<br />
votar no candidato ou no partido, a cédula não continha as siglas partidárias para assinalar,<br />
induzindo ainda mais poderosamente a grande massa do eleitorado ao voto no candidato.<br />
O resultado foi conseqüente: enquanto de 1986 a 1990 a magnitude relativa do voto de<br />
legenda crescera de 14,3% para 18,9%, com a cédula de 1994 – que não continha referência<br />
à sigla –, decresceu radicalmente para 8,3%.<br />
Nas eleições proporcionais brasileiras, constituída a coligação interpartidária, os votos<br />
na legenda pertencem não ao partido mas ao fundo comum da coalizão, beneficiando-se<br />
cada partido em particular apenas com os votos em seus candidatos: esse mecanismo tem a<br />
propriedade perversa de estimular, senão constranger, os eleitores a votarem − persuadidos<br />
com freqüência pelos seus próprios partidos, por considerações de cálculo estratégico − não<br />
na legenda, mas apenas no nome de seus candidatos e, no caso de partido muito pequeno, a<br />
concentrarem os votos nos candidatos ou no candidato com maior probabilidade eleitoral.<br />
A combinação, em eleições proporcionais, entre voto uninominal e coligação interpartidária<br />
habitualiza e legitima o livre fluxo das migrações partidárias dos representantes<br />
legislativos e, com ele, alimenta a existência e o funcionamento de um mercado paralelo<br />
de mandatos que, com muita propriedade, Edson Nunes, André Nogueira e Paulo Tafner<br />
identificaram como “o mercado secundário dos votos” adquiridos pelo representante no<br />
mercado “primário” das eleições (Nunes,<br />
Nogueira e Tafner, p. 43-53).<br />
Mas já no mercado primário das<br />
eleições, o voto uninominal viabiliza<br />
o financiamento seletivo e corruptor,<br />
pelo capital organizado e pelas corporações<br />
de todo tipo, inclusive sindicais,<br />
de candidatos de diferentes partidos, e<br />
com a abstração destes últimos: mecanismo<br />
mais atrativo porque ao mesmo<br />
tempo mais eficiente e mais discreto.<br />
A adoção da lista partidária fechada ou<br />
mesmo flexível reduziria severamente o<br />
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José Antônio Giusti Tavares<br />
O voto uninominal<br />
viabiliza o financiamento<br />
seletivo e corruptor,<br />
pelo capital organizado<br />
e pelas corporações<br />
de todo tipo, inclusive<br />
sindicais, de candidatos<br />
de diferentes partidos, e<br />
com a abstração destes<br />
últimos: mecanismo mais<br />
atrativo porque ao mesmo<br />
tempo mais eficiente e<br />
mais discreto. A adoção<br />
da lista partidária<br />
fechada ou mesmo flexível<br />
reduziria severamente<br />
o estímulo à compra de<br />
votos e ao financiamento<br />
clandestino de candidatos<br />
de partidos diferentes<br />
3) Cláusula de exclusão<br />
estímulo à compra de votos e ao financiamento clandestino de candidatos<br />
de partidos diferentes.<br />
É também o voto uninominal que viabiliza a introdução nas eleições<br />
dos mecanismos de patronagem e clientela e da corrupção patrimonialista,<br />
com os recursos do Estado, por parte das elites políticas, que decidem pela<br />
indicação de candidato que, favorecido na competição intrapartidária, será<br />
ainda mais facilmente favorecido no processo eleitoral, em prejuízo dos<br />
demais candidatos do mesmo ou de outro partido.<br />
Em eleições proporcionais, atuando independentemente, quer o voto<br />
uninominal, quer a coligação interpartidária – sem um mecanismo que<br />
distribua, em um segundo momento, entre os partidos, proporcionalmente<br />
à contribuição em votos de cada um, as cadeiras obtidas pela coligação<br />
– faz desaparecer a especificidade dos quocientes partidários e, por via de<br />
conseqüência, não apenas a diferenciação entre os partidos mas a individualidade,<br />
a coerência e a coesão internas de cada um. Operando associados,<br />
em um país que carece de estrutura partidária previamente consolidada,<br />
como o Brasil, esses dois mecanismos atomizam a representação política,<br />
nela introduzindo o sincretismo partidário; erodem a identidade e o alinhamento<br />
partidários nos processos eleitoral, legislativo e governamental;<br />
e desvanecem a mediação responsabilizadora dos partidos nas relações entre<br />
o eleitorado e os representantes.<br />
Um considerável número de sistemas proporcionais – incluídos aqueles nos quais a<br />
conversão dos votos partidários em cadeiras legislativas partidárias se faz por meio de fórmulas<br />
de maior precisão e em escala nacional, como o da República Federal da Alemanha,<br />
ou em distritos que elegem números elevados de representantes – estatue o requisito legal<br />
de um percentual mínimo de votos que cada partido deve obter para participar do cálculo de<br />
distribuição das cadeiras legislativas e ser admitido à representação política. Trata-se da cláusula<br />
de exclusão, denominada, na República Federal da<br />
Alemanha, sperrklausel (cláusula de barreira ), que fixa<br />
um patamar mínimo de votos – em regra 5% ou menos<br />
dos votos partidários válidos, em escala nacional ou em<br />
distritos eleitorais que elegem números elevados de representantes<br />
–, aquém do qual o partido é considerado<br />
não apenas eleitoral mas sociologicamente irrelevante,<br />
excluído da distribuição das cadeiras legislativas e eliminado<br />
da representação parlamentar.<br />
A tabela seguinte é ilustrativa.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Tabela I - Exclusão em 26 sistemas eleitorais proporcionais<br />
Sistemas sem cláusula de exclusão<br />
Suíça, Noruega, Finlândia, Portugal, Chile, Uruguai, Colômbia, Peru, África do Sul,<br />
Madagascar<br />
Sistemas com cláusula de exclusão<br />
Holanda: 0,67% dos votos válidos nacionais<br />
Israel: 1,5% dos votos válidos nacionais<br />
Grécia: 3% dos votos válidos nacionais para concorrer em qualquer nível<br />
Áustria: 4% dos votos válidos nacionais ou uma cadeira distrital<br />
Suécia: no país, 4% do votos válidos nacionais; no distrito, 4% dos votos válidos nacionais<br />
ou 12% do voto distrital válido<br />
Bulgária: 4% dos votos válidos nacionais<br />
Moçambique: 5% dos votos válidos nacionais<br />
República Federal da Alemanha: 5% dos votos partidários válidos nacionais ou conquista,<br />
pelo partido, de três distritos uninominais<br />
Dinamarca: 2% dos votos válidos nacionais ou uma cadeira distrital ou certo número de<br />
votos válidos em duas entre as três regiões em que se divide o país<br />
República Tcheca: 5% dos votos válidos nacionais para o partido, elevando-se com<br />
coligações e segundo o tamanho destas<br />
Bélgica: 33% do quociente em pelo menos um distrito<br />
Polônia: 7% dos votos válidos nacionais e, no distrito, 5% para partido e 8% para coligação<br />
Espanha: 3% dos votos válidos em cada distrito<br />
Argentina: 3% dos votos válidos em cada distrito<br />
Costa Rica: 50% do quociente em cada distrito<br />
Turquia: 10% dos votos válidos nacionais e o quociente no distrito<br />
NOTA. Os dados referem-se aos anos 90 e encontram-se em Jairo Marconi Nicolau. Sistemas eleitorais: uma<br />
introdução. Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas Editora, 1999, Quadro 1, p. 38-39.<br />
Na Tabela I, entre 10 sistemas proporcionais, dez não empregam cláusula de exclusão;<br />
10 empregam cláusula de exclusão inferior ou igual a 5% dos votos válidos nacionais; 3<br />
estatuem cláusulas de exclusão modestas para a competição nos distritos. Apenas a Polônia<br />
e a Turquia adotam cláusulas de exclusão que se afastam radicalmente do consenso das democracias<br />
constitucionais.<br />
Há um consenso na literatura técnica sobre os sistemas eleitorais de que cláusulas de<br />
exclusão de valor igual ou menor do que 5% dos votos partidários válidos, especialmente<br />
quando em escala nacional ou em distritos eleitorais que elegem números suficientemente<br />
elevados de representantes, são perfeitamente consistentes com a natureza e o bom funcionamento<br />
dos sistemas de representação proporcional.<br />
Este tem sido também o entendimento das decisões do Tribunal Constitucional Federal<br />
da Alemanha.<br />
Mas, quer a literatura científica, quer a decisão da Corte Constitucional Alemã, ambas<br />
concordam também que cláusulas de exclusão superiores a 5%, e/ou aplicadas em distritos<br />
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120 |<br />
José Antônio Giusti Tavares<br />
que elegem números reduzidos de representantes, produzem efeitos majoritários e violam,<br />
portanto, o princípio e a prática da representação proporcional.<br />
Especificamente, o Tribunal Constitucional Alemão declarou que “uma cláusula de<br />
barreira superior a 5% é incompatível com a igualdade de oportunidades dos partidos constitucionalmente<br />
assegurada e, portanto, é inconstitucional” (Nohlen, p. 306).<br />
Este é, sem qualquer dúvida, o caso de 19 entre as 27 unidades federativas do Brasil.<br />
A tradição constitucional brasileira define os estados e o Distrito Federal como colégios<br />
eleitorais. Cada um dos quais, de acordo com a Constituição de 1988, elege determinado<br />
número de representantes à Câmara dos Deputados, em princípio proporcionalmente à<br />
magnitude relativa de sua população. Entretanto, a proporcionalidade deste apportionment<br />
é prejudicada como resultado do constrangimento, estatuído pelo próprio texto constitucional,<br />
de que “nenhuma daquelas unidades da Federação tenha menos de oito ou mais de<br />
setenta deputados”(art. 45, § 1º).<br />
Portanto, o sistema brasileiro de representação proporcional para eleição da Câmara<br />
dos Deputados compreende 27 circunscrições – 26 estados e o Distrito Federal – que elegem<br />
números diferentes de deputados, segundo quocientes de magnitudes desiguais.<br />
Por outro lado, afastando-se estranhamente da prática clássica e contemporânea das<br />
democracias proporcionalistas, o Brasil adota, desde o Código Eleitoral de 1935, o quociente<br />
como cláusula de exclusão, de modo que funcionam, no sistema eleitoral brasileiro, 27<br />
cláusulas de exclusão de tamanhos desiguais.<br />
Contudo, a leitura da Tabela II revela, no conjunto do país continental, um claro dualismo.<br />
Tabela II - Os estados brasileiros e o Distrito Federal<br />
segundo o número de cadeiras na Câmara dos Deputados e<br />
o valor relativo do quociente e cláusula de exclusão<br />
São Paulo 70 - 1,4% Pará 17 - 5,9% Rio Grande do Norte 8 - 12,5%<br />
Minas Gerais 53 - 1,9% Goiás 17 - 5,9% Tocantins 8 - 12,5%<br />
Rio de Janeiro 46 - 2,2% Santa Catarina 16 - 6,2% Amazonas 8 - 12,5%<br />
Bahia 39 - 2,6% Paraíba 12 – 8,3% Mato Grosso do Sul 8 - 12,5%<br />
Rio Grande do Sul 31- 3,2% Espírito Santo 10 - 10,0% Amapá 8 - 12,5%<br />
Paraná 30 - 3,3% Piauí 10 – 10,0% Rondônia 8 - 12,5%<br />
Pernambuco 25 - 4,0% Alagoas 9 - 11,1% Roraima 8 - 12,5%<br />
Ceará 22 - 4,5% Distrito Federal 8 - 12,5% Sergipe 8 - 12,5%<br />
Maranhão 18 - 5,9% Mato Grosso 8 - 12,5% Acre 8 - 12,5%<br />
De um lado, apenas oito colégios eleitorais estaduais, que elegem entre 22 e 70 representantes,<br />
possuem cláusulas de exclusão inferiores ao parâmetro de 5%; e, entre eles, os<br />
dois maiores têm cláusulas de exclusão diminutas, ineficazes e irrelevantes.<br />
De outro, em onze estados, que elegem o mínimo constitucional de oito representantes,<br />
a cláusula de exclusão passa a ser de 12,5%, duas vezes e meia maior do que o limite<br />
superior de 5%, consensualmente reconhecido como compatível com democracias propor-
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
cionalistas. Em três estados, a cláusula eliminatória é duas vezes maior do que aquele limite.<br />
E, em cinco outros estados, situa-se entre 5,9% e 8,3%.<br />
Enfim, na lógica que resulta da combinação entre o sistema eleitoral brasileiro e o critério de<br />
apportionment das cadeiras da Câmara dos Deputados, prescrito pela Constituição, à medida<br />
que diminui a magnitude da circunscrição, eleva-se rapidamente a cláusula de exclusão e, com<br />
ela, os efeitos de concentração do sistema partidário e de exclusão de partidos menores.<br />
Nos catorze estados que elegem dez representantes ou menos, a combinação entre a<br />
(1) magnitude distrital reduzida, (2) o valor extremamente elevado do quociente e (3) a<br />
conversão deste em cláusula de barreira praticamente inviabiliza a concorrência eleitoral de<br />
partidos que, embora possuam certa expressão nacional, contam com menor, ainda que não<br />
negligenciável, representatividade local ou regional. A política nesses estados fica confinada<br />
a dois ou três “grandes” partidos, qualquer que seja a sua legenda nacional, satelitizados por<br />
oligarquias dominantes.<br />
Ao contrário, nos quatro maiores colégios eleitorais, a cláusula de exclusão é simplesmente<br />
ineficiente e despicienda, o que estimula a criação de micropartidos esdrúxulos e o<br />
funcionamento de legendas de aluguel.<br />
A cláusula de exclusão vigente, contida no § 2º do art. 109 do Código Eleitoral de<br />
1965, simplesmente elimina da distribuição das cadeiras, em cada unidade da federação, os<br />
partidos que não lograram o quociente eleitoral, esterilizando-lhes e desprezando-lhes os votos.<br />
Rigorosamente, não transfere esses votos para os partidos que lograram os quocientes.<br />
Simplesmente os faz desaparecer; mas, ao fazê-lo, assegura aos candidatos dos partidos que<br />
atingiram o quociente partidário um número maior de cadeiras do que aquele que teriam<br />
obtido com o simples valor do quociente. Ou seja, cada partido que não obtém o quociente<br />
eleva, ao custo da esterilização de seus próprios votos, o valor do voto dos partidos que<br />
atingiram o quociente.<br />
Esse artifício gera acentuada desproporção, por partidos, entre votos e cadeiras legislativas,<br />
em benefício da redução radical do número de partidos na representação do colégio eleitoral<br />
estadual na Câmara dos Deputados e ao custo do princípio da igualdade quanto ao valor<br />
do voto, essencial à representação proporcional e consagrado pelo art. 14 da Constituição.<br />
Mas não é eficiente se o seu objetivo é reduzir o número de partidos com representação<br />
na Câmara dos Deputados em relação ao número de partidos que competem no conjunto<br />
do sistema eleitoral brasileiro, simplesmente porque partidos que são eliminados em uma<br />
unidade federativa – sobretudo naquelas em que a cláusula de exclusão é superior a 10%<br />
dos votos válidos – podem ser e efetivamente são eleitos em outra. Rigorosamente, o único<br />
mecanismo capaz de responder a esse problema é aquele adotado pela República Federal da<br />
Alemanha para a eleição do Bundestag: os partidos competem em colégios eleitorais estaduais,<br />
mas o número de cadeiras que cabem a cada partido calcula-se em marco nacional, pela<br />
soma de seus votos estaduais; e, apenas em um segundo procedimento, as cadeiras nacionais<br />
do partido distribuem-se entre suas listas estaduais.<br />
Dieter Nohlen afirma com propriedade que proporcionalidade e maioria são dois princípios<br />
antitéticos e irreconciliáveis de representação política.<br />
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122 |<br />
José Antônio Giusti Tavares<br />
A máxima da representação proporcional é a de one man, one vote, a cada eleitor um<br />
voto com igual valor. Pertence à natureza dos sistemas proporcionais contabilizar e valorizar<br />
igualmente todos, ou tendencialmente todos, os votos, com o propósito de assegurar voz e<br />
voto efetivos, no parlamento, à maior diversidade possível de tendências e projetos em que<br />
se divide a sociedade.<br />
No mandato representativo A máxima da representação majoritária é first-past-the-post, o primeiro<br />
moderno, não é o pretere os demais, ou ainda, the winner takes all, o partido vencedor arreba-<br />
representante e, ta todas as cadeiras disputadas. O sistema majoritário considera apenas os<br />
com ele, o corpo de votos do partido vencedor e despreza todos os demais, ainda que, se houver<br />
representantes que se mais de dois partidos, os votos esterilizados sejam a maioria. E, a não ser<br />
obrigam ao eleitorado, em sociedades com tradição e cultura bipartidárias, sistemas majoritários<br />
mas, ao contrário, são exercem graves efeitos de exclusão política.<br />
os eleitores que, ao Conclui-se desta comparação que o preceito do artigo 14 da Consti-<br />
designá-los, obrigam-se tuição, voto direto e secreto, com valor igual para todos, só pode ser assegu-<br />
por antecipação a acolher rado pela representação proporcional, pois o patamar mínimo e crucial da<br />
como efetivamente suas igualdade do valor do voto consiste, precisamente, em que todos os votos<br />
todas as decisões que eles sejam considerados e contabilizados.<br />
vierem a tomar em seu Em suma, os princípios da proporcionalidade na relação entre votos<br />
nome na esfera pública<br />
e cadeiras legislativas por partidos e da igualdade quanto ao valor do voto<br />
encontram-se íntima e indissoluvelmente correlacionados entre si e ambos<br />
constituem valores fundamentais consagrados pela Constituição de 1988.<br />
O argumento demonstra a necessidade de suprimir o § 2º do art. 109 do Código<br />
Eleitoral, que, gerando efeitos de maioria e subvertendo a representação proporcional dos<br />
partidos, é claramente inconstitucional. A medida encontra-se incorporada ao Projeto de<br />
Lei nº 2.679, de 2003, da reforma política.<br />
Contudo, com o propósito de assegurar a efetividade do sistema partidário-parlamentar,<br />
afastando organizações irrelevantes, o preceito suprimido deve ser substituído por outro<br />
requisito de ingresso para o partido: 5% dos votos válidos em escala nacional, distribuídos em<br />
certa proporção mínima por certo número de estados.<br />
Existe, a esse respeito, uma confusão letal, não apenas de linguagem, mas de essência,<br />
quanto à teoria e à instituição da representação política.<br />
O artigo 13 da Lei nº 9.096/95, a Lei dos Partidos Políticos, e, com ele, o artigo 4º do<br />
Projeto de Lei nº 2.679/2003 – que lhe pretende dar nova redação – não instituem cláusula<br />
de exclusão, que é inerente ao regime proporcional, nem podem substituí-la. Apenas<br />
introduzem restrições e limitações ao desempenho parlamentar dos partidos que não cumpriram<br />
certos requisitos eleitorais, a respeito das quais há um excelente estudo, de Kátia de<br />
Carvalho, cujos dados e argumentos não podem, lamentavelmente, ser reproduzidos neste<br />
limitado espaço (Carvalho, 2003).<br />
Essas restrições e limitações não violam apenas preceitos da Constituição brasileira mas<br />
princípios da representação política consagrados pela tradição das democracias ocidentais.<br />
Entre eles, o fundamental é o de que o mandato representativo só admite uma classificação<br />
dicotômica: ou o representante foi eleito e desfruta dos mesmos direitos, prerrogativas e po-
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
deres universalmente reconhecidos de que desfrutam os demais; ou não cumpriu os requisitos<br />
necessários para qualquer candidato ser eleito – entre os quais, se adotada, a cláusula de<br />
exclusão, ou de barreira – e, portanto, não foi eleito, não deve ser diplomado e empossado,<br />
porque não é representante. Conquistado, o mandato representativo não admite classificações<br />
ordinais: não existem, na teoria e na prática da representação política democrática,<br />
representantes com mais faculdades, competências, recursos ou poderes de representação do<br />
que outros; representantes de primeira e de segunda classe.<br />
Contudo, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, rompendo com suas decisões<br />
unânimes precedentes, acordou, também por unanimidade, em que o preceito do artigo 13<br />
da Lei nº 9.096/95 carece de eficácia jurídica porque é inconstitucional. Embora construída<br />
sobre alguns fundamentos equivocados, a última decisão não deve ser considerada um<br />
retrocesso. Ao contrário, a eliminação dos preceitos do art. 13 da Lei nº 9.096/1995 e do §<br />
2º do art. 109 do Código Eleitoral deve preceder a instituição da cláusula de exclusão, que<br />
a própria lógica do regime proporcional exige.<br />
4) Fidelidade partidária<br />
Impressionados com o desregramento<br />
crescente dos corpos legislativos<br />
do país, os observadores<br />
mais sensatos buscam socorro na<br />
instituição da fidelidade partidária.<br />
Entretanto, o instituto legal<br />
da fidelidade partidária e a noção<br />
da qual deriva não são intuitivos.<br />
Não há, mesmo, um entendimento<br />
unívoco sobre a sua natureza,<br />
os seus fundamentos, o âmbito de<br />
sua ação e seus efeitos. Que clareza e precisão poder-se-iam esperar de preceitos legislativos<br />
erguidos sobre categorias de significado tão movediço?<br />
Nos terrenos do parlamento e do governo, o recurso à fidelidade partidária supõe que<br />
o partido dispõe de poder de controle sobre o mandato representativo.<br />
Contudo, na teoria moderna da representação política e do governo representativo, o<br />
representante e o governo são detentores de um mandato livre e virtual, o que significa que,<br />
como observou Giovanni Sartori com extrema acuidade, com a emergência das democracias<br />
modernas, os representantes “não apenas foram declarados agentes livres, aos quais não poderiam<br />
ser dadas instruções, mas foram designados para representar uma vontade que não<br />
existia antes de sua própria vontade” (Sartori, 1968, p. 466).<br />
No mandato representativo moderno, não é o representante e, com ele, o corpo de<br />
representantes que se obrigam ao eleitorado mas, ao contrário, são os eleitores que, ao designá-los,<br />
obrigam-se por antecipação a acolher como efetivamente suas todas as decisões que<br />
eles vierem a tomar em seu nome na esfera pública.<br />
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José Antônio Giusti Tavares<br />
A exigência constitucional do mandato livre resulta de dois fundamentos, para os quais<br />
Burke já apontara.<br />
A democracia é essencialmente dialógica e deliberativa e, nela, toda decisão importante<br />
deve ser precedida pelo debate, isto é, pelo confronto entre diferentes argumentos. Deliberar<br />
significa pesar diferentes argumentos para chegar a uma convicção; portanto, não tem<br />
qualquer sentido a deliberação legislativa se o voto do representante foi previamente decidido,<br />
por seus constituintes, por seu partido ou mesmo por ele próprio. O requisito ético<br />
fundamental da democracia representativa dialógica e deliberativa consiste na disposição, por<br />
parte de cada representante, de persuadir e de ser persuadido. Em segundo lugar, as condições<br />
políticas encontram-se em permanente mutação; portanto, do fato de<br />
Como resultado, a que o representante esteja obrigado a princípios e diretrizes gerais não se<br />
ambigüidade da teoria deve concluir que deva vincular-se, ao longo de todo o mandato, a decisões<br />
ocidental da representação específicas tomadas antes de assumi-lo.<br />
política se desfez, no Ademais, Montesquieu, antecipando Schumpeter e Sartori, já afirmara<br />
Brasil, em prejuízo dos que eleições competitivas são um método por meio do qual o corpo eleitoral,<br />
partidos e em benefício sem condições de decidir sobre temas complexos, especializados e acima de seu<br />
do individualismo alcance, seleciona os seus dirigentes – segundo critérios que combinam a com-<br />
anárquico dos políticos. petência dos candidatos com o consenso genérico, entre eleitores e eleitos,<br />
O voto uninominal e a acerca de preferências por políticas públicas −, incumbindo-os da função de<br />
substituição do quociente deliberar sobre assuntos públicos (Montesquieu, livro II, cap. II, p. 533 e<br />
partidário pelo quociente livro XI, cap. VI, p. 587; Schumpeter, livro IV; Sartori, 1965, p. 123).<br />
da coligação em eleições Assim, efetivamente, nas democracias constitucionais e representati-<br />
proporcionais, consagrados vas modernas só há dois recursos para prover a responsabilização política<br />
pelo direito eleitoral dos representantes ou do governo pelo eleitorado: (1) a sanção retrospecti-<br />
brasileiro, tornam va provida por eleições competitivas regulares periódicas, nas quais o elei-<br />
juridicamente problemática torado pode reeleger ou não o portador de um mandato e, no intervalo<br />
qualquer pretensão do entre duas eleições consecutivas, (2) a transitividade e a responsabilidade<br />
partido de responsabilizar recíprocas entre eleitores e eleitos, realizada por partidos políticos sólidos,<br />
o representante pelo estáveis, coesos e disciplinados.<br />
desempenho do mandato<br />
Sabe-se que o segundo recurso é problemático, especialmente no sistema<br />
eleitoral brasileiro.<br />
Nas democracias ocidentais há uma profunda ambigüidade acerca da titularidade e da<br />
responsabilidade sobre o mandato representativo, articulada pela noção de que a democracia<br />
representativa moderna é essencialmente mediatizada pela competição entre os partidos<br />
e de que, portanto, a responsabilidade e o poder sobre o mandato, embora pertençam imediatamente<br />
ao representante, titular iminente da representação, incumbem mediatamente ao<br />
partido, que detém a titularidade eminente da representação.<br />
Entretanto, na cultura política brasileira, o rationale e o conteúdo normativo subjacentes<br />
à instituição e à prática do voto uninominal na representação proporcional consistem na noção<br />
de que, adquirido pela via de uma obrigação pública entre o eleito e os eleitores – mas,<br />
por este motivo, direta, anônima, atomizada e não sancionável –, o mandato representativo<br />
pertence privada, exclusiva e discricionariamente ao representante. Como resultado, a am-
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
bigüidade da teoria ocidental da representação política se desfez, no Brasil, em prejuízo dos<br />
partidos e em benefício do individualismo anárquico dos políticos. O voto uninominal e a<br />
substituição do quociente partidário pelo quociente da coligação em eleições proporcionais,<br />
consagrados pelo direito eleitoral brasileiro, tornam juridicamente problemática qualquer<br />
pretensão do partido de responsabilizar o representante pelo desempenho do mandato.<br />
Ademais, por duas décadas, intermitentemente, o partido não podia ou muito dificilmente<br />
podia sequer recusar-se a propor a reeleição de seu representante legislativo infiel,<br />
porque a legislação brasileira o definia como candidato nato ao mandato subseqüente: introduzido<br />
pelo art. 4º da Lei nº 6.978, de 1982, o preceito da candidatura nata foi sucessivamente<br />
reiterado pela Lei nº 6.055/1974, art. 4º, pela Lei nº 8.713/1993, art. 8º, § 2º, e<br />
pela Lei nº 9.504/1997, art. 8º, § 1º, até que sua eficácia jurídica fosse suspensa, em 2002,<br />
por acórdão do Supremo Tribunal Federal. O que significa que, ao longo daquele período, o<br />
partido foi privado de sua função primária, que consiste em dirigir e controlar a nominação<br />
de seus próprios candidatos aos diversos mandatos eletivos.<br />
Movendo-se em direção oposta, alguns cientistas políticos, entre os quais Gerhardt<br />
Leibholz, afirmam que o vazio de responsabilização introduzido pelo mandato livre deveria<br />
e tenderia a ser ocupado pelo mandato imperativo partidário.<br />
Contudo, importa reconhecer que o mandato imperativo partidário<br />
O mandato imperativo simplesmente faz desaparecer o mandato representativo livre, instituição<br />
partidário é, portanto, fundamental para assegurar a separação e a autonomia recíprocas entre a<br />
inconsistente com a esfera pública e a esfera privada, societária.<br />
democracia representativa Se o partido, ou alguma parcela do eleitorado, tivesse o poder per se<br />
e constitucional. de revogar, imediata e independentemente de decisão judicial, o mandato<br />
Mas essa assertiva não do representante, por infidelidade ou indisciplina partidária, o corpo legis-<br />
significa que o parlamentar lativo reproduziria, em sua composição, a interação societária em estado<br />
seja absolutamente imune brutal, cindida por seus conflitos e desestatizada: a sociedade reverteria<br />
à responsabilização<br />
precisamente ao estado de natureza, que a representação política se propunha<br />
ultrapassar.<br />
O corolário do mandato imperativo partidário, como demonstrou amargamente Marcel<br />
Waline, consistiria em “suprimir o parlamento e atribuir a cada partido um coeficiente<br />
correspondente à percentagem de seus votos no país. Se, num país, por exemplo, existem,<br />
segundo a última consulta eleitoral, quatro partidos, reunindo cada qual, respectivamente,<br />
40%, 30%, 20% e 10% dos votos, bastaria um diretório de quatro pessoas deliberando,<br />
uma com quatro votos, a outra com três, a terceira com dois e a última com um só. Far-se-ia<br />
economia de um parlamento e o resultado seria o mesmo” (Waline, p. 65-66).<br />
O mandato imperativo partidário é, portanto, inconsistente com a democracia representativa<br />
e constitucional. Mas essa assertiva não significa que o parlamentar seja absolutamente<br />
imune à responsabilização. Kelsen sustenta que, no sistema de eleições proporcionais<br />
por lista partidária fechada e hierarquizada, em que o eleitor vota apenas no partido, a perda<br />
do mandato torna-se uma dedução lógica da infidelidade partidária ou do abandono do<br />
Revista Plenarium | 125
126 |<br />
José Antônio Giusti Tavares<br />
Nota<br />
partido pelo deputado. Entretanto, observa que, proposta pelo partido, a decisão pertinente<br />
deve resultar do julgamento de um tribunal independente (Kelsen, p. 56-57).<br />
As conclusões de Kelsen são consistentes e coerentes com os preceitos do art. 17 da Constituição<br />
brasileira e do Estatuto dos Partidos Políticos (Lei nº 9.096/1995 ), de acordo com<br />
os quais os partidos são pessoas jurídicas de direito privado com autonomia para definir a sua<br />
estrutura, organização e funcionamento e estatuir normas e sanções de fidelidade e disciplina,<br />
mas as decisões partidárias devem observar a Constituição e as leis, estando sujeitas, neste<br />
caso, à apreciação judicial. Mas evidenciam que, no Brasil, o estatuto da fidelidade partidária<br />
só poderá ser viabilizado com a adoção de eleições proporcionais por listas fechadas.<br />
1 Tenho insistido há longo tempo, e ainda em dois textos recentes, que a representação proporcional brasileira,<br />
convencionalmente – e equivocadamente – identificada entre os sistemas de lista aberta, constitui, a rigor, um caso<br />
especial e excêntrico, muito semelhante ao da Finlândia, de representação proporcional sem listas partidárias e com base<br />
no voto pessoal, uninominal, no candidato (Tavares, J.A.G., 1999 e 2003).<br />
Referências<br />
KELSEN, Hans. (1993). A Democracia. São Paulo, Martins Fontes.<br />
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. (1964), L’Esprit des Lois. In Oeuvres Complètes. Paris, Éditions du Seuil.<br />
NOHLEN, Dieter. (1981). Sistemas Electorales del Mundo. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales.<br />
NUNES, Edson; NOGUEIRA, André e TAFNER, Paulo. (1995). “Poder Político e Competição Eleitoral”. Monitor Público, nº 6.<br />
SARTORI, Giovanni.(1965), Teoria Democrática. São Paulo, Ed. Fundo de Cultura.<br />
SARTORI, Giovanni. (1968) “Representational Systems”. In D. Sills (ed.), International Encyclopedia of Social Sciences.<br />
Macmillan & Free Press, v. XIII.<br />
SCHUMPETER, Joseph A. (1961), Capitalismo, Socialismo e Democracia, Rio de Janeiro, Editora Fundo de Cultura.<br />
TAVARES, J. A. Giusti. (1999). “O Problema do Cociente Partidário na Teoria e na Prática Brasileiras do Mandato<br />
Representativo”. Dados, v. 42, nº 1.<br />
TAVARES, J. A. Giusti. (2003). “A Mediação dos Partidos na Democracia Representativa Brasileira”. In TAVARES, J. A.<br />
Giusti (org.). O Sistema Partidário na Consolidação da Democracia Brasileira. Instituto Teotônio Vilela, Brasília-<br />
Porto Alegre.<br />
WALINE, Marcel. (1948). Les Partis Contre La République, Paris, Rousseau.
Simonsen, ministro da Fazenda, 1976. Foto de Luis Humberto.
128 |<br />
Wilhelm Hofmeister*<br />
Democracia,<br />
governabilidade,<br />
estabilidade:<br />
os pilares do Direito Eleitoral alemão como referência para<br />
reflexões visando a uma reforma do sistema eleitoral brasileiro<br />
Ao se falar sobre Direito Eleitoral e reformas da legislação eleitoral, normalmente se dá<br />
uma atenção especial ao Direito Eleitoral alemão, pois seus princípios fundamentais e sua<br />
aplicação prática contribuíram de forma decisiva para que se estabelecesse na Alemanha,<br />
após a catástrofe ocorrida na Segunda Guerra Mundial, uma democracia representativa<br />
estável. As experiências alemãs, obviamente, não podem ser transferidas diretamente para<br />
outros países, que têm suas próprias realidades políticas, históricas, sociais e culturais. Em<br />
todo caso, podem servir como marco de orientação e referência para reformas a serem realizadas<br />
em outras nações. Desse modo, os defensores de uma reforma política no Brasil, que<br />
também implique uma reforma do Direito Eleitoral, poderiam levar em consideração as<br />
experiências alemãs. Antes de mais nada, isso diz respeito aos princípios básicos do Direito<br />
Eleitoral, às expectativas centrais e às exigências de desempenho que devem ser direcionadas<br />
a um sistema eleitoral.<br />
*Wilhelm Hofmeister é diretor do Centro de Estudos da Fundação Konrad Adenauer no Rio de Janeiro, Brasil.<br />
Tradutor: Tito Lívio Cruz Romão.
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Exigências de desempenho direcionadas a um sistema eleitoral<br />
Antes de mais nada, e a partir de uma visão amplamente compartilhada na Alemanha<br />
e em outros países, os sistemas eleitorais precisam desempenhar cinco funções: 1<br />
• Representação: todos os segmentos relevantes da sociedade deverão ser representados<br />
pelos detentores dos cargos representativos obtidos através de pleito eleitoral. Os<br />
mandatos de deputados deverão ser um reflexo dos votos depositados pelos eleitores<br />
nas urnas.<br />
• Concentração: dever-se-á reduzir o número de partidos no parlamento e fomentar a<br />
formação de maiorias parlamentares estáveis.<br />
• Participação: os eleitores deverão ter grandes chances de participação, podendo fazer<br />
sobretudo uma escolha personalizada, além da opção por um partido.<br />
• Clareza: os eleitores deverão entender o funcionamento do sistema eleitoral, ou seja, o<br />
procedimento eleitoral deverá ser transparente.<br />
• Legitimidade: o sistema eleitoral e seus resultados deverão ser aceitos por todos.<br />
Cada uma dessas exigências, por si só, pode ser realizada da melhor maneira possível.<br />
Por conseguinte, o grau de realização das diferentes exigências pode ser comparado em<br />
diversos sistemas eleitorais. Não obstante, em nenhum sistema eleitoral é<br />
Na verdade, entre a função possível realizar todas estas exigências simultaneamente e em sua plenitude.<br />
de representação e a Na verdade, entre a função de representação e a função de concentração de<br />
função de concentração sistemas eleitorais, existe um trade-off: ou os votos depositados nas urnas<br />
de sistemas eleitorais, pelos eleitores são representados proporcionalmente ou são convertidos em<br />
existe um trade-off: ou mandatos de forma desproporcionada, visando à concentração partidária.<br />
os votos depositados Coisa semelhante também pode ser dita, por um lado, no tocante à rela-<br />
nas urnas pelos eleitores ção entre exigências de representação, concentração e participação, bem<br />
são representados como, por outro lado, no tocante à clareza e/ou ao grau de exeqüibilidade<br />
proporcionalmente ou das exigências: normalmente, quanto mais diferenciada e complexa for a<br />
são convertidos em regulamentação das competências eleitorais, maior será o grau de comple-<br />
mandatos de forma xidade de um sistema eleitoral.<br />
desproporcionada, visando Aqui já podemos registrar um aspecto decisivo que diz respeito ao sis-<br />
à concentração partidária<br />
tema eleitoral brasileiro e à sua diferença em relação ao sistema eleitoral alemão:<br />
na Alemanha existe uma exigência explícita a favor da formação de<br />
maiorias parlamentares, que é, por sua vez, um fator imprescindível para a condução estável de<br />
um governo. Já o sistema eleitoral brasileiro não apresenta essa exigência de desempenho.<br />
Elementos do Direito Eleitoral alemão<br />
Na Alemanha, os parlamentares da Câmara dos Deputados (Bundestag) são eleitos através<br />
de uma eleição proporcional que está vinculada ao voto personalizado (sistema eleitoral<br />
proporcional personalizado). 2 Todo eleitor dispõe de dois votos. O voto personalizado signi-<br />
Revista Plenarium | 129
130 |<br />
Wilhelm Hofmeister<br />
fica a escolha de candidatos distritais em distritos eleitorais, nos quais sempre haverá espaço<br />
para apenas um mandato, através da maioria relativa dos votos depositados pelos eleitores.<br />
O detentor do mandato será decidido pelos eleitores através de seu “primeiro voto” na cédula<br />
de votação. O voto proporcional representa o sufrágio a partir de listas partidárias fechadas,<br />
ressaltando-se que os votos depositados na legenda pelos eleitores são convertidos em<br />
cadeiras no Bundestag. 3 A escolha das legendas partidárias corresponde ao “segundo voto”<br />
na cédula de votação. Através deste procedimento eleitoral, o voto personalizado e o voto<br />
proporcional unem-se segundo diferentes princípios:<br />
• Princípio da distribuição equânime: uma primeira metade de todos os deputados do<br />
Bundestag é determinada nos distritos eleitorais através de voto majoritário personalizado,<br />
enquanto a outra metade é decidida através da votação nas legendas partidárias.<br />
• Princípio da compensação: o número de mandatos distritais obtido por cada partido<br />
através da votação personalizada é deduzido do número de seus mandatos por lista<br />
de legendas partidárias. Isso faz com que sejam formadas as relações de forças entre os<br />
partidos no Bundestag através do voto proporcional.<br />
• Princípio dos mandatos excedentes: se o número de mandatos diretos (ou seja, conquistados<br />
nos distritos) obtidos por um partido em um estado federado da República Federal da<br />
Alemanha for superior ao número de mandatos obtidos através do voto na legenda, tais<br />
mandatos excedentes serão conferidos a outros partidos, sem que haja a obtenção de<br />
mandatos compensatórios.<br />
• Princípio da cláusula de barreira: os votos depositados nas urnas pelos eleitores somente<br />
serão convertidos em mandatos de deputados do Bundestag em benefício daqueles<br />
partidos que tenham obtido pelo menos cinco por cento dos segundos votos ou pelo<br />
menos três mandatos distritais diretos no território federal alemão.<br />
Com base nesses princípios, obtém-se um sistema combinado de<br />
eleição proporcional e eleição majoritária, com competência personalizada<br />
parcial por parte do eleitor, um sistema que, nos<br />
países de língua alemã, foi designado como eleição proporcional<br />
personalizada e que é conhecido, nos países de expressão<br />
anglo-americana, como mixed-member proportional system.<br />
Balanço do sistema eleitoral alemão<br />
Concentração: o sistema eleitoral alemão<br />
fomenta maiorias governamentais estáveis?<br />
O sistema eleitoral alemão precisa ser visto como<br />
uma reação às experiências feitas com a chamada<br />
República de Weimar no período compreendido<br />
entre os anos de 1919 a 1933, uma
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
fase caracterizada pela instabilidade política, que acabou preparando o caminho para a tomada<br />
do poder pelos nacional-socialistas. 4 O sistema eleitoral da República de Weimar apoiava-se<br />
em um procedimento eleitoral puramente proporcional e sem cláusula de barreira,<br />
através do qual sessenta mil votos significavam um mandato de deputado federal. O sistema<br />
pluripartidário daí resultante tinha como características profundas rupturas<br />
ideológicas e uma conduta hostil ao sistema vigente por parte dos partidos<br />
de extrema esquerda e extrema direita, o que dificultava muito a formação<br />
de maiorias governamentais estáveis. Após o término da Segunda Guerra<br />
Mundial, um dos objetivos do debate constitucional ocorrido nos anos de<br />
1948 e 1949 era alcançar a formação de governos estáveis e democraticamente<br />
legitimados através da Constituição, promulgada no ano de 1949.<br />
Por meio do Direito Eleitoral, dever-se-ia tentar evitar o esfacelamento partidário<br />
e fomentar a formação de maiorias governamentais estáveis.<br />
Apoiando-se nessa meta, duas concepções desempenharam um papel<br />
central durante os debates constitucionais realizados entre os anos de 1947<br />
e 1949: a concepção da eleição majoritária em distritos uninominais e a<br />
concepção da cláusula de barreira.<br />
No sistema eleitoral que então passou a ser posto em prática, esses dois elementos foram<br />
considerados de forma diferenciada. Devido à resistência imposta sobremaneira pelos<br />
pequenos partidos, a introdução de eleições majoritárias somente foi possível com restrições.<br />
Em compensação, a concepção da cláusula de barreira passou a ser aplicada visando ao<br />
ajuste de votos obtidos entre os partidos. Já no ano de 1949, havia uma cláusula de barreira<br />
de 5% que valia apenas para cada estado federado, e não para toda a federação alemã. Não<br />
obstante, a cláusula de barreira não exercia um efeito de concentração, pois no Bundestag<br />
havia doze partidos representados, dos quais oito haviam conseguido menos de 5% dos<br />
votos em todo o território federal.<br />
Na eleição seguinte, realizada no ano de 1953, foi introduzida uma cláusula de barreira<br />
da ordem de 5% e com validade em todo o território nacional. Isso significa que um partido<br />
precisava obter no mínimo 5% dos votos totais para poder ganhar um mandato através<br />
do segundo voto na cédula de votação. A partir daí, o efeito de concentração almejado<br />
passou a funcionar: após as eleições de 1961, apenas três partidos tinham representação no<br />
Bundestag. Desde então e até as eleições de 2002, não mais que cinco partidos conseguiram<br />
mandatos simultâneos no Bundestag. Somente nas eleições de 2006, pela primeira vez, seis<br />
partidos romperiam essa barreira.<br />
Na República Federal da Alemanha, pode-se considerar que o objetivo da função de<br />
concentração, ou seja, o fomento de maiorias governamentais estáveis, encontra-se amplamente<br />
realizado. Ao longo de quase sessenta anos, houve apenas cinco composições governamentais<br />
diferentes com um número total de oito primeiros-ministros. 5 Decerto essa grande<br />
estabilidade também foi motivada pela prosperidade econômica de longo fôlego, pelo<br />
desenvolvimento de um sistema partidário com partidos abertos a coalizões, bem como por<br />
outras condicionantes favoráveis, tais como a pouca força de grupos de extrema esquerda e<br />
extrema direita na Alemanha, que tiveram de manter-se à margem. 6 Após o término da Segunda<br />
Guerra Mundial, um dos<br />
objetivos do debate<br />
constitucional ocorrido<br />
nos anos de 1948 e 1949<br />
era alcançar a formação<br />
de governos estáveis<br />
e democraticamente<br />
legitimados através da<br />
Constituição, promulgada<br />
no ano de 1949<br />
Mas a estabilidade cer-<br />
Revista Plenarium | 131
132 |<br />
Wilhelm Hofmeister<br />
tamente também deve ser atribuída a condições institucionais, principalmente à cláusula de<br />
barreira de 5%. Por meio dela, o sistema eleitoral alemão conseguiu um bom desempenho<br />
de sua função de concentração.<br />
Embora na Alemanha se teçam fortes críticas à cláusula de barreira, de maneira geral,<br />
ela acabou obtendo bons resultados. Graças a essa cláusula de exclusão,<br />
Embora na Alemanha se facilita-se a formação do governo. Ela não é tão elevada a ponto de im-<br />
teçam fortes críticas à possibilitar o êxito do estabelecimento de um novo partido, como bem<br />
cláusula de barreira, de mostram os exemplos dos partidos Bündnis 90/Die Grünen (Aliança 90/Os<br />
maneira geral, ela acabou Verdes) ou Linkspartei (Partido da Esquerda). Ao mesmo tempo, porém, a<br />
obtendo bons resultados. cláusula de barreira é suficientemente elevada de modo a impedir que pe-<br />
Graças a essa cláusula quenos partidos tenham acesso ao Bundestag. Seja como for, para partidos<br />
de exclusão, facilita-se a de pequeno porte, ela é visivelmente menos restritiva que, por exemplo, a<br />
formação do governo<br />
introdução da votação majoritária relativa, a qual também é, sem sombra<br />
de dúvidas, um procedimento absolutamente democrático.<br />
Sobretudo, a aplicação da cláusula de barreira em todo o território eleitoral alemão, da<br />
forma como foi introduzida em 1953, faz bastante sentido no tocante aos aspectos de eficiência<br />
e transparência, embora menos no que diz respeito ao aspecto da participação (uma<br />
parte dos eleitores perde sua participação nas decisões ao longo do processo de formação da<br />
vontade política). Afinal de contas, um parlamento federal é escolhido para todo o território<br />
nacional, no qual cláusulas de barreira regionalizadas não devem desempenhar nenhum<br />
papel importante. Nesse sentido, a eficiência se mostra em sua totalidade, e não se corre o<br />
risco de violação do sentido da cláusula de barreira (que é a exclusão de pequenos partidos<br />
da representação parlamentar). Além disso, uma regulamentação dessa natureza, que pode<br />
ser bem compreendida por qualquer indivíduo, permite que partidos com mais de 5% dos<br />
votos tenham uma representação equivalente a tal grandeza no Bundestag.<br />
Representação: a população é representada<br />
proporcionalmente no sistema eleitoral alemão?<br />
Discute-se a representação proporcional dos votos depositados pelos eleitores através<br />
da igualdade de valor numérico e da igualdade de valor quanto ao resultado. 7 Igualdade de<br />
valor numérico significa que, ao se fazer a apuração dos votos, cada voto tem o mesmo peso.<br />
Por outro lado, igualdade de valor quanto ao resultado significa que, ao se fazer a distribuição<br />
dos mandatos parlamentares, cada voto deve ser contemplado com eqüidade.<br />
Quando da apuração dos votos, a igualdade de valor numérico é um elemento óbvio<br />
nas democracias desenvolvidas, o que também ocorre na Alemanha. As chances formais<br />
de que os eleitores dispõem para a obtenção de resultados satisfatórios também são fundamentalmente<br />
iguais, tanto em função do tamanho dos distritos eleitorais, comparáveis no<br />
tocante ao número de habitantes das respectivas áreas, quanto da estrutura uniforme dos<br />
distritos uninominais para a eleição direta. Ressalte-se, porém, que a dimensão dos distritos<br />
eleitorais com um número visivelmente maior ou menor de habitantes poderá representar<br />
um desvio de até 15% para cima ou para baixo, em função do número médio de habitantes.
Por diversas vezes, o<br />
Tribunal Constitucional<br />
Federal Alemão já<br />
reiterou que a cláusula<br />
de barreira de 5%<br />
está em conformidade<br />
com a Constituição<br />
Federal Alemã, ou seja,<br />
é compatível com os<br />
princípios da democracia<br />
representativa<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Todavia, somente se fará mister a criação de novos distritos eleitorais se houver um desvio<br />
de 25%. Isso gera uma variação do valor numérico que é considerada muito reduzida em<br />
escala internacional. No Brasil, essa variação entre o número de habitantes e eleitores por<br />
mandato parlamentar é considerável e chegou em 2006 a tal extremo que no Estado de<br />
Roraima houve 8 mandatos para 232.814 eleitores, ou seja, uma média de 29.102 eleitores<br />
para cada mandato; já no Estado de São Paulo, com os seus 28.032.061 eleitores, foram 70<br />
mandatos, ou uma média de 400.458 eleitores por mandato!<br />
No que tange à igualdade de valor quanto ao resultado, existem, em primeira linha,<br />
condições favoráveis no sistema eleitoral proporcional, no qual são apurados os números de<br />
deputados dos partidos representados no Bundestag. Para tanto, concorrem principalmente<br />
a soma de votos dos partidos em nível federal e a distribuição dos mandatos, diretamente<br />
ligada à soma de votos dos partidos, segundo a fórmula eleitoral de Hare/Niemeyer. Como<br />
na Alemanha não existem distritos eleitorais com diferentes números de deputados eleitos,<br />
deixam de existir, entre os distritos eleitorais, as típicas disparidades de valor quanto aos<br />
resultados, ao se proceder à apuração dos votos.<br />
Observe-se, porém, que o sistema eleitoral alemão, no tocante aos votos depositados<br />
pelos eleitores, nem sempre apresenta uma igualdade inabalável de valores quanto ao resultado.<br />
Na apuração dos votos, a cláusula de barreira de 5% gera uma desigualdade de valor<br />
quanto ao resultado. Por meio dela, são vencidos os votos obtidos por partidos que não<br />
atinjam um número mínimo de votos equivalente a 5% do total ou no mínimo três mandatos<br />
diretos em todo o território federal. Além disso, ao verem que determinados partidos de<br />
pequeno porte representam um risco em virtude da cláusula de exclusão,<br />
os eleitores facilmente deixam de depositar seu voto em tais partidos. No<br />
sistema eleitoral alemão, esta posição desprivilegiada que os partidos de<br />
pequeno porte podem vir a ocupar de forma direta ou indireta é um elemento<br />
importante em favor da concentração partidária.<br />
Deve-se, portanto, confrontar essas desvantagens da cláusula de barreira<br />
com as vantagens representadas pela estabilidade de governo. Não<br />
apenas no campo do debate especializado, mas também, e sobretudo, na<br />
jurisdição do Tribunal Constitucional Federal Alemão, este é um aspecto<br />
muito valorizado. Por diversas vezes, o Tribunal Constitucional Federal<br />
Alemão já reiterou que a cláusula de barreira de 5% está em conformidade<br />
com a Constituição Federal Alemã, ou seja, é compatível com os princípios<br />
da democracia representativa.<br />
Participação: sobre o que o eleitor pode<br />
decidir no sistema eleitoral alemão?<br />
Via de regra, de acordo com os critérios de concentração partidária e de governabilidade,<br />
o balanço que se faz do sistema eleitoral alemão é positivo. Também se entende que, em<br />
relação ao critério da representatividade, esse balanço é aceitável. Por outro lado, tecem-se<br />
críticas aos critérios de eficiência, transparência e participação.<br />
Revista Plenarium | 133
134 |<br />
Wilhelm Hofmeister<br />
Critica-se, por exemplo, o fato de os eleitores na Alemanha, de modo geral, somente<br />
poderem optar por candidatos predeterminados pelos partidos. Isso concerne tanto aos candidatos<br />
distritais indicados pelos partidos quanto aos candidatos fixos das<br />
Sob essa ótica, as eleições legendas partidárias, que somente podem ser eleitos naquela composição e<br />
ao Bundestag não têm um naquela seqüência preestabelecidas. Essa restrição à participação do eleitor<br />
caráter competitivo, mas fica mais forte em relação aos grandes partidos: os candidatos ao Bundestag<br />
sim um caráter legitimador dos partidos CDU/CSU (União Democrata-Cristã/União Social-Cristã) e<br />
de decisões tomadas em SPD (Partido Social-Democrata) que sejam ocupantes das chamadas “po-<br />
outra instância<br />
sições garantidas na legenda” certamente entrarão no Bundestag, independentemente<br />
do resultado da eleição. Sob essa ótica, as eleições ao Bundestag<br />
não têm um caráter competitivo, mas sim um caráter legitimador de decisões tomadas em<br />
outra instância. Esse poder partidário torna-se bastante claro no caso de candidatos à eleição<br />
direta que não tenham obtido êxito nas urnas, mas que, apesar de derrotados em seu distrito<br />
eleitoral, obtêm um assento no parlamento através de uma posição “garantida” na legenda.<br />
Essa preponderância dos partidos sofre uma certa relativização apenas pelo fato de<br />
os eleitores poderem dar seu primeiro e seu segundo votos a diferentes partidos, o que na<br />
Alemanha é chamado de splitting. Se o fizerem objetivando uma distribuição estratégica de<br />
votos, isto acaba representando uma variante de participação estratégica bem específica.<br />
Clareza: o sistema eleitoral alemão é compreensível e transparente?<br />
Em especial devido às diversas relações entabuladas entre eleição proporcional voltada<br />
para as legendas e eleição majoritária personalizada, o<br />
sistema eleitoral vigente na Alemanha apresenta uma<br />
estrutura complexa e difícil de ser compreendida pelos<br />
eleitores, mesmo no que concerne aos aspectos<br />
básicos de sua organização. Por essa razão, antes de<br />
cada eleição, faz-se necessário lembrar aos eleitores o<br />
sentido da cédula com duas vias de votos e explicarlhes<br />
por que o segundo voto é considerado decisivo.<br />
Uma pessoa leiga não consegue entender facilmente<br />
as relações – passíveis de mudanças recíprocas – existentes<br />
entre a eleição majoritária em distritos uninominais<br />
e a eleição por legenda, como é o caso do<br />
eventual surgimento de mandatos excedentes. Nesse<br />
contexto, os resultados das urnas precisam ser<br />
aceitos pelos eleitores sem verificações ou precisam<br />
então ser explicados em seus pormenores<br />
por especialistas no assunto. Como<br />
um todo, pode-se afirmar que o sistema<br />
eleitoral alemão é complicado, pouco transparente<br />
e de difícil compreensão.
Legitimidade: o sistema eleitoral alemão é aceito?<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
Não raro, são apresentados à opinião pública dados sobre a participação<br />
dos eleitores nos pleitos, como indicadores da opinião vigente acerca do<br />
sistema eleitoral. Contudo, em virtude dos inúmeros e diversos fatores que<br />
exercem influência sobre a participação dos eleitores nos pleitos eleitorais,<br />
não fica claro até que ponto esses dados exprimem as mudanças de opinião<br />
em relação ao sistema eleitoral. Seja como for, pode-se supor que se dá um<br />
amplo apoio ao sistema político vigente e, conseqüentemente, ao sistema<br />
eleitoral praticado, quando há uma alta taxa de participação voluntária dos<br />
eleitores nos pleitos. Deste modo, o grau de participação dos eleitores nos pleitos para o<br />
Bundestag depõe em favor da aceitação do sistema político e, por conseguinte, do sistema<br />
eleitoral em vigência atualmente na República Federal da Alemanha. É surpreendente,<br />
porém, que pareça não haver pesquisas de opinião pública sobre o sistema eleitoral alemão.<br />
Se tomarmos como critério de legitimação do sistema eleitoral alemão as opiniões de<br />
especialistas da área, pode-se constatar que, no mainstream da pesquisa sobre o sistema eleitoral<br />
realizada por cientistas políticos e da Formação <strong>Política</strong>8 , a eleição majoritária personalizada<br />
é realmente considerada o modelo de combinação razoável de elementos de sistemas<br />
eleitorais. 9<br />
Antes de cada eleição,<br />
faz-se necessário lembrar<br />
aos eleitores o sentido<br />
da cédula com duas vias<br />
de votos e explicar-lhes<br />
por que o segundo voto é<br />
considerado decisivo<br />
Propostas de reforma do Direito Eleitoral<br />
A despeito do êxito geral obtido pelo sistema eleitoral alemão, há muitos anos vêm<br />
sendo debatidas propostas de mudanças do Direito Eleitoral alemão. Por um lado, tais debates<br />
vêm sendo realizados de forma bastante intensa e, por outro, também se restringem a<br />
sutilezas acadêmicas ou à defesa de dogmas do Direito Eleitoral. 10<br />
Desde sua introdução no ano de 1949, o Direito Eleitoral alemão não sofreu alterações<br />
em seus pontos fulcrais, embora tenha passado por várias modificações. Foram, muito mais,<br />
modificações de ordem técnica, como a renúncia à exposição dos catálogos de eleitores ou à<br />
utilização do envelope para cédulas eleitorais, no caso de o voto ser depositado no próprio<br />
local de votação. Outrossim, também houve modificações mais substanciais, tais como a<br />
ampliação da cláusula de barreira para todo o território federal e a abolição de eleições<br />
suplementares (1953), a introdução do voto pelo correio (1965) ou a mudança, ocorrida<br />
diversas vezes, do número de deputados do Bundestag 11 .<br />
Uma importante reforma foi a redução da idade eleitoral ativa de 21 para 18 anos no<br />
ano de 1970. Essa reforma foi antecedida por um intenso debate político e acadêmico, que<br />
também foi influenciado pelas agitações estudantis ocorridas na segunda metade dos anos<br />
60. No aspecto da participação, a redução da idade eleitoral foi uma decisão positiva. No<br />
entanto, os efeitos dessa medida se mantiveram restritos, já que a população com idade entre<br />
18 e 20 anos representa apenas uma pequena fração dos eleitores. Nas eleições de 2005<br />
para o Bundestag, foi apenas 3% de todos os eleitores.<br />
Revista Plenarium | 135
136 |<br />
Wilhelm Hofmeister<br />
Em 1985, deu-se a substituição do método de apuração matemática dos votos, que era<br />
feita de acordo com a fórmula eleitoral de d’Hondt, pelo método de Hare/Niemeyer, bem<br />
como a introdução do direito de voto para alemães residentes no estrangeiro 12 . Além disso,<br />
introduziu-se uma regulamentação segundo a qual o número de habitantes de um distrito<br />
eleitoral não pode apresentar um desvio maior que 15% em relação à média (valor anterior:<br />
25%). Desde as eleições de 2002 para o Bundestag, havendo um desvio superior a 25% (até<br />
então: 33,3%), uma redistribuição dos distritos eleitorais faz-se obrigatória.<br />
O sistema de dois votos<br />
A introdução do sistema de dois votos em 1953 foi uma das mudanças mais bem sucedidas<br />
do Direito Eleitoral alemão. Enquanto o único voto depositado pelo eleitor valia,<br />
na primeira eleição para o Bundestag, tanto para o candidato de seu distrito eleitoral quanto<br />
para o partido, o motivo da introdução do sistema de dois votos consistia essencialmente<br />
em possibilitar ajustes nos distritos eleitorais.<br />
Entretanto, o primeiro voto nunca desempenhou sua função de “voto personalizado”;<br />
afinal de contas, até os nossos dias, poucos são os eleitores que conhecem o nome do candidato<br />
de seu distrito eleitoral. Apesar disso, muitos eleitores recorrem ao método de splitting.<br />
Isto está diretamente ligado ao fato de os eleitores dos pequenos partidos, cujos candidatos<br />
não têm nenhuma chance de obter um mandato distrital, darem seu segundo voto ao candidato<br />
de um partido maior, com o qual “seu” partido quer fazer uma coalizão.<br />
Por este motivo, o juízo a ser feito sobre o sistema de dois votos, nos aspectos de eficiência,<br />
transparência e participação, é que este apresenta discrepâncias e mostra-<br />
Os pequenos partidos se sujeito a críticas. Sua eficiência é restrita, pois, através da eleição de um<br />
fazem uma propaganda candidato distrital, o candidato do outro grande partido normalmente acaba<br />
específica voltada para conseguindo entrar por meio da legenda. O sistema de dois votos produz<br />
a obtenção dos segundos principalmente um efeito cosmético. Conseqüentemente, trata-se de uma<br />
votos, a fim de não serem participação aparente. Ademais, esse sistema não permite transparência para<br />
excluídos através da um eleitor sobrecarregado. Alguns eleitores acham que fizeram um acordo,<br />
cláusula de barreira<br />
ao darem seu primeiro voto ao candidato do partido A e o segundo voto ao<br />
candidato do partido B.<br />
Os efeitos decorrentes do sistema de dois votos são controversos, sobretudo se levarmos<br />
em consideração que as discrepâncias entre o primeiro e o segundo voto não são de fácil<br />
interpretação. Por exemplo: no pleito de 2002, o Partido Verde (Die Grünen) obteve 8,6%<br />
dos segundos votos e 5,6% dos primeiros votos. Será que os “eleitores do segundo voto” do<br />
Partido Verde, que deram seu primeiro voto a um outro partido (59,7% ao SPD, conforme<br />
a estatística eleitoral representativa), seriam “eleitores de aluguel” de outros partidos (principalmente<br />
do SPD) ou seriam eleitores convictos do Partido Verde que simplesmente não<br />
queriam “jogar fora” seu primeiro voto? Do ponto de vista empírico, não é possível dar uma<br />
resposta bem fundamentada a essa pergunta. Os pequenos partidos fazem uma propaganda<br />
específica voltada para a obtenção dos segundos votos, a fim de não serem excluídos através<br />
da cláusula de barreira.
Propostas para reformas do Direito Eleitoral<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
É óbvio que sempre existem propostas para reformas<br />
do Direito Eleitoral. A título de exemplo, em 2003<br />
houve uma proposta de projeto de lei, sem grandes perspectivas<br />
de êxito, mas que assim mesmo contou com o<br />
apoio de 46 deputados do Bundestag, visando à introdução<br />
do direito de voto a partir do nascimento. Os pais deveriam<br />
então poder exercer por seus filhos, fiduciariamente, o direito<br />
de voto, até que estes atingissem a maioridade.<br />
Por outro lado, realizou-se um debate mais sério em<br />
torno do rebaixamento da idade eleitoral para dezesseis<br />
anos. É verdade que alguns Estados federados rebaixaram<br />
a idade eleitoral para dezesseis anos no caso de eleições<br />
municipais. Partidos menores defendem a introdução<br />
desta medida também para as eleições em nível federal,<br />
mas são apresentados argumentos fortes<br />
que impedem tal mudança.<br />
Deixando-se de lado o fato de jovens de<br />
dezesseis anos possuírem ou não suficiente<br />
maturidade política e capacidade de discernir, o<br />
principal argumento contra o direito de voto já aos dezesseis anos é que, através<br />
desta medida, far-se-ia uma cisão entre idade eleitoral e maioridade em geral. Afinal<br />
de contas, entre ambos os limites etários, existe uma forte dependência. Direitos e deveres<br />
andam de mãos dadas. Quase ninguém deseja – com justeza – reduzir o limite de maioridade<br />
para dezesseis anos. Desta maneira, o debate acerca do rebaixamento da idade eleitoral mostra-se<br />
apenas acadêmico. Quem concede o direito de voto a jovens de dezesseis anos, mas lhes<br />
nega a maioridade, desvaloriza o direito de voto concedido. Embora o rebaixamento da idade<br />
eleitoral para dezesseis anos fomentasse a participação, a desvinculação entre a idade eleitoral<br />
e a maioridade geraria um alto grau de intransparência que acabaria confundindo as mentes.<br />
Além do mais, diante da provável baixa quota de participação eleitoral desta faixa etária, este<br />
mecanismo mostraria pouca eficácia.<br />
Por diversas vezes, especialmente por parte dos pequenos partidos, ouvem-se vozes reivindicando<br />
a abolição da cláusula de barreira – seja por conjecturas baseadas em princípios, seja<br />
porque a República Federal da Alemanha desenvolveu-se como um país estável. Em todo caso,<br />
o efeito positivo da cláusula de barreira, a qual impede o esfacelamento partidário e motiva<br />
as maiorias parlamentares governamentais estáveis, acaba sendo alçado pelos políticos, pelos<br />
acadêmicos e também pelo Tribunal Constitucional Federal Alemão a um patamar mais elevado<br />
que as suas desvantagens, oriundas da perda daqueles votos depositados nas urnas pelos<br />
eleitores que optaram por aquele partido que não conseguiu entrada no parlamento.<br />
Por vezes, também se reivindica a supressão do sistema de dois votos, por contribuir para<br />
causar confusão na cabeça dos eleitores e por não desempenhar a função de personalização<br />
Revista Plenarium | 137
138 |<br />
Wilhelm Hofmeister<br />
almejada. Todavia, até o momento não foram apresentadas alternativas convincentes que eliminem<br />
as desvantagens do sistema atualmente vigente sem incitar o surgimento de desvantagens<br />
ou de elementos problemáticos de outra natureza. Por esse motivo, não se deve contar,<br />
em primeira instância, com uma mudança do sistema de dois votos vigente na Alemanha.<br />
Considerações finais<br />
O sistema eleitoral alemão não é perfeito, e possivelmente também não é possível criar<br />
um sistema eleitoral que consiga fazer jus, por igual, a todas as exigências de desempenho<br />
apresentadas neste texto. Não obstante, por meio deste sistema que foi introduzido, em suas<br />
feições básicas, em 1949, foi possível viabilizar e garantir democracia, governabilidade e<br />
estabilidade. Trata-se de um resultado digno de consideração. Last but not least, os desempenhos<br />
obtidos pelo sistema eleitoral alemão também poderão ser importantes para o debate<br />
em torno da reforma eleitoral brasileira.
Notas<br />
<strong>Reforma</strong> <strong>Política</strong><br />
1 Cf. Dieter Nohlen, Wahlrecht und Parteiensystem [Direito Eleitoral e Sistema Partidário], Opladen 2000, S. 157–159.<br />
2 Lei Eleitoral Federal (BWG), em sua versão de 23 de julho de 1993, última emenda em 11 de março de 2005: http://<br />
www.bundeswahlleiter.de/bundestagswahl2005/downloads/bwg_standmaerz05.pdf. Cf. também: Karl-Rudolf Korte:<br />
Wahlen in der Bundesrepublik Deutschland. Bonn 2005.<br />
3 Procedimento matemático segundo a fórmula eleitoral de Hare/Niemeyer, introduzida na República Federal da<br />
Alemanha através do art. 1°, n° 1, da 7ª Proposta de Emenda à Lei Eleitoral Federal no ano de 1985. De acordo com esta<br />
fórmula, as cadeiras do Bundestag são distribuídas conforme a proporção dos votos partidários em relação ao número<br />
total de votos válidos depositados nas urnas e ao número de votos a serem considerados. Cf. Wolfgang Schreiber,<br />
Handbuch des Wahlrechts zum Deutschen Bundestag, Köln 1998, p. 186–189.<br />
4 Cf. Ferdinand A. Hermens, Demokratie oder Anarchie? Untersuchung über die Verhältniswahl, Köln–Opladen 1968, p.<br />
161–239. Cf. também Wolfgang Hartenstein, Fünf Jahrzehnte Wahlen in der Bundesrepublik: Stabilität und Wandel, in:<br />
Aus Politik und Zeitgeschichte, B 21/2002, p. 39–46.<br />
5 Cf. Wolfgang Hartenstein, Fünf Jahrzehnte Wahlen in der Bundesrepublik: Stabilität und Wandel, in: Aus Politik und<br />
Zeitgeschichte, B 21/2002, p. 39–46.<br />
6 Explicações claras sobre o processo de concentração dos partidos, principalmente o ocorrido nos anos 50, podem<br />
ser encontradas, p. ex., na seguinte fonte: Bundeszentrale für politische Bildung (ed.), Informationen zur politischen<br />
Bildung 207: Parteiendemokratie, Bonn 1990, p. 19s.<br />
7 A respeito desse tema, cf. também Volker von Prittwitz: Vollständig personalisierte Verhältniswahl. Reformüberlegungen<br />
auf der Grundlage eines Leistungsvergleichs der Wahlsysteme Deutschlands und Finnlands, in Aus Politik und<br />
Zeitgeschichte B 52/2003, p. 12–20.<br />
8 Formação <strong>Política</strong> se refere à densa estrutura de educação política e cívica que existe na Alemanha, formada, entre<br />
outras, pela Central Federal de Formação <strong>Política</strong>, que publica livros e revistas sobre o tema e organiza seminários e<br />
outros eventos (www.bpb.de), pelas Centrais Estaduais de Formação <strong>Política</strong>, que em nível estadual oferecem atividades<br />
parecidas; pelas fundações políticas ligadas aos partidos políticos, pelas organizações da sociedade civil que organizam<br />
seminários e cursos para a sua clientela sobre uma grande variedade de temas (muitas dessas organizações recebem<br />
recursos federais, estatuais ou locais); e, não em último lugar, pelas escolas da Alemanha, públicas e privadas, que,<br />
a partir do 6° básico (alunos da idade de 12 anos) incluem aulas de “ciências sociais”, nas quais se discorre sobre<br />
uma grande variedade de temas e instituições políticas e sociais e, especificamente antes das eleições, também<br />
sobre os partidos políticos e o sistema eleitoral. Toda essa estrutura emprega pessoas que não necessariamente são<br />
pesquisadores, mas docentes e professores, muitos com formação em ciência política. Dentro desse grupo, que tem uma<br />
influência considerável na socialização dos alemães, o sistema eleitoral do país é bem avaliado.<br />
9 Cf. Nohlen, op. cit.; Wolfgang Rudzio, Das politische System der Bundesrepublik Deutschland, Opladen 2000; Hans-<br />
Dieter Klingemann/Bernhard Wessels, Political Consequences of Germany’s Mixed-Member System: Personalization at<br />
the Grass-Roots?, WZB FS III 99–205, Berlim 1999.<br />
10 Cf. Eckhard Jesse: Reformvorschläge zur Änderung des Wahlrechts, in: Aus Politik und Zeitgeschichte B 52/2003,<br />
p. 3–11.<br />
11 No ano de 1949, primeiramente eram 400 deputados; a partir de 1953 passaram para 484; a partir de 1957 (através<br />
da incorporação do Estado do Sarre), para 494; a partir de 1965, alcançou-se o número de 496 e, após a Unificação<br />
Alemã, o número de 656 deputados, que acabou sendo reduzido, em 1996, para 598, com vigência a partir das eleições<br />
realizadas em 2002.<br />
12 Todos os alemães residentes no estrangeiro somente têm direito ativo de voto se tiverem passado pelo menos três<br />
meses ininterruptos no território da República Federal da Alemanha.<br />
Revista Plenarium | 139
Itamaraty, 1979. Foto de Luis Humberto.
Olhar Externo<br />
• Brian Kerr<br />
O artigo 2º da Convenção Européia de Direitos Humanos<br />
e o dever de efetivamente investigar
142 |<br />
Brian Kerr*<br />
O artigo 2 o da Convenção Européia<br />
de Direitos Humanos e o dever<br />
de efetivamente investigar<br />
Introdução<br />
Encontra-se abaixo o texto de um ensaio que apresentei por ocasião da Conferência<br />
Inter-Regional sobre Sistemas de Justiça e Direitos Humanos do Conselho Britânico em<br />
Brasília, no mês de setembro de 2006. Esta introdução destina-se aos leitores da Revista<br />
Plenarium. Como se verá, a monografia concentra-se num aspecto particular do direito à<br />
vida previsto na Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.<br />
Esse diploma, elaborado em 1950, foi concebido por um conjunto de Estados<br />
como uma reação à Segunda Guerra Mundial e teve como principal ambição o estabelecimento<br />
de certos direitos e liberdades fundamentais, os quais, esperava-se, constituiriam um<br />
baluarte contra o totalitarismo no futuro.<br />
Os Estados envolvidos na promulgação da Convenção associaram-se num órgão conhecido<br />
como Conselho da Europa. Vários outros países juntaram-se ao Conselho desde<br />
sua criação, particularmente muitas das nações da Europa Oriental, em seguida ao desmantelamento<br />
do império soviético. Atualmente, a instituição conta com 45 países membros.<br />
O Conselho da Europa é distinto da União Européia, embora muitos comentadores os<br />
confundam. A União Européia, fundada pelo Tratado de Roma de 1956, tinha o propósito<br />
primordial de estabelecer a liberdade de movimento tanto de bens como de trabalhadores<br />
entre seus Estados-membros. Sua composição é hoje de 25 países.<br />
Embora o governo do Reino Unido tenha sido um dos principais arquitetos da Convenção<br />
Européia, os cidadãos britânicos não foram granjeados com acesso direto às suas<br />
disposições até recentemente. Já que o texto era, essencialmente, antes um tratado entre<br />
Estados soberanos que uma lei devidamente promulgada no âmbito do Reino Unido, jurisprudência<br />
pacífica proibia sua aplicação no direito interno. Tudo isso mudou em 1988 com<br />
a promulgação do Human Rights Act, que tornou a Convenção diretamente aplicável nos<br />
tribunais do Reino Unido depois de sua entrada em vigor, em 2 de outubro de 2000.<br />
*Sir Brian Kerr é Lorde Presidente do Tribunal de Justiça da Irlanda do Norte. Palestra proferida na Conferência Inter-<br />
Regional sobre Sistemas de Justiça e Direitos Humanos, Conselho Britânico, Brasília, 18 a 20 de setembro de 2006.<br />
Publicação autorizada pelo autor. Tradução de Newton Tavares Filho, consultor legislativo da Câmara dos Deputados,<br />
LLM, Georgetown University.
Olhar Externo<br />
Revista Plenarium<br />
| 143
144 |<br />
Brian Kerr<br />
A incorporação da Convenção ao direito interno – chamada também sua “nacionalização”<br />
– trouxe uma mudança significativa à ordem constitucional. Como é sabido, o Reino<br />
Unido não possuía uma Constituição escrita em nenhum sentido convencional. O parlamento<br />
era soberano e a validade da legislação promulgada era imune a qualquer questionamento<br />
legal. Hoje, qualquer lei editada pelo parlamento deve ser compatí-<br />
Não importa a forma vel com os direitos fundamentais inscritos na Convenção. O Human Rights<br />
que assuma, a violência Act busca atingir esse objetivo por dois meios principais. Primeiramente,<br />
pode ser, como sugerem ordena-se aos tribunais interpretar e dar eficácia à legislação primária e<br />
alguns cientistas, um subordinada de modo compatível com os direitos assegurados na Conven-<br />
perpétuo atributo da ção, no maior grau possível. Em segundo lugar, onde não é possível inter-<br />
condição humana<br />
pretar desse modo a legislação, os tribunais superiores podem declarar que<br />
uma particular disposição legal submetida ao seu escrutínio é incompatível<br />
com a Convenção. Nesse caso, o governo deverá promover a mudança da lei.<br />
A Convenção compreende uma série de direitos, alguns dos quais (como o direito à<br />
vida e a proibição de tortura) são formulados em termos absolutos. Outros, como o direito<br />
ao respeito à vida privada e à liberdade de expressão, são qualificados. A interferência com<br />
estes últimos somente será aceitável quando necessária numa sociedade democrática, na forma<br />
prescrita em lei e de modo não mais que o indispensável para atingir o fim pretendido.<br />
A Corte Européia dos Direitos Humanos desenvolveu jurisprudência sobre a Convenção<br />
que reconhece certas salvaguardas procedimentais subjacentes, por vezes chamados de<br />
direitos adjetivos. Assim, por exemplo, o direito à vida é garantido e salvaguardado pela<br />
obrigação positiva imposta aos Estados de investigar mortes controversas. É esse dever que<br />
será o objeto do meu ensaio.<br />
O art. 2º da Convenção Européia de Direitos<br />
Humanos e o dever de investigar<br />
É verdadeiramente um prazer para mim estar em Brasília por ocasião desta importante<br />
conferência. Eu ouvi com grande interesse e admiração as palestras feitas ontem à noite e<br />
esta manhã. Como juiz que busca aplicar os princípios e a legislação dos direitos humanos<br />
virtualmente a cada dia, encantou-me e gratificou-me que muitos palestrantes se concentraram<br />
em exemplos práticos, em várias jurisdições, da abordagem jurídica de problemas de<br />
direitos humanos em todo o mundo. Fui particularmente impressionado e instruído pelos<br />
exemplos trazidos pelos oradores da África do Sul e da Índia nas sessões plenárias desta<br />
manhã. A discussão acadêmica é evidentemente essencial, sendo com freqüência o motor<br />
de mudanças práticas e avanços na legislação, mas não percamos de vista o nosso objetivo<br />
maior – ou ao menos o que eu creio deva ser nosso fim último –, o de fazer propostas<br />
práticas e realistas que trarão mudanças para as vidas das pessoas e melhoras no estado dos<br />
direitos humanos nas sociedades que representamos. Minha apresentação aos senhores hoje<br />
tratará marcadamente – mas não com aridez, espero – do prático. Pretendo discutir uma<br />
área estrita, mesmo limitada, do Direito. Faço-o não apenas porque essa área me é familiar,<br />
nem apenas porque, a despeito de suas limitações, essa tem tido considerável importância
Olhar Externo<br />
na sociedade à qual pertenço, mas principalmente porque, de meu ponto de vista, ela fornece<br />
um exemplo prático e concreto de como a aplicação das normas e princípios de direitos<br />
humanos pode produzir uma mudança real e tangível na vida das pessoas.<br />
Antes de começar, permitam-me dizer algo sobre o tema da conferência Protegendo<br />
Direitos e Prestando Justiça. Esse é para mim um assunto de perene interesse, graças precisamente<br />
à sua grande importância em nosso mundo contemporâneo. O tema em discussão<br />
nesta tarde, violência e direitos humanos, é não menos relevante e significativo. Violência,<br />
em qualquer de suas manifestações – seja ela impessoal, inspirada no terrorismo ou patrocinada<br />
pelo Estado, quer ocorra dentro das famílias ou seja infligida aleatoriamente em<br />
nossas ruas –, não importa a forma que assuma, a violência pode ser, como sugerem alguns<br />
cientistas, um perpétuo atributo da condição humana. Mas, se assim é, ela deveria servir<br />
meramente para nos fortalecer em nossa determinação de apoiar os direitos humanos, que<br />
buscam combatê-la, e de defender a dignidade do indivíduo e sua liberdade contra agressões,<br />
não importa de onde provenham.<br />
O tema que escolhi para falar nesta tarde é, como já disse, algo restrito mas, por razões<br />
que vou abordar no momento, tem sido de uma importância substancial na história<br />
política e jurídica recente da Irlanda do Norte. O assunto é o art. 2º da Convenção para<br />
Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. De fato, pretendo falar<br />
principalmente sobre apenas um aspecto desse dispositivo, o dever de investigar mortes<br />
controversas.<br />
O sistema constitucional da Irlanda do Norte<br />
Antes de iniciar, contudo, um pouco de contexto. Muitos dos senhores já conhecem a<br />
ordem constitucional dos vários componentes do Reino Unido, mas, para aqueles que com<br />
ela têm menos familiaridade, deixe-me começar dizendo algo sobre a experiência constitucional<br />
de meu país. A Irlanda do Norte é uma das três jurisdições que compõem o Reino Unido<br />
– Inglaterra e País de Gales (que têm um único sistema legal) são uma, Escócia é outra, e<br />
Irlanda do Norte, a terceira. Embora possuamos um sistema de governo centralizado, com<br />
limitada atribuição de competências legislativas a cada região, esses três sistemas são completamente<br />
separados. Recursos contra decisões judiciais em cada uma dessas jurisdições são dirigidos<br />
ao comitê recursal na Câmara dos Lordes em Londres – que deverá ser transformada<br />
em Suprema Corte para todo o Reino Unido. Esse tribunal aplicará a legislação da Irlanda do<br />
Norte, Escócia, Inglaterra e Gales, dependendo da origem da causa a ele submetida.<br />
Como Lady Ministra Hallett nos lembrou esta manhã, o Reino Unido é um dos poucos<br />
países sem uma Constituição escrita em um único documento. Na última década, o país tem<br />
atravessado uma pequena reordenação constitucional. No âmbito legislativo, o parlamento<br />
britânico em Westminster, Londres, devolveu o que já descrevi como limitado, mas não<br />
obstante significativo, poder aos parlamentos e assembléias na Escócia, em Gales e na Irlanda<br />
do Norte. Nesta última, essa devolução está vinculada ao que chamamos de processo de pacificação.<br />
Buscamos emergir de trinta anos de conflitos internos e, é desnecessário dizer, isso<br />
apresenta desafios à nossa sociedade e particularmente aos nossos políticos e juízes.<br />
Revista Plenarium | 145
146 |<br />
Brian Kerr<br />
A ausência de uma Constituição escrita tem sido defendida por muitos comentadores.<br />
Na opinião de gerações precedentes de constitucionalistas britânicos, a mais eficaz salvaguarda<br />
dos direitos humanos não é uma garantia de papel, mas o exercício benevolente da<br />
discricionariedade administrativa, o senso de justiça dos servidores públicos e ministros e a<br />
supervisão vigilante do parlamento. 1 O Human Rights Act, que entrou em vigor em 2000<br />
e sobre o qual os senhores ouviram Lady Ministra Hallett discorrer esta manhã, marcou<br />
uma mudança em direção ao pensamento centrado nos direitos (rights-based thinking), dando<br />
às nossas cortes novos poderes para responsabilizar o Estado por violações de direitos<br />
humanos. Esse diploma impõe novos deveres aos tribunais para observar a jurisprudência<br />
da Corte Européia de Direitos Humanos, enquanto esta decide causas e desenvolve nosso<br />
direito local, 2 e para interpretar a legislação de acordo com seu texto. 3 À luz da avaliação<br />
abrangente – para não dizer magistral – de Lady Ministra Hallett do impacto dessa legislação<br />
fundamental, é desnecessário que eu fale mais sobre o assunto.<br />
Pode-se dizer que a falta de uma Constituição escrita forneceu aos juízes pouca experiência<br />
com o raciocínio indutivo e finalístico usado nos instrumentos internacionais de<br />
direitos humanos. Não estou certo de que esta assertiva seja inteiramente correta, visto que,<br />
é claro, já tomamos em conta tais normas antes do ano 2000. Não há dúvida, entretanto, de<br />
que o Human Rights Act tornou ainda mais urgente considerarmos essa legislação ao fazer<br />
dos direitos expressos na Convenção parte de nosso direito interno, e essa nova configuração<br />
apresentou desafios e oportunidades estimulantes aos juízes desde a promulgação daquele<br />
ato. Agora, a discussão de uma causa perante a Corte de Apelação terá questões de direitos<br />
humanos entrelaçadas aos argumentos pelo advogado. Estas são parte integrante do caso,<br />
não apenas algo incidental ou reflexão posterior.<br />
“Trazendo os direitos para casa”<br />
Ao falar da Convenção Européia de Direitos Humanos, é preciso ter em mente ser esta<br />
uma norma regional e serem técnicas muitas das mudanças por ela promovidas em nosso<br />
direito interno e, como tal, não diretamente relevantes para muitos dos senhores. Mas, é<br />
claro, a jurisprudência gerada por diferentes tratados de direitos humanos retira seu apoio do<br />
desenvolvimento de outros instrumentos internacionais, e espero que, por essa razão, o que<br />
tenho a dizer seja de interesse.<br />
Para além de sua importância na ordem política e jurídica da Irlanda do Norte, penso<br />
que o dever de investigar previsto no art. 2º da Convenção provê um exemplo marcante de<br />
como as palavras desse instrumento vivo foram interpretadas e expandidas pela Corte que<br />
o aplica (a Corte Européia de Direitos Humanos), e de como essa interpretação por sua vez<br />
tem sido considerada e aplicada por tribunais nacionais (assim como pelo governo do Reino<br />
Unido) em situações muito práticas e concretas.
O texto da Convenção<br />
Olhar Externo<br />
O art. 2º da Convenção Européia é o primeiro direito substantivo expresso. Dispõe ele que:<br />
1. O direito de qualquer pessoa à vida é protegido pela lei. Ninguém poderá ser intencional-<br />
mente privado da vida, salvo em execução de uma sentença capital pronunciada por um<br />
tribunal, no caso de o crime ser punido com esta pena pela lei.<br />
2. Não haverá violação do presente artigo quando a morte resulte de recurso à força, tornado<br />
absolutamente necessário:<br />
a) para assegurar a defesa de qualquer pessoa contra uma violência ilegal;<br />
b) para efetuar uma detenção legal ou para impedir a evasão de uma pessoa detida<br />
legalmente;<br />
c) para reprimir, em conformidade com a lei, uma revolta ou uma insurreição.<br />
Essa foi, de modo direto, uma determinação ao Estado para que se abstenha de tirar<br />
a vida de pessoas dentro de suas fronteiras, e isso certamente deve ter sido o valor capital<br />
na mente dos idealizadores da Convenção no final da Segunda Guerra Mundial, com seu<br />
horrível genocídio e perda de vidas. Mas a Corte Européia tem uma<br />
abordagem dinâmica e evolutiva da Convenção, a qual descreve como<br />
um instrumento vivo. 4 Isso a levou a desenvolver o direito à vida em<br />
dois novos e importantes modos.<br />
A interpretação do art. 2º pela Corte Européia<br />
A primeira expansão da obrigação do art. 2º foi a interpretação<br />
segundo a qual os Estados têm o dever positivo de proteger o direito à<br />
vida. No caso Osman v. UK 5 , um professor com distúrbios mentais tornou-se<br />
obcecado por um aluno, molestando-o durante um certo tempo.<br />
O molestamento culminou na morte a tiros do pai pelo professor,<br />
que também feriu o garoto. A Corte decidiu que o Estado tem o dever<br />
de proteger um indivíduo identificado quando tem conhecimento de<br />
um risco real e imediato à vida dessa pessoa, causado por atos criminosos de um terceiro. No<br />
caso em questão, decidiu-se que, embora a polícia soubesse da situação, não podia ter antecipado<br />
o nível de violência usado finalmente – esta não estava a par de uma ameaça “real e<br />
imediata” e, desse modo, não agiu em violação dos deveres impostos pelo art. 2º.<br />
A segunda expansão é a imposição de uma obrigação adjetiva, procedimental, de investigar<br />
mortes onde possivelmente tenha havido uma violação da obrigação substantiva.<br />
Essa obrigação adjetiva foi articulada pela primeira vez pela Corte Européia de Direitos<br />
Humanos numa causa da Irlanda do Norte, McCann v. United Kingdom. 6 Ali, alegou-se que<br />
agentes do Estado tinham deliberadamente matado suspeitos de serem membros do IRA<br />
no curso do que foi descrito como uma operação antiterrorismo. A Corte interpretou o art.<br />
Revista Plenarium | 147
148 |<br />
Brian Kerr<br />
2º em conjunto com o dever geral do Estado, imposto pelo art. 1º, de garantir “a qualquer<br />
pessoa dependente da sua jurisdição os direitos e liberdades definidos no título I da presente<br />
Convenção”. Concluiu que, por conseguinte, deveria existir alguma forma efetiva de investigação<br />
oficial quando indivíduos tenham sido mortos em conseqüência do uso da força,<br />
entre outros, por agentes estatais. 7 Essas obrigações procedimentais subjazem ao direito à<br />
vida e são necessárias para assegurar-lhe a defesa integral.<br />
Seguindo McCann, os elementos procedimentais do dever estatal decorrentes do art. 2º<br />
foram desenvolvidos pela Corte Européia de Direitos Humanos durante a década passada<br />
em uma série de casos, alguns dos quais também provieram da Irlanda do Norte. Gostaria<br />
de concentrar-me no mais significativo, Jordan v. United Kingdom 8 , também relacionado a<br />
um suspeito de integrar o IRA morto por membros das forças de segurança.<br />
Jordan e o conteúdo do dever de investigar<br />
A Corte usou Jordan para determinar qual deveria ser o conteúdo da investigação,<br />
dizendo, primeiramente, que esta deveria ser efetiva (jurisprudência subseqüente, européia<br />
e doméstica, perscrutou diferentes aspectos do significado de efetividade, em diferentes<br />
situações). Segundo, o propósito da investigação seria a efetiva implementação das leis domésticas<br />
que protegem a vida. Em outras palavras, essas salvaguardas procedimentais deveriam<br />
existir para que o direito substantivo, principal, não fosse diluído ou comprometido.<br />
Finalmente, um inquérito não é necessariamente o único meio pelo qual uma investigação<br />
das circunstâncias de uma morte poderia ser conduzida. Esses foram os principais elementos<br />
do conteúdo do dever de investigar mortes sob o art. 2º. A Corte então delineou detalhes<br />
adicionais do referido inquérito, que podem assim ser resumidos:<br />
A investigação deve ser conduzida por um investigador independente e ser capaz de<br />
determinar se o uso da força foi ou não justificado, assim como levar à identificação e punição<br />
dos responsáveis. Deve também ser pronta e razoavelmente expedita, como também<br />
conduzida sob suficiente escrutínio público para assegurar a prestação de contas e a responsabilidade<br />
dos envolvidos. Deve por fim integrar suficientemente um parente próximo, de<br />
modo a proteger seus interesses legítimos.<br />
A investigação examinada em Jordan foi um inquérito judicial. Não houve nenhuma ação<br />
penal ligada à morte. Na Irlanda do Norte, a Coroner’s Court é o órgão que permite o registro<br />
das mortes a ela declaradas. Um inquérito judicial é o processo de investigação que permite ao<br />
magistrado dessa corte e ao júri determinar a identidade do morto e a causa da morte, quando<br />
necessário, sem no entanto constituir um método de atribuição de culpa. Por ocasião do caso<br />
Jordan, o Coroner não pôde estender o inquérito para investigar as circunstâncias mais amplas<br />
da morte. A Corte Européia de Direitos Humanos considerou então que o inquérito judicial na<br />
Irlanda do Norte não cumpria os requisitos de uma “investigação efetiva” de vários modos:<br />
• faltou independência na investigação inicial da polícia;<br />
• o policial que atirou na vítima não pôde ser conduzido como testemunha – ele não<br />
podia ser chamado para prestar depoimento;
Olhar Externo<br />
• o Coroner não pôde investigar, tampouco o júri dar um veredito que assegurasse uma<br />
persecução criminal efetiva em juízo – eles podiam apenas relatar os meios pelos quais<br />
ocorreu a morte, não as circunstâncias mais abrangentes;<br />
• por uma série de razões, o inquérito não foi iniciado de imediato;<br />
• a falta de assistência jurídica e de divulgação de certos documentos significou que os<br />
parentes da vítima não puderam participar adequadamente do inquérito;<br />
• não houve ligação entre o inquérito e qualquer dever do Director of Public Prosecutions 9<br />
de reconsiderar sua decisão de não processar qualquer pessoa pela morte. O DPP não<br />
tinha o dever de fundamentar essa decisão. 10<br />
A Corte criticou em particular três elementos do inquérito: a impossibilidade de conduzir<br />
coativamente testemunhas, o fato de que o Coroner teve de restringir sua investigação<br />
às causas diretas da morte, sem poder estendê-la às circunstâncias mais gerais, e o tipo de<br />
veredito que o júri num caso semelhante pode dar. Nesse caso, a Corte entendeu que o<br />
inquérito judicial “não pôde ser efetivo na identificação ou persecução de quaisquer crimes<br />
que pudessem ter ocorrido e, nesse particular, deixa de cumprir os requisitos do art. 2º”. 11<br />
Jordan e os tribunais da Irlanda do Norte<br />
Após a decisão da Corte Européia, a família Jordan intentou numerosas ações que nos<br />
deram, aos tribunais da Irlanda do Norte, a oportunidade de considerar diferentes aspectos<br />
do que seria uma investigação conforme os termos do art. 2º. Eu decidi alguns desses feitos<br />
como então juiz de primeiro grau competente. O caso Jordan levantou uma série de questões<br />
legais complexas que são importantes para os advogados da Irlanda do Norte e do Reino<br />
Unido. Por exemplo, decidiu-se sobre se o Human Rights Act é retroativo, embora essa<br />
questão ainda esteja sendo discutida. Mas não gostaria de me concentrar nesses aspectos.<br />
A coisa realmente importante nesse caso é o impacto da Convenção – no sentido de que a<br />
Corte estava examinando, na verdade questionando, nossas práticas locais de investigação<br />
de mortes e assegurando-se de que essas tornavam o art. 2º real em nosso contexto.<br />
Algumas das questões levantadas foram abordadas de forma proativa pelo governo. Por<br />
exemplo, a disposição legislativa que não permitia a condução coercitiva dos responsáveis<br />
pela morte foi alterada, e o Director of Public Prosecutions voluntariamente reconsiderou sua<br />
decisão de não processar após o inquérito, passando também a dar as razões de seu convencimento<br />
caso pretenda iniciar ou não uma ação penal. Entretanto, a questão-chave sobre se o<br />
Coroner e seu júri poderiam – e deveriam – investigar as circunstâncias mais abrangentes da<br />
morte, ou meramente sua causa, foi decidida tanto na primeira como na segunda instância.<br />
O Tribunal de Apelação confirmou minha decisão de que, para tornar a investigação<br />
efetiva, o júri não tinha poderes específicos para dar o veredito de homicídio, pretendido<br />
pela família Jordan. Os poderes já existentes da Coroner´s Court poderiam ser interpretados<br />
em consonância com os direitos da Convenção lendo-se a frase de maneira mais ampla para<br />
incluir as circunstâncias do crime bem como a causa da morte. Para ser efetiva, a investiga-<br />
Revista Plenarium | 149
150 |<br />
Brian Kerr<br />
ção deveria poder determinar fatos capazes de conduzir a uma ação penal. Não era crítico,<br />
entretanto, que esse procedimento tivesse de tomar uma forma determinada.<br />
O propósito das ações domésticas em Jordan foi o de estabelecer, por meio dos tribunais,<br />
a natureza e o fim dos direitos adjetivos delineados pela Corte Européia de Direitos Humanos<br />
em McCann e Jordan. Ficou claro ser importante, num inquérito para investigar uma morte<br />
causada por agentes estatais (e, na Irlanda do Norte, essa investigação deve ser conduzida<br />
também pelo ombudsman da polícia, por um inquérito público ou no curso de uma ação<br />
penal), que este deve ser um mecanismo efetivo à disposição para avaliar a legalidade da força<br />
empregada, e, se necessário, para garantir a persecução criminal que viria a determinar a culpa<br />
de qualquer indivíduo responsável pela morte. Jordan, com efeito, conduziu às mudanças reais<br />
que tornaram nosso sistema legal mais capaz de realizar esse objetivo. Em conseqüência das<br />
decisões da Corte e de suas repercussões em nossos tribunais domésticos, não seria exagero<br />
dizer que o modo pelo qual mortes sujeitas ao art. 2º serão investigadas foi revolucionado.<br />
A jurisprudência após Jordan<br />
A amplitude da aplicação das garantias procedimentais do art. 2º conforme a Corte já<br />
foi explorada em muitos casos nos tribunais domésticos. Não tenho tempo de abordá-los<br />
em detalhe, mas gostaria de mencionar brevemente dois casos perante a Câmara dos Lordes<br />
da Inglaterra que envolveram mortes em prisões. O primeiro, Amin, 12 versava sobre a falha<br />
de uma prisão em proteger um detento contra um colega de cela violento e racista. O segundo,<br />
Middleton, 13 foi o suicídio de um preso. Em ambos os casos, em que o Estado não<br />
protegeu os direitos das vítimas à vida contra uma ameaça externa, a Câmara dos Lordes<br />
decidiu que os requisitos de Jordan eram aplicáveis.<br />
A Câmara dos Lordes enfatizou também que, enquanto a natureza do inquérito pode<br />
variar de caso a caso, pode ser tão importante ter um inquérito efetivo se a morte resulta de<br />
negligência sistemática da autoridade no que toca ao cuidado da vítima (o serviço prisional,<br />
na hipótese), quanto quando a morte é causada por um agente estatal.<br />
Tratados de direitos humanos como instrumentos vivos<br />
No tempo disponível, fui capaz apenas de tocar a superfície dos desenvolvimentos no<br />
direito irlandês trazidos pela evolução interpretativa do direito à vida previsto na Convenção<br />
Européia. No início, afirmei que esperava demonstrar como um instrumento internacional<br />
de direitos humanos, tratado como um texto vivo, pode ser interpretado por um tribunal<br />
internacional e aplicado (de modo criativo e na prática) pelos tribunais domésticos para tornar<br />
esses direitos aplicáveis em uma realidade concreta, para indivíduos que habitam aquela<br />
jurisdição. Espero que esse breve olhar sobre o modo pelo qual as cortes irlandesas, e em todo<br />
o Reino Unido, tentaram aplicar os direitos adjetivos do art. 2º, de modo ao mesmo tempo<br />
realista e embasado na Convenção, demonstre uma maneira de os tribunais “trazerem os<br />
direitos para casa” – nacionalizá-los de forma a fazê-los parte integral do nosso direito.
Notas<br />
Olhar Externo<br />
A afirmação, freqüentemente repetida nesta e em virtualmente todas as conferências<br />
a que compareci, de que o intercâmbio de idéias e a fertilização recíproca gerada pelos<br />
relatos de nossas experiências pode somente enriquecer a aplicação de princípios legais em<br />
discussão dispensa endosso ou ênfase suplementar. Não tenho dúvidas de que deixarei esta<br />
conferência com novas perspectivas sobre a aplicação da legislação e dos princípios de direitos<br />
humanos para o exercício de minha função judicial. Espero que este breve resumo<br />
de um pequeno tópico dos desenvolvimentos legais provocados pelo art. 2º da Convenção<br />
Européia dos Direitos Humanos tenha modesta ressonância em suas reflexões nessa área<br />
fundamentalmente importante.<br />
1 Lester and Pannick, Human Rights Law and Practice (Butterworths, 2004), par. 1.06.<br />
2 Human Rights Act 1998, s. 2.<br />
3 Human Rights Act 1998, s. 3.<br />
4 Tyrer v. UK (1978) 2 EHRR 1.<br />
5 Osman v. United Kingdom [1998] 29 EHRR 245.<br />
6 (1996) 21 EGRR 97 § 161.<br />
7 Resumi essa afirmação a partir de uma passagem em R (Middleton) v. HM Coroner for West Sommerset; R (Amin) v.<br />
Secretary of State for the Home Department [2002] EWCA Civ 390.<br />
8 (2003) 37 EHRR 52.<br />
9 Responsável pela persecução criminal em juízo, promotor da ação penal (n. do t.).<br />
10 Resumido a partir de Girvan J, In the matter of an application by Hugh Jordan for judicial review [2004] NICA 29(2), § 2º.<br />
11 Jordan, § 130.<br />
12 [2003] UKHL 51.<br />
13 [2004] UKHL 10.<br />
Revista Plenarium | 151
Balcão do cafezinho, Itamaraty, 1976. Foto de Luis Humberto.
Balanço da 52 a Legislatura<br />
• Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
Para um balanço da 52 a legislatura
154 |<br />
Fátima Anastasia*, Magna Inácio** e Carlos Ranulfo Melo***<br />
Para um balanço da 52 a legislatura 1<br />
I) Introdução<br />
No segundo turno do pleito de 2002, Luis Inácio Lula da Silva foi eleito presidente<br />
do Brasil, com 52.793.364 votos. Seu partido, o PT, saiu das urnas de 2002 como a maior<br />
agremiação da Câmara dos Deputados, tendo conquistado 91 das 513 cadeiras (17,7%).<br />
No Senado Federal, o PT ocupou, a partir de 2003, 14 das 81 cadeiras (17,3%), posicionando-se<br />
como a terceira maior bancada da Câmara Alta, precedida apenas pelo PMDB e<br />
pelo PFL, com 19 cadeiras cada um.<br />
A vitória de Lula e do PT, na disputa de 2002, significou, sem sombra de dúvidas, a<br />
estruturação de um novo contexto político para a (re)discussão das questões relacionadas à<br />
*Fátima Anastasia, Doutora em Ciência <strong>Política</strong> pelo IUPERJ, professora adjunta do Departamento de Ciência <strong>Política</strong> da<br />
UFMG e diretora do Centro de Estudos Legislativo (UFMG).<br />
**Carlos Ranulfo Félix de Melo, Doutor em Ciências Humanas pela UFMG, professor adjunto do Departamento de Ciência<br />
<strong>Política</strong> da UFMG e vice-diretor do Centro de Estudos Legislativos (UFMG).<br />
***Magna Inácio, Doutora em Ciências Humanas pela UFMG, professora adjunta do Departamento de Ciência <strong>Política</strong> da<br />
UFMG e pesquisadora do Centro de Estudos Legislativos (UFMG).
Balanço da 52 a Legislatura<br />
governabilidade, à accountability e à representatividade e sinalizou na direção da reorientação<br />
das políticas públicas no país.<br />
Ademais 2 , tal vitória atestou que a política brasileira transitou com sucesso para o universo<br />
de um sistema representativo poliárquico 3 (Santos, 1998), tendo realizado cabalmente o princípio<br />
de igualdade política em todos os quesitos, inclusive naquele referido à elegibilidade.<br />
Por outro lado, a eleição de Lula e do PT, em 2002, expressou o desejo de reorientação<br />
do uso do princípio de autoridade: ficou patente que a sociedade brasileira compareceu às<br />
urnas e nelas depositou seu voto a favor de uma alocação diferente dos recursos que o Estado<br />
arrecada dos contribuintes (Przeworski, 1995). Vale, ainda, ressaltar que foi a institucionalização<br />
dos procedimentos democráticos que permitiu alterar a composição da coalizão<br />
governante e sinalizar na direção de mudanças na substância da política pública.<br />
Transcorridos quatro anos, e depois de realizadas as eleições de 2006, que conferiram<br />
novo mandato presidencial a Lula, cabe investigar se a nova correlação de forças que se organizou<br />
no Congresso e fora dele, na 52ª legislatura, constituiu-se, efetivamente, em uma<br />
coalizão dotada de preferências e de recursos suficientes para o cumprimento das agendas<br />
procedimental e substantiva sinalizadas durante a campanha eleitoral de 2002.<br />
O objetivo deste artigo é realizar uma avaliação da 52ª legislatura (2003/2007) da<br />
Câmara dos Deputados. A legislatura chama a atenção: a) por ser a primeira, no período<br />
pós-88, a transcorrer sob um governo de esquerda; b) por registrar, no seu segundo biênio,<br />
uma forte crise no interior da coalizão governista; e c) pela sucessão de escândalos de ampla<br />
repercussão, envolvendo membros dos poderes Executivo e Legislativo.<br />
À luz da definição procedimental de democracia, propõe-se examinar as ações, as omissões<br />
e os padrões de interação desenvolvidos entre os principais atores políticos da democracia<br />
– cidadãos, líderes de coalizão e legisladores (Arnold, 1990) – e seus impactos no que se<br />
refere aos três atributos centrais da ordem democrática, a saber: estabilidade, accountability<br />
e representatividade.<br />
O texto está organizado da seguinte forma: em primeiro lugar será descrito e analisado<br />
o contexto político mais amplo no qual se insere a legislatura sob exame. Após, serão examinadas<br />
a formação e a dinâmica das coalizões governista e oposicionista, com ênfase na análise<br />
das estratégias desenvolvidas por ambos os lados, inclusive no que se refere à disputa pela<br />
Presidência da Casa e ao comportamento dos partidos e dos deputados individualmente. O<br />
processo e a produção legislativa serão objetos da próxima seção, onde se discutem a dinâmica<br />
do processo decisório e seus impactos sobre a produção legal durante a 52ª legislatura.<br />
A seção seguinte abordará os temas da fiscalização e do controle do Poder Executivo, bem<br />
como o do controle interno. Finalmente, será apresentado um rápido balanço da legislatura<br />
no que se refere aos três atributos desejáveis da democracia – estabilidade, representatividade<br />
e accountability – e apresentadas algumas sugestões de reforma. Sempre que possível, a<br />
análise da legislatura 2003-2007 será feita tendo como pano de fundo as demais legislaturas<br />
do período compreendido entre 1990 e 2006 com vistas a apontar semelhanças e diferenças<br />
entre as diversas legislaturas pós-Constituição de 1988.<br />
Revista Plenarium | 155
156 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
II) A legislatura e seu contexto<br />
Além da alternância no poder para a Presidência da República, as eleições de 2002 trouxeram<br />
outras novidades ao cenário político brasileiro. Os quatro maiores partidos da coalizão<br />
de Fernando Henrique (PSDB, PFL, PMDB e PP) perderam 69 cadeiras, o que equivale<br />
a 13,5% da Câmara. Para os peemedebistas foi apenas mais do mesmo – o partido vinha<br />
perdendo cadeiras desde 1990 – mas para os tucanos o resultado significou uma reversão da<br />
curva de crescimento observada para o mesmo período. PFL e PP mantiveram sua trajetória<br />
oscilante. Quase metade dos assentos perdidos pela antiga coalizão governista foi conquistada<br />
pelo PT, que, confirmando sua trajetória eleitoral ascendente, tornou-se o partido mais<br />
votado e senhor da maior bancada na Casa, com 17,7% das cadeiras. Conseqüência<br />
direta deste resultado, a Câmara seria, pela primeira vez na história<br />
democrática brasileira, dirigida por um deputado eleito por um partido de<br />
esquerda. Entre os partidos menores, o PDT e o PTB recuaram, enquanto<br />
PSB, PPS, PL e PCdoB cresceram. O resultado geral foi uma Câmara mais<br />
fragmentada. O número efetivo de partidos (Ne), que havia chegado a 8,7<br />
em 1990 e retornado a 7,1 em 1998, voltou a subir, alcançando 8,5. Os sete<br />
maiores partidos (PSDB, PFL, PMDB e PP, PT, PDT e PTB), que até 1998<br />
controlavam 89,9% da Casa, passaram a deter 81,1% 4 Além da alternância no<br />
poder para a presidência<br />
da República, as eleições<br />
de 2002 trouxeram outras<br />
novidades ao cenário<br />
político brasileiro. Os<br />
quatro maiores partidos<br />
da coalizão de Fernando<br />
.<br />
Henrique (PSDB, PFL, No entanto, a modificação de maior impacto seria aquela decorrente do<br />
PMDB e PP) perderam 69 desfecho da disputa presidencial. Como ressaltam Melo e Anastasia (2005),<br />
cadeiras, o que equivale a ao gerar uma troca de lugares entre situação e oposição e promover uma nova<br />
13,5% da Câmara<br />
correlação de forças políticas no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo,<br />
a eleição de 2002 afetou as preferências, o estoque de recursos e de estratégias<br />
disponíveis, bem como o comportamento dos principais atores na Câmara dos Deputados.<br />
De uma legislatura para outra, antigas preferências partidárias tornaram-se contraditórias com<br />
as posições ocupadas nas arenas parlamentar e governamental. Da mesma maneira, estratégias<br />
que se mostravam disponíveis em períodos anteriores passaram a ser politicamente inviáveis<br />
na legislatura em questão. O comportamento coeso e disciplinado da esquerda, e em especial<br />
do PT, forjado na oposição, seria colocado em xeque. Analisadas as coisas pelo outro lado, a<br />
questão era saber como se comportariam os partidos da antiga coalizão governista, agora sem<br />
os recursos provenientes do exercício do governo federal, mas tendo a seu dispor os instrumentos<br />
que a organização do Poder Legislativo brasileiro faculta à(s) minoria(s).<br />
Ao contrário do ocorrido em 1998, com a coalizão que deu sustentação política ao governo<br />
FHC, a coalizão eleitoral de Lula não logrou tornar-se majoritária na esfera parlamentar. Em<br />
2002, no primeiro turno, a coalizão de apoio a Lula (PT/PCdoB/PL) elegeu 25,1% dos deputados.<br />
Com a adesão, no segundo turno, de PSB, PDT, PV, PPS e PTB, a coalizão eleitoral expandiu-se,<br />
chegando a 218 cadeiras (42,5%) (Melo e Anastasia, 2005), e acentuou o seu caráter não<br />
contíguo, característica, de resto, já presente desde a inclusão do PL na coligação eleitoral.<br />
De toda forma, tratava-se de escolher entre governar em minoria, buscando os apoios<br />
necessários para obter maiorias legislativas pontuais, ou garantir a formação de uma coalizão
Balanço da 52 a Legislatura<br />
majoritária. A diferença estava em que, pela primeira vez, a coalizão a ser montada tinha<br />
como “partido central” uma organização situada à esquerda do espectro partidário – como<br />
elemento adicional, cabe lembrar que os partidos de centro e direita detinham 68% das<br />
cadeiras da Câmara. Uma vez feitas as escolhas, a coalizão governativa revelaria maior grau<br />
de instabilidade do que as que a precederam, por motivos que serão analisados adiante, o<br />
que durante determinado período afetaria negativamente a capacidade do Executivo de<br />
conduzir sua agenda.<br />
Ainda como parte do contexto sob o qual transcorreu a legislatura, três episódios fizeram<br />
com que a Câmara, através de seus membros, estivesse envolvida em denúncias de corrupção<br />
e uso indevido de recursos públicos. Em junho de 2005, um número indeterminado<br />
de membros da base governista foi acusado pelo deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) de<br />
receber uma espécie de mesada, o “mensalão”, por parte do governo. O escândalo se desdobrou<br />
em três CPIs – Correios, Mensalão e Bingos – e terminou gerando quatro renúncias<br />
e três cassações em um total de dezenove deputados para os quais o Conselho de Ética da<br />
Câmara havia recomendado a perda de mandato. Doze parlamentares foram inocentados<br />
pelo Plenário. O último, José Janene (PP-PR), em dezembro de 2006, no apagar das luzes<br />
da 52ª legislatura. Em 21 de setembro de 2005, o deputado Severino Cavalcanti (PP-PE),<br />
oito meses depois de ser eleito para a Presidência da Casa, renunciou ao mandato sob a<br />
acusação de cobrar propina de um dono de restaurante na Câmara. Finalmente, em maio<br />
de 2006, a Câmara recebeu da Controladoria-Geral da União (CGU) documentos que<br />
apontavam fraudes em licitação e superfaturamento na compra de ambulâncias, por parte<br />
dos municípios, que desencadearam a “Operação Sanguessuga” da Polícia Federal. Uma vez<br />
que a compra era viabilizada por meio de emendas ao Orçamento da União, os líderes partidários<br />
decidiram instalar a CPMI das Ambulâncias, que aprovou relatório, recomendando<br />
a cassação de 72 deputados.<br />
Sob o impacto desse conjunto de fatores, a legislatura transcorreu em meio a uma intensa<br />
disputa entre situação e oposição e a um acentuado desgaste junto à opinião pública.<br />
Representou, em função disso, um bom teste para o sistema político brasileiro. De um<br />
lado, uma crise sem precedentes, instalada no interior de um inédito governo formado a<br />
partir da esquerda, desafiaria a robustez das instituições e levaria alguns analistas a falar em<br />
‘crise institucional’ 5 . De outro, o grande número de parlamentares acusados colocaria a<br />
Câmara perante o desafio da transparência e da prestação de contas à sociedade. No que se<br />
refere ao primeiro desafio, o governo (agora reeleito) concluiu seu mandato e alcançou um<br />
bom percentual de aprovação em sua agenda legislativa, em que pese a sensível diminuição<br />
da produção legislativa observada no ano de 2005. No que se refere ao segundo, ainda que<br />
o percentual de votos nulos e brancos na eleição de outubro não tenha sido tão elevado e<br />
que a taxa de renovação tenha se mantido na média para o período, o Congresso chegou<br />
ao final do período com uma avaliação muito inferior à que possuía no início de 2003 6 .<br />
Mesmo considerando que historicamente o Congresso Nacional nunca alcançou elevados<br />
índices de aprovação popular, o desgaste da instituição é algo digno de nota, tendo sido a<br />
52ª legislatura avaliada, por vários analistas, como a pior de todo o período republicano.<br />
Revista Plenarium | 157
158 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
III) A dinâmica das interações<br />
III.1) Governo versus oposição<br />
A coalizão governativa que se organizou a partir de 2003 distinguiu-se, no que se refere<br />
a aspectos relevantes, da que emergiu das urnas em 1998, que garantiu ao presidente FHC<br />
uma ampla bancada parlamentar de sustentação às suas políticas 7 .<br />
No primeiro mandato de FHC 8 , a coalizão política de apoio ao presidente, de centrodireita,<br />
foi composta pelos seguintes partidos: PSDB, PMDB, PFL, PPR e PTB. Ao longo<br />
da legislatura, essa coalizão foi recebendo adesões de parlamentares, resultantes das migrações<br />
partidárias, chegando a abrigar 390 deputados (MELO, 2002). No segundo mandato, a<br />
bancada governista foi formada pelo PSDB, PMDB, PFL e PPB, totalizando, em 1999, 347<br />
deputados. Em que pesem os baixos índices de popularidade de Fernando Henrique Cardoso<br />
no período (MELO, 2002:36) 9 , o presidente conseguiu manter uma coalizão de apoio superior<br />
aos 308 deputados necessários para a aprovação de reformas à Constituição.<br />
No que se refere à composição do ministério, em ambos os governos FHC verificouse<br />
a presença de um gabinete de coalizão, baseado no critério partidário para a seleção de<br />
seus membros (MELO, 2002). No primeiro mandato, compunham o ministério o PSDB,<br />
o PMDB, o PFL, o PTB e o PPB, tendo sido este último incluído apenas a partir de 1996.<br />
No período compreendido entre 1999 e 2001, participaram do gabinete o PSDB, o PFL, o<br />
PMDB e o PPB (MELO, 2002: 23). Em 2002, o PFL abandonou a coalizão e, conseqüentemente,<br />
os cargos que ocupava no governo.<br />
Percebe-se, portanto, que durante a maior parte de seus dois mandatos, o presidente<br />
Fernando Henrique Cardoso contou com uma ampla base partidária, que lhe permitiu<br />
aprovar quase que integralmente a sua agenda. Decorre daí que, durante esse longo período,<br />
se não foram verificadas mudanças significativas conducentes à obtenção de graus mais<br />
substantivos de accountability e representatividade, não foi por falta de recursos políticos,<br />
restando por averiguar a hipótese da ausência de vontade política orientada para estes objetivos.<br />
O afastamento do PFL da coalizão governista, no entanto, teve conseqüências importantes<br />
sobre os rumos que foram impressos à política brasileira daí em diante. A decisão do<br />
PFL de lançar candidatura própria à presidência da República – projeto que afundou nas<br />
águas de denúncias de corrupção, as quais foram pronta e rigorosamente averiguadas pelo<br />
governo federal – gerou um fosso ainda maior entre os antigos aliados, e seu malogro colaborou<br />
para aumentar os graus de competitividade das candidaturas oposicionistas.<br />
A bancada governista, sob o governo Lula, saiu das eleições bem menos robusta do que<br />
aquela que deu sustentação política a FHC nos seus dois mandatos. Diante disso, ao organizar<br />
a sua coalizão governativa, o governo Lula realizou três movimentos distintos. No primeiro,<br />
optou por manter uma base formal circunscrita aos partidos que o haviam apoiado<br />
no segundo turno. Em momentos subseqüentes incorporou o PMDB (2004) e o PP (2005)<br />
ao ministério. Foram registradas, por outro lado, três deserções ao longo da legislatura: o<br />
PDT se retirou no segundo ano de governo, e PPS e PV, no terceiro.
Balanço da 52 a Legislatura<br />
Qualquer que seja o período analisado, mantiveram-se como traços da coalizão governista:<br />
a) a presença de partidos situados à esquerda e à direita do espectro ideológico;<br />
e b) a sobre-representação do PT no ministério, inviabilizando uma distribuição de pastas<br />
proporcional ao peso das bancadas partidárias.<br />
A primeira coalizão se manteve ao longo de 2003. Além da amplitude<br />
ideológica e da baixa coalescência10 , a base governista se mostrava descontínua<br />
e controlava apenas 48,5% das cadeiras na Câmara dos Deputados11 Qualquer que seja o<br />
período analisado,<br />
mantiveram-se como traços<br />
.<br />
da coalizão governista: As três primeiras características distinguem-na das coalizões firmadas nos<br />
a) a presença de partidos governos anteriores: a de Collor, restrita a partidos de direita; a de Ita-<br />
situados à esquerda e mar, que se estendia continuamente da direita até o PSB; e a de Fernando<br />
à direita do espectro Henrique, formada por partidos de centro-direita. Em nenhuma destas, o<br />
ideológico; e b) a sobre- partido do presidente se encontrava sobre-representado. A escolha de Lula<br />
representação do PT no foi a de concentrar nas mãos de pessoas próximas e/ou do PT o núcleo das<br />
ministério, inviabilizando decisões sobre as políticas econômica e social, deixando aos demais parti-<br />
uma distribuição de pastas dos uma participação apenas complementar. Tal decisão ajuda a explicar a<br />
proporcional ao peso das ausência do PMDB no ministério e terminou por configurar uma coalizão<br />
bancadas partidárias<br />
que “pulava” o centro do espectro partidário, potencializando, como aponta<br />
Inácio (2006), o problema da heterogeneidade de posições e preferências<br />
políticas, decorrente da amplitude ideológica, dificultando, dessa forma, a adesão dos<br />
diferentes partidos às iniciativas do Executivo. A não-inclusão do PMDB teve ainda, por<br />
óbvio, impacto sobre o tamanho da coalizão – e Lula fora eleito, como também Fernando<br />
Henrique, com uma imperiosa agenda de reformas constitucionais.<br />
Não obstante, a coalizão inicial se manteve e apresentou taxas de disciplina ainda<br />
maiores do que aquelas computadas no governo anterior (INÁCIO, 2006; FIGUEIREDO,<br />
2006), o que possibilitou ao governo aprovar 66,7% de suas iniciativas, incluídas neste rol<br />
aquelas mais importantes – para efeito de comparação, vale registrar que em seu primeiro<br />
ano de mandato, Fernando Henrique aprovou 64,7% de seus projetos (FIGUEIREDO,<br />
2006). O “segredo” de se obter maiorias legislativas sem ter que bancar o custo de dividir,<br />
ainda mais, os postos ministeriais pode ser explicado a partir de uma série de fatores, entre<br />
os quais o conteúdo da agenda proposta pelo governo merece destaque. A agenda de Lula,<br />
como claramente anunciado durante a campanha eleitoral, não era a do PT oposicionista e,<br />
ademais, o próprio partido havia mudado – o que facilitou o deslocamento das preferências<br />
do Executivo para uma posição próxima à do legislador mediano. Ainda que tal deslocamento<br />
tenha provocado tensões, e posteriormente cisões, à esquerda, o saldo foi altamente<br />
positivo. Facilitou a aproximação com o PMDB, possibilitou a conquista dos votos de boa<br />
parte da bancada do PP e neutralizou a oposição.<br />
Com dificuldade para reter seus deputados – até o final do ano o seu contingente caiu<br />
de 144 para 120 membros – os partidos de oposição se viram obrigados a escolher entre<br />
apoiar as iniciativas com as quais haviam se comprometido no governo anterior, dificultando<br />
o delineamento de um perfil oposicionista, ou partir para o confronto sistemático,<br />
arriscando-se a pecar por incoerência. O resultado foi uma divisão de forças, com o PSDB<br />
inclinando-se para a primeira postura e o PFL adotando a segunda. Foi nesta condição que<br />
Revista Plenarium | 159
160 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
este partido inaugurou a utilização mais sistemática da obstrução como estratégia de luta<br />
parlamentar, posição adotada em 40,9% das votações nominais realizadas no ano. Mais<br />
moderado, o PSDB manteve-se em obstrução em 28% das vezes. Na legislatura anterior o<br />
PT não chegara a tentar obstruir mais do que 10% das votações 12 .<br />
Para além da agenda proposta pelo governo, outros três fatores têm que ser levados em<br />
consideração no desempenho positivo da coalizão em 2003: a) o controle daquele que é o<br />
mais importante ativo institucional na Câmara, qual seja, a presidência da Mesa Diretora,<br />
cargo para o qual o petista João Paulo Cunha foi eleito sem enfrentar concorrência, após um<br />
amplo acordo entre os líderes 13 ; b) a negociação, realizada pelo governo, com o conjunto<br />
dos governadores, comprometendo-os com o encaminhamento articulado das reformas da<br />
Previdência e tributária e dando às suas propostas a cobertura de um amplo entendimento<br />
nacional (MELO e ANASTASIA, 2005); e c) os altos índices de popularidade do presidente<br />
e seu governo. Juntos, esse conjunto de fatores fez com que o chamado “período de lua de<br />
mel” se estendesse por mais do que os primeiros meses de praxe.<br />
No início de 2004 o governo, diante de tensões à esquerda no interior da coalizão,<br />
decidiu incorporar o PMDB ao ministério. Tal movimento apenas parcialmente preencheu<br />
o vazio ao centro da coalizão, uma vez que o partido se apresentou dividido e com uma de<br />
suas alas se negando a votar com o governo. A manutenção de uma ampla hegemonia petista<br />
no interior da coalizão, em detrimento de uma participação mais destacada do PMDB,<br />
certamente contribuiu no sentido de manter a fragmentação deste último. Não obstante, a<br />
incorporação compensou com folga a expulsão de três deputados do PT e a saída do PDT<br />
– ambos os movimentos gerados por divergências com a agenda conduzida pelo governo,<br />
em especial na questão da reforma da Previdência. Ao longo de 2004, a coalizão governista<br />
manteve um contingente de cerca de 62,0% das cadeiras e, embora a taxa de disciplina<br />
fosse um pouco menor do que a registrada no ano anterior, o percentual de aprovação dos<br />
projetos do Executivo cresceu para 77% (FIGUEIREDO, 2006).<br />
A inclusão do PMDB na coalizão, ainda que de forma sub-representada no ministério,<br />
a possibilidade de contar com votos do PP e do PDT – o primeiro, mantendo-se como partido<br />
alinhado, e o segundo, ainda em trânsito para o lado da oposição – somados ao fato de<br />
que na agenda governamental as reformas constitucionais já não possuíam destaque, foram<br />
cruciais para o bom desempenho do governo. Porém, os problemas da coalizão governativa<br />
– que foram inaugurados com o episódio Waldomiro Diniz e alimentados com as dissensões<br />
à esquerda – tornaram-se ainda maiores com a introdução de questões de ordem distributiva<br />
que provocaram uma “rebelião” da bancada governista, ao final do segundo semestre,<br />
acarretando o trancamento da pauta dos trabalhos por 25 medidas provisórias (Folha de<br />
S.Paulo, 02/12/2004).<br />
A oposição, por sua vez, já sem os constrangimentos impostos pelas reformas constitucionais,<br />
atuou de forma mais unificada. E lançou mão da obstrução em uma escala ainda<br />
maior. Enquanto o PSDB adotou esta postura em 53,8% das votações nominais, o PFL se<br />
utilizou do recurso em 61,5% delas 14 . Mesmo sem apresentar crescimento numérico – pelo<br />
contrário, o contingente oposicionista encerrou o ano de 2004 formalmente reduzido a 110<br />
deputados contra os 120 do início do ano – os partidos de oposição obrigaram a liderança
Balanço da 52 a Legislatura<br />
do governo na Câmara a se posicionar contrariamente às questões em apreciação na grande<br />
maioria das votações procedimentais realizadas: em 72,5% das ocasiões em que se pronunciou,<br />
o líder do governo orientou o voto não. Como assinala Inácio (2006), tais dados<br />
sugerem uma maior capacidade da oposição em competir pela agenda legislativa, além de<br />
sinalizar para problemas no interior da base governista.<br />
De fato, a partir de 2005, aumentaram significativamente as dificuldades interpostas<br />
ao governo e à sua base para aprovar alguma iniciativa de importância na Câmara dos Deputados.<br />
Em fevereiro de 2005, a eleição de Severino Cavalcanti (PP-PE) para a Presidência<br />
da Câmara, derrotando a Luiz Eduardo Greenhalg (PT-SP), marcaria o fim de um período<br />
de relativa tranqüilidade para o Executivo na Câmara dos Deputados.<br />
Uma combinação de fatores contribuiu para a vitória de Severino: a) o descontentamento<br />
existente na base do governo no que se refere à participação dos partidos aliados<br />
e à liberação de emendas individuais de deputados; b) as mal-conduzidas gestões para a<br />
reeleição da Presidência das duas casas do Congresso; c) o lançamento de um candidato<br />
dissidente pelo PT; e d) o comportamento da oposição que, no segundo turno da eleição,<br />
votou majoritariamente na candidatura Severino. Como se não bastasse a perda da Mesa<br />
Diretora, a coalizão governista diminuiria com as saídas do PPS e do PV e se veria atropelada<br />
pela eclosão, em maio, da crise do “mensalão”. Em meio ao vendaval que assolava o<br />
Planalto, colocando sob suspeição bancadas inteiras, o controle de 58,3% das cadeiras da<br />
Câmara teria pequena valia: a capacidade do governo de aprovar sua agenda legislativa diminuiria<br />
ao ponto de nem mesmo o orçamento da União ser votado, obrigando o Executivo<br />
a iniciar 2006 em difícil situação no que se refere ao gasto público. Durante esse período,<br />
o percentual de deputados da base dispostos a acompanhar o líder do governo cairia a seu<br />
menor nível (FIGUEIREDO, 2006).<br />
Em uma tentativa de retomar a iniciativa, em julho o governo incorporou o PP ao<br />
ministério, aumentando o peso relativo dos setores conservadores na coalizão. Os governistas<br />
passaram a controlar, pelo menos formalmente, 69,2% das cadeiras, percentual que,<br />
no entanto, se reduziria devido à diminuição das bancadas do PT, PL, PP e PMDB 15 nos<br />
meses seguintes. Com a saída do PP da condição de “partido alinhado” para a de integrante<br />
da base formal da coalizão governista e, por outro lado, com o distanciamento definitivo<br />
do PDT face ao governo, a Câmara passou a apresentar um cenário<br />
mais claramente polarizado, com blocos pró e antigoverno 16 .<br />
À perda de deputados do governo correspondeu o crescimento<br />
da oposição, que terminaria a legislatura com<br />
33,5% das cadeiras na Câmara. No que se refere<br />
à capacidade operativa do governo, o quadro<br />
só apresenta alguma melhora em<br />
2006, quando iniciativas importantes<br />
– como a criação da SuperReceita, as<br />
cotas nas universidades e a Lei Geral das<br />
Micro e Pequenas Empresas – voltaram<br />
a ser aprovadas.<br />
Revista Plenarium | 161
162 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
III.2) Partidos e deputados<br />
No que diz respeito às interações entre os partidos e entre estes e seus membros, a 52ª legislatura<br />
mostra elementos de continuidade e de ruptura relativamente às anteriores. O mais<br />
evidente traço de continuidade refere-se ao fenômeno da migração partidária. Neste ponto,<br />
dados apresentados por Melo e Miranda (2006) mostram que tivemos mais do mesmo:<br />
levando-se em conta membros titulares, efetivados e suplentes em exercício, foram<br />
192 os congressistas que, por uma razão ou outra, trocaram de legenda ao longo de seu<br />
mandato. Se considerarmos apenas os deputados eleitos em 2002, foram 174 os migrantes.<br />
No cômputo geral foram registradas 278 trocas de partido, um número ainda maior do que<br />
aquele registrado na legislatura 1991/1995, período, como se sabe, de elevada instabilidade<br />
política (pp.6) 17 .<br />
Tal como nas duas últimas legislaturas, as migrações concentraram-se em determinados<br />
períodos. Foram 137 mudanças de partido no ano de 2003, 18 em 2004 e 115 em 2005.<br />
Em 2006 ainda foram registradas 08 trocas de legenda. Novamente, nos dois anos em que a<br />
migração ocorreu em escala significativa foram preferidos os meses que antecederam o início<br />
dos trabalhos legislativos (janeiro e fevereiro) e o período imediatamente anterior à definição<br />
da filiação partidária, seja para as eleições municipais, seja para a renovação da própria Câmara.<br />
Nestes momentos uma parcela dos deputados procurou se reposicionar no jogo político,<br />
tendo em vista o quadro de forças na arena parlamentar e/ou eleitoral.<br />
Tal como nos anos anteriores, a incidência de migrações no sentido do governo mereceu<br />
destaque. Afinal, se é público e notório que partidos aderem ao governo e planejam<br />
ganhar com isso, não há porque supor que os deputados não adotarão o mesmo raciocínio.<br />
Do total das migrações realizadas, 37,4% o foram no sentido dos partidos do governo ou<br />
alinhados; em 31,1% dos casos os deputados se reposicionam no interior do governo ou<br />
entre governo e alinhados; 20,5% dos migrantes se dirigiram aos partidos de oposição e<br />
11% entre estes últimos. Entre 2003 e 2005 as mudanças no sentido do governo diminuíram<br />
de 44,4% para 31% do total. O afastamento do governo, por outro lado, passou de<br />
12% para 29,9%. Quando comparadas as migrações realizadas nos dois primeiros meses<br />
de 2003 e aquelas efetuadas de julho a setembro de 2005, em meio à crise do governo Lula<br />
e às vésperas da definição do quadro de filiações para o ano de 2006, o contraste torna-se<br />
mais evidente. No primeiro período, 44,7% dos migrantes saíram da oposição para a base<br />
do governo ou partidos alinhados, e apenas 6,4% dirigiram-se à oposição. No segundo, a<br />
adesão aos partidos da oposição cresceu para 39,7% e o movimento no sentido do governo<br />
caiu para 22,2%. A base governista perdera parte de sua capacidade de atração e retenção de<br />
apoio na Câmara dos Deputados.<br />
De todo modo, estar no governo ou na oposição continuou fazendo diferença, no<br />
que se refere à capacidade dos partidos de atrair novos membros e/ou reter os eleitos. No<br />
primeiro mandato de Fernando Henrique, PSDB e PFL viram suas bancadas crescer em<br />
47,6% e 24,7% (Melo, 2004); na oposição, suas bancadas diminuíram mais de 20%. A<br />
grande maioria dos migrantes transferiu domicílio para o lado do governo – 67,0% no caso<br />
do PSDB e 81,2% no do PFL. Já o PL, estreando na condição de membro de uma coalizão<br />
governista, viu sua bancada crescer em mais de 40% no período 2003/2007.
Balanço da 52 a Legislatura<br />
O trânsito entre as bancadas continuou convivendo com razoáveis graus de disciplina<br />
no interior de cada uma delas. Mas, como já mencionado, a troca de lugares entre situação<br />
e oposição, em função das eleições de 2002, afetou as preferências, o estoque de recursos e o<br />
comportamento dos atores na Câmara. Estratégias disponíveis em um momento deixaram<br />
de sê-lo no outro. As tensões se manifestaram de forma clara nos partidos que constituíam<br />
o núcleo duro das distintas coalizões em ação no período passado.<br />
No que se refere à esquerda, apenas a bancada do PSB se apresentou mais disciplinada<br />
do que nos dois governos de Fernando Henrique. No PT, a mudança experimentada com<br />
a chegada ao governo não foi digerida da mesma forma pelo conjunto dos deputados, provocando<br />
expulsões, cisões e queda nas taxas de disciplina. No crucial processo de votação<br />
da reforma da Previdência, 88,9% dos deputados acompanharam as posições encaminhadas<br />
pelo líder (Melo e Anastasia, 2005), algo bem distinto dos 98% que, em média, o faziam<br />
nos períodos anteriores. O mesmo aconteceu com o PCdoB e o PDT 18 .<br />
Nos casos do PFL e do PSDB, pelo menos nos dois primeiros anos, a mudança foi mais<br />
dramática, e nenhum dos dois partidos conseguiu manter em plenário o comportamento<br />
das legislaturas passadas. Preocupado com seu “público atento”, a liderança do PSDB tratou<br />
de apoiar as iniciativas do governo que fossem compatíveis com seu próprio programa e<br />
com as bandeiras com as quais havia se comprometido. Para o PFL, como sustentam Melo<br />
e Anastasia (2005), a forte identificação como partido de direita tornou possível “colocarse,<br />
de forma mais confortável e sem maiores custos políticos junto à sua própria base, do<br />
lado oposto ao do PT, onde, aliás, sempre esteve” (p. 323). Ainda que ambos os partidos<br />
tenham se alinhado na oposição, a diferença de postura terminou por refletir-se no processo<br />
legislativo em 2003: enquanto as posições das lideranças do PFL e do PT convergiram em<br />
apenas 9,6% das votações, no caso do PSDB a convergência chegou a 26,9% (ANASTA-<br />
SIA, MELO e SANTOS, 2004) 19 . Em 2004, os dois partidos estavam mais próximos e<br />
nenhum dos dois convergiu com as posições do PT em mais de 9% das votações nominais<br />
(INÁCIO, 2006). Seja como for, em sua estréia na oposição e, portanto, dotados de menos<br />
recursos institucionais, os partidos experimentaram uma queda na proporção de votos<br />
convergentes. O PFL caiu de 91,4 – média para os oitos anos de Fernando Henrique – para<br />
53,9 nos dois primeiros anos de Lula. Levando em conta os mesmos períodos, o PSDB<br />
passou de 89,4 para 69,3 20 .<br />
Uma última observação pode ser feita recorrendo-se aos encaminhamentos definidos<br />
pelos líderes partidários nas votações nominais. Como a esta altura já está claro, nesse ponto<br />
temos uma clara descontinuidade entre a atual legislatura e as demais, contrariando a<br />
afirmativa (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999) de que o comportamento legislativo possibilitaria<br />
o ordenamento coerente do sistema partidário parlamentar ao longo do contínuo<br />
esquerda - direita. Nos dois mandatos presidenciais de Fernando Henrique, as lideranças do<br />
PMDB, PTB e PPB encaminharam a grande maioria das votações ao lado de seus colegas<br />
do PFL e do PSDB, contrapondo-se ao PT e ao PDT 21 . Por conseqüência de sua migração<br />
para a base governista, no governo Lula, os três primeiros partidos passaram a convergir,<br />
em seus encaminhamentos, com o PT, enquanto o PDT iniciou, em 2004, um afastamento<br />
relativamente a seus parceiros na esquerda para, de 2005 em diante, alinhar-se com o<br />
Revista Plenarium | 163
164 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
A prevalência das<br />
fronteiras ideológicas sobre<br />
as partidárias pode ser<br />
afirmada, por exemplo,<br />
com base nas migrações<br />
partidárias, já que a<br />
movimentação continua<br />
a ser feita, de forma<br />
majoritária, no interior<br />
do mesmo campo ou entre<br />
campos contíguos. Já o<br />
realinhamento verificado<br />
sob o governo Lula parece<br />
permitir dizer que a única<br />
clivagem que efetivamente<br />
se sustenta no sistema<br />
partidário parlamentar<br />
brasileiro é aquela que<br />
remete à divisão entre<br />
oposição e situação<br />
“núcleo duro” do governo anterior. O que importa destacar neste momento, concordando<br />
com Melo e Miranda (2006), é que das fronteiras mais salientes no interior da Câmara dos<br />
Deputados – as que separam os partidos, os campos ideológicos e os blocos da situação e da<br />
oposição – a última parece ser a mais robusta. A prevalência das fronteiras ideológicas sobre<br />
as partidárias pode ser afirmada, por exemplo, com base nas migrações<br />
partidárias, já que a movimentação continua a ser feita, de forma majoritária,<br />
no interior do mesmo campo ou entre campos contíguos 22 . Já o realinhamento<br />
verificado sob o governo Lula parece permitir dizer que a única<br />
clivagem que efetivamente se sustenta no sistema partidário parlamentar<br />
brasileiro é aquela que remete à divisão entre oposição e situação.<br />
IV) Processo e produção legislativa<br />
IV.1) Processo<br />
O objetivo desta seção é colocar em tela a dinâmica do processo decisório<br />
no interior da Câmara dos Deputados, com foco nos movimentos<br />
dos partidos em plenário. A apreensão desta dinâmica é, em boa medida,<br />
uma função da visibilidade das decisões legislativas que variam consideravelmente<br />
entre os Parlamentos (CAREY, 2006). A centralização do<br />
processo decisório observada na Câmara dos Deputados 23 impacta, internamente,<br />
a capacidade de identificação dos agentes legislativos e, externamente,<br />
a capacidade de responsabilização política destes agentes por parte<br />
dos cidadãos. De fato, parte da invisibilidade das decisões legislativas pode<br />
ser referida ao controle de agenda por parte da Mesa Diretora e dos líderes<br />
– particularmente sob a forma de acordos de liderança – e aos procedimentos<br />
para as decisões de voto em plenário 24 .<br />
As regras de organização interna da Câmara dos Deputados introduzem,<br />
no entanto, certos matizes a esta invisibilidade. Primeiro, a<br />
composição plural do Colégio de Líderes, partidária e com presença<br />
institucional da liderança da minoria, faculta a expressão<br />
do dissenso e de conflitos interpartidários<br />
no interior dessa arena decisória. Tal configuração<br />
pode ampliar, portanto, a capacidade dos partidos<br />
e das oposições para monitorarem reciprocamente<br />
os acordos conduzidos nessa arena. Segundo, os legisladores<br />
contam com recursos procedimentais<br />
importantes para tornar os votos visíveis<br />
25 . Com se verá adiante, as oposições<br />
mobilizam de forma importante<br />
tais recursos com vistas a alterar<br />
o contexto decisório e impactar os custos<br />
das decisões legislativas. Ou seja, embora
Balanço da 52 a Legislatura<br />
o uso iterativo de acordos de liderança, particularmente aqueles voltados para a tomada de<br />
decisões legislativas pelo método simbólico, sinalize para um grau importante de invisibilidade<br />
do comportamento legislativo, as regras de organização interna propiciam oportunidades<br />
significativas para a expressão de conflitos interpartidários e a realização de checks internos.<br />
Entre outras, as oportunidades relativas à configuração do contexto decisório – em especial,<br />
sobre a modalidade e o processo de votação – decorrem de cálculos estratégicos com<br />
impactos não desprezíveis sobre a dinâmica decisória.<br />
Segundo os dados disponíveis, foram realizadas 378 votações nominais na Câmara dos<br />
deputados, sendo que 34 delas foram invalidadas por não atingirem quorum suficiente 26 .<br />
Deste total, 72% ocorreram nos dois primeiros anos de governo, sendo que em 2005 apenas<br />
67 votações nominais foram realizadas.<br />
O volume de votações nominais e o fato de que parte expressiva deste conjunto se<br />
refere às votações sobre questões procedimentais sinalizam para a importância do Plenário<br />
enquanto arena decisória na Câmara dos Deputados, particularmente em relação a questões<br />
salientes do ponto de vista do conflito interpartidário e da relação entre governo e oposições.<br />
Das 344 votações nominais no período, 182 tiveram por objeto questões procedimentais,<br />
como adiamento da discussão ou da votação, retirada de pauta, entre outras. Em 2004,<br />
ano em que os parlamentares mais se mobilizaram por votações relacionadas a questões<br />
procedimentais, tais movimentos foram voltados principalmente para bloquear a agenda do<br />
governo na Casa: das 75 votações desse tipo, 41 foram para retirada de matéria da pauta,<br />
sendo que destas, 39 tratavam de decisões sobre medidas provisórias.<br />
TABELA 1 - Votações nominais realizadas na 52ª<br />
legislatura segundo o tipo de decisão e sessão<br />
legislativa.<br />
TIPO DE DECISÃO<br />
SESSÃO LEGISLATIVA Substantiva Procedimental Total<br />
1 a 76 69 145<br />
2 a 29 75 104<br />
3 a 36 31 67<br />
4 a 22 6 28<br />
163 182 344<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando<br />
Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>.<br />
Elaboração própria.<br />
O alinhamento dos partidos no eixo governo-oposição mostrou-se uma matriz de incentivos<br />
importante para a mobilização dos partidos com vistas a modificar, adiar ou bloquear<br />
as decisões legislativas e alterar o contexto decisório – de votação simbólica para<br />
nominal (INÁCIO, 2006). Desconsideradas as votações nominais realizadas por exigência<br />
constitucional ou sem informação, 215 decisões por voto nominal resultaram de pedidos<br />
para verificação de votação, após a sua realização pelo método simbólico. Ou seja, conhecido<br />
Revista Plenarium | 165
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Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
o resultado da votação simbólica, os parlamentares buscaram elevar os custos da decisão, com<br />
a manifestação pública e individual dos deputados, e com isto modificar as decisões tomadas<br />
com base em votos invisíveis. Os partidos situados fora do governo foram os que mais utilizaram<br />
deste recurso regimental: 193 votações nominais foram provocadas por pedidos dos partidos<br />
independentes ou na oposição ao governo. Deste total, 136 votações nominais foram<br />
antecedidas por votações simbólicas que resultaram na rejeição da matéria em apreciação.<br />
Esta mobilização das oposições no uso de estratégias procedimentais torna-se clara<br />
quando confrontada com o encaminhamento da votação pelo líder do governo. Conforme<br />
demonstrado na tabela abaixo, os dois principais partidos de oposição no atual governo<br />
– PFL e o PSDB – são os autores de 166 pedidos de verificação de quórum que resultaram<br />
em votações nominais, com destaque para o PFL, que obteve apoio para 140 deles 27 . Nesses<br />
casos, o posicionamento do governo é, majoritariamente, pela rejeição da matéria em apreciação,<br />
evidenciando os movimentos de seus líderes para conter as investidas da oposição.<br />
RAZÃO DA VN<br />
TABELA 2 - Votações nominais na Câmara dos Deputados<br />
segundo o encaminhamento de votação pelo governo<br />
PEDIDO DE VERIFICAÇÃO<br />
DE QUÓRUM - AUTOR<br />
ENCAMINHAMENTO DE VOTAÇÃO PELO<br />
LÍDER DO GOVERNO Total<br />
SIM NÃO OUTROS (1)<br />
PFL 42 98 140<br />
PSDB 11 14 1 26<br />
PT 3 5 8<br />
PDT 1 3 4<br />
PTB 2 2 4<br />
PP 2 2<br />
PPS 1 1 2<br />
PCDOB 1 1<br />
PMDB 1 1<br />
PPB 1 1<br />
PSB 1 1<br />
GOV 1 1<br />
MESA 1 1<br />
MINORIA 1 1<br />
Subtotal 75 127 1 193<br />
REGIMENTAL<br />
REGIMENTAL 66 25 3 94<br />
REQ. VOTAÇÃO NOMINAL DIRETA 4 4<br />
Subtotal 66 29 3 98<br />
Total 132 155 4 291<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo,<br />
Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração dos autores.<br />
(1) Abstenção, obstrução ou liberação de bancada
Balanço da 52 a Legislatura<br />
As regras regimentais da Casa facultam aos partidos movimentos estratégicos que vão<br />
além das estratégias procedimentais voltadas para a modificação ou retirada das matérias.<br />
Uma alternativa aberta é a possibilidade de o partido se manifestar em obstrução parlamentar<br />
28 , com o objetivo de retardar ou bloquear a decisão parlamentar, de forma a provocar<br />
novos rounds de negociação e barganhas legislativas. Como a capacidade de impedir as votações<br />
devido à ausência de quórum depende do tamanho dos partidos que se manifestam<br />
em obstrução, nota-se que o recurso mais intenso desta prática pode ser associado ao peso<br />
numérico das oposições sob a atual legislatura (INÁCIO, 2006).<br />
De fato, a obstrução parlamentar ocorreu em 176 votações nominais, sendo que 2004<br />
foi o ano em que o seu uso foi mais intenso, ou seja, em 66% das votações realizadas verificou-se<br />
que pelo menos um partido escolheu essa direção.<br />
TABELA 3 - Obstrução parlamentar por sessão legislativa da<br />
52ª legislatura (% em parênteses)<br />
Partidos em<br />
obstrução (1)<br />
Sessão Legislativa<br />
1 a 2 a 3 a 4 a Total<br />
Nenhum<br />
94<br />
(62,7)<br />
40<br />
(33,9)<br />
42<br />
(51,2)<br />
26<br />
(92,9)<br />
202<br />
(53,4)<br />
1<br />
22<br />
(14,7)<br />
7<br />
(5,9)<br />
4<br />
(4,9)<br />
1<br />
(3,6)<br />
34<br />
(9,0)<br />
2<br />
28<br />
(18,7)<br />
41<br />
(34,7)<br />
1<br />
(1,2)<br />
1<br />
(3,6)<br />
71<br />
(18,8)<br />
3<br />
-<br />
-<br />
14<br />
(11,9)<br />
3<br />
(3,7)<br />
-<br />
-<br />
17<br />
(4,5)<br />
4<br />
-<br />
-<br />
5<br />
(4,2)<br />
17<br />
(20,7)<br />
-<br />
-<br />
22<br />
(5,8)<br />
5 ou mais<br />
6<br />
(4,0)<br />
11<br />
(9,3)<br />
15<br />
(18,3)<br />
-<br />
-<br />
32<br />
(8,5)<br />
N<br />
150 118 82 28 378<br />
%<br />
(100) (100) (100) (100) (100)<br />
Fonte: Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e<br />
Argelina Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração própria<br />
(1) Considerados 10 partidos: PP, PFL, PTB, PL, PMDB, PSDB, PPS, PDT, PT, PCdoB<br />
Do ponto de vista das alianças em plenário, cabe ressaltar o impacto da posição dos<br />
partidos no eixo governo-oposições como principal clivagem no interior da Câmara dos<br />
Deputados, o que pode ser indicado pelo encaminhamento da votação pelos líderes partidários<br />
(INÁCIO, 2006). Diferentemente do padrão de alianças legislativas mantidas no<br />
governo anterior – com um alinhamento ideologicamente consistente dos campos da situação<br />
e das oposições –, o padrão na atual legislatura mostra que a convergência dos partidos<br />
recorta os blocos ideológicos, repercutindo a configuração abrangente e não-contígua<br />
da coalizão de governo.<br />
Revista Plenarium | 167
168 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
A tabela abaixo apresenta o percentual de encaminhamentos de votação nominal similares<br />
entre 10 partidos representados na Câmara dos Deputados. Os partidos que integram<br />
a coalizão de governo instruíram o voto da bancada de forma convergente em mais de 80%<br />
das 378 votações analisadas, mesmo os partidos mais distantes do PT, o partido do presidente,<br />
como PP, PL e PTB, sendo que no caso dos dois últimos, o alinhamento convergente<br />
atinge 90% das votações. Cabe ressaltar os altos patamares de convergência entre ex-membros<br />
da coalizão, como o PPS e o PDT, o que reflete, no caso deste último, a posição de<br />
independência em relação ao governo.<br />
No que tange às oposições, o PFL apresenta a menor taxa de convergência em relação<br />
ao partido do presidente (27%), seguido do PSDB (34,4%). A similaridade de posições em<br />
plenário entre estes dois partidos atinge 79,6% das votações nominais analisadas, reiterando<br />
a centralidade de ambos no campo das oposições durante a atual legislatura. Os níveis de<br />
convergência entre estes partidos e os ex-membros da coalizão, PPS e PDT, evidenciam as<br />
dificuldades em presença para a atuação de uma oposição coligada, o que tem resultado<br />
em um padrão de alinhamento do tipo governo+independentes+oposições (ANASTASIA,<br />
MELO & SANTOS, 2004).<br />
TABELA 4 - Percentual de encaminhamentos<br />
de votação similares dos líderes partidários<br />
PARTIDOS<br />
PFL PL PTB PMDB PSDB PPS PDT PT PCdoB<br />
PP 34,9 86,2 88,6 84,9 40,2 74,3 71,4 84,9 80,7<br />
PFL 32,0 32,0 33,9 79,6 40,2 41,5 27,0 28,0<br />
PL 92,6 87,0 38,1 78,6 76,7 90,2 86,0<br />
PTB 89,9 36,5 80,2 77,2 90,5 87,6<br />
PMDB 39,9 81,2 77,0 88,6 86,2<br />
PSDB 45,0 45,8 34,4 34,4<br />
PPS 86,0 82,3 82,3<br />
PDT 78,0 79,1<br />
PT 93,1<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo,<br />
Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração dos autores.<br />
Esse padrão se mantém quando se verifica a convergência dos líderes partidários em<br />
relação ao governo. Considerados os encaminhamentos de votação pelo líder do governo<br />
na Casa, num total de 337 votações nominais, a maior taxa é atingida pelo partido do<br />
presidente (95%), seguido do PCdoB (90%). Os demais partidos da coalizão – PL, PTB,<br />
PMDB, PP – apresentam altos patamares de convergência, ou seja, entre 82% e 87% de<br />
encaminhamentos similares ao indicado pelo governo.
GRÁFICO 1<br />
Balanço da 52 a Legislatura<br />
Examinada a dinâmica do processo decisório, cabe agora considerar os seus impactos<br />
sobre a produção legal, objeto da próxima seção.<br />
IV.2) Produção legislativa<br />
Esta seção analisa a 52ª legislatura, com vistas a identificar se houve variações importantes<br />
em relação ao padrão de produção legislativa dos períodos legislativos anteriores.<br />
Inicialmente, chama a atenção ter-se mantido o volume da produção legal em patamar<br />
ligeiramente inferior ao de legislaturas anteriores, apesar dos efeitos sobre essa produção da<br />
crise política que atingiu o Poder Legislativo nos dois últimos anos do período. Até outubro<br />
de 2006, 713 leis ordinárias foram aprovadas, em contraste com as três últimas legislaturas,<br />
quando a média foi de 811 leis 29 . Certo diferencial pode ser apontado em relação à aprovação,<br />
em menor volume, de emendas constitucionais, as quais requerem maioria qualificada<br />
para aprovação: treze emendas em contra dezenove emendas aprovadas na legislatura anterior.<br />
Estes resultados podem ser associados à queda da produção legislativa, notadamente<br />
em 2005, quando a crise política e os escândalos acirram os conflitos interpartidários e os<br />
ânimos das oposições em relação ao governo, conferindo centralidade às atividades e arenas<br />
de investigação parlamentar.<br />
Revista Plenarium | 169
170 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
TABELA 5 - Produção Legislativa da 52ª Legislatura (1)<br />
Sessão Legislativa<br />
LEI SANCIONADA 1 a 2 a 3 a 4 a Total<br />
Emenda Constitucional 3 3 3 4 13<br />
Lei Complementar 1 1 3 1 6<br />
Lei Ordinária 197 252 176 88 713<br />
Decreto Legislativo - CD 976 1094 1131 1131 4332<br />
Decreto Legislativo - CN 23 12 23 23 81<br />
Resoluções - CN 3 3 1 1 8<br />
Fonte: Câmara dos Deputados, 2006.<br />
(1) Dados atualizados até 11/10/2006<br />
Quando se analisam as iniciativas que deram origem às leis, observa-se persistir a dominância<br />
do Executivo sobre a produção legal. Para esse resultado concorrem fortemente as<br />
prerrogativas presidenciais relativas à exclusividade de iniciativa de determinadas matérias<br />
e ao uso de instrumentos legais específicos – como a edição de medidas provisórias. Este<br />
quadro não foi diferente na atual legislatura: as medidas provisórias e leis orçamentárias<br />
representaram 63,6% (423) das leis sancionadas no período 30 .<br />
TABELA 6 - Número de leis por tipo de iniciativa legal e ano de sanção<br />
Iniciativa originária<br />
ANO DE SANÇÃO<br />
2003 2004 2005 2006<br />
Total<br />
(1)<br />
MP/PLV 56 77 35 9 177<br />
LEIS ORÇAMENTÁRIAS 61 124 63 248<br />
PLL, PLS, MSC, MSG, OFI 80 52 78 13 223<br />
PEC 3 3 3 4 13<br />
PLC 1 1 3 1 6<br />
201 257 180 27 665<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo,<br />
Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração dos autores<br />
(1) Dados atualizados até 02/2006.<br />
A despeito dos amplos poderes de que dispõe, a participação do Executivo na produção<br />
legal depende da capacidade operativa da coalizão no interior do Legislativo. A dinâmica<br />
assumida pela coalizão de governo, com acirramento dos conflitos internos a partir da metade<br />
do mandato presidencial, redefiniu o tamanho da agenda legislativa do presidente e as<br />
condições estratégicas para o uso dos poderes presidenciais com vistas a implementá-la.<br />
Em 2005, ano de ápice da crise política, o governo editou e converteu em leis um<br />
número menor de MPs. O recurso às medidas provisórias foi mais intenso durante os dois<br />
primeiros anos, sendo que a partir deste momento o Legislativo infligiu derrotas ao Executivo<br />
por meio da rejeição e da perda de eficácia de MPs 31 . Embora a conversão de MPs<br />
em projetos de lei (PLV) tenha sido pouco utilizada – 23 no total de 177 medidas editadas
Balanço da 52 a Legislatura<br />
no período analisado –, foi em 2005 que os parlamentares se mostraram mais dispostos a<br />
modificar tais iniciativas. Um alvo importante das PLVs foram as propostas do Executivo<br />
com centralidade na agenda presidencial, como a introdução de novos programas sociais e<br />
a regulação de setores econômicos 32 .<br />
TABELA 7 - Medidas provisórias editadas durante da 52ª legislatura<br />
MEDIDAS PROVISÓRIAS<br />
MP 2003 2004 2005 2006 (1)<br />
Editadas 57 73 42 55<br />
Convertida 56 77 35 48 (1)<br />
Em tramitação 0 0 0 17<br />
Revogada 1 0 1 0<br />
Sem eficácia 0 3 2 3<br />
Prejudicada 0 0 2 0<br />
Rejeitada 0 4 3 2<br />
Fonte: Base da Legislação Federal do Brasil - Brasil; Presidência da República, Casa Civil - Subchefia para Assuntos<br />
Jurídicos.<br />
(1) Atualizado até 24/11/2006<br />
As proposições com iniciativa não-exclusiva representaram 36,4% (242) do total de<br />
leis sancionadas. É em relação a este grupo que a participação dos Poderes Executivo e Legislativo<br />
se distribui de forma mais equilibrada no que tange à autoria das leis. Enquanto<br />
101 leis tiveram origem no Executivo, 108 foram propostas pelo Poder Legislativo. Maior<br />
destaque pode ser dado, no entanto, aos outros tipos de iniciativas. São de autoria do Poder<br />
Legislativo 10 emendas constitucionais, no total de 13 aprovadas, sendo 5 com origem na<br />
Câmara dos Deputados e 5 no Senado Federal. No caso da legislação complementar, todas<br />
as leis sancionadas no período tiveram origem no Poder Legislativo.<br />
TABELA 8 - Produção legislativa da 52ª legislatura<br />
segundo a autoria da iniciativa legal<br />
2003 2004 2005 2006 (1) Total<br />
Leis de iniciativa exclusiva do Executivo<br />
Medida Provisória (sem modificação) 56 77 14 7 154<br />
Medida Provisória (PLV) 21 2 23<br />
Leis Orçamentárias 61 124 61 246<br />
Subtotal 117 201 96 9 423<br />
Leis de iniciativa não-exclusiva<br />
Leis de iniciativa do Executivo<br />
Leis ordinárias 33 27 33 8 101<br />
Emenda constitucional<br />
Leis de iniciativa do Legislativo<br />
2 1 3<br />
Revista Plenarium | 171
172 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
TABELA 8 - Produção Legislativa da 52ª. Legislatura<br />
segundo a autoria da iniciativa legal<br />
Leis ordinárias 42 18 43 5 108<br />
Emenda constitucional 1 2 3 4 10<br />
Lei complementar 1 1 3 1 6<br />
Leis de iniciativa do Judiciário<br />
Leis ordinárias 5 7 2 14<br />
Subtotal 84 56 84 18 242<br />
Total Geral 201 257 180 27 665<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo,<br />
Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração dos autores<br />
Esse resultado, no entanto, deve ser visto com reservas. O volume de propostas apresentadas<br />
pelos deputados é consideravelmente maior do que aquelas iniciadas pelo Executivo.<br />
A agenda legislativa do Executivo é seletiva, pois a proposição das leis<br />
envolve negociações e acordos prévios. No caso do Legislativo, o volume<br />
de proposta é significativamente maior na medida em que é o resultado de<br />
estratégias descentralizadas, em boa parte individuais, reduzindo a eficiência<br />
deste Poder no processamento e seleção das suas iniciativas (FIGUEI-<br />
REDO & LIMONGI, 1999: 54). Durante a 52ª legislatura, os deputados<br />
apresentaram 6.944 projetos de lei ordinária, contra 174 iniciados pelo<br />
Executivo. Este protagonismo não se restringiu às leis ordinárias: 359 leis<br />
complementares e 550 PECs foram propostas pelos deputados, enquanto<br />
o Executivo restringiu a sua iniciativa a 8 projetos de leis complementares<br />
e 8 PECs33 O volume de propostas<br />
apresentadas<br />
pelos deputados é<br />
consideravelmente<br />
maior do que aquelas<br />
iniciadas pelo Executivo.<br />
A agenda legislativa<br />
do Executivo é seletiva,<br />
pois a proposição das<br />
leis envolve negociações<br />
. Ou seja, mesmo em relação às proposições de iniciativa não-<br />
e acordos prévios. No exclusiva, a relação entre o número de leis propostas e o total de leis apro-<br />
caso do Legislativo, o vadas reitera o sucesso legislativo do Executivo.<br />
volume de proposta é Merece também destaque, no período pós-constitucional, ser o con-<br />
significativamente maior trole de agenda pelo Executivo um determinante importante da sua ca-<br />
na medida em que é o pacidade de ditar o ritmo do processo legislativo (FIGUEIREDO & LIresultado<br />
de estratégias MONGI, 1999). A 52ª legislatura não se diferenciou quanto a isto. O<br />
descentralizadas, em tempo médio de tramitação das proposições de iniciativa exclusiva do Po-<br />
boa parte individuais, der Executivo – MPs e leis orçamentárias – foi bastante inferior ao das de<br />
reduzindo a eficiência iniciativa concorrente. Em média, o das MPs durou cerca de 110 dias, ou<br />
deste Poder no 135, quando modificadas pelos parlamentares. O trâmite mais rápido é o<br />
processamento e seleção das leis orçamentárias, cujo processo legislativo, em média, dura cerca de<br />
das suas iniciativas<br />
80 dias. Também as leis ordinárias com origem no Poder Executivo tiveram<br />
uma tramitação mais rápida: em média, 495 dias. As leis de autoria do<br />
Poder Legislativo exibem trajetória bastante distinta. Em média, as leis ordinárias propostas<br />
requerem 1.199 dias para aprovação.
TABELA 9 - Tempo médio de tramitação das<br />
leis ordinárias sancionadas - 52ª legislatura<br />
Média<br />
(dias)<br />
Desviopadrão<br />
Balanço da 52 a Legislatura<br />
Mínimo Máximo N<br />
Leis ordinárias de iniciativa exclusiva do Executivo<br />
Medida provisória (sem modificação) 110 37 0 372 154<br />
Medida provisória (PLV) 135 26 90 197 23<br />
Leis orçamentárias 1 80 49 0 350 246<br />
Leis ordinárias de iniciativa não-exclusiva<br />
Legislativo 1199 855 126 5845 108<br />
Executivo 495 688 16 4067 101<br />
Judiciário 785 986 91 3947 14<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo,<br />
Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração dos autores.<br />
1 A classificação utilizada nesta tabela segue a de Figueiredo e Limongi (2006), segundo a qual leis orçamentárias,<br />
de iniciativa exclusiva do presidente, englobam as peças orçamentárias (LDO, LOA, PPA) e proposições relacionadas<br />
à abertura de crédito suplementar e especial. Não se incluem em tal conjunto, portanto, as leis complementares e<br />
ordinárias, ainda que relacionadas a matérias orçamentárias. (Cintra, 2007).<br />
É em relação à natureza da agenda legislativa e à atenção alocada aos diferentes temas<br />
que a 52ª legislatura aponta questões importantes. No que tange às áreas de incidência das<br />
leis ordinárias sancionadas, de autoria dos parlamentares, persiste o padrão observado no<br />
período pós-constitucional. As leis “sociais” (43,5%) e as homenagens (36,1%) revelam-se<br />
como focos principais da deliberação parlamentar.<br />
ÁREAS<br />
TABELA 10 - Área temática das leis ordinárias<br />
sancionadas segundo a origem da iniciativa legal<br />
Legislativo Executivo Total<br />
N % N % N %<br />
50ª LEG<br />
ADM 26 18,8 92 37,7 134,0 33,7<br />
ECO 19 13,8 79 32,4 98 24,6<br />
HOM 4 2,9 - - 4 1,0<br />
POL 6 4,3 - - 6 1,5<br />
SOC 83 60,1 73 29,9 156 39,2<br />
138 100 244 100,0 398 100,0<br />
51ª LEG<br />
ADM 27 17,0 69 30,1 107 26,8<br />
ECO 19 11,9 81 35,4 101 25,3<br />
HOM 41 25,8 4 1,7 45 11,3<br />
POL 5 3,1 2 0,9 7 1,8<br />
SOC 67 42,1 73 31,9 140 35,0<br />
Revista Plenarium | 173
174 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
ÁREAS<br />
TABELA 10 - Área temática das leis ordinárias<br />
sancionadas segundo a origem da iniciativa legal<br />
Legislativo Executivo Total<br />
N % N % N %<br />
159 100 229 100,0 400 100,0<br />
52ª LEG<br />
ADM 14 13,0 70 29,7 98 27,4<br />
ECO 6 5,6 76 32,2 82 22,9<br />
HOM 39 36,1 2 0,8 41 11,5<br />
POL 2 1,9 3 1,3 5 1,4<br />
SOC 47 43,5 85 36,0 132 36,9<br />
108 100 236 100,0 358 100,0<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo,<br />
Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração dos autores.<br />
Em comparação com as legislaturas anteriores, no entanto, constata-se uma tendência<br />
de queda na proporção de leis ordinárias de natureza social iniciadas pelos parlamentares,<br />
havendo um crescimento das leis relativas a homenagens. A agenda social representou 60%<br />
das leis ordinárias de autoria dos parlamentares que foram sancionadas durante a 50ª legislatura.<br />
Nos períodos legislativos subseqüentes, 51ª e 52ª legislaturas, esta proporção caiu<br />
para 42% e 43%, respectivamente.<br />
Como não se observa um “encolhimento” da agenda social no volume total da produção<br />
legislativa, este resultado parece sinalizar para uma participação maior do Executivo na<br />
aprovação dessas matérias. De fato, verificou-se um peso maior das leis sociais no total de<br />
leis ordinárias oriundas do Executivo. Nas legislaturas anteriores, as leis relativas às matérias<br />
econômicas e administrativas predominavam entre aquelas iniciadas pelo Executivo. Este<br />
quadro reverteu-se na atual legislatura, quando as matérias de cunho social se tornam a área<br />
de maior incidência das leis propostas pelo Executivo (36%), numa proporção ligeiramente<br />
superior às leis de natureza econômica (29,7%) e administrativa (32%). Este resultado, no<br />
entanto, deve ser ponderado, tendo em vista que, entre as leis iniciadas por medida provisória,<br />
predominam as matérias econômicas e administrativas.<br />
A menor participação do Legislativo em relação à agenda social encobre, no entanto,<br />
um movimento importante de competição pelas iniciativas substantivas neste campo. Uma<br />
ilustração do protagonismo do Poder Legislativo na produção de políticas públicas foi a<br />
proposição, pelos legisladores, de um conjunto de medidas denominadas “choque social<br />
para proteção da população de baixa renda”, com o intuito de influenciar a definição de<br />
prioridades da Lei de Diretrizes Orçamentárias para o ano de 2005. Aprovado o substitutivo<br />
do relator da CMPOPF[1], o artigo relativo às ações do choque social sofreu o veto presidencial,<br />
com a seguinte justificativa:
Balanço da 52 a Legislatura<br />
Os dispositivos contrariam frontalmente a independência dos Poderes da União, ao permitir<br />
que o Poder Legislativo determine ao Poder Executivo o desenvolvimento de ações de sua<br />
competência e a elaboração e o encaminhamento ao Congresso Nacional de atos de sua iniciativa.<br />
As ações programadas no âmbito do proposto ‘choque social para proteção da população de baixa<br />
renda’ são de extrema relevância e já estão sendo objeto de prioridade e das respectivas iniciativas<br />
do Governo, como é o caso da criação dos programas Bolsa Família, Farmácia Popular, Brasil<br />
Alfabetizado e Microcrédito, do expressivo aumento dos investimentos em saneamento e habitação,<br />
da ampliação do programa Saúde Família e do combate ao trabalho e prostituição infantis, bem<br />
assim dos respectivos estudos para implantação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento<br />
da Educação Básica e da valorização dos profissionais da Educação – FUNDEB. No entanto,<br />
na forma proposta, os dispositivos, se aprovados, ensejarão a violação do art. 2º da Constituição,<br />
que garante a independência e harmonia entre os Poderes da União, devendo ser vetados por<br />
inconstitucionalidade. (Mensagem Presidencial n o 482, 11 de agosto de 2004).<br />
No total de 108 leis de autoria do Poder Legislativo, 75 foram iniciadas por deputados. A<br />
distribuição destas leis de acordo com a filiação partidária do autor mostra o impacto exercido<br />
pelo controle de ativos institucionais, mas ao mesmo tempo chama a atenção para possíveis<br />
efeitos do posicionamento dos partidos no eixo governo – oposição. Conforme demonstrado<br />
na tabela abaixo, os partidos que controlaram um maior número de cadeiras legislativas durante<br />
a 52ª legislatura, notadamente PT, PMDB e PFL, conseguiram aprovação de um número<br />
maior de leis iniciadas por seus membros. Mas esta não é uma relação inequívoca.<br />
O alinhamento dos partidos no eixo governo – oposição parece impactar as chances de<br />
sucesso dos partidos ou de seus membros no que diz respeito à aprovação de suas propostas.<br />
Do total de 74 leis iniciadas por deputados, os membros dos partidos que integraram a base<br />
parlamentar do governo respondem pela autoria de 68% delas. Dado ter a maior parte das<br />
propostas sido iniciada em legislaturas anteriores, é possível indagar se o alinhamento com<br />
o governo afeta o processo de seleção interna das propostas, ampliando a competitividade<br />
das iniciativas de autoria destes parlamentares na nova legislatura. Uma estratégia disponível<br />
ao governo é introduzir as suas preferências por meio da modificação de propostas de seu<br />
interesse com tramitação já iniciada – ou seja, o governo se utiliza do sponsorship de outros<br />
agentes para implementar sua agenda 34 . Tal estratégia torna-se importante principalmente<br />
na presença de conflitos intracoalizão, quando as barganhas e negociações na arena legislativa<br />
são importantes para aumentar a adesão em relação a determinadas iniciativas.<br />
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176 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
TABELA 11 - Distribuição das leis ordinárias<br />
sancionadas por partido do deputado autor<br />
52ª legislatura<br />
Partido do autor Legislatura em que a proposta de lei foi apresentada<br />
Coalizão de Governo Anterior Atual Total<br />
PT 9 6 15<br />
PcdoB 3 1 4<br />
PL 3 3<br />
PMDB 7 5 12<br />
PDS/PPB 4 2 6<br />
PSB 4 4 8<br />
PTB 3 3<br />
Subtotal 30 21 51<br />
Oposição Anterior Atual Total<br />
PSDB 6 2 8<br />
PFL 8 5 13<br />
PPS (1) 1 1<br />
PRONA 1 1<br />
Subtotal 14 9 23<br />
Total 44 30 74<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina<br />
Cheibub Figueiredo, Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração dos autores.<br />
(1) A aprovação desta lei ocorreu em 2005, quando o partido já se posicionava como oposição ao<br />
governo.<br />
É em relação à atuação do Poder Legislativo como mecanismo de checks and balance<br />
durante a 52ª legislatura que questões relevantes sobre o seu desempenho podem ser levantadas.<br />
O sistema de freios e contrapesos institucionais supõe o compartilhamento de funções<br />
entre poderes, incluindo a iniciativa legislativa, como uma condição necessária para que os<br />
Poderes possam se controlar mutuamente, evitando a operação de um unchecked power (PR-<br />
ZEWORSKI, 1998). Como parte disto, a apreciação dos vetos presidenciais consiste em<br />
um recurso decisivo do Poder Legislativo para contrabalancear os extensos poderes presidenciais<br />
que abrangem toda a cadeia decisória envolvida na produção de leis no país, incluindo<br />
a prerrogativa final de vetar, total ou parcialmente, as leis aprovadas pelo Parlamento.<br />
Do total de 652 leis analisadas até fevereiro de 2006, 92 (14%) sofreram algum tipo<br />
de veto presidencial, sendo que apenas 29 vetos foram apreciados e 26 mantidos. Chama a<br />
atenção que, além de o Executivo vetar mais as leis de sua autoria (Lamounier, 2005), esses<br />
vetos não têm sido apreciados na mesma proporção que os vetos às leis de autoria do Legislativo.<br />
Do total de 92 leis vetadas analisadas, 63 não tinham sido ainda apreciadas até o<br />
momento de levantamento dos dados (fevereiro/2006). Cabe destacar o volume expressivo<br />
de leis vetadas que tiveram origem no Executivo, ou seja, 43.
VETO (1)<br />
TABELA 12 - Situação dos vetos presidenciais<br />
segundo a autoria das leis sancionadas<br />
AUTORIA DA INICIATIVA LEGAL<br />
Balanço da 52 a Legislatura<br />
LEGISLATIVO EXECUTIVO JUDICIÁRIO Total<br />
Veto parcial mantido 12 14 26<br />
Veto parcial rejeitado 1 1<br />
Veto total rejeitado 2 2<br />
Veto não-apreciado 19 43 1 63<br />
Sem vetos 83 464 13 560<br />
Total 114 524 14 652<br />
Fonte: Votações Nominais na Câmara dos Deputados – 1989-2006; Fernando Limongi e Argelina Cheibub Figueiredo,<br />
Banco de Dados Legislativos, <strong>Cebrap</strong>. Elaboração dos autores<br />
(1) Dados atualizados até fevereiro de 2006.<br />
O balanço da produção legislativa mostrou persistir a dominância do Executivo sobre<br />
a produção em decorrência dos amplos poderes de iniciativa legislativa de que o presidente<br />
dispõe. No entanto, o uso de tais poderes teve os seus custos elevados sob a atual legislatura,<br />
dada a dinâmica assumida pela coalizão de governo e sua capacidade operativa na arena<br />
congressual. Embora a produtividade da Casa não se tenha reduzido de forma significativa,<br />
o volume de trabalhos legislativos e o grau de decisiveness 35 no período devem ser analisados<br />
vis-à-vis o fortalecimento de outras agendas na arena legislativa, em particular as relacionadas<br />
às atividades de fiscalização e controle 36 .<br />
V) Fiscalização e controle do Poder Executivo e o controle interno.<br />
O comportamento da Casa nos casos do mensalão e sanguessugas.<br />
As Casas Legislativas são corpos coletivos representativos e deliberativos 37 . São, também,<br />
importantes instrumentos de accountability horizontal, encarregados de monitorar,<br />
controlar e fiscalizar os atos e omissões do Poder Executivo e, idealmente, loci privilegiados<br />
da expressão do melhor interesse dos cidadãos.<br />
Ademais, as Casas Legislativas são organizações complexas que contêm três importantes<br />
fóruns decisórios: o Plenário, as Comissões e o Colégio de Líderes. Nesta seção se<br />
examina a atuação desses fóruns, tomando como parâmetro um dos atributos desejáveis da<br />
democracia: o da accountability.<br />
Para o exercício adequado de suas funções de legislar e de fiscalizar, as Casas Legislativas<br />
devem abrigar instrumentos institucionalizados e permanentes que permitam aos cidadãos<br />
vocalizarem suas demandas perante seus representantes e reconstituírem a cadeia causal que<br />
liga suas demandas às políticas e estas aos resultados produzidos (ARNOLD, 1990) 38 .<br />
Dadas as limitações de tempo e de espaço, que lhes impossibilitam uma análise mais<br />
aprofundada do tema em pauta, optaram os autores por destacar, no que se refere aos três<br />
principais fóruns decisórios da Câmara dos Deputados, alguns mecanismos que afetam a<br />
produção da accountability horizontal e vertical, a saber: 1) a existência e a operação de me-<br />
Revista Plenarium | 177
178 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
canismos institucionalizados de interlocução com os cidadãos; 2) a organização do sistema<br />
de comissões e o grau de correspondência entre a jurisdição das comissões permanentes e<br />
a das pastas ministeriais; 3) as regras e o funcionamento efetivo do Colégio de Líderes; e<br />
4) a instalação e a operação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) no período<br />
analisado, com ênfase nas organizadas para o esclarecimento dos escândalos de corrupção<br />
que irromperam no ano de 2005.<br />
V.1) Demandas, políticas e resultados<br />
A participação institucionalizada dos cidadãos no processo legislativo está prevista na<br />
Constituição de 1988 através de três instrumentos que constituem contextos decisórios<br />
descontínuos (Sartori, 1994), a saber: iniciativa popular, referendo e plebiscito. No entanto,<br />
é a partir de 2001, com a criação da Comissão de Legislação Participativa 39 (CLP) e da<br />
Ouvidoria Parlamentar 40 , que são instituídos mecanismos permanentes de interlocução da<br />
Casa com os cidadãos.<br />
No período compreendido entre 2001 e 2006, a CLP recebeu um total de 451 sugestões<br />
de legislação, como pode ser observado através da leitura do Quadro 1, abaixo. Vale<br />
ressaltar o maior protagonismo dos cidadãos nos dois últimos anos (2005 e 2006), especialmente<br />
no que se refere à proposição de projetos de lei e de requerimentos de audiência pública.<br />
Uma hipótese plausível para explicar tal padrão relaciona-se com a ocorrência da crise<br />
política em 2005 e com as tentativas dos grupos organizados de ativarem os mecanismos<br />
de produção legislativa – que, como se observou na seção anterior, sofreram os impactos da<br />
crise – e de responsabilização dos representantes eleitos. Tal hipótese, no entanto, não tem<br />
como ser submetida a teste empírico no momento, ficando como proposta de agenda para<br />
investigações futuras.<br />
QUADRO 1- Sugestões recebidas na CLP no período de 2001 a 2006<br />
Sugestões (projetos de lei,<br />
requerimento de audiência<br />
pública, etc.)<br />
Sugestões de emendas à Lei<br />
Orçamentária Anual<br />
Sugestões de emendas ao<br />
Plano Plurianual<br />
Sugestões de emendas à Lei<br />
de Diretrizes Orçamentárias<br />
2001 2002 2003 2004 2005 2006 Total<br />
24 59 57 28 107 68 343<br />
11 21 16 12 21 14 95<br />
01 01<br />
05 07 12<br />
Total 35 80 74 40 133 89 451<br />
Fonte: www.camara.gov.br (Atualizada em 13/11/06)<br />
Deste conjunto de 451 sugestões legislativas, 138 foram transformadas em proposições<br />
e encaminhadas à tramitação legislativa, com destaque para projetos de lei (75), emendas à<br />
LOA(25), emendas à LDO (12) e 9 requerimentos de audiências públicas e seminários 41 .
Balanço da 52 a Legislatura<br />
Vale observar, ainda, que 50 das 138 sugestões transformadas em proposições foram encaminhadas<br />
à CLP em 2005(25) e 2006(25), atestando que a ampliação da participação da<br />
sociedade, nesses dois anos, repercutiu para além dos muros da CLP.<br />
A Ouvidoria Parlamentar, criada através da Resolução nº 19, de 14 de março de<br />
2001(Ato da Mesa nº 56 de 2001), integra a estrura administrativa da Casa e tem por<br />
atribuições receber, examinar e encaminhar aos órgãos competentes as reclamações e/ou<br />
representações de pessoas físicas ou jurídicas 42 .<br />
O Relatório de Atividades referente ao ano de 2004, último disponível no Portal da<br />
Câmara dos Deputados, registra um total de 2.219 contatos recebidos pela Ouvidoria, dos<br />
quais 2.201 foram resolvidos e 18 continuam pendentes. Entre 2003 e 2004 verificou-se<br />
o aumento de 52% no número de contatos recebidos e resolvidos pela Ouvidoria, o que<br />
atesta, segundo o relatório citado, o crescimento do alcance do trabalho desenvolvido pela Ouvidoria<br />
Parlamentar. A inexistência de informações relativas aos anos de 2005 e 2006, no<br />
Portal da Câmara, impossibilita a análise do desempenho da Ouvidoria nestes anos.<br />
V.2) Comissões permanentes e pastas ministeriais<br />
Sabe-se que as Casas Legislativas são organizadas em partidos e comissões, daí a centralidade<br />
de dois dos três fóruns decisórios mencionados no início desta seção: o Colégio<br />
de Líderes e o Sistema de Comissões. Nas democracias, espera-se que as comissões sejam<br />
os principais fóruns decisórios do Poder Legislativo, considerando-se que elas constituem<br />
comitês (SARTORI, 1994) 43 e que, sob condições adequadas,<br />
facultam o desenvolvimento da expertise<br />
de seus membros, aumentando suas capacidades<br />
de exercerem suas funções de<br />
legislar e de fiscalizar os atos e as<br />
omissões do Poder Executivo.<br />
O exame das alterações efetuadas<br />
no Sistema de Comissões<br />
da Câmara dos Deputados no<br />
período compreendido entre<br />
2000 e 2006 – respectivamente,<br />
5ª e 7ª edições do Regimento Interno<br />
da CD – permite afirmar que tal<br />
sistema vem se modificando no sentido<br />
de responder a duas ordens<br />
de questões: primeiro, adequar-se<br />
aos novos temas que<br />
emergem da dinâmica social<br />
e que pressionam por se<br />
fazerem representar na dinâmica<br />
política; segundo,<br />
Revista Plenarium | 179
180 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
capacitar melhor o Poder Legislativo para exercer suas atribuições de fiscalização e controle<br />
do Poder Executivo.<br />
No que se refere à primeira ordem de questões, vale assinalar a criação de novas comissões<br />
permanentes como, por exemplo, a Comissão de Segurança Pública e de Combate<br />
ao Crime Organizado, a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável e<br />
a própria Comissão de Legislação Participativa, anteriormente mencionada. Ademais, comissões<br />
que tratavam de assuntos variados foram desmembradas e/ou reorganizadas, como<br />
ocorreu com a Comissão de Constituição e Justiça e de Redação, transformada em Comissão<br />
de Constituição e Justiça e de Cidadania, ou com a Comissão de Educação, Cultura e<br />
Desporto e com a Comissão de Economia, Indústria, Comércio e Turismo, que geraram a<br />
Comissão de Educação e Cultura, a Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e<br />
Comércio e a Comissão de Turismo e Desporto. O quadro 2, abaixo, permite visualizar as<br />
alterações efetuadas no Sistema de Comissões da CD entre 2000 e 2006. Portanto, pode-se<br />
constatar, através do exame da evolução do sistema de comissões, o aperfeiçoamento institucional<br />
da CD e sua maior capacitação para expressar e representar a complexidade e a<br />
heterogeneidade da sociedade brasileira.<br />
No que se refere à segunda ordem de questões, a literatura que trata das relações entre<br />
os Poderes Executivo e Legislativo no Brasil tem dado grande atenção às taxas de coalescência<br />
(AMORIM NETO, 2000) observadas entre a composição partidária da Câmara dos<br />
Deputados e a sua tradução na composição dos gabinetes ministeriais. Menos estudada, no<br />
entanto, tem sido a correspondência entre a jurisdição das comissões permanentes e das pastas<br />
ministeriais, que constitui, de acordo com Strom (1990), um dos indicadores da variável<br />
‘influência das oposições’ 44 .<br />
Além de sinalizar o grau de influência das oposições, acredita-se que esse indicador permite<br />
analisar o grau de assimetria informacional entre os Poderes Executivo e Legislativo:<br />
O suposto aqui é de que a maior correspondência entre pastas e comissões e entre<br />
comissões das duas câmaras, onde for o caso, aumenta as chances de as oposições influenciarem<br />
o processo e as decisões legislativas e diminui a assimetria informacional entre os dois Poderes,<br />
o que contribui para a ocorrência de um Legislativo mais pró-ativo, relativamente ao Executivo<br />
(ANASTASIA, MELO & SANTOS, 2004: 106).<br />
A assimetria informacional entre os Poderes Executivo e Legislativo é um dos principais<br />
óbices ao exercício efetivo das atribuições, pelas Casas Legislativas, de accountability horizontal.<br />
Com vistas a analisar os graus de correspondência entre a jurisdição das comissões<br />
permanentes da CD e aquela das pastas ministeriais, na 52ª legislatura, o Quadro 2 (abaixo)<br />
apresenta na sua última coluna a relação dos ministérios vinculados a temas substantivos em<br />
operação no período 2003–3007.
Balanço da 52 a Legislatura<br />
QUADRO 2 - Comissões Permanentes 1 (2000, 2003 e 2006) da Câmara<br />
dos Deputados e Pastas Ministeriais (2003-2007)<br />
Comissões<br />
permanentes (2000)<br />
Comissão de<br />
Agricultura e <strong>Política</strong><br />
Rural<br />
Comissão de Ciência<br />
e Tecnologia,<br />
Comunicação e<br />
Informática<br />
Comissão de<br />
Constituição e<br />
Justiça e de Redação<br />
Comissão de Defesa<br />
do Consumidor, Meio<br />
Ambiente e Minorias<br />
Comissão da<br />
Amazônia e de<br />
Desenvolvimento<br />
Regional<br />
Comissão de<br />
Economia, Indústria<br />
e Comércio<br />
Comissão de<br />
Educação, Cultura e<br />
Desporto<br />
Comissões<br />
permanentes (2003)<br />
Comissão de<br />
Agricultura e <strong>Política</strong><br />
Rural<br />
Comissão de Ciência<br />
e Tecnologia,<br />
Comunicação e<br />
Informática<br />
Comissão de<br />
Constituição e<br />
Justiça e de Redação<br />
Comissão de Defesa<br />
do Consumidor, Meio<br />
Ambiente e Minorias<br />
Comissão da<br />
Amazônia e de<br />
Desenvolvimento<br />
Regional<br />
Comissão de<br />
Economia, Indústria,<br />
Comércio e Turismo<br />
Comissão de<br />
Educação, Cultura e<br />
Desporto<br />
Comissões<br />
permanentes (2006)<br />
Comissão de<br />
Agricultura, Pecuária,<br />
Abastecimento e<br />
Desenvolvimento<br />
Rural<br />
Comissão de Ciência<br />
e Tecnologia,<br />
Comunicação e<br />
Informática<br />
Comissão de<br />
Constituição<br />
e Justiça e de<br />
Cidadania<br />
Comissão de Defesa<br />
do Consumidor<br />
Comissão da<br />
Amazônia,<br />
Integração<br />
Nacional e de<br />
Desenvolvimento<br />
Regional<br />
Comissão de<br />
Desenvolvimento<br />
Econômico, Indústria<br />
e Comércio<br />
Comissão de<br />
Educação e Cultura<br />
Pastas ministeriais<br />
2003-2007<br />
Ministério da<br />
Agricultura, Pecuária<br />
e Abastecimento<br />
Ministério do<br />
Desenvolvimento<br />
Agrário<br />
Secretaria Especial<br />
da Agricultura e<br />
Pesca<br />
Ministério de Ciência<br />
e Tecnologia<br />
Ministério das<br />
Comunicações<br />
Ministério da Justiça<br />
Ministério da<br />
Justiça 2<br />
Ministério da<br />
Integração Nacional<br />
Ministério do<br />
Desenvolvimento,<br />
Indústria e Comércio<br />
Exterior<br />
Secretaria Especial<br />
do Conselho de<br />
Desenvolvimento<br />
Econômico e Social<br />
Ministério da<br />
Educação<br />
Ministério da Cultura<br />
Revista Plenarium | 181
182 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
QUADRO 2 - Comissões permanentes 1 (2000, 2003 e 2006) da Câmara<br />
dos Deputados e pastas ministeriais (2003-2007)<br />
Comissões<br />
permanentes (2000)<br />
Comissão de<br />
Fiscalização<br />
Financeira e Controle<br />
Comissão de<br />
Finanças e<br />
Tributação<br />
Comissão de Minas e<br />
Energia<br />
Comissão de<br />
Relações Exteriores e<br />
de Defesa Nacional<br />
Comissão de<br />
Seguridade Social e<br />
Família<br />
Comissão de<br />
Trabalho, de<br />
Administração e de<br />
Serviço Público<br />
Comissão de Viação e<br />
Transportes<br />
Comissão de<br />
Desenvolvimento<br />
Urbano e Interior<br />
Comissão de Direitos<br />
Humanos<br />
Comissões<br />
permanentes (2003)<br />
Comissão de<br />
Fiscalização<br />
Financeira e Controle<br />
Comissão de<br />
Finanças e<br />
Tributação<br />
Comissão de Minas e<br />
Energia<br />
Comissão de<br />
Relações Exteriores e<br />
de Defesa Nacional<br />
Comissão de<br />
Seguridade Social e<br />
Família<br />
Comissão de<br />
Trabalho, de<br />
Administração e de<br />
Serviço Público<br />
Comissão de Viação e<br />
Transportes<br />
Comissão de<br />
Desenvolvimento<br />
Urbano e Interior<br />
Comissão de Direitos<br />
Humanos<br />
Comissões<br />
permanentes (2006)<br />
Comissão de<br />
Fiscalização<br />
Financeira e<br />
Controle 3<br />
Comissão de<br />
Finanças e<br />
Tributação<br />
Comissão de Minas e<br />
Energia<br />
Comissão de<br />
Relações Exteriores e<br />
de Defesa Nacional<br />
Comissão de<br />
Seguridade Social e<br />
Família<br />
Comissão de<br />
Trabalho, de<br />
Administração e de<br />
Serviço Público<br />
Comissão de Viação e<br />
Transportes<br />
Comissão de<br />
Desenvolvimento<br />
Urbano<br />
Comissão de Direitos<br />
Humanos e Minorias<br />
Pastas ministeriais<br />
2003-2007<br />
Ministério do<br />
Planejamento,<br />
Orçamento e Gestão<br />
Ministério da<br />
Fazenda<br />
Ministério de Minas e<br />
Energia<br />
Ministério da Defesa<br />
Ministério das<br />
Relações Exteriores<br />
Ministério da<br />
Previdência Social<br />
Ministério da Saúde<br />
Ministério do<br />
Desenvolvimento<br />
Social e Combate à<br />
Fome 4<br />
Ministério do<br />
Trabalho e Emprego<br />
Ministério dos<br />
Transportes<br />
Ministério das<br />
Cidades<br />
Secretaria Especial<br />
dos Direitos<br />
Humanos<br />
Secretaria Especial<br />
de <strong>Política</strong> para<br />
Mulheres<br />
Secretaria Especial<br />
de <strong>Política</strong>s de<br />
Promoção da<br />
Igualdade Racial 5
Balanço da 52 a Legislatura<br />
QUADRO 2 - Comissões permanentes 1 (2000, 2003 e 2006) da Câmara<br />
dos Deputados e pastas ministeriais (2003-2007)<br />
Comissões<br />
permanentes (2000)<br />
-<br />
-<br />
- -<br />
- -<br />
Comissão Mista do<br />
Orçamento<br />
Comissões<br />
permanentes (2003)<br />
Comissão de<br />
Legislação<br />
Participativa<br />
Comissão de<br />
Segurança Pública<br />
e Combate ao<br />
Crime Organizado,<br />
Violência e<br />
Narcotráfico<br />
Comissão Mista do<br />
Orçamento<br />
Comissões<br />
permanentes (2006)<br />
Comissão de<br />
Legislação<br />
Participativa<br />
Comissão de<br />
Segurança Pública e<br />
de Combate ao Crime<br />
Organizado<br />
Comissão de<br />
Meio Ambiente e<br />
Desenvolvimento<br />
Sustentável<br />
Comissão de Turismo<br />
e Desporto<br />
Comissão Mista do<br />
Orçamento 7<br />
Pastas ministeriais<br />
2003-2007<br />
Ministério da<br />
Justiça 6<br />
Ministério do Meio<br />
Ambiente<br />
Ministério do Esporte<br />
Ministério do<br />
Turismo<br />
Ministério do<br />
Planejamento,<br />
Orçamento e Gestão<br />
1 Além das Comissões abaixo relacionadas, vale mencionar a Comissão Mista do Mercosul, cujas peculiaridades<br />
informaram a decisão de não incluí-la neste quadro. Maiores informações sobre tal comissão podem ser encontradas<br />
em: http://www2.camara.gov.br/comissoes/cpcms/apresentacao.html.<br />
2 Integram o Ministério da Justiça a Secretaria de Direito Econômico, incluindo o Departamento de Proteção e Defesa<br />
do Consumidor, e o Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos – CFDD.<br />
3 O artigo 32, inciso VIII, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados apresenta as atribuições da Comissão de<br />
Fiscalização Financeira e Controle.<br />
4 O MDS iniciou suas atividades em fevereiro de 2004 e substituiu o Ministério da Assistência Social. A MP 163/04<br />
criou o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e a Secretaria de Coordenação <strong>Política</strong> e Assuntos<br />
Institucionais.<br />
5 A Medida Provisória 111/03, que cria a Secretaria Especial de <strong>Política</strong>s de Promoção da Igualdade Racial na<br />
estrutura da Presidência da República, foi aprovada pela Câmara dos Deputados em 13/5/2003, dia em que se<br />
comemora a abolição da escravatura. (Agência Câmara, Consolidada, 13/5/2003).<br />
6 A Secretaria Nacional de Segurança Pública, o Departamento Penitenciário Nacional e o Departamento da Polícia<br />
Federal fazem parte da estrutura do Ministério da Justiça, além dos seguintes órgãos colegiados: Conselho Nacional<br />
de Segurança Pública (CONASP) e o Conselho Nacional de <strong>Política</strong> Criminal e Penitenciária (CNPCP).<br />
7 Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização – CMO Fiscalize o Orçamento. A Câmara dos Deputados<br />
disponibiliza aos cidadãos e entidades da sociedade civil um novo sistema de consultas à execução orçamentária<br />
e financeira, construído a partir de dados do SIAFI, denominado FISCALIZE. Fonte: http://www2.camara.gov.br/<br />
orcamentobrasil/fiscalize<br />
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184 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
Malgrado as comissões permanentes poderem, segundo o Regimento Interno da CD 45 ,<br />
organizar subcomissões ou turmas, tais subcomissões ou turmas não possuem poder decisório<br />
e estão restritas ao exame de parte das matérias de seu campo temático ou área de atuação.<br />
Portanto, tal estrutura não produz impactos significativos na capacidade das comissões<br />
permanentes de fiscalizarem os atos e omissões do Poder Executivo. A exceção a esta regra é<br />
a Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO) 46 , cujos comitês e<br />
subcomissões desempenham papel central nas decisões relacionadas à matéria orçamentária<br />
e na fiscalização da execução do Orçamento Público nas áreas temáticas a eles relacionadas.<br />
Portanto, para fins de análise desta seção, não serão consideradas as subcomissões presentes<br />
no interior das comissões permanentes da CD.<br />
A observação das duas últimas colunas do quadro 2 permite verificar que, não obstante<br />
o avanço observado na estruturação do sistema de comissões da CD, persiste significativa<br />
incongruência entre as jurisdições das comissões permanentes e das pastas ministeriais. O<br />
número de pastas ministeriais supera, em muito, o número de comissões permanentes.<br />
Ademais, temas que estão reunidos em uma única comissão ensejam a organização de dois<br />
ou três diferentes ministérios, o que, obviamente, permite supor maior expertise no âmbito<br />
das pastas ministeriais do que das comissões legislativas 47 . Apenas em dois casos – Comissão<br />
de Defesa do Consumidor e Comissão de Segurança Pública e de Combate ao Crime Organizado<br />
– verificou-se a existência de comissões que tratam de temas substantivos que não<br />
encontram pastas ministeriais específicas com jurisdições correspondentes 48 . Os assuntos<br />
relacionados à Comissão de Defesa do Consumidor estão na alçada do Ministério da Justiça,<br />
que, além da jurisprudência correspondente à da Comissão de Constituição e Justiça e de<br />
Cidadania, abarca também as questões relativas à segurança pública, temas abordados na<br />
CD pela Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado.<br />
V.3) O Colégio de Líderes<br />
Reza o Regimento Interno da Câmara dos Deputados, em seu capítulo II, artigo 20:<br />
Os Líderes da Maioria, da Minoria, dos Partidos, dos Blocos Parlamentares e do Governo<br />
constituem o Colégio de Líderes.<br />
§ 1 o Os Líderes de Partidos que participem de Bloco Parlamentar e o Líder do Governo<br />
terão direito a voz, no Colégio de Líderes, mas não a voto.<br />
§ 2 o Sempre que possível, as deliberações do Colégio de Líderes serão tomadas mediante<br />
consenso entre seus integrantes; quando isto não for possível, prevalecerá o critério da<br />
maioria absoluta, ponderados os votos dos Líderes em função da expressão numérica de<br />
cada bancada.<br />
Tal dispositivo regimental deixa claros os procedimentos decisórios a serem observados<br />
no Colégio de Líderes, especificando-lhe a composição, os atores com direito a voz, aqueles<br />
com direito a voz e a voto e a regra de maioria a ser mobilizada quando não for possível<br />
produzir o consenso entre os membros de tal órgão.
Balanço da 52 a Legislatura<br />
A explicitação de tais regras reveste-se da maior importância, especialmente quando se<br />
constata que grande parte das decisões tomadas no plenário da Câmara, inclusive algumas<br />
relacionadas a matérias bastante relevantes, o são através de votações simbólicas, precedidas<br />
de acordo de lideranças produzido no âmbito do Colégio de Líderes.<br />
Seria de esperar, portanto, que as decisões do Colégio de Líderes, bem como o processo<br />
de deliberação política que as produziu, estivessem cuidadosamente registradas em atas e<br />
que tais documentos fossem públicos e de fácil acesso aos cidadãos.<br />
No entanto, a busca de tais informações pelos autores deste artigo mostrou-se infrutífera.<br />
Foram localizados parcos e esparsos registros de reuniões, a maioria dos quais tratava<br />
apenas da definição da pauta dos trabalhos do Plenário da Casa para os dias subseqüentes.<br />
A inexistência ou inacessibilidade de tais registros suscita um sério problema de accountability,<br />
ao impedir a reconstituição do processo decisório relativo àqueles temas que foram<br />
objetos de votação simbólica no plenário da Casa e impossibilitar a responsabilização, pelos<br />
cidadãos, de seus agentes. Desta forma, se é fato, como aventado anteriormente, que a composição<br />
plural do Colégio de Líderes pode favorecer a expressão de conflitos interpartidários no<br />
interior dessa arena decisória e ampliar a capacidade dos partidos e das oposições para monitorarem<br />
reciprocamente os acordos conduzidos nesta arena, a não-disponibilidade de registros<br />
sobre tais negociações contribui para a invisibilidade das decisões que afetam os cidadãos.<br />
Embora se ressalte a importância do Colégio de Líderes para a coordenação das ações<br />
no âmbito legislativo, de forma a contribuir para a redução dos custos decisórios, a atuação<br />
dessa instância decisória não deveria provocar restrições à deliberação parlamentar. No entanto,<br />
na prática, tais restrições têm ocorrido, impactando negativamente a representatividade<br />
das decisões legislativas assim conduzidas e mitigando a capacidade dos parlamentares<br />
de reduzir as incertezas em relação às decisões tomadas e de antecipar os seus custos.<br />
Um dos últimos episódios protagonizados pela 52ª legislatura ilustra bem o ponto:<br />
a tentativa de elevação dos salários do parlamentares em dezembro de 2006. A decisão de<br />
aumentar em mais de 90% os vencimentos mensais, equiparando-os aos dos ministros do<br />
STF, foi acordada pelas lideranças do Congresso Nacional – direção das duas Casas Legislativas<br />
e lideranças partidárias 49 . Com vistas à redução dos custos decisórios, incluindo a sua<br />
aprovação em um curtíssimo prazo 50 , as lideranças sinalizaram com uma estratégia procedimental<br />
de regulamentação do aumento por meio de um ato conjunto das Mesas Diretoras<br />
das duas Casas Legislativas, sem a apreciação da decisão em plenário.<br />
O preço da restrição da deliberação parlamentar – reduzindo as oportunidades para se<br />
estimar os custos da decisão e seus impactos sobre os cidadãos – mostrou-se bastante elevado,<br />
na medida em que o desfecho do processo inviabilizou qualquer decisão pela atual legislatura.<br />
A decisão substantiva sofreu fortes reações por parte dos cidadãos, com a mobilização extraparlamentar<br />
contra a iniciativa do Legislativo, e a estratégia procedimental foi inviabilizada<br />
mediante o recurso ao Poder Judiciário por parte de parlamentares opositores à decisão 51 .<br />
Neste contexto, os custos decisórios elevaram-se sobremaneira, inviabilizando estratégias<br />
alternativas de reajuste salarial para os parlamentares. A tentativa de apreciar outras propostas<br />
legislativas – incluindo a proposta derrotada por decisão das lideranças partidárias –<br />
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186 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
mostrou-se excessivamente custosa, tendo os parlamentares deliberado pela retirada das matérias<br />
da pauta de votação e a transferência da decisão para a próxima legislatura.<br />
V.4) As comissões parlamentares de inquérito<br />
A crise política que se abateu sobre a Câmara dos Deputados a partir de 2005 impactou<br />
negativamente a produção legal da Casa, como afirmado anteriormente, e mobilizou grande<br />
parte de seus membros para o ativismo das comissões parlamentares de inquérito, seja enquanto<br />
integrantes das mesmas, seja enquanto investigados por elas.<br />
Nos anos de 2003 e 2004, entre as CPIs instauradas, vale mencionar:<br />
a do INSS; a da Biopirataria; a do Banestado; a dos Grupos de Extermínio;<br />
a do Tráfico de Órgãos Humanos; a do Roubo de Veículos (CPMI<br />
do Desmanche); a da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e a da<br />
Adulteração dos Combustíveis, entre outras.<br />
Em 2005 e 2006, no entanto, é que foi conferida maior centralidade<br />
e maior atenção pública às comissões parlamentares de inquérito, especialmente<br />
as que ficaram conhecidas como CPI dos Correios, CPI do Mensalão<br />
e CPI das Sanguessugas.<br />
Não cabe, neste artigo, relatar os acontecimentos que deram origem a<br />
tais comissões. Cabe, no entanto, chamar a atenção para que, não obstante<br />
as investigações conduzidas por elas tenham produzido impressionante<br />
corpo de evidências e recomendado a cassação de um número expressivo<br />
de parlamentares envolvidos com os escândalos de corrupção, os julgamentos<br />
dos acusados resultaram, na maioria dos casos, na sua absolvição,<br />
o que contribuiu para aumentar ainda mais os índices de desaprovação,<br />
historicamente altos, da Casa pelos cidadãos.<br />
Do ponto de vista, portanto, do desejável atributo da accountability, pode-se afirmar, por<br />
um lado, que o fato de a corrupção ter-se transformado em escândalo evidencia o funcionamento<br />
adequado das instituições democráticas. Por outro lado, o fato de os escândalos, após<br />
apuradas as responsabilidades, não terem produzido as punições – especialmente as cassações<br />
de mandatos – previstas em lei evidencia a necessidade de aperfeiçoamento institucional52 .<br />
Claro está, como tem sido amplamente debatido na CD e na mídia, que a adoção do voto<br />
aberto propiciaria melhores condições de responsabilização dos representantes pelos cidadãos.<br />
Excluindo-se as votações relacionadas à apreciação dos vetos do presidente, nas quais se justifica<br />
o voto secreto para evitar qualquer tipo de pressão do Poder Executivo sobre os parlamentares,<br />
o exercício da representação democrática – portanto responsiva aos melhores interesses dos<br />
cidadãos e responsável perante eles – só teria a ganhar com a adoção do voto aberto53 .<br />
No entanto, em que pesem as inúmeras tentativas de substituição do voto secreto pelo<br />
voto aberto, que incluíram a instalação de uma Frente Parlamentar em Defesa do Voto Aberto,<br />
em abril de 2006, a 52ª legislatura não teve sucesso em aprovar a PEC 349/01, do deputado<br />
Luis Antônio Fleury, que extingue o voto secreto nas decisões da Câmara e do Senado54 O fato de a corrupção<br />
ter-se transformado em<br />
escândalo evidencia<br />
o funcionamento<br />
adequado das instituições<br />
democráticas. Por<br />
outro lado, o fato de os<br />
escândalos, após apuradas<br />
as responsabilidades,<br />
não terem produzido as<br />
punições – especialmente<br />
as cassações de mandatos<br />
– previstas em lei,<br />
evidencia a necessidade<br />
de aperfeiçoamento<br />
institucional<br />
.<br />
No dia 5 de setembro de 2006, o plenário da Câmara aprovou, em primeiro turno, por<br />
383 votos a favor, nenhum contrário e quatro abstenções, o fim do voto secreto em todas as
Balanço da 52 a Legislatura<br />
decisões do Legislativo. O texto aprovado expressa a aglutinação, em torno da PEC 349/01,<br />
de um conjunto de outras iniciativas legais. Embora a votação em segundo turno devesse ter<br />
ocorrido depois de transcorrido o intervalo de 5 sessões, a 52ª legislatura encerrou-se sem<br />
apreciar a matéria em segundo turno.<br />
VI) Conclusões: estabilidade, representatividade e accountability:<br />
um balanço da legislatura 2003-2007<br />
Passados quatro anos, que balanço de perdas e ganhos pode ser feito, relativamente às<br />
ações e às omissões dos representantes eleitos em 2002? Propõe-se, nesta conclusão, que<br />
tal balanço tenha por parâmetro a produção dos três atributos desejáveis da democracia, a<br />
saber: representatividade, accountability e estabilidade.<br />
No que se refere ao atributo da estabilidade política 55 , vale indagar se a crise política<br />
que se inaugurou no país em 2005 resultou da vigência de instituições precárias ou inadequadas<br />
– circunstância em que seria pertinente a referência a ‘crise institucional’ – ou se,<br />
alternativamente, a crise se instalou apesar das boas instituições políticas em presença e se<br />
tornou pública exatamente em conseqüência da operação virtuosa de tais instituições, situação<br />
em que seria mais adequado falar em crise ‘política’, e não ‘institucional’.<br />
Argumenta-se, aqui, que tal crise não afetou a estabilidade da ordem democrática e<br />
nem constituiu sintoma de sua fragilidade. Antes pelo contrário, e seguindo as ponderações<br />
de Norberto Bobbio, segundo as quais escândalo é a corrupção que vem a público, em<br />
havendo corrupção, a sua tradução em escândalo é sintoma de robustez das instituições democráticas,<br />
ainda que seus desdobramentos possam, como se argumentará a seguir, indicar<br />
déficits relacionados aos outros atributos da democracia.<br />
Instituições não fazem milagres. Não se pode exigir delas resultados que não dependem<br />
exclusivamente de seu desempenho. Ademais, as instituições, assim como as pessoas, ou sucumbem<br />
às crises ou as superam e se robustecem com elas. No interesse do aperfeiçoamento<br />
e do fortalecimento das instituições democráticas brasileiras, vale indagar: o que é possível<br />
aprender com a recente crise política? Como superá-la e retirar dela ensinamentos que contribuam<br />
para a operação mais virtuosa da democracia brasileira?<br />
Afirma-se o caráter político, e não institucional da crise, e afirma-se, ademais, que ela<br />
decorreu, fundamentalmente, das escolhas dos atores políticos, sob certas circunstâncias, e não<br />
de eventuais óbices ou limitações interpostos, pelo arranjo institucional em presença, à expressão<br />
política de determinadas preferências. Sabe-se que um dos desafios do presidencialismo de<br />
coalizão brasileiro relaciona-se com a necessidade inarredável de construção de maiorias governativas.<br />
No entanto, vale perguntar: a que preço? E com quais recursos e procedimentos?<br />
Tais indagações nos remetem, de imediato, à consideração de outro atributo da democracia:<br />
o da representatividade. É este o atributo mais afetado pelas recorrentes denúncias<br />
de corrupção, de compra de votos e de uso de recursos públicos para alimentar campanhas e<br />
fazer frente a outras despesas partidárias. Tais práticas, onde comprovadas, alteram o padrão<br />
decisório da Câmara dos Deputados e revelam que as escolhas dos representantes eleitos, ou<br />
Revista Plenarium | 187
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Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
de alguns deles, não está sendo informada pela busca dos melhores interesses dos cidadãos<br />
e, sim, pela ótica estreita de seus próprios interesses pecuniários.<br />
Portanto, a crise política deflagrada em 2005 pode ser diagnosticada, sobretudo, como<br />
uma crise de representatividade e, secundariamente, de accountability, já que, apuradas as<br />
responsabilidades e identificados os envolvidos em tais irregularidades, a sua não punição,<br />
como ocorreu na grande maioria dos casos, é indicativa de déficits de instrumentos de responsabilização<br />
dos representantes pelos representados.<br />
Cabe lembrar, ainda, que o episódio do aumento dos salários dos parlamentares em<br />
91% – decisão através de procedimentos considerados impróprios pelo Supremo Tribunal<br />
Federal, tendo em vista a não apreciação da matéria pelo Plenário da Casa – foi a gota<br />
d’água que provocou o transbordamento do desgaste político da legislatura em tela.<br />
Porém, nem só de crise viveu a Câmara dos Deputados, no decorrer da 52ª. legislatura.<br />
Vale, portanto, assinalar iniciativas e ações que, ao longo do período sob análise, produziram<br />
impactos sobre os três atributos democráticos.<br />
Apesar da crise, a Câmara dos Deputados conseguiu desenvolver uma<br />
extensa e importante agenda política, que resultou na aprovação, especialmente<br />
nos dois primeiros anos, de importantes iniciativas legais: a reforma<br />
da previdência, o texto principal da reforma tributária, várias MPs, como a<br />
do Refis, do Cofins, da DRU, da Cide, a criação dos programas Bolsa Família<br />
e ProUni, a Lei das Falências, das Parcerias Público-Privadas e a aprovação<br />
do Estatuto do Desarmamento.<br />
No plano social, vale ressaltar os ganhos reais incorporados ao salário<br />
mínimo, que foi elevado em aproximadamente 46% ao longo da legislatura.<br />
Vale, também, sublinhar algumas iniciativas do Poder Legislativo de ampliar<br />
seu protagonismo na proposição e na aprovação de leis sociais, como ocorreu<br />
no caso da apresentação, pelo senador Garibaldi Alves Filho, de substitutivo<br />
à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2005, aprovado pelo Congresso<br />
Nacional em julho de 2004. Além de prever recursos para o aumento real do<br />
salário mínimo em 2005, equivalente ao crescimento real do PIB per capita<br />
em 2004, o substitutivo priorizava um conjunto de doze medidas que compunham<br />
o chamado “choque social” 56 , sugerido ao Poder Executivo para diminuir<br />
a miséria e a pobreza no país .<br />
Outras importantes proposições na área social, de autoria dos parlamentares,<br />
foram: o PL 6.680/02, aprovado em julho de 2003, que cria o Mapa da<br />
Exclusão Social57 Apesar da crise, a Câmara<br />
dos Deputados conseguiu<br />
desenvolver uma extensa<br />
e importante agenda<br />
política que resultou na<br />
aprovação, especialmente<br />
nos dois primeiros anos,<br />
de importantes iniciativas<br />
legais: a reforma da<br />
previdência, o texto principal<br />
da reforma tributária, várias<br />
MPs, como a do Refis, do<br />
Cofins, da DRU, da Cide,<br />
a criação dos programas<br />
Bolsa Família e ProUni,<br />
a Lei das Falências, das<br />
Parcerias Público-Privadas e<br />
a aprovação do Estatuto do<br />
Desarmamento<br />
; o Estatuto do Idoso, projeto de autoria do deputado Paulo Paim, aprovado<br />
em 2003, depois de tramitar durante sete anos no Congresso Nacional, e a PEC 306/00, proposta<br />
pelo deputado Gilmar Machado (PT-MG), que institui o Plano Nacional de Cultura.<br />
Como já mencionado, iniciativas como essas nem sempre obtiveram sucesso e foram,<br />
em alguns casos, objetos de veto presidencial, sugerindo a hipótese de ocorrência de competição<br />
entre os Poderes pelo protagonismo na área social. Evidência disso é a proposição<br />
de várias MPs relacionadas ao tema como, por exemplo, a MP 108/03, que cria o Programa<br />
Nacional de Acesso à Alimentação (PNAA), vinculado ao Fome Zero, e o Conselho de
Balanço da 52 a Legislatura<br />
Segurança Alimentar (Consea); a MP 123/03, que estabelece as normas de regulação do<br />
setor farmacêutico e cria a Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (CMED);<br />
e o projeto de lei aprovado em 2006, de autoria do Poder Executivo, que estabelece sistema<br />
de cotas nas universidades federais para estudantes provenientes das escolas públicas, com<br />
vagas destinadas a negros e a índios.<br />
Ainda no campo social, reveste-se da maior importância a aprovação, depois de doze<br />
anos tramitando na Casa, do Projeto de Lei 2.710/92, fruto de iniciativa popular que recebeu<br />
o apoio de mais de um milhão de brasileiros, que cria o Fundo Nacional de Moradia<br />
Popular e institui o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS)<br />
No campo econômico, vale ressaltar a nova Lei de Falências, aprovada em 2004, após<br />
tramitar por mais de onze anos no Congresso Nacional; a MP 207/04, que concede ao presidente<br />
do Banco Central o status de ministro de Estado; a MP do Bem, de 2005, que aprova<br />
a redução de tributos e a ampliação do Simples; a Emenda Constitucional 53/99, que<br />
regulamenta o sistema financeiro e cria o Conselho Financeiro Nacional, em substituição<br />
ao Conselho Monetário Nacional; o Projeto de Lei 6.272/05, aprovado no início de 2006,<br />
que cria a Receita Federal do Brasil (Super Receita), em substituição à Secretaria da Receita<br />
Federal (SRF) e à Secretaria da Receita Previdenciária e, finalmente, o PLP 123/04, relativo<br />
à Lei de Micro e Pequenas Empresas (Super Simples).<br />
No plano político, foram aprovadas algumas matérias relacionadas à reforma do Judiciário,<br />
em tramitação há mais de doze anos. No início de 2006 e no rescaldo da crise política,<br />
através de decreto legislativo, os deputados acabaram com a remuneração adicional para<br />
convocações extraordinárias e, através da PEC 347/96, diminuíram o recesso parlamentar<br />
de 90 para 55 dias. No entanto, o tema da reforma política, objeto inclusive da constituição<br />
de uma comissão especial, não logrou avanços significativos e continuou a ser considerado,<br />
segundo o presidente da Casa, deputado Aldo Rebelo, ‘uma prioridade’. E, como se<br />
assinalou anteriormente, iniciativas importantes, como a do fim do voto secreto para os<br />
parlamentares, não obtiveram êxito no decorrer da 52ª legislatura.<br />
A maior centralidade conferida ao tema da reforma política, em decorrência da crise instaurada<br />
em 2005, remete ao desafio de identificar o que, na política brasileira, deve ser reformado<br />
e em que direção. Propõe-se, aqui, que além de algumas reformas orientadas para o aperfeiçoamento<br />
institucional – adoção de mecanismos mais rigorosos de controle relacionados ao<br />
financiamento dos partidos políticos; instituição de mecanismos continuados de accountability<br />
vertical 58 ; fim das coligações para eleições proporcionais; adoção de listas partidárias flexíveis, em<br />
substituição às listas abertas; adoção de mecanismos que desencorajem as migrações partidárias;<br />
adoção do voto aberto para os parlamentares, entre outras – é necessário atentar para a operação<br />
de outras variáveis e seus impactos na produção e no desenvolvimento da crise política.<br />
A política, embora obviamente sofra o impacto das instituições, não se esgota nelas. Os<br />
resultados políticos expressam o confronto entre preferências e recursos dos atores, sob certas<br />
regras e sob certas condições. Ainda que alguns traços institucionais possam ter contribuído<br />
para pôr água na fervura da crise, certamente o fogo não foi ateado por eles. O momento é<br />
propício para reavaliar as coalizões políticas que têm dado sustentação política aos governos e<br />
seus custos, não apenas financeiros, mas de representatividade e de accountability.<br />
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190 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
Notas<br />
1 Nossos agradecimentos pelo competente trabalho a Vitor Leal Santana, estudante de Ciência <strong>Política</strong> da Universidade<br />
de Brasília (UnB), que fez um extenso levantamento de informações sobre a 52ª legislatura junto à Agência Câmara e<br />
a outros órgãos da Câmara dos Deputados. Nossos agradecimentos, também, a Felipe Recch, assistente de pesquisa do<br />
Centro de Estudos Legislativos (CEL-DCP) da UFMG. Em especial, agradecemos a Argelina Figueiredo e Fernando Limongi<br />
por disponibilizarem o Banco de Dados Legislativos 1989-2006 – <strong>Cebrap</strong>.<br />
2 Este parágrafo e o seguinte foram reproduzidos de Anastasia, 2002A.<br />
3 Santos argumenta que existem duas descendências de sistemas representativos – oligárquicos e poliárquicos – e<br />
afirma: “Por definição minimalista, mas estrita, de poliarquia, entendo um sistema político que satisfaça completamente<br />
às seguintes condições:<br />
(1) exista competição eleitoral pelos lugares de poder, a intervalos regulares, com regras explícitas e cujos resultados<br />
sejam formalmente reconhecidos pelos competidores;<br />
(2) a participação da coletividade na competição se dê sob sufrágio universal, tendo por única barreira o requisito de<br />
idade limítrofe” (p. 210).<br />
“Creio que o caráter minimalista da definição seja pacífico, pois não exige a satisfação integral de todas as oito<br />
condições dahlsianas. Sua aplicação estrita, contudo, já permite distingüir poliarquias de autoritarismos, os quais<br />
violam a condição 1, e de oligarquias, as quais não satisfazem a condição 2” (SANTOS, 1998 :p. 210).<br />
4 Um quadro mais completo da evolução do sistema partidário nos últimos anos pode ser obtido em Melo (2006).<br />
5 Tal questão será retomada na conclusão deste artigo.<br />
6 O percentual de nulos e brancos atingiu 11,1%, contra 7,4% de 2002, mas ainda muito longe dos 20% de 1998,<br />
quando a urna eletrônica ainda não era de utilização universal. Entre os deputados eleitos em 2006, 46% não estiveram<br />
na Câmara durante a legislatura 2003/2007. O percentual encontra-se acima do verificado em 2002 (41,9%), mas ainda<br />
bem abaixo do encontrado para 1994 (55%). Segundo o Instituto Datafolha, o percentual de eleitores que considerava<br />
ruim/péssimo o desempenho do Congresso subiu de 22%, em 2003, para 47% em abril de 2006. Os que avaliavam a<br />
atuação dos congressistas como ótima/boa caiu de 24% para 13%.<br />
7 Tal apoio só foi abalado pela crise ocorrida no Senado Federal, em 2001, já no final do segundo mandato de FHC, o<br />
que resultou no afastamento do PFL da base governista.<br />
8 Os quatro parágrafos que se seguem foram reproduzidos de Anastasia, 2002A.<br />
9 “... os dois governos de Fernando Henrique Cardoso contrastam nitidamente no que diz respeito à popularidade do<br />
presidente. Ao longo de todo o primeiro mandato, o percentual de ótimo/bom manteve-se, com folga, acima do ruim/<br />
péssimo. Em fevereiro de 1999, a situação havia se invertido, e Fernando Henrique atravessou o segundo período com<br />
baixos índices de popularidade” (MELO, 2002: 36).<br />
10 Segundo Amorim Neto (2000), a coalescência refere-se à proporção observada entre o peso de um partido no<br />
legislativo e no interior do gabinete.<br />
11 O percentual é mais elevado do que a soma das cadeiras obtidas pelos partidos na eleição de 2002 graças ao<br />
movimento migratório no interior da Câmara que, como nos períodos anteriores, favoreceu claramente ao governo<br />
no início da legislatura (MELO E MIRANDA, 2006). Para o restante desta seção, o percentual de cadeiras da coalizão<br />
governista foi calculado com base no Banco de Dados de Votações Nominais, organizado por Argelina Figueiredo e<br />
Fernando Limongi, aos quais agradecemos pela presteza no fornecimento dos dados.<br />
12 Banco de Dados do CEBRAP, fornecido por Argelina Figueiredo e Fernando Limongi.<br />
13 O deputado João Paulo Cunha (PT-SP) foi eleito, em fevereiro de 2003, para presidir a Câmara dos Deputados, tendo<br />
obtido 434 votos. Foi a primeira vez, em 30 anos, que a candidatura oficial, nascida de um acordo de líderes, não<br />
enfrentou nenhum candidato de oposição à presidência da Casa. O acordo garantiu também a distribuição proporcional<br />
das comissões técnicas entre os partidos, tomando-se como base o tamanho das bancadas em 1º de fevereiro de 2003,<br />
o que garantiu ao PT a ocupação de outro ativo institucional relevante: a presidência da Comissão de Constituição e<br />
Justiça (Agência Câmara, 3/2/2003).<br />
14 Banco de Dados Legislativos do CEBRAP.
Balanço da 52 a Legislatura<br />
15 Esses quatro partidos perderiam 34 deputados até março de 2006. A perda seria apenas parcialmente compensada<br />
pelo crescimento do PSB (sete deputados) e do PCdoB (dois). No momento em que este artigo estava sendo escrito, a<br />
coalizão governista controlava 63,9% das cadeiras da Câmara dos Deputados.<br />
16 Os dois blocos seriam claramente visualizados também no interior do PMDB, partido que protagonizou, no início de<br />
2005, uma intensa temporada de adesões patrocinada pelas alas conflitantes, tendo em vista a disputa pela liderança<br />
da bancada.<br />
17 Os dados apresentados neste e nos próximos três parágrafos foram retirados de Melo e Miranda (2006).<br />
18 Segundo Melo e Anastasia (2005), 81,5% dos deputados do PCdoB seguiram sua liderança nas votações da reforma.<br />
No caso do PDT, apenas 72,6%. O PCdoB chegou a liberar sua bancada na votação dos inativos. O PDT protagonizou um<br />
episódio insólito: membro da coalizão governista, o partido só conseguiu apresentar um comportamento disciplinado<br />
na votação em que sua liderança encaminhou contra o governo.<br />
19 Vale comentar, de passagem, o retumbante fracasso da estratégia do PFL. Depois de quatro anos de oposição<br />
sistemática, o partido foi o grande derrotado das eleições de 2006.<br />
20 Valores médios calculados a partir de Inácio (2006). A convergência foi medida por meio do índice de Rice, que é a<br />
diferença numérica entre o percentual de votos majoritários e minoritários no interior da bancada.<br />
21 Dados organizados por Inácio (2006) mostram que o PTB diminuiu o grau de convergência a partir de meados do<br />
segundo mandato e que na última coalizão organizada por Fernando Henrique o PFL havia sido substituído pelo PMDB<br />
na condição de aliado principal.<br />
22 Ainda que o número de migrações que cruzaram o espectro ideológico na 52 a legislatura tenha crescido em relação<br />
às legislaturas passadas, passando de 5,5% (MELO, 2004) para 19,5% (MELO e MIRANDA, 2006).<br />
23 Resultante do controle de agenda exercido por líderes institucionais e partidários na condução dos trabalhos<br />
legislativos (Cf. Figueiredo & Limongi, 1999).<br />
24 As regras regimentais asseguram ao presidente da Casa um amplo conjunto de atribuições que impactam a definição<br />
da agenda legislativa, em termos de seu conteúdo, do funcionamento das arenas decisórias e do ritmo dos trabalhos<br />
legislativos. Para algumas decisões, há determinação regimental para que o Colégio de Líderes seja ouvido, como a<br />
definição da agenda mensal das proposições que serão apreciadas (RICD, art. 17). No que tange às modalidades e aos<br />
processos de votação, o RICD (art. 184 a 188) prevê a votação ostensiva e a secreta. A primeira inclui o processo nominal<br />
(com registro do voto individual do deputado, usada quando é exigido quórum especial de votação, por deliberação do<br />
Plenário ou pedido de verificação de votação) e simbólico (não há o registro individual do voto e é utilizada para a<br />
votação das proposições em geral, normalmente quando há acordos prévios). A segunda modalidade, a votação secreta,<br />
é utilizada para decisão sobre perda de mandato de deputados e suspensão de imunidades constitucionais dos membros<br />
da Casa e eleições realizadas pela Câmara.<br />
25 Nos casos em que não há exigência constitucional, uma votação poderá ser realizada nominalmente por deliberação<br />
do Plenário, a requerimento de qualquer deputado ou quando houver pedido de verificação de votação, se subscrito por<br />
seis centésimos dos membros da Casa ou Líderes que representem esse número (RICD, art. 185 e 186).<br />
26 Banco de dados Legislativos – <strong>Cebrap</strong>, atualizado até fevereiro de 2006.<br />
27 Em termos do uso iterativo deste recurso, este padrão não diverge do observado nas legislaturas anteriores. Inácio<br />
(2006) mostrou que o PT – principal partido na oposição nos governos anteriores – foi o partido que mais usou o recurso:<br />
209 pedidos de verificação de quórum no período entre 1990 e 2002. No entanto, pode-se destacar a intensidade de seu<br />
uso, já que, no caso do PFL, o expressivo volume de pedidos está concentrado na atual legislatura.<br />
28 A obstrução parlamentar é considerada uma manifestação legítima do partido, desde que aprovada por seus líderes<br />
e bancada. Neste caso, não é computada a ausência para o deputado que adere à posição do partido.<br />
29 Câmara dos Deputados. Normas Aprovadas na 52ª legislatura, 11/10/2006.<br />
30 A partir deste ponto a análise se refere às leis sancionadas até fevereiro de 2006, num total de 665 leis. Fonte:<br />
Banco de Dados Legislativos CEBRAP, 2006.<br />
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192 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
31 Neste último caso, a ação legislativa do Executivo sofreu restrições na medida em que a reedição de MPs – antes<br />
uma estratégia disponível aos governos para contornar esta situação – agora é proibida..<br />
32 Foram convertidas em PLVs as medidas provisórias sobre a criação e a modificação dos seguintes programas sociais:<br />
Universidade para Todos – PROUNI, o Programa Nacional de Inclusão de Jovens – Pro-Jovem, Projeto Escola de Fábrica<br />
e o Programa de Educação tutorial. Em termos de políticas setoriais, também foram convertidas em projeto de lei as<br />
medidas provisórias que dispunham sobre a introdução do Biodiesel na matriz energética brasileira e a regulação do<br />
plantio e comercialização de soja geneticamente modificada.<br />
33 Dados coletados no SILEG – Sistema de acompanhamento do processo legislativo da Câmara dos Deputados.<br />
34 Há situações em que a estratégia de menor custo para o presidente é a de ‘pegar carona’ na iniciativa legislativa de<br />
outros atores, modificando-a de acordo com os seus interesses. Uma ilustração deste curso de ação é o projeto relativo<br />
ao Estatuto do Desarmamento, que passou a incorporar as posições defendidas pelo governo a partir da introdução de<br />
um substitutivo.<br />
35 Carey (2006:3): “Decisiveness refers to the capacity of legislatures to reach decisions on policy and to make those<br />
decisions stick”.<br />
36 Como salienta Carey (2006) “Citizens want legislatures to be decisive – that is, to resolve the issues before them<br />
without chronic deadlock. They also want accountability, which entails responsiveness on the part of legislators to citizens’<br />
demands.”<br />
37 “... não apenas as Casas Legislativas devem ser instâncias deliberativas, como o que nelas se delibera deve ecoar e<br />
reverberar, da melhor forma possível, os processos de deliberação em curso nas entidades de participação política da<br />
sociedade civil. Para tanto, requer-se que haja canais permanentes, institucionalizados e deliberativos de interação<br />
entre as instâncias de representação e de participação política” (Anastásia & Inácio, 2006).<br />
38 “ Para exercerem adequada e legitimamente suas atribuições – de legislar e de fiscalizar – os parlamentares<br />
devem:<br />
1) Estar em permanente interação com os cidadãos, através dos instrumentos de participação política que permitem aos<br />
grupos organizados vocalizar suas preferências e sinalizar suas prioridades para os representantes eleitos. Legisladores<br />
envolvidos em processos de deliberação não podem e não devem ser portadores apenas das preferências de sua<br />
constituency. Eles devem conhecer, também, as demandas de outros segmentos sociais, profissionais, regionais, etc.<br />
2) Ampliar a sua base informacional relativa:<br />
2.1. aos interesses dos cidadãos;<br />
2.2. às relações entre demandas, políticas e resultados;<br />
2.3. às conseqüências esperadas de diferentes políticas públicas;<br />
2.4. às coalizões políticas em presença nas Casas Legislativas e fora delas e<br />
2.5. às correlações de forças entre os interesses portados por essas coalizões;<br />
3) Desenvolver a expertise requerida para o exercício de suas atribuições de fiscalização dos atos e das omissões do<br />
Poder Executivo” (ANASTÁSIA & INÁCIO, 2006: 14).<br />
39 “A Comissão de Legislação Participativa(CLP) da Câmara dos Deputados foi criada em 2001 com o objetivo de<br />
facilitar a participação da sociedade no processo de elaboração legislativa. Através da CLP, a sociedade, por meio<br />
de qualquer entidade civil organizada – ONGs, sindicatos, associações, órgãos de classe – apresenta à Câmara dos<br />
Deputados suas sugestões legislativas. Essas sugestões vão desde propostas de leis complementares e ordinárias até<br />
sugestões de emendas ao Plano Plurianual (PPA), à Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e à Lei Orçamentária Anual<br />
(LOA)” Fonte: www.camara.gov.br.<br />
40 Resolução nº 19, de 14 de março de 2001( Ato da Mesa nº 56 de 2001).<br />
41 As demais sugestões se distribuíram entre: projeto de lei complementar (6), emenda a projeto de lei (3), indicação<br />
(4), requerimento de informação (1), voto de louvor (1), voto de pesar (1), emenda ao PPA (1). Fonte: www.camara.<br />
gov.br (atualizada em 13/11/06).<br />
42 “Veja onde a Ouvidoria pode atuar: Recebendo reclamações ou representações sobre: violação ou qualquer forma de<br />
discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; ilegalidade ou abuso de poder; mau funcionamento<br />
dos serviços legislativos e administrativos da Casa; assuntos recebidos pelo sistema 0800 de atendimento à população.<br />
Propondo medidas para sanar as violações, as ilegalidades e os abusos constatados. Propondo medidas necessárias à<br />
regularidade dos trabalhos legislativos e administrativos, bem como ao aperfeiçoamento da organização da Câmara dos<br />
Deputados. Sugerindo, quando cabível, a abertura de sindicância ou inquérito destinado a apurar irregularidades de
Balanço da 52 a Legislatura<br />
que tenha conhecimento. Encaminhando ao Tribunal de Contas da União, à Polícia Federal, ao Ministério público ou a<br />
outro órgão competente as denúncias recebidas que necessitem maiores esclarecimentos. Respondendo aos cidadãos<br />
e às entidades quanto às providências tomadas pela Câmara sobre os procedimentos legislativos e administrativos de<br />
seu interesse. Realizando audiências públicas com segmentos da sociedade civil”. Fonte: http://www2.camara.gov.<br />
br/conheca/ouvidoria/index.html.<br />
43 De acordo com a definição de Sartori (1994: 304-307) comitês são grupos pequenos, de interação face a face,<br />
duráveis e institucionalizados, que constituem contextos decisórios contínuos, tomam decisões em relação a um fluxo<br />
de decisões, cujo código operacional permite a consideração de diferentes intensidades de preferências e faculta a<br />
produção de compensações recíprocas retardadas e de decisões de soma positiva.<br />
44 Segundo Strom (1990), a variável ‘influência da oposição’ pode ser examinada a partir da consideração das<br />
seguintes características das comissões legislativas: o número de comissões permanentes; as áreas de especialização<br />
das comissões; a correspondência entre a jurisdição das comissões e das pastas ministeriais; as restrições quanto ao<br />
número de comissões a que pode pertencer cada legislador e a distribuição proporcional das vagas nas comissões para<br />
os partidos políticos (Strom, 1990:71, citado por Powell, 2000:32; Anastasia, Melo & Santos, 2004).<br />
45 Capítulo IV, Seção II, Subseção II.<br />
46 Cabe à Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO), nos termos do artigo 166 da Constituição<br />
Federal: “Art. 166. –<br />
.................................................................................................................................<br />
I – examinar e emitir parecer sobre os projetos referidos neste artigo e sobre as contas apresentadas anualmente pelo<br />
Presidente da República;<br />
II – examinar e emitir parecer sobre os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição<br />
e exercer o acompanhamento e a fiscalização orçamentária, sem prejuízo da atuação das demais comissões do<br />
Congresso Nacional e de suas Casas, criadas de acordo com o art. 58.” Fonte: http://www2.camara.gov.br/comissoes/<br />
cmo/funcionamento<br />
47 Vale ressaltar, no entanto, que grande número de ministérios não significa necessariamente maior expertise, podendo<br />
significar a mobilização de recursos de patronagem para acomodar os interesses dos membros do partido do governo<br />
e de seus aliados.<br />
48 Há dois outros casos em que não se verifica tal correspondência, mas trata-se de comissões em relação às quais não<br />
caberia esperar encontrá-la: Comissão de Fiscalização Financeira e Controle e Comissão de Legislação Participativa .<br />
49 Em reunião realizada no dia 14 de dezembro, os líderes partidários e direção das duas Casas examinaram duas<br />
propostas de elevação dos salários. A primeira delas propunha um reajuste correspondente à inflação do período (2003-<br />
2006), e a segunda, a equiparação dos salários dos parlamentares ao teto de salários do STF, tendo sido vitoriosa a<br />
última.<br />
50 A matéria foi apreciada em um prazo exíguo, sendo que o movimento para a elevação dos salários foi deflagrado no<br />
último mês de trabalho legislativo.<br />
51 O PPS ajuizou junto ao STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADIn relativa ao Decreto Legislativo n o<br />
444/2002, que dispõe sobre a remuneração dos Membros do Congresso Nacional durante a 52ª legislatura e, no seu<br />
parágrafo 2, autoriza as Mesas Diretoras da Câmara dos Deputados e do Senado Federal a regulamentarem a aplicação do<br />
Decreto por meio de Ato Conjunto. Parlamentares do PV, PSDB e PPS ajuizaram também um mandado de segurança com<br />
pedido de liminar para garantir a deliberação em plenário da matéria. No julgamento destes processos, o STF revogou o<br />
Decreto Legislativo que instruiu a concessão de aumento e concedeu uma liminar em mandado de segurança cujo efeito<br />
imediato foi o de suspender a regulamentação do aumento por meio de Ato Conjunto das Mesas, devendo a decisão ser<br />
tomada por manifestação do Congresso Nacional.<br />
52 Agradecemos a Juliana Salazar, aluna do mestrado em Ciência <strong>Política</strong> da UFP, pela intervenção no debate sobre a<br />
reforma política, realizado em Recife no dia 1º/12/2006, na qual ela enfatizou os déficits de accountability resultantes<br />
da não-punição dos envolvidos nos escândalos de corrupção.<br />
53 Atualmente, na Câmara dos deputados, o voto secreto é utilizado nas seguintes situações: na votação dos vetos do<br />
Executivo; na apreciação da perda de mandato parlamentar; na apreciação da suspensão das imunidades constitucionais<br />
e na eleição do presidente da Casa e dos demais integrantes da Mesa Diretora.<br />
Revista Plenarium | 193
194 |<br />
Fátima Anastasia, Magna Inácio e Carlos Ranulfo Melo<br />
54 A partir de dezembro de 2004, foi aprovado, e passou a tramitar, o Substitutivo do relator José Eduardo Cardozo (PT-<br />
SP). O texto aprovado estende a extinção do voto secreto às assembléias legislativas, à Câmara Legislativa do Distrito<br />
Federal e às câmaras municipais. Fonte: Agência Câmara, 15/12/2004.<br />
55 Esta conclusão reproduz trechos de palestra proferida na Câmara dos Deputados, em 2005, por Fátima Anastásia, em<br />
evento relacionado à reforma política.<br />
56 “Entre elas estão a aceleração de programas como o Bolsa Família, o Brasil Alfabetizado, Farmácias Populares e<br />
Habitação Popular, além das ações relacionadas à reforma agrária e dos programas destinados à ampliação do acesso a<br />
água de boa qualidade’ (Fonte: Agência Câmara, 13/7/2004).,<br />
Referências<br />
57 Apresentado pelo deputado Eduardo Campos (PSB-PE).<br />
58 Ver, a respeito, Anastásia (2002B).<br />
AMORIM NETO, O. Gabinetes Presidenciais, Ciclos Eleitorais e Disciplina Legislativa no Brasil. Dados - Revista de Ciências<br />
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Revista Plenarium | 195
Teatro Nacional, Brasília, 1970. Foto de Luis Humberto.
Idéias e Leis<br />
• José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella<br />
Transgênicos, biossegurança e o Congresso Nacional
198 |<br />
José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella*<br />
Transgênicos, biossegurança<br />
e o Congresso Nacional<br />
Os transgênicos no Brasil e no mundo<br />
Os transgênicos (ou organismos geneticamente modificados) são organismos<br />
que adquiriram, pelo uso de técnicas modernas de engenharia<br />
genética, características de outro organismo. O termo geneticamente modificado<br />
– GM tem sido utilizado para descrever a aplicação da tecnologia<br />
do DNA recombinante para a alteração genética de animais, plantas<br />
e microorganismos. O extraordinário dessa tecnologia é a<br />
possibilidade de se transferirem características genéticas entre<br />
organismos de espécies, gêneros e até mesmo de reinos<br />
diferentes, rompendo assim as barreiras biológicas<br />
que impedem os cruzamentos naturais entre esses<br />
organismos. Assim, por exemplo, uma planta ou<br />
animal pode receber em seu genoma um ou mais<br />
genes de uma bactéria e, dessa forma, garantir a<br />
hereditariedade da nova característica recebida.<br />
Os produtos derivados de microorganismos<br />
geneticamente modificados foram os primeiros<br />
consumidos em larga escala. Insulina para diabéticos,<br />
produzida por bactérias transgênicas,<br />
é um derivado de OGM há muitos anos<br />
mencionado. Na última década maiores<br />
esforços têm sido empreendidos<br />
na pesquisa e desenvolvimento de<br />
plantas e animais transgênicos. Os<br />
animais geneticamente modificados<br />
têm sido úteis no estudo<br />
e diagnóstico de doenças<br />
humanas, e os vegetais, em<br />
geral, possuem características<br />
agronômicas desejáveis,<br />
como resistência a pra-<br />
gas e doenças e tolerância<br />
a herbicidas.<br />
*José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella,<br />
Consultores Legislativos da Câmara dos Deputados – Área<br />
de <strong>Política</strong> Agrícola<br />
jose.araujo@camara.gov.br<br />
rodrigo.dolabella@camara.gov.br
Idéias e Leis<br />
É principalmente no cultivo agrícola em larga escala que a polêmica sobre os transgênicos<br />
se mantém intensa até hoje. Os agropecuaristas, por um lado, ávidos por biotecnologias<br />
que aumentem a eficiência agronômica de suas lavouras e a performance econômica de sua<br />
atividade, desejam mais incentivos à geração de novos produtos da engenharia genética e<br />
maior agilidade dos órgãos reguladores na liberação de cultivos GM. Os ambientalistas,<br />
por outro lado, combatem os transgênicos, indicando os riscos que eles representam para a<br />
biodiversidade no planeta, além da possibilidade de ampliar-se a dependência tecnológica e<br />
econômica dos agricultores em relação às empresas de sementes, com efeitos mais danosos<br />
principalmente sobre os mais pobres. Alguns setores representantes de consumidores apresentam<br />
temor de que o consumo de alimentos transgênicos possa representar algum risco à<br />
saúde humana e animal.<br />
Essa divisão de opiniões teve reflexos importantes nas decisões dos governos dos países<br />
produtores e importadores de alimentos em todo o mundo.<br />
Os Estados Unidos, gigante na produção agrícola, tornaram-se líder mundial nas pesquisas<br />
e no desenvolvimento de transgênicos e, conseqüentemente, seu maior usuário e divulgador.<br />
As empresas de biotecnologia e várias universidades norte-americanas são detentoras<br />
dos direitos de propriedade intelectual sobre a maior parte das plantas geneticamente<br />
modificadas em uso no mundo, por isso recebem importante suporte político do governo<br />
para defesa de seus interesses econômicos, inclusive em fóruns multilaterais, como na Organização<br />
Mundial do Comércio.<br />
Os países da União Européia, de modo contrário, têm tido posições mais restritivas em<br />
relação às plantas e alimentos GM. A restrição chegou ao cume quando vários países adotaram<br />
uma moratória para o plantio de transgênicos, que perdurou por cinco anos e encerrouse<br />
em 2004. Naquele continente, os movimentos ambientalista e de defesa dos consumidores<br />
exercem forte influência sobre a opinião pública e governos dos países-membros da UE.<br />
A partir de 2004, em conformidade com a Diretiva 2001/18 da Comunidade Européia, foram<br />
aprovadas variedades transgênicas de milho e colza (canola) para plantio. Atualmente,<br />
cultiva-se somente milho transgênico em áreas relativamente pequenas de apenas sete países<br />
europeus. Em 2006, a Espanha teve a maior área plantada, seguida pela França, Portugal e<br />
Alemanha. Na Comunidade Européia observa-se, ainda, forte resistência de movimentos de<br />
consumidores contra os produtos transgênicos. A polêmica em torno desse assunto não está<br />
encerrada e, de forma recorrente, surge e pressiona os órgãos diretivos.<br />
Nos dois principais países agrícolas da América do Sul, Brasil e Argentina, os processos<br />
de introdução dos OGM nos respectivos sistemas agrícolas foram bastante diferenciados.<br />
Enquanto na Argentina, desde a aprovação do primeiro OGM — a soja, em 1996 — até os<br />
dias de hoje, o processo ocorreu sem questionamentos judiciais, no Brasil, um verdadeiro<br />
imbróglio na Justiça suspendeu por vários anos a autorização para o plantio da soja, concedida<br />
em 1998 pela CTNBio – Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. Tal situação só<br />
foi definitivamente solucionada com a edição da nova Lei de Biossegurança, em 2005.<br />
Em 2006, passados dez anos dos primeiros plantios comerciais de plantas transgênicas<br />
nos Estados Unidos, a área mundial cultivada atingiu 102 milhões de hectares, segundo estimativas<br />
do ISAAA 1 , única instituição que divulga estatísticas sobre o plantio de OGM em<br />
Revista Plenarium | 199
200 |<br />
José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella<br />
escala mundial. A mesma fonte informa que cerca de 10 milhões de agricultores, distribuídos<br />
em 22 países de todos os continentes do globo, utilizaram sementes transgênicas nesse ano.<br />
Segundo a mesma fonte, os Estados Unidos têm a maior área plantada com culturas<br />
geneticamente modificadas, perfazendo 54,6 milhões de hectares (53% da área global cultivada<br />
com culturas GM), seguido pela Argentina, com 18 milhões; pelo<br />
Brasil, com 11,5 milhões; Canadá, com 6,1 milhões; Índia, com 3,8 milhões;<br />
e China, com 3,5 milhões de hectares. A soja GM é a cultura mais<br />
plantada, ocupando 58,6 milhões de hectares (57% da área global), seguida<br />
do milho (25,2 milhões de hectares – 25%), do algodão (13,4 milhões<br />
de hectares – 13%) e da canola (4,8 milhões de hectares – 5% da área total<br />
com transgênicos).<br />
De modo geral, órgãos reguladores dos países onde se cultivam plantas<br />
geneticamente modificadas têm o poder de autorizar as pesquisas com engenharia<br />
genética e o uso comercial dos organismos transgênicos. A Organização<br />
para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) tem tido papel<br />
importante na busca de harmonizar a regulamentação da biossegurança<br />
de OGM entre seus 30 países-membros e a Comunidade Européia2 .<br />
Fato relevante, no plano internacional, relativamente a este tema, foi<br />
a aprovação do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, assinado em 2000 no âmbito<br />
da Convenção da Diversidade Biológica da ONU. No Brasil, foi aprovado pelo Congresso<br />
Nacional, por meio do Decreto Legislativo nº 908, de 21 de novembro de 2003, e passou a<br />
vigorar em 22 de fevereiro de 20043 Desde a apresentação,<br />
em 1990, de projeto de<br />
lei de autoria do senador<br />
Marco Maciel − do qual<br />
resultou a primeira Lei<br />
de Biossegurança, de nº<br />
8.974, de 1995 −<br />
até os dias de hoje,<br />
intensos debates foram<br />
travados em diferentes<br />
momentos e locais das<br />
duas Casas Legislativas<br />
.<br />
O Protocolo é um instrumento jurídico internacional que busca garantir um nível<br />
adequado de segurança para a movimentação transfronteiriça, o trânsito, a manipulação e a<br />
utilização de todos os organismos vivos geneticamente modificados. Em suma, regulamenta<br />
o fluxo de organismos transgênicos entre as nações, com o desafio de não confrontar as<br />
regras multilaterais de comércio. No entanto, alguns dos principais países produtores agrícolas<br />
não o ratificaram, até o momento, estando fora do alcance de suas deliberações. Nessa<br />
situação, estão os EUA e a Argentina.<br />
Os instrumentos de avaliação dos riscos para o meio ambiente e da segurança para a<br />
saúde humana e animal dos OGM, as instâncias de tomadas de decisões, os mecanismos de<br />
controle e fiscalização das atividades de pesquisa e desenvolvimento e da comercialização<br />
de transgênicos, e a rotulagem dos OGM e seus derivados são usualmente estabelecidos por<br />
legislação específica de cada país, discutida e aprovada por seus parlamentos.<br />
A Atuação do Congresso Nacional na questão dos OGM<br />
No Brasil, o Congresso Nacional tem dado grande importância à discussão do tema e<br />
positiva contribuição para a definição da política nacional de biotecnologia e biossegurança.<br />
Desde a apresentação, em 1990, de projeto de lei de autoria do senador Marco Maciel − do<br />
qual resultou a primeira Lei de Biossegurança, de nº 8.974, de 1995 − até os dias de hoje, intensos<br />
debates foram travados em diferentes momentos e locais das duas Casas Legislativas.
Idéias e Leis<br />
Com a implementação da primeira Lei de Biossegurança e o efetivo desenvolvimento<br />
da biotecnologia no Brasil e no mundo, iniciou-se, no Congresso Nacional, processo<br />
de discussão dos diferentes temas relacionados aos OGM. A iminência da introdução dos<br />
transgênicos nos sistemas agrícolas, nos alimentos e nos medicamentos e de seu consumo<br />
em larga escala gerou contínua preocupação legislativa, do que resultou, em pouco tempo,<br />
a apreciação, pelo parlamento brasileiro, de mais de três dezenas de projetos de lei que<br />
tratavam de assuntos como: proibição de plantio e de importação; limites ao consumo de<br />
produtos transgênicos (na merenda escolar, nos hospitais, etc.); incentivos à pesquisa; obrigatoriedade<br />
de rotulagem; entre outros.<br />
É fundamental registrar que tema de tal complexidade e de elevado grau de polêmica<br />
galvanizou importantes segmentos da sociedade brasileira, gerando, até o momento, impasses<br />
políticos e judiciais, discussões técnicas intermináveis, debates maniqueístas, enfim,<br />
absoluta polarização que se afigura de difícil dissipação. No âmbito do Legislativo, como<br />
não poderia ser de outra forma, impregnou-se com iguais características, agudizando o<br />
debate e as diferenças políticas que gravitam em seu redor. De notar, também, que não se<br />
conseguiu identificar um padrão programático, no seio dos partidos políticos, no tratamento<br />
desta questão: numa mesma agremiação encontravam-se parlamentares que defendiam<br />
ardentemente a imediata liberação dos produtos transgênicos e outros que pretendiam que<br />
ela fosse realizada segundo procedimentos cautelosos, que implicavam demora e atrasos nos<br />
processos regulatórios, ou mesmo propugnavam pelo banimento desses produtos.<br />
Neste contexto de radicalização dos posicionamentos políticos, insuflados, obviamente,<br />
pelos anseios de setores sociais que conseguiam fazer chegar ao Parlamento suas agendas,<br />
deu-se a maioria das contendas técnicas, ideológicas e políticas que resultaram na posição<br />
final assumida pelo Congresso Nacional no que concerne aos Organismos Geneticamente<br />
Modificados.<br />
Os debates, no âmbito do Legislativo, ocorreram com igual intensidade na Câmara<br />
dos Deputados e no Senado Federal. Ao seu devido tempo, cada Casa contribuiu de forma<br />
efetiva para o aprofundamento dos conhecimentos técnicos e científicos relacionados a essa<br />
política pública para sua inserção na sociedade e para as definições que implicaram sua<br />
conformação final. A despeito de reconhecer a enorme contribuição do Senado Federal ao<br />
tema, este artigo tenciona registrar e analisar, com maior grau de detalhamento, a contribuição<br />
da Câmara dos Deputados para o estabelecimento dessa política.<br />
A atuação da Câmara dos Deputados<br />
No decorrer desses processos de discussão e de formação de opiniões no âmbito das Casas<br />
Legislativas, inúmeras atividades foram realizadas, tanto em comissões especiais, quanto<br />
nas comissões permanentes, bem como em atividades extracomissões realizadas sob os auspícios<br />
da Câmara dos Deputados.<br />
Dentre essas atividades podem-se citar como mais significativas:<br />
Revista Plenarium | 201
202 |<br />
José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella<br />
a) Apreciação dos projetos de lei pela Câmara dos Deputados<br />
Num primeiro momento, em 1999, os vários projetos de lei em tramitação foram apreciados<br />
pela Comissão de Agricultura e <strong>Política</strong> Rural, sendo produzido um substitutivo pelo<br />
relator, deputado Odílio Balbinotti, cujo parecer não chegou a ser apreciado.<br />
Posteriormente, os projetos de lei foram apreciados, também, em momentos diferentes,<br />
por duas comissões especiais.<br />
A primeira delas, constituída em 1999 e presidida pelo deputado Betinho Rosado,<br />
apreciou cerca de 20 projetos de lei, de iniciativa dos deputados, dela resultando um projeto<br />
substitutivo, de autoria do relator4 , deputado Confúcio Moura que, embora<br />
aprovado na comissão, em 2002, não logrou ser apreciado pelo Plenário<br />
da Câmara dos Deputados.<br />
A segunda comissão especial, presidida pelo deputado Silas Brasileiro,<br />
foi constituída para apreciação do Projeto de Lei nº 2.401, encaminhado<br />
em 2003 pelo Poder Executivo. Foram seus relatores5 Apenas as duas Comissões<br />
Especiais e a Subcomissão<br />
Especial da Comissão<br />
de Ciência e Tecnologia,<br />
Comunicação e Informática<br />
, em diferentes mo-<br />
realizaram nada menos que mentos e nessa ordem, os deputados Aldo Rebelo, Renildo Calheiros e<br />
57 audiências públicas<br />
Darcísio Perondi. O projeto substitutivo aprovado por essa comissão, que<br />
acolheu integralmente o texto aprovado pelo Senado Federal, foi encaminhado<br />
para sanção do presidente da República, resultando na atual Lei de Biossegurança,<br />
de nº 11.105, de 2005.<br />
É relevante registrar que o texto final, que deu origem à Lei, resultou de várias proposições<br />
intermediárias, da Câmara dos Deputados e do Senado, tendo ocorrido intensa<br />
troca de informações entre membros das duas Casas Legislativas ao longo da tramitação da<br />
matéria.<br />
Os pareceres proferidos pelos relatores dessas comissões, da Câmara e do Senado, são<br />
peças importantes para o entendimento do direcionamento tomado, a cada momento, pelos<br />
formuladores legislativos e incorporam, obviamente, os anseios dos setores sociais que lhes<br />
apresentaram demandas e as sugestões das bancadas parlamentares com quem negociaram<br />
os conteúdos de seus pareceres preliminares.<br />
b) Audiências públicas e seminários realizados na Câmara dos Deputados<br />
Apenas as duas Comissões Especiais e a Subcomissão Especial da Comissão de Ciência<br />
e Tecnologia, Comunicação e Informática realizaram nada menos que 57 audiências públicas,<br />
com a participação de especialistas dos vários segmentos envolvidos no tema (pesquisa<br />
agropecuária e pesquisa médica): órgãos normativos; ministérios; membros da Academia e<br />
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência; representantes de setores de produção<br />
de sementes e da agropecuária em geral, do meio ambiente, da saúde e de defesa do consumidor;<br />
parlamentares federais e estaduais, entre outros.<br />
Além dessas, também as comissões permanentes, em especial as de Agricultura e <strong>Política</strong><br />
Rural, a de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, em vários momentos<br />
do processo de discussão que construía o posicionamento legislativo, realizaram audiências<br />
públicas, trazendo ao conhecimento dos parlamentares e dos segmentos envolvidos com o<br />
tema o posicionamento de diferentes especialistas e de agentes políticos.
Idéias e Leis<br />
Registra-se que ocorreram, por iniciativa de partidos políticos ou de outras organizações,<br />
também sob os auspícios da Câmara dos Deputados, seminários técnicos, nos quais<br />
tanto os integrantes da Casa quanto as entidades e especialistas tiveram a oportunidade de<br />
debater as diferentes facetas do tema.<br />
c) Relatório final da Proposta de Fiscalização e Controle nº 34/2000,<br />
destinada a fiscalizar “os procedimentos adotados pelo Poder Executivo<br />
para autorizar a liberação de plantas transgênicas no país”, aprovado<br />
na Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias, da<br />
Câmara dos Deputados, em 2003 6 .<br />
Com relatoria do deputado Ronaldo Vasconcellos, este relatório promoveu percuciente<br />
investigação acerca dos principais atos e fatos que ocorreram na esfera governamental,<br />
relativamente à liberação dos produtos transgênicos no Brasil. Dentre estes fatos, foram<br />
minuciosamente estudados, à luz da legislação e dos atos normativos então vigentes:<br />
• A importação de milho transgênico, em 2000 – buscou identificar as irregularidades<br />
relativas à autorização dada pela CTNBio e os atos do Ministério da Agricultura,<br />
naquele momento.<br />
• A fiscalização dos ensaios e experimentos – buscou identificar possíveis falhas no<br />
processo fiscalizatório, por parte dos ministérios, nos ensaios até então autorizados pela<br />
CTNBio.<br />
• A implantação de Unidades Demonstrativas – identificou as irregularidades cometidas<br />
pela CTNBio, ao autorizar a implantação de Unidades Demonstrativas.<br />
• O tamanho das áreas dos ensaios e experimentos autorizados – identificou irregularidades<br />
em autorizações dadas pela CTNBio para implantação de ensaios com<br />
área excessiva.<br />
• A elevação do Limite Máximo de Resíduos – LMR de glifosato<br />
em soja – identificou as irregularidades cometidas pelo<br />
Ministério da Saúde, por ação de seu órgão fiscalizador,<br />
na edição de portaria que elevava o LMR de glifosato<br />
em soja, às vésperas da autorização, pela CTNBio,<br />
de plantios comerciais.<br />
• Os plantios comerciais ilegais – estudou as<br />
causas e conseqüências do plantio ilegal de<br />
sementes de soja no Brasil a partir de sementes<br />
contrabandeadas da Argentina.<br />
• A desregulamentação da soja RR – buscou<br />
identificar as condições em que a CTNBio<br />
autorizou o plantio comercial da soja RR, em 1998.<br />
• A não-regulamentação das multas – buscou identificar<br />
as causas e conseqüências da inexistência de regulamentação para a adequada<br />
aplicação de multas, pelos órgãos fiscalizadores, pelas infrações à Lei de Biossegurança.<br />
Revista Plenarium | 203
204 |<br />
José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella<br />
Essa produção intelectual<br />
originada na Câmara dos<br />
Deputados foi de grande<br />
relevância para o debate,<br />
contribuindo, de forma<br />
efetiva, para a formulação<br />
legislativa e da política<br />
para os organismos<br />
geneticamente modificados<br />
• A cassação dos Certificados de Qualidade em Biossegurança (CQB) – buscou identificar<br />
se havia irregularidade cometida pela CTNBio na cassação de CQB de empresa privada<br />
de pesquisa.<br />
• As políticas de fiscalização do Mapa, da Anvisa e do MMA – diagnosticou a situação<br />
então existente dos sistemas fiscalizadores dos ministérios.<br />
• A falta de uma política nacional de biossegurança – apontou sua inexistência e sugeriu<br />
rumos para a formulação de uma política de biossegurança.<br />
Do trabalho desta comissão resulta um relatório que se constitui em completa radiografia<br />
dos atos e fatos da época, com análises e conclusões fundamentadas no cotejamento<br />
entre as decisões oficiais tomadas pelos diferentes órgãos públicos envolvidos na questão e<br />
os normativos legais e administrativos então vigentes.<br />
d) Relatório final da subcomissão especial “destinada a estudar a<br />
situação dos alimentos transgênicos”, aprovado pela Comissão de<br />
Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos<br />
Deputados, em 2003 7 .<br />
Sob a presidência do deputado Gustavo Fruet e com relatoria do deputado Nelson<br />
Proença, esse relatório retrata detalhado estudo e aprofundada investigação acerca de aspecto<br />
específico da política relativa aos OGM: a pesquisa e os óbices então existentes ao seu<br />
desenvolvimento. Produziu rigoroso diagnóstico da situação das pesquisas, nos âmbitos público<br />
e privado, e identificou os aspectos legais, normativos, administrativos e políticos que<br />
entravavam o adequado fluxo de sua execução e, por via de conseqüência, o desenvolvimen-<br />
to da ciência e tecnologia nesse campo. Algumas das questões levantadas<br />
nesse relatório, bem como algumas de suas sugestões, foram importantes<br />
instrumentos para as decisões normativas posteriores da CTNBio e dos<br />
ministérios envolvidos no processo de registro e autorização dos projetos<br />
de pesquisa, bem como no desenho da nova Lei de Biossegurança, no que<br />
concerne às autorizações para pesquisa em OGM.<br />
e) Estudos e artigos produzidos pela Câmara dos Deputados<br />
Em decorrência do intenso envolvimento técnico e político dos parlamentares,<br />
consultores legislativos e assessores da Câmara dos Deputados<br />
no tema OGM e dos debates travados em seus mais diversos ambientes, observou-se<br />
relevante produção intelectual, expressa na forma de estudos e artigos publicados<br />
na própria Casa ou em veículos externos. Como não poderia deixar de ser, essas publicações<br />
apresentam enfoques díspares, de diferentes matizes ideológicos e, muitas vezes, conflitantes<br />
abordagens, fruto da inevitável polarização técnica e política que o tema encerra. No entanto,<br />
essa produção intelectual originada na Câmara dos Deputados foi de grande relevância para<br />
o debate, contribuindo, de forma efetiva, para a formulação legislativa e da política para os<br />
organismos geneticamente modificados.
f) Apreciação de medidas provisórias pela Câmara dos Deputados<br />
Idéias e Leis<br />
Da apreciação que se faz da ação legislativa da Câmara dos Deputados que orientou a<br />
política de transgênicos, nos últimos anos, não se pode deixar de referir,<br />
os posicionamentos analisando-as sob enfoques diferenciados, quatro medidas provisórias ado-<br />
políticos tomados pelo tadas pelo Poder Executivo. Primeiramente, a MP nº 113, convertida na<br />
Congresso Nacional Lei nº 10.688, de 2003, tornou legal a soja tolerante a herbicida, plantada<br />
em relação aos atos ilegalmente, principalmente no Rio Grande do Sul, a partir de sementes<br />
do Poder Executivo, no originalmente contrabandeadas da Argentina. Ao permitir a comercialização<br />
âmbito da formulação e da safra, reconheceu a existência das lavouras ilegais. No entanto, levando<br />
da execução da política em conta os complexos e relevantes aspectos econômicos e sociais envolvidos<br />
de biotecnologia e de na questão, conferiu legalidade àquela produção. Posteriormente, a Câmara<br />
biossegurança, não foram dos Deputados apreciou mais duas medidas provisórias, basicamente com<br />
frutos, portanto, de os mesmos objetivos daquela, tendo em vista que uma liminar da Justiça,<br />
simples acomodação ou que suspendia a autorização da CTNBio para o plantio da soja RR, ainda<br />
aceitação de proposições<br />
perdurava e, ainda assim, os agricultores manifestavam forte intenção de usar<br />
as sementes transgênicas colhidas e guardadas para uso próprio.<br />
Ao final do ano de 2006, nova medida provisória, de nº 327, passou pelo crivo da Câmara<br />
dos Deputados. Neste caso, determina a redução da distância mínima entre lavouras<br />
de cultivares transgênicas e das Unidades de Conservação da Natureza (parques nacionais,<br />
estações ecológicas e outras). O projeto de lei de conversão – PLV relativo a essa MP, aprovado<br />
pela Câmara dos Deputados, passou a dispor, também, sobre a legalização do algodão transgênico<br />
plantado no Centro-Oeste sem permissão oficial e, ainda, sobre o quórum mínimo de<br />
deliberação da CTNBio. No início de 2007, essa MP e seu PLV encontram-se em apreciação<br />
pelo Senado Federal.<br />
Nos quatro casos, a tramitação das medidas provisórias pela Câmara dos Deputados<br />
não se caracterizou em mera aprovação ou chancela das intenções originalmente emanadas<br />
do Poder Executivo. Pelo contrário. Fruto dos intensos debates realizados, essas peças legais<br />
foram alvo de modificações que lhes deram novas conformações e disposições, alterando a<br />
proposta inicial e conferindo novas características às leis resultantes.<br />
g) A aprovação da nova Lei de Biossegurança<br />
Finalmente, é fundamental registrar o resultado maior do processo legislativo desenvolvido<br />
ao longo desse período: a nova Lei de Biossegurança. A Lei nº 11.105, de 2005,<br />
resulta, formalmente, da apreciação de projeto de lei encaminhado pelo Poder Executivo,<br />
mas traz, em seu conteúdo, o resultado do longo e dinâmico processo de discussão e análise<br />
da matéria no âmbito do Poder Legislativo e é resultante dos diversos vetores políticos que<br />
orientaram sua discussão. O amadurecimento das idéias apresentadas, o embate político e<br />
ideológico que se travou em torno delas, a apreensão, pelo Parlamento, dos anseios e das demandas<br />
sociais que lhe chegaram, respaldados pelos estudos técnicos tornados disponíveis a<br />
todos os que se envolveram no tema permitiram a formulação da lei, aprovada pela maioria<br />
dos integrantes do Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República.<br />
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José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella<br />
Difícil apontar quais<br />
das modificações são<br />
mais relevantes na<br />
nova configuração legal<br />
brasileira no campo da<br />
biossegurança, dado<br />
o grande número de<br />
alterações introduzidas<br />
No processo, ficou cristalino, pelo resultado final representado pela nova Lei de Biossegurança,<br />
que os posicionamentos políticos tomados pelo Congresso Nacional em relação<br />
aos atos do Poder Executivo, no âmbito da formulação e da execução da política de<br />
biotecnologia e de biossegurança, não foram frutos, portanto, de simples acomodação ou<br />
aceitação de proposições. Foram, ao contrário, resultado de intensos debates e relevante permeabilidade<br />
às demandas da sociedade brasileira e de profundos estudos técnicos e políticos<br />
que fizeram sedimentar tomadas de posição, formar opiniões e permitir que as decisões,<br />
conquanto políticas, pudessem ser tomadas à luz de informações sobre as<br />
diferentes vertentes do conhecimento científico e político que envolve tão<br />
complexo tema.<br />
Comentários sobre a nova Lei de Biossegurança<br />
Como dito anteriormente, a nova lei não se constituiu em novidade<br />
legislativa no Brasil. No entanto, os impasses jurídicos criados em torno<br />
da interpretação de algumas das disposições da Lei de 1995 e o avanço do<br />
conhecimento e novas demandas dos setores envolvidos motivaram, e até<br />
forçaram, a criação de novo normativo legal.<br />
Difícil apontar quais das modificações são mais relevantes na nova configuração legal<br />
brasileira no campo da biossegurança, dado o grande número de alterações introduzidas. A<br />
maior parte dessas são de ordem organizacional, no campo da estruturação e competências<br />
dos órgãos públicos envolvidos no processo de regulamentação e registro de OGM. Dessas<br />
transformações emerge clara intenção de nova conformação de poderes e de modificação de<br />
competências, com novos fluxos decisórios e novas limitações. Sem ordem de incidência no<br />
corpo da Lei, apontam-se a seguir, com breves comentários, as principais modificações constantes<br />
da nova Lei, cotejada com a Lei nº 8.974, de 1995.<br />
Talvez a maior novidade inserida na Lei, no que respeita às questões organizacionais,<br />
haja sido a criação do CNBS – Conselho Nacional de Biossegurança (Arts. 8º e 9º). Órgão<br />
máximo normativo da política de biossegurança, integrado por onze ministros de Estado,<br />
sob a presidência da Casa Civil da Presidência da República, é uma demonstração de intenção<br />
de conferir novo status ao comando da política de OGM. São três suas atribuições:<br />
fixar princípios e diretrizes para os órgãos que atuam na área; analisar, a pedido da CTNBio,<br />
quanto aos aspectos da conveniência e oportunidade socioeconômicas e do interesse nacional, a<br />
liberação comercial de OGM; e avocar e decidir, em última instância, sobre os processos<br />
que envolvam o uso comercial de OGM e seus derivados.<br />
A ação do CNBS não ocorrerá sempre. Não se trata de um órgão de “linha”, no ritual<br />
de análise de processos de liberação de OGM. Sua atuação não está prevista nas questões relativas<br />
aos projetos de pesquisa em OGM. De outra parte, nas questões relativas à aprovação<br />
de liberações comerciais, a atuação do CNBS ficará restrita à demanda pela CTNBio ou,<br />
conforme previsto no Art. 16, § 7º, se houver recurso por parte de um ou mais ministérios<br />
envolvidos na questão.
Idéias e Leis<br />
Assim, cria-se uma instância superior à CTNBio para trato das questões dos OGM, de<br />
caráter mais político do que científico, dando ao tema um status mais “alto” na hierarquia<br />
governamental encarregada de atuar neste campo.<br />
No entanto, é necessário ver por diferentes ângulos essa solução institucional adotada.<br />
A criação do CNBS — um aperfeiçoamento institucional da política de biotecnologia e<br />
biossegurança — estava prevista no projeto de lei original. Durante a tramitação na Câmara,<br />
foi modificada a proposta para aumentar o poder do Conselho, que passaria a avocar<br />
processos ou a receber recursos de ministérios sobre processos analisados pela CTNBio. Isto<br />
significou uma concessão, uma compensação aos segmentos que, durante as tratativas para<br />
conformação final da Lei, defendiam a manutenção de maior poder aos ministérios e restrições<br />
ao poder da CTNBio, no que se refere às autorizações de liberação de OGM, aspectos<br />
Revista Plenarium | 207
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José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella<br />
que, ao final, não foram contemplados na Lei. Assim, dava-se uma sinalização: amplia-se o<br />
poder da CTNBio — e retira-se, concomitantemente, o dos ministérios —, porém cria-se<br />
uma instância maior, algo como um “Poder Moderador”, que poderá ser convocado a intervir<br />
quando os interesses de algum ministério forem contrariados pela CTNBio.<br />
Resta, no entanto, uma dúvida, a ser esclarecida no futuro: a possibilidade de ser efetiva<br />
a atuação do CNBS, uma vez que se trata de um colegiado formado por onze ministros de<br />
Estado, muitos dos quais pouco afeitos ao tema dos OGM. Obviamente, a dificuldade em<br />
reunir conselhos desta natureza e a complexidade científica do assunto levam a intuir como<br />
de difícil operacionalização e de alto risco de pouca efetividade a atuação do CNBS.<br />
O segundo aspecto concernente à questão institucional e que, em realidade, foi o fulcro<br />
da grande discussão que se travou ao longo do processo de construção da nova lei são as<br />
competências da CTNBio perante as dos ministérios responsáveis pelo registro e fiscalização<br />
de produtos (Meio Ambiente, Saúde e Agricultura). Desde o início do processo, essa foi a<br />
grande questão que colocou dois grupos em campos opostos: de um lado, os que, em defesa<br />
do “avanço da ciência e tecnologia” e da “elevação da produtividade e da produção agrícola”<br />
e da “modernização dos processos produtivos e alinhamento do Brasil com os demais<br />
países, no que se refere ao uso de OGM”, defendiam a concessão de poderes à CTNBio e<br />
subordinação dos ministérios às suas decisões, no que se refere às questões de biossegurança<br />
envolvidas nas autorizações de liberações de novos produtos. Do outro lado estavam os que,<br />
em nome do “princípio da precaução” e “dos riscos ambientais e para os consumidores,<br />
representados pela liberação de OGM”, contrapunham-se àquela tese e defendiam a manutenção<br />
das atribuições dos ministérios como última instância de registro e autorização de<br />
liberação de atividades que envolvessem OGM.<br />
Venceu, na forma final da Lei, o primeiro dos grupos citados. A CTNBio restou com<br />
poderes totais para autorizar pesquisas em OGM (Art. 14, § 3º) e, apenas eventualmente,<br />
condicionada pelo CNBS para a liberação comercial. Aos ministérios foi atribuído, em relação<br />
à biossegurança, papel coadjuvante, submetidos ao parecer vinculante da CTNBio (Art.<br />
14, §§ 1º e 2º). Assim, caso a CTNBio autorize a execução de um projeto de pesquisa em<br />
OGM, por entidade pública ou privada, cabe ao ministério respectivo tão somente registrar<br />
e fiscalizar a atividade, já não podendo, como antes lhe era atribuído, opinar sobre a conveniência<br />
ou não de executar tal pesquisa e sobre as condições de sua execução, aprovadas pela<br />
CTNBio. De outra parte, a autorização de liberação comercial de OGM pela CTNBio dá<br />
aos ministérios envolvidos duas opções: ou, como no caso dos projetos de pesquisa, registrar<br />
o produto e fiscalizar a implementação em campo, sem possibilidade de vetar a autorização,<br />
ou recorrer ao CNBS para barrar a liberação comercial. Corroborando essa disposição legal,<br />
o art. 37 conferiu à CTNBio competência, anteriormente exclusiva do Ibama, de identificar<br />
as espécies geneticamente modificadas potencialmente causadoras de significativa degradação,<br />
se introduzidas no meio ambiente.<br />
Um terceiro aspecto que mereceu modificação substancial na Lei, com desdobramentos<br />
para a aplicação da política de biossegurança, é a composição da CTNBio e seu quórum<br />
de deliberação. Também alvo de intensos debates entre os mesmos dois grupos descritos, o<br />
assunto galvanizou grande parte das discussões empreendidas por diferentes protagonistas da
Idéias e Leis<br />
sociedade civil, das empresas de biotecnologia, das instituições de pesquisa, dos parlamentares<br />
e do Poder Executivo. A proposta dos setores que propugnavam por maior flexibilidade<br />
na liberalização dos transgênicos era a de elevar o número de membros da Comissão e reduzir<br />
o quórum de deliberação, no que foram, também, parcialmente vencedores. A Lei estabelece<br />
(Art. 11) que a CTNBio será composta por 27 cidadãos brasileiros (na lei anterior eram 18)<br />
com grau de doutor (o que não era exigido na lei anterior), a saber: representantes de 9 ministérios;<br />
12 especialistas de notório saber científico e técnico e 6 especialistas (defesa do consumidor;<br />
saúde; meio ambiente; biotecnologia; agricultura familiar; saúde do trabalhador)<br />
indicados pelos respectivos ministros a partir de listas tríplices, elaboradas<br />
Uma novidade deveras com a participação das sociedades científicas e de organizações da sociedade<br />
importante constou da civil, respectivamente.<br />
nova Lei de Biossegurança, A nova composição, além dos aspectos indicados, exclui a participa-<br />
a despeito de não se referir ção de representantes das empresas de pesquisa em biotecnologia, prevista<br />
ao objeto específico da na lei até então vigente.<br />
Lei: a permissão para Outro importante aspecto amplamente debatido foi o quorum de<br />
que sejam utilizadas, deliberação da CTNBio. O art. 11, § 7º da Lei estabelece que a reunião<br />
para pesquisa e poderá ser instalada com a presença de 14 de seus membros. Ou seja, metade<br />
terapia, células-tronco mais um dos membros do colegiado (obviamente convocados segundo os<br />
embrionárias obtidas de ditames do regulamento) podem realizar reunião válida. O § 8º do mesmo<br />
embriões congelados<br />
artigo estabelecia que as decisões da CTNBio seriam tomadas por maioria<br />
dos membros presentes à reunião, o que significava que, no limite, poderiam<br />
ser tomadas deliberações por oito membros. Todavia, tal disposição, por pressão dos setores<br />
ambientalistas, foi vetada pelo presidente da República, que disciplinou o assunto por decreto<br />
e estabeleceu a necessidade de quatorze votos para a deliberação das matérias em geral<br />
e de dezoito votos favoráveis (dois terços dos membros), no caso das liberações comerciais<br />
de OGM e derivados (art. 19 do Decreto nº 5.591, de 22/11/2005, que regulamenta a nova<br />
Lei de Biossegurança).<br />
Disso resultaram vários impasses nas votações ao longo de 2006, de vez que a Comissão,<br />
em várias ocasiões, não logrou obter o número mínimo de votos para aprovação de<br />
importantes matérias, com grande contrariedade dos setores interessados em ver os transgênicos<br />
liberados em maior velocidade e maior número no Brasil.<br />
Ao iniciar-se o ano de 2007, a questão permanece sem solução definitiva. Por um lado,<br />
o veto presidencial ao dispositivo da Lei ainda não foi apreciado pelo Congresso Nacional,<br />
vigendo a disposição do decreto presidencial. De outro, a Câmara dos Deputados fez incluir<br />
na Medida Provisória nº 327, de 2006 — que se destina a regular a distância mínima<br />
do plantio de OGM das Unidades de Conservação da Natureza — dispositivo que reduz<br />
para quatorze votos favoráveis (maioria absoluta dos membros da CTNBio) o quórum para<br />
aprovação, tanto de pesquisas quanto de uso comercial de OGM. Essa medida provisória<br />
encontra-se em apreciação no Senado Federal, que, se aprová-la como está, levará o presidente<br />
da República a defrontar-se, novamente, com pressões para vetar ou não o dispositivo<br />
que trata do quórum da CTNBio.<br />
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José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella<br />
Uma novidade deveras importante constou da nova Lei de Biossegurança,<br />
a despeito de não se referir ao objeto específico da Lei: a permissão para<br />
que sejam utilizadas, para pesquisa e terapia, células-tronco embrionárias<br />
obtidas de embriões congelados. Este foi um dos temas que suscitaram<br />
maior polêmica na sociedade brasileira, quando das discussões finais<br />
sobre a Lei. Extremamente polarizado, colocou de um lado grupos<br />
representantes de pesquisa médica e, de outro, grupos<br />
religiosos. O debate foi tão intenso que, na fase final,<br />
obscureceu a polêmica em torno dos OGM — razão<br />
de ser da Lei e, pela norma de elaboração de leis, único<br />
aspecto que deveria nela constar.<br />
Na forma final aprovada (art. 5º), ficou permitida,<br />
para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco<br />
embrionárias, desde que sejam de embriões<br />
inviáveis ou que estejam congelados há 3 anos ou mais<br />
da publicação da Lei (ou seja, aqueles que foram congelados<br />
antes de 24/3/2002) ou aqueles que já estavam congelados na data de publicação da Lei,<br />
quando completarem 3 anos de congelamento. Além do consentimento dos genitores, a Lei<br />
coloca outras disposições restritivas e normatizadoras do uso dessas células-tronco.<br />
A leitura rigorosa da Lei, portanto, leva-nos a concluir que a permissão legal não se<br />
estende no tempo, a não ser para os embriões considerados “inviáveis”. Aos demais, a autorização<br />
restringe o uso aos que estavam congelados à data da publicação da Lei. Assim,<br />
novos embriões, formados após o início da vigência da Lei não poderão ser usados para<br />
fornecimento de células-tronco, exceto os que venham a ser considerados “inviáveis”.<br />
Estranhamente, o Decreto nº 5.591, de 2005, que regulamenta a Lei, ao tratar desses<br />
dispositivos (em seu art. 63, inciso II), não faz referência às limitações impostas pelo inciso<br />
II do art. 5º da Lei, em termos de datas e tempos mínimos de congelamento dos embriões<br />
cuja utilização é autorizada, fazendo prever futuras discussões jurídicas em torno do ato<br />
regulamentador.<br />
Ainda sobre os OGM, a nova Lei de Biossegurança traz outras quatro importantes<br />
disposições aqui ressaltadas: por disposição contida no § 2º do art. 3º, estabelece-se que não<br />
é considerada derivada de OGM, para os efeitos da Lei, a substância pura, quimicamente<br />
definida, obtida por meio de processos biológicos e que não contenha OGM, proteína heteróloga<br />
ou ADN recombinante.<br />
O art. 6º, inciso VII, proíbe a utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento<br />
e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição de uso (em inglês, Genetic Use Restriction<br />
Technology – GURT), tecnologia que confere esterilidade às sementes produzidas por plantas<br />
geneticamente modificadas e relacionada ao gene denominado Terminator. Combatida<br />
por alguns, sob o argumento de que a tecnologia causaria dependência permanente dos<br />
agricultores em relação às empresas sementeiras, é defendida por outros, que destacam a<br />
possibilidade de uso da tecnologia como ferramenta de biossegurança de OGM. Importante<br />
disposição, a vedação a essa tecnologia atende às pressões dos setores ambientalistas e
Idéias e Leis<br />
contrários à liberalização dos transgênicos e recebe a contrariedade das empresas de pesquisa<br />
detentoras de direitos sobre as cultivares por representar, para estas, restrição indesejável ao<br />
desenvolvimento da ciência e da tecnologia. A polêmica sobre o assunto parece não haver-se<br />
encerrado com a sanção da Lei. Tramita na Câmara dos Deputados projeto de lei que altera<br />
essa disposição da Lei de Biossegurança, cujo substitutivo, aprovado na Comissão de Agricultura,<br />
Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, autoriza o uso da tecnologia<br />
para pesquisa e para outras condições específicas.<br />
Outra determinação de relevância na conformação da política de biossegurança refere-se<br />
ao art. 39, que exclui os OGM com resistência a insetos, e seus derivados, das disposições da<br />
Lei dos Agrotóxicos (Lei nº 7.802, de 1989), exceto quando produzam matéria-prima para a<br />
produção de agrotóxicos. Na lei anterior, as cultivares de plantas Bt – que recebem genes da<br />
bactéria Bacillus thuringiensis, com poder de matar as lagartas que comem suas folhas – eram<br />
submetidas ao processo de registro similar ao de produtos agrotóxicos pelos Ministérios da<br />
Agricultura, da Saúde e do Meio Ambiente. Com a disposição da nova lei, obtida pela pressão<br />
dos setores de pesquisa e desenvolvimento de plantas transgênicas, essas novas cultivares<br />
não mais serão submetidas ao crivo dos ministérios, restando a necessidade de avaliação pela<br />
CTNBio. De tal fato resulta, segundo alguns setores envolvidos no debate do tema, aceleração<br />
nos processos de pesquisa e liberação comercial de cultivares resistentes a insetos, e,<br />
segundo outros, enfraquecimento dos mecanismos de avaliação e controle sobre as plantas<br />
que incorporam genes letais aos insetos e de seus efeitos sobre a saúde e o meio ambiente.<br />
Outra disposição geral da nova lei, ratificando disposições anteriores, está presente no<br />
art. 40, que mantém a obrigação de informação ao consumidor, nos rótulos dos produtos,<br />
sobre a natureza transgênica dos ingredientes ou dos produtos finais ofertados ao consumidor,<br />
segundo os critérios a constarem em regulamentação. Tal dispositivo concretiza antigo<br />
anseio dos setores de defesa do consumidor e ratifica disposições legais já existentes. No<br />
entanto, a complexidade da empreitada, dada a dificuldade de estabelecer critérios adequados<br />
de rotulagem e de identificação da presença ou não de OGM nos produtos, além de<br />
uma latente resistência da indústria de alimentos em atender a essas disposições legais, tem<br />
levado a tornar letra morta tal obrigatoriedade, nos últimos anos.<br />
Finalmente, a nova Lei de Biossegurança disciplinou, no âmbito das Disposições Finais<br />
e Transitórias, alguns aspectos pontuais:<br />
Permitiu o registro e a comercialização dos OGM que tenham obtido decisão técnica da<br />
CTNBio favorável a sua liberação comercial até a entrada em vigor desta Lei, salvo manifestação<br />
contrária do CNBS, no prazo de 60 dias, a contar da data da publicação desta Lei (art. 30), disposição<br />
que tinha endereço certo: permitir o registro da soja RR, autorizada pela CTNBio<br />
desde 1998, porém nunca registrada pelo Ministério da Agricultura e nunca comercializada<br />
legalmente em virtude de impedimentos judiciais.<br />
O art. 34 convalidou e tornou permanente os registros provisórios concedidos para a<br />
safra 2003/2004 pela Lei 10.814, de 2003 (ex-MP 131, de 2003), o que tinha, também,<br />
endereço certo: tornou permanente o registro da soja RR no Registro Nacional de Cultivares<br />
do Ministério da Agricultura.<br />
Revista Plenarium | 211
212 |<br />
José Cordeiro de Araujo e Rodrigo H. C. Dolabella<br />
Da mesma forma, o art. 35 autoriza a produção e a comercialização de sementes de cultivares<br />
de soja geneticamente modificadas tolerantes a glifosato registradas no Registro Nacional<br />
de Cultivares. Também aqui há destinação específica da norma: a soja RR, objeto da grande<br />
controvérsia dos transgênicos na agricultura brasileira por ser o primeiro produto autorizado<br />
pela CTNBio para esta finalidade.<br />
Finalmente, pelo art. 36, a nova Lei de Biossegurança mantém a tradição, iniciada em<br />
março de 2003, com a edição da Medida Provisória 113, de respaldar e conferir legalidade<br />
aos plantios ilegais de soja RR, ocorridos em especial no Rio Grande do Sul a partir do<br />
final da década de 1990, com origem em sementes contrabandeadas da<br />
Não estão pacificadas, Argentina. Neste caso, a Lei novamente autorizou (como já o fizeram as<br />
no entanto, nem no MP editadas para este fim, transformadas em Lei) o plantio de grãos de<br />
meio acadêmico nem, soja geneticamente modificada tolerante a glifosato, reservados pelos produtores<br />
principalmente, no âmbito para uso próprio, na safra 2004/2005, sendo vedada a comercialização da pro-<br />
do Poder Executivo, as dução como semente. Com a disposição, a Lei deu continuidade ao processo<br />
profundas divergências de gradativa legalização das situações “de fato”, criadas pela existência de<br />
técnicas e ideológicas milhares de lavouras ilegais, e permitiu que se continuasse a produzir soja<br />
que marcaram o embate transgênica que, por força de liminar da Justiça, não possuía autorização<br />
das idéias, ao fim legal de plantio e cujas sementes não tinham registro legal no Brasil. Tal<br />
encerrado, nesta fase, decisão, conquanto aplaudida pelos setores ligados ao agronegócio empre-<br />
com a sanção da Lei<br />
sarial brasileiro, trouxe inegável e repercutido prejuízo ao setor sementeiro<br />
organizado do país, posto que resultou em aumento da utilização de<br />
sementes ilegais, sem qualidade agronômica e com riscos sanitários, comercializadas em<br />
mercado informal, em detrimento da produção legalizada, controlada e que incorpora o<br />
alto grau de tecnologia genética desenvolvida no Brasil.<br />
Conclusão<br />
Como visto, a nova Lei de Biossegurança traça um rumo razoavelmente preciso e seguro<br />
para a regulamentação das questões atinentes à biotecnologia e à biossegurança no país.<br />
Ela não representa o consenso das várias forças que se digladiaram ao longo dos vários anos<br />
em que o tema foi submetido ao escrutínio do Congresso Nacional. Ao contrário, ela representa<br />
a vitória de forças hegemônicas, que lograram construir maioria parlamentar para sua<br />
aprovação e força política suficiente para sua sanção com mínimos vetos. A mobilização de<br />
numerosos e ativos integrantes da classe científica foi importante para o resultado final obtido.<br />
Não estão pacificadas, no entanto, nem no meio acadêmico nem, principalmente, no<br />
âmbito do Poder Executivo, as profundas divergências técnicas e ideológicas que marcaram<br />
o embate das idéias, ao fim encerrado, nesta fase, com a sanção da Lei. Também na opinião<br />
pública e na mídia não se verifica que a polêmica tenha se encerrado, até porque no plano<br />
mundial ela recrudesce de forma recorrente.<br />
Cabe, agora, observar os efeitos da implementação da Lei sobre as políticas de biotecnologia<br />
e de biossegurança no Brasil. Este esforço de monitoramento e acompanhamento deve
Notas<br />
Idéias e Leis<br />
ser contínuo com vistas a fundamentar possíveis alterações na Lei, ditadas pela necessidade<br />
sentida a partir dessas avaliações e, mesmo, pela natural evolução dos fatos e da ciência.<br />
Algumas grandes questões restarão, ainda, para debate, discussão e ações no Poder<br />
Executivo, no Legislativo e na sociedade como um todo:<br />
• Como realizar a adequada rotulagem dos produtos transgênicos?<br />
• Qual o quórum adequado para o processo deliberativo da CTNBio?<br />
• Como torná-la mais eficiente e melhor aproveitar a inegável qualidade científica de<br />
seus membros?<br />
• Como compatibilizar as demandas ambientais com a liberação de espécies transgênicas<br />
de polinização cruzada, como o milho?<br />
• Como fazer a segregação, rastreamento e certificação dos grãos transgênicos (e<br />
dos convencionais), atendendo à posição defendida pelo Brasil no Protocolo de<br />
Cartagena?<br />
• Autorizar ou não, as tecnologias genéticas de restrição de uso?<br />
• Como fortalecer o segmento de ciência e tecnologia e o esforço de pesquisa vinculado<br />
à biotecnologia e à biossegurança?<br />
Essas e outras importantes questões deverão estar, inegavelmente, na agenda de discussão<br />
do país a partir de 2007. A construção de adequadas soluções para elas, a partir de<br />
aprofundamento técnico, da intermediação política e de adequados e transparentes processos<br />
decisórios, tornará possível o aperfeiçoamento da política nacional de biotecnologia e<br />
de biossegurança, traçando-a, de forma justa e consentânea, com as necessidades e com os<br />
desígnios da nação brasileira.<br />
1 Clive James (2006), International Service for the Acquision of Agri-biotech Aplications (http://www.isaaa.org/)<br />
2 Safety Assessment of Transgenic Organisms – OECD Consensus Documents (http://www.oecd.org/biotrack)<br />
3 Dolabella, Rodrigo H. C. Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança: O MOP3 de Curitiba – Cadernos ASLEGIS nº 28,<br />
janeiro a abril de 2006.<br />
4 Pareceres proferidos na Comissão Especial que analisou o PL 2.905/97 publicados em www.camara.gov.br/comissoes/<br />
temporarias/especial/encerradas/pl290597/pareceres.html.<br />
5 Pareceres proferidos na Comissão Especial que analisou o PL 2.401/03, publicados em www.camara.gov.br/comissoes/<br />
temporarias/especial/encerradas/pl240103/parecer.html.<br />
6 Relatório final publicado no Diário da Câmara dos Deputados em 26/6/2003, págs. 29.465 a 29.488.<br />
7 www.camara.gov.br/comissões/cctci/publicações<br />
Revista Plenarium | 213
Brasília, década de 1970. Foto de Luis Humberto.
Meio Ambiente<br />
• Fábio Feldmann<br />
Mudanças climáticas: o grande desafio da humanidade
216 |<br />
Fábio Feldmann*<br />
Mudanças climáticas:<br />
o grande desafio da humanidade<br />
Introdução<br />
É incontestável que a humanidade enfrenta atualmente um de seus maiores desafios:<br />
as mudanças climáticas globais e todas suas reais conseqüências.<br />
Tais mudanças são uma alteração permanente nas características do clima e aconteceram<br />
diversas vezes no passado por causas naturais. Entretanto, as atividades humanas,<br />
em especial as que utilizam combustíveis fósseis, vêm influenciando a ocorrência<br />
desse tipo de evento por meio da alteração do equilíbrio climático do planeta. A causa<br />
central deste fenômeno é a intensificação do efeito estufa, que modifica o modo com<br />
que a energia solar interage com a atmosfera, provocando graves conseqüências.<br />
*Fábio Feldmann, advogado, consultor em questões ambientais e de desenvolvimento sustentável. Foi deputado federal por três mandatos<br />
e Secretário de Meio Ambiente do Estado de São Paulo
Meio Ambiente<br />
O efeito estufa é a base para a vida na Terra. Esse fenômeno garante que a dispersão<br />
da energia solar pelo planeta seja mais lenta que a absorção, mantendo a Terra aquecida.<br />
Se o efeito estufa não acontecesse, a temperatura do planeta seria de mais ou menos 17ºC<br />
negativos. Hoje, a temperatura média da Terra é de 15ºC.<br />
Porém, a intensificação desse fenômeno representa uma grave ameaça ao equilíbrio climático<br />
do planeta. Diversas atividades produtivas, principalmente as que utilizam combustível<br />
fóssil, emitem os gases que causam o efeito estufa (GEEs), aumentando a capacidade<br />
da atmosfera de absorver irradiação infravermelha e levando ao aquecimento global.<br />
Alguns indicadores das mudanças climáticas nos últimos 15 anos são<br />
o aquecimento global; alterações bruscas em características básicas das estações<br />
do ano em diferentes partes do planeta, como temperatura, a exemplo<br />
do que vem ocorrendo na Rússia, com o registro do inverno mais<br />
quente desde o século passado; ou o aumento inédito nas últimas décadas<br />
de fenômenos abruptos, como vendavais, ciclones e enchentes, a exemplo<br />
do furacão Katrina nos Estados Unidos e até mesmo a constatação de tornados<br />
no sul do Brasil.<br />
As mudanças climáticas poderão ter impactos muito graves sobre o<br />
crescimento e o desenvolvimento de todos os países do planeta. Se não<br />
forem tomadas medidas para a redução das emissões, a concentração dos<br />
gases de efeito estufa na atmosfera poderá atingir o dobro do seu nível préindustrial<br />
já em 2035, acarretando um aumento de temperatura média<br />
global de mais de 2ºC. 1<br />
As mudanças climáticas<br />
poderão ter impactos<br />
muito graves sobre<br />
o crescimento e o<br />
desenvolvimento de<br />
todos os países do<br />
planeta. Se não forem<br />
tomadas medidas para a<br />
redução das emissões, a<br />
concentração dos gases<br />
de efeito estufa na<br />
atmosfera poderá atingir<br />
o dobro do seu nível préindustrial<br />
já em 2035, Se hoje existe um consenso entre cientistas de que as mudanças cli-<br />
acarretando um aumento máticas estão em curso e têm como origem a influência das atividades<br />
de temperatura média humanas no ambiente, ainda há um longo caminho a se percorrer no que<br />
global de mais de 2ºC<br />
diz respeito à mitigação das causas desse fenômeno e à adoção de energias<br />
alternativas para as atividades produtivas. Os tratados internacionais abriram<br />
caminhos para lidar com esse problema, ao estabelecerem diretrizes para redução de<br />
emissões dos gases de efeito estufa (GEEs) e ferramentas de ordem prática, como os mecanismos<br />
de flexibilização, presentes no Protocolo de Kyoto.<br />
Articulações internacionais<br />
Na década de 80 a comunidade internacional começou a atentar para o problema das mudanças<br />
climáticas, e algumas iniciativas foram então estabelecidas com o intuito de solucioná-lo,<br />
na medida em que as emissões de gases de efeito estufa apresentavam crescimento alarmante.<br />
Em 1988 foi estabelecido o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC<br />
– Intergovernmental Panel on Climate Change), uma iniciativa conjunta da Organização<br />
Meteorológica Mundial – OMM e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente<br />
– PNUMA, que tem o objetivo de fornecer aos formuladores de políticas públicas uma<br />
fonte de informação objetiva sobre as causas das mudanças climáticas, seus impactos ambientais<br />
e socioeconômicos e suas possíveis soluções.<br />
Revista Plenarium | 217
218 |<br />
Fábio Feldmann<br />
Sua principal atividade é produzir em intervalos regulares de tempo uma avaliação do<br />
estado de conhecimento sobre as mudanças climáticas, tendo publicado seus relatórios em<br />
1990, 1995 e 2001, sendo que o próximo deles está previsto para 2007. Os relatórios do<br />
IPCC são uma das fontes mais seguras e utilizadas quando se trata de mudanças climáticas<br />
e servem de base para a elaboração de documentos e estudos pelos mais diversos países.<br />
Em 1991 iniciaram-se as negociações formais entre os países, que culminaram com a<br />
realização, em 1992, da “Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento”,<br />
também conhecida como Cúpula da Terra ou Rio-92. A Rio-92 foi a maior<br />
Conferência realizada pelas Nações Unidas até o momento, com a presença de cerca de<br />
170 chefes de Estado, o que certamente denota a importância que o tema ambiental vinha<br />
ganhando na comunidade internacional.<br />
Como produtos dessa Conferência, foram assinados cinco documentos, sendo eles:<br />
Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica, Convenção Quadro<br />
das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Agenda 21, Declaração de Princípios sobre as<br />
Florestas e Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento.<br />
O presente artigo dará especial ênfase à Convenção Quadro das Nações Unidas sobre<br />
Mudança do Clima, assinada em 1992 e em vigor desde março de 1994, com 186 países<br />
participantes.<br />
Os governos que se tornaram Partes da Convenção, ou seja, aqueles que assinaram e ratificaram<br />
o acordo, se propõem a estabilizar as concentrações de gases de efeito estufa na atmosfera<br />
em um nível que impeça o desequilíbrio do sistema climático. Segundo a própria Convenção<br />
Esse nível deverá ser alcançado num prazo suficiente que permita aos ecossistemas adaptarem-<br />
se naturalmente à mudança do clima, que assegure que a produção de alimentos não seja ameaçada<br />
e que permita ao desenvolvimento econômico prosseguir de maneira sustentável. 2<br />
Nesse sentido, a Convenção tem o papel de orientar os governos no trabalho em conjunto<br />
para a implementação de iniciativas que reduzam os impactos das atividades humanas<br />
sobre o clima, de acordo com os contextos sócio-econômicos de cada país.<br />
A Convenção enfatiza que os países desenvolvidos – listados em seu Anexo I – são os principais<br />
responsáveis pelas emissões históricas e atuais, devendo liderar o combate às mudanças<br />
climáticas. De forma diferenciada, o tratado destaca que a prioridade dos países com industrialização<br />
tardia deve ser o seu desenvolvimento social e econômico. Isso porque a Convenção<br />
considera que as emissões per capita desses países ainda são relativamente baixas e reconhece<br />
que certas normas ambientais podem implicar custos demasiados para algumas nações.<br />
Segundo a Convenção Quadro sobre Mudança do Clima, tanto países desenvolvidos<br />
como aqueles em desenvolvimento devem quantificar os gases de efeito estufa por eles emitidos,<br />
assim como os sumidouros nacionais 3 . Também são obrigados a realizar programas<br />
nacionais de mitigação e adaptação, fortalecer a pesquisa científica e a difusão de tecnologias<br />
relevantes, além de promover a educação e conscientização pública. Aos países desenvolvidos<br />
cabe um certo número de compromissos adicionais, como limitação de suas emissões, proteção<br />
dos sumidouros e reservatórios de gases de efeito estufa 4 e, principalmente, retorno de suas
Meio Ambiente<br />
emissões aos níveis de 1990, até o ano de 2012, além de transferência de recursos tecnológicos<br />
e financeiros para que países em desenvolvimento cumpram suas obrigações na Convenção.<br />
Todas as iniciativas em prol da redução de emissões e adaptação aos efeitos das mudanças<br />
climáticas devem ser reportados à Conferência das Partes por meio dos chamados<br />
relatórios nacionais.<br />
Protocolo de Kyoto<br />
O Protocolo de Kyoto foi negociado a partir de 1995, após a entrada em vigor da Convenção-Quadro<br />
das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, assinado em 1997 na cidade<br />
que lhe deu nome, e constitui o mais importante acordo internacional ambiental pelo<br />
fato de fixar metas específicas, visando promover o equilíbrio climático, apesar de obrigar<br />
tão-somente os países industrializados (Anexo I), dentro do princípio da responsabilidade<br />
comum, mas diferenciada.<br />
A ausência de metas nos tratados internacionais assinados na Conferência do Rio, em<br />
1992, certamente foi a grande razão dos indicadores ambientais ruins apresentados dez anos<br />
depois na Cúpula Mundial de Johannesburgo, que revelaram que os países e seus governos<br />
assumem retoricamente compromissos com as grandes causas mundiais, mas não se esforçam<br />
para transformá-los em políticas e ações concretas. Em outras palavras, são prodigiosos<br />
em discursos de efeito e pobres em ações.<br />
Basicamente, o Protocolo de Kyoto estabelece que os países industrializados se comprometem<br />
a reduzir no período de 2008 a 2012 as emissões dos gases de efeito estufa em<br />
5,2%, com relação aos níveis de 1990. Apesar de ser um compromisso assumido pelos<br />
países que o ratificaram, o Protocolo não tem força de lei e não prevê penalidade para os<br />
integrantes que o descumprirem.<br />
Para a redução das emissões, o Protocolo de Kyoto determina que os países estabeleçam<br />
programas de redução das emissões dentro de seus territórios e dispõe sobre a necessidade de<br />
os países demonstrarem progresso no cumprimento de suas metas,<br />
considerando o tempo para implementação de legislação adequada,<br />
com a formulação de programas nacionais eficazes com relação às<br />
condições sócio-econômicas de cada nação.<br />
Entre os 28 artigos do texto, merecem destaque ainda a proposta<br />
de um sistema nacional para a estimativa das emissões de GEEs<br />
e da quantidade de gases removida pelos sumidouros; a busca por<br />
transferência de tecnologias ambientalmente seguras de propriedade<br />
pública; e a criação, no setor privado, de um ambiente propício à<br />
promoção dessas tecnologias.<br />
Para que os países possam cumprir suas metas, o Protocolo oferece<br />
mecanismos de flexibilização, que são instrumentos para cortar<br />
custos das iniciativas de redução de emissões dos GEEs. Os três mecanismos<br />
são conhecidos como Comércio de Emissões, Mecanismo<br />
de Desenvolvimento Limpo (MDL) e a Implementação Conjunta.<br />
Revista Plenarium | 219
220 |<br />
Fábio Feldmann<br />
Mecanismo de Desenvolvimento Limpo<br />
No caso do Brasil, apenas o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo é aplicável, uma vez<br />
que os demais mecanismos são exclusivamente voltados aos países industrializados do Anexo 1.<br />
O MDL foi estabelecido pelo Artigo 12 do Protocolo de Kyoto e tem por objetivo facilitar<br />
a redução de emissões de gases causadores do efeito estufa, ao mesmo tempo em que<br />
visa promover iniciativas de sustentabilidade nos países em desenvolvimento. Isso acontece<br />
porque o MDL é o único mecanismo de flexibilização que permite aos países desenvolvidos,<br />
listados no Anexo 1, compensar parte de suas emissões investindo em projetos alocados nos<br />
países em desenvolvimento.<br />
No momento em que um país do Anexo 1 investe em projetos de mitigação num<br />
país em desenvolvimento, recebe em troca créditos denominados Reduções Certificadas<br />
de Emissão (RCE), que podem ser usados para o abatimento do total de emissões daquele<br />
país ou podem ser negociados no mercado internacional. A concessão de RCEs depende de<br />
regras e avaliações de diversas instituições para o controle efetivo dos resultados dos projetos<br />
no tocante a suas reduções de emissão.<br />
Na Conferência das Partes realizada em 2001 em Marrakech, definiram-se duas modalidades<br />
de projetos candidatos ao MDL: os de substituição de combustíveis e/ou aumento<br />
de eficiência energética em matrizes poluidoras, ou seja, que usem tecnologias com menor<br />
potencial de emissão de GEEs; e aqueles que visam a remoção e estocagem de CO 2 através de<br />
sumidouros e atividades relacionadas ao uso da terra, incluindo projetos de reflorestamento.<br />
O Acordo de Marrakech também definiu as regras finais para a aprovação dos projetos,<br />
criando a Comissão Executiva do MDL, que se responsabiliza pelo registro dos projetos e<br />
emissão dos créditos. Entre a elaboração do projeto e a certificação final, cada proponente<br />
deve cumprir procedimentos obrigatórios para a futura negociação dos créditos. A formação<br />
desse mercado passa, assim, pela capacidade de cumprimento desses requisitos-chave.<br />
Impactos das mudanças climáticas<br />
As mudanças climáticas já apresentam<br />
impactos reais e mensuráveis na comunidade<br />
internacional, tanto impactos naturais<br />
como aqueles já citados anteriormente, mas<br />
principalmente impactos econômicos.<br />
Estudo elaborado pelo governo inglês<br />
5 recentemente revela que tais impactos<br />
e custos econômicos superam fortemente<br />
os custos de uma ação preventiva, com a<br />
adoção de novas tecnologias mais limpas e<br />
a mudança de padrões de consumo.<br />
As mudanças climáticas afetarão os<br />
elementos básicos da vida das pessoas no
Meio Ambiente<br />
planeta – acesso à água, produção de alimentos, saúde e ambiente. Centenas de milhões de<br />
pessoas poderão sofrer de fome, de falta de água potável e de inundações costeiras à medida<br />
que o mundo vai aquecendo. Utilizando resultados de modelos econômicos formais, esse<br />
estudo calculou que, se nada for feito, o total dos custos e riscos das mudanças climáticas<br />
será equivalente à perda anual de, no mínimo, 5% do PIB global. Levando-se em conta uma<br />
série de riscos e impactos mais amplos, as estimativas dos danos poderão aumentar para<br />
20% ou mais do PIB mundial, calculado em cerca de 44 trilhões de dólares em 20056 .<br />
Em contraposição, os custos da implementação de medidas – a redução das emissões<br />
dos gases de efeito estufa, a fim de evitar os piores impactos das mudanças climáticas – podem<br />
ser estimados anualmente em cerca de 1% do PIB global.<br />
Todos os países serão afetados pelos impactos das mudanças climáticas. Os mais<br />
vulneráveis – os países e as populações mais pobres – serão os primeiros a sofrer e certamente<br />
serão os que sofrerão mais, embora tenham sido aqueles a contribuir menos para as causas<br />
do aquecimento global. Os custos das alterações extremas no clima, abrangendo as cheias,<br />
as secas, temporais e demais eventos naturais, já estão aumentando, até<br />
A ação contra as mudanças mesmo para os países ricos: o problema é global.<br />
climáticas será capaz A adaptação às mudanças climáticas – ou seja, a implementação de<br />
de criar importantes medidas para desenvolver a resistência às suas alterações – é essencial. Já<br />
oportunidades para não é possível impedir as mudanças climáticas que irão ocorrer nas pró-<br />
negócios, dado que serão ximas duas a três décadas, mas é possível proteger de certo modo as so-<br />
criados novos mercados ciedades e suas economias dos seus potenciais impactos. Só nos países em<br />
para as tecnologias de desenvolvimento a adaptação irá custar dezenas de milhares de milhões de<br />
energia limpa, assim dólares por ano, colocando ainda mais pressão nos recursos já escassos. Os<br />
como outras mercadorias esforços de adaptação, particularmente nos países em desenvolvimento,<br />
e serviços com menores deverão ser acelerados.<br />
emissões de gases Os custos de tomada de medidas serão divididos entre países desen-<br />
de efeito estufa<br />
volvidos e em desenvolvimento, não eximindo nenhuma parte da responsabilidade<br />
de atentar para a questão.<br />
A ação contra as mudanças climáticas será capaz de criar importantes oportunidades para<br />
negócios, dado que serão criados novos mercados para as tecnologias de energia limpa, assim<br />
como outras mercadorias e serviços com menores emissões de gases de efeito estufa. Esses mercados<br />
poderão crescer de forma a valerem anualmente centenas de milhares de milhões de dólares,<br />
e os postos de trabalho nestes setores irão aumentar em conformidade com esta situação.<br />
Posição brasileira<br />
O Brasil tem desempenhado papel importante na questão das mudanças climáticas<br />
desde a assinatura da Convenção Quadro em 1992 até os dias atuais e tem mostrado protagonismo<br />
nas negociações internacionais acerca do tema, tendo sido um dos líderes na<br />
condução de propostas inovadoras, a exemplo do que veio a se transformar no Mecanismo<br />
de Desenvolvimento Limpo (MDL), um instrumento criativo de financiamento a projetos<br />
de redução de emissões em países não-industrializados.<br />
Revista Plenarium | 221
222 |<br />
Fábio Feldmann<br />
Conclusão<br />
Aliás, a idéia original seria a imposição de multas por emissões dos países industrializados,<br />
canalizando-se o produto da arrecadação a um fundo destinado ao financiamento do<br />
desenvolvimento de países em desenvolvimento.<br />
Exatamente por entender que o tema é absolutamente urgente e prioritário, foi criado em<br />
2000 o Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas com o objetivo principal de disseminar e engajar<br />
as diferentes esferas da sociedade (sociedade civil, governo e iniciativa privada) na discussão<br />
sobre o tema das mudanças climáticas. Além disso, o Fórum tem o intuito de preparar o presidente<br />
da República e seus ministros para a interlocução com os demais atores internacionais.<br />
Durante o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, este conversou pessoalmente<br />
com o presidente Clinton, Chirac e o primeiro-ministro Tony Blair, avocando para si o papel de<br />
promover a discussão desta temática tão complexa a envolver o futuro da humanidade.<br />
Esta iniciativa foi extremamente apoiada e reconhecida pela comunidade internacional<br />
e órgãos internacionais, que nela viram o embrião de um novo modelo de participação, no<br />
qual toda a sociedade é convidada a participar e se informar sobre as diferentes questões que<br />
permeiam seu convívio.O Fórum Brasileiro tem como meta também estimular a criação de<br />
fóruns estaduais que tratem do tema, considerando as especificidades de cada região.<br />
Desta forma, o primeiro fórum estadual criado foi o Fórum Paulista de Mudanças<br />
Climáticas Globais e de Biodiversidade, em 2005, por iniciativa do governo do estado,<br />
seguindo parte do modelo proposto pelo Fórum Brasileiro, porém agregando o tema da<br />
conservação da biodiversidade em sua agenda.<br />
O Fórum Paulista procura estabelecer uma sinergia entre os dois temas, agregando não<br />
somente a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e a Convenção<br />
sobre Biodiversidade, mas também outras convenções que versam sobre os assuntos.<br />
Além disso, o Fórum apresenta objetivos mais específicos, como a capacitação da sociedade<br />
civil para participar das COPs (Convenção das Partes) nos dois temas; capacitação da iniciativa<br />
privada para elaborar projetos utilizando MDL e a elaboração de políticas públicas<br />
sobre os dois temas.<br />
A partir de então, outros fóruns foram criados, a exemplo do Fórum Paranaense, Capixaba,<br />
Baiano e Mineiro. Tais iniciativas denotam a importância dada pelos governos estaduais<br />
e demais setores da sociedade ao tema e caracterizam uma maneira inovadora de engajar<br />
a sociedade nesta questão, uma vez que une os setores governamental, privado e sociedade<br />
civil na discussão do tema.<br />
É, portanto, através de tantas evidências reais do aquecimento global, claramente necessária<br />
uma ação rápida e rigorosa, visto que as mudanças climáticas são uma questão global.<br />
Esta ação deverá fundamentar-se numa visão partilhada dos objetivos a serem atingidos<br />
em longo prazo, bem como basear-se no reforço mútuo das abordagens em nível nacional,<br />
regional e internacional.<br />
De fato, ignorar as mudanças climáticas irá prejudicar mais cedo ou mais tarde o crescimento<br />
econômico. A luta contra as mudanças climáticas é a estratégia em prol do cresci-
Notas<br />
Meio Ambiente<br />
mento a longo prazo, podendo ser implementada de forma a não limitar as aspirações ao<br />
crescimento por parte dos países ricos ou pobres.<br />
Dada a importância e urgência de se tratar do tema, países como China, Índia e Brasil terão<br />
que assumir, na minha opinião, compromissos de redução de suas emissões em um provável<br />
segundo período de compromissos a ser iniciado em 2012 no âmbito do Protocolo de Kyoto.<br />
No caso brasileiro, isso estará intimamente ligado ao efetivo controle do desmatamento,<br />
principalmente da Amazônia, uma vez que 75% das emissões brasileiras são causadas<br />
pelo desmatamento de suas florestas. 7<br />
Será necessária a implementação de políticas rígidas de comando e controle para que os<br />
índices de desmatamento, que hoje chegam a cerca de 18,9 mil km 2 por ano, segundo dados do<br />
Ministério do Meio Ambiente, sejam reduzidos e atinjam índices minimamente razoáveis.<br />
Em um país com a matriz energética limpa como o nosso, é inaceitável que a taxa de<br />
emissão de gases de efeito estufa decorrentes do desmatamento se mantenha nos níveis atuais.<br />
O protagonismo brasileiro nas negociações internacionais terá que ser expresso a partir de agora<br />
em suas políticas internas, conferindo a devida importância do tema à sua política nacional.<br />
1 Disponível em www.unfccc.org<br />
2 Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Artigo 2<br />
3 De acordo com a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Artigo 1, sumidouro significa qualquer<br />
processo, atividade ou mecanismo que remova um gás de efeito estufa, um aerosol ou um precursor de um gás de efeito<br />
estufa da atmosfera.<br />
4 De acordo com a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, Artigo 1, reservatório significa um<br />
componente ou componentes do sistema climático no qual fica armazenado um gás de efeito estufa ou um precursor<br />
de um gás de efeito estufa.<br />
5 Stern Review on the Economics of Climate Change, 2006<br />
6 Segundo relatório publicado pelo Banco Mundial, em 1 o de julho de 2006, disponível em http://siteresources.<br />
worldbank.org/DATASTATISTICS/Resources/GDP.pdf<br />
7 Segundo dados do Primeiro Inventário de Emissões Antrópicas de Gases de Efeito Estufa, publicado pelo Ministério<br />
da Ciência e Tecnologia em 2004.<br />
Revista Plenarium | 223
Palácio do Planalto, década de 1970. Foto de Luis Humberto.
Palavras e História<br />
• Casimiro Neto<br />
<strong>Reforma</strong> eleitoral – Lei nº 842, de 1855 (Lei dos Círculos Eleitorais)
226 |<br />
Casimiro Neto*<br />
<strong>Reforma</strong> eleitoral<br />
Lei n o 842, de 1855<br />
(Lei dos Círculos Eleitorais)<br />
O programa de governo A Nona Legislatura (1853-1856) teve início em 3 de maio de 1853 e<br />
do Marquês de Paraná apresentou uma Câmara tão conservadora quanto a anterior. Da Província<br />
(MG) era realizar o ideal do Piauí, veio João Lustosa da Cunha Paranaguá, o segundo Marquês de<br />
da “Conciliação” entre Paranaguá; de Pernambuco, Domingos de Sousa Leão, Barão de Vila Bela<br />
os partidos, extremados – o aristocrático protetor de Joaquim Nabuco; da Bahia, o ilustre José<br />
pela violência das revoltas Antonio Saraiva. Foi também nessa Legislatura que tomou posse o 12º<br />
armadas que se sucederam Gabinete, no dia 6 de setembro de 1853. Na presidência do Conselho de<br />
até a pacificação dos Ministros é empossado o senador Honório Hermeto Carneiro Leão, Mar-<br />
conflitos em 1845. Seu quês de Paraná (MG), que inaugura seu gabinete da “Conciliação” e que<br />
propósito não era fundir infelizmente vem a falecer prematuramente, tristemente amargurado, no<br />
os dois partidos (liberal e dia 3 de setembro de 1856, pouco antes das eleições gerais. A sua morte<br />
conservador), liquidando- deixou um vazio de difícil preenchimento, deixando o mundo político<br />
os, mas reunir esforços apreensivo e desorientado.<br />
em prol do bem comum, O programa de governo do Marquês de Paraná (MG) era realizar o<br />
da nação brasileira<br />
ideal da “Conciliação” entre os partidos, extremados pela violência das revoltas<br />
armadas que se sucederam até a pacificação dos conflitos, em 1845.<br />
Seu propósito não era fundir os dois partidos (liberal e conservador), liquidando-os, mas<br />
reunir esforços em prol do bem comum, da nação brasileira. O professor Octaciano Nogueira<br />
(2001) nos ensina que a Conciliação que ele moldou continuou lentamente a produzir<br />
frutos. Abrandam-se os radicalismos dos dois partidos existentes e é na crista de uma onda arrebatadora<br />
que ressurge, renascido e renovado, o novo liberalismo. Já Affonso Arinos de Melo<br />
Franco afirma que talvez o mal maior da Conciliação haja sido sua origem dentro do governo,<br />
em vez de surgir no seio da Assembléia Geral. De fato, Pedro II, sabe-se, hoje, dirigiu a manobra<br />
de Paraná, mas seu inspirador foi Paula Sousa. A esse respeito, o deputado José Tomás Nabuco<br />
de Araújo (PE), que havia sido ministro no Gabinete do Marquês do Paraná (elevado ao<br />
Senado em 1858), dizia da tribuna da Câmara em 1857 que a política de Conciliação não<br />
pode ser senão de transição; a ausência de partidos é um mal e, eu direi mesmo, uma contingência<br />
de perigo.<br />
*Casimiro Neto, professor, historiador, pesquisador e especialista em Instituições e Processos Políticos do Legislativo.
Palavras e História<br />
<strong>Reforma</strong> eleitoral – Lei dos Círculos na Câmara dos Senadores<br />
Em 1855, o Marquês de Paraná (MG) leva avante a “reforma eleitoral” que já havia<br />
sido preconizada também pelo presidente do Conselho de Ministros (9º Gabinete – 31/5 a<br />
29/9/1848), senador Francisco de Paula Souza e Melo (SP). A denominada “Lei dos Círculos”<br />
(a eleição para deputados passou a ser feita com a divisão das províncias em distritos de<br />
um só representante) teve origem no Senado com a apresentação do projeto<br />
no dia 3 de agosto de 1846 pelo senador Paula Souza (SP), com data de<br />
28 de julho, que, aliás, não teve seguimento e ficou, como era natural, nas<br />
pastas da respectiva comissão.<br />
No relatório lido às câmaras, no ano seguinte, pelo ministro do Império,<br />
deputado Joaquim Marcelino de Brito (6º Gabinete – 2/5/1846 a<br />
21/5/1847), dizia-se tantas foram as duvidas ocorridas na execução da lei<br />
eleitoral de 19 de agosto de 1846 e tal é a gravidade de algumas e tão transcedente<br />
é o objeto em si mesmo, que eu não posso furtar-me ao dever de solicitar<br />
do vosso patriotismo a prompta revisão desta lei. 1<br />
“Tantas foram as duvidas<br />
ocorridas na execução<br />
da lei eleitoral de 19 de<br />
agosto de 1846 e tal é<br />
a gravidade de algumas<br />
e tão transcedente é o<br />
objeto em si mesmo,<br />
que eu não posso furtarme<br />
ao dever de solicitar<br />
do vosso patriotismo a Mais tarde, em 1848, o senador Francisco de Paula Souza e Melo<br />
prompta revisão desta lei” (SP), então presidente do Conselho de Ministros, promove a discussão do<br />
seu projeto, sobre o qual deram parecer a Comissão de Constituição e a de<br />
Legislação do Senado, em 28 de junho de 1848, concluindo com um projeto substitutivo<br />
assinado por todos os membros das comissões.<br />
É interessante notar que o parecer das comissões estava assinado, entre outros senadores,<br />
por Honório Hermeto Carneiro Leão, Marquês de Paraná (MG), futuro presidente do<br />
Conselho de Ministros do 12º Gabinete. O parecer<br />
e projeto foram votados em segunda discussão<br />
no dia 31 de agosto de 1848, tendo falado sobre<br />
eles os senadores Paula Sousa (SP), autor da proposição,<br />
Carneiro Leão (MG) e Nicolau Pereira<br />
de Campos Vergueiro (MG) a favor; Antônio da<br />
Cunha Vasconcelos (PB), contra; Antônio Paulino<br />
Limpo de Abreu, Visconde de Abaeté (MG),<br />
e Manoel Alves Branco, Visconde de Caravelas<br />
(BA), com relação a alguns artigos. Em 1851, o<br />
referido projeto teve ainda discussão, mas ficou<br />
adiado na sessão de 9 de maio do mesmo ano.<br />
Desta data até 1855 nada se fez a respeito do<br />
projeto. Nesse ano, porém, o Marquês de Paraná<br />
(MG), Presidente do Conselho de Ministros,<br />
chamou-o de novo ao debate, e sendo sobre ele<br />
ouvidas a Comissão de Constituição e a de Le-<br />
gislação, lavrou-se outro parecer, que foi lido na<br />
sessão de 9 de junho de 1855. Sobre esse parecer<br />
Honório Hermeto Carneiro Leão,<br />
Marquês de Paraná (MG)<br />
Revista Plenarium | 227
228 |<br />
Casimiro Neto<br />
divergiram os membros das comissões, entendendo os senadores Euzébio de Queiróz Coutinho<br />
Matoso da Câmara (RJ), relator, Pedro de Araújo Lima, Marquês de Olinda (PE), e<br />
Caetano Diana Lopes da Gama, Visconde de Maranguape (PE), que a eleição por círculos<br />
e as incompatibilidades eram inconstitucionais, ao passo que os senadores<br />
Em 9 de agosto o José Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vicente (SP), Cândido José<br />
projeto foi aprovado de Araújo Viana, Visconde de Sapucaí (MG), e Gabriel Mendes dos Santos<br />
em terceira discussão, (MG) sustentavam a eleição por círculos, manifestando-se, porém, este<br />
com emendas (maioria último contra as incompatibilidades, pela sua inconstitucionalidade.<br />
de 3 votos em votação Começou a discussão a 16 de julho, abrindo-a o senador Euzébio<br />
simbólica), e enviado à de Queiróz (RJ) com esclarecedor pronunciamento, a quem respondeu<br />
Câmara dos Deputados<br />
o Marquês de Paraná (MG). Depois falaram os senadores Francisco José<br />
Acaiaba Montezuma, Visconde de Jequitinhonha (BA), José Ildefonso de<br />
Souza Ramos, Visconde de Jaguari (MG), e outros. Em 9 de agosto o projeto foi aprovado<br />
em terceira discussão, com emendas (maioria de 3 votos em votação simbólica), e enviado<br />
à Câmara dos Deputados.<br />
Os argumentos em que se baseava a discussão da eleição por círculos podem ser resumidos<br />
nos seguintes tópicos:<br />
1 – diminuir a influência do governo nas eleições provinciais e as fraudes eleitorais;<br />
2 – pôr o eleito em contato com o eleitor; 3 – facilitar a fiscalização da eleição por parte das<br />
câmaras; 4 – oferecer menores perigos e abalos à sociedade do que uma eleição geral em toda a<br />
província, pondo em jogo o conjunto de paixões e interesses provinciais; 5 – moderar o espírito<br />
de provincialismo; 6 – tirar das grandes deputações o espírito de união e disciplina que as tornavam<br />
preponderantes sobre as pequenas; 7 – diminuir a pressão que sobre o governo exerciam as<br />
grandes deputações vinculadas pelos mesmos interesses; 8 – dar lugar à consulta dos interesses<br />
locais, naturalmente mais bem conhecidos dos deputados de distrito; 9 – finalmente, e este era o<br />
principal fundamento, o de impedir que as maiorias locais fossem esmagadas e anuladas pelas províncias,<br />
de modo a dar entrada no Parlamento a todas as expectativas sociais e opiniões políticas.<br />
Retrospectiva eleitoral<br />
Após a Independência do Brasil (1822) até 1842, vigoraram no país as “Instruções<br />
Eleitorais” expedidas através da Decisão do Governo nº 57, de 19 de junho de 1822, com a<br />
rubrica do ministro e secretário de Estado dos Negócios do Reino do Brasil e Estrangeiros,<br />
José Bonifácio de Andrada e Silva (SP).<br />
No dia 26 de março de 1824 foi expedido decreto que tornava sem efeito o decreto de<br />
17 de novembro de 1823, sobre as eleições de deputados para a nova Assembléia Constituinte,<br />
e mandava proceder à eleição dos deputados e senadores da Assembléia Geral Legislativa<br />
do Império do Brasil e dos membros dos Conselhos Gerais das Províncias. Acompanham<br />
o decreto as instruções baixadas pelo ministro e secretário de Estado dos Negócios do<br />
Império, João Severiano Maciel da Costa (MG).<br />
Em 4 de maio de 1842, três dias após a primeira dissolução da Câmara dos Deputados,<br />
foi expedido o Decreto nº 157, com a rubrica de D.Pedro II, que dá novas instruções sobre
Palavras e História<br />
a maneira de se proceder às eleições gerais e provinciais. Foi instituído o alistamento prévio,<br />
a eleição das mesas e proibido o voto por procuração. Politicamente estas instruções visavam<br />
deter os excessos da maioria liberal, que começara a predominar na Câmara dos Deputados<br />
após a aprovação do projeto de proclamação da maioridade do jovem impe-<br />
Foi a primeira lei sobre rador, em 23 de julho de 1840. Mas, cabe destacar, estas instruções só tive-<br />
eleições que não era ram validade para as eleições da Quinta Legislatura (1843-1844), porque a<br />
originária do Governo partir da Sexta Legislatura voltaram as instruções de 26 de março de 1824.<br />
Imperial, sendo elaborada Essa primeira reforma da legislação eleitoral era de extrema importância,<br />
em cumprimento de pois foi feita em virtude da crise originada com a dissolução prévia da Câ-<br />
dispositivo constitucional. mara dos Deputados, quando o motivo invocado pelo gabinete ministerial<br />
Regulamenta as eleições foi exatamente o da inautenticidade da representação parlamentar. Sendo<br />
do Império do Brasil, uma reforma consumada através de ato do Poder Executivo, terminou pro-<br />
assegurando, até quanto vocando polêmicos debates e foi motivo para aprovação da Carta de Lei nº<br />
possível, a regularidade 387, de 19 de agosto de 1846, que regula a maneira de proceder as eleições de<br />
no registro e qualificação senadores, deputados, membros das Assembléas Provinciais, Juizes de Paz, e Câ-<br />
dos eleitores<br />
maras Municipais, também conhecida como “Lei Regulamentar das eleições<br />
do Império do Brasil”. Foi a primeira lei sobre eleições que não era originária<br />
do Governo Imperial, sendo elaborada em cumprimento de dispositivo constitucional. Regulamenta<br />
as eleições do Império do Brasil, assegurando, até quanto possível, a regularidade no<br />
registro e qualificação dos eleitores. Essa lei, revogando as anteriores, condensa as instruções<br />
para eleições provinciais e municipais e estabelece, pela primeira vez, uma data para eleições<br />
simultâneas em todo o Império. Foi um grande avanço no sentido da legitimidade da representação<br />
e uma tentativa da Câmara temporária para moralizar o sufrágio popular. Em 10 de<br />
fevereiro de 1847 foi expedido o Decreto nº 500, que regulava o modo pelo qual se deveria<br />
executar a Lei Regulamentar das Eleições, e, em 13 de setembro de 1852, foi expedido e<br />
sancionado pelo Imperador o Decreto nº 671, da Assembléia Geral Legislativa, que alterava a<br />
divisão dos Colégios Eleitorais das diversas províncias de acordo com a Lei nº 387.<br />
A verdade é que os interesses partidários, interpretando e mutilando ao seu sabor os<br />
preceitos da Carta de Lei nº 387, fazem de uma obra bem organizada e delineada com esmero<br />
um tipo disforme e sem aplicação prática. Põe-se, então, à conta do projeto aprovado, os<br />
abusos nas eleições que se seguem, quando para semelhante resultado havia somente contribuído<br />
a sua inexecução e a paixão política. O aconselhado seria, pelas regras da prudência,<br />
tentar o seu melhoramento, e não a sua substituição. Começavam, então, os debates para<br />
aprovar um novo projeto.<br />
No dia 3 de junho de 1853, os deputados João Antônio de Miranda (RJ) e João Manoel<br />
Pereira da Silva (RJ) apresentam um projeto sobre incompatibilidades e distritos eleitorais<br />
que determinava, no artigo primeiro, que as províncias do império serão divididas em tantos<br />
circulos quantos forem os respectivos deputados geraes. Interessante notar que o artigo quinto declarava<br />
que “s funções de deputados geraes serão gratuitas. A nenhum pretexto lhes é devida indemnisação<br />
de especie alguma. O projeto foi julgado objeto de deliberação e mandado imprimir.<br />
No dia 25 de maio de 1855 o deputado Justiniano José da Rocha (MG) apresenta<br />
proposição (que foi lida e acolhida) que indicava que as comissões de constituição e poderes, de<br />
Revista Plenarium | 229
230 |<br />
Casimiro Neto<br />
justiça civil, e de justiça criminal, revendo o projeto de lei apresentado ao senado em 1848 pelo<br />
senador Carneiro Leão, acerca de eleições, e fazendo-lhe as alterações necessárias, dê o seu parecer<br />
de fórma a entrar esse projecto nas discussões da câmara.<br />
No dia 1º de junho de 1855 é dada a palavra ao deputado Carlos Carneiro de Campos<br />
(SP), que diz:<br />
Sr. Presidente, pedi a palavra para ter a honra de offerecer á consideração da câmara<br />
um projecto que julgo da maior importância, e que pela gravidade da sua matéria eu me<br />
apresso em apresental-o ao seu prudente e calmo exame. (...) Um dos defeitos do methodo<br />
eleitoral atual, ou antes uma das necessidades que muitos entendem dever ser attendidas na<br />
reforma eleitoral, é fazer-se a eleição por circulos, e não como até agora por província. Eu<br />
consigno tambem essa idea no meu projeto; penso que na composição dos corpos legislativos,<br />
sendo o maior desideratum que todos os interesses que se levantão na sociedade possão ser<br />
ahi ouvidos e representados, e pelas discussões tornarem-se compatíveis e produzirem a<br />
expressão do interesse geral, é conveniente todo aquelle systema eleitoral que dê possibilidade<br />
a representantes da maior somma desses mesmos interesses.<br />
O systema actual produzindo eleições por províncias parece a muitos que póde impedir<br />
a representação de muitos interesses, abafando á maioria da província o comparecimento<br />
e audiência de parcialidades menores que em tudo convinhão ser representadas no corpo<br />
legislativo.<br />
Em seguida é lido o projeto sobre reforma eleitoral, cujo parágrafo primeiro do artigo<br />
segundo declara que as províncias do império serão divididas em tantos districtos eleitoraes<br />
quantos forem os seus deputados á assembléia geral.<br />
<strong>Reforma</strong> eleitoral – Lei dos Círculos<br />
Na Câmara dos Deputados<br />
Como no Senado, o parecer<br />
era totalmente contrário<br />
ao projeto ministerial, que<br />
reputava inconstitucional<br />
nas suas idéias centrais:<br />
incompatibilidade e<br />
círculos. Além disso,<br />
ainda reputava ineficaz<br />
a primeira medida e<br />
prejudicial a segunda<br />
No dia 18 de agosto de 1855, no plenário da Câmara dos Deputados é lido ofício do<br />
primeiro-secretário do Senado sobre projeto de incompatibilidades e eleições por círculos.<br />
Consultado o Plenário, é decidido que o projeto vá à Comissão de Constituição e Poderes,<br />
sem prejuízo da impressão para o devido conhecimento de todos os parlamentares.<br />
No dia 22 de agosto a Comissão de Constituição e Poderes, composta<br />
pelos deputados Zacarias de Góis e Vasconcelos (BA), relator, Jerônimo<br />
Martiniano Figueira de Melo (PE) e Diogo Teixeira de Macedo (RJ), apresenta<br />
seu parecer ao Projeto de Lei nº 69, de 1855, vindo da Câmara dos<br />
Senadores e que alterava a Lei de 19 de agosto de 1846. É lido em plenário.<br />
Como no Senado, o parecer era totalmente contrário ao projeto ministerial,<br />
que reputava inconstitucional nas suas idéias centrais: incompatibilidade<br />
e círculos. Além disso, ainda reputava ineficaz a primeira medida e<br />
prejudicial a segunda. Quanto aos inconvenientes desta, explanava mais
detalhamente o que dissera a Comissão de Constituição<br />
do Senado, com novas reflexões sobre a matéria.<br />
Entre outros assuntos, discutia-se a vantagem do<br />
contato entre o eleito e seu eleitor. Parecia-lhes que a<br />
dependência em que os candidatos teriam de ficar das<br />
elites locais (cuja preponderância com a reforma iria<br />
subir muito) rebaixaria a missão dos representantes. A<br />
Comissão reputava a medida das incompatibilidades<br />
ineficaz porque, proibindo a eleição de certos funcionários<br />
nos distritos de sua jurisdição, não obstava as<br />
permutas de serviços que entre si pudessem prestar<br />
quando combinassem cada um fazer eleger no distrito<br />
de sua jurisdição o amigo incompatível no seu próprio<br />
distrito. Ao final<br />
Palavras e História<br />
Braz Carneiro Nogueira da Costa e<br />
Gama - Visconde de Baependi<br />
declarando-se assim contra a proposição do senado a commissão de constituição, todavia,<br />
persuadida de que os debates offerecerão occasião opportuna de mais profundamente avaliar-se<br />
a matéria da mesma proposição, e de pronunciar-se a camara com a prudencia e sabedoria que<br />
são proprias, é de parecer: Que a proposição do senado seja submetida á discussão na camara.<br />
Na sessão ordinária de 25 de agosto começou o debate referente ao projeto e seu respectivo<br />
parecer. As discussões e pronunciamentos continuaram nas sessões dos dias 27, 28,<br />
29, 30 e 31 daquele mês e 1º de setembro, ocasião (terceira discussão) em que foi aprovado,<br />
em votação nominal, por 54 votos contra 36. Apesar de tomar parte nos debates oradores<br />
de merecimento e respeito, a questão estava esgotada, principalmente depois que, na sessão<br />
de 27, o presidente do Conselho de Ministros, Marquês de Paraná, fez<br />
As províncias são da aprovação da lei uma questão de Gabinete ao participar do debate do<br />
divididas em tantos projeto e afirmar que desde o principio da organização do gabinete actual foi<br />
“Distritos Eleitorais” esta uma medida que julgamos possível levar a effeito em benefício do paiz, a<br />
quantos forem os seus bem da liberdade das eleições. No dia 3 de setembro subiu o projeto à sanção<br />
deputados à Assembléia imperial. Transformou-se na Lei nº 842, de 19 de setembro de 1855.<br />
Geral Legislativa. A lei aprovada altera as eleições do Império do Brasil e faz uma com-<br />
Ficou conhecida como pleta transformação do regime até então vigente. As províncias são divi-<br />
“Lei dos Círculos” didas em tantos “Distritos Eleitorais” quantos forem os seus deputados à<br />
porque estabelecia o Assembléia Geral Legislativa. Ficou conhecida como “Lei dos Círculos”<br />
voto por distritos, ou porque estabelecia o voto por distritos, ou círculos eleitorais. Um só repre-<br />
círculos eleitorais sentante para cada distrito eleitoral e eleição também dos seus suplentes,<br />
interiorizando as eleições e dando força às influências locais. Voto distrital<br />
puro, melhorando a representação urbana e rural.<br />
Cabe destacar, de acordo com Afonso Arinos de Melo Franco (1978), que<br />
Revista Plenarium | 231
232 |<br />
Casimiro Neto<br />
A importância da lei, para a qual o Marquês de Paraná contou com o firme apoio<br />
do Imperador D. Pedro II, residia no fato de que, na eleição por províncias saíam mais<br />
facilmente vitoriosas as influências gerais, das capitais e centros maiores, enquanto os círculos<br />
interiorizavam os pleitos, dando força às influências locais. Julgava-se, com razão, que, ainda<br />
admitidos os vícios do processo eleitoral, a representação seria mais genuína. Diminuíram os<br />
“deputados de enxurrada”, como disse o Marquês de Paraná, no seu habitual altaneiro. Mais<br />
alegou-se que o círculo facilitava, com o juiz e o delegado, o predomínio dos tiranetes locais.<br />
Realizadas as eleições, essa lei vem a sofrer severas críticas, entre elas a<br />
A verdade é que de ter contribuído para o enfraquecimento dos partidos políticos. Por isso,<br />
a circunscrição territorial antes de novo pleito, luta-se por sua revogação. Portanto, essa lei só vigorou<br />
traçada no Decreto nº para a Décima Legislatura (1857-1860), pois em 18 de agosto de 1860, de-<br />
842, de 19 de setembro pois de aprovado pela Assembléia Geral Legislativa, foi sancionado pelo Im-<br />
de 1855, e o pequeno perador o Decreto nº 1.082, que alterou a Carta de Lei nº 387 e o Decreto<br />
número de eleitores nº 842, que trataram das eleições passadas. Foi a segunda “Lei dos Círculos”.<br />
tendiam a falsear a fiel Manteve os distritos eleitorais, mas com três deputados e abolindo a eleição<br />
expressão do voto<br />
de suplentes. Exigia ainda que as autoridades se desincompatibilizassem de<br />
seus cargos seis meses antes dos pleitos. Amplia-se a representação da propriedade<br />
rural. Essa lei vai perdurar até a 15ª Legislatura (1872-1875).<br />
A verdade é que a circunscrição territorial traçada no Decreto nº 842, de 19 de setembro<br />
de 1855, e o pequeno número de eleitores tendiam a falsear a fiel expressão do voto,<br />
dando lugar a indecorosas transações entre os candidatos e localizando por modo tal a<br />
eleição, que o deputado não era propriamente o representante da nação, mas o eleito de seu<br />
reduto eleitoral, desligando-se assim dos laços do partido e mais acessível, portanto, à influência<br />
do poder local. Pretendendo sanar tão sérios inconvenientes, aprova-se e decreta-se o<br />
alargamento dos círculos com três deputados e, com isso, estabelecem-se novas incompatibilidades.<br />
A promulgação dessa lei não tardou em trazer desilusões a seus autores, e nem foi<br />
ela, como se imaginava, o elo que fornecesse ao país uma representação legítima.<br />
A reforma eleitoral seguinte, que instituiu o título de qualificação dos eleitores e que<br />
autorizou o governo a coligir e publicar por decreto todas as disposições que ficaram vigorando<br />
em relação ao processo eleitoral, foi aprovada pelo Decreto nº 2.675, de 20 de outubro<br />
de 1875. Depois dessa, seguiu a “Lei Saraiva”, de 9 de janeiro de 1881, que, sem reformar a<br />
Constituição do Império, instituiu o voto direto, que vigorou até o fim do regime imperial.<br />
A participação dos cidadãos e a revisão eleitoral<br />
No Brasil, poucos cidadãos participaram, entre 1821 e 1881, do processo de escolha de<br />
deputados e senadores. O sistema era indireto (colégio eleitoral censitário), ou a denominada<br />
“eleição de dois graus”, o que representava relativamente o que se praticou na época em<br />
Portugal e Espanha, com eleições em quatro turnos. Para nós, um avanço, mas, como o voto<br />
era censitário, abrangia pouco mais de 1% de população – uma realidade do nosso sistema<br />
eleitoral que só vai mudar (lentamente) a partir da Proclamação da República, em 1889.
Barbosa Lima Sobrinho (2001) esclarece que<br />
D. Pedro II<br />
A Fala do Trono<br />
Palavras e História<br />
Tivemos, de fato, numerosas reformas eleitorais, a partir de 1821, embora pudéssemos<br />
assinalar, na lista das insistentes e esperançosas, com que se procurava estabelecer a verdade<br />
do regime representativo, quatro ou cinco reformas essenciais: a de 1846, que reconhecera<br />
a competência do Poder Legislativo para regular as eleições; a de 1855, que estabelecera os<br />
círculos de um deputado; a de 1875, que instituíra o sistema do voto em chapa incompleta;<br />
a de 1881, com o voto direto; a de 1904, com o voto cumulativo, e a de 1932, com a<br />
representação proporcional e com o voto secreto. Mas entre todas as reformas, a de 1881 e<br />
a de 1932 se destacam pela audácia das soluções e lealdade de seus propósitos democráticos.<br />
Todas as outras condensaram reivindicações, ou experiências, que não puderam resistir, por<br />
muito tempo, à erosão das paixões políticas.<br />
Diz, ainda, que devemos observar<br />
que não há lei que possa resistir impunemente à coação, à fraude,<br />
ao espírito de chicana. O único princípio certo, e que o tempo não<br />
destrói, é o de que uma lei eleitoral excelente é a que não vigora<br />
por muito tempo. Há que revê-la, modificá-la, constantemente,<br />
nesse corpo a corpo com o facciosismo, em que a imaginação<br />
descobre novas fórmulas de vitória, a que a lei precisa acudir, de<br />
imediato, com outros meios de defesa.<br />
Por isso não são poucas as vozes que se mostram descrentes<br />
da eficácia das leis eleitorais. Já em 1875, D. Pedro II escrevia a<br />
Rio Branco, dizendo-lhe: “Cada vez me entristeço e me envergonho<br />
mais do que têm sido, e serão ainda por muito tempo, adotem-se<br />
as medidas que se adotarem, as eleições entre nós. Não é o vestido<br />
– observava o Imperador – que tornará vestal a Messalina, porém, sim, a<br />
educação do povo e, portanto, a do Governo”.<br />
No encerramento da Assembléia Geral Legislativa (Terceira Sessão Legislativa, da Nona<br />
Legislatura), no dia 4 de setembro de 1855, o Imperador D. Pedro II, em sua solene “Fala<br />
do Trono”, declara suas esperanças pela aprovação da reforma eleitoral: Augustos e dignissimos<br />
Srs. representantes da nação. A sessão legislativa que hoje termina será assignalada pela<br />
reforma decretada no systema eleitoral. Congratulo-me comvosco por essa medida, que espero<br />
produzirá beneficos resultados.<br />
Mas, na abertura da Assembléia Geral Legislativa (Terceira Sessão Legislativa, da Décima<br />
Legislatura) no dia 10 de maio de 1859, o Imperador D. Pedro II, em sua “Fala do<br />
Trono”, reconhece que a execução da lei eleitoral revelou alguns inconvenientes e abusos, que<br />
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Casimiro Neto<br />
urge examinar e remover. A Câmara dos Deputados, no “Projeto de Voto de Graças” apresentado<br />
na Sessão Ordinária de 21 de maio de 1859, concorda com o Imperador e assim deixa<br />
escrito o seguinte teor: compenetrada da necessidade urgente de serem examinados e removidos<br />
alguns inconvenientes e abusos, que revelara a execução da lei eleitoral, a Câmara dos Deputados<br />
empenhará todos os seus esforços para que o exercício dos direitos políticos dos cidadãos possa ter<br />
lugar à sombra de mais seguras garantias.<br />
Deputado Eduardo Ferreira França (BA) 2<br />
Pronunciamento histórico (grafia da época) 3<br />
Ordem do Dia.<br />
Sessão Ordinária do dia 25 de agosto de 1855.<br />
Entra em segunda discussão, o Projeto de Lei nº 69, do Senado, que altera a Carta de<br />
Lei nº 387, de 19 de agosto de 1846, com o Parecer nº 78, da Comissão de Constituição e<br />
Poderes da Câmara dos Deputados.<br />
Pedem a palavra contra 13 oradores, e 14 a favor<br />
O Sr. Presidente: - Tem a palavra o Sr. Eduardo França.<br />
O Sr. Eduardo França: - Trata-se de uma questão de grande momento. (Apoiados) É<br />
mister pois que os debates sejão feitos com toda a calma, é mister appellar unicamente para<br />
a razão e para as armas do raciocínio.<br />
A questão é muito importante, mas os debates no senado forão tão amplos, tão distinctos<br />
oradores se fizerão ouvir, que parece que não resta mais argumento algum que se possa<br />
propôr, e que foi esgotada a materia. Todavia, Sr. Presidente, entendo que ainda é possível<br />
até certo ponto esclarecer o assumpto em discussão; e comquanto eu não desconheça que<br />
tenho de ficar muito áquem da importancia do objecto, pedirei á camara desculpa por lhe<br />
fazer ouvir minha debil voz, tanto mais quanto me acho profundamente magoado pelas<br />
dolorosas noticias agora recebidas da minha infeliz provincia.<br />
O projecto, Sr. Presidente, tem por fim tres pontos principaes: garantir a liberdade do<br />
voto, promover uma reforma parlamentar, e em terceiro lugar conjunctamente fazer com<br />
que a administração da justiça no nosso paiz seja melhor do que actualmente. (Apoiado.)<br />
Eis aqui, segundo me parece, os tres pontos cardiaes do projecto, o fim a que ele se propõe.<br />
Quaes são os meios apresentados pelo projecto para chegarmos a este fim? Dous são estes<br />
meios: os circulos e as incompatibilidades.<br />
Examinemos pois, Sr. Presidente, se a decretação dos circulos e se a decretação das<br />
incompatibilidades podem trazer maior liberdade do voto, um parlamento mais bem organisado,<br />
e uma melhor administração da justiça. Por isso Sr. Presidente, eu principiarei<br />
por fallar da utilidade destas duas medidas, e depois fallarei da sua constitucionalidade,<br />
porque se estas medidas não fossem julgadas uteis, escusado seria fallar-se da sua constitucionalidade;<br />
mas por outro lado se sua utilidade ficar reconhecida, convém que examinemos<br />
a sua constitucionalidade, porque embora uma medida seja muito util, ou pareça sêl-o, se<br />
ella offender a constituição do império nós não a devemos adoptar. A nossa constituição é
Palavras e História<br />
tão bella, a nossa constituição bem executada faria tão efficazmente a felicidade do paiz, que<br />
tudo o que se póde oppôr a ella é para mim inteiramente prejudicial. Portanto, bem que<br />
uma medida seja julgada util, é mister que nós a reconheçamos constitucional, como não<br />
offensiva da constituição do estado, para que possamos adoptar.<br />
Tratarei primeiro da utilidade dos circulos em relação á liberdade do voto.<br />
Sr. Presidente, a liberdade do voto fica mais bem garantida com a adopção dos circulos.<br />
Qualquer acção do governo, a acção mesma das influencias locaes, fica mais retringida e<br />
neutralisada com a presença dos candidatos que vão alli pleitear a sua eleição, e que, pondose<br />
em contacto mais immediato com os eleitores, os animão, e lhes dão mais energia para<br />
resistir ás ameaças que lhes quiserem fazer.<br />
O Sr. Figueira de Mello: - Não apoiado.<br />
O Sr. E. França: - Sr. Presidente, não será tão facil em um circulo, como acontece na<br />
eleição por provincia, impôr uma chapa de designados do governo. Não será tão fácil pôr em<br />
pratica os manejos de corrupção que se empregão todas as vezes que a eleição é por assim dizer<br />
abandonada, todas as vezes que os candidatos não estão presentes para vigiar a eleição.<br />
O Sr. Figueira de Mello: - Logo, para a eleição do circulo o candidato deve ser<br />
tirado do mesmo lugar.<br />
O Sr. E. França: - Sr. Presidente, com os circulos a liberdade do voto ganha muito, as<br />
influencias illegitimas devem desapparecer para serem substituídas por aquellas que se fundão<br />
no merito. (Apoiados.) Hoje é muito facil á potencias mal intencionadas viciar a eleição,<br />
alterando as actas, e substituindo as cedulas nas urnas; por meio dos circulos, Sr. Presidente,<br />
há de haver maior fiscalisação da parte dos candidatos e dos interessados contra uma falsa<br />
eleição; os abusos da autoridade são logo conhecidos, e podem ser logo contrabalançados e<br />
obstados. Com os circulos os interesses do eleitor e do candidato tomão grande incremento,<br />
poque não se trata sómente de concorrer para a eleição, mas de eleger-se um representante,<br />
e as influencias locaes não ficão entregues a si mesmas, não poderão, quando mal intencionadas,<br />
empregar a sua influencia illegitima para alterar a eleição, porque, então, existindo<br />
interesse em que a eleição não seja feita no sentido da influencia prejudicial, ou do governo,<br />
outras influencias se levantão para contrabalançar e fazer desapparecer aquella.<br />
O Sr. F. Octaviano: A influencia da policia. (Há varios apartes.)<br />
O Sr. Presidente: - Attenção!<br />
O Sr. E. França: - Sr. Presidente, por meio dos circulos os eleitores conhecem muito<br />
melhor os candidatos. Os candidatos têm necessidade de fazer conhecer suas opiniões, têm<br />
necessidade de fazer conhecer os seus sentimentos, os seus projectos; as candidaturas serão<br />
discutidas, apreciadas, avaliadas, e o eleitor que vai eleger, e fazer escolha de um representante<br />
do seu circulo, terá mais cuidado nessa escolha. Portanto, Sr. Presidente, é claro que<br />
por este lado a instituição da eleição por circulos é proficua.<br />
Demais, Sr. Presidente, nós vemos que uma lista de candidatos é apresentada á eleição<br />
da provincia debaixo da influencia da autoridade. O governo quer que a eleição recaia em<br />
certos e determinados individuos, mas a maioria da provincia os repelle, ou outros candidatos<br />
são eleitos; e acontece então muitas vezes, Sr. Presidente, que um único collegio vai<br />
transtornar a eleição de uma provincia inteira, porque aquelle collegio, de que a autoridade<br />
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Casimiro Neto<br />
póde dispôr, vai influir sobre a eleição, carregando toda a votação nos candidatos do governo,<br />
e se a differença póde ser reunida resulta que um único collegio eleitoral vai fazer<br />
annullar a eleição de toda uma provincia, unicamente porque o governo tem poder decidido<br />
em collegio. Isto acontece muitas vezes, Sr. Presidente, e é facto que se dá todos os dias nas<br />
eleições das camaras municipaes, onde vemos todas as freguezias escolherem certos cidadãos,<br />
e uma só freguezia transtornar essa eleição, visto como o resultado de sua votação, guardado<br />
de proposito para ser ultimado depois de conhecido o das outras freguezias, é adrede<br />
arranjado para se favorecer tal ou tal candidatura em detrimento de outra, e assim uma só<br />
freguezia altera profundamente a eleição, e lhe dá um desfecho inesperado. O que acontece<br />
nas eleições de vereadores succede na eleição dos deputados. E será isto conforme com o que<br />
ordena a constituição, estarão satisfeitos os seus preceitos? A resposta não é duvidosa. Onde<br />
está a liberdade na eleição e sua legitimidade? Uma única influencia illegitima, se não póde<br />
fazer com que os seus candidatos tenhão a maioria dos votos, pelos menos exclue da lista dos<br />
eleitos ao candidato que não é de sua sympathia, ou contra o qual têm recommendações do<br />
governo. Assim pois a importancia da influencia illegitima ou mal intencionada é mantida<br />
pela lei actual; com os circulos isto não póde acontecer; pelo menos em tão grande escala; a<br />
influencia perniciosa se circumscreverá na sua localidade, mas não estenderá seu dominio,<br />
e não influirá mesmo indirectamente, na eleição das outras localidades e da provincia. Portanto<br />
parece-me que a liberdade do voto fica bem garantida. O governo, ou uma autoridade<br />
qualquer, para vencer em um circulo cuja opinião lhe seja contrária tem de empregar meios<br />
que ficão muito patentes, em emfim de empregar a força, e eu já disse que antes quero o<br />
emprego da força do que o emprego da corrupção.<br />
A respeito da representação nacional não há duvida nenhuma que a instituição dos circulos<br />
há de trazer uma reforma parlamentar, e como muito bem disse um honrado senador,<br />
as diversas opiniões politicas hão de ser representadas . Não há de ser esta camara a partilha<br />
exclusiva de um ou outro partido, não há de ser uma camara unanime, e todos nós sabemos<br />
qual é a desvantagem para o paiz das camaras unanimes, mesmo para o governo que promove<br />
a sua eleição. O parlamento há de ser mais bem composto, porque virão para elle os representantes<br />
das localidades, homens conhecedores das necessidades vitaes do paiz. (Apoiados.)<br />
As diversas opiniões enviarão os seus legitimos representantes, a eleição penderá a tomar um<br />
caracter de verdadeiro interesse nacional, e deixará de ser a expressão de sentimentos egoisticos.<br />
Senhores, a constituição tem por fim conservar e garantir os direitos de cada um dos<br />
cidadãos, não são os interesses e os direitos de collecção que ella garante, porque ao individuo<br />
é que pertencem os direitos. Os representantes devem-se identificar o mais possivel<br />
com os interesses de seus representados; devem conhecer as necessidades destes, e os meios<br />
de satisfazel-as, defendendo os seus direitos. Alargar os circulos da votação, ou confundilos<br />
todos por assim dizer em um só circulo, ou uma só votação, e os interesses individuaes<br />
serão desconhecidos, mal protegidos, e sempre mal representados. A eleição que mais se<br />
approximar da eleição universal será aquella que há de apresentar mais benefícios; e sem<br />
os inconvenientes praticos da eleição universal, que realmente se tem demonstrado que<br />
é nociva para o paiz que a adopta, a eleição por circulos produz todas as suas vantagens,<br />
podendo-se sem receio algum augmentar o numero de eleitores, e por conseguinte fazer-
se com que maior numero de cidadãos intervenha na<br />
eleição, o que é um meio de fazer desapparecer as influencias<br />
illegitimas de qualquer natureza que sejão,<br />
e de dar mais probabilidade para que as necessidades<br />
e interesses de cada um dos cidadãos sejão mais bem<br />
conhecidos. (Apoiados.)<br />
Demais, Sr. Presidente, o que é o interesse geral<br />
senão a fusão e combinação dos differentes interesses<br />
locaes? E como é possivel que sem serem representados<br />
esses interesses locaes, sem serem conhecidos os<br />
elementos que constituem o interesse geral, possa esse<br />
interesse geral ser conhecido e satisfeito?<br />
Assim, pois, Sr. Presidente, os direitos e interesses<br />
dos cidadãos hão de ser mais bem garantidos com a<br />
decretação dos circulos, porque hão de ser mais bem<br />
conhecidos; o interesse geral há de ser mais bem aquilatado<br />
e defendido, porque elle não consiste senão na<br />
combinação dos differentes interesses individuaes.<br />
Disse-se, Sr. Presidente, que para o conhecimento<br />
dos interesses locaes existem as camaras municipaes e as<br />
assembléas provinciaes. Em primeiro lugar observarei que<br />
as camaras municipaes são meramente administrativas.<br />
O Sr. Araujo Lima: - É engano, tem poder legislativo<br />
municipal.<br />
O Sr. E. França: - Senhores, parecia que, conforme<br />
a mesma opinião da commissão desta camara,<br />
as assembleas provinciaes, tendo de representar os interesses<br />
das differentes localidades, a eleição de seus<br />
membros devia ser feita por circulos, para que os interesses<br />
locaes pudessem ser mais conhecidos; e portanto<br />
parece que os circulos eram muito vantajosos na<br />
eleição das assembléas provinciaes; esta conclusão eu<br />
a sustento, e quero que seja adoptada tambem para a<br />
eleição dos representantes da nação.<br />
E demais, Sr. Presidente, as assembléas provinciaes<br />
não podem legislar sobre muitos pontos que competem<br />
á assembléa geral; grande numero de interesses locaes<br />
não podem ter sua satisfação nas assembléas provinciaes,<br />
e cumpre que elles sejão attendidos, e portanto<br />
não sendo a eleição feita por circulos, não podem ser<br />
elles bem averiguados e satisfeitos; e conseguintemente<br />
Palavras e História<br />
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Casimiro Neto<br />
também o interesse geral não póde ser bem conhecido, porque resulta como eu disse, da<br />
combinação dos differentes interesses locaes.<br />
O Sr. Figueira de Mello: - Há de ser um verdadeiro mosaico.<br />
O Sr. E. França: - O interesse geral nunca é contrario aos interesses particulares,<br />
legitimos e verdadeiros.<br />
Sr. Presidente, a assembléa geral só pode ser a verdadeira expressão do paiz, quando<br />
todos os interesses forem ahi bem representados (Apoiados.); e portanto como é que podem<br />
esses interesses ser aqui bem representados senão por uma eleição por circulos.<br />
O Sr. Figueira de Mello: - Devem ser deputados da nação e não deputados de aldéas.<br />
O Sr. F. Octaviano: - E entretanto os senhores tirão o chapéo ás influencias de aldéas<br />
(Apoiados.)<br />
O Sr. Ribeiro de Andrada: - É verdade; cortejão-as a todos os momentos, e sem ellas<br />
não vêm para aqui.<br />
O Sr. F. Octaviano: - São tão bons como nós.<br />
(...) Passemos agora a tratar da utilidade da adopção das incompatibilidades. Que a<br />
liberdade do voto ganha poderosíssimamente com as incompatibilidades, isso não póde ser<br />
posto em duvida.<br />
O Sr. F. Octaviano: - Apoiado, isto está na consciência do paiz.<br />
O Sr. E. França: - Muitos empregados publicos tirão a sua influencia dos cargos que<br />
exercem, quase que é comesinho dizer-se: é presidente da provincia, há de ser deputado dessa<br />
provincia. (Apoiados.) E não são sómente os presidentes que se fazem eleger em virtude<br />
do cargo que occupão; muitos chefes de repartições, magistrados são eleitos muitas vezes<br />
sómente porque occupão um lugar de dependencias na provincia.<br />
E a este proposito, Sr. Presidente, permitta V. Ex. que eu responda a um trecho do<br />
discurso proferido no senado, sobre esta materia, pelo illustre senador o Sr. Eusebio de<br />
Queiroz, elle exprimio-se assim:<br />
“Tem-se dito por vezes que os magistrados influem na liberdade da eleição porque<br />
coagem. Appello para a consciencia publica, e pergunto qual é, na occasião das eleições,<br />
a opinião que se procura saber; a do juiz de direito, ou a do presidente da provincia: Se a<br />
coacção partisse dos magistrados, elles triumpharião mesmo quando seu partido é infeliz. Se<br />
existe coacção, não parte da magistratura, senão dos agentes do poder executivo”.<br />
O Sr. Araujo Lima: - Isto é tão evidente como a luz do dia; é uma farça ridicula negalo<br />
. Se há coacão, vem do governo, e não dos magistrados.<br />
O Sr. E. França: - Pois ainda se póde duvidar que tenha havido coacção e coacção<br />
muito forte? Appello tambem para a consciencia publica. Não vem da magistratura diz o<br />
Sr. Eusebio de Queiroz, porque se a influencia viesse dos magistrados, elles seriam sempre<br />
eleitos deputados, embora não estivessem na lista do governo. Ora, pergunto eu, qual é o<br />
juiz de direito candidato que deixa de ter os votos da sua comarca?<br />
O Sr. Siqueira Queiroz: - Não apoiado.<br />
O Sr. E. França: - Creio, Sr. Presidente, que as excepções são raríssimas (Apoiados.); poderão<br />
não ter votos nas outras comarcas, se o governo não influir em favor da sua candidatura,
Palavras e História<br />
mas os das suas comarcas digo que sempre os têm. Portanto, quando o magistrado é infeliz na<br />
sua candidatura, não o é de certo pelos votos das comarcas onde exerce a sua jurisdicção.<br />
O Sr. Bandeira de Mello: - Como foi o Sr. Cansansão eleito deputado pelas Alagôas<br />
não exercendo jurisdição nessa provincia, nem mesmo estando lá?<br />
O Sr. Pereira da Silva: - E continuará a ser; isto nada prova.<br />
O Sr. Cansansão: - Nunca fui eleitor na minha parochia.<br />
O Sr. E. França: - Vou ainda occupar-me de outros trechos do discurso do Sr. senador<br />
Eusebio de Queiroz, que é uma autoridade muito respeitavel: “Os magistrados, disse<br />
elle, tirão sua influencia de sua intelligencia, e da natureza das funcções que exercem... E esta<br />
influencia há de ter bon gré, malgré.”<br />
Logo, o cargo que elles exercem lhes dá uma influencia muito grande; e portanto, desde<br />
que os magistrados têm esta influencia tão grande, e reconhecida pelo nobre senador e por<br />
outros, hão de se fazer eleger. Os eleitores estão na dependencia do magistrado que exerce<br />
jurisdicção no lugar, e por conseguinte é muito difficil que deixem de votar nelle, porque<br />
dahi a pouco esse magistrado tem que ser seu julgador e há de decidir da vida e fortuna dos<br />
mesmos eleitores. Não é possível resistir á candidatura do seu juiz; se fôr homem de más<br />
intenções obterá os votos por coacção; o eleitor não tem liberdade.<br />
Quanto á reforma parlamentar, as incompatibilidades trarão grandes vantagens para o<br />
paiz. As incompatibilidades, fazendo com que certos empregados não possão ser votados no<br />
districto de sua jurisdicção, concorrerão para que o numero de empregados não possão ser votados<br />
no districto de sua jurisdicção, concorrerão para que o numero dos empregados publicos<br />
diminua no parlamento, e, em compensação, que o numero dos simples cidadãos augmente.<br />
E eu, senhores; acho que é um vicio proveniente do actual systema eleitoral aquillo que<br />
se observa entre nós; olhemos para os bancos desta camara e veremos que todos, ou quase<br />
todos, são occupados por empregados publicos. (Apoiados.) Não há aqui um negociante,<br />
não há um lavrador, todos são empregados publicos por assim dizer.<br />
O Sr. Araujo Lima: - dá um aparte que não ouvimos. (Há outros apartes.)<br />
O Sr. E. França: - Eu quero que os nobres deputados apresentem argumentos; as<br />
discussões ordinariamente se azedão quando não há razões para se apresentar; discutamos<br />
com sangue frio, não procuremos excitar paixões e odios: a gravidade da materia exige que<br />
procedamos com toda a circumspecção.<br />
Emfim, a única conclusão que poderei tirar dos apartes que ouço é que as incompatibilidades<br />
se devião estender mais; pois bem, tentemos; e porque não se póde fazer tudo de<br />
chofre segue-se que nada se deva fazer? (Apoiados.)<br />
Creio pois, Sr. presidente, que por meio das incompatibilidades as camaras se hão de<br />
compor de cidadãos que representem todas as classes do paiz, e nisso o paiz, há de ganhar<br />
immensamente. (Apoiados.) Deve haver um paradeiro á invasão dos empregados publicos<br />
na representação nacional; venhão tambem para aqui proprietarios, agricultores, negociantes;<br />
venhão os homens que não procurão empregos publicos.<br />
Quanto á boa administração da justiça, senhores, todos quantos no senado fallarão a<br />
respeito do projecto, tanto os que o sustentarão, como os que o impugnárão, todos entendem<br />
que a ausencia dos magistrados dos seus lugares é um mal para a administração da justiça...<br />
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Casimiro Neto<br />
O Sr. Araujo Lima: - Na verdade isso é uma descoberta tão importante como a da<br />
America.<br />
O Sr. E. França: - O Sr. Eusebio de Queiroz disse que a administração da justiça<br />
perde pela falta que fazem os magistrados em seus lugares...que peiora a administração da<br />
justiça por essa falta.<br />
Um Sr. Deputado: - Não tome destacadamente um ponto do discurso.<br />
O Sr. E. França: - Se a administração da justiça é a cousa que mais desvelos merece<br />
em qualquer paiz, se da boa administração da justiça depende em maxima parte a felicidade<br />
de um povo, e que esta administração soffre e peiora com a ausencia dos magistrados de seus<br />
lugares, segue-se que um projecto que tem por fim conservar os respectivos magistrados no<br />
exercicio de suas funcções não póde deixar de ser para o nosso paiz um projecto util.<br />
Há infelizmente, Sr. presidente, magistrados entre nós que por sahirem deputados geraes<br />
ou provinciaes guardão feitos que lhe trarião compromettimento julgados como devião<br />
ser, e deixão-os em suas pastas para no tempo do seu mandato serem julgados pelos respectivos<br />
supplentes. Se os magistrados não fossem deputados por certo que não aconteceria isso.<br />
Sr. presidente, allegou-se contra o projecto dizendo-se que era mister que as camaras<br />
tivessem magistrados, porque os seus conhecimentos praticos concorrem em muitas occasiões<br />
para o acerto das leis. Suppondo mesmo que os magistrados sejão os unicos que possuão estes<br />
conhecimentos praticos, ainda no caso vertente não procederia o argumento. Sr. presidente,<br />
se o projecto tratasse de excluir a magistratura, esse argumento poderia ter algum valor; mas<br />
isto não acontece. E mesmo quando o projecto fosse ao ponto de excluir os juizes de direito,<br />
não ficarião os desembargadores e membros do supremo tribunal de justiça, os quaes têm mais<br />
pratica que os juizes de direito? Há ainda outra razão, e é que actualmente os conhecimentos<br />
praticos dos juizes de direito não são tão extensos como parece, quase que se póde dizer que<br />
pouco têm ácerca do direito civil, porque as causas civeis estão entregues aos juizes municipaes.<br />
Esse argumento pois não tem procedencia, principalmente a respeito do actual projecto.<br />
Outro argumento que se trouxe, senhores, contra a exclusão da magistratura, é o seguinte,<br />
que se lê no discurso do nobre senador, que gosto de citar: “Uma lei boa executada<br />
por quem não tem interesse em fazer sobresahir suas vantagens, póde produzir grandes males;<br />
entretanto uma lei má póde ser modificada na execução a ponto de tornar-se boa na pratica”.<br />
O que quer o nobre senador dizer é que se os magistrados fôrem excluidos da camara<br />
veriamos com que má vontade executarião as leis, mas eu, Sr. presidente, responderei ao<br />
illustre senador com quase as mesmas palavras: - uma lei boa executada por quem tem interesse<br />
em fazer sobresahir suas desvantagens póde produzir grandes males; e esta lei boa póde<br />
ser modificada na execução a ponto de tornar-se má na pratica. Porque tendo o magistrado<br />
combatido essa lei, e votado contra ella como legislador, não sei se será o mais proprio para<br />
executal-a, e fazer sobresahir suas vantagens, antes pelo contrario poderá querer mostrar que<br />
sua opinião era a verdadeira. Não é pois um argumento contra o projecto.<br />
Sr. presidente, todos reconhecem a falta que fazem os magistrados em seus lugares,<br />
todos conhecem que a administração da justiça peiora com a falta desses magistrados, e pois<br />
se assim é, como se póde sustentar que a nossa constituição, tão sabia como é, possa vedar<br />
que se empreguem os meios mais proprios para a boa administração da justiça? Portanto,
Palavras e História<br />
senhores, penso que a respeito da utilidade das medidas que se discutem não há duvida<br />
alguma; vamos porém ver a sua constitucionalidade, porque como eu já disse, embora uma<br />
medida seja util, se ella fôr inconstitucional não se póde votar por ella, porque a primeira<br />
cousa que devemos fazer é acatar a constituição (Apoiados.); porque só assim os direitos dos<br />
cidadãos hão de ser mantidos e conservados. (Apoiados.)<br />
Os circulos não ferem a constituição, a decretação dos circulos está incluida, como<br />
muito bem disserão alguns nobres deputados, no art. 97 da constituição que marca o modo<br />
pratico das eleições. O argumento, talvez único, de inconstitucionalidade de que se tem<br />
servido os impugnadores do projecto, versa sobre a intelligencia das palavras – eleitor de<br />
provincia – Mas, Sr. presidente, se as palavras – eleitor de provincia – devessem ser entendidas<br />
no sentido litteral em que as tomão os que impugnão o projecto, hão de confessar que<br />
os eleitores que têm havido no Brazil até hoje não são eleitores de provincia.<br />
Pois, senhores, serão no sentido litteral eleitores de provincia aquelles que recebem votos<br />
somente dos cidadãos activos de uma parochia? Certamente que não, e para se considerarem<br />
eleitores de provincia, entendida essa expressão literalmente, necessario seria que fossem eleitos<br />
pelos cidadãos activos de toda a provincia; portanto, as palavras – eleitores de provincia<br />
– que vêm na constituição não querem dizer senão que são estes eleitores os que devem votar<br />
nos deputados da provincia; portanto esses eleitores que não têm os votos da massa total dos<br />
cidadãos activos da provincia, e que nem podião têl-os, porque seria absurdo querer-se uma<br />
eleição cujas listas deverião conter 2 ou 3.000 nomes, não são eleitores da provincia no sentido<br />
litteral das palavras, mas eleitores de provincia porque são elles os que votão na eleição<br />
dos deputados que dá a provincia. E se pelo sentido que se quer dar á denominação de eleitores<br />
de provincia se conclue que os deputados devem ser eleitos pela massa desses eleitores,<br />
concluo que este sentido também deveria fazer com que a massa dos cidadãos activos de toda<br />
a provincia, embora reunidos nas respectivas parochias, elegesse a totalidade dos eleitores da<br />
mesma provincia. (Muito bem.) Se não deixão de ser eleitores de provincia, apezar de serem<br />
escolhidos pelos votantes da parochia unicamente, tambem não deixão de ser deputados da<br />
provincia e representantes da nação os eleitos nos circulos, e sómente por parte dos eleitores.<br />
(Ouvem-se apartes.)<br />
Se os senhores dizem que os deputados eleitos por circulos não são deputados da provincia,<br />
eu também direi, e com mais razão, que os eleitores feitos com os unicos votos da<br />
parochia não são eleitores de provincia.<br />
Uma voz: - Ainda não entendi.<br />
O Sr. E. França: - É porque não quer.<br />
O Sr. Ribeiro de Andrada: - O verdadeiro cego é o que não quer ver.<br />
O Sr. E. França: - A respeito do modo porque deve ser feita a eleição dos representantes<br />
da nação e da provincia a constituição limitou-se a estabelecer a eleição indirecta, e determinou<br />
que os cidadãos activos se reunissem nas suas parochias para a escolha dos eleitores, e que<br />
os representantes das provincias fossem eleitos para eleitores assim nomeados; mas a constituição<br />
deixou tudo o mais á lei regulamentar que tivesse de marcar o modo pratico das eleições.<br />
A constituição não ordenou que todos os representantes que tivesse que dar a provincia fossem<br />
eleitos pela massa de eleitores; assim como não ordenou, e nem poderia fazêl-o sem graves<br />
Revista Plenarium | 241
242 |<br />
Casimiro Neto<br />
inconvenientes e mesmo uma absoluta impossibilidade,<br />
que os eleitores de provincia fossem eleitos pela massa total<br />
de todos os cidadãos activos da provincia, embora reunidos<br />
nas parochias. E nem se diga que a denominação<br />
de eleitores de provincia inculca que todos os deputados<br />
devem ser eleitos por todos os eleitores, porque esta denominação<br />
não implica isso necessariamente; esta denominação<br />
indica simplesmente que são estes os eleitores que<br />
têm de eleger, deste ou daquelle modo mais conveniente,<br />
os representantes da provincia. E tanto é assim que pelo<br />
modo por que são estes eleitores eleitos elles são apenas<br />
filhos da parochia, visto como só votão para os escolher<br />
os cidadãos da parochia, e não a massa total dos cidadãos<br />
activos de todas as parochias, o que seria necessário para<br />
que pudesse ser-lhes applicada no sentido litteral das palavras<br />
a denominação de eleitores de provincia. Segue-se<br />
que se pela denominação de eleitores de provincia se deve<br />
concluir que a massa total desses eleitores deve votar para a eleição dos representantes, esta<br />
mesma denominação deveria implicar que esses eleitores devem ser eleitos pela massa total<br />
dos cidadãos activos de toda a provincia, e não descubro razão plausivel para que dessa denominação<br />
se queira tirar a conclusão que admittem, e não se devia tambem concluir que a<br />
eleição dos eleitores, como tem sido feita até aqui, não produz eleitores de provincia. Mas a<br />
constituição não podia querer impossivel, não poderia querer que a eleição dos eleitores fosse<br />
uma verdadeira burla, e assim são eleitores de provincia, posto que com os unicos votos dos<br />
cidadãos da parochia. Destas primissas tiro a illação que os representantes eleitos por circulos<br />
são tão representantes da nação e da provincia como os eleitores eleitos pelas parochias são<br />
eleitores de provincia. Portanto respondo, contra os pareceres das commissões do senado e<br />
desta camara, que admittida a eleição por circulos é a provincia que elege dos deputados.<br />
Parece-me pois que o argumento produzido para mostrar a inconstitucionalidade dos<br />
circulos não tem fundamento. O melhor meio pratico que houve de manter a liberdade<br />
do voto, e de garantir uma boa escolha de representantes da nação póde, ser adoptado sem<br />
offensa da constituição.<br />
Vejamos agora as incompatibilidades, que também forão taxadas de inconstitucionaes.<br />
Tem-se confundido, senhores, o simples cidadão com o empregado publico, e por se ter<br />
dado esta confusão é que existem leis que entregão os simples cidadãos a conselhos de guerra.<br />
Mas emfim não tratarei agora disto; a minha questão é que se tem confundido os empregados<br />
publicos com os simples cidadãos, e convém que esta confusão não continúe, porque acarreta<br />
comsigo grandes males para o paiz e para a garantia dos direitos dos cidadãos. Os empregos<br />
publicos são creados por utilidade publica, e se é uma das garantias de cidadãos que não haja<br />
lei nenhuma senão fundada na utilidade publica, está claro que na decretação dos empregos<br />
deve o legislador estabelecer todas as disposições que forem consentaneas a tornar o emprego<br />
da utilidade publica. Se a utilidade publica é a regra que não se deve deixar de attender
Palavras e História<br />
quando se trata dos empregos publicos, segue-se que tudo quanto se julgar conveniente para<br />
o bom desempenho do emprego não póde deixar de ser facultado pela constituição, pois que<br />
é um dos direitos garantidos pela constituição que nada se possa decretar senão por utilidade<br />
publica. E seria faltar á utilidade publica se se creassem empregos ou se elles continuassem a<br />
existir sem as condições indispensaveis para seu bom preenchimento. Ora, poderá o emprego<br />
satisfazer ás necessidades publicas se não fôr permittido restringir aos funccionarios certos<br />
direitos, que pertencem em toda as sua plenitude aos simples cidadãos? Não é possivel; e<br />
tanto, que direitos têm sido restringidos e continuarão a sel-o aos funccionarios publicos; e<br />
sem estas restricções a existencia do empregado publico se tornaria nociva aos cidadãos, não<br />
podendo elle ser bem desempenhado sem estas condições.<br />
Póde-se, e deve-se restringir certos direitos ao funccionario, emquanto que isso se não<br />
póde fazer aos simples cidadão. O simples cidadão póde sahir do imperio, póde permanecer<br />
onde bem lhe aprouver, e o empregado publico póde gozar desse direito? Elle deve permanecer<br />
no lugar destinado para exercer suas funcções, tem até uma pena, e muitas vezes a perda<br />
do emprego, quando usa de um direito que só pertence ao simples cidadão, mas que lhe está<br />
restringido por utilidade publica, e como condição do emprego.<br />
Os simples cidadãos podem-se entregar a qualquer industria, uma vez que não se opponha<br />
aos costumes, á segurança e saude publica, mas a certos empregados publicos é vedado<br />
esse direito, nem todas as industrias lhes são permittidas, porque se o fossem o emprego não<br />
poderia ser bem exercido. Póde o empregado publico permanecer onde bem lhe parecer?<br />
Póde elle usar de qualquer genero de industria, cujo uso é garantido aos outros cidadãos? Não<br />
póde estar no pleno gozo desses direitos do cidadão simples, se esquecer que é funccionario, e<br />
que portanto certos direitos lhe estão restringidos, por assim o exigir a utilidade publica.<br />
O magistrado, por exemplo, póde entregar-se no commercio? Aos empregados de certas repartições<br />
que têm de fiscalisar os direitos da nação são permittidos certos generos de industria?<br />
E era possivel, Sr. presidente, que os empregos podessem subsistir, ao empregado publico,<br />
não se podessem de modo algum restringir certos direitos? Não era isso contrario á<br />
utilidade do emprego? Isto é claro e evidente, e todas as leis assim o têm determinado, e daqui<br />
resulta que muitas vezes para o bom desempenho do emprego é mister a restricção e até<br />
a privação completa de um direito de que goza em toda a sua plenitude o simples cidadão,<br />
e que neste não é licito nem restringir, e daqui nasce que há uma grande differença entre os<br />
simples cidadão e o empregado publico. E daqui provem também que como funccionario<br />
publico póde responder em tribunaes especiaes compostos por outra fórma que não os que<br />
devem julgar os simples cidadãos.<br />
Pergunto agora, esses direitos que se restingem aos empregados publicos não estão incluidos<br />
no numero daquelles que a constituição garante aos cidadãos, e que não podem ser<br />
restringidos sem uma reforma da constituição? Sem duvida nenhuma: no emtanto elles têm<br />
sido bem restringidos sem essa reforma aos empregados publicos, e o devião ser. Esses direitos<br />
por ventura são de menor alcance do que o direito de votar ou de ser votado? De certo<br />
que não, e então se se podem restringir esses direitos ao empregado publico, a consequencia<br />
necessaria é que também póde ser-lhes restringido o direito de votar e de ser votado.<br />
O Sr. Figueira de Mello: - Isso é um theoria nova.<br />
Revista Plenarium | 243
244 |<br />
Casimiro Neto<br />
O Sr. E. França: - Ou o nobre deputado não me attendeu, ou não me quer attender.<br />
A constituição garante certos direitos aos cidadãos, e tudo quanto diz respeito as direitos politicos<br />
e individuaes não póde ser alterado senão em virtude de uma reforma da constituição.<br />
Está portanto neste caso não só o direito de votar e ser votado, como tambem o direito de permanecer<br />
em qualquer lugar que aprouver ao cidadão, e o direito de exercer qualquer industria<br />
não vedada. Ora, o direito de votar e ser votado não é mais importante do que os outros, e até<br />
pelo contrario se eu fosse attender á constituição poderia talvez dizer que o direito de votar e<br />
ser votado é considerado menos essencial ao cidadão do que os outros direitos, porque estes<br />
pertencem á massa total dos cidadãos de todo o imperio, emquanto que o direito de votar ou<br />
de ser votado pertence sómente a uma classe de cidadãos, os cidadãos activos.<br />
Esses direitos de que fallei não são certamente menos importante e menos essenciaes<br />
que o direito eleitoral; ora, já mostrei que erão elles muitas vezes restringidos, e não podião<br />
deixar de ser para o bom desempenho de certos empregos publicos; segue-se que se a restricção<br />
em certos direitos, não menos importantes que o direito de votar, e de ser votado, póde<br />
ser imposta como condição do emprego, que tambem esta restricção se póde estender até o<br />
direito eleitoral, que não tem prerrogativa nenhuma sobre os outros direitos.<br />
Portanto, Sr. presidente, se fôr util para a existencia dos empregos publicos e para a<br />
utilidade geral dos cidadãos que ao funccionario publico se restrinjão certos direitos, á legislatura<br />
ordinaria é licito fazel-o.<br />
Agora, Sr. presidente, tratarei de ventilar a questão se é util ou não restringir esses<br />
direitos aos empregados publicos; é um questão mui diversa; mas reconhecida a utilidade<br />
da restricção não ha impossibilidade em decretal-a, porque a constituição não o prohibe. Se<br />
portanto, Sr. presidente, se demonstrar que para a liberdade do voto, que para uma melhor<br />
representação nacional, que para a boa administração da justiça, é de absoluta necessidade<br />
que certas restricções de direitos que competem ao simples cidadão sejão impostas aos empregado<br />
publicos, a constituição não veda que ella seja estabelecida, e até seria um absurdo<br />
pensar-se que, reconhecendo-se que não podia haver boa administração da justiça sem a<br />
restricção de certos direitos aos magistrados, a nossa constituição, tão sabia e previdente, se<br />
oppuzesse a uma medida tão salutar e indispensavel. (Apoiados.)<br />
(Há uma aparte que não ouvimos.)<br />
Eu não estou tratando de examinar se as incompatibilidades devem ser sómente para os<br />
empregados incluidos no projecto; estou tratando sim da questão geral da constitucionalidade<br />
das incompatibilidades. Mas, senhores, a discussão nos mostrará se é necessario estender mais<br />
essa medida, ou se não é necessario estendel-a tanto; e se se estender que aos lentes das escolas<br />
de medicina, ou das academias juridicas, se deve restringir o direito de votar e ser votado,<br />
podemos sem escrupulo algum de inconstitucionalidade votar por essa medida. Penso, porém,<br />
que os funccionarios publicos de que se occupa o projecto não estão no caso de outros;<br />
elles exercem empregos pelos quaes influem poderosamente no animo dos eleitores. Ninguem<br />
contestou especialmente a limitação proposta para com os presidentes de provincia e outros<br />
empregados, todos os argumentos contra o projecto têm convergido sobre a magistratura.<br />
O illustre senador o Sr. Euzebio de Queiroz, tão convencido estava quando ministro que a<br />
ausencia dos juizes de direito das suas comarcas produzia males á administração da justiça, e
Palavras e História<br />
que a eleição desses magistrados é uma das causas principaes desta ausência, tão convencido<br />
estava e está ainda hoje desse mal, que quer e procurou tirar do juiz de direito até o desejo de<br />
ser deputado (risadas), e isto porque elle entende muito bem que a falta dos magistrados nos<br />
seus lugares peiora muito a administração da justiça. Mas os meios propostos pelo nobre senador<br />
não serião tambem offensivos da constituição? Não será uma offensa feita á nossa constituição<br />
pôr pêas e embaraços á eleição de um magistrado? Se o magistrado, como se diz tem<br />
pleno direito de ser votado, elle não póde soffrer quebra alguma nesse direito; dever-se-há por<br />
ventura estabelecer qualquer medida, mesmo mais indirecta, que venha contrariar um direito<br />
que compete ao magistrado, e deverá elle padecer porque usa do seu direito? De certo não; as<br />
medidas propostas pelo nobre senador estão no mesmo caso que as outras, differirão sómente<br />
pela intensidade e pela efficacidade, mas são da mesma natureza, (Apoiados.) Se as propostas<br />
no projecto são inconstitucionaes, também o são aquelles que, no entender do illustre senador,<br />
tendem a tirar até o desejo de ser deputado, porque se não conseguem este fim serão improficuas,<br />
e, como as outras, attentatorias dos direitos, que, se pensa, não podem ser restringidos.<br />
Pois então o magistrado estando doente, por exemplo, não perde o tempo do seu exercício, e<br />
por ser representante da nação, por vir aqui exercer um direito político, há de perdel-o ?<br />
(Há um aparte.)<br />
Este argumento da posição de um lente e da de um magistrado não sei que valor possa<br />
ter, não há paridade alguma; que influencia póde ter um lente em comparação com um magistrado?<br />
Mas emfim, se é necessario para a liberdade do voto, para a boa representação do<br />
paiz, que a profissão de lente seja incompativel com a eleição de deputado, votarei por isso.<br />
O Sr. Paula Candido: - Apoiado, também eu.<br />
O Sr. E. França: - Penso, Sr. presidente, que tenho apresentado razões que têm alguma<br />
procedencia. (Apoiados.) O projecto que se discute satisfará a todas as necessidades publicas?<br />
Uma voz: - Esta é que é a questão.<br />
O Sr. E. França: - A primeira questão é se satisfará completamente a todas as necessidades<br />
do paiz; a segunda é se, apezar de não satisfazer completamente, não é sempre melhor<br />
do que aquillo que existe.<br />
(...) Mas, Sr. presidente, se o projecto, segundo o meu modo de entender, ainda não<br />
satisfaz completamente a tudo quanto eu julgo que convinha satisfazer, deverei eu votar<br />
contra elle, ou a favor? Não trepido, hei de votar a favor do projecto, pois que melhora muito<br />
o nosso systema eleitoral. (Apoiados.) Sr. presidente, já o paiz está cansado e cansadissimo<br />
de camaras unanimes.<br />
O Sr. Figueira de Mello: - Nunca as houve.<br />
O Sr. E. França: - O paiz já não póde mais tolerar que as camaras não sejão sua expressão<br />
genuina.<br />
Diz-se que o projecto, embora véde que o juiz seja eleito na sua comarca, todavia não<br />
véda as trocas. Em primeiro lugar entendo que estas trocas são dificilimas. Em honra da magistratura<br />
direi que o juiz, apezar mesmo de receber votos na sua comarca pela sua única posição<br />
de juiz, todavia o faz com certa decencia, emquanto que com estas trocas o juiz de uma comarca<br />
não tem as mesmas prerrogativas para os eleitores de outra comarca, e então seria necessario<br />
que o juiz respectivo, deixando as regras da decencia, influisse para que os votos dos eleitores<br />
Revista Plenarium | 245
246 |<br />
Casimiro Neto<br />
da sua comarca recahissem nos juizes de outras comarcas. Por consequencia, Sr. presidente,<br />
este projecto sempre melhora alguma cousa o estado actual, pois que me parece impossível que<br />
um juiz que tenha um pouco de honestidade possa fazer trocas e baldrocas. (Risadas).<br />
Sr. presidente, o projecto que se discute, comquanto possa ainda receber melhoramentos,<br />
todavia é um bem, é um grande passo que se dá para que o paiz seja bem representado.<br />
(Apoiados.) E talvez mesmo não fosse muito conveniente fazer reformas inteiramente radicaes<br />
no actual systema eleitoral; mas, senhores, entre esse desejo de tudo reformar, de fazer<br />
uma reforma completamente radical, e o desejo de não fazer reforma alguma, me parece que<br />
há alguma cousa que se deve adoptar.<br />
Pela opinião do nobre deputado que acabou de fallar não se devião fazer a menor alteração:<br />
mas eu desejaria que o nobre deputado tivesse tido essa opinião quando se tratou<br />
de reformar certas leis, quando se fez a lei de 3 de dezembro, creando juizes temporarios ao<br />
passo que a constituição quer que elles sejão perpetuos. (Apoiados.)<br />
Senhores, sejamos justos, deixemos certas opiniões exageradas; não diz a constituição<br />
tão claramente que o juiz deve ser perpetuo, que os tribunaes sejão compostos de jurados e<br />
de juizes perpetuos? Pois então para que se entregárão as causas civis, importantes como são,<br />
a juizes temporarios? Entretanto, se o governo propuzesse uma reforma dessa lei, como eu<br />
acho que devia propôr, os senhores havião de gritar contra semelhante innovação.<br />
Senhores, a conclusão que se póde tirar da opinião do nobre deputado é que devemos<br />
ficar no status quo; nada de progresso, quando a nossa constituição é tão progressista, que<br />
até entendeu que as necessidades publicas podião fazer conhecer que alguns de seus artigos<br />
merecião ser reformados, e permittio a sua propria reforma. É pois anti-constitucional<br />
aquelle que não quer o progresso.<br />
(Cruzão-se differentes apartes).<br />
Sr. presidente, parece-me que mostrei que a eleição por circulos e as incompatibilidades<br />
são duas medidas muitissimo convenientes, não só para garantir a liberdade do voto,<br />
como também para haver uma melhor representação parlamentar, e conjunctamente boa<br />
administração da justiça.<br />
Igualmente mostrei que não havia offensa alguma á constituição na decretação destas<br />
medidas; e como eu entendo que a actual lei de eleições dá lugar a que o povo não possa votar<br />
livremente nos seus representantes, julgo que é mister reformal-a . E se este projecto, mesmo<br />
com alguns defeitos que tem, melhora muito a maneira de se eleger a representação nacional,<br />
como fiz ver, hei de votar por elle, e contra toda e qualquer emenda que tender a embaraçar<br />
a sua adopção. (Apoiados.) Senhores, vamos pouco a pouco progredindo; entendo que o<br />
governo, defendendo este projecto, está no progresso, e portanto hei de apoial-o; e todas as<br />
vezes que se puzer no regresso hei de combatel-o . (Risadas; Apoiados.) A actual lei de eleições<br />
não dá bastante garantia para uma escolha livre; o povo não póde mais soffrer imposições<br />
de listas de designados, é mister acabar com essas eleições, que não representão a vontade do<br />
paiz. É mister que a constituição seja uma realidade, e não o póde ser sem que o povo vote<br />
livremente em seus representantes. Voto a favor do projecto. (Muito bem, apoiados.)<br />
A discussão fica adiada pela hora.<br />
O Sr. Presidente marca a ordem do dia e levanta a sessão.
Referências<br />
Notas<br />
Palavras e História<br />
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Anais da Câmara dos Deputados (1826-1974). Brasília: Câmara dos<br />
Deputados, Coordenação de Publicações, 1823-.<br />
BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Cronologia do Funcionamento da Câmara dos Deputados 1826/1992.<br />
Trabalho elaborado na Seção de Documentos Audiovisuais, da Coordenação de Arquivo, com pesquisa de Teresa de<br />
Jesus Teixeira – Brasília : Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 1992. 318 p.<br />
BRASIL. Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Organizações e Programas Ministeriais: Regime parlamentar no<br />
império. Rio de Janeiro, 1962. 2ª ed.<br />
BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Dicionário Bibliográfico Brasileiro. Segundo volume. Rio de Janeiro,<br />
Imprensa Nacional, 1893.<br />
FRANCO, Afonso Arinos de Melo. A Câmara dos Deputados: síntese histórica. Brasília: Câmara dos Deputados,<br />
Coordenação de Publicações, 1976. 116 p., il.<br />
NETO, Casimiro Pedro da. A construção da democracia: síntese histórica dos grandes momentos da Câmara dos<br />
Deputados, das Assembléias Nacionais Constituintes e do Congresso Nacional. Brasília. Câmara dos Deputados,<br />
Coordenação de Publicações, 2003. 751 p.<br />
NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília, Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia,<br />
Centro de Estudos Estratégicos, 2001. v. 1.<br />
SOBRINHO, Barbosa Lima e Baleeiro, Aliomar. Constituições Brasileiras: 1946. Brasília, Senado Federal e Ministério da<br />
Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos, 2001. v. 5.<br />
1 Nota dos editores: Na transcrição dos documentos e pronunciamentos ficou respeitada a grafia original, constante<br />
dos Anais da Câmara dos Deputados.<br />
2 O deputado Eduardo Ferreira França representou a Bahia nas legislaturas: de 1848 a 1851, dissolvida em 1849;<br />
de 1850 a 1852 como deputado suplente tomou assento no lugar do deputado Francisco Gonçalves Martins, depois<br />
Visconde de São Lourenço, nomeado senador em maio de 1851; e de 1853 a 1856, outra vez como deputado suplente<br />
tomou assento no lugar do deputado Zacarias de Góis e Vasconcelos a partir da sessão legislativa de 1854. Filho do<br />
célebre médico e filósofo Antônio Ferreira França e de D. Ana da Costa Barradas, nasceu em Salvador a 8 de junho de<br />
1809 e faleceu a 11 de março de 1857 quando em viagem pela Europa. Era doutor em medicina pela Faculdade de Paris,<br />
onde foi apontado como o primeiro estudante do curso respectivo. Grande filósofo, pertencia a diversas associações<br />
literárias e deixou várias obras de sua autoria.<br />
3 Nota dos editores: Na transcrição desse pronunciamento, realizado durante a Sessão Ordinária do dia 25 de agosto de<br />
1855, ficou respeitada a grafia original, constante dos Anais da Câmara dos Deputados.<br />
Revista Plenarium | 247
Cúpulas do Congresso Nacional, 1975. Foto de Luis Humberto.
Leituras<br />
• Antônio Octávio Cintra<br />
A origem é o sistema eleitoral<br />
• Paulo Roberto de Almeida<br />
O seu, o meu, o nosso dinheiro…<br />
Fronteiras da sociedade global
250 |<br />
Uns quarenta anos atrás, os estudiosos estrangeiros,<br />
sobretudo norte-americanos,<br />
dedicados a pesquisar a história, a economia,<br />
a sociedade e a política brasileiras, passaram a<br />
conhecer-se como “brasilianistas”. Diferentemente<br />
de uma geração anterior, constituída<br />
de ensaistas, o novo grupo<br />
passou pela formação acadêmica<br />
sistemática nos melhores<br />
centros universitários. Textos<br />
de grande interesse, quase sempre<br />
inovadores, produto, não<br />
raro, de cooperação com colegas<br />
e instituições brasileiros,<br />
têm sido desde então publicados<br />
e têm, sem dúvida, ajudado<br />
a compreender o país.<br />
Barry Ames pertence a uma<br />
segunda geração de brasilianistas<br />
– na primeira, teríamos, entre<br />
numerosos outros, os historiadores<br />
Warren Dean e Thomas<br />
Skidmore, os cientistas políticos<br />
Alfred Stepan e Philippe<br />
Schmitter e o economista<br />
Nathaniel Leff – e tem-se destacado por suas interpretações<br />
de nossa política, condensadas neste livro.<br />
O foco de Ames são as relações entre os poderes<br />
Executivo e Legislativo na Nova República,<br />
problemática merecedora, nos últimos quinze<br />
anos, de uma copiosa safra de trabalhos, inclusive<br />
teses de mestrado e doutorado.<br />
Porém não há convergência nas interpretações<br />
desses relacionamentos, senão visões opostas.<br />
Um grupo os vê como dificultando sobremodo a<br />
governança. Na lógica do sistema de separação de<br />
poderes, próprio do presidencialismo, esse grupo<br />
enfoca os grandes obstáculos à formação de maio-<br />
A origem é o sistema eleitoral<br />
Barry ames<br />
Os Entraves da Democracia no<br />
Brasil<br />
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003<br />
rias sólidas no Congresso, donde a frustração do<br />
mandato transformador que, supõe-se, eleições<br />
diretas e plebiscitárias do presidente da República<br />
conferem. Para evitar a paralisia de decisões, é preciso<br />
recurso quotidiano a instrumentos emergenciais,<br />
como as medidas provisórias,<br />
que deslocam o Legislativo<br />
para um papel subalterno na<br />
tomada de decisões e deslegitimam<br />
a instituição.<br />
Já outros autores apontam<br />
para características do sistema,<br />
que, não obstante os óbices<br />
denunciados pelos primeiros<br />
autores, permitem a tomada de<br />
decisões com ampla participação<br />
congressual. Mencionam os<br />
chamados “poderes de agenda”<br />
presidencial, em matéria orçamentária,<br />
por exemplo, e a centralização<br />
dos trabalhos no âm-<br />
bito do próprio Legislativo, que<br />
assegura à maioria governamental<br />
o controle sobre a pauta de<br />
decisões. Alguns, mais otimistas<br />
ainda, vêem as relações entre os poderes como bastante<br />
cooperativas, até as medidas provisórias sendo<br />
interpretadas como uma relação de delegação<br />
entre poderes, mais do que de usurpação.<br />
A interpretação de Ames inscreve-se no primeiro<br />
grupo, o dos que vêem a chamada governabilidade<br />
como sabotada pelo desenho institucional<br />
do país. Diferentemente da corrente “otimista”,<br />
atribui ele, como o fazem outros autores, bastante<br />
força ao sistema eleitoral brasileiro. Este não induz<br />
a formação de partidos ideologicamente coesos e<br />
de comportamento disciplinado e não impede a<br />
fragmentação partidária, a qual torna imperativas
as coalizões, mas difíceis de costurar. Essa interpretação,<br />
centrada nos efeitos do sistema eleitoral,<br />
é conhecida na literatura como sendo a da “conexão<br />
eleitoral”.<br />
Ames seria, entre os autores que se têm debruçado<br />
sobre as relações entre os poderes, um dos<br />
que com mais vigor defendem o diagnóstico da<br />
conexão eleitoral, à brasileira. Para ele, a votação<br />
nominal no plenário, da qual os novos estudos<br />
têm inferido haver disciplina partidária, é a culminância<br />
de negociação, tanto entre os poderes,<br />
quanto entre líderes e liderados. Esse processo leva<br />
a concessões, modificações das<br />
propostas, que a votação nominal<br />
final não registra, concessões<br />
que podem mostrar muito maior<br />
força das bases em extrair benefícios<br />
das lideranças e do Executivo<br />
em troca de apoio do que o comportamento<br />
de plenário, com<br />
obediência à indicação de voto<br />
pelo líder, deixa entrever. Ames<br />
também chama a atenção para<br />
o fenômeno das “não-decisões”,<br />
ou seja, o Executivo e seus líderes<br />
parlamentares deixam de apresentar<br />
uma proposta por considerála<br />
sem perspectiva de aprovação,<br />
após soltarem balões de ensaio sobre seu conteúdo<br />
ou em rodadas prévias de negociação. Assim, a restrição<br />
da análise às votações nominais, para inferir<br />
relações de poder, pode estar deixando de fora fenômenos<br />
relevantes em que essas relações também<br />
estejam presentes.<br />
Note-se, sobre estes aspectos, que não se pode<br />
liminarmente condenar que isso aconteça, pois a<br />
negociação congressual é parte do processo democrático.<br />
O problema é distingüir, nesse processo,<br />
o que sejam concessões que resultem em melhor<br />
atendimento ao interesse público e o que seja defor-<br />
Ames seria, entre os autores<br />
que se têm debruçado sobre<br />
as relações entre os poderes,<br />
um dos que com mais vigor<br />
defendem o diagnóstico<br />
da conexão eleitoral, à<br />
brasileira. Para ele, a<br />
votação nominal no plenário,<br />
da qual os novos estudos<br />
têm inferido haver disciplina<br />
partidária, é a culminância<br />
de negociação, tanto<br />
entre os poderes, quanto<br />
entre líderes e liderados<br />
Leituras<br />
mação corporativa ou clientelista de uma proposta.<br />
Ames não procede, contudo, a essa discussão.<br />
Que as bancadas votem segundo as indicações<br />
dos líderes não prova, de acordo com ele, serem os<br />
partidos fortes, disciplinados e hierárquicos. Ele<br />
os vê como, em boa medida, produtos do sistema<br />
eleitoral, que dá muita força ao candidato, em vez<br />
de ao seu partido. Portanto, quando um deputado<br />
vota de acordo com o líder, esse voto pode estar<br />
refletindo coisas diversas, não necessariamente a<br />
força e a disciplina partidária.<br />
A aquiescência dos deputados ao encami-<br />
nhamento partidário pode vir de<br />
uma dura negociação entre eles,<br />
a liderança e o governo, e não da<br />
força partidária a que parecem<br />
submeter-se. Certos parlamentares<br />
têm maior independência<br />
eleitoral com relação ao partido<br />
do que outros, são bem votados<br />
em redutos tranqüilos e podem<br />
impor sua vontade. Outros dependem<br />
das graças partidárias<br />
para poder mostrar serviço a seus<br />
eleitores e não ficar inferiorizados<br />
em seus redutos diante dos rivais,<br />
às vezes do mesmo partido.<br />
Na equação explicativa de Ames,<br />
inclui-se, por exemplo, o êxito dos parlamentares<br />
em ter suas emendas orçamentárias aprovadas e<br />
traduzidas em desembolsos do Executivo. O voto<br />
coerente pode provir, também, não da força do<br />
partido, mas da própria ideologia do deputado.<br />
O autor não rejeita, liminarmente, propostas<br />
de mudança no sistema, objetos do que, entre<br />
nós, se tem chamado “reforma política”. Se vê um<br />
foco maior de problemas no sistema eleitoral, por<br />
que não mudá-lo? Contudo, o exame concreto de<br />
propostas, entre elas as que, com freqüência, têm<br />
sido aventadas nos últimos anos, de um sistema<br />
Revista Plenarium | 251
252 |<br />
eleitoral inspirado no germânico, de tipo misto,<br />
não lhe dá muito ânimo. As práticas de orçamento<br />
participativo que estudou lhe pareceram “um passo<br />
positivo no desenvolvimento de relações mais<br />
fortes de responsabilidade pública entre eleitores<br />
e políticos”. À semelhança, porém, do que ocorre<br />
com muitos colegas seus, essa parte de seu livro<br />
não é muito convincente, parecendo mais uma<br />
concessão ao reclamo de que é preciso haver propostas,<br />
feito o diagnóstico, do que expressão de<br />
firme adesão intelectual ao que sugere. Os cientistas<br />
políticos, diversamente de seus colegas econo-<br />
Petrônio Portela, 1979. Foto de Luis Humberto.<br />
mistas, parecem muito céticos quanto à capacidade<br />
de alteração de instituições, pelo menos quanto<br />
à capacidade de sua ciência de dar mais solidez às<br />
propostas. Daí, o grande conformismo hoje prevalecente<br />
entre muitos na profissão.<br />
Antônio Octávio Cintra é cientista político,<br />
Doutor pelo Instituto Tecnológico de<br />
Massachusetts (MIT), consultor legislativo da<br />
Câmara dos Deputados, organizador e coautor<br />
de O Sistema Político Brasileiro: uma<br />
Introdução, Editora Unesp/Fundação Adenauer.
O<br />
brasileiro médio – cidadão eleitor, contribuinte,<br />
trabalhador honesto, pai de família<br />
ou simples jovem iniciante na vida profissional<br />
– não tem a menor idéia da parte exata de<br />
sua renda que é extraída, direta e indiretamente,<br />
pelo Leviatã estatal e de como<br />
ela vem sendo gasta por esse<br />
mesmo personagem, incontornável<br />
em sua vida cotidiana.<br />
Se ele pudesse aquilatar o grau<br />
de extorsão, mediante alguma<br />
mensuração menos amadorística,<br />
provavelmente já teria se revoltado<br />
e conduzido uma dessas<br />
ações de desobediência civil,<br />
à la Thoureau (sem no entanto<br />
conseguir impedir ou minimizar<br />
a ordenha fiscal).<br />
Não, este livro não vai<br />
ajudar o brasileiro médio a<br />
identificar todas as formas de<br />
extorsão tributária, mas ele<br />
permite detectar, pelo menos,<br />
como e quanto dessa extração<br />
de recursos vem sendo gasta,<br />
muitas vezes de forma perdulária<br />
e irresponsável. Trata-se de<br />
um “manual da boa gastança”,<br />
supondo-se que os responsáveis<br />
O seu, o meu, o nosso dinheiro…<br />
públicos se convençam dos desperdícios hoje praticados<br />
e se decidam, efetivamente, a corrigir os<br />
abusos mais gritantes que ocorrem, todos os dias,<br />
com “o seu, o meu, o nosso dinheiro”, na expressão<br />
do ex-presidente do BC, Armínio Fraga.<br />
O lado prático deste livro começa, justamente,<br />
pela iniciativa do organizador de compilar, já<br />
na abertura, a lista das 91 medidas contidas nos<br />
capítulos 4 a 14, destinadas a reduzir ou pelo<br />
marcos mendes (org.), prefácio de<br />
ruBens ricupero:<br />
Gasto Público Eficiente: 91<br />
propostas para o desenvolvimento<br />
do Brasil.<br />
Rio de Janeiro: Topbooks,<br />
Instituto Fernand Braudel, 2006,<br />
475 p. ISBN: 85-7475-128-6.<br />
Leituras<br />
menos controlar os gastos públicos indevidos ou<br />
excessivos. Na introdução, Marcos Mendes traz<br />
evidências cabais de como a redução e a maior<br />
eficiência do gasto público são condições mais<br />
do que necessárias para que o Brasil possa crescer.<br />
Os custos da máquina pública<br />
ultrapassam em muito seus benefícios<br />
presumidos, se é que<br />
existem. Na verdade, despesas<br />
mal dirigidas passaram a “travar”<br />
– este é o verbo do momento<br />
– o desenvolvimento do<br />
país. Mecanismos de poupança<br />
forçada (PIS, PASEP, FGTS)<br />
seriam mais bem empregados<br />
se administrados pelos seus<br />
próprios beneficiários. Empresas<br />
pequenas e médias são desestimuladas<br />
a crescer para não<br />
incorrer em tributos mais eleva-<br />
dos. Como o governo se apropria<br />
de 40% da renda, aparece<br />
na selva um novo personagem:<br />
o “caçador de renda”, perito em<br />
extrair dinheiro público para<br />
fins particulares. Daí o enorme<br />
investimento empresarial em<br />
campanhas eleitorais: o retorno<br />
é sempre garantido.<br />
O livro é importante não apenas por medir,<br />
de modo preciso, onde estão e como são feitos os<br />
gastos públicos, mas também por dizer, de modo<br />
claro e objetivo, o que pode e deve ser feito para<br />
corrigir as distorções mais gritantes. Os autores<br />
escapam do eterno debate sobre o peso dos juros,<br />
concentrando-se nas despesas não-financeiras:<br />
estes gastos, excluindo a previdência, cresceram<br />
60% em termos reais entre 1995 e 2004, ou seja,<br />
Revista Plenarium | 253
254 |<br />
um crescimento anual de 4,8% (o dobro, praticamente,<br />
do crescimento do PIB).<br />
No primeiro capítulo, Paulo Arvate e Ciro<br />
Biderman, organizadores de outro livro sobre o<br />
assunto, examinam as vantagens e desvantagens<br />
da intervenção do governo na economia. Está claro<br />
que o governo pode criar externalidades positivas<br />
– a falta de educação, por exemplo, explica<br />
40% da desigualdade no Brasil –, mas ele também<br />
apresenta “falhas de governo”, o que no caso do<br />
Brasil é evidente. No capítulo 2, Cláudio Shikida<br />
e Ari Araújo tentam explicar “Por que o Estado<br />
cresce e qual seria o tamanho ótimo do Estado<br />
brasileiro?” e chegam à conclusão de que o ponto<br />
‘ideal’ da carga fiscal, nas condições<br />
brasileiras, não deveria ser<br />
superior a 32% do PIB. De 1964<br />
a 2004, a carga fiscal no Brasil<br />
passou de 17% a 37% do PIB, a<br />
passo que na maior economia do<br />
planeta, os EUA, ela manteve-se,<br />
com poucas variações, em aproximadamente<br />
29% do PIB (com<br />
encargos bem reduzidos na folha<br />
salarial). Como eles dizem, numa<br />
economia rent-seeking como a brasileira, “vale mais<br />
a pena ir a um jantar com autoridades (…) do que<br />
ficar em casa estudando para se tornar (…) mais<br />
eficiente” (p. 80).<br />
Fabiana Rocha argumenta, no capítulo 3,<br />
que o ajuste fiscal não produz, necessariamente,<br />
uma redução do crescimento econômico, como<br />
parecem temer os desenvolvimentistas. Ao contrário,<br />
ele pode impulsionar a economia, mas não<br />
da forma como tem se processado no Brasil, com<br />
aumento de impostos e corte de investimentos,<br />
em lugar de redução das despesas correntes. Estudos<br />
demonstram que “o impacto do investimento<br />
privado sobre o PIB é cerca de 2,6 vezes maior do<br />
que aquele apresentado pelos investimentos públi-<br />
De 1964 a 2004, a carga<br />
fiscal no Brasil passou<br />
de 17% a 37% do PIB,<br />
a passo que na maior<br />
economia do planeta,<br />
os EUA, ela manteve-se,<br />
com poucas variações,<br />
em aproximadamente<br />
29% do PIB<br />
cos” (p. 104). Raul Velloso, a partir do capítulo 4,<br />
dá a partida às recomendações de ajuste fiscal via<br />
redução de despesas obrigatórias. Estas, em 2004,<br />
correspondiam a 91% das despesas não-financeiras<br />
da União. Ele recomenda, entre outras medidas,<br />
revisão da idade mínima para benefícios, desvinculação<br />
da Previdência do salário-mínimo, fim<br />
dos aumentos automáticos dos gastos com saúde,<br />
focalização dos gastos sociais nos mais pobres e supervisão<br />
das verbas em saúde e educação. “O fato<br />
de se pagar um salário-mínimo aos idosos (…) desestimula<br />
a participação no sistema de previdência<br />
social dos mais jovens, de baixa renda” (p. 122).<br />
Os gastos com pessoal são enfocados por<br />
Gilberto Guerzoni, no capítulo<br />
5: eles eram de 4% do PIB em<br />
2004, mas crescem inercialmente<br />
(em alguns casos, despudoradamente).<br />
Ele aponta para um<br />
possível descontrole no governo<br />
Lula, “seja devido a uma abordagem<br />
‘sindical’ dada aos reajustes<br />
salariais, seja pela expansão,<br />
aparentemente sem critérios, da<br />
contratação de novos servidores”<br />
(p. 137-138). A despesa dos poderes autônomos<br />
– Legislativo, Judiciário e o Ministério Público,<br />
este desejando tornar-se um verdadeiro poder –<br />
vem em seguida, em texto do próprio organizador.<br />
Marcos Mendes constata que o forte crescimento<br />
dos gastos desses poderes tem origem constitucional,<br />
aproveitando-se, portanto, a burocracia desses<br />
serviços para aumentar a sua renda sem qualquer<br />
contrapartida à sociedade sob a forma de mais ou<br />
melhores serviços: entre 1985 e 2004, os gastos<br />
com o poder Judiciário federal cresceram dez vezes,<br />
sem que a justiça tenha ficado dez vezes mais<br />
rápida ou passasse a conceder acesso ampliado da<br />
população aos serviços do Judiciário na mesma<br />
proporção. Ele sugere um limite constitucional
aos gastos e o aprofundamento das reformas trabalhista<br />
e sindical, algo duvidoso na presente conjuntura.<br />
Aliás, a Justiça do Trabalho é uma particularidade<br />
“jabuticabal” que não existe na maior<br />
parte dos países, não tendo, tampouco, porque<br />
sobreviver no Brasil: ela é, em si, fonte de conflitos,<br />
que poderiam estar sendo resolvidos pela via<br />
arbitral.<br />
Os capítulos 7 a 9 tratam do relacionamento<br />
entre as instâncias federadas, ou seja, as transferências<br />
intergovernamentais, a redistribuição de<br />
rendas petrolíferas e os consórcios intermunicipais,<br />
cabendo aqui, claramente, uma redução dessas<br />
transferências federais a estados e municípios,<br />
o reagrupamento de municípios sem viabilidade<br />
econômico-financeira, a redefinição completa da<br />
repartição dos royalties do petróleo (que acabam<br />
beneficiando exageradamente um número restrito<br />
de municípios) e a plena responsabilização<br />
dos municípios na gestão dos recursos alocados a<br />
partir de cima. No capítulo 10, três dos maiores<br />
especialistas em finanças públicas do Brasil – Amir<br />
Khair, José Roberto Afonso e Weder de Oliveira<br />
– se perguntam se os avanços trazidos pela Lei de<br />
Responsabilidade Fiscal foram suficientes e se não<br />
seriam necessários outros aperfeiçoamentos. Eles<br />
sugerem criar condições institucionais e gerenciais<br />
para a implantação e plena aplicação da LRF, com<br />
a fixação de limites para o endividamento público<br />
(a começar pela União, que hoje não tem<br />
nenhum), a instalação de um Conselho de Gestão<br />
Fiscal (para evitar “contabilidade criativa”) e<br />
maior transparência e uniformização de conceitos<br />
e procedimentos. Este capítulo apresenta, com o<br />
subseqüente, muitas sugestões de mudanças, entre<br />
elas a criação de um banco de dados unificado<br />
e a imposição de tetos para gastos com pessoal e<br />
transferências.<br />
O orçamento federal já foi, como se sabe, peça<br />
de ficção. Ele hoje está mais formalizado, mas ain-<br />
Leituras<br />
da assim padece de diversos problemas, a começar<br />
pela sua tramitação congressual e pelo fato de<br />
que 92% dos recursos estão comprometidos com<br />
despesas rígidas ou de realização obrigatória. Os<br />
autores do capítulo 11, Edilberto Lima e Rogério<br />
Miranda, sugerem mecanismos para evitar a superestimativa<br />
ou a subestimativa das receitas, maior<br />
controle do Congresso sobre projetos de lei que<br />
geram novas despesas, mudanças na tramitação da<br />
peça orçamentária e a atualização da legislação de<br />
1964, que rege a contabilidade e os orçamentos<br />
públicos. Alexandre Rocha trata, no capítulo 12,<br />
do Tribunal de Contas da União, cujo foco principal<br />
ainda se situa no combate à corrupção (sem<br />
necessariamente aperfeiçoar as atividades preventivas<br />
de controle gerencial). Ele propõe separar as<br />
atividades de auditoria, reduzindo sua “judicialização”<br />
e burocratização, do julgamento das contas<br />
de administradores públicos. No capítulo seguinte,<br />
Luiz Fernando Bandeira vê na extensão do<br />
pregão eletrônico para as compras governamentais<br />
um caminho para diminuir a corrupção e ampliar<br />
a concorrência.<br />
No capítulo 14, finalmente, David Samuels<br />
analisa o alto custo das campanhas políticas no<br />
Brasil, decorrentes das regras eleitorais vigentes,<br />
com nítida predominância das contribuições de<br />
grandes empresas (e clara intenção econômico-financeira).<br />
Ele sugere a instituição de um sistema<br />
de eleições proporcionais de lista fechada (com<br />
uma parte de âmbito nacional), pouca ênfase no<br />
financiamento público das campanhas (incapaz<br />
de evitar o caixa 2), a redução do teto das contribuições<br />
privadas (para evitar doações milionárias),<br />
cooperação entre o TSE e a Receita Federal,<br />
reforço da penalização dos crimes de lavagem de<br />
dinheiro, o julgamento das contas dos candidatos<br />
previamente à sua diplomação, a extinção de prazos<br />
de prescrição e a aceleração dos processos judiciais<br />
envolvendo candidatos e políticos eleitos.<br />
Revista Plenarium | 255
256 |<br />
Não há conclusões: elas já constavam da introdução,<br />
ou seja, a lista das 91 medidas de contenção<br />
ou de redução dos gastos públicos. Tratase<br />
de enorme agenda de mudanças, para nenhum<br />
governo reformista botar defeito, sob a forma de<br />
providências essencialmente práticas e factíveis.<br />
Sem nenhuma retórica ou proposta salvacionista,<br />
os autores conseguem oferecer um programa completo<br />
de reforma das despesas públicas no Brasil:<br />
na forma, no conteúdo, nos procedimentos de efe-<br />
Rischbieter deixa o Ministério da Fazenda, 1980. Foto de Luis Humberto.<br />
tivação das despesas e nos controles devidos. Se há<br />
algum sentido para a expressão “missão patriótica”,<br />
esta obra coletiva merece o título. Do contrário,<br />
esta e as futuras gerações continuarão amargando a<br />
falta de crescimento econômico. Mãos à obra!<br />
Paulo Roberto de Almeida<br />
Doutor em Ciências Sociais, mestre em planejamento<br />
econômico e diplomata de carreira.<br />
www.pralmeida.org
Este livro é uma tese, aprovada, aliás, com distinção<br />
numa banca da USP. O livro também<br />
contém várias teses, sendo a mais importante<br />
a que figura no seu subtítulo, ou seja, que estamos<br />
saindo do paradigma do Estado soberano para o<br />
da sociedade global. Pode-se<br />
admirar o livro, sua estrutura<br />
ideal enquanto tese acadêmica,<br />
sua perfeita cobertura dos mais<br />
importantes temas e problemas<br />
do direito internacional contemporâneo,<br />
mas cabe uma ou<br />
duas ressalvas quanto ao novo<br />
paradigma proposto pelo autor.<br />
A primeira ressalva seria de<br />
ordem propriamente conceitual.<br />
No sentido mais corriqueiro da<br />
palavra, o termo paradigma refere-se<br />
a um padrão ou modelo de<br />
algo, tangível ou intangível, mas<br />
sempre definido de modo explícito.<br />
No que se refere ao modelo<br />
proposto neste livro, não se sabe<br />
bem a qual tipo específico de<br />
nova configuração civilizacional<br />
corresponderia a “sociedade global”,<br />
uma vez que seus atributos<br />
Fronteiras da sociedade global<br />
restam indefinidos. Pode-se dizer, paradoxalmente,<br />
que ela não tem fronteiras, ou então que suas fronteiras<br />
ainda são, justamente, as dos Estados nacionais.<br />
No sentido mais filosófico, ou “kuhniano”, da<br />
expressão, trata-se de um conjunto de crenças ou<br />
“teorias”, aceitas como verdadeiras, até serem desbancadas<br />
por algum outro conjunto superior de explicações<br />
racionais que, a partir de certo momento<br />
– usualmente definido como “revolução científica”<br />
–, passam a ser consideradas como a nova verdade<br />
estabelecida. Em nenhum desses dois sentidos,<br />
eduardo felipe p. matias<br />
A Humanidade e suas Fronteiras:<br />
do Estado soberano à sociedade<br />
global<br />
(São Paulo: Paz e Terra, 2005, 556<br />
p; ISBN: 85-219-0763-X)<br />
Leituras<br />
porém, o novo paradigma da sociedade global proposto<br />
por Matias parece já ter sido estabelecido e<br />
reconhecido no âmbito acadêmico.<br />
Mas há igualmente um enorme problema de<br />
ordem prática: se eu quiser falar com a tal de sociedade<br />
global, telefono para quem?<br />
Para falar com chefes de Estado<br />
ou com o secretário-geral da<br />
ONU, sei que posso encontrar<br />
os números em diretórios, mas<br />
o telefone do novo paradigma<br />
ainda é desconhecido, na verdade<br />
inexistente. Ou seja, ela não<br />
possui institucionalidade. Ao<br />
que tudo indica, continuará a ser<br />
assim no futuro previsível, por<br />
mais que a globalização empurre<br />
as “coisas” na direção desse novo<br />
paradigma. Os Estados nacionais<br />
continuarão a dar as cartas no<br />
jogo global, ainda que as regras<br />
de conduta e o substrato mesmo<br />
dos intercâmbios internacionais<br />
deixem a esfera do bilateralismo<br />
e se projetem, cada vez mais, nos<br />
planos multilateral e global.<br />
Independentemente, porém,<br />
destas ressalvas feitas à “tese” principal de<br />
Matias, pode-se considerar que a “sociedade global”<br />
constitui, de fato, um bom arquétipo, ou<br />
modelo, de como foram e são importantes as<br />
transformações nos sistemas econômico e político<br />
internacional, desde o final da contestação “alternativa”<br />
– socialista ou outra – ao moderno regime<br />
democrático de mercado, para a conformação da<br />
nova ordem internacional, cujos contornos ainda<br />
não estão precisamente definidos. Essa tese acadêmica<br />
apresenta um pouco da nova arquitetura<br />
Revista Plenarium | 257
258 |<br />
naquilo que constitui a especialidade do autor: o<br />
Direito Internacional e os mecanismos de regulação<br />
e de cooperação existentes no mundo contemporâneo.<br />
Desse ponto de vista, ele representa uma<br />
das melhores tentativas de síntese, já conhecidas<br />
na comunidade acadêmica brasileira, para apreender<br />
o que há de especificamente novo no cenário<br />
internacional com incidência sobre o campo do<br />
direito e das organizações internacionais.<br />
A estrutura quadripartite da tese, presumivelmente<br />
mantida no livro, é relativamente simples:<br />
uma parte introdutória trata do Estado soberano,<br />
isto é, das fronteiras tradicionais que dividem,<br />
desde Westfália, os Estados-nacionais reconheci-<br />
dos como tal, e reciprocamente,<br />
desde o século XVII. A primeira<br />
parte se ocupa da globalização em<br />
geral, na qual o subtítulo explicita<br />
seu objeto: “o papel da globalização<br />
e da revolução tecnológica<br />
na alteração do modelo do Estado<br />
soberano e na ascensão do<br />
modelo da sociedade global”. A<br />
segunda parte, “globalização jurídica”,<br />
se ocupa especificamente<br />
– e talvez repetitivamente – do papel da globalização<br />
jurídica e das organizações internacionais<br />
“na alteração do modelo do Estado soberano e na<br />
ascensão do modelo da sociedade global”. A parte<br />
final chega à “sociedade global”, definida como as<br />
novas fronteiras da humanidade. Uma conclusão<br />
de apenas três páginas e a bibliografia se estendendo<br />
por mais de trinta páginas completam este imponente<br />
volume de doze capítulos bem escritos e<br />
abundantes remissões bibliográficas.<br />
Os estudiosos da história do Direito encontrarão,<br />
no primeiro capítulo, um resumo de como os<br />
teóricos da política – Maquiavel, por exemplo – e<br />
da ciência jurídica – Grotius, Bodin, entre outros<br />
– trataram da emergência e da afirmação do Estado<br />
Essa tese acadêmica<br />
apresenta um pouco<br />
da nova arquitetura<br />
naquilo que constitui a<br />
especialidade do autor: o<br />
Direito Internacional e os<br />
mecanismos de regulação<br />
e de cooperação existentes<br />
no mundo contemporâneo<br />
soberano a partir do Renascimento. O segundo capítulo<br />
aprofunda a construção do modelo de Estado<br />
soberano, seus significados (poder e supremacia, por<br />
exemplo), assim como as distinções entre soberania<br />
de direito e de fato. Seguem-se as duas partes centrais,<br />
com quatro capítulos cada uma, descrevendo e<br />
discutindo as forças principais da globalização contemporânea,<br />
a revolução tecnológica e o papel das<br />
empresas transnacionais, incluindo aqui os operadores<br />
financeiros. O interessante a observar em relação<br />
ao tratamento dado pelo autor a esse fenômeno<br />
tão suscetível de receber abordagens dicotômicas é<br />
que ele integra de modo satisfatório análises de autores<br />
notoriamente contrários à globalização com<br />
trabalhos de estudiosos bem mais<br />
favoráveis a esse processo.<br />
Na parte da globalização jurídica<br />
– segunda parte da tese –,<br />
o foco do autor é posto na regulamentação<br />
internacional e no<br />
fortalecimento das organizações<br />
internacionais de cooperação e<br />
de integração. Ele constata, por<br />
exemplo, como as entidades mais<br />
notoriamente vinculadas a esses<br />
processos, a OMC, o FMI e o Banco Mundial, ao<br />
mesmo tempo em que preservam certos atributos<br />
da tradicional soberania dos Estados, acabam por<br />
minar as bases do poder e do arbítrio alocado exclusivamente<br />
às políticas de base nacional. Paradoxalmente,<br />
isto ocorre com o próprio consentimento<br />
dos Estados. De fato, como confirma o autor, permanecer<br />
à margem ou retirar-se dessas instâncias<br />
de regulação trans ou supranacional representaria<br />
custos enormes, que poucos Estados estariam dispostos<br />
a pagar, uma vez que os benefícios advindos<br />
da regulação internacional são patentes e visíveis,<br />
no comércio e nas transações financeiras.<br />
A parte final contém o que o autor chama de<br />
“novo paradigma”, isto é, o estabelecimento de um
“novo contrato social” e de uma “nova soberania”.<br />
Os mecanismos para a criação dessas novas realidades<br />
são a cooperação e a interdependência entre<br />
os Estados, o que acaba resultando num novo tipo<br />
de contrato. Uma nova lex mercatoria, por exemplo,<br />
se impõe, por via do método arbitral, à margem<br />
e fora do alcance do poder dos Estados. No<br />
tratamento da questão da supranacionalidade, implícita<br />
em alguns modelos de integração, o autor<br />
acaba mencionando a Comunidade Andina, onde<br />
esse atributo, previsto originalmente nos tratados<br />
constitutivos, foi totalmente teórico e na prática<br />
inexistente. De todo modo, as<br />
bases do novo pacto estão postas,<br />
e elas corroem os fundamentos da<br />
soberania westfaliana.<br />
Os motivos que levam os<br />
Estados a diluírem a sua própria<br />
soberania nas novas formas de organização<br />
inter ou supra-estatais<br />
não derivam tanto da harmonia<br />
que existiria entre eles, como da<br />
necessidade de superar as fontes<br />
de conflito, substituindo-o pela<br />
cooperação. O cenário hoje se<br />
aproxima de uma soberania compartilhada, ou de<br />
uma “governança sem governo”, e o próprio direito<br />
deixa de ser, nas palavras de Celso Lafer, um “direito<br />
internacional de coexistência” – baseado em<br />
normas de mútua abstenção – para tornar-se um<br />
“direito internacional de cooperação”, com a missão<br />
de promover interesses comuns. Quais seriam, então,<br />
os elementos que compõem o novo paradigma<br />
da “sociedade global”, segundo o autor deste livro?<br />
Entre eles se situam a sociedade civil organizada,<br />
composta pelas ONGs, e os fenômenos de<br />
natureza trans ou supranacional já analisados no<br />
livro: as empresas multinacionais e os esquemas<br />
de integração econômica e política. Esses atores<br />
integram os novos regimes criados para regular a<br />
Os motivos que levam os<br />
Estados a diluírem a sua<br />
própria soberania nas novas<br />
formas de organização<br />
inter ou supra-estatais<br />
não derivam tanto da<br />
harmonia que existiria entre<br />
eles, como da necessidade<br />
de superar as fontes de<br />
conflito, substituindoo<br />
pela cooperação<br />
Leituras<br />
cooperação entre os atores tradicionais, os Estados<br />
soberanos (ma non troppo, poder-se-ia dizer).<br />
Como diz o autor, o novo sistema de governança<br />
global possui aspectos internacionais, transnacionais<br />
e supranacionais. Porém, a diluição da soberania<br />
estatal trazida pela globalização econômica<br />
interessa sobremodo às empresas transnacionais,<br />
em especial as do setor financeiro.<br />
Dois problemas permanecem para a nova<br />
“sociedade global”: ela não dispõe de um poder<br />
judiciário – já que a corte de Haia só trabalha sob<br />
convocação e aprovação dos Estados – e ela não<br />
dispõe de um poder militar, ou<br />
policial, próprio, uma vez que<br />
a ONU nunca foi dotada, pelos<br />
Estados membros – a fortiori os<br />
cinco grandes do seu Conselho<br />
de Segurança – de forças armadas<br />
atuando sob um comando unificado<br />
a seu serviço (sem mencionar<br />
o poder de veto, que é atribuição<br />
individual de cada um dos<br />
cinco permanentes). Um terceiro<br />
problema seria a dimensão do<br />
desenvolvimento, uma vez que a<br />
pobreza e a desigualdade continuam a caracterizar<br />
boa parte da humanidade. Paz, segurança, justiça<br />
e desenvolvimento parecem ser, de fato, os obstáculos<br />
atuais à plena consecução da sociedade global<br />
almejada pelo idealismo jurídico. Não é certo<br />
que esses aspectos venham a ser resolvidos no<br />
plano global, pela “comunidade internacional”,<br />
como pretendem alguns; o mais provável é que<br />
eles ainda dependam, basicamente, da atuação dos<br />
Estados soberanos para sua resolução.<br />
O autor acredita que “somente no momento<br />
em que os indivíduos de cada nação viessem a compartilhar<br />
um amplo conjunto de valores e interesses,<br />
seria possível esperar que os conflitos hoje provocados<br />
pela divisão do mundo em Estados pudessem<br />
Revista Plenarium | 259
260 |<br />
deixar de existir” e que o direito tem um papel fundamental<br />
nesse processo de confluência de valores<br />
(p. 515). Examinando-se o estado atual do mundo<br />
e a “educação” das massas, tal perspectiva aparece<br />
como sumamente idealista. Mas ele também reconhece<br />
que a soberania pode ser uma das últimas<br />
salvaguardas para Estados fracos ou vulneráveis. Os<br />
princípios legitimadores da nova “sociedade global”<br />
deveriam ser os da democracia e das liberdades individuais,<br />
algo ainda distante do modo de vida de<br />
milhões de indivíduos na face da terra.<br />
Em sua conclusão, o autor frisa bem que a<br />
sociedade global não é uma sociedade<br />
sem Estados ou sem<br />
fronteiras. Ele também acredita<br />
que a riqueza global esteja se concentrando<br />
e que a humanidade se<br />
torna cada vez mais desigual, daí<br />
sua afirmação segundo a qual o<br />
“bom combate é aquele em favor<br />
da justiça social na sociedade global”<br />
(p. 523). Essas “realidades”,<br />
no entanto, vêm sendo desmentidas<br />
por estudos empíricos solidamente<br />
embasados em dados<br />
sobre a distribuição de renda na<br />
dimensão individual (como por exemplo em diversos<br />
trabalhos de Xavier Sala-i-Martin). O autor diz<br />
lutar para que as “políticas adotadas por essas instituições<br />
[que assumem parte da antiga soberania<br />
estatal] sejam não apenas justas, mas socialmente<br />
justas, para que a parte do planeta que pouco ou<br />
nada tem seja resgatada por aqueles que conseguiram<br />
alcançar grau maior de desenvolvimento – seja<br />
por seu mérito próprio, seja por uma história desigual”<br />
(p. 523). Essa “nova utopia”, encarregada<br />
de efetuar a redução da exclusão social em escala<br />
global, estaria baseada na “idéia de fraternidade”.<br />
Pode até ser que o autor tenha razão, mas o que<br />
a história e a experiência da cooperação internacio-<br />
O autor frisa bem que a<br />
sociedade global não é uma<br />
sociedade sem Estados ou<br />
sem fronteiras. Ele também<br />
acredita que a riqueza global<br />
esteja se concentrando e<br />
que a humanidade se torna<br />
cada vez mais desigual,<br />
daí sua afirmação segundo<br />
a qual o “bom combate é<br />
aquele em favor da justiça<br />
social na sociedade global”<br />
nal nos ensinam, justamente, é que depois de mais<br />
de meio século de ajuda oficial ao desenvolvimento,<br />
em especial aquele dirigido à África, o “resgate”<br />
pela assistência e pela ajuda financeira não foram<br />
e não são suficientes para retirar essas massas da<br />
miséria mais abjeta ou da simples pobreza. Apenas<br />
o crescimento econômico, em bases propriamente<br />
nacionais, tem sido capaz de fazê-lo, como ensinam<br />
os casos recentes da China e da Índia. Que a<br />
África e, em certa medida, a América Latina não<br />
tenham sido capazes de superar os aspectos mais<br />
pungentes da pobreza e da desigualdade não deve<br />
ser visto como um fracasso da<br />
globalização ou das políticas econômicas<br />
ditas “neoliberais”, como<br />
pretendem aqueles que militam<br />
na antiglobalização. O fato é que<br />
esses continentes ainda estão muito<br />
longae da “sociedade global”<br />
proclamada pelo autor. Isso por<br />
decisão própria, por insistirem nas<br />
chamadas “políticas soberanas” de<br />
desenvolvimento – ou no caso da<br />
África, por corrupção mesmo, que<br />
se traduz no fenômeno da falência<br />
dos Estados – não porque o capitalismo<br />
global tenha pretendido excluir esses continentes<br />
de suas redes e fluxos integradores.<br />
Em outros termos, a construção da “sociedade<br />
global”, a tese principal defendida neste livro,<br />
parece ser, ainda, uma obra essencialmente dependente<br />
da vontade dos Estados nacionais, vale dizer,<br />
da capacidade de ação de seus dirigentes, nem<br />
todos estadistas, para dizer o mínimo. Isto, obviamente,<br />
em nada diminui o interesse desta tese de<br />
doutorado para o avanço dos estudos de Direito<br />
Internacional no Brasil. Que sua tese principal seja<br />
aprofundada e debatida.<br />
Paulo Roberto de Almeida
Foto de Luis Humberto.
Catedral de Brasília, 1970. Foto de Luis Humberto.
Perfil do Artista<br />
• Luis Humberto<br />
Fotografia: a reinvenção do real
264 |<br />
Luis Humberto<br />
Setor Comercial Sul, Brasília, 1976. Foto de Luis Humberto.<br />
Fotografia:<br />
a reinvenção do real<br />
O homem, até prova em contrário, é o único ser vivo a ter consciência de sua finitude.<br />
Isso causa- lhe profunda angústia.<br />
A preocupação em desaparecer, sem deixar rastros de sua passagem ou indícios de sua<br />
identidade ou provas palpáveis de seu tempo e de sua obra, incomoda-o.<br />
Antes da fotografia, as imagens até então transferidas para diversos suportes sempre<br />
foram objetos de desconfiança, pois sendo feitas pela mão do homem, poderiam estar contaminadas<br />
por uma interpretação interessada por razões várias, nem sempre muito honoráveis,<br />
capazes de dar contornos pouco verdadeiros ao que deveria ser documental.<br />
A fotografia vem socorrer o homem na sua impotência diante do tempo que escorria<br />
bem a sua frente, sem que pudesse detê- lo ou retardá-lo.<br />
O registro tão fiel quanto possível do real, a retenção, mesmo que ilusória, do tempo e a construção<br />
de uma memória fizeram da fotografia um importante dado cultural de nosso tempo.<br />
Sua invenção, ao ser solução, criou outras questões, trazendo à tona algumas ambigüidades.<br />
Seria a fotografia uma reprodução fiel do real? Ela é sempre um fragmento da realidade<br />
escolhido por alguém.
Perfil do Artista<br />
Se por um lado sua natureza fragmentária lhe retira a confiabilidade como instrumento<br />
comprobatório do real, é, também, o que determina sua condição de obra autoral, pois decorre<br />
de escolhas sobre o que e como destacar de uma realidade mais ampla.<br />
A presença de um processo O recorte do real, a partir da decisão íntima e única do fotógrafo,<br />
tecnológico, intermediando marca a presença de uma visão pessoal quando, deliberadamente, determi-<br />
os resultados, não na os contornos da imagem a serem delimitados, o momento e sob que luz<br />
desqualifica a fotografia, ela deve ser produzida, reatribui novos valores simbólicos aos elementos<br />
como forma de expressão em cena, organizando-os de acordo com suas intenções, dando- lhes peso<br />
humana, pois para e leitura diferentes daqueles que percebemos com o nosso olhar sem inter-<br />
chegaremos a uma imagem mediações. Tudo isso pressupõe a existência de uma linguagem usada para<br />
final, transitamos por expressar conteúdos.<br />
um extenso percurso que A fotografia é uma transcrição arbitrária e interpretativa do real, nas-<br />
envolve, necessariamente, cida do entendimento de mundo de quem fotografa, de seus valores e de<br />
escolhas e decisões, seus valores éticos.<br />
além da presença de A presença de um processo tecnológico, intermediando os resultados,<br />
um sensibilidade ativa, não desqualifica a fotografia como forma de expressão humana, pois para<br />
informada e afetada pelas chegarmos a uma imagem final, transitamos por um extenso percurso que<br />
circunstâncias de momento<br />
envolve, necessariamente, escolhas e decisões, além da presença de uma<br />
sensibilidade ativa, informada e afetada pelas circunstâncias de momento.<br />
Por fora das diversas decisões ocorridas no transcorrer de sua gênese, a fotografia é –<br />
sempre – uma obra autoral, não sendo considerada, para isso, a presença de uma qualidade<br />
incomum, mas a intencionalidade na organização de uma linguagem.<br />
Só o tempo poderá levar à percepção da existência de um caráter distinto de uma fotografia<br />
e torná-la um referencial.<br />
Os julgamentos produzidos por sua contemporaneidade estão, muitas vezes, contaminados<br />
por motivações menores que impedem a justeza de seu acolhimento ou de sua rejeição,<br />
como sucede com qualquer obra que se pretenda possuidora de qualidades expressivas.<br />
No nascedouro, como qualquer outro processo tecnológico, a fotografia enfrentou problemas<br />
que a levaram a fronteiras muito especiais.<br />
O registro do real, via instrumentos ópticos sobre base fotossensível, era possível, mas<br />
fotografar o quê?<br />
Câmeras pesadas, sempre apoiadas em tripés, somadas a filmes lentos e objetivas pouco<br />
luminosas, que obrigavam a tempos de exposição muito longos, mantinham muito baixa a<br />
mobilidade do fotógrafo. Junte-se a isso o desconhecimento de uma linguagem própria.<br />
Inaugurava-se um conjunto de meios destinados a produzir imagens retiradas do real.<br />
Mas de que modo elas poderiam manifestar-se de uma forma original?<br />
A referência visual mais próxima era a pintura, já que oferecia as temáticas que casavam<br />
com os anseios do homem de construir memória e por não terem movimento, ou tê-lo<br />
controlado, e atendiam aos limites determinados pela tecnologia disponível: os retratos e as<br />
paisagens.<br />
A pintura tornou-se uma fonte inspiradora para a fotografia que, em troca, começava a liberá-la<br />
do compromisso restritivo de reproduzir o real. Além do mais, era perversamente buscada<br />
Revista Plenarium | 265
266 |<br />
Luis Humberto<br />
pela fotografia que, repetindo a pintura, procurava ingressar, mesmo que pelo abastardamento,<br />
no universo exclusivo da arte.<br />
Ao aproximar- se cada vez mais da reprodução nítida do real, a insatisfação por parte<br />
dos fotógrafos foi ganhando corpo.<br />
Procurava-se a diluição para parecer pintura, uma forma de mostrar descontentamento<br />
com os papéis meramente técnicos que lhes eram atribuídos, ao mesmo tempo em que, de<br />
algum modo, eram satisfeitas suas aspirações de ter acesso no distinto espaço da arte.<br />
Todavia, as restrições colocadas pelos limites tecnológicos iniciais da fotografia não significaram<br />
uma interdição do seu processo de criação. Contribuições extraordinárias foram<br />
dadas. Apesar de todas as estreitas fronteiras com a evolução tecnológica, apareceram câmeras<br />
menores, objetivas mais luminosas e filmes mais sensíveis, trazendo mais mobilidade e<br />
alargando os horizontes de criação. A câmera passou a ser um prolongamento do olhar.<br />
As linguagens intermediadas por processos tecnológicos são necessariamente afetadas<br />
pelas transformações desses processos.<br />
Mas à fotografia sempre se atribui um pecado original: o fato dela decorrer de um necessário<br />
referente real. Isso tem sido usado para desqualificá-la como possibilidade expressiva.<br />
Por outro lado, o reconhecimento de sua natureza fragmentária retira- lhe a confiabilidade<br />
como testemunha inequívoca de um acontecimento, pois permite, no ato do registro,<br />
a supressão de dados fundamentais, o que comprometeria seu valor documental.<br />
Todavia, essa mesma fragmentação é a origem de um potencial inesgotável para a obtenção<br />
de imagens que, pinçadas de uma mesma realidade, podem, por seu poder de síntese,<br />
proporcionar visões reveladoras e surpreendentes.<br />
A fotografia é a transcrição arbitrária do real a partir de uma decisão individual, do<br />
olhar de um autor mobilizado por suas indagações que, acumpliciado com a luz e intermediado<br />
por aparatos e processos tecnológicos, consigna suas percepções de vida por meio de<br />
uma linguagem deliberadamente ordenada.<br />
São essas questões – a contigüidade com o real, a fragmentação e a intermediação<br />
tecnológica – que, entendidas de modo apressado e primário, conduzem a uma sucessão<br />
interminável de equívocos,<br />
induzindo à interdição do<br />
acesso da fotografia ao universo<br />
da criação, no qual,<br />
queiram ou não, ela se inclui<br />
de modo especial.<br />
Se a fotografia nasceu<br />
para um determinado fim, o<br />
homem reformou- a, fazendo<br />
dela um instrumento de<br />
investigação das coisas à sua<br />
volta e de si próprio. Aí, então,<br />
passamos a falar de algo<br />
Pirenópolis - GO, 2001. Foto de Luis Humberto.<br />
bem mais complexo e gene-
Perfil do Artista<br />
roso, muito além de um simples fenômeno físico-químico destinado a produzir imagens. Passamos<br />
a falar do homem apropriando- se de suas invenções para ampliar seu acervo sensível.<br />
Para que se instale em nós algum tipo de processo de criação, é preciso haver inquietação,<br />
insatisfação e curiosidade, não só para buscarmos resultados inovadores, mas também<br />
verificarmos nossa capacidade de transpor limites.<br />
Brasília, 1971. Foto de Luis Humberto.<br />
Criar significa arriscar, experimentar e, por meio das vivências daí advindas, construir<br />
um acervo de referências que nos conduzirão às pretendidas transformações.<br />
A criação busca o novo, e este tem que nascer a partir do reconhecimento de uma tradição<br />
formada pelos que nos antecederam, nos tocaram e influenciaram. A tradição não traz,<br />
em si, nenhum compromisso com a repetição, mas oferece indicativos sobre a existência de<br />
um espírito que atravessa a história, dando-nos balizamentos para que possamos incluir-nos<br />
nesta mesma história com uma contribuição original.<br />
O processo de criação é algo único para cada indivíduo que se modifica no tempo,<br />
em razão da mutabilidade das circunstâncias que vão afetá- lo de algum modo, fazendo- o<br />
reconsiderar – o tempo todo – seu modo de ver e sentir. A criação se referencia em um processo<br />
cultural mais amplo, mas também é auto-referente na medida em que, depuradas as<br />
sucessivas experiências, irá deixar orientações para rumos a serem renovados.<br />
Criar não é um ato mágico, mas uma combinação de vontade, descoberta, ousadia,<br />
decisão e, também, de reflexão e autocrítica. Não existem questões encerradas. Sempre é<br />
possível ter-se uma nova visão dentro de um tema aparentemente esgotado.<br />
Cada indivíduo carrega um universo sensível particular e cada tempo caracteriza-se por<br />
restrições e estímulos diferentes que irão ser assimilados de um modo especial por cada um.<br />
Somos nossas memórias. Decorremos das heranças daqueles que nos antecederam, de<br />
influências e referências que nos tocaram.<br />
Influência é um encontro atemporal de sensibilidades, de identidades que estimula,<br />
ilumina e muda nosso rumo. Não implica repetição, mas confirmação de percepções em-<br />
Revista Plenarium | 267
268 |<br />
Luis Humberto<br />
brionárias, que podem ser formadoras ou confirmadoras quando apóiam algo que já encaminhamos<br />
e aumentam nossa segurança em prosseguir.<br />
As influências formadoras dão orientação e estímulo para descobrirmos nossa própria<br />
cara a partir delas. Ao ser por nós recebidas, a influências fazem-nos perceber nosso pertencimento<br />
a uma irmandade, até então não sabida, retirando-nos da solidão.<br />
As referências são as produções reconhecidas como de alta qualidade, admiradas, mas<br />
sem aquele dado reorientador quando descobrimos uma identidade até então obscurecida<br />
pela névoa.<br />
O artista sério não cria para encantar platéias, cria para se descobrir. Introduz uma percepção<br />
original e só sua ao próprio trabalho. Descobre frestas, fissuras no óbvio, agregando<br />
Gabriel e Nena. Brasília, 1982. Foto de Luis Humberto.<br />
ao seu produto uma aura extremamente particular, e oferece esses momentos à partilha com<br />
aqueles que estiverem em uma mesma sintonia. Não podemos esperar acolhimento unânime,<br />
mas apenas que haja, por parte de alguns, uma disponibilidade sensível. Não saberemos<br />
quem serão eles, nem em que tempo isso poderá ocorrer. De algum modo constituímos um<br />
legado sem sabermos quem serão os herdeiros.<br />
A criação é uma aventura ambígua, de descobertas, escolhas e descartes, de sofrimento<br />
e prazer. Ao iniciá-la, não sabemos quais serão os resultados, ou, até mesmo, a que limites<br />
poderemos chegar. Certamente, sempre que atingirmos novas fronteiras iremos querer ultrapassá-las;<br />
assim, toda a história irá se repetir indefinidamente.<br />
A presença da curiosidade e da insatisfação como traços de nossa natureza alimentam a<br />
vitalidade de nossos caminhos para a criação.<br />
Como cada um de nós é um universo plural, a humanidade é uma galáxia de diversidades,<br />
dentro da qual estamos nós, convivendo com diferenças profundas que temos de<br />
aceitar, aprender a respeitar e a apreciar.<br />
Não somos a referência universal no nosso ofício e não podemos julgar os outros a<br />
partir dos nossos limites. Essa pluralidade, longe de ser um complicador, é, na verdade,<br />
extraordinária riqueza que nos afeta e transforma.
Perfil do Artista<br />
Para cada processo de criação, haverá sempre uma sucessão, nem sempre fácil, de decisões<br />
a serem tomadas, pois implicam em rupturas e todas as conseqüências daí decorrentes.<br />
Não são momentos só de prazer, mas também de angústia, ousadia e medo.<br />
O medo pressupõe uma expectativa em torno de possibilidades funestas, mesmo que<br />
não haja razões ponderáveis para isso.<br />
O medo é, por natureza, restritivo, impede de tentar criar e transformar. Somos tomados<br />
por fantasmas imprecisos, habitantes de nossas escuras cavernas.<br />
Abortivo de qualquer sinal de vida, o medo escuda-se em mil e um pretextos mostrados<br />
como prudência, bom-senso ou coisas do gênero, mas nem sempre é admitido como algo da<br />
natureza humana, indesejável, mas a ser enfrentado com a necessária decisão.<br />
O processo de criação conduz- nos a universos de dimensões mais generosas. Não se<br />
fundamenta em uma pirotecnia que procura o espanto e a reverência a uma pretensa originalidade,<br />
mas na inquietação verdadeira, capaz de nos levar ao encontro do novo, algo que<br />
nos satisfaça, pelo menos momentaneamente, até que a insatisfação se instale outra vez.<br />
A fotografia é identidade e memória de emoções e afetos vividos. É um imenso acervo<br />
revelador de referências sobre o homem.<br />
Um caleidoscópio sempre ampliado por visões múltiplas constantemente renovadas.<br />
Um testemunho da história pendular da humanidade, oscilando entre a sua capacidade<br />
generosa de criar beleza e o gosto ancestral pelo sangue.<br />
Luis Humberto<br />
é fotógrafo<br />
e professor<br />
universitário.<br />
Revista Plenarium | 269
Coleção PARLAMENTO EM TESES<br />
Novos livros abordam coligações<br />
partidárias e a democracia contemporânea<br />
3<br />
As Coligações Partidárias:<br />
Período 1986-94 versus 1954-62<br />
Vivaldo de Sousa<br />
Brasília - 2006<br />
O<br />
terceiro número da coleção Parlamento em Teses, da Editora<br />
Plenarium, da Câmara dos Deputados, traz um estudo sobre<br />
o tema das coligações eleitorais. A pesquisa de Vivaldo de<br />
Sousa, apresentada como dissertação de mestrado, foi pioneira e estimulou<br />
outros estudos sobre o tema na Universidade de Brasília, onde<br />
foi defendida.<br />
Como lembra o professor David Fleischer, pela primeira vez se analisou<br />
a relação entre as eleições majoritárias (para governador) e as proporcionais<br />
(para deputado federal e estadual) nos estados, durante o<br />
regime democrático de 1946 a 1964.<br />
“Um excelente guia para aqueles que pretendem se inteirar dos<br />
caminhos percorridos pela teoria da democracia moderna até nossos<br />
dias”. Assim a professora Maria Francisca Pinheiro Coelho definiu o<br />
trabalho “Democracia enclausurada: um debate crítico sobre a democracia<br />
representativa contemporânea”, do consultor legislativo Manoel<br />
Adam Lacayo Valente, lançado pela coleção Parlamento em Teses, da<br />
Editora Plenarium.<br />
O livro é resultado de dissertação de mestrado de Manoel Adam e,<br />
ainda segundo Maria Francisca, “combina e direciona argumentos para<br />
um modelo de democracia que preserve a autonomia do cidadão e sua<br />
inserção em fóruns de decisões compartilhadas na esfera pública da<br />
formação da opinião e da vontade, constituída pela sociedade civil”.<br />
A coleção Parlamento em Teses destina-se à<br />
publicação de trabalhos acadêmicos de mérito<br />
reconhecido, cujo tema seja o sistema político.<br />
Publicam-se os trabalhos recomendados pelo<br />
Conselho Editorial da Câmara dos Deputados.<br />
Com essa iniciativa a Câmara pretende estimular<br />
a investigação científica tanto da realidade<br />
presente do nosso Parlamento, quanto da<br />
sua formação e desempenho históricos.<br />
Primeiro número:<br />
Fundamentos<br />
da ordem<br />
republicana:<br />
repensando<br />
o Pacto de<br />
Campos Sales<br />
Ana Luiza<br />
Backes
Coleção PERFIS PARLAMENTARES<br />
Raymundo Padilha<br />
Paulo Brill<br />
(organizador)<br />
Doutel de Andrade<br />
Luiz Augusto Gollo<br />
Outros lançamentos da Câmara dos Deputados<br />
Histórico das<br />
Comissões<br />
Permanentes<br />
da Câmara dos<br />
Deputados<br />
Dilsson Emílio<br />
Brusco<br />
(organizador)<br />
<strong>Política</strong> de Preços<br />
Públicos do Brasil<br />
César Mattos<br />
Eduardo Fernandez<br />
Francisco de Sousa<br />
Luciana Teixeira<br />
Tecnologias da<br />
Informação e Sociedade:<br />
o Panorama Brasileiro<br />
Claudio Nazareno<br />
Elizabeth Veloso Bocchino<br />
Fábio Luis Mendes<br />
José de Sousa Paz Filho<br />
Comissões<br />
Parlamentares de<br />
Inquérito –<br />
1946 a 2002<br />
Maria Laura Coutinho<br />
Maria Inês de B. Lins<br />
Dilsson Emílio Brusco<br />
Seminário<br />
Internacional:<br />
TV Digital –<br />
Futuro e<br />
Cidadania<br />
Conselho de<br />
Altos Estudos<br />
e Avaliação<br />
Tecnológica<br />
Legislação<br />
da Mulher<br />
Câmara dos<br />
Deputados<br />
A Dívida Pública<br />
Brasileira<br />
Conselho de<br />
Altos Estudos<br />
e Avaliação<br />
Tecnológica<br />
Anuário Estatístico do<br />
Processo Legislativo da<br />
Câmara dos Deputados –<br />
2005<br />
Em breve:<br />
Anuário Estatístico do<br />
Processo Legislativo – 2006<br />
Todos esses títulos e outros estão disponíveis<br />
em versão eletrônica no seguinte endereço:<br />
http://www2.camara.gov.br/internet/publicacoes/edicoes