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Vida<br />

do Dr. Gregorio de Mattos<br />

Guerra<br />

Vida<br />

do Dr. Gregorio de Mattos Guerra<br />

Abreviarei a vida de um poeta pouco cuidadoso de estendel a nos espaços<br />

da eternidade, que lhe franqueou as postas, escrevendo costumes do Doutor<br />

Gregorio de Mattos Guerra,mestre de toda a Poesia Lyrica por especial<br />

decreto da Natureza, cujo enthusiastico fusos poderá só retratos de<br />

dignamente, porque de fórma menos viva desconfia a equidade tão<br />

excellente materia.<br />

Causas direi menos decorosas ao sujeito de minha empreza; e por seguir<br />

os dedictames da verdade historica, quero perder os louros de piedoso<br />

advogado contra exemplares famosos, que commentando, ou redimindo as<br />

obras de benemeritos talentos affectam justificar-lhe as vidas no resumo<br />

d’ellas, de modo que pareça impeccavel aquelle de quem o Céo confiou os<br />

esasios esta maxima por desabrida, o mesmo sujeto que descrevo me<br />

apologisa, cujas doutrinas pessuadem sempre a verdade nua.<br />

3<br />

Nasceuna Bahia de Todos os Santos, cafpital cidade do Estado do Brazil<br />

ao Cruzeiro de S. Francisco, da parte do Norte em casas cuja figurada<br />

cornija de arredalhas imperides ainda hoje as distingue caprichosamente<br />

nobres. Os pais que o deram á luz em 7 de Abril de 1623 foram Pedro<br />

Gonçalves de Mattos Fidalgoda seroe dps Escudeiros em Ponte de Lima<br />

natural dos Arcos de Valdever; e Maria da Guerra matrona geralmente<br />

conhecida de respeito em toda a cidade, cujas prendas intellectuaes<br />

amarraram uma trindade capaz de resplandecer no coração da mesma Roma<br />

A 15 do dito arrez recebeu a graça baptismal com o nome de João, na<br />

Ainda sujeito a revisões 1<br />

2


cathedral que depois o venerando Prelado D, Pedro da Silva e pela sua<br />

occurrencia e melagroso auspiciio de S’Gregorio Magno collocado em<br />

Nossa Senhora da Ajuda lhe mudou em Gregorio, mysterioso agouro de que<br />

seria Gregorio doutamente grande o lenso afilhado, mas dirigida aquella<br />

mudança de algum modo a favorecer a distincção de seus pais<br />

Eram estes de tal maneira ricos que possuiam com outras fazendas um<br />

soberbo canavial na Patatiba fabricado com pesto de cento e trinta escravis<br />

de serviço, que repartia a safra por dois engenhos, cujo rendimento suppria<br />

largamente os gastos de um...<br />

4<br />

liberal tratamento e caridade com os pobres; mas nada disto basta para que<br />

um poeta sendo grande se escures de morrer nos braços da maior miseria.<br />

Foi o Doutor Gregorio de Mattos o ultimo filho de tres varões que<br />

nasceram a este matrimonio, dotados pela Natureza com os maiores<br />

thezouros; mas a fortuna sempre apposta aos morgadosda natureza veio a<br />

consumir lhe aquelles nomes, que ambiciosafama pedia, e não sem<br />

apparencias de virtude, increpando o desalinho e pouca estimação, Tª<br />

achaquei que sempre toma de anniquilar os menemeritos, e desgraça<br />

repetidas vezes chorada de sua mãe, que com agudeza natural dizia. -- “Deu<br />

me Deus tres filhos como tres sovelas sem eu cabo.” Farei particular<br />

menção dos dois primeiros no segundo tomo, para que o ultimo se não<br />

queixe do desaire que a minha penna poderia occasionar-lhe, que é menos,<br />

honra ser um accidentalmente grande, que o ter vinculada sua grandeza na<br />

especie generaliva.<br />

Gregorio, que d’este triunvirato sapiente é o nofro particular assumpto,<br />

criou-se com a boa estimulação que inculcavam os sem lianeres e as suas<br />

homas. Soube mais que seus Brasileiros contemporaneos fatalmente agudos<br />

com o tempe-<br />

5<br />

-ramento do clima, sendo lastima casecerem de mestres para toda a<br />

Faculdade: porque Athenas perdera de uma vez aquella soberba, com que se<br />

reproduz em despreso do mundo.<br />

Passou a Coimbra, onde não teremos por novidade que aprendesse, ou que<br />

admirasse quem tanto de casa levava as potencias dispostas. Direi somente<br />

que arrombou na Goezia: porque Belchios da Cunha Brachado, depois<br />

Desembargados na Relação d’este Estado, escreveu a certo cacalheiro da<br />

côrte em um periodo succinto o maior elogio do seu enthusiasmo” Anda<br />

aqui (dizia ele) um estudante brazileiro tão refinado na Satyra, que com suas<br />

Ainda sujeito a revisões 2


imagens e sem tropos parece que baila Momo as Cançonetas de Apollo.”<br />

Não devia de haver-lhe visto asvalentias amorosas para enviar outra cedula<br />

aos apaixonados de João Baptista Marimi pelo postilhão de Italia: mas como<br />

o maior d’esta materia se destina a perpetuo silencio pela impunidade dos<br />

termos que a modestia portugueza não permite, triumphem os Italianos<br />

embora que cá se despreza.<br />

Doutorou-se na Faculdade de Leis, e passando a Côrte a praticar os termos<br />

da Judicatura<br />

6<br />

com um dos melhores Setrados d’ella, lhe conciliou grandes creditos e<br />

caio seguinte.<br />

Defendia este Letrado um pleito a certo tiitular, tão volumoso que o<br />

conduziram mariolas quando era preciso. Era a cama civel sobre a penerão<br />

de um morgados, e expirava contra aquelle cavalheiro, qu somente queria<br />

empatar-lhe a execução, e n’esse impenho nenhuma esperança lhe dava o<br />

seu advogado com os melhores da Côrte. Mas por animar o affligido<br />

pleiteante, resolveu mandal-o ao Doutor Gregorio de Mattos, dizendo que só<br />

d’aquella viveza confiava o remedio palhativo a Sua Excellencia, dado que<br />

o houvesse. Conduzido aquelle volumoso labyru~intho para casa do nosso<br />

praticante, com os maiores encarecimentos lhe suplicou o Fidalgo que<br />

pozesse os olhos n’aquelle instrumento de sua perdição, examinando-lhe os<br />

menores incidentes para embargos, cuja extenção dirigia a concertar-se com<br />

a parte vencedora por meio de algum respeito.<br />

Era meio-dia, foi-se o Fidalgo, e não lhe soffrendo descamo o seu<br />

alvoroço antes de vesperas pertiu a examinar-se se desvelava ou não com os<br />

autos o novo Letrado, mas<br />

7<br />

grande litteratura e restinimo proceder, e d’aqui se foi engolfando em<br />

merecimentos. Com promessas de logar na Supplicação o mandava Sua<br />

Alteza ao Rio de Janeiro devassas dos crimes de Salvador Correa de sá<br />

Benavides, mercê que fatalmente rejeitou. Uns dizem que pos temer as<br />

violencias de tão poderoso quão resoluto réo, quando no firme proposito de<br />

observar justica: outros, qu com algum atrevimento indecoroso capitura com<br />

o Soberano a mercÊ antecipada do serviço, dando a entender que se fiava<br />

pouco emn promessas, ainda que Reaes.<br />

Isto é o que se conta, e sempre o vi dizer a pefroas de melhor notícia; mas<br />

como se faz merecedor dos enganos ( diz Camões) quem acredita mais o<br />

que lhe dizem, que o que vê, affirmarei que o Doutor Gregorio cahiu da<br />

Ainda sujeito a revisões 3


graça do Soberano a pessuasão de algum prejudicado do Soberano à<br />

persuasão de algum prejudicado em suas satyras, sem que atrevida ou<br />

temerosamente recuzasse mercês. Thomas Pinto Brandão, em um resumo<br />

que faz da sua mesma vida, diz que viera ao Brazil na companhia d’elle, que<br />

se retirava descontente de lhe negarem aquillo mesmo com que rogavam a<br />

outros, e isto fror ser Poeta e jurista famoso.<br />

Procurei ir me chegando<br />

A um Bacharel mazomba<br />

Que estava para a Bahia<br />

Despachado, e desgostoso<br />

De lhe não darem aquillo<br />

Com que rogavam a outros<br />

Pelo crime de poeta,<br />

Pobre jurista famoso<br />

D’aqui infiro que invejas indignas occasionaram que o Doutor Gregorio de<br />

Mattos se retirasse desgostoso para a Patria d’aquellas injustiças, que de<br />

ordinario padecem na Côrte os benemeritos. E com elle mesmo provarei o<br />

que digo, que é auctor sem suspeita, escrevendo umas decimas a D. João de<br />

Mencastre.<br />

Ma inda que desterrado<br />

Me tem o fado e a sorte<br />

Por um juiz de má morte, vª<br />

Esta queda do conceito de El-Rei dvia de occasionar-lhe certo semivalido,<br />

contra quem indignado soltou o meu poeta os diques á sua musa, mostrando<br />

desde Lisboa ao mundo a mais ve-<br />

9<br />

nenpsa satyra que podera excogitar o mesmo Apollo. Sempre que leio<br />

este ramulhete de vibora me recordo do miseravel Bupalo, que desesperado<br />

de honra se enforcou por haver sido assumpto de outra menos viva talvez do<br />

que esta cujo heroe devia de amar menos a honra, do que a de corou,<br />

fazendo glorioso apreço das suas figuradas consonancias.<br />

Despachado e desgostoso, que são ternas encontrados, diz Thomas Pinto<br />

que viera para a patria o Doutor Gregorio de Mattos, e veio desgostoso por<br />

lhe negar El-Rei o adiantamento que merecia, mas despachado porque sendo<br />

Ainda sujeito a revisões 4<br />

8


provido na dignidade de Thesoureiro mós da Sé da Bahia, D. Gaspar Barata<br />

de Mendonça, primeiro Arcebispo désta, lhe commetteu o casgo de Vigario<br />

Geralo, que acceitou, e com estes empregos se embarcou para a patria,<br />

desenganado de poder lograr o fructo de suuas virtuosas lettras em uma<br />

côrte que o reconheceu agudo Christovão de Burgos de Contreiras, natural<br />

da Bahia, que depois o foi na Relução de Lisboa, lhe facilitou a pafragem na<br />

sua conducta, e em julho de 1684<br />

10<br />

entrou a exercer de Ordem arrenores quelles casgos que trouxera, trajando<br />

porem o habito secular todo aquelle tempo que lhe ficava livre das<br />

obrigações eccleriasticas capricho que principiou a assufal-o com os<br />

Governadore3s do Arcebispo : porem os erros do habito eram n’elle<br />

menores que as do costume n’aquelles, cuja parcialidade se augmentára por<br />

horas em contraposição da luz e o padecente, que conhecia o seu danno com<br />

vista clara, queria reparar a inimizade de todos com a sua. Elle o pinta<br />

magistralmente n’estes ver<br />

Querem-me aqu todo mal,<br />

Mas eu quero mal a todos,<br />

Elles e eu por varios modos<br />

Nos pagamos tal por qual:<br />

E querendo eu mal a quantos<br />

Me tem odio tão nehemente,<br />

O meu odio é mais valente,<br />

Pois sou só, e elles são tantos,<br />

Algum amigo que tenho,<br />

Se é que tenho algum amigo,<br />

Me aconselha que o que digo<br />

O cale com tdo o empenho vª<br />

11<br />

Era o Doutor Gregorio de Mattos acessimo inimigo de toda a hypocrisia,<br />

virtude que, se podera, devia moderar, attendendo ao costume do presentes<br />

seculos, em que o mais retirado anacoreta se enfastia da verdade crua. Mas<br />

seguindo os dictames da sua natural impertinencia, habitava os extremos da<br />

verdade com escandalosa virtude, como de nunca houveram de acabar se as<br />

singelezas da primeira idade; e bem que se communicava com os doidos,<br />

d’aquella prodigiosa chava nunca se resolveu a molhar a cabeça, como<br />

admiravelmente o diz na obra em que redasgue a doutrina ou maxima de<br />

Ainda sujeito a revisões 5


em viver, que seguem muitos politicos, de involver-se na confusão de<br />

homens perdidos e nescios, a qual o leitor veja, por me fazer mercê, e d’esta<br />

contumacia lhe nasciam as quebradousos d’esta contumacia lhe nasciam as<br />

quebradouros d’ella. Nem havia lisonja que desmentisse as durezas<br />

d’aquelle engano a que se prova com esta decima.<br />

A nossa Sé da Bahia,<br />

Com ser um mappa de festa,<br />

É um presepe de bestas,<br />

Se não for estrebaria<br />

Varias bestas cada dia<br />

Veja que o sino congrega.<br />

Caveira mula galefa,<br />

Deão burrinha bastarda,<br />

Pereiira mula de albarda,<br />

Que tudo da Sé carrega.<br />

Pareceu a certo corrego que não ia incluidos n’esta decima, cude o seu<br />

nome se não mostrava, e promplamente-lje veio agradecer com palavras<br />

humldes; mas o Bravo lhe respodeu “Não, Senhor padre, lá vai nas bestas”.<br />

É verdade que n’aquele tempo eram poucos ou nenhum os Formados que<br />

vestiam murça, e tanto que para acceitarem aquelles logares capitulavam<br />

conveniencias os benemeritos, pelo contrario do que agora passa.<br />

Com esta singular opinião passou o Doutor Gregorio de Mattos de uma<br />

côrte de sabios, que o representavam grande, a uma colonia de presumidos,<br />

que o aborreciam critico, experimentando por peios condição d’esta troca<br />

desigual o entregar-se nos braços da propria patria onde o mais purificado<br />

sempre tem o desar de o haverem visto menino. E como aquelle que olhou<br />

para o sol, que qualquer sombra depoislhe parece abysmo, a elle com a vista<br />

proxima de Lisboa, se representavam in-<br />

13<br />

-fernos as confusões da Bahia.<br />

O genio ratyrico, o orgulhou intrepido não ha duvida que de justiça<br />

providencial se devia ao desgoverno d’estas conquistas, onde cada um trata<br />

de fazer a sua conveniencia, gema quem gemer, e se notou que de algum<br />

modo moderarão os viciosos seus depravados costumes de que veio a dizer<br />

o grande Padre Antonio Vieira que maior fructo faziam as satyras de<br />

Ainda sujeito a revisões 6<br />

12


Mattos, que as mifrões de Vieira, mas bem podéra deixar de dizer muitas<br />

cousas, sem inteira informação, do que ao depois como christão se<br />

arrependeu, dizendo ao Vigario da Muriibeca em Pernambuco, Antonio<br />

Gomes Baracho, que lhe doía na alma o que dissera de Fr. Nasilio.<br />

Com este genio pois e com esta valentia se fez Gregorio de Mattos<br />

aborrecido de uns, e temido de outros. Estes lhe fingiam amizade, pelo que<br />

acceiavam; aquelles lhe machinavam odio, pelo que já sentiam: sendo o<br />

primeiro golpe da commum vingança fazerem-lhe despir a murça capitular<br />

com despreso por sentenças do Arcebispo D. Fr. João da Madre de Deus,<br />

successos d’aquelle em cujo tempo a vestira, se não é que elle de oto<br />

proprio abandonou o beneficio por se não accommodar ás pensões da sua<br />

residencia.<br />

14<br />

Poucos dias antes pretendeu este Prelado com piedosas mostras pessuadir<br />

ao poeta que tomasse ordem sacras para conservar-le os cargos, mas elle<br />

respondeu com inteira revolução que não podia votar a Deus aquillo que era<br />

impossivel cumprir pela fragilidade de sua natureza,; e que a trocode não<br />

mentir a quem devia inteira verdade, perderia tdos os thesouros e dignidades<br />

do mundo que o ser mau sacerdote. E esta resposta esperava sem duvida o<br />

Arcebispo, conhecida a inteireza de Gregorio de Mattos. Sendo certo que se<br />

o quizera conservar nos cargos não eram as Ordens condição necessaria,<br />

valentia foi sem duvida offender a um homem que para despicar-se não<br />

respeitava caracter, nem potestade, trajando por espada a mesma foice de<br />

Saturno amolada nas esquinas da eternidade.<br />

D’esta segunda declinação da fortuna, que com os bens patrimoniaes<br />

muito antes havia vacillado, nasceu o precipicio terceiro, que se encadeam<br />

os males, casando com Maria de Povos, viuva honestissima, quanto<br />

formosa; mas tão pobre que seu mesmo tio Dicente da Costa Cordeiro,<br />

lastimado do seu abatimento, intentou despersuadil-o. Mas vendo ser impo-<br />

15<br />

-sivel, fez da sua fazenda umdonativo, para que a sobrinha não fosse<br />

totalmente destituida. Era o gosto de Gregorio de Mattos, e não se trocava<br />

pelos maiores interesses, que nunca o dinheiro foi capaz de lhe apaixonar o<br />

animo Vendeu já necessitado por tres mil crusados uma sorte de terras, e<br />

recebendo em um sacco aquelle dinheiro, o mandou varar no canto da casa,<br />

d’ondese distribuia para os gatos sem regra, nem vigilancia.<br />

Posto já na obrigação de sustentar encargos de matrimonio, e aberto as<br />

portás o escriptorio da vocacio, poucos eram os defendidos, porque a<br />

Ainda sujeito a revisões 7


inteireza do eu animo patrocinava sómente a mesma razão em materias<br />

ceveis, sendo inimigos voraz d’aquelles advogados, que por juntarem<br />

cabedal enredam as partes no labyrintho de incerta opiniões. Se algumas<br />

vezes defendeu contra o que entendia, eram as causas crimes, onde a summa<br />

justiça se reputa por summa iniquidade. Ninguem se acorda que lhe<br />

regeitassem embargos, e toda a materia d’elles se corporisava em quatro<br />

palavras d’aquelle espirito laconio, que sem offender gigantes formas<br />

conseguia a diminuição plausivel das materias, logrando na curta esphera de<br />

qualquer laconismo alma substancia, visivel graça.<br />

16<br />

e intelligencia commua como ninguem. Por exemplo contarei com<br />

brevidade alguns casos.<br />

Pleiteava Pedro o cabedal que havia dado com sua filha em dote a Paulo, o<br />

qual depois de adornar a defunta esposa com palma e capella, publicava que<br />

havia fallecido intacta. Defendia por parte do autor o nono jurista, e<br />

provava legalmente razoou o feito com esta vulgaridade.<br />

Gaita de falles não quiz tanger,<br />

Olhe o Diabo a que foi fazer.<br />

Banhou-se em aquas de flor o patrono adverro accusando de ridicularia<br />

indecente este razoado na extensa formalidade do seu: mas um e outro<br />

Senado confirmando aquella sentença, veio a conhecer o realmente passava;<br />

e foi que o Doutor Mattos fallando pouco para merecer o menos dizia muito<br />

para conseguir mais.<br />

Outro laconismo se nos envolve na historia de um Religioso, para cuja<br />

intelligencia já dissemos o grande aborrecimento que tinha a todo o fingido.<br />

Nenerava os Religiosos verdadeiros tanto quanto abomminava os que com<br />

este santo titulo apenas merecem o nome de Frades, Elle o diz com graça<br />

n’este verso:<br />

17<br />

Se virdes um Dom abbade<br />

Sobre o pulpito cicro,<br />

Não lhe chameis religioso,<br />

Chamai-lhe embobra de frade.<br />

Um d’estes frades pois se valeu do Doutor Mattos pedindo embargos para<br />

seu sobrinho sentenciado á morte natural por haver furtadi a naveta da sua<br />

sachristia. Mas elle absolutamente o desenganou que não estava em hora de<br />

o servir. Instava o Religioso por saber ao menos a razão da difficuldade, e<br />

Ainda sujeito a revisões 8


com tudo não poderei eu doirar a pilula da resposta “ E (dizia elle) que<br />

n’este instante se foi d’aqui Maria de S. Bento muito agartada, e fez aquella<br />

cruz na minha porta em juramento de não entrar mais por ella” “Ila-hei<br />

buscar (tornou o Religioso) se n’isso está a valer me V. Mcê.” E logo foi<br />

representar à mulata quanta necessidade tinha de leval-a a quebrar o seu<br />

juramento. Caprichosa era ella, mas em tal caso caridativa acompanhou o<br />

triste pretendente, e posta já na presença d’esse singular e esquisito genio,<br />

ouviu que lhe dizia assim: “Não eras tu, ridicula, quem fez aquella cruz de<br />

aqui não tornas? Bem se vê que morrias por esta<br />

18<br />

introdução. Ora vai, que agora te mando cu” Foi-se a mulata exhalando<br />

veneno pelos olhos, e á vista dos autos fez elle a seguinte trova por<br />

embargos.<br />

A naveta, de que se trata,<br />

Era de latão, e não de prata.<br />

Á vista dos autos digo, porque o processo n’elles estava em termos de lhe<br />

valerem, como valeram, ganhando sempre applausos pela attenção com que<br />

examinava os menores incidentes.<br />

Com a folhinha do anno livrou a outro condemnado, contra quem as<br />

testemunhas com verdade havia jurado de vista sobre um furto de noite<br />

escura a peditorio de seu amigo João Rei, Mordomo então da Misericordia.<br />

Um homem de baixa esphera, que por aquella iniquidade a que no Braziul<br />

chamam fortuna, subiu a desconhecer seu amo, comprando a Vara de Juiz<br />

Ordinario na Villa de Igaraçû) em Pernambuco, fez um auto criminal contra<br />

este, por lhe faver chamado por Vós, como antes de o ver Juiz costumava?,<br />

Defendia o nofro jurista ao réo, e confessando a culpa, mostrou que o não<br />

era começando as razões com este<br />

argumento.<br />

Se tratou a Deus por tu,<br />

Ecjamam a El-Rei por vós,<br />

Com chamaremos nós<br />

Ao Juiz de Igaraçû?<br />

Tu e vós, e Vvós e tu.<br />

Ainda sujeito a revisões 9<br />

19


Estas e outras obras de mais agigantado pesono seu officio canonisaram o<br />

Doutor Gregorio de Mattos pelo melhor jurista; de sorte que no dia de sua<br />

morte difre o Ouvirdor de Pernambuco, que lhe não era affeiçoado. “ Já<br />

morreu quem entendia o direito.” Mas se o dinheiro é inimigo declarado da<br />

virtude, mal poderia Gregorio de Mattos adquiril-o, defendendo o justo, e<br />

aconselhando o verdadeiro, arrebatado maior mente pelo furo das Musas,<br />

cuja condição totalmente se encontra com os labyrinthos de Bardo e<br />

Bartolo. Conta se que muitas veses aconteceu entrarem lhe as partes com<br />

dinheiro consideravel, e as amigos com assumptos menos dignos, e que elle<br />

despresava aquellas, por attender a estes, pa~ssando lastimosas<br />

necessidades.<br />

Era a esposa um pouco impaciente, talvez pelo pouco pão que via em casa,<br />

e tal pelo<br />

20<br />

distrahimento de seu marido, cujas desenvolturas claro se patenteam<br />

d’estas obras, posto que nem a todas se deva dar inteiro credito, e enfadada<br />

de uma e outra desesperação sahiu de casa, e entou pela d se io, que depois<br />

de a reprehender asperamente veio rogar ao poeta com razões de amigo que<br />

fosse buscar, ou consentisse ao menos ue elle lh’a trouxesse: e foi lhe<br />

respondido que de nenhum modo admittiria sua mulher em casa sem vir<br />

atada em cordas por um capitão do mato, como escrava fugitiva. Assim se<br />

fez pelo mais decoroso como, e elle a recebeu, paga a tomadia do<br />

regimento; protestando chamas Fonçalos aquelles filhos que nascessem de<br />

tal matrimonio, porque a sua caza se podesse dizer de Gonçalo, com mulher<br />

tão resoluta.<br />

Acossado da pobreza, e sem esperança alguma de remedio em uma terra,<br />

onde somente o tem para triumphar da fortuna quem por estradas de<br />

iniguidade caminha, se entregou o poeta a todo o furos da sua Musa, ferindo<br />

a uma e outra parte como raio com edificios altos a materia mais debilitada.<br />

E não achando a resistencia, que talvez desesperao pre.<br />

21<br />

-temdia (negação fatal em tempos bellicosas), eloegeu peregrinas pelas<br />

casas dos amigos, e sahiu ao Reconcavo povoado de pessoas generosas, pela<br />

multidão florentissima de engenhos d’assucar, preciosa droga que perdendo<br />

com o valor a estimação, levou consigo a dos Magnates Brasilienses.<br />

Por este Paraiso de deleites estragava a cithara de Apollo suas<br />

harmoniosas comonancias com assumptos menos dignos de tão relevante<br />

estrondo. Lascivas mulatas e torpes negras seufanizaram dos tropos e<br />

Ainda sujeito a revisões 10


figuras de tão delicada poesia. Mas que muito, se quando naufraga a baixel<br />

quaesquer barbaros galeam a mais preciosa mercadoria! Não quero<br />

persuadir que a desesperação lhe occasinou desenvolturas; mas direi que do<br />

genio, que já tinha, tirou a mascara para manusear obcenas e petulantes<br />

obras em tanta quantidade, que das que tenho em meu poder tão indignas do<br />

prelo, como merecedoras da melhor estimação, se póde constituir um grande<br />

volume.<br />

Mas a prodiga diffusão de mal applicadas conceituosos dispendios nascia<br />

das enchentes prodigiosas d’aquella Musa, que sem esperan-<br />

22<br />

ça de que seus descuidos correriam na futuraestimação, barateava versos á<br />

conjunção dos acasos, facilitando linguagem ao genio dos sugeitos. Da<br />

mesma sorte que o celebrado pintor Raphael de Urbino, que disfarçado em<br />

sua criminosa peregrinação pintava aos oleitos louça, e taboletas de mezão<br />

aos estalajadeiros, sem previnir que em sua posteridade seriam resgatados<br />

por alto preço aquelles barrões milagrosos da sua ,alograda idéa.<br />

Assistia-lhe desenvolturas com outros do mesmo genero aquelle celebrado<br />

trovador de chistes, a quem uma titular lisonja proporcionou Thalia por ama<br />

sêcca, que se prezava muito de ministrar.lhe assumptos, a prezar dos<br />

melhores amigos, que d’estas companhias lhe prognosticavam sempre a fatal<br />

ruina.<br />

Governava então D. João de Alencastre, secreto estimador das valentias<br />

d’esta Musa, que á toda a inteligencia lhe enthesourava as obras<br />

desparcidas, fazendo-as copiar por elegantes letras: quando de uma náo de<br />

guerra desembarcou o filho de certa personagem da côrte com animo<br />

vingativo contra o poeta por dizer-se que havia satytisado toda a honra de<br />

seu pai: e bem<br />

23<br />

que disfarçava sua maligna intenção, toda a intenção maligna percebeu D.<br />

João dos meninos disfarces d’ella. Era este cavalheiro generosamente<br />

compadecido, e eycogitando meios de livrar uma vida em que a natureza<br />

depositára tão singulares prendas, achou traças de segurar-lhe o perigo nos<br />

fingimentos de rigoroso justiceiro.<br />

Ordenou aos officiaes de milicia que sahindo fóra da cidade a toda a<br />

cautela lhe trouxessem preso o Doutor Gregorio de Mattos. Mas não pôde<br />

effetuar a diligencia, porque suspeitoso d’ella Vigario da Madre de Deus<br />

Manoel Rodrigues, homem virtuoso que o hospedava, soube consumir<br />

n’aquella Ilha as mesmas presumpções de ser achado. Mas o Governador<br />

Ainda sujeito a revisões 11


impaciente com esta tyranna piedade, que lhe frustrava os meios da sua<br />

piedosa tyrannia, communicou a intenção ao Secretario d’Estado Gonçalo<br />

Ravasco Cavalcanti de Albuquerque, pessoa de bom entendimento, e como<br />

tal estimador do poeta, e accordaram que o mesmo Secretario fingisse que o<br />

chamava para dar-lhe importantes avisos, que não poderiam ser menos de<br />

pessoaes; e com carta de sua letra se enviou postados interessado nas<br />

melhoras do perseguido.<br />

24<br />

Conhecida a letra pelo Doutor Gregorio de Mattos, e confiado na muita<br />

honra de Gonçalo Ravasco, promptamente veio a fallar-lhe no logar<br />

determinado, que era a casa de Antonio de Moura Rolim, tambem amigo,<br />

para que se veja que quando os amigos grandes se juntam emprenhados a<br />

favorecer um desditado poeta, será para a prenderem e desterrarem por<br />

modo de fineza. Sempre tenho que d’estas tres amizades a primeiro arrastou<br />

com sagacidade as duas por temer em seu governo os atrevidos córtes d’esta<br />

penna.<br />

Alli pois o prenderam sem poder dar um desafogo ao discursivo; e mettido<br />

na caza que chamam Leoneira, na mesma portada de Galacio, mandou que<br />

alli não deixassem chegar pessoa de qualidade nenhuma: e por mãos de um<br />

confidente criado lhe remettia para sustentar-se os manjares de sua meza<br />

particular: e d’esta particular prisão o trasladaram depois á cadéa, mal<br />

seguros de seu perigo.<br />

Trabalhou o infeliz Gregorio por justificar-se, lisongeando a um tempo<br />

aquelle Magistrado, cujas entradas dominava pias; mas D. João o<br />

desenganou, intimando-lhe que por<br />

25<br />

sua conhecida culpa e necessario remedio havia de embarcar-se para<br />

Angolla em uma náo, que promptamente carregava a tropa de cavallos de<br />

El-Rey para Benguella. Era o Doutor Gregorio de Mattos consumado<br />

salfista, e modulando as melhores letras d’aquelle tempo, em que a solfa<br />

portugueza se avantajava a todas as de Europa, tangia graciosamente. A<br />

proposito do que me pareceu escrever aqui esta decima, que por isso lhe fez<br />

Gonçalo Soares da Franca, nobre engenho da Bahia:<br />

Com tanto primor cantais,<br />

Com tanta graça tangeis,<br />

Que as potencias suspendeis,<br />

E os sentidos elevais:<br />

De ambas sortes admirais<br />

Ainda sujeito a revisões 12


Suspendido o bravo Eolo,<br />

Mas eu vos digo sem dolo,<br />

Que de mui pouco se admira<br />

Pois tocais de Orpheo a lyra,<br />

E a plma tendes de Apollo.<br />

Com estas prendas fazia apreço particular de uma viola, que por suas<br />

curiosas mãos fizera de ca-<br />

26<br />

-baço, frequentando divertimento de seus trabalhos, e nunca sem ella foi<br />

visto nas funções a que seus amigos o convidavam, recreando.se muito com<br />

a brandura suave vozes. Por esta viola, que havia deixado na Madre de<br />

Deus, fazia extremos taes, receiando que sem ella o embarcassem, que o<br />

vigario Manoel Rodrigues, a quem feriam na alma suas desgraças,<br />

promptamente lh’a mandou com um liberal donativo para as cordas d’ella.<br />

D. Joãom chegada a hora de embarcar, o mandou ir á sua presença, e<br />

tratando-o com humildade de Principe lhe pediu que evitasse as occasi~es<br />

de sua perdção ultima; porque era lastima que uma pessôa, a quem o Céo<br />

enriquecêra de talento para melhor fama, comprasse o seu discredito com o<br />

discredito irremediavel de tantos. Decorosamente o fez embarcar, não se<br />

olvidando de recokmendal-o ao Governador de Angola Pedro Jacques de<br />

Magalhães, a quem com a causa d’aquelle degredo insinuava os perigos que<br />

em qualquer parte corria sua pessôa.<br />

Chovendo maldições e raguejando satyras peregrinou os mares aquelle que<br />

por<br />

27<br />

instantes naufragava nas tempestades da terra. Dizia elle que com razão<br />

sobrada podia articular o non possidebis ossa mea de Scipião, e fallou com<br />

rigoroso acert porque se houvereram patrias no mundo que desterraram seus<br />

benemeritos filhos, não consistiu talvez essa desgraça tanto na malicia<br />

d’ellas, como no destino d’estes. Porem a Bahia dos muitos habitos de<br />

desprezas seus naturaes fez natureza para aborrecel-os e persequil-os. A<br />

melhor pintura d’esta verdade se póde ver nas vozes que sobre ella declama<br />

o mesmo poeta, onde sem hyperbole de Musas resplandece a propriedade<br />

tal, que eu como ser estrangeiro acreditava a poesia como juramento dos<br />

Santos Evangelhos.<br />

As ersonagens de quem poeta justamente se queixa em suas satyras são<br />

comparadas a uma herva natural de Guiné, chamada n’aquelle terreno<br />

Ainda sujeito a revisões 13


Nheriquè, e transplantada n’este com o nome de Melão de S. Caetano, por<br />

virem as primeiras a um sitio d’este nome; a qual de sorte se apoderou do<br />

Brazil em toda a parte, que não ha logar sem ella, nem planta que prevaleça<br />

com sua inutil visinhança. As casas de região enriquecidas e illustradas<br />

pelos curiosos e liberaes<br />

28<br />

Mazombos, e sempre n’ellas laborando petuçantes opposições a<br />

pascialidade dos Reinóes admittidos alli por commiseração. Ingratos<br />

hospedes! Mas se algum tivesse desejo de padecer martyrio, fallar n’esta<br />

materia queirsoso causaria ao menos um degredo similhante ao do Doutor<br />

Gregorio de Mattos.<br />

Não poderá negar-me a razão, que choro, quem sabe que no anno de 1740<br />

mandou o Provincial de S. Francisco conduzir do Posto uma chusma de<br />

pobretões, em desprezo dos pacientissimos naturaes da Terra, para adorno<br />

da sua Religião, e nunca o demonio acertou com esta destreza para combater<br />

o animo de Job. Chegam finalmente a aborrecer os mesmos filhos sem maior<br />

causa que houverem nascido no Brazil, onde receberam cabedal, e<br />

inundando por toda a parte em que os Brasileiros os honram e estimam, em<br />

nenhuma d’ellas querem soffrer que haja honra nem estimaçã nos<br />

Brasileiros.<br />

Fazendo porem verdadeira distinção nas nossas naturaes que são<br />

comprehendidas n’esta miseria, culparei somente os das fecundissimas<br />

Provindias da Beira e Minho (salvando os nobre), e é de reparar que sendo<br />

estes os que com<br />

29<br />

maior necessidade se lançam a buscar dinheiro, são estes mesmos aquelles<br />

cuja soberba é tão formidavel a quem as remedeia. Vejamos esta queixa<br />

allegorsada pela nossa agui sobre o gato de um meirinho.<br />

Bão posso comer ratinhos,<br />

Porque cuido, e não me engano,<br />

Que de meu amo são todos<br />

Ou parentes, ou paisanos:<br />

Porque os ratinhos do Douro<br />

São grandissimos velhacos,<br />

Em Portugal são ratinhos,<br />

E cá no Brazil são gatos.<br />

Ainda sujeito a revisões 14


Mas deixando esta materia por irremediavel, e não por temer as unha<br />

d’estes gatos, irei seguindo o meu infeliz poeta em sua fatal navegação.<br />

Chegando ao Reino de Angola, miseravel paradeiro de infelizes, a quem<br />

com a propriedade costumada chamou armazem armazem de pena e dor, e<br />

ezercendo na cidade de Loando o officio de advogado, aconteceu que<br />

amotinada a infantaria da quarnição d’aquella praça, e posta em armas fóra<br />

da cidade, entrou uma churma de solda-<br />

30<br />

-dos pela casa de Gregorio de Mattos, forçando-o a que os fosse<br />

aconselhar sobre as capitulações que tinhamcom o Governador seu General,<br />

e posto com effeito entre os amotinados no campo, clamou que o levassem á<br />

casa para trazer certa causa que lhe esquecêra, sem a qual não podia obrar à<br />

medida de suas satisfações. Entenderam os soldados que seria livro de<br />

direito, e não duvidaram de romper segunda vez o perigo de entrar na praça;<br />

mas aquelle que imaginavam instrumento de solido conselhjo, outra couza<br />

não era mais que a sonora cabaça do poeta; do que se infere o como<br />

chasqueou este Democrito das alterações da fortuna.<br />

Muito pago ficou o Governador d’esta galantaria geralmente celebrada.<br />

Serviu-se d’elle para adjunto na condennação dos cabeças d’aquelle motim,<br />

que foram arcabuzados pelos ouvidos; e desempenhando a recomendação de<br />

D. João de Alencastre deu-lhe liberdade para embarcar-se a Pernambuco.<br />

Posto n’aquella Capitania, governada ntão por Caetano de Mello de Catro,<br />

com o semblante perturbado pela indecendia do habito demandou a<br />

presença d’este fidalgo, que lastimado de ver o miseravel estado a<br />

31<br />

que chegára homem tão mimoso da natureza, lhe fez donativo de uma<br />

bolsa bem provida, e com palavras um pouco severas lhe mandou que<br />

n’aquella capitania cuidasse muito em cortar os bicos às pernas, se o<br />

quizesse ser por amigo. Não sei se era zelo publico, se particular temor.<br />

Gregorio de Mattos o prometteu fazer assim, e em algumas occasiões<br />

mostrou d’ellas o caso que refiro.<br />

Picadas de ciumes se encontraram duas mulatas meretrizes junto á porta<br />

do poeta, e renovando suas paixões de umae outra parte se descompunham<br />

em vozes petulantes. Passaram de lingua a braços, e atracadas tenazmente<br />

cahiram por terra em ridicula virão a tempo que avisado da grita sahiu a vela<br />

o poeta, e dando n’aquelle espectáculo deshonesto começou a gritar: ai<br />

que de El Rei contra o Sr. Caetano de Mello. Perguntaram-lhe os<br />

circunstantes que queixa tinha do Governador “Que maior queixa<br />

Ainda sujeito a revisões 15


(respondeu) que a de prohibir-me fazer versos quando se me offerecem<br />

similhantes assumptos?” Notavel argumento do respeito d’este fidalgo, se<br />

Gregorio de Mattos não tornára depois algumas licenças de satyrs.<br />

Os nobres de Pernambuco conten-<br />

32<br />

-diam ambiciosas demonareções de urbanidade com elle, venerando em<br />

sua pessôa prendas, de que já as havia a fama informado por escripto. De<br />

uma em outra fazenda passavas Gregorio de Mattos uma regalada vida, e<br />

sem offender a nobreza d’este paiz me persuado a eses que o adoravam á<br />

maneira que os antigos idolatras com politica religião faziam sacrificios ao<br />

gorgulho para não destruir-lhe as sementeiras, e á peste para perdoar-lhe as<br />

vidas. Mas sempre é digno de louvvor quem sabe lisongear o danno porque<br />

o teme. Na Bahia perdeu muitos amigos pelo meio de os ganhar; e<br />

emPernambuco os ganhava pelo meio de perdel-os. Referirei dous casos,<br />

que sirvam de exemplo a este ultimo reparo.<br />

Certa pessôa muito principal em Pernambuco, de quem o poeta era<br />

hospede, ouvia d’elle os encarecimentos com que relatava a desgraça em<br />

que nascêra, e sua desterrada peregrinação com todos os acontecimentos<br />

tristes, e como attribuia seus infortunio á rigorosa força de estrella; e mal<br />

persuadido d’esta shetosica triste lhe respodeu atalhando n’esta fórma:”<br />

Sñs. Doutor, nós mesmos somos os autores da nossa fortuna, e cada um<br />

colhe o que semêa.” -- “Não ha duvida (res-<br />

33<br />

-pondeu o poeta) mas é desgraçado aquelle contra quem se conjurou a<br />

malicia, que das mesmas virtudes lhe fazem delictos: verbi gratia, alli vem<br />

aquelle boi (e mostrou um da fazenda do mesmo sujeito); elle tem um só<br />

corno, como estamos vendo, mas se eu lhe chamar boi de um corno, Deus<br />

me livre da indignação de seu dono.” E sendo esta materia por toque ou<br />

disfarçou este homem o proposito, sendo certo que foi o maior amigo que<br />

teve n’aquella terra o Doutor Gregorio de Mattos.<br />

O vigario da Muribeca Antonio Gomes Baracho, atravessado com o seu<br />

cadjutor, não lhe podia soffrer as presumpções de solfista. Ordenou ao seu<br />

trombeta que tocasse desesperadamente em ouvindo cantar como sempre o<br />

coadjutor. Mas este que percebeu a burla, tambem se armou de um caracol<br />

marinho, com qu apupava a trombeta de seu inimigo. O vigario, a quem o<br />

grande odio descompunha o entendimento, se foi querelar do caso perante o<br />

Vigario Geral, com quem privava. Recebida a queréla, e segura o<br />

Coadjutor, chegou o caso á noticia de Gregorio de Mattos, e posto a<br />

Ainda sujeito a revisões 16


caminho sobre a besta de um farinheiro entrou com seis leguas de jornada<br />

por casa do crimi-<br />

34<br />

-noso, a quem pediu procuração para defender-lhe a causa, asseverando<br />

que o não trouxera alli outro algum ngocio; e que de graça o queria servir.<br />

Ia o Padre a agradecer-lhe tanta fineza, mas o Doutor lhe atalhou, dizendo<br />

“Não, Señr Padre, não m’o agradeça, que o meu interesse é saberd’este Juiz<br />

qual é a lei que condenna a quem toca um buzio “Avisado o vigario do<br />

excesso que fizera aquelle homem, a quem conhecia douto e respeitava o<br />

poeta, logo o foi buscar á casa do mesmo coadjtor, concedendo a este pazer,<br />

e fiándo em particular amizade com elle.<br />

Honravam -no todos seriamente; mas arebatado de seu fresco e esparcido<br />

genio fugia dos homens circunspectos, e se inclinava (como na Bahia) a<br />

musicos e folgazões. E sendo naturalmente aceiado e gentil, descompunha a<br />

sua autoridade vivendo entre estes ao philosopho: de sorte que invejava aos<br />

barbaros gentios do Brazil a liberdade de andarem nus pelos arvoredos,<br />

lastimando-se d’aquellas pensões a que nos obriga a policia. Como outros<br />

costumam adornar seusescriptorios de adoriferos pomos, que regalam a vista<br />

e olfacto, adornava elle o seu de bananas que chamam do Maranhão; que<br />

mais servem ao sustento que ao gosto: e isto em<br />

35<br />

demasiada quantidade, que provocando riso a quem as via, dava em razão:<br />

-- adornemo-nos de proveito, que em quanto as tenho, rio-me da fome.<br />

Uma rigorosa fbre lhe attenuou os dias, de sorte que desenganados as<br />

piedosas Pernambucanos de remir-lhe a vida, chamaram o vigario do Corpo<br />

Santo Francisco da Fonseca Reego; pessoa que sippunham de mais<br />

autoridade, para que o dispozesse a morrer como catholico. Mas como este<br />

parocho era na opinião do poeta mal recebido, sem poder disfarçar n’esta<br />

hora o genio livre, soltou algumas palavras, que pozeram as chimeras do<br />

vulgo em suspeitas, de que nasceu um rumor menos decoroso á sua<br />

consciencia; o qual chegando as ouvidos do Ilustrissimo Prelado D. Fr.<br />

Francisco de Lima, logo desde uma legua de caminhose arrojou como bom<br />

pastor a tomar em seus hombros a ovelha que suppunha desgarrada; e não<br />

foi assim, porque não só o achou dispisto a morrer como verdadeiro<br />

christão, mas em signal de que lhe servira, o entendimento no maior<br />

conflicto, viu em uma folha de papel escripto com caracteres tresmulos o<br />

grande soneto que offerecemos.<br />

Ainda sujeito a revisões 17


Assistiu-lhe o piedoso Bispo até o ultimo valle, e logo seu corpo foi<br />

levado por homens<br />

36<br />

principaes ao Hospicio de Nossa Senhora da Penha dos Capuchinhos<br />

Francezes, o dia em que chegaram as novas da restauração da famosa<br />

Palmar a Pernambuca, que havia de ser o sexto da victoria, pois tanto gasta<br />

um caminheiro apressado de um logar a outro. Mas é em vão buscal-o em<br />

Pitta, auctor moderno que disto trata como se não tratara. E mais me<br />

escandalisa que passasse em sua mesma patria por um poeta de tal nome seu<br />

contemporaneo, com quem devia gastar parte d’aquelles elogios. Moreu<br />

finalmente no anno de 1696com idade de setenta e tres annos.<br />

Este é o mais abreviado resumo que posso dar da vida do meu suspirado,<br />

quão dilectissimo poeta lyrico; e oxalá podéra eu publicar os prodigios<br />

fundamentos do meu amor, derramando entre as gentes o manancial<br />

thesouro de suas graças! Singular foi a estrella que dominou em seu<br />

engenho, porque toda a circunferencia das luzes apollineas brilhou com<br />

igualdade senhoril; e não menos prodigioso aquelle não sei que de sua<br />

guarda, porque offendendo ás claras muitas pessôas, de quem o menor<br />

movimento seria sem duvida uma tyranna morte, sempre se atreveu, e nunca<br />

de seu moto proprio cautelou perigos; morrendo intacto de tão prolongados<br />

meres.<br />

37<br />

Muitas eram as feridas do seu ferro que consultaram o remedio no mesmo<br />

instrumento da chaga, beijando a Achilles a lança que os traspassára. Raro<br />

testemunho d’esta fatalidade foi a resposta que deu a um queixoso certo<br />

Governador severamente resoluto. “Não faça N M cê<br />

carp (disse), porque isso também passa por mim, sem que por mim posse a<br />

minima lenção de a castigar.<br />

Testemunho d’esta fatalidade são as duas quartas de um soneto, que se fez<br />

em sua morte, o qual não escrevopor inteiro em razão de que se os seus<br />

principios professam a verdade pura, os fins todavia contém temeraria<br />

petulancia.<br />

Moreste em fim, Gregorio esclarecido,<br />

Que sabendo tirar por varios modos<br />

A fama, a honra, o credito de todos,<br />

D’esses mesmos te viste applaudido<br />

Ainda sujeito a revisões 18


Entendo que outro tal não tem nascido<br />

Entre os Romanos, Gregos, Persas, Godos,<br />

Que comtigo mereça ter apodos<br />

Nos pplausos, que assim has adquirido.<br />

Muitas vezes quiz aquelle refrear o genio, que co-<br />

38<br />

nhecia prejudicialmente peccaminoso, fazendo os actos de christão que em<br />

seu logar veremos, mas debalde o intentava, porque o seu furar intrepido<br />

imperava dominante na massa sanguinaria contra os desacertos d’aquella<br />

idade, castigados por Deus com tão horrorosa peste e tão repetidas fomes:<br />

como tambem veremos pelo discursso d’estas obras. E não é de admirar que<br />

disparadas do throno da divina justiça aquellas duas lancas de sua ira,<br />

seguinsse a terceira com tão exquisito genero de guerro em um homem, que<br />

de sua mãi unicamente tomou este appellido entre outros partos: ella o deu<br />

appellidando-se = da Guerra, e elle o foi sem aquella proposição da por ser<br />

a mesma guerra, e não o instrumento d’ella. Isto parece que prophetizou<br />

certo inimigo seu, respondendo-lhe a uma satyra com outra na seguinte<br />

forma:<br />

Porem se em nada ès guerreiro,<br />

Para que te chamar guerra,<br />

E a fazes a toda a terra<br />

Com a lingua, que é mós damno.<br />

Deixou o Doutor Gregorio de Mattos um vª.<br />

39<br />

filho de sua mulher Maria de Povos chamado Gouçalo de Mattos, cujo<br />

amos publica em varias obras este livro; que em seus logares se verão seres<br />

enfadoras citas.<br />

............... o quente da cama<br />

Com Gonçalo, e com sua ama,<br />

Dizendo estava comei-me<br />

Por vida do meu Gonçalo,<br />

Custodia formosa e linda vª.<br />

Madrasta do Gonçalinho,<br />

Que é lindo enteado a fé vª.<br />

Sim por vida de Gonçalo vª.<br />

Ainda sujeito a revisões 19


Mas por vida de Gonçalo vª.<br />

D’este moço, que com sua mãi ficou em summa pobreza e desamparo,<br />

correm noticias muito gerae que totalmente degenerára d’aquella massa<br />

scientifica de seus estupendos progenitores. Bem pudera eu duvidal-o em<br />

uma terra, onde sempre se hão de tomar os ecs da fama pelo contrario; pois<br />

nunca vi n’ella abonar um sujeito que não mereça ser desterrado por máo,<br />

nem vituperar outro que ao contrario desmereça elogios de bom.<br />

40<br />

....... Mas para cumprir com os relativos d’esta historia consultei dous<br />

sujeitos que se criaram com Gonçalo de Mattos, ambos de insticto capaz<br />

para uma informação, e entre ellesd achei a contradição, póde servir de<br />

exemplo a quem se informa: um affirma com juramento que era poeta<br />

natural, o outro jurando nega que tal fosse, dizendo que elle nem o Padre<br />

Nosso era capaz de reetir. A este seguem muitos, e nenhum áquelle: mas o<br />

primeiro chamado Christovão Rodrigues diz que em sua adolescencia lhe<br />

dera o seguinte mote:<br />

Com que, porque, para que.<br />

Defendia-se o Gonçalo temeroso de uma maldição condicional de sua<br />

mãi, em respeito da qual não queria pegar na penna para fazer versos, posto<br />

que no animo lhe pulsavam as Musas (tal foi o escarmento que deixaram<br />

ellas n’aquelles cadaveres da paciencia lastimosa) Mas como a condição do<br />

preceito tinha sua clausula, em que fundar-se uma heresia graciosa,<br />

respondeu importunado: “Pegai võs na penna, porque a maldição de minha<br />

mãi parece que não me prohibe fazer versos, mas sim pegar na penna para<br />

elles.” Repetiu-me então esta decima, que tanto ella co-<br />

41<br />

-mo a resposta, se são verdadeiras, vem a ser uns relampagos esphera do<br />

fogo:<br />

Glosa<br />

Deus Closi que me amava<br />

Para o intento que tem,<br />

O qual não disse a ninguém,<br />

Nem o porque declarava:<br />

Eu então lhe perguntava<br />

Com que genero de fé<br />

Suspensa a dama se vê!<br />

Ainda sujeito a revisões 20


Com o nada respondeu,<br />

Não pude saber o seu<br />

Com que, porque, para que.<br />

Persuado a crer o caso pelas suas circumstancias, e muito mais quando<br />

vejo aqui umas reliquias mais separadas d’aquelle humor, ou ramas menos<br />

fortes do enxerto do Doutor Pedro Mattos seu tio, onde não ha respostas<br />

sem equivoco sem substancua de genero mais nobre.<br />

Foi o Doutor Gregorio de Mattos de boa estatura, sêcco do corpo,<br />

membros delicados, poucos cabellos e crespos, testa espaçosa, sobrancelhas<br />

arqueadas, olhos garços, nariz agui-<br />

42<br />

-lenho, bocca pequena e engraçada, barba sem demazia, e no trato<br />

cartezão. Trajava commumente seu collete de pelles de ambas, volta de fina<br />

renda, e era finalmente um composto de perfeição como Poeta portuguez,<br />

que são Esopos os de outras nações. Tinha phantasia natural no passeio, e<br />

quando algumas vezes por recreação sulcava os quietos mares da Bahia a<br />

remo compassado, com tão bizarra confiança interpunha os oculos,<br />

examinando as janellas da sua cidade, que muitos curiosos iam de proposito<br />

a vel-o.<br />

Fiz tirar d’elle a presente copia, por um antigo pintor, que foi seu familiar,<br />

e conferindo-a com as memorias que d’elle tem algumas pessoas antigas,<br />

tenho-a por mui conforme a sue original. N’aquelle tempo era pouco<br />

versado o uso das cabelleiras, e elle a trajava: mas pareceu-me capital-o sem<br />

ella, porque os homens de talento devem patentear-nos as offícinas capitaes<br />

que a produzem para informação dos judiciosos.<br />

43<br />

____________________________________________________<br />

SONETO<br />

A Fr. Thomaz da Apresentação prègando.<br />

Padre Thomas, se Vossa Reverencia<br />

Nos prègas as paixões d’esta arte menna,<br />

Virmos a entender que na quarenna<br />

Não ha mais prègador do que Nossencia.<br />

Prègar com tão laconuica eloquencia<br />

Ainda sujeito a revisões 21


Em um só quarto o que escreveu em senna,<br />

A fè que o não fazia Frei Ledesma,<br />

Que prègava uma resma de abstinencia.<br />

Quando prègar o vi, vi um São Francisco,<br />

Se não mais efficaz, menos chagado,<br />

E de o ter po um anjo estive a risco.<br />

Mas como no prègar é tão azado,<br />

Achei que no Evangelico obelisco<br />

É Christo de burel resuscitado.<br />

Um soneto começo em vosso gabo:<br />

Contemos esta regra por primeira;<br />

Já lá vão duas, e esta é a terceira,<br />

Já este quartetinho estáno cabo.<br />

Na quinta torce agora a porca o rabo,<br />

A sexta vá rambem d’esta maneira:<br />

Na setima entro jà gran canceira,<br />

E saio dos quartetos muito bravo.<br />

Soneto<br />

A certa Personagem desvanecida.<br />

Agora nos tercetos que direi:<br />

Direi que vós, Senhor, a mim me honraus<br />

Gabando-vos a vós, e eu fico um rei.<br />

N’esta vida um soneto já dictei;<br />

Se d’esta agora escapa, nunca mais:<br />

Louvado seja Deus, que o acabei.<br />

45<br />

Soneto<br />

ao Governador Antonio Luiz Gonçalves da Camara Coutinho mandando<br />

dar um vestido de um mercê ordinaria ao Faria, um soldado pobre em<br />

chularia n’aquelle tempo.<br />

Ainda sujeito a revisões 22<br />

44


A mulher do Faria<br />

Vai para Angola, vª<br />

Senhor, eu sei que Nossa Senhoria<br />

Mandou dar ao Faria um bom vestido,<br />

Sendo que mais o tinha merecido<br />

A mulher do mesmissimo Faria.<br />

Provo: todo o prazer e alegria<br />

Que se tem do Faria deduz-ido,<br />

Sempre o deu a mulher, nunca o marido,<br />

Que ella ia para Angola, elle não ia.<br />

Assim que se a mulher vai para Angola,<br />

E elle sua na infancia inopinacia<br />

Sua ausencia cruel pondo a viola.<br />

Tiro por consequencia temeraria,<br />

Que à mulher se lhe deve dar a esmola,<br />

Que em critico se diz mercê ordinaria.<br />

Soneto<br />

A certo Doutor ignorante mostrando por suas umas Decimas que se<br />

entende eram de Antonio da Fonseca Soares.<br />

Prototypo gentil do Deus muchacho;<br />

Poeta singular o mais machucho,<br />

Que no mais levantado do cartucho<br />

Quiz trazer o Pegaso por menacho,<br />

Triumphante ao Pasnaso entrou gavacho<br />

Com decimas do metrico capucho,<br />

Se são suas merece um bom cachucho,<br />

Que por boas conseguem bom despacho.<br />

Mas o sol que na aurora do desfecho<br />

Os parpados absindo vos viu micho,<br />

Por ver vosso talento de relecho,<br />

Logo disse: não ereis vós o bicho,<br />

Ainda sujeito a revisões 23<br />

46


Que vos sene nas ancas este secho,´<br />

Que vos limpe essas barbas c’um rabicho.<br />

47<br />

Soneto<br />

A Thomaz Pinto Brandão sendo preso e se mettido para Angola pelo<br />

Governador Antonio Luiz Gonçalves da Camara.<br />

É uma das mais celebre histó-<br />

A que te fez prender, pobr Thomá,<br />

Porque todos te fazem degradà,<br />

Que no nosso idioma é para Angó.<br />

Oh’ se quizesse o Padre Santo Antó-<br />

Que se alsificára este presá-<br />

Para ficar corrido este Frisá-<br />

E moido em salada este chicò-<br />

Mas ao! que lá me vem buscar Matti-<br />

Que n’estes casos é peça de lé-<br />

Adeus, meus camaradas, meu ami-<br />

Que vou levar cavallos a Bengué-<br />

Mas se vou a cavallo em um navi.<br />

Servindo vou a El-Rei por mar e té!<br />

48<br />

Soneto<br />

Enfastia-se o Poeta de visitadores impertinentes no seu retiro da Villa de<br />

S. Francisco.<br />

Devem de ter-me aqui por um orate,<br />

Nascido lá na gemma do Lubeq~ue,<br />

Ou por filho de algum triste alfaqueque,<br />

D’aquelles que trabucam lá em Fernate.<br />

Porque um me dá o glosar um disparate,<br />

E quer que se lhe imprima com crasbeque<br />

Outro vem entonado como um xeque,<br />

E falla pela lingua de um mascate.<br />

Ainda sujeito a revisões 24


Outro vem, que casou em Moçambique,<br />

E vive co’a razão de vinho e brote,m<br />

Que o sogro deu, e o clerido cassique.<br />

Anda aqui a poesia a todo o trote;<br />

E de mim corre já como um lambique,<br />

Não sendo eu destillador brichote.<br />

47<br />

Soneto<br />

Em uma manhã de inverno dá o poeta conta a um seu visinho do que<br />

passava com o frio.<br />

Que vai por lá, Senhor, que vai por lá!<br />

Como vos vai com este vento Sul!<br />

ue eu já tenho de frio a cara azul,<br />

E mais rozo o nariz que um mangará.<br />

Vós na lipoya feito um cobé-pá<br />

Estais mais regalado que um Gazul,<br />

E eu sobre o espinhaço de um baul<br />

Quebrei duas costellas e uma pá-<br />

Traz Izabel o cachimbo somno,<br />

E se o somno pezar como o cachimbo,<br />

Dormirei mais pezado do que um mono.<br />

Vem as brazas depois, que valem gimbo,<br />

E eu de frio não durmo, nem gimbo,<br />

E sem pena nem gloria estou no limbo.<br />

50<br />

Soneto<br />

A Francisco Pereira, musico do sitio de S. Franmcisco, de quem o poeta se<br />

acompanhava n’aquelle retiro.<br />

Não vem, como mentia Chico Ferreira?<br />

Ainda sujeito a revisões 25


Ou elle mente mais que uma sigarra,<br />

Ou não conhece os dias da semana,<br />

E lhe passou por alto a quarta fira.<br />

Disse-me que ia ver lá na ladeira<br />

O anozal qie plasntou na terra lhana,<br />

Porem como olhos tem de porsolanda,<br />

Em tres dias não viu a sementeira<br />

Amanheceu o dia promettido,<br />

Formoso, alegre, claro e prazemteiro:<br />

Bom dia, disse eu cá, para a viagem.<br />

Sahi ao meu passeio mal vestido,<br />

E tomando o officio de gageiro<br />

Não vi véla, e fiquei como um salvagem.<br />

51<br />

Soneto<br />

Ao mesmo Francisco Ferreira, que chamava ao poeta seu mestre na solsa.<br />

Quem deixa o seu amigo por arroz<br />

Não é homem, nem é de o ser capaz;<br />

É sôla codorniz, pombo trocaz,<br />

Não fallo em papagaios e sacós.<br />

Quem diz que vai ficar dous dias sós,<br />

E seis dias me tem n’este solar,<br />

Tão pouco caso do seu mestre faz,<br />

Como faz do seu ruço quatropós.<br />

andara até ir cantar os rés,<br />

E então lhe entoarei tão falsos mís,<br />

Que saiba como pico o meu river.<br />

Dai vos a Deus o deixo do aprendiz,<br />

Que a seu mestre deixou tão triste rez<br />

Pos quatro grãos de arroz, quatro reitís.<br />

52<br />

Ainda sujeito a revisões 26


Soneto<br />

Ao baptizado de uma filha de Balthazar Vanique, Hollandez, a que<br />

concorreram outros estrangeiros.<br />

Vieram os Flamengos e o padrinho<br />

A baptizar a filha do Brixote,<br />

E andou em Marapé grande rizote<br />

De vel-os vir com botas n’um barquinho.<br />

Porque não sendo as botas de caminho<br />

Corriam pela garja a todo o trote,<br />

Foi alli hospedado o dom Bribote<br />

Como convinha não, como com vinho.<br />

Choveu tanto ao domingo, e em tal maneira<br />

Que cada qual Mansius indo uma braza,<br />

Ficou aguado a gosto, e o vinho aquado.<br />

Porque não quiz a Virgem da Oliveira<br />

Que lhe entrasse pagão na sua casa<br />

Vinho que nunca fôra baptizado.<br />

53<br />

Soneto<br />

A mesma função dos ditos estrangeiros, em que se brindava á saude de<br />

Suitota, isto é, Maria, que era a menina que se baptizou.<br />

Se a morte anda de ronda, e a vida trota,<br />

Aprovite-se o tempo, e ferva o Baccho,<br />

Haja galhofa e tome-se tabaco,<br />

Venho rodando a pipa, e ande a bota.<br />

Brinde-se a cada triquite a Quitota,<br />

Té que a puro brindar se ateste a sacco,<br />

E faça-lhe a razão pelo seu caco<br />

Dom Fragotom do Rhin compatriota.<br />

Ande o licor por mão, funda: se a sena,<br />

Esgote-se o tonel, mothem-se os rengos,<br />

Toca tará tará, que o vento berra.<br />

Ainda sujeito a revisões 27


Isto diz que passou entre os Flamengos,<br />

Quando choveu tanta aua sobre a terra,<br />

Como o vinho inundou sobre os podengos.<br />

Soneto<br />

Finge o poeta o assumpto para bem lograr esta poesia de comoantes<br />

forçados.<br />

Depois de consoarmos um tremoço,<br />

A noite se passou jogando a polha;<br />

Amanheceu. e poz-se-nos a olha,<br />

De que não sobejou caldo, nem osso.<br />

Rosnou, por não ficar-lhe nada, o moço,<br />

De um berro, que lhe dei, fiz-lhe uma bolha,<br />

Rasguei-lhe uma camisa ainda em folha,<br />

E a cêa se acabou, jantar e almoço.<br />

O moço tal se depediu por isso,<br />

E eu fiquei a beber vinho sem gesso<br />

Sobre ovos molles, que me puz um usso.<br />

N’este tempo topei de amor o enguiço:<br />

Tive com Antonica o meu tropeço,<br />

E parti de carreira no meu ruço.<br />

55<br />

Soneto<br />

Pede a um amigo o seu escravo alfaiate para certa obra, e tem<br />

circunstancia declarar que era Bechios da Cunha Brochado.<br />

é este memorial de um affligido,<br />

Se vos der mais enfado do que devo,<br />

Entender do papel em que o escrevo<br />

Que dos trapos se fez do meu vestido.<br />

Estou ha vinte mezes retrahido<br />

Por creme que a dizer me não atrevo<br />

Ainda sujeito a revisões 28<br />

54


Acutilei por ser já velho e gevo<br />

Um vestido que tinha de comprido.<br />

Com isto está meu pai muito enfadado,<br />

E sobre ver-me roto me descoze;<br />

Porque commigo está desesperado.<br />

Eu como um descozido, como as doze,<br />

E como estou sem vós desabrochado;<br />

Vos peço o alfaiate que vos coze.<br />

56<br />

Soneto<br />

Aos amigos da Cajahiba escreve da ilha de Gonçalo Dias, onde se achava<br />

desgostoso por duvidas que tivera com certa personagem d’aquelle logar.<br />

Que vai por lá, Senhores Cajahibas?<br />

Vossês se levam vida regalada<br />

Co’a arraia chata, a curima ovada,<br />

Que lhes forma em dous lados quatro gibas:<br />

Eu n’esta ilha, inveja das Maldinas;<br />

Estu passando a vida descançada:<br />

Como o bom peixe, a fruita sozonada,<br />

Á vista de um amor sangue de sibas.<br />

Vossês tem sempre á vista São Francisco,<br />

Povo illustre, metropole ds montes,<br />

A cuja vista tudo o mais é cisco.<br />

Eu não tenho que olhar mais que horisontes,<br />

Mas se ha de olhar-me lá um bazilisco,<br />

Melhor é ver d’aqui a Ilha das fontes.<br />

Sontero<br />

A uma Freira que lhe mandou um mimo de doces.<br />

Senhora minha, se de tães clausuras<br />

Tantos doces mandais a uma formiga,<br />

Ainda sujeito a revisões 29<br />

57


Que esperais vós agora que vos diga,<br />

Se não forem muchissimas doçuras.<br />

Eu esperei de amos outras venturas,<br />

Mas eibo vai tudo o que é das obriga,<br />

Ou já seja favor, ou já uma figa,<br />

Da vossa mão são tudo ambrozidas puras.<br />

O vosso doce a todos diz: “comei-me”<br />

De cheiroso, perfeito e aceiado,<br />

E eu por gosto vos dar comi e fartei-me.<br />

Em este se acabando irá recado;<br />

E se vos parecer glotão, soffrei-me<br />

Em quanto vois não peço outro bocado.<br />

58<br />

Soneto<br />

Ao P e . Damaso da Silva a respeito de dizer certa freira por galantaria<br />

jocosa, defendendo as suas prendas, que emprenhàra e paríra d’elle.<br />

Confessa Sàr Madama de Jesus<br />

Que tal ficou de um só xesmininez,<br />

Parira em fim de um corrego abestruz.<br />

Diz que um Xisgaravéz viera á luz,<br />

Margado de um presbytero montez,<br />

Cara frisona, ganas de Irlandez,<br />

E bocca de caqueiro de alcatruz.<br />

Dou que nascesse o tal Xigaraviz,<br />

Que o parisse uma freira vade em paz,<br />

Mas que o gerasse o Senhor Padre arroz.<br />

Verdade pois o coração me diz,<br />

Que o filho foi sem duvido algum traz<br />

Para as barbas do pai, onde se paz.<br />

59<br />

Soneto<br />

Ainda sujeito a revisões 30


Ao mesmo Padre Damazo da Sulva.<br />

Este Padre Frizão, este sandeo,<br />

Tudo o Demo lhe deu e lhe outorgou,<br />

Não sabe Musa muso, que estudou,<br />

Mas sabe as sciencias que nunca aprendeu.<br />

Entre catervas de amor se metteu,<br />

E entre carja de bestas se acclamou,<br />

Aquella Salamanca o doutorou,<br />

E n’esta Sala cega floreceu.<br />

Que é meu grande alchimista, isso não nego,<br />

Que alchimista de esterco fazem ouso,<br />

Se cremos seus apocryphos conselhos.<br />

E o Frizão as irmãas pondo ao pespego,<br />

Era força tira grande thesouro,<br />

Pois soube em ouro converter pentelhos.<br />

Soneto<br />

Ao mesmo Padre Damazo da Silva.<br />

Padre Frizão, se Vossa Reverencia,<br />

Tem licença do seu vocabulario,<br />

Para me pôr um nome improprio e vario,<br />

Póde fazel-o em sua conscienci.<br />

Mas se nã tem licença, em penitencia<br />

De ser tão atrevido e temerario<br />

Lhe quero dar com todo o calendario,<br />

Mais que a testa lhe rmpa e a paciencia.<br />

Magano infame, vil alcoviteiro,<br />

das fadas corretas por dous tortões,<br />

E em fim das emangaças alveitas.<br />

Tudo isto é notorio ao mundo inteiro,<br />

Se não seres tu obra dos calhões<br />

Ainda sujeito a revisões 31<br />

60


De Duarte Garcia de Bicar.<br />

61<br />

Soneto<br />

Ao mesmo Padre Damazo da Silva<br />

Disparatada idéa por consoantes forçados.<br />

Descarto-me da tronga que me chupa,<br />

Carro por um concheg todo o mappa,<br />

O ar da fêa me arrebata a capa,<br />

O gadanho da linda até a garupa.<br />

Busco uma freira que me desentupa<br />

A via, que o desuso as vezes tapa;<br />

Tapo, e em tapando todo o bolo rapa<br />

Que as cartas lh’o dão sempre com chalupa.<br />

Que hei de fazer, se sou de boa cepa,<br />

E na hora de ver repleta a pipa<br />

Darei por quem m’a exgote toda Eurpa<br />

Amiga, que se alimpa da carepa,<br />

Ou soffre uma muchacha que o decipa,<br />

Ou faz da sua mão sua cachopa.<br />

Soneto<br />

Ao casamento de Pedro Alvares da Neiva.<br />

Sete annos a nobreza da Bahia<br />

Servia uma pastora Indiana bella,<br />

Porem servia a India, e ão a ella,<br />

Que a India s´pos premio pretendia.<br />

Mil dias na esperança de um só dia<br />

Passava contentando se com vêl-a,<br />

Mas Frei Thomaz uzando de cautela<br />

Deu-lhe o villão, quitou-lhe a fidalguia.<br />

Ainda sujeito a revisões 32<br />

62


Vendo o Brazil que por tão sujos modos<br />

Se lhe uzurpava a sua Dona Elvira,<br />

Quasi a golpes de um moço e de uma goiva.<br />

Logo se arrependeram de amar todos,<br />

Mas qualquer mais amára se não vira<br />

Para tão limpo amos tão suja noiva.<br />

63<br />

Soneto<br />

Queixa-se o poeta da plete egnorante e perseguidora das virtudes.<br />

Que me quer o Brazil que me persegue?<br />

Que me querem pasgates que me invejam?<br />

Não vêem que os entendidos me castijam,<br />

E que os nobres é gente que me segue?<br />

Com seu odio a camalha que consegue?<br />

Com sua inveja os nescios que molejam?<br />

Se quando os nescios por meu mal moutejam<br />

Fazem os sabios que a meu mal me entregue<br />

Isto posto, ignorantes e canalha,<br />

Se ficam por canalha e ignorantes,<br />

Não và, que t~em terriveis comoantes.<br />

Deixe, Senhor beato, a beati-<br />

Que se a via do céo é via da-<br />

Ninguem o póde crer n’esta cidá-<br />

Por ser vossê da casta Issaelí-<br />

Soneto<br />

A certo Advogado correndo a via-sacra.<br />

Quando devoto corre a Sacra-vi-<br />

E a cada pé de cruz estende os brà-<br />

Parece um entremez da Sei da gra-<br />

Que a todo o Christão velho causa ri.<br />

Ainda sujeito a revisões 33<br />

64


Deixe-se d’isso, trate do escritó-<br />

Que esse lhe hade render o pão da me-<br />

E o céo se com bamzelo advò-<br />

Mas se por Santo quer que o reconhé-<br />

E na paixão de Deus faz-se gracio-<br />

Embolsará risadas da comé-<br />

65<br />

Soneto<br />

A mulata Vicencia, amando ao mesmo tempo a tres sugeitos.<br />

Com vossos tres amantes me confundo,<br />

Mas vende-vos com todos cuidadosa<br />

Entende que de amante e amorosa<br />

Podeis vender amos a odo o mundo.<br />

Se de amos vosso peito é tão fecundo,<br />

E tendes essa entranha tão piedosa,<br />

Vendei-me de affeição uma ventosa,<br />

Que é pouco mais que um selamim sem fundo.<br />

se tal compro, e nas cartas ha verdade,<br />

Eu terei, quando menos, trinta damas,<br />

Que infunde vosso amo plumalidade<br />

E dirá quem me vir com tantas chammas,<br />

Que Vicencia me fez a caridade,<br />

Porque o leite mammei das suas mammas.<br />

66<br />

Soneto<br />

Á mesma mulata, que corida do amante, foi morar com Joanna Gafeira,<br />

outra tal que tinha as pernas chagadas de gallico.<br />

Lavai, lavai, Vicencia, esses rovados,<br />

Porque li n’um prognostico almanaqe<br />

Que vos trezanda sempre o estoraque,<br />

E por isso perdeste, casa e cacos.<br />

Ainda sujeito a revisões 34


Hoje que estais visinha dos buracos<br />

Das pernas gafeiraes, dareis mor baque,<br />

Que tanta caca hei medo que vos caque,<br />

E que fujam de vós até os macacos.<br />

Tratai de perfumar-vos e esfregar-vos,<br />

Que quem ver estimar-se anda esfregada,<br />

Se não ide ser freira, ou enforcai-vos.<br />

Porque está toda a terra conjurada,<br />

Que antes de vos tocar, hão de cheirar-vos,<br />

E lançar-vos ao mar se estais damnada.<br />

67<br />

Soneto<br />

A Jeronyma, mulata falladira e presumpçosa, vulgarmente chamada Jelû.<br />

Jelû vós sois rainha das mulatas,<br />

E sobre tudo sois deosa das putas,<br />

Tendes o mando sobre as dissolutas<br />

Que moram na quitanda d’essas gatas.<br />

Tendes muito distantes as capatas<br />

Por poupas de razões e de disputas,<br />

Porque sãoumas putas absolutas,<br />

Presumidas, faceiras, pataratas<br />

Mas sendo vós mulata tão airosa,<br />

Tão linda, tão galharda e golgozona,<br />

tendes um mal, que sois mui cagajosa.<br />

Pois perante a mais inclyta persona<br />

Desensolando a tripa revoltosa,<br />

O que gentil ganhais, perdeis cagona.<br />

68<br />

Soneto<br />

A mulata Izabel da Villa de S. Francisco, cjamada Beleta, inicionada de<br />

galica.<br />

Ainda sujeito a revisões 35


Beleta, a vossa perna tão chagada<br />

Ôlha poderá ser pelo podrida,<br />

Mas eu não quero ôlha em minha vida<br />

Podrida pelo mal inficionada.<br />

Estais tão lazarenta e impestada,<br />

Tão ethica, mirrada e carcomida,<br />

Que uma vossa pilhancra bem moida<br />

Servirá de preçonha rfinada.<br />

O que vos gabo é ser presumptuosa<br />

Em tal calamidade, em tal mizeria,<br />

Como se a podridão fora formosa.<br />

Mas se acaso vos dòe, Dona Lazeria,<br />

O gume d’este verso, ou d’esta prosa,<br />

Sabei que o vosso humor deu a materia.<br />

69<br />

Soneto<br />

Uma dama chamada Catharina. Desaires da formozura com as pensões da<br />

natureza.<br />

Rubi, cancha de perla peregrina,<br />

Animado crystal, viva escarlata,<br />

Duas saphiras sobre lica prata,<br />

Ouro encrespado sobre prata funa.<br />

Este o rostinho é de Catharina,<br />

E porque docemente obriga e mata<br />

Não livra a ser diviina em ser ingrata,<br />

E raio a raio os corações fulmina.<br />

Viu-a Fabio uma tarde transportado,<br />

Bebendo admirações a galhardias,<br />

A quem já tanto amor levantou aras.<br />

Disse qualmante amante e magoado:<br />

“Ah! muchacha gentil, que tal serias<br />

Se sendo tão formosa, não cagáras.<br />

Ainda sujeito a revisões 36


Soneto<br />

Fonge que visita duas mulatas, mãi e filha, presas por um Domingos<br />

Cardoso de alcunha o Mangará, que tratava com uma d´ellas pelo furto de<br />

um papagaio. Falla com a mãi.<br />

Poeta. Dona Saecula in saeculis sanhosa,<br />

Porque estais aqui presa, Dona Paio?<br />

Mulata. Dizem que por furtar um papagaio,<br />

Porem mente a querela maliciosa.<br />

Poeta. Estais logo por ladra e por golosa:<br />

Naõ vos lembra o jantar de Frei Pelaio?<br />

Mulata Então traguei de carne um bom balaio,<br />

E de vinho uma celha portentosa.<br />

Poeta Para tanto peccado é curto a sala,<br />

Ide para a moxinga florescente,<br />

nde tanta vidrada flor exhala.<br />

Mulata Irei, que todo o preso é paciente,<br />

Porém se hoje furtei cousa que falla.<br />

Amanhã furtarei secretamente.<br />

71<br />

Soneto<br />

Falla agora com a filha da sobredita, chamada Bartola.<br />

Poeta Bartolinha gentil pulehra e bizarra,<br />

Também vos trouxe aqui o papagaio?<br />

Bart. Não Senhor, que ele fala como um raio,<br />

E diz que minha mãi lhe poz a garra.<br />

Poeta Isso está vossa mãi pondo a guitarra,<br />

E diz que hade pagal-o para Maio<br />

Bart. Ella é muito mimosa, e eu desmaio<br />

Quando cuido no alcaide que me agarra.<br />

Ainda sujeito a revisões 37<br />

70


Poeta... Temo que haveis de ser diciplinante<br />

Por todas estas ruas da Bahia,<br />

E que nos hade ir ver o vosso amante.<br />

Bart. Ques me veja, quer não: estimaria<br />

Que os açoutés se dêm ao meu galante,<br />

Porque tambem sei ver, e vêl-o-ia.<br />

72<br />

Soneto<br />

A um banqueiro de Marapé, chamado Manoel Fernandes, presumido de<br />

gentil homem valente e namorado.<br />

Gentil homem, valente e namorado;<br />

Trindade vem a ser de perfeições,<br />

Com que à vós triunviro dos varões<br />

Vos teme a morte, e vos venera o fado.<br />

Pelo gentil, Adonis sois pintado,<br />

Pelo valente, o Marte das Nações,<br />

Que unir e conformar contradicções<br />

Só em vós se viu já faclitado<br />

Sobre tudo, Senhor Manoel Fernandes,<br />

Podereis ser de Enéas Palinuro,<br />

E conduzir de Europa Ulysses grandes.<br />

Pois trazieis o barco tão seguro<br />

Quando passei para esta nova Flandes,<br />

Que o mar que parecia vinho puro.<br />

73<br />

Soneto<br />

A um ci~rioulo chamado o Logra, a quem vazaram um olho por causa de<br />

uma negra.<br />

Està o Logra torto! é cousa rara!<br />

Diz que um olho perdeu por uma puta:<br />

Barato o fez, que ha outra dissoluta,<br />

Que me quer arrancar ambos da cara.<br />

Ainda sujeito a revisões 38


O’ quem tão baratinho amor comprára!<br />

Que um olho é pouco preço sem disputa:<br />

Senão diga-o Betica, que de astuta<br />

Mais de uma duzia de olhos me almoçára<br />

Sahe d’esta cabulha tão roido,<br />

E deixaram me Harpias tão roubado;<br />

Que não logrei de vista um só sentido:<br />

Não foi o Logra não mais desgralado<br />

Porque posto que um olho tem perdido,<br />

Inda outro lhe ficou para um olhado.<br />

74<br />

Soneto<br />

Ao Dez os Belchios da Cunha Brochado chegando do Rio de Janeiro à esta<br />

cidade recorre a P. satyrisando Julgador, que o prendeu por accusar o furto<br />

de uma negra, a tempo que soltou o ladrão d’ella.<br />

Snhor Doutor, muito bemn vinda seja<br />

A esta mofina e misera cidade<br />

Sua justiça agora e equidade,<br />

E lettras com que a todos causa inveja.<br />

Seja muito bem vindo porque veja<br />

O maio disparate e iniquidade<br />

Que se tem feito em uma e outra idade<br />

Desde que ha tribunaes, e quem os seja.<br />

Que me hade succeder n’estas monbtanhas<br />

Com um ministro em leis tão pouco visto,<br />

Como previsto em trampas e maranhas?<br />

É ministro de imperio mero e misto,<br />

Tão Pilatos no corpo e nas entranhas,<br />

Que salta a um Barra~baz, e prende a um Christo.<br />

75<br />

Soneto<br />

Ainda sujeito a revisões 39


Ao mesmo julgador, quando acabando o logar se embarcou para o Reino.<br />

Lobo cerval, phantasma peccadora,<br />

Alimaria christão, selvage humana,<br />

Que eras com vara pescador de canas,<br />

Quando devia, ser burro de nora.<br />

Leve -te Berzabú, vai-te em má hora,<br />

Levanta d’esta vez fato e cabana,<br />

E não pares senão estejas tu, morras na rua,<br />

Sepultura te dêem montes de cisco.,<br />

E toda aquell cousa que fôr tua<br />

Corra sempre comtigo o mesmo risco,<br />

Oh selvagem christão! oh besta crua!<br />

Soneto<br />

Aoo casamento de certa dama por nome Brites.<br />

Senhora Beatriz, foi o demonio<br />

Este amor, esta trampo, esta porfia,<br />

Que não durmo de noite, nem de dia,<br />

Em cuidar n’este negro matrimonio.<br />

Já puz uma candêa a Santo Antonio,<br />

E vendo que rua luz não me allamia,<br />

Ou cuido me negais a serventia,<br />

Ou que não abra em vòs meu antimonio<br />

Não cuideis que eu estou bem aciadoM<br />

Pois por não violar essa Maurura<br />

Me tem toda essa terra por capada<br />

Não soffro estes revezes da ventura:<br />

Ou heide desistir do começado;<br />

Ou heide esgravatar na fechadura.<br />

77<br />

Soneto<br />

Ainda sujeito a revisões 40<br />

76


A certo sujeito que amava a uma dama que nunca havia visto.<br />

Dizem que é mui formosa Dona Urraca<br />

Quem o rabe, ou quem viu esta minhoca?<br />

Poderá ter focinho detaóca,<br />

E parecer me a mim uma macaca.<br />

Heide amal-a sem prova da ervilhaca,<br />

Em risco de estar podre a seraròca?<br />

E se ella acaso for gallinha choca,<br />

Como heide dar por ella uma pataca?<br />

A mim me tenham todas por velhaco,<br />

Se amar a tal fragona por capricho,<br />

Sem primeiro revêl-a até o buraco.<br />

Que pòde facilmente o muito lixo,<br />

Por não limpar às vezes o mataco,<br />

Ter-lhe do caxundè tapado o esguicho.<br />

Soneto<br />

A procissão de Cinza em Pernambuco.<br />

Nem negro magro em sufulié juno,<br />

Dois azorragues de um oá pendentes,<br />

Barbado o Peres, mais dois penitentes,<br />

Seis crianças com azas sem mais custo.<br />

De vermelho o mulato mais robusto,<br />

Tres fradinhos meninos innocentes,<br />

Dez ou doze brixotes muito agentes,<br />

Vinte ou trinta canellas de honbro onusto.<br />

Sem debita reverencia seis andores,<br />

Um pendão de algodão tinto em tijuco,<br />

Em fileira dez pares de menores.<br />

Atraz um cego, um negro, um mamaluco,<br />

Trez lotes e rapazes gritadores,<br />

Ainda sujeito a revisões 41<br />

78


E a procissão de Cinza em Pernambuco.<br />

79<br />

Soneto<br />

Aos Caramurús da Bahia.<br />

Um calção pindoba a meia porra,<br />

Canusa de urucù, mnantéo de urara,<br />

Em logar de cotò, arco e taquara~,<br />

Pennacho de guaràs, em vez de gona.<br />

Furado o beiço; sem temer que morra<br />

O pai, que lh’o envasou c’uma titura<br />

Porem a mãi a pedra lhe applicára<br />

Por reprimir-lhe o sangue que não corra.<br />

Alarve sem razão, bruto sm fé,<br />

Sem mais leis que as do gosto, quando erra,<br />

De Payayá tornou-se em Abaitè.<br />

Não sei ibde acabou, ou em que guerra:<br />

Só ssei que d’este Adão de Massapè<br />

Procedem os fidalgos d’esta terra.<br />

Ha causa como ver um Payayã<br />

Mui presado de ser Caramurú,<br />

Descendente do sangue de Tatú,<br />

Cujo Porpr idioma é Cabepà?<br />

A linha feminina é Carimâ,<br />

Muqueca, jutitinga, carurú,<br />

Mingáo de puba de vinho de cajú<br />

Pizado n’um pilão de Pirajá<br />

A masculina é um Aricobé,<br />

Cuja filha Cobé, um branco Pahy<br />

Soneto<br />

Ao mesmos Caramurús<br />

Ainda sujeito a revisões 42<br />

80


Dormir n’um Promotorio de Passé.<br />

O branco é um Maráo que veio aqui<br />

Ella é uma India de Maré,<br />

Cabepa, Aricobé, Cobé, Pahy.<br />

81<br />

Soneto<br />

A certo Fidalgo Caramurú.<br />

Um Payà de Manay banzo bramà,<br />

Primor da Creparia do Pegú,<br />

Que sem ser do Pequim, por ser do Acú,<br />

Quer ser filho do sol nascendo cà.<br />

Penha embora um avô nascido lá,<br />

Cà tem três pela costa do Cairú,<br />

E o principal se diz Paraquassú,<br />

Descendente este tal de um Guinamá.<br />

Que é fidalgo nos ossos cremos nós<br />

Pois n’isso consistia o mòr brarão<br />

D’aquelles que comiam seus avós.<br />

E como isto lhe vem por geração,<br />

Lhe ficou por costume em seus teirós<br />

Morder aos que provém de outra nação.<br />

Soneto<br />

A uma mulata chamada Antonia da Bahia, achando-se na Cajahiba .<br />

Chegando á Cajahiba vi Antonio,<br />

Indo lh’o a apolegar, disse-me caca<br />

Gritou Thomaz: entono de matraca<br />

Um hâ pela mulher que foge à pica.<br />

Eu, disse ella, não sou mulher do crica,<br />

Que assoma como rato na buraca,<br />

Quem me lograr hade ter mui boa atraca,<br />

Ainda sujeito a revisões 43<br />

82


Que corresponda ao vaso que fornica.<br />

Nunca me foi mister dizer: “quem merca”.<br />

Porque a minha belleza é mar, que surca<br />

Alto baixel que traz cutello e forca.<br />

E poi você tem feito com que perca,<br />

Diga essas confianças à sua urca;<br />

Que ei sei que em cima de urca é puta porca.<br />

83<br />

Soneto<br />

Descreve o que realmente passàra no Reino de angola, quando lá se<br />

achava o poeta.<br />

Pasar la vida, sin sentir que para,<br />

De gustos, falta, y de esperanza llena,<br />

Sufri un sol que como fuego abraza.<br />

Beber de las canimas agua baza,<br />

Comer mal peza a medio dia y cena,<br />

Diz por qualquier parte um cadena,<br />

Ver das açotes sin piedade, m’tara.<br />

Verde uno rico por encantemiento,<br />

Y Señor, quando apenas fué creado;<br />

No tener de quien fue conocimiento.<br />

Ser mentirozo por razon de Estado;<br />

Nivir en ambicion siempre rediento,<br />

Morir de deudus, y pezar cargado.<br />

84<br />

Soneto<br />

Ás exorbitantes direções da missão que fazia n’aquelle tempo o Arcebispo<br />

na cathedral da Bahia correndo-se juntamente a Via-Sacra.<br />

Via de perfeição é sacra via;<br />

Via do céo, caminho da verdade:<br />

Mas ir ao Céo com tal publicidade,<br />

Ainda sujeito a revisões 44


Mais que a virtude, o boto a hyypocriizia.<br />

O odio é d’alma infance companhia.<br />

A paz, deixou a Deus á christandade.<br />

Mas arrastás por força uma vontade<br />

Em vez de caridade, é tyrannia.<br />

O dar pregões do pulpita é indecencia:<br />

Que de fulano, venha aqui sicrano,<br />

Porque o peccado e peccador se veja...<br />

É proprio de um porteiro de audiencia.,<br />

E de n’isto mal digo, ou eu me engano,<br />

Eu me submetto à Santa Madre Igreja.<br />

85<br />

Faça misuras de A, com o pé direito,<br />

Os beija maõs de gafados de pella:<br />

Saiba a todo o cavallo a parentella,<br />

O criador, o dono e o defeito<br />

Soneto<br />

Modos para enfidalgar.<br />

Se o não souber, e vir rossim de geito,<br />

Chame o lacaio, e parta na janella,<br />

Mande que lh’o passeie na mòr cautella,<br />

Que inda que o não entenda, se ha respeito<br />

Saia na armada, e sossra paparotes,<br />

Damas ouça tanges, não lhe respique,<br />

Lembre-lhe sempre a quinta, o potro, o galgo.<br />

Que com isto e o favor de quatro amotes,<br />

De bom ouvir e crer, se parà a pique<br />

De um dia amanhecer um grão fidalgo.<br />

Soneto<br />

Conselhos a qualquer tol para parecer fidlgo, rico e discreto.<br />

Ainda sujeito a revisões 45<br />

86


Bpte a sua casaca de veludo;<br />

E seja capitão se quer dois dias,<br />

Converse à porta de Domingo Dias,<br />

Que péga fidalguia mais que tudo.<br />

Seja um magano, um picaro, um cornudo,<br />

Vá a palacio, e apoz das cortezias<br />

Perca quanto guanhar nas mercancias,<br />

E em que perca o alheio, esteja mudo.<br />

Ande sempre na caça e montaria,<br />

Dê nova solução, novo epitêlio,<br />

E diga-o sem proposito à porfia.<br />

Que em dizendo facção, pretexto, affecto,<br />

Será no entendimento da Bahia<br />

Mui fidalgo, mui rico, e mui discreto.<br />

87<br />

Soneto<br />

Descreve os passatempos que tinha na Vila de S. Francisco<br />

Ha cousa como estar em São Francisco?<br />

Ver como irmos ao pasto tomar fresco:<br />

Passa as negras, falla-se burlesco,<br />

Chamam-se todad, todas cahem no visco.<br />

O peixe roda aqui, ferve o marisco,<br />

Come-se ao grave, bebe-se do Tudesco,<br />

Vem barcos da cidade com refresco,<br />

Ha já tanto biscoito , como cisco.<br />

Chega a Faisca, falla, ao lusco fusco,<br />

Não cannça o paladar, rompe-me a casco.<br />

Joga-se em casa, em sendo o dia brisco:<br />

Vem chegando a Pascoa, e se eu m’emparco,<br />

Os lombos da tatú é o pão que busco.<br />

Ainda sujeito a revisões 46


Soneto<br />

Descreve o que era n’aquelle tempo a cidade da Bahia.<br />

A cada canto um grande conselheiro,<br />

Que nos quer governar cabana e vinho,<br />

Não sabem governar sua casinha,<br />

E podem governar o mundo inteiro.<br />

Em cada porta um frequentado olheiro,<br />

Que a vida do visinho e da visinha<br />

Pesquiza, escuta, espreita e esquadrinha,<br />

Para-o levar à Praça e do Terreiro<br />

Muitos mulatos desavergonhados,<br />

Trazidos pés os homens nobres,<br />

Posta nas palmas toda a picardia.<br />

Estupendas uzuras nos mercados,<br />

Todo os que não furtam muito pobresa:<br />

E eis aqui a cidade da Bahia.<br />

89<br />

Soneto<br />

A Florenciana May de Moralva, Dama Pernambucense.<br />

Senhora Florenciana, isto me embaça,<br />

Contares vos de mim tantos agrados,<br />

E estar eu vendo que por meas peccados<br />

Tenho para convosco pouca graça-<br />

Em casa publicais, no lar da Praça,<br />

Que sou homem capaz de altos cuidados<br />

E nunca me ajudais nos negregadas<br />

Qu tenho com Madama de Mombaça-<br />

Eu não sei como posso, ou como vivo<br />

Na pouca confiança que me dèstes,<br />

Ainda sujeito a revisões 47<br />

88


Depois que fui da Amor aljava ou crivo:<br />

Porque por mais mercês que me fizestes,<br />

Jamais me recebestes por captivo,<br />

Nem menos para genro me quizestes.<br />

Soneto<br />

Ao horroroso cometa que appareceu na Bahia poucos dias antes da<br />

memoravel peste chamada a Bicha, succedida no anno de 1686.<br />

Se é esteril, e fomes dá o cometa,<br />

Não fica no Brazil viva creatura,<br />

Mas ensina do juizo a Escriptura,<br />

Cometa não o dar senão trombeta.<br />

Não creio que taes fomes nos prometta<br />

Uma estrella barbada em tanta altura,<br />

Promettera talvez, e por ventura,<br />

Matar quatro Sayoens de Imperialeta.<br />

Se viera o cometa par corôas,<br />

Como presume muita gente tonta,<br />

Não nos ficára clerigo, nem frade.<br />

Mas elle vem buscar certas pessoas:<br />

Os que roubam o mundo com a vergonha,<br />

E os que á justiça faltam, e à verdade.<br />

91<br />

Soneto<br />

Responde a um amigfo com as novidades que vieram de Lisboa no anno<br />

de 1658.<br />

França está mui doente das ilhargas,<br />

Inglaterra tem dores de cabeça,<br />

Purga-se Hollanda, e temo lhe aconteça<br />

Ficar mui debilitada com descargas.<br />

Allemanha lhe applica ervas amargas,<br />

Ainda sujeito a revisões 48<br />

90


Botões de fogo, com que convalesça:<br />

Hespanha não lhe dá que este mal cresça,<br />

Portugal tem saude e forças largas.<br />

Morre Constantinopla, està ungida,<br />

Veneza engorda, e toma forças dobres,<br />

Roma está bem, e toda a Igreja boa.<br />

Europa anda de humores mal regida,<br />

Na America animaram muitos pobres,<br />

Estas as novas são que ha de Lisboa.<br />

92<br />

Soneto<br />

Por outro cometa que appareceu na era de 1690 chimereavam os<br />

Sebastianistas a vinda di Encuberto porque anticipadamente o esperavam<br />

n’aquelle anno, e o P. os pretende em vão deseganar, julgando tal apparição<br />

por impossivel.<br />

Estamos em noventa, era esperada<br />

De todo o Portugal e suas Conquistas<br />

Bom anno para tantos Bestianistas,<br />

melhor para illudir tanta burrada.<br />

Dê-se uma estrella pallida e barbada,<br />

E deduzem agora Astrologistas<br />

A vinda de um rei morto pelas listas,<br />

Que não sendo dos Magas é estrellada.<br />

Oh quem a um Bestianista perguntàra,<br />

Com que razão ou fundamento espera<br />

Um rei, que em terra d’Africa acabára.<br />

E se com Deus me dá, eu lhe dissera:<br />

Se o quiz restituir, não o matàra;<br />

E se o não quiz matar, não o escondêra.<br />

93<br />

Soneto<br />

A uma dama que se riu de ver mijar um estudante.<br />

Ainda sujeito a revisões 49


Inda que de eu mijar tanto gosteis,<br />

Que vos mijeis com rizo e alegria,<br />

Haveis de ver de rizo indo algum dia<br />

Com que de puro gosto vos mijeis.<br />

Então d’estés dois gostos sabereis<br />

Qual é melhor, e qual de mais valia,<br />

Se o mijarde vós na pedra fria,<br />

Se mijando eu tapar que não mijeis.<br />

Á fé que ahi fizareis desenganada,<br />

E então conhecereis de entre ambos nós,<br />

Qual é melhor, mijar ou ser mijada.<br />

Pois se nós nos mijarmos sós por sós,<br />

Haveis de festejar outra mijada<br />

Quando eu entre a mijar dentro de vós.<br />

Soneto<br />

Ao casamento de certo Advogado com uma moça mal reputada.<br />

Casou-se n’esta terra esta e aquela,<br />

Aquelle um gôzo filho de cadella,<br />

Esta tão donzellissima donzella<br />

Que muito antes do parto o sabia elle.<br />

Casaram por unir pelle com pelle,<br />

E tanto assim se uniram que elle e ella<br />

Com seu máo parecer ganha para ella,<br />

Com seu bom parecer ganhar para elle.<br />

Deram-lhe em dote muitos mil cruzados,<br />

Excellentes alfaias, bons adornos,<br />

De que estão os seus quartos bem amados.<br />

Por signal que na porta e seus contornos<br />

Um dia amanheceram bem contados<br />

Tres bacias de trampa e doze cornos.<br />

Ainda sujeito a revisões 50<br />

94


95<br />

Soneto<br />

Ao Padre Danazo da Silva por se metter a Procurador Universal.<br />

Deu agora a Frizão em requerente,<br />

Fiado em seu saber e boas antes,<br />

Será por essa via homem de partes,<br />

E irá, se fôr a queima, por agente.<br />

Má hora, que elle và por paciente<br />

Sendo agente de tantos Burandartes,<br />

Que atacando-lhe o ventre a puros fartes<br />

Come-os elle, mas não lhe põe o dente.<br />

N’este officio se val da companhia<br />

De um moderno que em vez de pello louro<br />

Pentêa as tranças de carniçaria.<br />

Doutor com borla de osso, mào agourp!<br />

Onde podia achar-se na Bahia,<br />

Que de um manso coelho fez um touro?<br />

96<br />

Soneto<br />

A uns clerigos que foram da cidade à casa do Vigario da Madre de Deus,<br />

achando-se n’ella o Poeta.<br />

Vieram sacerdotes dois e meio<br />

Para a casa do grande sacerdote<br />

Dous e meio couberam em um bote,<br />

Notavel carga foi para o grangeio.<br />

O desgraçado arraes, que ia no meio,<br />

Tanto que em terra poz um e outro zote,<br />

Se foi buscar a vida a todo o trote,<br />

Deixando á carga, a susto e o receio.<br />

Assustei-me de ver tanta clerzia,<br />

Que como o trago enferno de remella,<br />

Ainda sujeito a revisões 51


Cuidei vinham rezar-lhe a agonia.<br />

Porem ao pôr da meza, e portas n’ella,<br />

Conheci que vieram da Bahia<br />

Não mais que por papar a cabidella.<br />

97<br />

Soneto<br />

Ao Governador Antonio de Souza de Menezes chamado vulgarmente a<br />

Braço de prata.<br />

Sos Antonio de Souza de Menezes,<br />

Quem sóbe ao alto logar, que não merece.<br />

Homem sóbe, asno vai, burro parece,<br />

Que o subir è desgraça muitas vezes.<br />

A fortunilha auctora d entremezes<br />

Transpõe em burro heróe, que indigno cresce,<br />

Desando a roda, e logo homem parece,<br />

Que é discreta a fortuna em seus revezes.<br />

Homem ser eu que foi Vò Senhoria<br />

Quando o pirava da fortuna a roda,<br />

Burro foi ao subir tão alto clima.<br />

Pois alto:<br />

vá descendo onde jazia,<br />

Verá quando melhor se lhe acommoda<br />

Ser home em baixo do que burro em cima.<br />

98<br />

Soneto<br />

A D. João deAlencastro, vindo succeder no governo da Bahia a Antonio<br />

Luiz Gonçalves da Camara Coitinho.<br />

Quando Deus redemiu da tyrannia,<br />

Da mão de Pharaò endurecido,<br />

Ao Povo Hebreo amado e esclarecido,<br />

Paschoa ficou da redempção o dia.<br />

Ainda sujeito a revisões 52


Paschoa de flores, dia de alegria,<br />

A esse povo foi tão affligido<br />

O dia, em que por Deus foi redemido,<br />

O qual sois vós, Senhor, Deus da Bahia.<br />

Pois mandado pela alta Magestade Nos remiu de tão triste captiveiro,<br />

nos livrou de tão vil calamidade.<br />

Quem ser pòde senão um verdadeiro<br />

Deus, que veio extirpar d’esta cidade<br />

Toda a afflição do Povo Brazileiro<br />

99<br />

Soneto<br />

Descripção da cidade de Sergipe d’El-Rei.<br />

Tres duzias de cazebres remendados,<br />

Seis beccos de mentrastos entupidos,<br />

Quinze soldados rotos e despidos,<br />

Doze porcos na Graça bem criados.<br />

Dois conventos, seis frades, tres letrados,<br />

Um Juiz com bigodes sem ouvidos,<br />

Tres presos de piolhos carcomidos,<br />

Por comer dois meirinhos esfaimados.<br />

Damas com sapatos de baeta,<br />

Palmilha de tamanca como frade,<br />

Saia de chita, cinta de racheta.<br />

O feijão, que só daz ventosidade,<br />

Farinha de pipoca, pão que greta,<br />

De Sergipe d’El-Rei esta é a cidade.<br />

Poe entre a Beribe e o Oceano,<br />

Em uma area safia e alagadiça,<br />

Soneto<br />

Descripção da Villa do Recife.<br />

<strong>100</strong><br />

Ainda sujeito a revisões 53


Jaz o Recife, povoação mestiça<br />

Que o Belga edificou, impiotyranno.<br />

O povo è pouco, e muito pouco urbano,<br />

Que vive de uma pura erva linguiça,<br />

Unha de velha insipida e enfermissa,<br />

E camarões de charco em todo o anno.<br />

As damas cortezaãs e mui rasgadas,<br />

Olhas podridas, sopas pestilencias,<br />

Sempre com purgações, nunca purgadas.<br />

Mas a culpa tem Suas Reverencias,<br />

Que as trazem tão rompidas e escaladas,<br />

Com cordões, com bentinhos e indulgencias.<br />

Ainda sujeito a revisões 54

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