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UTOPIA E OBJETO - Polêm! - UERJ

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LABORE<br />

Laboratório de Estudos Contemporâneos<br />

POLÊM!CA<br />

Revista Eletrônica<br />

<strong>UTOPIA</strong> E <strong>OBJETO</strong> a<br />

EDSON LUIZ ANDRÉ DE SOUSA<br />

Psicanalista. Analista Membro da APPOA. Doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de<br />

Paris VII. Pós-doutorado na Université de Paris VII e na Ecole des Hautes Etudes em Sciences Sociales –<br />

Paris (2009-2010). Professor do PPG Psicologia Social e PPG Artes Visuais – UFRGS. Coordenador junto<br />

com Maria Cristina Poli do LAPPAP – Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política. Pesquisador<br />

do CNPQ. Pesquisador Associado do Lipis – PUC-RJ, Professor convidado Deakin University (Melbourne)<br />

e do Instituto de Estudos Críticos (Cidade do México). edsonlasousa@uol.com.br<br />

Resumo: Este artigo parte da hipótese de aproximar os conceitos de objeto a desenvolvido por Jacques Lacan<br />

do conceito de utopia. Partimos da idéia de pensar a utopia em sua vertente iconoclasta, ou seja, cumpre uma<br />

função de esvaziamento de ideais, exatamente como pensa Lacan com sua invenção do objeto a. O objeto a ,<br />

injeta na relação do sujeito ao mundo uma perturbação, acionando uma espécie de não lugar (u-topos) em<br />

relação ao desejo. Acreditamos que é a partir desta perturbação que uma nova enunciação se torna possível.<br />

Palavras-chaves: utopia, objeto a, angustia<br />

UTOPY AND OBJECT a<br />

Abstract: This paper part of the hypotheses to approach the concepts of the object a developed by Jacques<br />

Lacan to the concept of utopia. We think the idea of a utopia in its iconoclastic side, ie fulfills a function of<br />

emptying the ideals, exactly how proposed Lacan with his invention of the object a. The object a , injects into<br />

the subject's relationship to the world a disturbance, triggering a sort of non-place (u-topos) in relationship to<br />

desire. We believe it is from this disruption that a new enunciation becomes possible.<br />

Keywords: utopia, object a, anguish<br />

Universidade do Estado do Rio de Janeiro<br />

R São Francisco Xavier, nº 524 - 2º andar, sala 60 - Maracanã - Rio de Janeiro - RJ<br />

CEP 24.590-013 Tels: (0xx21) 2334-0887/2334-0888 e-mail: laboreuerj@yahoo.com.br<br />

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Revista Eletrônica<br />

<strong>UTOPIA</strong> E <strong>OBJETO</strong> a 1<br />

É necessário viver a vida ao limite, não segundo os dias, mas segundo a profundidade. Não é preciso fazer o<br />

que vem depois, se alguém sente que tem mais participação no que vem ainda depois , no longínquo, na mais<br />

remota distância. Pode-se sonhar enquanto os outros salvam, se esses sonhos são mais reais para alguém do<br />

que a realidade e mais necessários que o pão. Numa palavra: é preciso tornar a mais extrema possibilidade<br />

que alguém traz em si o critério de sua vida, pois nossa vida é grande e acomoda tanto futuro quanto somos<br />

capazes de carregar.<br />

Rainer Maria Rilke (2007, p. 67)<br />

Ele quer ser promotor público, fazer justiça mas sofre de uma timidez que o<br />

paralisa. A vida é uma espécie de contínuo eclipse, vive em uma névoa de sombra. Como<br />

os personagens de Antonioni no clássico filme Eclipse: o silêncio nas relações amorosas, o<br />

olhar que se perde, a imagem que falha, o beijo que fica a distância cortado pela lâmina de<br />

vidro da janela. Sobra pouco dos sonhos, mesmo que tenha a sensação de tocá-los logo que<br />

termina suas leituras.<br />

Horas depois, já não se lembra bem o que Nietzche dizia, e nem aquela passagem<br />

que tanto o marcou de Tolstói na morte de Ivan Ilitch. Ah, sim, recorda que morrera na<br />

verdade por uma negligência consigo, tentando agradar sua mulher. Sim, foi depois de uma<br />

queda ajeitando talvez uma cortina na casa que Ivan foi se deparando com sua dissolução.<br />

Homens de nada, desenhos de quase, como os de Diego Rayck que vi ontem desenhado na<br />

parede do Arquipélago 2 , espaço de arte contemporânea aqui de Florianópolis. E eram tantos<br />

os sonhos. De quem? No último concurso chegou na fase final mas, claro, não suportou o<br />

olhar dos juízes na prova oral, na prova moral, na prova urinol. Queria gritar, como Ivan,<br />

1 Este texto é inédito, contudo recupera algumas passagens de uma discussão em torno da angústia e que<br />

publiquei em um artigo intitulado A imagem perfeita na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre,<br />

nº 34, em 2008.<br />

2 Espaço de arte contemporâneo em Florianópolis fundado pelas artistas Leticia Cardoso e Fabiana<br />

Wielewicki.<br />

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que lembra bem, isto não esqueceria nunca, gritava de dor em seu leito de morte. Alguns de<br />

seus sonhos se diluem no álcool. Preocupação que o faz procurar análise pois o pai e dois<br />

tios morreram de cirrose hepática.<br />

O pai? Tu o pai, anagrama de utopia, esta que Lacan define em Kant com Sade<br />

como sustentada por uma fantasia (Lacan, 1975, p.789). “Floresta da fantasia” que paralisa<br />

o sujeito pois lembra Lacan neste mesmo texto: “Há uma estática da fantasia pela qual o<br />

ponto de afânise, suposto em S barrado, deve ser, na imaginação, infinitamente<br />

adiado”(Lacan, 1975, p. 786). Mas, ele quer acordar. Vive, diz ele, enclausurado. Aqui<br />

penso nos cubos de poeira e traças de Aline Dias, artista de Florianópolis, em seu apego<br />

crítico e irônico a um ‘acervo inútil’ segundo comentário de Fernando Lindote.<br />

Na primeira sessão diz que estava mijando quando lembrou de sua fase niilista que o<br />

fez abandonar uma relação conjugal à qual nunca verdadeiramente se entregou e voltar para<br />

a casa de uma tia que o criou desde pequeno. Ali tinha sossego para ler sem ser<br />

incomodado. O pai? Quando nasceu já estava separado de sua mãe e o ‘perdeu’ quando<br />

tinha 14 anos. Nenhuma imagem. Poucas vezes tinha visto o pai. Insisto! Ah, sim lembra de<br />

uma única vez em que o pai o levou para um passeio. Pegaram a estrada. Ele tinha talvez 7<br />

anos. Param em um posto de gasolina de estrada e ele quer ir ao banheiro. Vai sozinho,<br />

como tem sido tudo em sua vida. Chega no banheiro e vê dois mictórios. Não alcança. Não<br />

sabe o que fazer e se mija nas calças. Vergonha! Sai apressado e fica ao sol esperando que<br />

sua calça seque antes que o pai chegue. Não há tempo suficiente. O pai o vê e diz: “Meu<br />

filho, um homem pode mijar em qualquer lugar!” Se surpreende com esta lembrança que<br />

estava esquecida. Algumas lágrimas que disfarça, como estes líquidos preciosos que o<br />

corpo secreta diluindo, em parte, para sua surpresa, a negligência que sempre supôs em seu<br />

pai. Não recebera a mijada que imaginara mas um ensinamento que lhe dá uma súbita<br />

sensação de alegria. Continua ele: “mijar em qualquer lugar” traz a marca de uma fronteira:<br />

não nas calças. Para ser promotor precisaria ser homem e parar de se mijar diante destes<br />

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olhares. Penso que esta passagem indica uma retórica da castração que é o ponto que Lacan<br />

insiste quando aborda a função do objeto a (Assoun, 2000, p. 90).<br />

Proponho aqui, brevemente, algumas notas de aproximação entre os conceitos de<br />

utopia e objeto a. Utopia pensada em sua vertente iconoclasta, ou seja, muito mais em uma<br />

função de esburacamento de ideais, exatamente como pensa Lacan com sua invenção de<br />

objeto a. O objeto a serve muito mais a desclassificar (como propõe Bataille em seu<br />

conceito de informe).(Bataille, 1968, p. 168) . Desclassificar o sujeito, levá-lo a uma<br />

perturbação que lhe restitua uma chance de enunciação mesmo em estado de desespero.<br />

Aqui encontramos a ética da psicanálise. Lacan é preciso nesta perspectiva utópica quando<br />

lembra em seu texto “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache” o seguinte:<br />

“Para ter acesso a esse ponto, situado para-além da redução dos ideiais da pessoa, é<br />

como objeto a do desejo, como aquilo que ele foi para o Outro em sua ereção de<br />

vivente, como o wanted ou unwanted de sua vinda ao mundo, que o sujeito é<br />

chamado a renascer para saber se quer aquilo que deseja... É esse o tipo de verdade<br />

que, com a invenção da análise, Freud trouxe à luz.” (Lacan, 1975, p. 689)<br />

Esta luz nos joga poeira nos olhos, às vezes lágrimas quando lembramos de imagens<br />

como esta à beira de uma estrada e que relançam os escombros de dentro. Os escombros<br />

interessam particularmente, aos psicanalistas, porque dão boas pistas do sonho que animou<br />

as construções/desenlaces e, quem sabe, podem informar, um pouco, sobre a lógica que fez<br />

ruir o pequeno castelo de cartas. Sabemos que os projetos que acionam nossas construções<br />

de vida, nossos desejos, nossas esperanças, nossas utopias, nossos prazeres turvos, nossos<br />

sofrimentos, nossos sintomas são acionados pelo fantasma. Jacques Lacan inicia o<br />

Seminário A Angústia propondo uma equivalência entre a estrutura do fantasma e a<br />

estrutura da angústia (Lacan, s.d. p. 5).. Esta é uma pista inicial que não podemos esquecer<br />

pois ambos conceitos nos jogam, cada um a seu modo, em zonas de perturbação.<br />

A perturbação da angústia produz sombras, indica sobras, convida a obras pois<br />

escancaram a função do objeto a que é, como lembra Lacan, “o que resta de irredutível<br />

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nesta operação total de surgimento do sujeito no lugar do Outro”( Lacan, s.d. p. 181). A<br />

ligação entre angústia e objeto a é tão visceral que Lacan chega a propor pensar a angústia<br />

como “tradução subjetiva do objeto a”( Lacan, s.d. p. 99) Para situar a relevância desta<br />

discussão não podemos esquecer que o objeto a é uma espécie de dejeto, portanto, temos<br />

que pensá-lo sempre em queda, como o que “resiste a ser assimilado em uma função<br />

significante. Dejeto que resiste a ‘significantização’ fundamento de todo sujeito do desejo<br />

(Lacan, s.d. p. 193).<br />

A perturbação que o fantasma produz também nos interessa mesmo que Lacan,<br />

ironicamente, nos provoque dizendo que o neurótico do seu fantasma não faz grande coisa<br />

(Lacan, s.d. p.49). Vejamos, o que podemos fazer? Trata-se de uma tensão, oposição<br />

,afirma Lacan, entre Sujeito barrado e objeto a. No pequeno traço de articulação entre as<br />

duas letras podemos fazer dois cortes: um horizontal e um vertical. No corte horizontal<br />

teríamos portanto V (disjunção) e Λ (conjunção). No corte vertical teríamos > (maior) e <<br />

(menor). Estamos, inevitavelmente, em desequilíbrio tentando encontrar o sentido da barra<br />

que nos divide e saber qual o objeto que pode ser perfurado, espetado, capturado por esta<br />

barra. Abrimos aqui um espaço para a falácia do objeto, a mesma que captura o peixe no<br />

anzol. Trata-se em todas as letras de pensar esta barra anzol com um pequeno a em sua<br />

ponta que como isca cumpre a função de um engano. Ninguém escancara seus ‘azinhos’<br />

assim de forma tão transparente. Primeiro porque deste objeto, o sujeito nada sabe. Ele, o<br />

sujeito, está muito mais na posição do peixe do que do pescador. Portanto, para se defender<br />

deste mar (sexual) aberto da angustia, o sujeito se defende com um a postiço. Trata-se, diz<br />

Lacan, de um objeto a que serve de defesa e que o protege do Outro. (Lacan, s.d. p. 50) A<br />

falácia do objeto no fantasma do neurótico é precisamente o que Lacan nomeia como a<br />

demanda. Diz Lacan: “O verdadeiro objeto que busca o neurótico é uma demanda. Ele que<br />

quer que lhe demandem algo, que lhe supliquem. A única coisa que não quer é pagar o<br />

preço”(Lacan, s.d. p. 51). Mas, por não querer pagar o preço, a conta surge em outro lugar,<br />

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com os sacrifícios inscritos no corpo, no sofrimento que tão bem conhecemos. Façamos<br />

aqui um corte. O corte será nosso norte, corte será nossa busca de perfeição e vocês verão<br />

logo em seguida o porquê.<br />

Talvez nunca tenhamos visto na vida uma imagem perfeita. Isto não nos impede de<br />

sonhar com ela, de buscá-la e mesmo de acreditar que já tivemos perto de nossos olhos ou<br />

em nossas mãos. Contudo, sempre falta algo: aquele detalhe, que a primeira vista parece ser<br />

tão insignificante, e que, contudo, ressurge para perturbar a forma. Imagine aquela cena que<br />

se guardava tão preservada de todas impurezas do espírito, do olhar crítico, da poeira do<br />

tempo. Ela se turva quando a reencontro na tentativa de recuperar o prazer de um mítico<br />

encontro com a perfeição. Desejamos a perfeição, mas o desejo é ilusório lembra Lacan.<br />

Por quê? “Por que se dirige sempre para outro lugar, a um resto, resto que é o fundamento<br />

da relação do sujeito ao Outro”( Lacan, s.d. p. 257). Mas não percamos tão rapidamente as<br />

esperanças! Apesar de tantas decepções continuamos buscando a forma perfeita e podemos<br />

dizer que a horizontalidade inventada por Freud que abriu espaço para o sofrimento<br />

permitindo que ele se deitasse confortavelmente em um divã e pudesse narrar seus<br />

desencontros de formas (seu mal estar entre a distância do sonho/luz e a as pequenas<br />

sombras que encontramos), enfim, é esta a invenção freudiana que tem algo a dizer sobre o<br />

que é uma imagem perfeita.<br />

Hilda Hilst dedica o livro Do Amor a seu pai. Ali ela declara “Foi ele quem me disse<br />

que a perfeição é a morte. Não será essa a maior certeza de nossa<br />

imortalidade?”(Hilst,1999, p.14) Aqui adianto uma pista crucial na seqüência de nosso<br />

argumento, ou seja, os laços de implicação entre desejo, perfeição e morte. Reli<br />

recentemente um pequeno texto de Catherine Millot onde ela transcreve um depoimento de<br />

Lacan a uma pergunta que ela provocativamente lançara para ele em 1974: O desejo de<br />

morte devemos situá-lo como desejo de dormir ou como desejo de despertar? Segundo<br />

Millot, Lacan teria ficado quase meia hora em silêncio e depois discorreu brevemente<br />

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sobre o sentido que para ele tinha o despertar e o dormir. O que temos acesso são as<br />

anotações de Catherine Millot. Transcrevo um trecho que me impressionou muito e vai me<br />

ajudar na apresentação de algumas articulações que seguirão. Teria dito Lacan em<br />

determinado momento: “Jamais despertamos: os desejos entretêm os sonhos. A morte é um<br />

sonho, entre outros sonhos que perpetuam a vida, e que nos faz abrigar no mítico. É do lado<br />

do despertar que se situa a morte [...]. Se não houvesse a linguagem não nos meteríamos a<br />

sonhar de se estar morto como uma possibilidade”.(Lacan , s.d.mimeo,)<br />

Segue uma pequena pontuação em um diálogo inicial com o tema da utopia e<br />

objeto a. Pontuação que surge como pequenos ruídos, rasuras mínimas neste texto denso<br />

que a experiência da angústia nos lança. Esta pontuação é como uma reticência Será uma<br />

demonstração visual e acredito inquestionável de que existe a forma perfeita. Trata-se de<br />

um trabalho de Jailton Moreira 3 , grande amigo e um dos artistas plásticos mais perspicazes<br />

que conheço e que vai nos mostrar o que é o objeto a! Nomearia esta primeira pontuação<br />

de A imagem perfeita. Penso esta “imagem perfeita” como o corte iconoclasta que nos<br />

mostra que o objeto que temos contato nada mais é do que uma espécie de escória da<br />

fantasia (Lacan,2004,).<br />

DO CUBO À ESFERA<br />

O primeiro ponto evoca um trabalho em vídeo de Jailton Moreira intitulado “A<br />

forma perfeita” 4 onde vemos nas mãos do artista um estilete com o qual tenta transformar<br />

um cubo de isopor em uma esfera. Vai aparando “as arestas” até o limite do<br />

desaparecimento do isopor e nada restar em suas mãos.<br />

3 Jailton Moreira dirige, em Porto Alegre, junto com Elida Tessler desde 1993 o Torreão – Espaço de<br />

intervenções de artistas e de discussões sobre arte e cultura contemporânea .<br />

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Estas imagens são muito próximas do espírito da reflexão de Rubens Alves quando<br />

escreve: “Dizer o nome das coisas que não são, para quebrar o feitiço daquelas que são”<br />

(Alves, 1992, p. 84). O ato de criação como corte na transfiguração da forma – do cubo à<br />

esfera. A perfeição é, justamente, o corte. A perfeição é o que indica o impossível, o<br />

inimaginável da forma escancarando a falta. Qual a dificuldade de ver o objeto a? Lacan<br />

insiste que a ambigüidade se deve ao fato que só podemos imaginar este objeto no registro<br />

especular. Mas, não é ali que está. Trata-se, segundo ele, de instituir um outro modo de<br />

‘imaginarização’, onde se pudesse definir este objeto (Lacan, s.d. p. 39).<br />

Passagem do cubo à esfera. Esfera como a forma perfeita já tão indicada por Platão<br />

na célebre passagem do Banquete onde busca ilustrar uma imagem possível do amor.<br />

Imagem emblemática também do funcionamento de todo pensamento narcísico que acredita<br />

sustentar uma certa ordem no mundo. Copérnico fez um pequeno corte ao indicar que a<br />

Terra não estava no centro do sistema solar mas não conseguiu romper com a idéia da<br />

esfera, do círculo perfeito, que como sabemos, era o ponto de sustentação do paradigma<br />

religioso: Deus no centro desta forma perfeita. Como lembra Severo Sarduy em seu ensaio<br />

sobre o Barroco, o ato radical (diríamos o ato analítico) foi mesmo o de Kepler ao mostrar<br />

que é na forma de uma elipse que os planetas se movimentam em torno do sol (Sarduy,<br />

1975, p. 93). A elipse funciona como queda da imagem da esfera que sustentava, até então,<br />

o mundo. Poderíamos dizer que cada corte de estilete, (estilo), barra o sujeito em seu ideal<br />

de gozo e de encontro desta sonhada perfeição. Não teríamos neste ponto a indicação da<br />

função da castração como protegendo o sujeito do encontro catastrófico com o gozo? Se há<br />

perfeição seria mais do lado do corte já que finalmente a imagem perfeita é, em todas as<br />

4 Trabalho de Jailton Moreira apresentado na exposição Trabalhos Insistentes, Galeria Obra Aberta, Porto<br />

Alegre, de 5 de outubro a 8 de novembro 2002. DVD com duração de 4:15 minutos.<br />

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letras, a imagem perdida. Parodiando Lacan na célebre afirmação no seminário O desejo e<br />

sua interpretação: toda perfeição tem uma estrutura de ficção. 5 .<br />

Uma porta que se abre neste ponto é o de pensar o objeto a como Utopia. Objeto a<br />

como causa, em uma posição evanescente mas que nos coloca na via de uma ética do<br />

desejo, convocando o sujeito a novas posições, novos cortes de estilete, enfim, tentar<br />

produzir e construir um estilo. Em que sentido então utopia? No sentido em que diz Fredric<br />

Jameson que a vocação de toda a utopia é o fracasso.<br />

O seu valor epistemológico está nas paredes que ela nos permite perceber em<br />

torno das nossas mentes, nos limites invisíveis que nos permite detectar, por<br />

mera indução, no atoleiro das nossas imaginações no modo de produção. [...] o<br />

texto utópico realmente nos dá a vívida lição daquilo que não podemos<br />

imaginar: só que não o faz pela imaginação concreta, mas sim por meio dos<br />

buracos no texto...(Jameson, 1997, p. 85)<br />

Lacan insiste nesta falta de imagem, nesta invisibilidade em vários momentos. Diz<br />

por exemplo que objeto a, suporte do desejo no fantasma, não é visível naquilo que o<br />

constitui (Lacan, s.d., p. 40). Aponta também que “não há imagem da falta”, ponto que<br />

precisaríamos sem dúvida nos deter (Lacan, s.d. p. 40). Quando aparece algo neste lugar,<br />

diz ele, aí sim a falta vem a faltar (estamos como sabemos na catástrofe da angústia).<br />

Quanto mais o sujeito tenta se aproximar deste objeto que chamamos impropriamente, diz<br />

Lacan, “a via da perfeição da relação de objeto”(Lacan, s.d. p. 40) tanto mais ele, o sujeito,<br />

se engana. Por isto o objeto a cumpre uma função iconoclasta, de destruição de imagens já<br />

que como lembra a Bíblia a perfeição, o absoluto indicado na idéia de Deus, não pode ser<br />

nomeado. Um pequeno a (utópico?) que injeta desordem. ( Lacan, s.d., p. 137)<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

5 Ver LACAN, Jacques. Seminário 6. O desejo e sua interpretação (1958/59), Associação Psicanalítica de<br />

Porto Alegre, s/d. Neste seminário Lacan afirma “Toda verdade tem uma estrutura de ficção”.<br />

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ALVES, Rubens. A alegria de ensinar. São Paulo: Ars Poética, 1992<br />

ASSOUN, Paul Laurent. O olhar e a voz. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000<br />

BATAILLE, Georges. Dictionnaire Critique in: Documents, Paris, Gallimard, 1968<br />

HILST, Hilda. Do Amor. São Paulo: Edith Arnhold/Massao Ohno Editor, 1999<br />

JAMESON, Fredric. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997<br />

LACAN, Jacques. Ecrits. Paris: Seuil, 1975<br />

LACAN, Jacques. L’Angoisse, Séminaire 1962-1963, Document interne à l’Association Freudienne,<br />

Paris, s/d<br />

LACAN, Jacques. Le Séminaire livre X, L’Angoisse, Paris, Seuil, 2004<br />

LACAN, Jacques. Au delá du réveil entrevista com Catherine Millot, mimeo. s/d.<br />

RILKE, Rainer Maria. Cartas do poeta sobre a vida. São Paulo: Martins Fontes, 2007<br />

SARDUY, Severo. Barroco. Paris: Seuil, 1975<br />

Recebido: Junho de 2009<br />

Revisado e aceito: julho de 2009<br />

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