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R$ 2,00 - Revista Zé Pereira

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<strong>R$</strong> 2,<strong>00</strong>


Allah-la-ô!<br />

Como todos sabem o ano no Brasil só começa depois do carnaval e a gente<br />

teve de dar um perdido até a folia chegar. Por sorte, 2<strong>00</strong>8 começou bem<br />

mais cedo e a espera nem foi tão grande assim. O bloco da <strong>Zé</strong> <strong>Pereira</strong> está<br />

chegando às ruas e o desfile é digno de Grupo Especial: Gerson King Combo,<br />

o nosso Rei Black vem de destaque apresentando ao leitor a história da soul<br />

music carioca, num passeio pelo Mercadão de Madureira; o mestre Vladimir<br />

Carvalho nos honra com um ensaio sobre xilogravura; Marcello Quintanilha<br />

manda uma HQ inédita de Barcelona; o Urubucamelô volta a atacar, agora<br />

em quadrinhos; Marcelo Moutinho publica o seu primeiro poema; Adriana<br />

Lisboa dá continuidade às aventuras do sujeito-macho <strong>Zé</strong> <strong>Pereira</strong>; e o drama<br />

dos caiçaras da Praia Grande da Cajaíba, em Paraty, por Tadzia Maya.<br />

Mas tem muito mais. Boas leituras.


CONSELHO EDITORIAL<br />

Anna Azevedo, Eduardo Souza Lima, Mauro Trindade,<br />

Olívia Ferreira, Pedro Garavaglia, Roberto Ribeiro.<br />

EDITOR<br />

Eduardo Souza Lima<br />

PROJETO GRÁFICO<br />

Radiográfico (www.radiografico.com.br)/ Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia,<br />

COLUNISTA<br />

Arnaldo Branco (www.gardenal.org/mauhumor)<br />

COORDENADOR DO FOLHETIM<br />

Marcelo Moutinho (www.marcelomoutinho.com.br)<br />

REDATORES<br />

Bruno Porto e Eduardo Souza Lima e Mauro Trindade<br />

REVISÃO<br />

Mauro Trindade<br />

CAPA<br />

Gerson King Combo<br />

por André Vieira<br />

COLABORARAM NESTA EDIÇÃO<br />

Adriana Lisboa (www.adrianalisboa.com.br), Ana Paula Conde, André Vieira (http://andrevieira.com), Barbara Copque, Dimmi Amora, Estevão<br />

Garcia, Fernando Gerheim, José Aguiar (www.joseaguiar.com.br), Leo Aversa (www.leoaversa.com), Luiz Henriques (http://arsgratiars.blogspot.<br />

com), Marcelo Moutinho, Marcello Quintanilha, Silvio Rabaça, Tadzia Maya, Vanesca Soares, Vladimir Carvalho, Xico Carvalho.<br />

SITE<br />

Marcos Gurgel (programação), Radiográfico (design) e Eduardo Souza Lima (edição)<br />

www.revistazepereira.com.br<br />

CORRESPONDÊNCIA<br />

Rua Senador Euzébio 6/4, Flamengo<br />

Rio de Janeiro/RJ<br />

CEP 22250-080<br />

TELEFONE<br />

(21) 2553-5910<br />

GERENTE DE MARKETING<br />

Helio Eduardo Lopes helio@revistazepereira.com.br<br />

E-MAILS<br />

CORRESPONDÊNCIA cartas@revistazepereira.com.br<br />

DEPARTAMENTO COMERCIAL comercial@revistazepereira.com.br<br />

Os textos assinados também refletem, necessariamente, a opinião da revista.<br />

TIRAGEM DESTA EDIÇÃO<br />

2.<strong>00</strong>0 exemplares<br />

A revista ‘<strong>Zé</strong> <strong>Pereira</strong>’ é uma publicação mensal da Hy Brazil 2<strong>00</strong>1 Filmes e Livros Ltda. (www.hybrazilfilmes.com)<br />

número 4/ano 2/ fevereiro de 2<strong>00</strong>8<br />

ARISTOCRACIA CARIOCA:<br />

Gerson King Combo<br />

Um passeio com o Rei Black pela soul<br />

music carioca e pelo Mercadão de<br />

Madureira, guiado por Dimmi Amora<br />

(texto) e André Vieira (fotos).<br />

POESIA: Banho<br />

Marcelo Moutinho faz sua estréia<br />

como poeta.<br />

CONTO: O rapto do 464<br />

Quem manda nessa porra é a torcida do<br />

Urubu! Por Luiz Henriques.<br />

LIÇÃO DE HISTÓRIA:<br />

Foi a imprensa que inventou<br />

o Rio de Janeiro<br />

Silvio Rabaça entrevista o historiador<br />

Antonio Edmilson Martins Rodrigues.<br />

ESPECIAL:<br />

Folheto da viagem (xilográfica)<br />

ao reino do primo Xico.<br />

Um ensaio do cineasta Vladimir Carvalho<br />

sobre xilogravuras de Xico Carvalho.<br />

A TIJUCA GANHA AS TELAS<br />

“Saens Peña” é coisa de cinema.<br />

Por Estevão Garcia.<br />

S.O.S. VILA OPERÁRIA<br />

Conjunto de casas construído por <strong>Pereira</strong><br />

Passos há mais de um século sofre com o<br />

descaso da Prefeitura.<br />

Por Ana Paula Conde (texto)<br />

e Barbara Copque (fotos).<br />

A PRAIA QUE ERA GRANDE<br />

Tadzia Maya conta como os caiçaras<br />

foram expulsos de Paraty.<br />

SÉRIE: Urubucamelô em<br />

“A Bronzeada é minha Madeleine do<br />

Proust”. Uma história em quadrinhos<br />

de Fernando Gerheim (roteiro) e José<br />

Aguiar (desenhos)<br />

04<br />

13<br />

14<br />

16<br />

20<br />

24<br />

28<br />

32<br />

42<br />

CABARÉ DE FAMÍLIA<br />

A história do Cine Íris tem semelhanças com a<br />

de outro centro de diversões: O Moulin Rouge.<br />

Uma reportagem de Vanesca Soares.<br />

RIO DE JANEIRO, SEM TÍTULO<br />

Pedra, água e areia.<br />

Um ensaio fotográfico de Leo Aversa.<br />

QUADRINHOS:<br />

Ave Maria, cheia de graça,<br />

o Senhor é convosco.<br />

O Detalhes tão pequenos de nós dois.<br />

Por Marcello Quintanilha.<br />

FOLHETIM:<br />

As aventuras de um <strong>Zé</strong> <strong>Pereira</strong><br />

Em “O anel”, Adriana Lisboa deixa nosso herói<br />

em maus lençóis. Conseguirá João Ximenes,<br />

que escreve o quinto capítulo,<br />

tirá-lo dessa fria?<br />

ILUSTRE DESCONHECIDO<br />

BUMBO DO ZÉ<br />

A hora do Febeapá 2<strong>00</strong>7<br />

MAL NECESSÁRIO<br />

SU-<br />

MÁ-<br />

RIO<br />

46<br />

50<br />

55<br />

60<br />

62<br />

63<br />

64


aristocracia carioca: Gerson King Combo<br />

O MERCADÃO<br />

DO REI BLACK<br />

texto: DIMMI AMORA<br />

fotos: ANDRÉ VIEIRA<br />

Gerson compra arruda para se proteger do<br />

mal-olhado na banca de seu Artur Costa<br />

O chapéu com penacho e a capa preta ficam no armário do apartamento<br />

simples, no andar térreo, na Rua Carvalho de Souza, área<br />

central de Madureira. Para ir às compras, feitas todos os sábados<br />

pela manhã no Mercadão de Madureira, Gerson Rodrigues Cortes<br />

— 63 anos, carioca, flamenguista, viúvo duas vezes, um filho, uma<br />

neta — leva do traje que o tornou Gerson King Combo, o rei da black<br />

music no Brasil, um único ornamento: o cordão grosso com pingentes<br />

de dente de tigre e microfone de bronze.<br />

4 5


Diante de tanta quinquilharia brilhante vinda<br />

da China que hoje toma conta das lojas do<br />

Mercadão, Gerson não teria vida fácil se quisesse<br />

brilhar por ali, como brilhou nos subúrbios do<br />

Rio na década de 70. Anônimo, e tranqüilo com<br />

esta condição, ele vagueia pelos corredores que<br />

abrigam as mais de 6<strong>00</strong> lojas do mercado inaugurado<br />

em 1959 em busca dos produtos indispensáveis,<br />

de novas paixões de consumo e do trivial.<br />

Enquanto passeia, um galho de arruda,<br />

um óculos escuro ou um animal à venda puxam<br />

uma lembrança do homem que está presente na<br />

música popular desde a era do rádio. Apesar de<br />

todos os revezes nestas quatro décadas, Gerson e<br />

o Mercadão mantêm-se vivos e ativos. Neste passeio<br />

pelo maior shopping popular do país, o rei<br />

do black conta à <strong>Zé</strong> <strong>Pereira</strong> as histórias do início<br />

do rock e da black music por aqui, de racismo,<br />

das alegrias, das decepções, do subúrbio e, claro,<br />

do Mercadão.<br />

CAPA PRETA<br />

Ao lado do presépio de Natal montado pela<br />

administração do Mercadão, fica a Orixás em Festa,<br />

loja de artigos religiosos. Velas de sete dias finas<br />

estão em promoção a <strong>R$</strong> 1,45. Já as máscaras<br />

de madeira, ornadas com pedras e marfim, importadas<br />

da Nigéria, podem valer de <strong>R$</strong> 2<strong>00</strong> a <strong>R$</strong><br />

3.<strong>00</strong>0. Na frente da loja e ao lado do presépio, uma<br />

imagem de 1,80 m do exu Tranca Rua das Almas,<br />

uma entidade cultuada nas religiões afro-brasileiras,<br />

está vestida com uma capa preta que custa <strong>R$</strong><br />

350. A imagem não está mais à venda.<br />

Desde que o dono da loja, Pedro Silva, colocou-a<br />

na porta, a imagem virou objeto de culto.<br />

Mulheres beijam-na. Semanalmente garrafas de<br />

cachaça colocadas como oferenda são recolhidas<br />

pelos funcionários. Semanas atrás, Latifa, neta de<br />

Gerson, foi passear com o avô e vendo a imagem<br />

do homem negro, imponente e risonho vestido<br />

com a capa preta não hesitou:<br />

— Vovô!<br />

Gerson é católico, vai à missa todos os domingos<br />

na Paróquia do Santo Sepulcro, vizinha à<br />

sua casa, respeita as religiões afro, mas não gosta<br />

da semelhança. A capa preta, que é a marca de<br />

seu visual, tem outra origem. A idéia nem é originalmente<br />

black. Quem deu-a foi o instrumentista<br />

Cesar Camargo Mariano, branco o suficiente<br />

para ser barrado numa boate no Harlem, em<br />

Nova Iorque. No início da década de 70, Gerson<br />

excursionava com a banda de Wilson Simonal<br />

pelos Estados Unidos. Cesar era um dos músicos<br />

e vendo o visual dos negros deu a idéia ao então<br />

Gerson Côrtes.<br />

— Estava no Harlem com o Simonal e o Cesar<br />

Camargo. Eu era tímido e o Cesar dizia para eu<br />

adotar as roupas que os negros usavam lá. Ele dizia:<br />

“Vai lá para Madureira com isso que você vai<br />

arrebentar. Bota capa, luva, bota esta porra toda”.<br />

Eu falava para ele que não ia usar porque os caras<br />

eram cafetões. Ele dizia que aqui no Brasil era<br />

outra coisa. “Porra Gersão, tá perdendo tempo”,<br />

dizia o Cesar. Cheguei aqui e adotei. Quem costurou<br />

a primeira capa foi minha segunda esposa, a<br />

Angélica. Foi aquele sucesso — conta Gerson.<br />

Além das capas dos cafetões nova-iorquinos,<br />

colaboraram para o visual de Gerson, King<br />

Curtis Combo, de quem ele copiou o nome, e James<br />

Brown, ambos adeptos da capa na época.<br />

TROPA DE ELITE<br />

A fantasia de Papai Noel está pendurada,<br />

na entrada, no canto esquerdo da Loja Fantasias,<br />

na Galeria H do Mercadão. Na área mais nobre,<br />

um modelo, de preto, com um colete feito em<br />

um tecido acolchoado. Na parte de baixo, apenas<br />

uma sugestiva lingerie, com uma liga. Uma boina<br />

de camurça completa o visual Capitão Nascimento<br />

que tem sido o sucesso do momento. Por <strong>R$</strong><br />

59,90 é possível levar a fantasia. A infantil custa<br />

menos, <strong>R$</strong> 39,90, mas é discreta. Tem o detalhe<br />

da caveira do Bope na boina.<br />

Gerson tem intimidade com a polícia desde<br />

que nasceu. É filho de um policial militar. O pai,<br />

Jovelino Cortes, é um dos responsáveis por ele,<br />

apesar de ser negro e ter nascido na Rua Andrade<br />

Figueira, na subida do Morro São José, ter passado<br />

a infância longe do samba. O caveirão, hoje pavor<br />

das crianças, na época era Mestre Fuleiro, um dos<br />

fundadores do Império Serrano. Na adolescência,<br />

o pai mandava ficar longe do samba. E usava da<br />

figura do enorme legendário diretor de harmonia<br />

da verde-e-branca para assustá-lo.<br />

— O sambista era visto como marginal.<br />

Meu irmão, Getúlio Cortes, era muito americanizado.<br />

Ele foi um dos primeiros DJs. Comprava<br />

discos e levava pra gente dançar. Mas não tinha<br />

samba.<br />

Gerson conta que, com a chegada do rock,<br />

a cisão foi total. Os sambistas viam os roqueiros<br />

como homossexuais. Só mais velho Gerson se<br />

reconciliou com a turma do samba. Hoje é vizinho<br />

de Tia Doca da Portela e presença em seus<br />

pagodes. Com a polícia, ele mantém um respeito<br />

formal. Seu problema agora é com um dos movimentos<br />

que ele ajudou a criar: o funk carioca.<br />

Gerson tem pavor de uma parte do movimento<br />

que usa a música para fazer apologia ao crime ou<br />

fala (e faz) sexo explicitamente:<br />

— Juntar o black e este funk dá choque. Temos<br />

um problema social, com esta periferia carente,<br />

cheia de problemas. Não precisa dessa coisa<br />

de chamar mulher de prostituta, cantar que vai<br />

comer a mãe. O morro marginal está nesta música<br />

e nós, que fizemos letras com cunho social,<br />

não temos nada com isso. Não temos nada que<br />

bandido é melhor. Nem polícia é melhor nem<br />

bandido é melhor. Este funk é um modismo que<br />

não vai vencer. A não ser que queiramos que vire<br />

uma Sodoma e Gomorra. A idéia é até policiar<br />

isso. Já fui a baile que tinha sexo explícito.<br />

MADUREIRA TÊNIS CLUB<br />

A Madureira que Gerson nasceu era muito<br />

diferente. Mesmo sendo morador do asfalto,<br />

para conseguir água ele, o irmão e as duas irmãs<br />

tinham que ir com latas para a bica que ficava no<br />

fim da Andrade Figueira. Poucas ruas eram urbanizadas<br />

e as dificuldades com os bondes eram<br />

grandes. Hoje, o bairro praticamente todo urbanizado,<br />

é o principal pólo comercial do subúrbio<br />

do Rio. Pelo menos 17 linhas de ônibus passam<br />

em frente ao Mercadão, além das centenas de<br />

vans e kombis que ajudam a tornar o tráfego a<br />

verdadeira descrição do inferno.<br />

A Madureira de antigamente lembra um<br />

pouco a Mercearia Rosa da Conceição. Encravada<br />

na Galeria G do Mercadão, ela se diferencia<br />

por ainda oferecer grãos em sacos de dez quilos<br />

expostos para o público. É possível encontrar o<br />

acaçá, uma farinha de milho branco ou vermelho,<br />

usada na culinária baiana, a <strong>R$</strong> 2,60 o quilo, e a<br />

ervilha extramacia a <strong>R$</strong> 3,20. Sinal dos tempos,<br />

atrás do balcão estão os enlatados como milho<br />

e azeite.<br />

— A vida não era mole não. Eu tive uma<br />

infância muito triste. Nós não podíamos nada.<br />

Onde hoje está este Mercadão era um clube elitizado,<br />

o Madureira Tênis Club, onde crioulo não<br />

6 7


entrava — conta Gerson.<br />

A Madureira de hoje, pode se dizer, tem<br />

um pouco da transformação que Gerson ajudou<br />

a construir na sociedade brasileira. O clube que<br />

não aceitava negros vendeu o terreno para a construção<br />

do mercado, que era entreposto de hortigranjeiros<br />

e ficou pronto em 1959, e fundiu-se<br />

com outros dois, tornando-se o atual Madureira<br />

Esporte Club. Gerson entrou lá, anos depois,<br />

pela porta da frente. A primeira vez, foi com o<br />

grupo Renato e Seus Blue Caps, onde ele conta<br />

que aprendeu a cantar. Agora, entrar pela porta<br />

dos fundos no Mercadão — que a partir da inauguração<br />

da Ceasa de Irajá, em 1976, foi se transformando<br />

num centro de compras — é apenas<br />

uma opção.<br />

— Eu nunca quis sair daqui de Madureira,<br />

do subúrbio. Gosto daqui, me sinto em casa,<br />

com os amigos. Tinha até vontade de ir morar no<br />

Recreio, acho que faria amigos lá também, mas<br />

eu acho que não saio daqui mais não — profetiza<br />

Gerson.<br />

ESPECIARIAS<br />

Gerson é procurado quase que diariamente<br />

para entrevistas. São jornalistas de todo o mundo,<br />

querendo saber sobre tudo. Simpático, carismático<br />

e educado, tendo acompanhado o surgimento<br />

do rock no Brasil e sendo hoje um ícone da música<br />

negra no país, ele passou a freqüentar os noticiários<br />

como nunca o fizera. Na Zona Sul, virou<br />

cult. Na década de 70, era raro ele aparecer na imprensa<br />

e lá por aquelas bandas. Um dos poucos<br />

momentos, lembra ele, foi quando a jornalista<br />

Lena Frias, pelo “Jornal do Brasil”, fez a primeira<br />

reportagem sobre o movimento black no Rio.<br />

— Fomos com ela para alguns bailes e ela<br />

fez uma grande reportagem. O título era “O novo<br />

ritmo da Zona Norte”. A partir dali, o black estourou.<br />

O black deve muito a esta moça — agradece<br />

Gerson. — Na Zona Sul, nunca tivemos muita<br />

entrada. Só tinha um baile, no Olímpico, em Copacabana.<br />

Mas enchia. Vinha todo o pessoal dos<br />

morros.<br />

Depois da reportagem e de muitos bailes<br />

suburbanos que consolidaram o ritmo no Rio,<br />

Gerson Gravou dois discos: “Gerson King Combo”,<br />

em 1977, e “Gerson King Combo volume II”,<br />

em 1978. Depois de anos sem reedições, eles saíram<br />

em CD. Apesar de os discos em vinil terem<br />

virado peça de colecionador, Gerson não ganha<br />

nada com isso. Também não ganha praticamente<br />

nada em direitos autorais. Vive do salário de<br />

funcionário público e dos poucos shows que, na<br />

linguagem dele, pingam.<br />

Gerson gosta de uma pimenta para temperar<br />

suas comidas. Na galeria K, num cantinho<br />

meio escondido do labiríntico Mercadão, a Rio<br />

Flora Especiarias guarda raridades. Entre um<br />

cesto de sal grosso (<strong>R$</strong> 1,<strong>00</strong> o quilo) e uma lata<br />

com erva de bugre (<strong>R$</strong> 10,<strong>00</strong> o quilo), estão ervas<br />

invulgares que temperam os pratos<br />

de grandes chefs do Rio. O quilo do<br />

estragão, uma erva ao mesmo tempo<br />

adocicada e picante, por exemplo,<br />

custa <strong>R$</strong> 140. Já o cardamomo, uma<br />

erva adocicada importada do oriente,<br />

não sai por menos de <strong>R$</strong> 160. Nem<br />

os mais raros temperos da Rio Flora,<br />

alcançam o preço já pago por colecionadores<br />

por um disco em vinil de<br />

Gerson: <strong>R$</strong> 250.<br />

— Eu preferia um pouco menos<br />

de fama e um pouco mais de dinheiro<br />

— confessa.<br />

NAMORADO<br />

Na cozinha, Gerson também<br />

é rei. Adora receitas italianas e não<br />

fica sem macarrão em casa. A maior parte dos<br />

alimentos comprados por ele nos sábados é no<br />

supermercado Rede Economia, que fica ao lado<br />

do Mercadão, ou no açougue Shopping da Carnes,<br />

que oferecem melhores preços. No centro<br />

comercial, Gerson ainda costuma comprar peixe<br />

fresco. O local é a Peixaria Domenico Baroni, que<br />

pertence a Carlos Barone, filho de Domenico. Ali,<br />

em novembro, o camarão rosa, de bom tamanho,<br />

podia ser comprado a <strong>R$</strong> 12,99 o quilo. O peixe<br />

preferido de Gerson é o namorado (<strong>R$</strong> 11,99 o<br />

quilo).<br />

— Faço o namorado a escabeche, com molho<br />

de camarão. Quando eu vou para a cozinha, eu<br />

deixo a turma doida — revela, sem modéstia, o rei.<br />

Gerson aprendeu muito na cozinha com<br />

Angélica, uma exímia cozinheira. Os dois eram<br />

dançarinos nos show promovidos pelo radialista<br />

Jair Taumaturgo, que em seu programa “Hoje é<br />

dia de rock”, na Rádio Mayrink Veiga, criou uma<br />

espécie de semente do rock no Brasil. Mas eram<br />

Escadinha era<br />

conhecido de<br />

Gerson desde<br />

a infância. Os<br />

dois tinham<br />

estudado na<br />

mesma escola,<br />

a Cristo Rei,<br />

em Vaz Lobo.<br />

amigos, já que ele era casado com a cantora Elizabete<br />

Marques. Em 1962, Gerson perdeu Elizabete<br />

e sua primeira filha durante o parto. A depressão<br />

foi grande e só foi curada com a ajuda de Angélica.<br />

— Ela foi me consolando, me consolando<br />

e acabou me consolando quase 30 anos. Foi uma<br />

vida com ela — conta Gerson que perdeu a segunda<br />

mulher em 1990.<br />

Depois da morte de Angélica, só namoros<br />

eventuais. Nos relacionamentos, Gerson disse<br />

que nunca viveu preconceito. Ao contrário. Ele<br />

conta que era e continua sendo mais<br />

paquerado por mulheres de pele mais<br />

clara. Com as mulheres de pele mais<br />

escura, ele se sente mais rejeitado.<br />

A agitada vida romântica de Gerson<br />

não aparece nos primeiros discos.<br />

Ele preferiu caminhar por uma área<br />

mais difícil, com letras mais duras<br />

que tinham como objetivo a afirmação<br />

do negro. Seu clássico, “Mandamentos<br />

Black”, diz: “Falar como<br />

fala um black/ Andar como anda um<br />

black/ Usar sempre o cumprimento<br />

black”.<br />

— Isso me traz reconhecimento<br />

até hoje, mas me criou problemas.<br />

Tinha pouco espaço na mídia para<br />

divulgar. Hoje, acho o negro já não<br />

precisa de tanta afirmação. Já tem<br />

ministro negão, presidente de CPI negão. Há 30<br />

anos não tinha isso, não. Agora, minhas letras ficaram<br />

mais românticas — conta ele, que tem 12<br />

músicas inéditas para gravar e continua produzindo<br />

e ouvindo soul music. — O DVD dos The<br />

Temptations não sai do aparelho.<br />

ARRUDA CONTRA O MAL-OLHADO<br />

Gerson entra no Mercadão pela Rua Conselheiro<br />

Galvão, os fundos. Chega ali entre 9:30h<br />

e 10h das manhãs de sábado e vai direto para o<br />

segundo andar, onde um muro separa a área de<br />

venda de hortaliças do restante das lojas. No box<br />

23, Arthur Costa está a espera do cliente fiel com<br />

uma ramo de arruda. Todos os sábados, Gerson<br />

leva para casa a planta. Apesar de adorar cozinhar,<br />

com ela não é feita nenhuma iguaria:<br />

— Coloco com um copo d’água atrás da<br />

porta. Ali, se vier qualquer coisa ruim, para o mal,<br />

bate e vai embora na hora. Isso me foi ensinado<br />

8 9


pela minha avó, que era rezadeira.<br />

A tradição nunca foi esquecida, nem nas<br />

épocas de maior fama. Gerson conta que o assédio<br />

era tanto que passou a andar menos pelas<br />

ruas do bairro. Nesta época, foi mo-<br />

rar com Angélica e seu único filho,<br />

Gerson Júnior, na Vila da Penha. Num<br />

fim de semana, ele notou que estava<br />

sendo perseguido e parou o carro em<br />

Madureira à tarde, próximo a casa<br />

onde morava sua mãe. Ao descer, foi<br />

interpelado por dois homens que<br />

queriam que ele entrasse em outro<br />

veículo. Gerson não estava disposto<br />

a entrar, mas os homens disseram<br />

que o músico Roberto Ribeiro estava<br />

esperando por ele. A arruda deve<br />

ter ajudado porque não era Roberto<br />

quem esperava: era José Carlos dos<br />

Reis Ensina, o Escadinha, um dos<br />

maiores traficantes da época.<br />

— Foram subindo o morro.<br />

Quando cheguei lá em cima, tava o<br />

Roberto Ribeiro, o Beto Sem Braço,<br />

o Bezerra da Silva, todo mundo num<br />

pagode. Era uma festa promovida<br />

pelo Escadinha. Ele queria todos os artistas famosos<br />

de Madureira lá. Tomei um susto danado<br />

e a Angélica quase morreu do coração — lembra.<br />

Escadinha era conhecido de Gerson desde<br />

a infância. Os dois tinham estudado na mesma<br />

escola, a Cristo Rei, em Vaz Lobo. O traficante<br />

que deu trabalho à polícia do Rio na década de<br />

80, e acabou assassinado em 2<strong>00</strong>4 após cumprir<br />

sua pena de prisão, tinha uma outra imagem para<br />

Gerson:<br />

— Ele era um bom aluno e um bom menino<br />

na escola. Todo mundo gostava dele. Eu chamava<br />

ele de Zeca e quando nos vimos naquele dia nos<br />

falamos e fiquei contente.<br />

TERRORISTA<br />

As lojas que vendem pipas e assessórios<br />

para a diversão tipicamente suburbana continuam<br />

resistindo no Mercadão. São três, todas no segundo<br />

andar do centro comercial. Os fornecedores<br />

não variam muito e, entre elas, as diferenças<br />

de modelos, cores e preços é muito pequena. As<br />

que ganham mais destaque não são as com cores<br />

diversas, como antigamente. A preferência agora<br />

Quando<br />

começou, era<br />

no rádio que se<br />

consagravam<br />

os astros e<br />

para onde ele<br />

e seu colega,<br />

atual colega<br />

de majestade,<br />

Roberto Carlos,<br />

foram.<br />

é pelas pipas com estampas de times de futebol,<br />

torcidas organizadas e marcas famosas. Fazem<br />

sucesso também as com personagens folclóricos<br />

ou polêmicos. Um deles é Osama Bin Laden, estampado<br />

numa pipa grande na porta<br />

de uma delas. Numa loja, o vendedor<br />

diz ao jornalista que não está a ven-<br />

da. Em outra, que acabou. Ninguém<br />

quer ficar com fama de terrorista.<br />

Gerson também não quis levar<br />

esta fama na década de 70, durante a<br />

ditadura. Quando seu disco foi lançado,<br />

ele teve que ir prestar depoimento<br />

no Departamento de Ordem Pública<br />

e Social (DOPS) da Polícia Federal. O<br />

delegado, conta ele, queria saber se<br />

ele tinha alguma ideologia:<br />

— Queriam saber minha ideologia.<br />

Eu disse que era dançar e<br />

namorar. Cheguei a dizer que não<br />

entendia o que acontecia com os brasileiros<br />

que não podiam protestar se<br />

no mundo todo protestavam. Acho<br />

que ele achou que eu era meio inocente.<br />

Nós éramos inocentes mesmo.<br />

Não tínhamos esta raiva. Só procurávamos<br />

um espaço para o black.<br />

Ao carisma de Gerson, nem a ditadura resistiu:<br />

o delegado virou amigo e conselheiro do<br />

Rei Black.<br />

— O delegado ficou meu amigo. Disse para<br />

eu não levantar bandeira negra, nem branca. A<br />

verdade é que não podia ser tão radical. Era o<br />

que conversávamos porque senão iríamos presos.<br />

Não tínhamos uma guarida que tinha um Gil, um<br />

Gabeira, um cara da Zona Sul. Se a gente fosse<br />

preso, a gente ia entrar na porrada, como eu vi<br />

muita gente tomar porrada quando eu era páraquedista.<br />

Tive que sair em 1965 do Exército por<br />

causa da música — relata Gerson que ainda militar<br />

viu Gilberto Gil e Caetano Veloso presos em<br />

sua unidade.<br />

PAPEL DE ARROZ<br />

Não tem para ninguém. A loja mais cheia<br />

do Mercadão é a Casa do Papel de Arroz. Um<br />

aglomerado de gente com máquinas digital na<br />

mão ocupando metade do corredor da Galeria G<br />

indica onde funciona a loja que produz papéis comestíveis.<br />

Por módicos <strong>R$</strong> 5, é possível comprar<br />

um A4 com a cara do filhinho, da filhinha, do<br />

netinho ou da netinha e colocar no bolo de<br />

aniversário. Por <strong>R$</strong> 9, você leva um tamanho<br />

A3. A vendedora também oferece foto na camisa<br />

e em imã de geladeira.<br />

O sucesso da loja mostra o quanto a<br />

imagem é importante hoje em dia. Gerson<br />

é do tempo em que a imagem estava engatinhando.<br />

Quando começou, era no rádio que<br />

se consagravam os astros e para onde ele e<br />

seu colega atual colega de majestade, Roberto<br />

Carlos, foram.<br />

— O Roberto foi lá no programa do Jair<br />

com o Snakes. Era ele, o Tim Maia, o Erasmo<br />

Carlos e o Alírio, já falecido. Eles fizeram um teste<br />

e nem foram bem, não. Eles eram esquisitos. O<br />

Roberto era manco, o Tim era gorducho, o Erasmo<br />

era grandão e o Alírio baixinho — diverte-se<br />

o Rei Black.<br />

Gerson conta que Tim já implicava com<br />

Roberto, a quem acusava de não saber cantar desde<br />

aquela época e fez com que ele saísse do grupo.<br />

Mas, dos quatro, foi Roberto quem acabou<br />

levando a coroa. Na TV, o plano era americano e<br />

ninguém percebia a falta da perna do cantor ou<br />

sua voz pouco potente. Só seu sorriso simpático<br />

e contagiante.<br />

— O Roberto sempre foi carismático. E<br />

aprendeu muito com a gente. Ele e a Wanderleia<br />

andavam no trem da Central, onde o pessoal do<br />

subúrbio voltava para casa cantando e dançando<br />

rock. Eles até passavam da estação pra ficar com<br />

a gente — relembra.<br />

MALUCO BELEZA<br />

Nos sábados, a entrada principal do Mercadão,<br />

pela Avenida Edgar Romero, está lotada<br />

de camelôs. A maioria vende CDs piratas e o ritmo<br />

preferido são os funks e hip hops de cantores<br />

americanos. Legal ali, somente a banca de jornal<br />

que também vai sucumbindo. <strong>Revista</strong>s e jornais<br />

são poucos. Livros, nem mesmo do ex-colega de<br />

trabalho de Gerson na Polygram (atual Universal),<br />

o agora mago Paulo Coelho.<br />

— Eu chamava ele lá de cabeção. A gente<br />

dizia que ele era diretor da VEC. Era a diretoria<br />

do Vai Enganar Caralho. Ele ficava lá, fazendo<br />

criação. Depois que juntou com o Raul aí que eles<br />

ficaram doidos de vez — conta.<br />

Como bom criador, Paulo também copiava.<br />

Gerson conta que, ao chegar ao Brasil da excursão<br />

com Simonal, no início da década de 70, vestiu<br />

suas novas roupas e foi divulgar suas músicas<br />

na Avenida Rio Branco, Centro do Rio. Lá, ele<br />

conta que foi xingado de tudo quanto é nome por<br />

quem passava no ônibus.<br />

— Mas eu respondia: tudo bem, eu tô com<br />

dinheiro e carro com motorista. Você tá duro aí<br />

dentro do ônibus. Foi um perrengue. Eu contei<br />

isso pro Raul e pro Paulo e ele disse: “Tu fez isso,<br />

mesmo?”. Depois, os dois foram para a Rio Branco<br />

fazer passeata para divulgar o disco deles.<br />

Quebrar violão também já não era novidade<br />

para Gerson em 1967, quando Sérgio Ricardo<br />

quebrou o dele ao ser vaiado no Festival da Record.<br />

Um ano antes, em 1966, Gerson já tinha<br />

destruído um, mas na cabeça de um espectador<br />

durante um show da banda do Renato:<br />

— Foi um show em Cataguazes. Eu estava<br />

estreando como cantor. E também o Leno e a Lílian.<br />

Estávamos todos muito nervosos e quando<br />

10 11


eu desci do palco, o Leno e ela iam entrar. Vi um<br />

cara passando a mão na bunda da Lílian. Eu não<br />

conversei. Peguei o violão do Leno e quebrei na<br />

cabeça do cara. Depois fiquei só com o cotoco do<br />

braço me defendendo contra uns 15.<br />

POMBA DA PAZ<br />

Durante muitos anos, o movimento black<br />

teve uma cisão. Seus dois principais ícones musicais,<br />

Gerson King Combo e Tony Tornado, não<br />

podiam ser chamados para dividir o microfone.<br />

Talvez nem o palco. Os dois ex-pára-quedistas<br />

ficaram inimigos no Festival da Canção de 1969.<br />

O motivo: a briga para ver quem cantaria “BR-3”,<br />

música de Tibério Gaspar e Antonio Adolfo símbolo<br />

daquele concurso.<br />

— O Tibério estava me procurando para ensaiar<br />

a música e o Tony disse que eu não viria porque<br />

eu morava em Cosmos, que era muito longe.<br />

Quando eu cheguei, eles já estavam ensaiando.<br />

Eu acabei cantando “Ave Gloria Day” com a banda<br />

do Dom Salvador, e ficamos em quinto lugar.<br />

Eles ficaram em terceiro. Quando me contaram<br />

esta história eu fiquei para morrer. Ali criou um<br />

iceberg entre a gente.<br />

A paz entre os dois é recente e nem precisou<br />

que os amigos comuns comprassem uma das<br />

pombas brancas (<strong>R$</strong> 15 a unidade) vendidas nas<br />

lojas de animais vivos que ficam no segundo andar<br />

do Mercadão. Também não houve um almoço com<br />

as galinhas, coelhos, patos, marrecos, faisão ou cabrito<br />

(<strong>R$</strong> 80 cada filhote) para comemorar. Gerson<br />

também não comprou um espumante na Brumore,<br />

na galeria H, sua loja de bebidas preferida no Mercadão.<br />

Mas, garante, agora está tudo bem:<br />

— Eu perdoei ele. Acho que cada um tem<br />

sua hora. Era a hora dele, ele foi feliz. E quando<br />

chegou a minha hora, eu também fui feliz.<br />

DANCE<br />

Depois das quinquilharias importadas chinesas,<br />

os produtos mais vendidos no Mercadão<br />

são, sem dúvida, as bijuterias. As lojas com os<br />

produtos para enfeitar as mulheres se espalham<br />

por todo o primeiro andar. Na Letícia Bijoux, a<br />

vendedora conta que a moda agora são os braceletes<br />

(que podem custar de até <strong>R$</strong> 15). E o que não<br />

sai de moda são os apliques de cabelos. Pretos,<br />

ruivos, coloridos, louros, as mexas podem custar<br />

entre <strong>R$</strong> 5 e <strong>R$</strong> 45.<br />

— Dependendo do tamanho e do tipo do<br />

cabelo — alerta a vendedora.<br />

O aplique dá ao visual feminina um jeito<br />

meio As Panteras (originais). Ou, abrasileirando,<br />

meio Chacretes. O Velho Guerreiro deve a Gerson<br />

a criação destas personagens:<br />

— Eu era um exímio dançarino. Mas na<br />

época quem dominava a dança na TV eram umas<br />

bichas bailarinas argentinas que ficavam com<br />

negócio de “uno, dos, tre” e não dava nada certo.<br />

Eu trabalhava na TV Rio e o Chacrinha estava lá.<br />

Com ele, só tinham duas mulatas grandonas que<br />

não sabiam dançar. Fizemos um teste para escolher<br />

mais garotas e fazer um corpo de baile que<br />

eu ensaiava. As primeiras chacretes fui eu quem<br />

ensinou a dançar. Rita Cadillac, Índia Apache e<br />

tantas outras. Quem popularizou a dança na TV<br />

fui eu — orgulha-se Gerson.<br />

Ser dançarino antes de ser cantor (Gerson<br />

só foi aprender a cantar no meio da década de 60)<br />

fez dele um showman com uma presença de palco<br />

invejada por muitos músicos, entre eles Tim Maia:<br />

— Ele ia aos meus shows para aprender.<br />

Ele dizia para mim: “Negão, tu não cantas porra<br />

nenhuma. Mas eu queria ter nascido no teu corpo<br />

com a minha cabeça e a minha voz”. π<br />

em www.revistazepereira.com.br: Ouça a música “Mandamentos Black”<br />

MARCELO MOUTINHO<br />

ilustração: PEDRO GARAVAGLIA<br />

12 13<br />

BANHO<br />

Com as costas envergadas<br />

de vergonha<br />

Tu entraste no banheiro.<br />

O silêncio constrangido<br />

a toalha nos ombros<br />

cobriam um leão morto.<br />

No box apertado<br />

Girei os registros<br />

Molhei a toalha<br />

Pedi que te virasses<br />

Plantaste as mãos<br />

– imóveis –<br />

sobre os azulejos.<br />

E a cortina tocou meu rosto.<br />

Guiada por mim, a toalha passeou:<br />

teu tronco<br />

tuas pernas<br />

braços<br />

pescoço.<br />

A toalha úmida,<br />

e a cortina<br />

que se fechava.<br />

No breu dos teus olhos cerrados<br />

E no tremelique das mãos<br />

(que não podias deter)<br />

Lembravas:<br />

Um dia<br />

Também me deste banho.<br />

Girei os registros<br />

Troquei de toalha<br />

Pedi que te virasses<br />

Enquanto te secava<br />

E ouvia um obrigado<br />

Soube que não há como se sair limpo<br />

De um banho desses.<br />

poesia


14<br />

crônica<br />

O RAPTO DO 464<br />

texto: LUIZ HENRIQUES foto-ilustração: EDUARDO SOUZA LIMA / DI SOUZA<br />

A discussão era se vale realmente a pena deixar<br />

o conforto da poltrona de casa e sair correndo<br />

para pegar engarrafamentos, dificuldade de estacionar,<br />

cadeirinhas desconfortáveis e arrastões<br />

só para sentir a emoção de ver o jogo ao vivo no<br />

Maracanã. Alguns argumentavam que se perde o<br />

replay e o tira-teima, outros ponderavam que em<br />

compensação perdia-se também o Casagrande e<br />

o Arnaldo César Coelho.<br />

Eu já enveredava pela nostalgia, pelo imenso<br />

afeto que sentia pelo 464, nos tempos sem metrô<br />

e sem carro popular, sempre cheio em seu caminho<br />

para o jogo, nos tempos em que qualquer<br />

clássico levava sessenta mil pessoas ao Maracanã,<br />

nos tempos em que o futebol carioca era o melhor<br />

do país, nos tempos em que desde as três<br />

da tarde o trânsito já não fluía a partir do Estácio.<br />

Isso para não falar nos jogos importantes em<br />

meio de semana, em que todo mundo chegava na<br />

mesma hora. Ainda me lembro da agonia do 464<br />

se arrastando pelo Flamengo, entupido de vascaínos,<br />

na final do campeonato brasileiro de 74, eu<br />

e meu pai em pé e o raio do ônibus que não andava,<br />

tudo engarrafado. Para a minha adolescência<br />

em Botafogo, aquela era a grande linha — ia para<br />

as praias de um lado e para o Maracanã do outro.<br />

Foi quando o André comentou que já tinha<br />

seqüestrado um 464. Como assim, seqüestrado<br />

um 464? Ia jogar sobre a embaixada americana<br />

ou coisa parecida? Não que o André fosse da Al-<br />

Qaeda, mas quase. Tinha sido da Falange Rubro-<br />

Negra, quando não em sua identidade secreta de<br />

estudante de filosofia, ambos em tempos idos.<br />

A experiência terrorista de nosso amigo<br />

começou no dia em que o Botafogo, após vinte e<br />

um longos e invernais anos, conseguiu, escalando<br />

em suas linhas Maurício e Mazolinha, vencer<br />

o Flamengo de Zico, Bebeto, Renato Gaúcho e<br />

Leandro jogando pelo empate. Daí se imagina o<br />

bom humor do André quando, junto com vários<br />

colegas da Falange, tem que entrar num 464 já<br />

com alguns botafoguenses batucando e cantando<br />

seus empoeirados e bolorentos cantos de vitória.<br />

O pessoal da Falange não tinha que agüentar<br />

aquilo. Ainda mais estando em maior número.<br />

Entraram e puseram para fora à força os adversários<br />

e se apossaram completamente do ônibus,<br />

inclusive intimidando o motorista para que ele<br />

não parasse nos pontos para pegar mais torcedores<br />

alvinegros, principalmente no Mourisco,<br />

então sede do Botafogo e parte do itinerário da<br />

linha.<br />

Ainda que saboreando a satisfação primitiva<br />

pela conquista daquele exíguo e móvel território,<br />

viajar até Copacabana entre todos aqueles<br />

carros buzinando e batucadas em ônibus parecia<br />

uma grande provação para os falangistas. Os diretores<br />

da torcida diziam que eles deveriam levar<br />

o hino do Flamengo, mostrar orgulho apesar da<br />

derrota, mas ninguém se sentia com espírito para<br />

tanto. Foi quando alguém falou que eles deveriam<br />

então cantar o hino do Botafogo.<br />

E assim foi feito. Os uniformizados tiraram<br />

suas camisas e as esconderam e todos começaram<br />

a cantar — ainda que docemente constrangidos<br />

— Botafogo, Botafogo, campeão de 1910... e logo<br />

conseguiram atrair um incauto coroa e torcedor<br />

adversário para o carro. O óbvio fato de que ele<br />

covardemente sequer se dera ao trabalho de ir ao<br />

jogo e ficara em casa vendo pela tevê mais enfureceu<br />

os rubro-negros, mas eles continuaram entoando<br />

o hino, enquanto, segundo André, o coroa<br />

tentava comemorar sem demonstrar o mínimo<br />

jeito para a coisa, brandindo o braço e sorrindo,<br />

mais parecendo uma caricatura. Ele entrou, pagou<br />

a passagem e — imagino a cena — começou<br />

a perceber que todos os olhares estavam fixos<br />

nele e que o hino alvinegro era cantado sem verdadeira<br />

paixão, sem a entonação dos vencedores,<br />

enquanto todos aqueles rostos encaravam-no<br />

sem demonstrar alegria e a cadência de marcha<br />

de hino de clube começava a tornar-se cada vez<br />

mais sinistra aos ouvidos do pobre telespectador,<br />

até ele por fim divisar o detalhe final e revelador<br />

— saindo de bolsos das bermudas e dos shorts,<br />

mal amassadas em mãos fechadas... camisas do<br />

Flamengo!<br />

O coroa foi posto para fora na base do cascudo<br />

— notem bem, cascudos, nada de tacles e<br />

pontapés até deixar o cara desacordado na rua, o<br />

André nunca foi disso — e foi apenas o primeiro<br />

de uma série. Vários outros se seguiram, até<br />

que na altura da Corrêa Dutra, entrou um baixinho<br />

carregado de faixas do Botafogo campeão.<br />

Era tudo que o pessoal da Falange queria para<br />

coroar a noite após sentir em suas entranhas<br />

aquele gol do Maurício: tacar fogo em um monte<br />

de faixas do adversário. No entanto, torcidas<br />

organizadas costumam atrair sujeitos chegados<br />

em movimentos organizados em geral, inclusive<br />

sindicais. Quando o baixinho percebeu que era<br />

uma presa num ninho de predadores, começou<br />

a gritar implorando por suas faixas, pois que era<br />

Fluminense e estava indo para o Mourisco apenas<br />

para vendê-las e faturar um troco com aquela<br />

paixão pelo esporte da qual ele não compartilhava.<br />

Imediatamente os sindicalistas começaram a<br />

ponderar que ele era trabalhador e precisava ser<br />

respeitado, num país em que o capital leva tanta<br />

vantagem e a mão-de-obra não tem vez, e a luta<br />

de classes, e os juros a 16% etc etc... Enfim, o<br />

baixinho foi poupado. Mas ele não saltaria no<br />

Mourisco, quartel-general do inimigo. Teria que<br />

saltar no Rio Sul e caminhar até lá.<br />

E eis que o 464 chega no Mourisco e pára,<br />

apesar de tudo que fora dito. O baixinho saltou<br />

e, mal encostou o pé na segurança do asfalto, começou<br />

a gritar, “aí, galera, o ônibus tá cheio de<br />

flamenguista”. Pode-se imaginar o que se seguiu,<br />

o carro cercado de gente por todos os lados, levando<br />

chutes na lataria, pessoas tentando invadilo<br />

pelas janelas, enfiando as mãos pelas frestas<br />

tentando atingir alguém, outros empurrando as<br />

portas para se abrirem e o motorista forçando<br />

lentamente passagem, avançando centímetro a<br />

centímetro motivado pelos cascudos que ia levando<br />

dos flamenguistas, lembrando vagamente<br />

a retirada americana do Camboja.<br />

Enfim, por dentre um mar de cabeças, pontapés<br />

e demonstrações várias de territorialidade<br />

de ambas as partes, o 464 irrompeu para a segurança<br />

do asfalto vazio de uma da manhã e avançou<br />

pelo Túnel Novo, ainda impulsionado por<br />

cascudos no motorista, bem merecidos, segundo<br />

o André, por ele ter parado no Mourisco.<br />

— E agora, meus amigos, me digam... —<br />

completou ele após a longa história — Quando<br />

é que assistindo ao jogo pela tevê alguém vai se<br />

divertir tanto assim?<br />

15


16<br />

lição de história: Antonio Edmilson Martins Rodrigues<br />

“FOI A IMPRENSA QUE INVENTOU<br />

O RIO DE JANEIRO”<br />

Antonio Edmilson Martins Rodrigues é bem<br />

conhecido dos alunos que freqüentam as aulas de<br />

História do Rio de Janeiro e do Brasil e os seminários<br />

de História política, tanto na PUC quanto<br />

na UERJ, onde leciona. Há 35 anos no magistério,<br />

este carioca, nascido nos Açores, transita facilmente<br />

pelo passado, traçando painéis tão completos<br />

quanto diversos das invasões franceses, da<br />

transformação do Rio de Janeiro em capital do<br />

império português, da chegada da família real e<br />

da Belle Époque carioca. Em comum, esses fatos<br />

têm a contribuição para a formação de uma marca<br />

nacional e da cidade do Rio de Janeiro.<br />

Para alguns especialistas, a história urbana é mais<br />

que a história de uma cidade. O Brasil celebra em 2<strong>00</strong>8 a<br />

chegada da família real e a abertura dos portos. Poderíamos<br />

dizer que a história urbana do Rio de Janeiro começa somente<br />

em 1808?<br />

Acho que não. Certamente isso se intensifica<br />

com a chegada de D. João, que vai fazer com<br />

que a cidade se transforme na capital política do<br />

império português, o que tem grandes implicações,<br />

pois a cidade passa a se voltar mais para fora.<br />

Mas, ao longo do período que vai até o início<br />

do século XIX, o desenvolvimento do Rio de Janeiro<br />

se faz como alternativa econômica ao modelo<br />

de intervenção do governo português. Surge<br />

uma série de circuitos por onde trafegam produtos<br />

para o escambo desde o interior da Bahia e<br />

que aqui chegam pelo porto de Irajá ou via Baixada.<br />

É como se fosse formado um grande cordão<br />

verde que se expande, cobrindo a Baía de Guanabara<br />

desde São Gonçalo até o que é hoje a Avenida<br />

Brasil, incorporando Campo Grande e Santa<br />

Cruz. Essa é a periferia, que agüenta a barra da<br />

cidade e que também servirá de base para a explo-<br />

texto: SILVIO RABAÇA<br />

ração do ouro e, depois, para o desenvolvimento<br />

da cafeicultura. As rotas dos tropeiros eram mantidas<br />

por pequenos núcleos, que vão dar origem<br />

a várias cidades. Esses núcleos são fundamentais,<br />

porque criam um tipo de riqueza que não é decorrente<br />

do pacto colonial. Isso influi sobre as<br />

pessoas que aqui vivem de tal maneira que elas<br />

acabam tendo uma experiência de liberdade, o<br />

que vai se confrontar com qualquer tentativa de<br />

intervenção centralizada.<br />

Quem são esses colonos?<br />

São portugueses ou seus descendentes, os<br />

mazombas, já nascidos no Brasil.<br />

A transformação da cidade em capital do vice-reinado<br />

em 1763 foi uma tentativa de controlar esta aparente<br />

independência dos colonos do Rio de Janeiro...<br />

A transformação do Rio de Janeiro em capital<br />

por Pombal é uma boa jogada política. Sabedor<br />

de sua história de autonomia e compreendendo<br />

bem as funções econômicas desenvolvida<br />

pela cidade, Pombal elabora um projeto para o<br />

seu controle, que resultaria na ampliação de suas<br />

tendências produtivas, auxiliando-o na reorganização<br />

da colônia. Para as demais cidades, isso representaria<br />

um distanciamento muito grande da<br />

antiga cidade de colonos que as inspirava, pois<br />

agora esta era a capital. Então, de uma cidade<br />

igual às outras, o Rio de Janeiro se transformou<br />

em algo muito diferente, mas ainda tinha no seu<br />

espaço a cidade dos colonos.<br />

Você gosta de recuar à fundação do Rio de Janeiro<br />

pelos franceses, comparando as duas visões de mundo que<br />

estão em oposição na luta entre franceses e portugueses.<br />

O objetivo da expedição de Villegagnon era interferir no<br />

comércio marítimo, fixando uma importante base de apoio.<br />

Quão estratégica era a posição do Rio de Janeiro para esse<br />

objetivo?<br />

A transformação<br />

do Rio de Janeiro<br />

em capital por<br />

Pombal é uma boa<br />

jogada política<br />

O Rio de Janeiro é uma escala importante<br />

nas rotas comerciais que ligam a Europa e a América<br />

do Norte até o Rio da Prata. Por aqui passam<br />

os mais diferentes tipos, desde chineses a indianos.<br />

Para mim, no entanto, o mais relevante são<br />

as experiências que marcaram a Baía da Guanabara.<br />

A partir deste ponto de vista, importam mais<br />

as trocas culturais e os movimentos de ocupação<br />

do que os objetivos. É possível que os franceses<br />

quisessem controlar o comércio. Entretanto, eles<br />

sabiam das dificuldades e dos investimentos necessários;<br />

era muito melhor ser franco-atirador.<br />

No nosso caso, Henriville (cidade que estava sendo<br />

projetada pelos franceses e cujo nome homenageava o rei<br />

Henrique III), era mais que uma feitoria, era o desejo<br />

de uma cidade ideal fundada na América. Com<br />

certeza, essa cidade ocuparia uma função central<br />

no processo de exploração dos franceses, mas será<br />

que esse era o único objetivo do projeto?<br />

A França Antártica também deveria servir de refúgio<br />

para os huguenotes, mas parece que a sina da cidade era ter<br />

personalidade própria e logo surgiram desavenças entre católicos<br />

e protestantes. Quer dizer que antecipamos as guerras<br />

religiosas européias?<br />

Não só antecipamos como mostramos,<br />

em miniatura, o que acontece quando a questão<br />

é religiosa. O embate na América ia além do religioso,<br />

eram espaços a disputar por projetos de<br />

utopia. Villegagnon estudou na Universidade de<br />

Paris, foi amigo de Calvino. Era um homem capacitado<br />

a discutir teologia. Mem de Sá era um<br />

fidalgo, irmão de Sá de Miranda, um dos maiores<br />

poetas portugueses.<br />

Um dos aspectos mais incríveis da História da América<br />

Latina é como Portugal conseguiu manter a integridade<br />

do território brasileiro, ao contrário do que ocorreu na América<br />

espanhola. A vitória sobre os franceses deve ter sido<br />

um feito considerável. Como ela foi recebida pela população<br />

local e pelos portugueses?<br />

Nesse período inicial não se pensava em<br />

ocupação de terras no sentido de colonização. A<br />

função central do mercantilismo era incentivar a<br />

circulação. Isso não quer dizer, no entanto, que<br />

17


os homens não tivessem autonomia. É o caso do<br />

Rio de Janeiro, que vence os franceses, principalmente<br />

em 1710, quando a vitória se transforma<br />

numa recriação da força dos colonos da cidade. A<br />

vitória merece destaque porque mostra, já naquela<br />

altura, a constituição de uma marca nacional.<br />

A História ressalta o papel dos intelectuais na busca<br />

de uma identidade brasileira. Até que ponto se pode dizer<br />

que o Brasil é uma invenção intelectual?<br />

Hoje há um forte apelo por um esquema<br />

interpretativo, no qual é possível dividir a história<br />

intelectual brasileira em dois grandes momentos.<br />

O primeiro é o dos intelectuais de 1870, que foram<br />

fundamentais para responder a pergunta “o<br />

que é o Brasil?”, não importando se o país imitava<br />

a Europa ou não. O objetivo desses intelectuais<br />

não era fazer projetos para o país, mas ter<br />

um diagnóstico. E a literatura dessa época fez<br />

história. Depois veio a geração de 1920, que pega<br />

esse patrimônio, e aí sim se começam a esboçar<br />

projetos para o Brasil.<br />

O Rio de Janeiro tem contribuído com muitos tipos<br />

literários e sociológicos, que são, sobretudo, tipos urbanos.<br />

Afinal, há uma fisionomia ou modo de ser próprio do carioca<br />

ou o espírito carioca é só mais um mito?<br />

O Rio de Janeiro se torna um grande tema<br />

da literatura, principalmente devido aos seus<br />

cronistas, mas há vários elementos que se vinculam<br />

aí. Primeiro por ser a capital, e a recepção da<br />

capital é importante para aquilo que significa a<br />

riqueza e o posicionamento social. Além disso, é<br />

um lugar onde havia pelo menos três instâncias<br />

universitárias importantes: a Politécnica, a Medicina<br />

e o Direito. Isso evidentemente atrai as pessoas<br />

da província, o que acaba fazendo com que<br />

venham para cá pessoas que não estão a fim de<br />

fazer absolutamente nada, como Aluízio Azevedo,<br />

o irmão Artur de Azevedo, o poeta Francisco<br />

“A alma carioca<br />

é invenção<br />

dos cronistas”<br />

de Paula Ney, que, no entanto, têm de subsistir<br />

de alguma maneira, e a imprensa vai ser o lugar<br />

de subsistência deles. São esses caras que vão<br />

fazer da cidade um personagem e do homem da<br />

cidade o carioca.<br />

É possível fazer uma genealogia do carioca?<br />

A alma carioca é invenção dos cronistas:<br />

Lima Barreto, João do Rio, Stanislaw Ponte Preta,<br />

entre tantos outros. Foi a imprensa que inventou<br />

o Rio de Janeiro. Quantos jornais havia, na Belle<br />

Époque carioca? A malandragem surge da ociosidade<br />

e da oposição ao trabalho, mas via jornalismo,<br />

basicamente. Os caras diziam: “O Rio de Janeiro<br />

não pode ser Paris, porque aqui não há um<br />

lugar chamado Chateau Noir. Então vamos fazer<br />

um cabaré chamado Chateau Noir”, que ficava ali<br />

na Lapa. Depois vem o Alcazar, na Uruguaiana,<br />

onde havia meninas francesas mesmo. E essas<br />

situações vão se multiplicando. Tem-se, então,<br />

uma mimese completamente inventiva. π<br />

18 19


especial<br />

FOLHETO DA VIAGEM<br />

(XILOGRÁFICA)<br />

AO REINO DO PRIMO XICO<br />

texto: VLADIMIR CARVALHO xilogravuras: XICO CARVALHO<br />

Contemplo uma gravura e – estranhamente<br />

– é como se ouvisse vozes; e num passe de mágica<br />

sou abduzido pela força de seu corte, de sua<br />

textura e de sua cor. A imaginação entra pelos<br />

sulcos da madeira adentro e, de fato, o que escuto,<br />

meio ao longe, são vozes ancestrais,<br />

ecos de mitos adormecidos,<br />

numa remota cantilena, e<br />

o que se segue cada vez mais audível<br />

é todo um rumor e burburinho<br />

de uma imensa feira nordestina,<br />

o grande palco semanal<br />

das gentes sertanejas de antigamente.<br />

Uma feira (de Itabaiana,<br />

de Campina Grande, de Caruaru<br />

ou do Juazeiro do Padre Cícero?)<br />

que não existe mais, a não ser na<br />

lembrança de meu mundo infantil<br />

e que era quase como um circo<br />

repleto de atrações, embalado<br />

numa música forrozeira de sanfona,<br />

zabumba e ganzá, no ritmo<br />

do triângulo.<br />

Esse é um cenário a céu<br />

aberto, fervilhante de vida, encharcado<br />

de pregões, cantorias<br />

de cegos, de repentistas e camelôs,<br />

passando pelas barracas<br />

onde se vendiam os folhetos de<br />

feira (o cordel de hoje), com o chão coberto de<br />

bonecos de barro e de montes de mané gostosos<br />

feitos de pau; com as árvores enfeitadas de<br />

gaiolas de passarinhos. À noite, aqueles que pernoitassem<br />

por ali poderiam assistir e até partici-<br />

par de uma espécie de prolongamento do espetáculo<br />

da feira, em alguma ponta de rua: era a vez<br />

da brincadeira do cavalo marinho, do pastoril na<br />

zona de mulheres e do mamulengo também chamado<br />

de babau, e a coisa podia avançar até madrugada<br />

alta.<br />

É justamente na visão das<br />

figuras por vezes fesceninas e debochadas<br />

desses folguedos que<br />

me detenho e volto à tona desse<br />

sonho remissivo, dessa viagem<br />

a um reino encantado que fiz ao<br />

embarcar na contemplação das<br />

xilogravuras de Xico Carvalho. E<br />

retomo nas mãos sua nova série,<br />

onde as suas criaturas emergem<br />

do forte colorido do fundo, de<br />

amarelos quentes como labaredas<br />

de fogo, suavizado em cor de<br />

rosa somente vez por outra nas<br />

cenas mais “líricas”, e por essa<br />

via descubro de novo o profundo<br />

parentesco de sua arte com a<br />

imaginação popular que domina<br />

aqueles folguedos tão meus conhecidos.<br />

Tão conhecidos que<br />

sonho até hoje com “mateus”,<br />

“biricos” e “catirinas” do cavalo<br />

marinho, com o palhaço Bedegueba<br />

dos pastoris da rua do Carretel.<br />

E nesse lance está todo o gosto do povo<br />

pelo deboche e a irreverência, com seu tanto de<br />

picaresco como estão também a sua doçura e<br />

inocência. Aliás, em termos de picaresco, esse<br />

muitas vezes beira o grotesco nas pequenas e saborosas<br />

obscenidades de que o povo é capaz na<br />

sua verve criadora. Tudo isso perpassa essa galeria<br />

de tipos e de criaturas estranhas nessas cenas<br />

que Xico vai buscar com a maestria de sua goiva<br />

no fundo de suas tábuas de umburana e cedro nativos.<br />

Basta enumerar os títulos com que batizou<br />

algumas dessas criações para se sentir o espírito<br />

gaiato das feiras e das ruas. “O Mestre Língua”,<br />

“A Mulher Cobra”, “O Homem Cobra Chic”, “O<br />

Padre e a Moça”, entre outros.<br />

E por falar em “língua”, esse é um elemento<br />

que é “trabalhado” e visualizado intensamen-<br />

te nessa coletânea insólita da gravura brasileira.<br />

À primeira vista ela, a língua, deixa de ser parte<br />

do órgão fonador e ultrapassa em muito aquilo<br />

que o vulgo chama de língua ferina, ferramenta<br />

do desaforo, e não do diálogo, e toma forma semelhante<br />

a um chicote ou flecha que parece servir<br />

mais a uma espécie de justa em que cavalheiros<br />

se engalfinham como cobras, gritando eloqüências<br />

escatológicas ou malcriações que o povo não<br />

quer calar.<br />

Pinta aqui então um clima de espetáculo<br />

do mamulengo/babau – e esse é o ponto máximo<br />

revelador das relações dessas xilos com a po-<br />

20 21


ética popular – em que surtem as movimentadas<br />

arengas e os disparates do negro Benedito e da<br />

Catirina, na pequena boca de cena e na cadência<br />

do som roufenho da rabeca. Mas pode também<br />

não ser nada disso, que o Xico é homem de<br />

boa paz: o que se vê talvez seja conversa branda e<br />

coloquial, algumas até muito persuasivas e amorosas,<br />

com as línguas soltando beijos e se alongando<br />

até quase acariciar o interlocutor, como é<br />

o caso desses estranhos “Gêmeos” ou desse Padre<br />

e dessa Moça, da mesma natureza<br />

e talhe do que se vê nas capas de folhetos<br />

românticos (vide a história de Coco<br />

Verde e Melancia, por exemplo) vendidos<br />

até hoje por aí.<br />

Enfim, essa remessa do Xico que<br />

agora sai da prensa é preciosa e, para<br />

nós, sinaliza o auge<br />

de um artista que no<br />

seu ofício vem produzindo<br />

uma arte que<br />

se pretende ingênua<br />

– no conceito conhecido<br />

– de corte propositalmenteprimitivo,<br />

bebido na fonte<br />

pura do inconsciente<br />

coletivo e sugere pelo<br />

estranhamento de alguns<br />

temas (bichos,<br />

aves, peixes e serpentes<br />

dialogando com<br />

seres humanos) um<br />

tipo de “surrealismo”<br />

popular com tudo que<br />

essa expressão tenha<br />

de impróprio neste<br />

caso. Uma arte que não é indiferente ao encantamento<br />

com o mundo de sua infância trazido de<br />

novo à luz, mas como se o visse pela primeira vez,<br />

um mundo coincidente com a visão primal do homem<br />

da caverna.<br />

Agora, a bem da verdade, devo dizer que jamais<br />

fui apresentado a Xico Carvalho, misterioso<br />

e invisível personagem que vem maneiro e sutil<br />

espalhando seu rastro e seus fluidos pelo bairro<br />

de Jaguaribe, em João Pessoa, sem jamais ter sido<br />

visto, e que diz pertencer ao clã do velho Martim<br />

Caco, meu avô, dos Carvalho de Itabaiana. Isto é<br />

o que dizem afiançar Unhandeijara Lisboa, esse,<br />

sim, meu primo legítimo na linhagem, inclusi-<br />

“O Xico anda<br />

pelo meio do<br />

mundo”<br />

ve, de meu tio Floripes Carvalho, ourives e gravador<br />

de talhe doce em ouro, estabelecido na Barão<br />

do Triunfo com sua joalheria. Mas o primo Nandi,<br />

como é conhecido, sempre desconversa toda<br />

vez que o interpelo a esse respeito. “O Xico anda<br />

pelo meio do mundo”, diz dando de ombros e<br />

mudando de assunto. Manuel Clemente, que é<br />

seu discípulo e comparsa no ateliê do Clube da<br />

Gravura, não arreda o pé de seu proverbial mutismo<br />

(a última vez que se fez ouvir foi em sala<br />

de aula, assim mesmo por obrigação<br />

acadêmica), e da última vez que o intimei<br />

a esclarecer o caso, riu um risinho<br />

maroto, engasgou-se, correu ao<br />

banheiro e não mais voltou. Saiu por<br />

alguma porta falsa, talvez a mesma<br />

que oculta as fugas convenientes do<br />

Xico. Martinho Campos,<br />

um dos mentores<br />

do Clube e iminência<br />

parda do fabuloso movimento<br />

da xilogravura<br />

na Paraíba, abordado,<br />

me fez uma verdadeira<br />

conferência, na<br />

verdade longa conversa<br />

“de cerca Lourenço”<br />

para me despistar. Resultado<br />

é que me deixou<br />

na mesma, nada<br />

sabendo do paradeiro<br />

do ensombrecido xilógrafo...<br />

De minha parte,<br />

resta-me o consolo de<br />

uma conclusão, talvez<br />

apressada, mas conseqüência<br />

natural e até certo ponto inconsciente<br />

de uma comparação que, aos poucos, venho fazendo<br />

entre a lavra visível do Xico com a do primo<br />

Nandi. Uma, perdoem-me, é quase um decalque<br />

da outra. Principalmente nos últimos anos<br />

em que, na medida que Xico se torna mais “presente”,<br />

Nandi vem se esquivando cada vez mais<br />

de produzir e se retira de cena. É uma coincidência<br />

muito grande e ninguém me convence de que<br />

esse Xico Carvalho não é uma artimanha, uma<br />

“ficção” do neto de Floriano Rodrigues Carvalho.<br />

“Uma bolação Unhandeijara”, como ele próprio<br />

dizia antigamente. π<br />

no site: Xilogravuras coloridas de Xico Carvalho<br />

22 23


A TIJUCA texto: ESTEVÃO GARCIA<br />

GANHA AS TELAS<br />

Se procurarmos nos lembrar quantas vezes uma localidade do<br />

Rio de Janeiro, seja uma rua, uma praça ou um bairro, apareceu<br />

em um título de filme ao longo da história do cinema brasileiro,<br />

constatamos imediatamente uma característica marcante:<br />

a Zona Sul domina de forma soberana.<br />

Realizando um passeio cinematográfico pelo Rio através<br />

dos títulos do nosso cinema podemos facilmente cruzar por Copacabana:<br />

“Copacabana me engana” (de Antonio Carlos da Fontoura,<br />

1968), “Copacabana mon amour” (de Rogério Sganzerla, 1970),<br />

“O vampiro de Copacabana” (de Xavier de Oliveira, 1976). Continuando<br />

mais um pouquinho a caminhada podemos entrar em Ipanema:<br />

“Garota de Ipanema” (de Leon Hirszman, 1967), “Ipanema<br />

toda nua” (de Libero Miguel, 1971), “Os garotos virgens de Ipanema”<br />

(de Oswaldo de Oliveira, 1973), “Ipanema, adeus” (de Paulo<br />

Roberto Martins, 1975), “O varão de Ipanema” (de Luis Antonio Piá,<br />

1976), “Nos embalos de Ipanema” (de Antônio Calmon, 1978). E finalmente<br />

paramos para tomar um chope na Gávea: “Baixo Gávea”<br />

(de Haroldo Marinho Barbosa, 1986). Depois desse trajeto a pergunta<br />

é a seguinte: onde estão os outros cantos do Rio nessa história,<br />

ou melhor, nessa História?<br />

Prosseguimos nossa perambulação e percebemos que quando<br />

esses “outros cantos” aparecem nos títulos, são quase sempre<br />

de forma genérica: “Rio Zona Norte” (de Nelson <strong>Pereira</strong> dos Santos,<br />

1957) ou “O Ibraim do subúrbio” (de Astolfo Araújo e Cecil<br />

Thiré, 1976). Diferentemente da Zona Sul, que pode ser particularizada<br />

através do registro de um bairro, a Zona Norte e o subúrbio<br />

são freqüentemente percebidos em bloco, como se formassem<br />

uma mesma massa homogênea. Isso em parte se explica quando<br />

sabemos que a grande maioria dos cineastas que<br />

filmam no Rio são moradores da Zona Sul, portanto,<br />

quando eles viram a sua câmera para o lado<br />

de lá, a tendência é juntar as diversas camadas<br />

que compõem o subúrbio e a Zona Norte em<br />

uma coisa só. O olhar estrangeiro para determinados<br />

pontos de sua própria cidade torna-se difícil<br />

de ser evitado. E quando não se conhece o<br />

objeto filmado, sempre é mais confortável simplificar<br />

através do geral do que penetrar<br />

pelo particular.<br />

Esse fenômeno de simplificação<br />

também acontece com a favela. Nesse caso<br />

já não importa se ela está situada na<br />

Zona Sul ou na Zona Norte, pois a favela<br />

sempre será vista como um sistema à parte,<br />

como um núcleo clandestino que está<br />

localizado do lado de fora da cidade “oficial”.<br />

Favela é favela, ela nunca tem nome e parece<br />

ser sempre uma só: “Favela dos meus amores”<br />

(de Humberto Mauro, 1935), “Cinco vezes favela”<br />

(de vários autores, 1962). Só recentemente que as<br />

favelas foram singularizadas: “Cidade de Deus”<br />

(de Fernando Meireles, 2<strong>00</strong>2), “Maré, nossa história<br />

de amor” (de Lúcia Murat, 2<strong>00</strong>7). A opção<br />

por tomar o título dos filmes como nosso ponto<br />

de partida não se originou pelo anseio de rastrear<br />

“Eles não<br />

trocariam<br />

a Tijuca<br />

por nada”<br />

e enumerar as ocasiões em que as regiões menos<br />

favorecidas e menos badaladas serviram de locação<br />

para as produções rodadas no Rio de Janeiro.<br />

Se pegarmos apenas os títulos como referência,<br />

elas praticamente não existiram em nossas telas.<br />

Não nos interessa aqui o uso dessas regiões<br />

apenas como locação e sim os casos em que<br />

elas transcenderam a condição de local de filmagem<br />

e se transformaram em elementos fundamentais<br />

da narrativa. Logicamente não<br />

é necessário colocar o nome de uma localidade<br />

no título de um filme para adotar<br />

essa estratégia. Porém, os filmes que<br />

assim procedem, geralmente enxergam<br />

a paisagem urbana escolhida como mais<br />

um personagem. Um personagem que<br />

respira, que fala, que pulsa. Um personagem<br />

que possui a sua própria língua,<br />

história e tradição. E é sintomático que esse personagem-paisagem,<br />

quando aparece no cinema<br />

carioca, independente de estar ou não estampado<br />

nos títulos, praticamente não sai dos limites<br />

da Zona Sul.<br />

Nesse quesito, “Saens Peña”, primeiro longa-metragem<br />

de ficção do cineasta Vinícius Reis,<br />

parece inaugurar uma ruptura. Vinícius, paulistano<br />

de nascença e tijucano de criação, não só é<br />

24 25<br />

fotos de divulgação<br />

Chico Diaz e Aldir Blanc no Stefanios:<br />

os diálogos foram improvisados


o primeiro cineasta a colocar o nome de um local<br />

(no caso, uma praça) da Zona Norte no título de<br />

um filme carioca, como também tem como meta<br />

transformar esse local em algo maior que um<br />

simples cenário.<br />

— Eu tinha vontade de escrever alguma coisa<br />

sobre a Tijuca e a classe média. A classe média<br />

que conheço e da qual faço parte. Eu tinha<br />

essa curiosidade porque aqui no Rio de Janeiro<br />

se filma muito na Zona Sul. Você tem um cinema<br />

que fica muito na cultura da Zona Sul como o da<br />

Rosane Svartmann e o da Sandra Werneck. Aí eu<br />

pensei: está faltando um recorte classe média tijucana.<br />

Isso ainda não tem, isso ainda não surgiu<br />

no cinema carioca e tenho vontade de falar disso<br />

porque eu conheço, faço parte disso, sou disso,<br />

venho disso — diz Vinícius.<br />

O filme capta o cotidiano de uma família<br />

de classe média que mora em um apartamento<br />

alugado na Rua General Roca, bem em frente<br />

à Praça Saens Peña num momento crucial pra<br />

ela, para o Brasil e o para o mundo. A narrativa<br />

se inicia no começo de 2<strong>00</strong>3, momento em que<br />

os Estados Unidos invadem o Iraque, Lula chega<br />

à presidência da República e um amigo de Paulo<br />

(Chico Diaz) o convida para escrever um livro<br />

sobre o bairro. O clima da possibilidade de uma<br />

ascensão social, motivada por essa nova atividade<br />

do personagem, invade o espaço doméstico<br />

e se confunde com a euforia e a “esperança” ex-<br />

Maria Padilha na Praça Saens Peña:<br />

o filme foi rodado nas ruas do bairro<br />

perimentada pela classe média brasileira, de um<br />

modo geral, no começo do primeiro governo Lula.<br />

A oportunidade de pesquisar e escrever sobre<br />

a História da Tijuca leva Paulo a realizar um corpo-a-corpo<br />

diário com o bairro e seus moradores.<br />

Por sua vez Teresa (Maria Padilha) vê reacender<br />

o seu velho sonho de comprar um apartamento<br />

no bairro e, portanto, aproveita toda a brecha<br />

que tem no trabalho para sair com os classificados<br />

debaixo do braço à caça de um apartamento.<br />

Temos aqui duas perambulações pelas ruas da Tijuca,<br />

duas interações com os seus espaços.<br />

— Desde os primeiros encontros, o Vinícius<br />

colocou seu desejo de ter a Tijuca (e mais especificamente,<br />

a praça Saens Peña) como um personagem<br />

do filme. O barulho que vem do lado de<br />

fora da janela do apartamento, o tradicional calor<br />

do verão tijucano. E as constantes citações da<br />

História da região por conta das pesquisas para o<br />

livro de Paulo, trazem o bairro para dentro do espaço<br />

privado dessa família. O cotidiano de todos<br />

os personagens da família se insere na localidade:<br />

Paulo e Teresa trabalham e Bel, a filha do casal,<br />

estuda na Tijuca. E vemos todos transitando por<br />

esse espaço naturalmente, compondo essa paisagem<br />

— conta a diretora de arte Tainá Xavier.<br />

Paulo e Teresa, como sublinha Vinícius, na<br />

verdade não são tijucanos e sim emergentes. O<br />

casal protagonista representa as pessoas de origem<br />

humilde que com muita luta conquistaram<br />

a Tijuca. Paulo é um professor de literatura que<br />

se formou em letras pela UERJ com bastante dificuldade<br />

porque tinha que conciliar seus estudos<br />

com o trabalho e Teresa trabalha como atendente<br />

em uma loja de café expresso de um shopping.<br />

— Eles vêm do Baixo Estácio, daquele Estácio<br />

mais pobre, perto da estação do metrô — explica<br />

o diretor. — Morar na General Roca de frente<br />

pra Saens Peña é como dizer: “Conquistamos<br />

o nosso espaço, somos poderosos, agora só falta<br />

comprar”. Eles adoram a Tijuca e o consideram o<br />

melhor lugar do Rio. Eles não trocariam a Tijuca<br />

por nada.<br />

Mas, se o filme retrata o amor que<br />

alguns moradores sentem pelo bairro,<br />

também faz questão de mostrar o outro<br />

lado: os tijucanos que almejam sair<br />

de lá e morar na Zona Sul. João (Gustavo<br />

Falcão) é um deles. O personagem troca<br />

o seu amplo apartamento na Usina por<br />

uma quitinete no Leblon, realizando o<br />

velho sonho de morar a alguns metros<br />

da praia. Porém, ao compararmos a paisagem<br />

que ele tinha de sua janela na Usina<br />

e a que ele tem agora no Leblon, percebemos<br />

que a mudança não foi assim<br />

tão boa. Antes ele se deparava com montanhas<br />

e uma ampla área verde, hoje ele<br />

não vê mais que uma parede ao abrir a<br />

janela — nesse sentido, o “Saens Peña”<br />

é o anti-Manoel Carlos.<br />

Além de propiciar um diálogo visceral<br />

com o bairro, o livro de Paulo lhe<br />

oferecerá a oportunidade de conhecer os<br />

seus heróis, e um deles é o compositor e histórico<br />

tijucano Aldir Blanc.<br />

— A seqüência em que o Paulo entrevista o<br />

Aldir Blanc foi rodada no Stefanios Bar, que é um<br />

dos bares freqüentados pelo Aldir, lá na Rua dos<br />

Artistas, que é a rua onde ele passou grande parte<br />

da adolescência e da juventude. O Aldir Blanc<br />

nasceu no Estácio, assim como o Paulo, mas<br />

cresceu na Tijuca. Essa cena é descrita em apenas<br />

uma linha no roteiro: “Paulo encontra com o<br />

Aldir Blank no Stefanios Bar, essa cena vai ser documental,<br />

as falas não serão roteirizadas”. Não<br />

tinha como você roteirizar ou dirigir Aldir Blanc,<br />

ele próprio já é um filme. Com o Aldir é só na base<br />

do improviso — conta Vinícius.<br />

E improviso foi o que não faltou nas filmagens<br />

de “Saens Peña”. Embora tendo um roteiro<br />

“Sempre<br />

digo que<br />

não fiz<br />

um filme<br />

sobre a<br />

Tijuca e<br />

sim sobre<br />

a minha<br />

Tijuca”<br />

bastante detalhado que passou por dez diferentes<br />

tratamentos antes de chegar à versão final e<br />

de ter ensaiado muito com os atores, ao longo do<br />

set Vinícius permitiu que houvesse espaço para a<br />

incorporação do acaso e do calor da hora.<br />

— No “Saens Peña” tinha diálogo escrito,<br />

ensaiado, decorado, mas que na hora da filmagem<br />

a gente se liberava dele. Dava para se soltar,<br />

mas nós tínhamos um guia ali para nos orientar e<br />

para qualquer coisa que houvesse. Segundo o cineasta,<br />

essa relação elástica e versátil entre o prédeterminado<br />

e o inventado no momento de filmar<br />

só foi possível pelo fato dos dois atores principais<br />

estarem desde o início envolvidos no pro-<br />

jeto. Muita conversa, muita dedicação e<br />

muito trabalho de mesa foi o que garantiu<br />

essa liberdade.<br />

Para o cineasta, filmar “Saens Peña”<br />

não poderia ser de outra forma. O ato de<br />

filmar lhe revelou uma magia e um mistério<br />

que não emanaram com a mesma força<br />

durante a escrita do roteiro. A sua memória<br />

afetiva e sua relação íntima com o<br />

bairro se embaralhavam com o filme que<br />

estava criando. Ficção e memória começavam<br />

a compor energias de um mesmo<br />

fluxo. Fazer “Saens Peña” era como trazer<br />

à tona as sensações e a sensorialidade<br />

do bairro. Era um instante de descoberta.<br />

Diz Vinicíus:<br />

— Sempre digo que não fiz um filme<br />

sobre a Tijuca e sim sobre a minha Tijuca.<br />

Pois há muitas Tijucas (a região vai da<br />

Praça da Bandeira ao Alto da Boa Vista) e no<br />

“Saens Peña” só mostro a que eu vivi. O roteiro foi<br />

pensado assim e isso me dava segurança para filmar.<br />

Mas, na filmagem, esse cenário ganhou uma<br />

nova dimensão. Quando apontávamos a câmera<br />

e o microfone para essas ruas e esquinas, tão<br />

conhecidas; quando marcávamos as cenas com<br />

o elenco, nesses lugares, essa Tijuca, que é tão<br />

familiar se renovava, surpreendia, se atualizava.<br />

Acho que o ato da filmagem torna inédito aquilo<br />

que já é conhecido. É um enigma. Ver a Rua<br />

Uruguai na telinha do vídeo-assist, ouvir a Barão<br />

de Mesquita pelo fone do técnico de som, minutos<br />

antes de rodar uma cena, potencializavam e<br />

transformavam esses lugares. Isso aconteceu em<br />

todas as cenas exteriores. Era só gritar um “corta”<br />

e a filmagem acabar para esses lugares restituírem<br />

a familiaridade escondida. π<br />

26 27


S.O.S.<br />

Conjunto de casas construído por<br />

<strong>Pereira</strong> Passos no Catumbi, há mais de<br />

um século, aguarda obras da Prefeitura<br />

texto: ANA PAULA CONDE<br />

fotos: BARBARA COPQUE<br />

VILA OPERÁRIA<br />

— Altamiro Nunes de Souza se mudou<br />

para a casa onde mora na Vila Operária em 1929.<br />

Ele tinha apenas dois anos e dividia o espaço com<br />

os pais e quatro irmãos. Seu pai, Antônio, trabalhava<br />

na Prefeitura, como todos os moradores do<br />

primeiro conjunto habitacional de baixa renda<br />

construído pelo Poder Público. Quase 80 anos<br />

depois, como conseqüência do descaso e das<br />

transformações urbanísticas pelas quais a cidade<br />

passou, e que raramente levavam em conta a história<br />

do município e a realidade dos moradores,<br />

muita coisa mudou no Catumbi, Zona Central do<br />

Rio de Janeiro. A chegada do Metrô e do Sambódromo<br />

puseram construções abaixo e mudaram a<br />

feição do lugar; muitas casinhas de porta e janela,<br />

decoradas com azulejos trazendo a imagem do<br />

santo favorito, transformaram-se em oficinas ou<br />

cortiços. Fábricas foram desativadas. A violência<br />

dos morros que cercam a região alteraram a rotina,<br />

mas o clima familiar permanece no dia-a-dia<br />

dos moradores. Muitos vizinhos continuam dispostos<br />

a ajudar uns aos outros em momentos de<br />

dificuldade.<br />

— Os meninos costumam bater na janela e<br />

pedir dinheiro para a merenda. Sempre que posso<br />

dou um dinheirinho para comprarem biscoito.<br />

Não ganho muito, mas como sou sozinho, dá<br />

para ajudar — conta seu Altamiro.<br />

Ele lembra com saudade da época em que<br />

guardas vigiavam o lugar dia e noite e repreendiam<br />

os meninos que colocavam os pés para fora<br />

da janela, dos antigos carnavais, quando fazia<br />

parte da diretoria do Bloco Carnavalesco Jará, rival<br />

do Bafo da Onça, das animadas festas de São<br />

João de uma avenida (antigo nome dado às vilas<br />

de casas) na Rua Senhor de Matosinhos, paralela<br />

à Salvador de Sá, onde fica a Vila Operária, e<br />

lamenta pela violência, que encrudeleceu nos<br />

últimos anos, como em toda a cidade, mas que<br />

sempre foi presente nas redondezas.<br />

A Vila Operária era vizinha da Zona do Mangue<br />

e as histórias de malandros, navalhadas, cafetões<br />

e batedores de carteira não nunca estiveram<br />

distantes do cotidiano de quem ali morava. Seu<br />

Altamiro, 80, conta, inclusive, que algumas tias<br />

não gostavam de visitar sua família porque moravam<br />

nas proximidades do Mangue. O aposentado<br />

também se recorda que costumava parar em botequins<br />

na volta de escola para observar os malandros<br />

dividindo o dinheiro do roubo de carteiras.<br />

— Era preciso ter cabeça para viver aqui —<br />

afirma.<br />

A declaração não é muito diferente da que<br />

se ouve do telefonista Fábio Gonçalves Manso,<br />

25, também criado no local.<br />

— Gosto muito dessa casa, acho que a<br />

manteria mesmo que ganhasse na Mega-Sena.<br />

Tenho bons amigos, mas é preciso saber com<br />

quem lidar — conta o rapaz, que vive com a mãe,<br />

a manicure Geni, 51.<br />

Seu Altamiro ficou 23 anos longe da Vila.<br />

Entre 1953 e 1976, morou no Catete com a esposa<br />

e teve dois filhos. Quando se separou, voltou<br />

a morar com a mãe, Leonor. Ele sentiu diferença<br />

na vizinhança, mas jamais pensou em deixar<br />

novamente o lugar onde cresceu e passou momentos<br />

importantes da vida. A casa de dois quartos<br />

— um deles construído pelo pai no pequeno<br />

quintal dos fundos —, sala, cozinha e banheiro,<br />

mantém a pintura com as mesmas características<br />

da original, com três tons de bege, e os móveis<br />

da época em que era jovem. O aposentado, que<br />

trabalhou no arquivo do Departamento de Obras<br />

da Prefeitura do Rio de Janeiro, de 1950 a 2<strong>00</strong>1,<br />

28 29


adora observar a vida passando nas ruas pela janela<br />

de casa, caminhar calmamente até a Praia do<br />

Flamengo e freqüentar as missas da Igreja Nossa<br />

Senhora de Fátima, na Rua do Riachuelo, e Divino<br />

Espírito Santo, no Estácio.<br />

— Meus filhos querem que eu me mude. O<br />

local está realmente precisando de obras e eles temem<br />

que tudo desabe, mas eu gosto muito daqui<br />

— explica, enquanto nos serve um copo de mate<br />

gelado.<br />

Muitas das 120 habitações,<br />

construídas em 1906 pelo<br />

prefeito Francisco <strong>Pereira</strong> Passos,<br />

logo após a abertura das<br />

ruas Salvador de Sá e Mem de<br />

Sá, estão com infiltrações e<br />

problemas estruturais. As escadas<br />

que levam às moradias<br />

localizadas nos segundos pavimentos<br />

estão quase intransitáveis<br />

e em muitos imóveis não<br />

há mais o guarda-corpo de madeira das<br />

varandas.<br />

— Gostaríamos de ver as casas<br />

recuperadas, mesmo que tivéssemos<br />

de financiar a reforma. Moro aqui desde<br />

que nasci, conheço todo o mundo e<br />

tenho muito carinho pela área. O clima<br />

é familiar e há muitas histórias nessas<br />

casas. O Moreira da Silva morou na<br />

Vila, em uma parte derrubada para a<br />

construção do Sambódromo — conta<br />

o simpático e falante William César<br />

Machado, 41.<br />

Os moradores conservam<br />

as casas da maneira que<br />

podem, mas não têm recursos<br />

para reformá-las por conta<br />

própria. A Vila Operária, propriedade<br />

da Prefeitura do Rio<br />

de Janeiro, é tombada pelo<br />

patrimônio municipal desde<br />

1985 e faz parte de uma Área de<br />

Proteção do Ambiente Cultural<br />

(APAC). Existem estudos e<br />

um plano de recuperação para os imóveis desde<br />

2<strong>00</strong>3, mas ainda não há previsão para o início das<br />

obras, como explica a Coordenadora de Projetos<br />

Especiais da Secretaria de Patrimônio Históricocultural,<br />

a arquiteta Cristina Lodi.<br />

— Estamos buscando parcerias com outros<br />

As casas<br />

guardam<br />

histórias<br />

da cidade<br />

e de cada<br />

um de seus<br />

moradores<br />

órgãos do município para começar o processo de<br />

recuperação. A Salvador de Sá está entre as prioridades<br />

de revitalização da área — diz.<br />

A construção do conjunto de casas cinzachumbo<br />

fez parte de um grande e conturbado<br />

processo de transformação efetuado por <strong>Pereira</strong><br />

Passos. Influenciado pela reurbanização de Paris<br />

realizada pelo prefeito George Haussmann, entre<br />

1860 e 1868, Passos derrubou centenas de casas<br />

que se espalhavam pelas ruas estreitas para abrir<br />

a elegante Avenida Central, atual<br />

Rio Branco. A obra, conhecida<br />

como “bota abaixo”, desalojou<br />

milhares de pessoas, que começaram<br />

a habitar os subúrbios do<br />

Rio. Em uma época ainda marcada<br />

pela construção de sobrados,<br />

a Vila Operária, com suas<br />

linhas retas, representavam o<br />

moderno, movimento que viria a<br />

influenciar os prédios da cidade.<br />

É justamente esse patrimônio<br />

que os moradores querem ver preservado.<br />

As casas guardam histórias da<br />

cidade e de cada um de seus moradores.<br />

Alguns imóveis passaram por modificações<br />

internas, provocadas pela<br />

própria necessidade de conservação<br />

e de criar espaço para os filhos, mas<br />

não há quem pense em transformar o<br />

prédio externamente.<br />

— Queria que as casas continuassem<br />

a manter o mesmo estilo — diz<br />

o vigilante William.<br />

Ele mantém bem conservado<br />

internamente o imóvel<br />

com cômodos amplos divididos<br />

em três quartos, sala, cozinha<br />

e banheiro. Seu maior problema<br />

é a escada de madeira que o<br />

leva até sua casa, localizada no<br />

segundo pavimento do prédio.<br />

Ele está em mau estado e não se<br />

sabe quanto tempo vai resistir.<br />

A pensionista Iracy Silva,<br />

63, deixou o Bairro de Fátima há 29 anos para viver<br />

na Vila Operária. Viúva de um motorista do<br />

Estado, ela gostaria que os pedestres e motoristas<br />

que passam pela Salvador de Sá pudessem imaginar<br />

o que se vê além da porta que separa a rua<br />

do lugar onde vive: uma casa tratada com todo o<br />

Seu Altamiro mora na vila desde 1929<br />

Os moradores<br />

conservam<br />

as casas<br />

da maneira<br />

que podem,<br />

mas não têm<br />

recursos para<br />

reformá-las<br />

por conta<br />

própria.<br />

capricho. A habitação<br />

térrea de quarto e sala<br />

ganhou uma divisória<br />

para criar mais um cômodo,<br />

que abrigou o<br />

filho até recentemente.<br />

Ele cursou marketing<br />

e agora mora com a<br />

esposa no Méier. Mas<br />

dona Iracy já arranjou<br />

uma nova função para<br />

o cômodo: servir de<br />

dormitório para os filhos<br />

da vizinha Suely<br />

Rodrigues da Silva, 41.<br />

— Eles adoram ficar<br />

na Iracy — diz Suely.<br />

— Os meninos têm<br />

até roupas nas gavetas —<br />

emenda a pensionista.<br />

Suely vive com o<br />

marido César, 48, há 23 anos no local.<br />

— Meu avô era motorista da Prefeitura e eu<br />

costumava passar longas temporadas com eles.<br />

Tenho uma ligação emocional com a casa e aqui,<br />

apesar dessas histórias de violência nas redondezas,<br />

é muito sossegado — diz César.<br />

Ele vende cachorro-quente todos os dias na<br />

calçada em frente a sua porta. É com a renda da<br />

barraquinha que sustenta os três filhos: dois meninos,<br />

com 16 e 4 anos, e uma menina, de 9 anos.<br />

O espaço é apertado para cinco pessoas, mas o<br />

lugar para o computador do mais velho, que estuda<br />

na Faetec (Fundação de Apoio à Escola Técnica<br />

do Rio de Janeiro), tem lugar garantido.<br />

A Prefeitura já tem a matéria-prima mais<br />

importante para iniciar um processo de restauração<br />

dos imóveis e de recuperação do entorno:<br />

moradores que amam e conhecem a história da<br />

região e que desejam preservar os imóveis onde<br />

vivem da maneira como foi construído. É hora<br />

do poder público fazer sua parte, recuperando a<br />

Vila Operária e criando medidas para evitar que<br />

o casario típico do Rio de Janeiro que se espalha<br />

por aquelas centenárias ruas seja degradado por<br />

oficinas mecânicas, cortiços e pequenas favelas.<br />

<strong>Pereira</strong> Passos também agradece. π<br />

30 31


32<br />

texto e fotos: TADZIA MAYA<br />

A PRAIA<br />

QUE ERA<br />

GRANDE<br />

Caiçaras são expulsos da Praia Grande da Cajaíba, recanto<br />

paradisíaco descoberto há dez anos pelo turismo,<br />

e vão morar em favelas em Paraty. Apenas uma família<br />

ainda resiste. Mas o histórico de disputa de terras na região<br />

literônea da fronteira do Rio com São Paulo remonta<br />

dos tempos da ditadura militar.<br />

“E eu vi uma pessoa de branco na porta da minha<br />

casa, que me apontava o mar: ‘Olha lá!’. E<br />

quando eu olhei pra água, estava cheia de caiaque,<br />

lotado de gente indo embora, os barquinhos<br />

iluminados, pintadinhos, saindo daqui, sumindo<br />

lá longe...”. Uma visita à Praia Grande da Cajaíba<br />

deixa claro: o sonho de seu Altamiro estava<br />

mais para uma predição. Em 2<strong>00</strong>2, de fato, seus<br />

parentes e amigos, começaram a sair aos montes<br />

do lugar onde haviam “nascido e se criado”. Nas<br />

suas traineiras, seguiram para a periferia de Paraty.<br />

Hoje, seu Altamiro vê chegarem à praia de<br />

quase 1,5 km de extensão barcos de amigos e de<br />

turistas, mas já não vê mais os dos caiçaras que<br />

lá moravam. Em quatro anos, restaram somente<br />

oito de 87 habitantes. Só ele e seus cinco filhos<br />

ainda vão atrás do peixe. Na terra, ficam apenas<br />

duas mulheres: dona Jandira, sua mulher, e dona<br />

Dica, com seus “mais ou menos 58 anos”.<br />

E entre os barcos que despontam no azul<br />

cristalino, há sempre o receio de que chegue o<br />

pessoal que vem de outras terras, de outros mares:<br />

os supostos donos da terra. O último susto<br />

que a família levou foi em dezembro de 2<strong>00</strong>5,<br />

quando às vésperas do recesso da Justiça, recebeu<br />

uma ordem de reintegração de posse. Contra<br />

seu Altamiro e sua família a acusação se baseia<br />

em contratos de comodato, papéis assinados<br />

a partir da década de 70, quando posseiros como<br />

ele se transformaram em inquilinos da terra —<br />

ou seja, estariam ali naquelas terras por empréstimo.<br />

Os comodatos serviram como peça jurídica<br />

para questionar a posse dos moradores não só<br />

da Praia Grande, mas de toda a Reserva Ecológica<br />

da Juatinga (REJ), área de preservação que<br />

compreende desde a Praia do Sono — vizinha do<br />

famoso Condomínio Laranjeiras — até o fiorde<br />

tropical do Saco do Mamanguá, que faz divisa<br />

com Paraty-Mirim.<br />

As famílias que já deixaram a Cajaíba hoje<br />

se espremem em casas simples, de quintal reduzido,<br />

na Ilha das Cobras, na Mangueira e no<br />

Pantanal, bairros miseráveis na periferia de Paraty.<br />

O crime e o tráfico de drogas rondam o quinto<br />

destino turístico do país, e a base desta economia<br />

marginal está exatamente nos lugares onde<br />

os caiçaras se estabeleceram. O trabalho na<br />

construção civil, em casas de família e no comércio<br />

é a nova realidade dos homens e mulheres da<br />

Praia Grande. A delinqüência e a miséria agora<br />

são suas vizinhas ou cônjuges.<br />

— Eu estou arrependido.<br />

Se tivesse jeito<br />

de voltar a morar na<br />

Praia Grande, eu ia —<br />

lamenta seu Elisiário.<br />

Sem também<br />

conseguir precisar a<br />

idade — “80 e poucos”<br />

— ele perdeu a mulher<br />

“de desgosto” depois de<br />

se acomodar com filhos<br />

e netos na cidade. Pela<br />

casa que tinha na roça,<br />

o trabalhador rural aposentado<br />

ganhou <strong>R$</strong> 32<br />

mil para dividir entre os<br />

sete filhos.<br />

— Deram pra gente<br />

uns trocados, o que quiseram, não o que a gente<br />

pediu.<br />

Uma das filhas, Mariana, hoje babá, não se<br />

adaptou:<br />

— Aqui é tipo uma favelinha, né? Fui morar<br />

lá no fundo do Mamanguá.<br />

O marido, “sem serviço certo”, pode bem<br />

ganhar <strong>R$</strong> 25 por dia de trabalho carregando<br />

brita e cimento ou bem pode pegar peixe, o que<br />

tanto já fez na vida, mas agora contratado por alguém.<br />

Já Laura, a caçula, grávida pela segunda<br />

vez de um homem da cidade, de cabelo bem feito<br />

e vestido estampado da moda, não reclama:<br />

— Preferi a cidade — diz.<br />

O trabalho na<br />

construção<br />

civil, em casas<br />

de família e no<br />

comércio é a<br />

nova realidade<br />

dos homens e<br />

mulheres da<br />

Praia Grande.<br />

33


Iolanda foi<br />

a última<br />

a deixar a<br />

Praia Grande,<br />

seduzida pela<br />

cidade, e hoje<br />

paga <strong>R$</strong>2<strong>00</strong><br />

num quarto<br />

e sala num<br />

bairro rodeado<br />

de esgotos a<br />

céu aberto<br />

Outra filha, Branca, mãe de 19 anos, mora num<br />

puxadinho na laje da casa de seu pai. Seu marido tem<br />

nas costas um processo por construir na reserva. Arrumando<br />

as compras no armário da cozinha, Branca deixa<br />

escapar a nova dieta do caiçara: suco Tang, miojo, pão<br />

branco e pacotes e mais pacotes de biscoito maisena.<br />

— Tenho só uma geladeira, televisão, chuveiro e<br />

um ventilador, mas minha conta de luz vem <strong>R$</strong>1<strong>00</strong>! —<br />

espanta-se.<br />

A dificuldade para se adaptar é produto de um estilo<br />

de vida ferido, de uma dor da alma. O mundo sem<br />

muros, de propriedade coletiva e cultivos sem cercas é<br />

bem diferente do dos portões de ferro, colados uns nos<br />

outros nas ruas apertadas e sem árvores, num direito<br />

de ir e vir que volta e meia esbarra nas roletas dos ônibus.<br />

A preocupação de Carmela com os três filhos que<br />

correm para a rua se divide com o pensamento na Praia<br />

Grande, onde não há carros, nem luz elétrica, mas onde<br />

mora a 30 minutos de caminhada de dona Dica, sua<br />

mãe. Desde abril passado, quando a irmã caçula Iolanda,<br />

deixou a Praia Grande, “lugar sem moço” no seu entendimento<br />

de moça de 16 anos, para vir morar na Ilha<br />

das Cobras, ela acorda com pesadelos.<br />

— Eu sonho que mamãe está passando mal naquele<br />

deserto que tá o lugar. Sem gente. Sem parente.<br />

Iolanda foi a última a deixar a Praia Grande, seduzida<br />

pela cidade, e hoje paga <strong>R$</strong>2<strong>00</strong> num quarto e sala<br />

num bairro rodeado de esgotos a céu aberto. A menina<br />

que sabia pescar de linha, de caniço, e andar de<br />

canoa, fala que agora trabalha numa pousada. Carmela<br />

diz que não sabe se é verdade, e que os boatos na cidade<br />

apontam para outras atividades.<br />

— Mas como a gente vai confiar? É muita fofoca.<br />

VIOLÊNCIA NA REGIÃO REMONTA<br />

À DITADURA<br />

A vontade de desfrutar do mercado consumidor<br />

fez sua parte na migração dos caiçaras, mas muitos deles<br />

confessam, receosos, que só deixaram a Praia Grande<br />

porque foram obrigados. Esperando num bar do Leblon,<br />

o homem diz que prefere não ser gravado. Cristiano<br />

Tannus Notari nega tudo.<br />

— Não, ninguém foi forçado a ir embora, as pessoas<br />

pediram pra sair porque tinham filhos doentes ou<br />

queriam melhorar de vida. Não há conflito fundiário na<br />

área. Cauteloso, Cristiano diz que pensou duas vezes<br />

Mangueira:<br />

bairro em Paraty onde hoje vivem caiçaras que saíram da Praia Grande<br />

antes de dar entrevista: “Eu li que o (secretário<br />

do Ambiente Carlos) Minc não falou com vocês,<br />

por que eu iria falar?”. Informações como profissão,<br />

idade ou endereço também não foram reveladas.<br />

A entrevista foi guiada pela defesa, como<br />

ele mesmo deixou claro: “Porque não quero que<br />

aconteça comigo o mesmo que aconteceu com<br />

meu avô”. Gibrail Tannus Notari, filho de libaneses,<br />

foi quem deixou para sua mãe nove terrenos<br />

na Praia Grande quando morreu em 1996. Acusado<br />

de grilagem de terras no Atlas Fundiário do<br />

Rio de Janeiro, de 1991, Gibrail era figura pública<br />

respeitada em Paraty. Trabalhou na empresa<br />

alemã Telefunken e acabou sendo enviado à sede<br />

para ampliar os estudos. Na volta, foi responsável,<br />

já em negócio próprio, pela eletrificação de<br />

várias cidades brasileiras e fez fortuna. Para Cristiano,<br />

o que sempre esquecem de contar na história<br />

de Gibrail é que ele era, na verdade, caiçara:<br />

— Como não se dava bem com a madrasta<br />

italiana, ele foi criado dos 6 aos 12 anos no Pouso<br />

da Cajaíba — afirma.<br />

O fato de ele ser conhecido como “o grileiro<br />

da caneta vermelha” por correções em documentos<br />

da Praia do Sono é minimizado pelo neto:<br />

— Tudo naquela época era feito à mão,<br />

simplesmente ele consertou alguns dados. Com<br />

a abertura da Rio-Santos na década de 70, o caiçara-empresário<br />

foi só um dos tantos que cobiçou<br />

a Juatinga. Há, inclusive, relatos de violência<br />

que remontam aos tempos da ditadura: a revista<br />

“Veja” de 24 de dezembro de 1975, a reportagem<br />

“A favela de caiçaras” fala da chegada de homens<br />

estranhos, armados, ameaçadores nas praias, di-<br />

zendo-se donos das terras. A edição contava que<br />

lavradores haviam sido assassinados dois anos<br />

antes, a mando da White Martins, que se estabeleceu<br />

na Praia de São Gonçalo — nome que acabou<br />

batizando uma rua também na Mangueira,<br />

em Paraty, pela quantidade de caiçaras que lá se<br />

estabeleceu.<br />

Na praia vizinha das Laranjeiras, a Adela<br />

e a Brascan compraram um pedaço de terra que<br />

havia sido retirado no dia anterior da área de proteção<br />

do Parque da Bocaina. As duas empresas<br />

construíram lá o Condomínio das Laranjeiras<br />

onde, por uma diária de <strong>R$</strong> 2 mil, pode se desfrutar<br />

de campo de golfe, heliporto e outras regalias.<br />

A construção das pouco mais de 2<strong>00</strong> casas<br />

— cada uma valendo em média <strong>R$</strong> 1 milhão — fechou<br />

o acesso por mar para as praias vizinhas.<br />

Os caiçaras viraram empregados do condomínio,<br />

inclusive guardas que restringem a passagem de<br />

primos e amigos a horários marcados com identificação<br />

constrangedora e rigorosa. Resta a opção<br />

de fazer as trilhas de mais de uma hora, com<br />

compras nas costas.<br />

Foi também com constrangimento que as<br />

relações nas praias requeridas por Gibrail começaram<br />

a ser estabelecidas, segundo Lúcia Cavalieri,<br />

geógrafa da USP. Freqüentadora da Praia<br />

Grande há dez anos, ela dedicou monografia e<br />

tese aos conflitos da região:<br />

35


36<br />

— Bem nos moldes coronelistas, Gibrail<br />

começou a operar favores em troca de confiança,<br />

levando cestas básicas, remédios e emprestando<br />

o barco para necessárias viagens à cidade.<br />

Depois, mudou a condição deles em relação<br />

à terra. Quem conta é seu neto:<br />

— Ele queria recuperar os mangues onde<br />

era plantada a banana por caiçaras que trabalhavam<br />

em arrendamentos, e foi transformando os<br />

arrendatários em comodatários.<br />

Ingênuos e sem nenhuma intimidade com<br />

o dinheiro, os caiçaras acabaram firmando os<br />

contratos de comodato.<br />

— Eles não tinham entendimento do que<br />

estavam fazendo. Quem em sã consciência ia assinar<br />

para deixar de ter posse das terras de seus<br />

antepassados? — questiona Lúcia.<br />

Conta-se que Gibrail também chegou a<br />

criar búfalos nas praias do Sono e Grande. A bicharada,<br />

que pisoteava roças e nascentes, espalhava<br />

doenças e amedrontavam as crianças. Alguns<br />

assustados, outros encantados com o início<br />

do turismo na cidade foram embora, mas a maioria<br />

continuou.<br />

CAIÇARAS CAPITULARAM EM 2<strong>00</strong>3<br />

A partir de 2<strong>00</strong>1, Cristiano Tannus Notari<br />

passou a reprimir o camping, uma fonte de renda<br />

alternativa para os caiçaras, ameaçando-os com<br />

os contratos de comodato:<br />

— Eram mais de 3<strong>00</strong> barracas nos feriados<br />

e muito lixo — argumenta.<br />

Para sorte dos caiçaras, entre os campistas<br />

estava um grupo de recém-formados advogados.<br />

— Criamos a ONG Verde Cidadania em<br />

2<strong>00</strong>2 para defender o seu Maneco, da praia vizinha<br />

de Martins de Sá, que também tinha a reintegração<br />

de posse no pescoço — conta a advogada<br />

Flávia Oliveira.<br />

Seu Maneco, sua mãe de mais de 1<strong>00</strong> anos<br />

e o resto da família conseguiram permanecer na<br />

terra. Em 2<strong>00</strong>2, também às vésperas das festas<br />

de fim de ano e do recesso do Judiciário, Bidica e<br />

Dedé precisaram se esconder do oficial de Justiça<br />

que apontava na praia com a ordem de despejo. Os<br />

advogados da Verde Cidadania conseguiram suspender<br />

a ação, por meio do procurador Daniel Sarmento,<br />

que, em ofício, disse que a juíza de Paraty<br />

pode ter agido “desavisadamente ou por coação”.<br />

— Esse é um conflito conhecido na cidade<br />

e o Judiciário da cidade já deu duas decisões de<br />

reintegração de posse — relata Flávia.<br />

Ainda assim, a família caiçara foi embora,<br />

em 2<strong>00</strong>3 — mora agora em Mangeira e Bidica<br />

trabalha como faxineira. Na sentença suspensa,<br />

a juíza Admara Schneider havia grafado caiçaras<br />

entre aspas e advertia que já “se deparou<br />

com demandas possessórias onde o contratante<br />

cede seus direitos (...) e posteriormente busca a<br />

tutela jurisdicional, sob alegação de ser analfabeto”.<br />

Apostando também nessa idéia, Cristiano<br />

exigiu agora uma perícia grafotécnica no contrato<br />

de comodato de seu Altamiro — “é a honra de<br />

minha família que está em jogo”, diz ele.<br />

— Nós acreditamos que seu Altamiro, como<br />

ele conta, não tenha assinado porque era<br />

analfabeto. Na carteira de identidade dele, que é<br />

bem mais recente, não há assinatura e ninguém<br />

quer passar de analfabeto, sobretudo, na própria<br />

identidade. Mas e se tivesse assinado ou carimbado<br />

o dedo como tantos outros, qual é afinal<br />

a legitimidade desses comodatos? — questiona<br />

Leonardo Alves, advogado da Verde e atual condutor<br />

do processo.<br />

O comodato de Altamiro, de 1974, não esclarece<br />

que ele e sua mulher eram analfabetos e<br />

nem que estavam sem documento na hora da audiência.<br />

Para Cristiano, isso era comum na época.<br />

— A cidade era pequena, todos se conheciam<br />

de vista, não teria por que o tabelião citar o fato.<br />

Para Flávia Oliveira, é um absurdo uma perícia<br />

grafotécnica direcionar um processo onde<br />

“é preciso considerar todo o histórico processo<br />

de violenta disputa pela terra”. Depois que Bidica<br />

e sua família foram embora, os caiçaras capitularam.<br />

Afinal, ela era a comadre combativa que<br />

enfim entregava os pontos, depois de repetidas<br />

vezes bater o pé dizendo que morreria na Praia<br />

Grande.<br />

MINISTÉRIO PÚBLICO PROCESSA<br />

INSTITUTO ESTADUAL DE FLORESTA<br />

Há evidências que contradizem a versão<br />

de Cristiano, segundo a qual não existe conflito<br />

fundiário na praia. Dona Dica, que resiste até hoje,<br />

passava com seu facão pela trilha, abrindo caminho<br />

como de costume, quando foi surpreendida<br />

pelo caseiro da família Tannus. Uma velhinha<br />

corcunda de pouco mais de um metro de altura<br />

foi então ameaçada com uma arma e obrigada a<br />

largar a faca. Benedito dos Santos, o Titinho, filho<br />

de seu Altamiro, também já foi ameaçado pelo<br />

caseiro armado:<br />

— Eu e mais dois estávamos no campo de<br />

futebol que fica pro lado da praia onde ele mora,<br />

e onde sempre havia torneio, até que o homem<br />

veio e colocou a arma no nosso peito e foi muito<br />

perigoso, porque ele tremia muito e quase disparou<br />

— conta.<br />

Depois de incidentes como esse a comunidade<br />

parou de usar o campinho. Mas o pior episódio,<br />

lembra Titinho, foi, sem dúvida, quando<br />

seus parentes ligaram à noite, chorando desesperados<br />

diante do fogo que destruía seus ranchos<br />

na beira da praia.<br />

— Eu estava na cidade e gastei <strong>R$</strong> 3<strong>00</strong> pra<br />

chegar lá de lancha. Disseram que avisaram, mas<br />

chegaram de repente — acusa.<br />

O executor da demolição e queima dos ranchos<br />

— estruturas caiçaras que guardam redes e<br />

objetos de pesca e também se prestam à venda de<br />

comida — foi o próprio órgão gestor da área, o<br />

Instituto Estadual de Floresta (IEF). O Ministério<br />

Público processa o IEF por improbidade admi-<br />

Seu Altamiro e sua família são os últimos resistentes<br />

nistrativa, baseado em fortes indícios de que os<br />

seus agentes operaram com “escopo pessoal”.<br />

— Não há dúvida de que foi uma ordem —<br />

diz Alba Simon, diretora de Conservação da Natureza<br />

do IEF, que está no cargo desde que Carlos<br />

Minc assumiu a Secretaria do Ambiente no início<br />

de 2<strong>00</strong>7.<br />

Na época do incidente dos ranchos, Alba<br />

estava engajada no recolhimento de assinaturas<br />

a serem encaminhadas ao MP. Hoje, do outro lado<br />

da mesa, ela sofre com os problemas de quem<br />

“virou governo”:<br />

— Nós não temos fôlego, o dinheiro é curto<br />

e são 27 unidades para gerenciar, contando as<br />

que a Feema acabou de nos repassar. E as lambanças<br />

do último governo ainda estão sendo corrigidas.<br />

A sede do órgão em Paraty-Mirim, que foi<br />

construída sobre um sítio arqueológico, já tem<br />

ordem judicial para ser demolida. No entanto,<br />

efetivamente, pouca coisa mudou nas terras que<br />

durante a ditadura chegaram a ser indicadas para<br />

o início da reforma agrária. Ainda que Minc, o<br />

autor da lei estadual de 1995 que assegura às po-


pulações nativas residentes há mais de 50 anos<br />

em unidades de conservação o direito real de uso<br />

das áreas ocupadas, seja hoje também o responsável<br />

pela política ambiental do estado, a Praia<br />

Grande está cada vez mais vazia. A ineficiência<br />

e a falta de um diálogo unificado no órgão contribuem<br />

para o acirramento de conflitos como o<br />

da Reserva da Juatinga. A unidade criada por decreto<br />

em 2<strong>00</strong>2 foi uma tentativa de conter a ferocidade<br />

do turismo, superpondo-se à Apa Cairuçu,<br />

que abrange uma área bem maior, de uso menos<br />

restritivo — permite, inclusive, edificações. A superposição<br />

com uma área administrada pelo Ibama<br />

também traz desentendimentos nos planos<br />

de ação.<br />

— Num lugar onde nada pode, tudo pode<br />

e sem regras ficamos sempre na mão de algum<br />

oráculo de plantão — alega Flávia Oliveira.<br />

“ACHO QUE AS PESSOAS ESTÃO<br />

ESPERANDO UMA DOROTH STANG”<br />

A possibilidade de recategorização da reserva<br />

para uma das novas unidades previstas no<br />

Sistema Nacional de Unidades de Conservação, o<br />

SNUC, decreto federal de 2<strong>00</strong>0, parecia dar nova<br />

luz à situação, mas por enquanto só tem evidenciado<br />

a complexidade de interesses na área.<br />

O recente termo de referência feito pelo biólogo<br />

Paulo Nogara, que seria usado como base para<br />

o início do processo, foi sustado na Câmara de<br />

Compensações do Estado. Segundo Alba Simon,<br />

o processo foi interrompido porque o IEF recebeu<br />

do Instituto de Terras do Rio de Janeiro (Iterj)<br />

um “presente de grego”: as terras de Paraty-Mirim,<br />

sem a reserva indígena.<br />

— Queremos incluir essa área na recategorização,<br />

fazer tudo de uma só vez — argumenta.<br />

No entanto, a falta de consenso dentro do<br />

órgão é evidente. Enquanto na cidade do Rio, Alba<br />

fala na possibilidade de um parque ser implementado<br />

na área, em Paraty, René Wollmann o<br />

chefe da Reserva Ecológica da Juatinga, descarta<br />

a idéia:<br />

— Como controlar as milhões de entradas<br />

por esse mar sem fim — questiona.<br />

Alba diz que a questão da Juatinga é prioridade,<br />

mas para André Ilha, presidente do IEF ela<br />

“deveria ser prioridade”.<br />

— Acho que as pessoas estão esperando<br />

uma Doroth Stang — diz Flávia Oliveira. —Não é<br />

possível que depois de tanto sofrimento e de tan-<br />

ta criança descascando camarão em Paraty a Juatinga<br />

não seja prioridade — indigna-se.<br />

Yara Valverde, que presidiu o IEF por apenas<br />

oito meses no governo Minc concorda:<br />

— Na minha gestão captamos recursos<br />

através do banco alemão KFW, não tem mais por<br />

que esperar — defende.<br />

Há boatos de que sua saída do órgão tenha<br />

sido motivada por sua determinação em atuar<br />

com mais rapidez no processo da Juatinga.<br />

Sérgio Godoy, diretor de Meio Ambiente<br />

de Paraty e apontado pelos caiçaras como amigo<br />

da família Tannus, ataca os forasteiros:<br />

— Enquanto esse pessoal que nunca morou<br />

aqui ganha as fotos, nós ganhamos ônus.<br />

Serginho, como é mais conhecido, trabalhou<br />

para a família montando um empreendimento<br />

de maricultura na Praia Grande.<br />

— Ele quebrava o gelo com os caiçaras para<br />

mim — alega Cristiano.<br />

O nome de Sérgio Godoy aparece, inclusive,<br />

em contratos de compra e venda na Praia<br />

Grande, como quando assinou a rogo de seu Elisiário,<br />

analfabeto, e concretizou a sua ida para o<br />

Pantanal.<br />

— Nós agora estamos estudando com a<br />

Uerj a possibilidade da Juatinga ser um parque<br />

municipal, o IEF devia agradecer tudo que já fizemos<br />

aqui — diz Serginho.<br />

Alba desdenha:<br />

— A Prefeitura não nos preocupa, eles primeiro<br />

precisam sair da prisão.<br />

O secretário de Meio Ambiente, Marcos<br />

Antônio de Paula, agora em liberdade, foi um<br />

dos mais de 30 funcionários públicos presos em<br />

Paraty e em Angra dos Reis na Operação Cartas<br />

Marcadas da Polícia Federal, que investigou esquemas<br />

de lavagem de dinheiro e licitações am-<br />

bientais fraudulentas na Costa Verde.<br />

Vítimas dos interesses pessoais de políticos<br />

e das idas e vindas de aliados no Iterj, os caiçaras<br />

acreditam que a esperança concreta parece<br />

vir da esfera federal. O decreto 6040 de fevereiro<br />

de 2<strong>00</strong>7 institui a política nacional das populações<br />

tradicionais, reafirmando valores não só de<br />

caiçaras, mas de outros grupos com forte tradição<br />

oral e dependência da natureza, como os ribeirinhos,<br />

babaçueiros e quilombolas. A política<br />

é mais uma salvaguarda na defesa de seus territórios.<br />

Já para os caiçaras da Juatinga, um laudo<br />

do Ibama de Paraty realizado recentemente e ainda<br />

não divulgado aparece como uma arma específica<br />

de pressão política e judicial. Duas funcionárias<br />

do órgão esmiuçaram o processo de êxodo<br />

rural dos caiçaras da Praia Grande da Cajaíba,<br />

fotografando e contando a história de cada uma<br />

das casas derrubadas. O resultado é uma bomba:<br />

além da volta imediata das famílias de caiçaras<br />

para a praia, o laudo indica que a casa dos Tannus<br />

está construída a menos de dez metros do<br />

leito do rio, em discordância com o código florestal<br />

de 1965, e, por isso, deve ser demolida.<br />

O destino dos caiçaras vai sendo, enquan-<br />

to isso, discutido longe deles. A opção do turismo<br />

como fonte de renda principal ganhou status<br />

de consenso.<br />

— Na Europa privilegiam o camping —<br />

conta Flávia. — Não sei por que aqui acham que<br />

o caiçara fica menos caiçara ao explorar esse turismo<br />

de baixo impacto, o que não polui deve ser<br />

bangalô né? — provoca.<br />

Cristiano, que é contra o camping, vê no<br />

aproveitamento das atividades dos caiçaras a solução<br />

financeira dos pescadores:<br />

— Quando eles forem ao mar podem se organizar<br />

e levar gente pra ver — sugere.<br />

Luís Perequê, músico e poeta, dono do Silo<br />

Cultural — entidade escolhida agora em novembro<br />

como intermediária oficial entre município e<br />

Ministério do Turismo — critica a proposta.<br />

— O que querem é a prostituição do caiçara<br />

— detona. — Querem transformar todas as manifestações<br />

culturais em produto cultural. Não<br />

dá pro caiçara ir à pesca com mais cinco turistas<br />

na canoa. Quem propõe isso devia oferecer a mesa<br />

de jantar pra um bando de turistas desconhecidos,<br />

isso sim.<br />

Aliado a grupos de extensão universitários<br />

e à Verde Cidadania, Perequê alerta que as manifestações<br />

culturais têm diminuído de forma vertiginosa<br />

na Juatinga. No encontro de cultura caiçara<br />

realizado em outubro pela Secretaria de Turismo,<br />

não havia na programação nenhum grupo<br />

da Juatinga.<br />

— O acesso a eles é muito difícil — justificou<br />

o prefeito.<br />

O Dia do Caiçara, agora lei municipal, não<br />

dobrou ainda a curva do centro histórico. Importantes<br />

mesmo, como lembraram os ex-moradores<br />

da Praia Grande, eram os dias das festas do Divino,<br />

com pandeiros, cavaquinhos e tambor, numa<br />

comemoração que chegava a uma semana. Muita<br />

dança era feita com os tamancos de caixeta batendo<br />

nas tábuas, onde se cantava e se comia em<br />

volta das fogueiras. Reunidos no Silo para assistir<br />

ao filme “Lá e cá”, que conta um pouco de suas<br />

vidas, eles ouviram seu Altamiro reclamar:<br />

— A gente sente falta de vocês na praia, está<br />

muito triste não ter mais com quem conversar,<br />

estamos de braços abertos esperando vocês. π<br />

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série: URUBUCAMELÔ história: FERNANDO GERHEIM arte: JOSÉ AGUIAR<br />

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CABARÉ<br />

DE FAMÍLIA<br />

texto: VANESCA SOARES ilustrações: RADIOGRÁFICO<br />

texto: DENISE LOPES<br />

A história do Cine Íris tem semelhanças com a<br />

de outro centro de diversões: o Moulin Rouge<br />

Em 6 de outubro de 1889 nascia na França um recanto de diversão<br />

e prazer total. Foi durante o período da História conhecido como<br />

Belle Époque, quando o país fervilhava em novidades tecnológicas<br />

e artísticas. A força da classe trabalhadora também começava<br />

a emergir e era comum ver a aristocracia se misturar a ela nos cafés,<br />

prostíbulos e casas de shows. Paris exportava cultura e ditava moda.<br />

Neste momento especial, Joseph Oller e Charles Zidler abriram<br />

as portas do seu Moulin Rouge. Em pouco tempo, o cabaré se tornou<br />

referência em diversão, liberdade de expressão e da vontade de<br />

viver plenamente. Ele funciona até hoje em Montmartre, bairro conhecido<br />

na época pela prostituição e boemia.<br />

O Brasil também era um grande consumidor<br />

da produção cultural de Paris. Tinha acabado<br />

de abolir a escravidão e já não era mais um monarquia.<br />

O clima parisiense reinava no país. As<br />

construções seguiam o estilo art nouveau, com<br />

curvas sinuosas, uso de vidro e metal e<br />

o “exagero” nas formas ao invés da simplicidade.<br />

No auge da Belle Epoque, em<br />

1909, João da Cruz Júnior, empresário<br />

ligado ao ramo de cinema, inaugurou o<br />

Cinematógrapho Soberano, atual Cine-<br />

Teatro Íris. O empreendimento foi o segundo<br />

construído no Brasil para abrigar<br />

exibições de filmes e é o mais velho em funcionamento<br />

no Rio de Janeiro. O que o senhor João da<br />

Cruz não imaginava é que o seu Cine Soberano<br />

se tornaria anos depois um templo do hedonismo,<br />

como fora o Moulin Rouge do pintor Toulouse-Lautrec.<br />

O Cine Íris fica no Centro do Rio,<br />

na Carioca, 51. Quase centenário, presenciou as<br />

mudanças ocorridas no coração de um dos grandes<br />

centros comerciais e empresariais da cidade e<br />

a correria do seu dia-a-dia. Como vizinha, está a<br />

Praça Tiradentes, endereço de teatros célebres —<br />

o João Caetano, por exemplo —, e conhecida pela<br />

vida boêmia e pela prostituição.<br />

O Cine Íris é um negócio de família. Em um<br />

país onde as salas de exibição de rua estão sendo<br />

fechadas ou simplesmente vendidas, os descendentes<br />

do empresário João da Cruz Júnior ainda<br />

são os sócios do empreendimento. À frente da<br />

administração desde 2<strong>00</strong>1 está o engenheiro Raul<br />

Pimenta, seu bisneto. Este trabalha na casa há 30<br />

anos e por experiência conhece todos os seus mecanismos<br />

e meandros. A falta de uma formação<br />

acadêmica em administração não o preocupa.<br />

— Dizem que está no sangue, né?<br />

O fato é que mesmo com todas as dificuldades<br />

enfrentadas, o negócio continua. O Cine Íris<br />

é conhecido no Rio de Janeiro por abrigar eventos<br />

diversos. Durante o dia, é um cinema pornô.<br />

Nos fins de semana, seu prédio histórico, tombado<br />

pelo patrimônio cultural, vira casa de festas.<br />

O público é bem eclético, composto desde peões<br />

de obra até executivos, estudantes universitários,<br />

músicos e apreciadores de arte em geral. Assim<br />

como acontecia no Moulin Rouge, uma mistura<br />

democrática une classe trabalhadora, artistas e<br />

aristocracia.<br />

Durante muitos anos, o Cine Íris foi conhecido<br />

apenas como um local de exibição de filmes<br />

pornô. Raul conta que esta atividade ainda hoje é<br />

a mais lucrativa.<br />

— Se o cinema hoje em dia está funcionando,<br />

e está bem conservado como está, na medida<br />

do possível, é por causa do pornô. Senão a gente<br />

já estaria fechado.<br />

Os filmes são exibidos em sessões que vão<br />

das 10h às 21:30h. Para entrar, o visitante precisa<br />

pagar <strong>R$</strong> 8 — são 3<strong>00</strong> espectadores por dia. Nos<br />

intervalos entre um filme e outro, há o esperado<br />

46 47


show de strip-tease. Ele é feito por sete moças que<br />

trabalham há algum tempo na casa. Mas de acordo<br />

com Raul, elas apenas fazem o seu show e acabou.<br />

Não existe contato algum com o público.<br />

O servidor público Tom*, de 25 anos, freqüenta<br />

o local há muito tempo.<br />

— A primeira vez que fui, foi por curiosidade.<br />

Achei legal e peguei o costume de às vezes<br />

ir — conta.<br />

Ele confessa que o que o leva até o Cine Íris<br />

durante as sessões pornôs é o strip-tease:<br />

— Ver mulheres bonitas dançando vários<br />

tipos de música é o que me faz ainda ir. Tem sessões<br />

de filme pornô lá também, mas não me interesso<br />

por isso.<br />

O cine pornô é freqüentado, em geral, por<br />

quem está andando no Centro da cidade, tem um<br />

tempinho e acaba entrando para momentos de<br />

diversão. São advogados, estudantes, militares,<br />

aposentados, garçons etc. Não tem preconceito.<br />

E há heterossexuais, homossexuais, bissexuais...<br />

Quem, enfim, estiver por ali. Mas o cinema também<br />

serve de base para uma galera que quer explorar<br />

ao máximo o clima erótico do local. Muitos<br />

marcam encontros mais ousados ou experimentam<br />

se deixar levar pelo prazer puro e sem compromisso.<br />

Rondam por aí várias histórias sobre<br />

o que acontece por lá nestes momentos. Quem<br />

sabe tudo não passa de um exagero, uma lenda<br />

urbana? Mas a verdade é que existem até comunidades<br />

em sites de relacionamento que mencionam<br />

o Cine Íris como um local onde aqueles que<br />

procuram, encontram<br />

prazer sexual sem li-<br />

mites e a realização de fetiches. A mesma liberdade<br />

e erotismo que influenciava o cabaré francês.<br />

David 2*, de 25 anos, é um desses freqüentadores<br />

que buscam realizar suas fantasias nas<br />

sessões de filmes pornô. O programador vai a casa<br />

há quatro anos e diz que o que ainda o leva até<br />

lá é a “pegação”:<br />

— Antigamente eram os homens. Hoje<br />

curto assistir os outros se pegando. Vou pelo prazer<br />

de olhar. Gosto de ver as pessoas transando.<br />

Do strip-tease não gosta tanto. David sugere<br />

inclusive que sejam exibidos também filmes<br />

gays e que haja strippers homens.<br />

Mas Raul diz que, embora viva do cine pornô,<br />

não é isso que a família quer do espaço para<br />

sempre. Se houvesse algum tipo de parceria para<br />

transformá-lo num centro cultural ou numa casa<br />

de shows, a família toparia sem demora:<br />

— A gente não quer ficar no cinema pornô.<br />

A gente está no cinema pornô porque não<br />

tem outra opção.<br />

O prédio já foi utilizado, por exemplo, por<br />

produções do cinema nacional e por telenovelas<br />

da TV Globo — como “Madame Satã” e “Senhora<br />

do destino”, respectivamente. Tudo por causa do<br />

estado de conservação.<br />

— A família tem muito carinho pelo prédio<br />

— diz Raul Pimenta.<br />

E ela quer conservá-lo como idealizado por<br />

João da Cruz Júnior.<br />

Assim como outros cinemas de rua do Rio<br />

de Janeiro, o Cine Íris também foi cobiçado por<br />

evangélicos que queriam comprá-lo para transformá-lo<br />

em templo. Seria até irônico se isso<br />

acontecesse. A oferta para a compra,<br />

segundo Raul, era muito boa.<br />

Mas a família preferiu não vender.<br />

— Não para igreja, né? Colocar<br />

um patrimônio desses na mão de<br />

uma igreja? — afirma, categórico.<br />

A família Cruz entende que,<br />

se for assim, é melhor continuar<br />

como cinema pornô. Ela quer que<br />

o Íris permaneça no ramo da diversão.<br />

E toca o barco com a renda das<br />

sessões.<br />

Em 1998, houve uma grande<br />

mudança na direção da casa. Além<br />

da exibição de filmes pornô, o prédio começou a<br />

ser alugado para festas. O primeiro a ter esta visão<br />

da utilização do espaço foi o Grupo Matriz,<br />

que começou a realizar a festa Loud! no cinema.<br />

A idéia de atingir assim o público jovem, universitário<br />

em sua maioria, veio do irmão de Raul, Luís<br />

Roberto Cruz Pimenta, já falecido. Raul lembra<br />

que no começo eles ficaram receo-<br />

sos de abrir o espaço para esse tipo<br />

de evento. Temiam que a fama do cinema<br />

pornô espantasse aqueles que<br />

usariam o espaço durante a noite.<br />

Mas não foi o que aconteceu.<br />

A Loud! trouxe um grande público.<br />

Universitários, músicos, malucos,<br />

patricinhas, artistas, hippies,<br />

rappers, eletrônicos, bandas nacionais<br />

e estrangeiras etc. É verdade que<br />

logo no princípio havia uma certa estranheza<br />

ao se dizer que estava indo<br />

para uma festa num cinema pornô.<br />

Mas o público-alvo do evento não<br />

estava nem aí e este foi até mais um<br />

atrativo da mítica da festa. A Loud!<br />

chegou a receber 1.4<strong>00</strong> pessoas<br />

por noite. As filas davam<br />

voltas no quarteirão. O evento<br />

foi crescendo, crescendo, e a<br />

freqüência no calendário chegou<br />

a se modificar diversas vezes,<br />

com Louds acontecendo<br />

em curtos espaços de tempo.<br />

Com o sucesso, outras festas<br />

começaram a ser feitas no Cine<br />

Íris, como a DDK, a Biolorgia e<br />

a Festa do Baco.<br />

A Loud! já não é realizada<br />

no Cine Íris há tempos.<br />

E, provavelmente, as outras<br />

também deixarão o espaço em breve. Isso acontece<br />

porque as festas crescem e precisam de locais<br />

maiores para abrigar o seu público. A Loud!,<br />

no entanto, não aparece há tempos na agenda da<br />

noite carioca. Mas ainda é lembrada pelos seus<br />

fãs. Segundo eles, as melhores edições aconteceram<br />

no Cine Íris. Citando novamente os sites<br />

de relacionamento, também há comunidades da<br />

festa onde o público comenta o assunto. Bernardo<br />

Poças, 24 anos, historiador e técnico de operações,<br />

é um deles.<br />

“A gente não<br />

quer ficar no<br />

cinema pornô.<br />

A gente está<br />

no cinema<br />

pornô porque<br />

não tem outra<br />

opção”<br />

— Tentou-se fazer as festas<br />

em outros locais, a maioria<br />

pertencentes ao Grupo Matriz,<br />

só que por não ter a mesma estrutura<br />

do Cine Iris, a festa não era igual. Muitos<br />

destes locais tinham um ambiente só, não tinha<br />

nada a ver — analisa. Sobre o Cine Íris em si, ele<br />

ressalta: — Era possível ter festas e<br />

shows ao mesmo tempo, se deslocar<br />

entre vários ambientes e, se por<br />

um acaso você se cansasse, sentava<br />

na poltrona do cinema ou assistia o<br />

sol nascer no terraço.<br />

Raul acredita que o Cine Íris<br />

serviu como uma espécie de pioneiro<br />

na revitalização da noite do<br />

Centro do Rio de Janeiro. Desde<br />

que se começou a utilizar o prédio<br />

para festas, outros espaços foram<br />

sendo inaugurados, graças ao aumento<br />

de pessoas circulando na região<br />

em busca de diversão. A Lapa,<br />

inclusive, começou a mostrar sua<br />

força novamente. E todos os tipos<br />

de público estão sendo beneficiados<br />

com esta mudança.<br />

Hoje, o Cine Íris não possui<br />

perspectivas de crescimento e<br />

espera apoio para novas festas e<br />

o que mais aparecer. Desde que a<br />

Loud! deixou de ser realizada ali, a<br />

freqüência vem caindo. Menos a do<br />

cine pornô. Esta pode ser apenas<br />

uma fase, como o próprio Moulin<br />

Rouge já passou algumas vezes.<br />

Hoje, ele é uma das atrações turísticas<br />

da França. Para o Cine Íris, só<br />

o futuro dirá.<br />

Obviamente que os dois espaços<br />

têm diferenças. O Cine Íris não tem o glamour<br />

do cabaré francês. Também não tem projetos<br />

e festas próprias. Mas este momento de queda<br />

na freqüência pode ser o impulso para novos<br />

tempos. Depende apenas de investimentos para<br />

manter um patrimônio destes em pé. É o que a<br />

família Cruz mais deseja. π<br />

*Os nomes dos personagens foram trocados.<br />

48 49


RIO DE JANEIRO,<br />

SEM TÍTULO<br />

Em Ipanema, ali no Posto 9, existe uma das praias mais famosas<br />

do Brasil. É simbolo de muita coisa, para muita gente, tanta que<br />

perdi a conta. Está nos livros, nos jornais, nas revistas, nos filmes.<br />

Freqüentada por gente também famosa, feliz, descolada. Lá só vejo<br />

areia. Na praia do Pepê estão as pessoas bonitas, dizem. Todos são<br />

lindos. A praia, então, também é linda. Passo lá e, para mim, areia.<br />

A de Copacabana é um cartão postal. Milhares de turistas só para<br />

visitá-la, pisar nela. No fim do ano são milhões. Areia.<br />

O Corcovado também é maravilha do mundo. As pessoas, no<br />

avião, suspiram ao vê-lo. Ficam cantarolando músicas do Tom Jobim.<br />

O alto-falante também. Para mim, é uma pedra. O Pão de Açúcar<br />

é lindo nas fotografias, nos cartazes, nos folhetos. Tem bondinho e,<br />

do alto, tudo é deslumbrante. Se vê a praia de Copacabana. E o Corcovado.<br />

E eu, míope, continuo vendo somente pedra. O morro Dois<br />

Irmãos. Dá pra ver de dia e de noite, iluminado. Aos meus olhos<br />

é muito parecido com o Pão de Açúcar, tudo pedra.<br />

Morar perto da Lagoa custa caro, todos querem a vista, que não<br />

é mais que água. No Leblon tem um canal, famoso, aparece em novela.<br />

O canal, mesmo pela televisão, é de água. A Baía de Guanabara<br />

tem mais de meio milhão de citações no Google. Todas têm algo a<br />

dizer. Eu queria ouvir, mas, quase cego, só vejo. Água.<br />

Rio de Janeiro. Pedra, água e areia. É só.<br />

* Leo Aversa é representado pela Galeria Tempo<br />

fotos e texto: LEO AVERSA<br />

Aversa 1 Praia de Copacabana, em frente ao Copacabana Palace<br />

fotos e texto: LEO AVERSA*<br />

50 Aversa 2 Praia de Ipanema, no Posto 9<br />

51


Aversa 3 Praia da Barra, em frente ao Pepê Aversa 5 Corcovado<br />

52 Aversa 4 Pão de Açúcar Aversa 6 Morro dois irmãos<br />

53


Aversa 7 Lagoa Rodrigo de Freitas<br />

54 Aversa 8 Baia de Guanabara<br />

55<br />

quadrinhos: MARCELLO QUINTANILHA


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folhetim<br />

As aventuras de um <strong>Zé</strong> <strong>Pereira</strong><br />

texto: ADRIANA LISBOA<br />

ilustração: OLIVIA FERREIRA<br />

— A mão esquerda de Cláudia, a aliança de ouro no<br />

dedo anular, o forte que era aquele <strong>Zé</strong> baixando, fraco,<br />

na cadeira. Pipa avoada no ar parado, descendo, descendo,<br />

sem outro remédio que não fosse, como sempre,<br />

grudar-se ao chão daquela mulher. Se durante<br />

tanto tempo havia sido assim, por que seria diferente<br />

agora? Questão de leis da física. Gravidade. Atração<br />

dos corpos. Desde a noite dos tempos era assim, e nas<br />

noites do apartamento em Copacabana também.<br />

Antes, sobre a mesa, ele tinha notado um copo só:<br />

o dela. Em todos os dicionários de sinônimos visuais<br />

do mundo, aquela unidade equivalia a uma outra,<br />

muito óbvia, muito lógica. Cláudia estava sozinha.<br />

Mas apenas circunstancialmente sozinha, como ele<br />

agora via, com a chegada do Marcelinho e seu beijinho<br />

no cantinho do lábio dela.<br />

Mulheres como Cláudia sempre têm alguém, essa<br />

é a verdade, com ou sem aliança de ouro, e mesmo<br />

quando estão no Capela numa noite de sexta-feira,<br />

bebendo, sozinhas.<br />

De longe, Cícero o decretou, com o olhar, perdido.<br />

Marcelinho não se sentou. Saiu pelo Capela cumprimentando<br />

os garçons, parou na mesa de alguém a<br />

caminho do banheiro. O homem no diminutivo era a<br />

popularidade encarnada. Não precisava sequer sentir<br />

ciúmes de sua morena-loura bebendo em companhia<br />

de outro homem. Provavelmente era impensável que<br />

qualquer outro tivesse condições de substituí-lo no<br />

coração de Cláudia, pensou <strong>Zé</strong>.<br />

— Você está bem, <strong>Zé</strong> — ela disse, e ele chegou a<br />

abrir a boca para responder, mas percebeu a tempo<br />

que ela não tinha perguntado nada. Não havia uma<br />

interrogação na frase, ela não queria saber se ele estava<br />

bem, ela apenas decretava, afirmava, informava<br />

que ele estava bem. Essa era a Cláudia.<br />

— Você também — ele disse, e no conjunto das<br />

verdades e meias-verdades que compartilhara com<br />

ela ao longo de dois anos, nenhuma tinha sido tão<br />

verdadeira.<br />

Ela estava ainda mais merecedora do aperto no<br />

peito do sujeito-homem <strong>Zé</strong> do que naquele dia já distante<br />

(no tempo, não tanto na memória) em que trocava<br />

beijos dentro do Fiat Uno vermelho. O salva-vidas<br />

era só mais um daqueles garotos da praia, com mare-<br />

cap. 4: O ANEL<br />

sia dentro da cabeça, como é que Cláudia pôde descer<br />

tão baixo, ele se perguntou mais uma vez, em silêncio.<br />

Olhava para ela, para a santíssima trindade de seu<br />

queixo e seus seios no decote, e no meio do caminho<br />

o pescoço liso e sempre fresco, sempre. Olhava para a<br />

aliança no dedo, aliança de casamento, olhava para o<br />

chope diante do seu, no copo suado.<br />

Será que a aliança era a prova da capitulação definitiva<br />

de Cláudia ao Marcelinho? Será que o Marcelinho<br />

era salva-vidas? <strong>Zé</strong> <strong>Pereira</strong> disfarçou um olhar na<br />

direção do sujeitinho-homem. Bem vestido. Talvez tivesse<br />

dinheiro. Será que era jornalista? E daria à Cláudia<br />

apartamento grande, empregada, filhos, cartões<br />

de crédito? As fantasias passavam pela cabeça de <strong>Zé</strong><br />

em flashes carnavalescos, em alas da Portela. Enredo:<br />

Os ciúmes do sujeito-homem Antônio José <strong>Pereira</strong> da<br />

Silva.<br />

Enquanto Marcelinho passeava sua popularidade<br />

pelo Capela, Cláudia e <strong>Zé</strong> trocaram umas frases simpáticas.<br />

Peguntaram um pela vida do outro. O que andavam<br />

fazendo. Trabalho. Irmãos de uma, sobrinhas<br />

do outro.<br />

Mais uma vez, <strong>Zé</strong> percebeu que tinha chegado ao<br />

último gole do chope. No silêncio do copo vazio, ele<br />

tomou coragem, pigarreou. E disse, olhando para<br />

Cláudia em cheio:<br />

— Percebi a aliança no seu dedo.<br />

Ela sorriu com todos os seus dentes, todos eles,<br />

abaixando os olhos para a mesa.<br />

— Presta atenção na minha aliança, <strong>Zé</strong>. Ela aproximou<br />

a mão.<br />

Humilhação, ele pensou. Como se não bastasse o<br />

salva-vidas, agora ela precisava exibir aquele naco de<br />

ouro amarelo diante dos olhos dele, a prova de que <strong>Zé</strong><br />

<strong>Pereira</strong> era um sujeito-homem do passado.<br />

— Presta bem atenção, <strong>Zé</strong>. Não está se lembrando?<br />

Aí, então, com a autorização dela, ele se lembrou.<br />

Abriu a boca sem palavras, nem o número 33 veio em<br />

seu socorro – nada. Ele procurou o copo sem bebida.<br />

— Você não tem mesmo jeito — Cláudia disse. - Já<br />

tinha esquecido, não é? - e ela girou a mão esquerda<br />

no ar, para um lado, para o outro.<br />

- Este anel foi você quem me deu, <strong>Zé</strong>.<br />

CONTINUA<br />

60 61


O QUE QUERIA SER QUANDO CRESCER?<br />

Acho que nada. Quando era criança eu gostava de<br />

brincar de boneca de papel. Não achava que nada que<br />

eu gostava de fazer podia virar uma profissão. Mas, na<br />

verdade, eu acho que nunca quis crescer.<br />

E NO QUE ISSO DEU?<br />

Eu fiz História na UERJ e Teatro na Faculdade da Cidade.<br />

Depois fiz pós-graduação em Antropologia<br />

Cultural e mestrado de Antropologia e Comunicação<br />

Audiovisual na Universidade de Barcelona. Mas eu me<br />

considero uma pesquisadora de cultura popular.<br />

COMO VIROU BONEQUEIRA?<br />

Foi por acaso. Quando ainda estudava História pintou<br />

uma bolsa para pesquisa com mulheres idosas em asilos<br />

do Rio e o meu trabalho com ela foi com teatro de<br />

bonecos, o mamulengo. Só que eu não entendia nada<br />

sobre isso naquela época. Quando a minha orientadora<br />

viu os primeiros bonecos que confeccionei ela me<br />

disse: “Maria, você não entende nada de mamulengo”.<br />

Eu fui desmascarada, mas hoje melhorei muito.<br />

ilustre<br />

desconhecida*<br />

por EDUARDO SOUZA LIMA<br />

Maria Madeira é bonequeira e<br />

pesquisadora de cultura popular,<br />

nasceu em Petrópolis e foi criada<br />

em Niterói, mora em Barcelona, é<br />

formada em um monte de coisas e<br />

não queria crescer.<br />

FOI O MAMULENGO TE LEVOU A<br />

PERNAMBUCO?<br />

Ninguém me queria como professora<br />

de História, só como arte-educadora.<br />

Eu me enchi disso, e em 1996, fui para<br />

Pernambuco pra mudar de ares. Deixei<br />

o meu currículo no Museu do Mamulengo<br />

de Olinda e acabou que me contrataram<br />

como arte-educadora. Até que<br />

durante o Festival de Évora, em Portugal<br />

a diretora do museu teve uma trombose<br />

e eu tive que assumir no lugar dela. Fui<br />

diretora por menos de um mês. Eu era<br />

uma perdida, só fui me achar em Pernambuco.<br />

Depois, o MST me chamou<br />

para dar uma oficina para os educadores<br />

do movimento. Fui morar no sertão,<br />

acabei virando assistente social do assentamento<br />

Catalunia. Foi a primeira<br />

Catalunha da minha vida.<br />

E A SEGUNDA?<br />

Fui me apresentar num festival em Belo<br />

Horizonte e conheci o Jordi Bertran, que<br />

é considerado um dos maiores marioneteiros<br />

do mundo. Fui trabalhar na companhia<br />

dele, em Barcelona. Em 2<strong>00</strong>5,<br />

fundei lá a minha própria companhia, a<br />

Bonecos de Madeira, e este ano estréio o<br />

meu sexto espetáculo.<br />

* inspirado no “Dicionário de pessoas desconhecidas ilustres”, de Evando dos Santos.<br />

FEBEAPÁ 2<strong>00</strong>7<br />

o bumbo do zé<br />

O ano de 2<strong>00</strong>7 terminou com a notícia de que Glória<br />

Maria vai dar um tempo. A jornalista que ensinou aos<br />

espectadores do “Fantástico” que os legionários romanos<br />

usavam sapatos de bronze vai ficar de fora do Festival de<br />

Besteiras que Assolam o País (© Sérgio Porto) nos próximos<br />

dois anos. Por isso, decidimos que ela, a reportagem da<br />

“Veja” que chamou o Che Guevara de bobo, feio e fedorento<br />

e o Cesar Maia são hors concours — se o prefeito estivesse<br />

na parada não tinha pra ninguém. Com isso, o maior destaque<br />

de 2<strong>00</strong>7 é o novelista da Globo Aguinaldo Silva que, em<br />

sua ânsia em arrumar um bode expiatório para o fracasso<br />

de “Duas caras”, abusou de escrever bobagens em seu blog<br />

— tipo chamar os cubanos de vagabundos. Segue a nossa<br />

lista, feita com a ajuda dos leitores do site da <strong>Zé</strong> <strong>Pereira</strong>:<br />

“McCarthy estava certo”, Diogo Mainardi, fazendo<br />

apologia da deduragem. Passaram a mão na<br />

bunda desse cara no recreio. Só pode ser.<br />

“Fico quase repugnado, irritado mesmo, quando<br />

vejo alguém consumindo maconha, porque o cara<br />

está bancando o tráfico, não adianta dizer que não<br />

está”, Fernando Meirelles. O diretor de “Cidade de<br />

Deus” e de “Cegueira” é dono de agência de publicidade<br />

desde os anos 80 e trabalha em cinema e TV. Ou<br />

ele só trabalha irritado ou é hipócrita — ou acha que<br />

cocaína, tudo bem.<br />

“Chamem o comandante Nascimento! Está<br />

na hora de discutirmos segurança pública de verdade”,<br />

Luciano Huck. O apresentador da Globo também<br />

doou 60 exemplares de seu primeiro livro, “Na terra<br />

no céu no mar – Viagens de aventura no ‘Caldeirão do<br />

Huck’”, para o AfroReggae. Ah, e fez campanha para<br />

poder entrar na Majórica de havaianas.<br />

“Mas por mais sangrenta que fosse a ditadura,<br />

as aflições que então sofríamos por causa disso não tinham<br />

tanto peso quanto têm as aflições de hoje, quando<br />

somos supostamente livres. É que na época os militares<br />

até podiam impor arbitrariamente sua vontade.<br />

Mas pelo menos não eram fundamentalistas, não<br />

achavam que tinham a missão divina de reorganizar e<br />

assim salvar o mundo”, Aguinaldo Silva. Para o novelista,<br />

por sadismo ou por dinheiro pode baixar o cassete<br />

à vontade.<br />

“Sim, Luciano Huck faz parte da ‘elite branca’,<br />

e sob nenhuma hipótese deve se envergonhar disso.<br />

Ele faz parte dela porque trabalha de sol a sol, e paga<br />

altíssimos impostos, sem os quais a ‘elite preta’, não<br />

muito chegada ao trabalho, não estaria recebendo as<br />

benesses do bolsa família”, Aguinaldo Silva. Para ele o<br />

Brasil é o país das oportunidades.<br />

“Trabalhar que é bom, nem se pode dizer que<br />

os cubanos trabalham, já que nada produzem. (...)<br />

Pois muito bem: ao longo de suas vidas vocês já compraram<br />

tênis ‘made in Malasya’, coisas produzidas nas<br />

Filipinas, em Singapura, no Ceilão, etc., etc., etc.. Alguém<br />

aí, alguma vez na vida, conseguiu achar em alguma<br />

vitrine sequer um grampo de cabelo que fosse<br />

‘made in Cuba’?”, Aguinaldo Silva, neoliberal que<br />

acredita que o sistema econômico ideal para o Brasil é<br />

o chinês e que desconhece que o Ceilão se chama Sri<br />

Lanka desde 1972.<br />

“O Brasil tem uma dívida histórica com os militares”,<br />

Lula. É verdade, presidente. A rapaziada caia<br />

árvore que é uma beleza.<br />

“Um tiro em Copacabana é uma coisa, na Coréia<br />

é outra coisa”, José Mariano Beltrame, secretário<br />

cuja política de Segurança Pública é inspirada no filme<br />

“Tropa de elite”.<br />

“Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa<br />

Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana,<br />

é padrão sueco. Agora, pega na Rocinha. É padrão<br />

Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal”,<br />

Sergio Cabral Filho lembrando, num ato falho,<br />

os tempos de PSDB.<br />

“Quanto mais variadas forem as fontes de recursos<br />

que sustentam um jornal, uma revista, um portal<br />

de internet ou uma emissora de rádio e televisão,<br />

mais livres e independentes serão esses veículos”, Ali<br />

Kamel. Para o diretor de jornalismo da Globo, liberdade<br />

de expressão é defender os interesses da clientela.<br />

“Do ponto de vista de quem está recebendo o<br />

Bolsa Família, a questão da moralidade política vem<br />

em segundo lugar. Para quem vive em um mundo de<br />

necessidades, moralidade é luxo”, José Murilo de Carvalho,<br />

historiador. Como diria o colunista Ancelmo<br />

Góis, que aplaudiu a frase, um sujeito desses lá na minha<br />

terra é chamado de... deixa pra lá.<br />

“Se o Piauí não existisse, ninguém ficaria chateado”,<br />

Paulo Zolotto, presidente de inclinação bôer<br />

da Philips no Brasil e na América Latina.<br />

“Cansei”, um bando de babacas.<br />

“Pobre quando chega lá em cima pensa que é<br />

outra coisa”. Fernando Henrique Cardoso, deixando<br />

a máscara cair.<br />

63


64<br />

humor<br />

“LOVE OF GOLD”<br />

Em tese são a inércia e a gravidade que fazem o<br />

mundo girar, mas vocês sabem o que é na verdade:<br />

o amor. “O amor pelo ouro”, completa o Gene<br />

Hackman naquele filme do David Mamet.<br />

Hoje compreendo isso, mas nem sempre<br />

foi assim. Lembro que quando era adolescente<br />

duvidava que alguém realmente casasse por dinheiro.<br />

Talvez fossem só os hormônios trabalhando<br />

em excesso, mas acreditava que dinheiro<br />

e tudo mais que havia no mundo eram só pretextos<br />

e estrategemas para chegar até a recompensa<br />

por todas aulas de trigonometria que fui obrigado<br />

a assistir: SEXO.<br />

Que alguém abrisse mão da satisfação sexual<br />

por grana não fazia o menor sentido pra<br />

mim, que era um ingênuo e, claro, virgem, mas<br />

a verdade é que ainda acho difícil de acreditar. O<br />

que diz muito a respeito da minha escala de valores<br />

e explica porque ainda sou pobre.<br />

Também fui metaleiro quando adolescente,<br />

e naquela época essa história de não se vender era<br />

um caso sério; um dos slogans do — ahn — movimento<br />

era “morte aos falsos”, embora não me<br />

lembre muito bem como era mesmo um metaleiro<br />

de verdade. Imaginava que esse papo de vendido<br />

estava tão velho como a defesa do celibato<br />

enquanto método contraceptivo, mas a internet<br />

está aí para mostrar que velhos hábitos não morrem<br />

de resfriado.<br />

Conheço, e só de ouvir falar, poucas pessoas<br />

que podem se declarar realmente independentes<br />

(por hierarquia, financeiramente, etc), sendo<br />

que contra algumas delas existem processos penais<br />

que questionam a retidão de suas trajetórias<br />

até a independência. E duvido que elas sejam as<br />

mesmas que escrevem em blogs ou comentários<br />

de blogs que tal fulano “se vendeu”.<br />

Essa patrulha da pureza um tanto incoerente<br />

e tardia lembra a minha adolescência. Ou seja,<br />

quando vier alguém pro seu lado com esse discurso,<br />

pode ter certeza: o carinha ainda não amadureceu<br />

sexualmente.<br />

ARNALDO BRANCO<br />

leia o Mal Necessário Online em www.revistazepereira.com.br

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