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PDF - Leitura Gulbenkian - Fundação Calouste Gulbenkian

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O BLOCO DE NAUTAS<br />

XVI ENCONTRO DE LITERATURA PARA CRIANÇAS


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

4<br />

Ficha Técnica:<br />

Edição da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong><br />

Serviço de Educação e Bolsas<br />

Av. de Berna, 45-A<br />

1067-001 Lisboa Codex<br />

Coordenação: Ana Gaiaz<br />

Ilustração: Henrique Cayatte<br />

Design Gráfico: Carlota Flieg<br />

Impressão: SIG - Sociedade Industrial Gráfica, Lda.<br />

Tiragem: 1000 Exemplares<br />

Distribuição gratuita<br />

Depósito Legal nº: 225 384/05<br />

Abril 2005


Índice:<br />

Comissários<br />

Violante Florêncio e António Torrado 7<br />

Palavras de Abertura<br />

Prof. Eduardo Marçal Grilo 16<br />

Intervenção de<br />

Sua Excelência o Secretário de Estado da Educação<br />

Dr. Diogo Feyo 19<br />

Palavras sobre as obras premiadas<br />

Henrique Cayatte, Livro Ilustrado 21<br />

Maria Cabral Pacheco de Miranda, Texto Literário 24<br />

Conferência de Abertura<br />

Miguel Sousa Tavares 28<br />

Espectáculo para Crianças: Peregrinação<br />

Paulo Lages 37<br />

Inevitáveis Clássicos<br />

Maria João Seixas 43<br />

José Pedro Serra 46<br />

Mário Avelar 52<br />

Livros Clássicos com Viagens<br />

Violante Florêncio 61<br />

Glória Bastos 63<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

5


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

6<br />

José Carlos Seabra Pereira 71<br />

Alice Vieira 80<br />

Viajantes Intranquilos:<br />

Homenagem a Hans Christian Andersen<br />

Marta Martins 88<br />

Diogo Dória 89<br />

Leonor Riscado 97<br />

Rui Marques Veloso 108<br />

Modernos Nautas<br />

António Torrado 120<br />

Luísa Ducla Soares 123<br />

Pedro Rosa Mendes 133<br />

Francisco Pacheco 140<br />

Clássicos: Inevitáveis?<br />

Debate: 151<br />

Paula Moura Pinheiro<br />

Ana Maria Magalhães<br />

Marta Martins<br />

Olga Pombo<br />

José Pedro Serra<br />

Miguel Che<br />

Ondjaki<br />

Sessão de Encerramento<br />

Isabel Marques da Costa 186<br />

Ana Sousa Dias 190<br />

Prof. Eduardo Marçal Grilo 194<br />

Ilustrarte 200


Violante Florêncio<br />

António Torrado<br />

Comissários do XVI Encontro de Literatura<br />

para crianças<br />

Percursos de um Encontro<br />

“Nesta frescura tal desembarcaram<br />

Já das naus os segundos Argonautas”<br />

Camões, Lusíadas, Canto IX, 64<br />

Nautas, argonautas, cosmonautas e até cibernautas, todos eles testemunham<br />

a humana vontade de projectar a sombra para além do casulo original.<br />

As emoções e surpresas da travessia por mundos reais ou fantásticos<br />

sempre desafi aram a incredulidade dos que não ousaram, mas que entrevêem<br />

na narração dos aventureiros uma multiplicação e prolongamento de<br />

hipóteses do próprio ser e destino. Deste trânsito entre nómadas e sedentários<br />

também se faz a literatura que, numa interpretação extrema, é sempre<br />

literatura de viagens.<br />

Quem conta vai um passo à frente de quem lê. Guiado por quem detém a<br />

rota do percurso, cada leitor sabe que o itinerário não consente derivações<br />

nem atalhos. E a viagem prossegue.<br />

No vasto repertório da Literatura para crianças e jovens, que comporta quer<br />

as obras que deliberadamente para elas foram escritas quer as que os mais<br />

jovens leitores chamaram a si, num interessante fenómeno de apropriação<br />

que enriqueceu o género, as narrativas de viagem ocupam lugar de destaque.<br />

De Ulisses a Simbad, de Gulliver ao Capitão Nemo, de Tom Sawyer<br />

a Nils Holgerssen, os heróis incansáveis ou viajam até ao centro da Terra ou<br />

atravessam o espaço, o tempo e os espelhos, porque não há limites para<br />

a imaginação, quando se tem um público ávido e sempre renovado, que,<br />

tanto quanto desejamos, vai continuar a descobrir pela vida fora os tesouros<br />

que as bibliotecas não escondem.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

7


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

8<br />

Ao mencionarmos os clássicos, os livros de suporte de uma cultura, deveríamos<br />

também, na continuação da lista, incluir títulos essenciais como o<br />

“Principezinho”, “Alice no País das Maravilhas”, “Pinóquio” e tantos outros,<br />

fundadores do gosto pela leitura. Ou não deveríamos? Nestes Encontros de<br />

Literatura para Crianças é bom que as perguntas se soltem, num saudável<br />

intercâmbio de inquietações. Para isso é que os Encontros servem.<br />

Quando, em 1992, Sophia de Mello Breyner recebeu o Grande Prémio <strong>Calouste</strong><br />

<strong>Gulbenkian</strong> da Literatura para Crianças, todos os que a este género<br />

prioritariamente se dedicam sentiram que esta atribuição mais os responsabilizava,<br />

porque o Prémio estava a contemplar, enfim, uma escritora que<br />

pela totalidade da sua obra luminosa pertencia já à plêiade dos clássicos<br />

da língua portuguesa. E a responsabilidade não esmoreceu com o seu desaparecimento.<br />

Também aqui lembramos Natércia Rocha, escritora, bibliotecária e investigadora<br />

da História da Literatura para crianças, de quem os mais assíduos<br />

frequentadores dos Encontros recordarão o dinamismo e o entusiasmo com<br />

que participava na sua organização e a energia comunicativa que imprimia<br />

às suas sempre fundamentadas intervenções.<br />

Vai comemorar-se, em 2005, o duplo centenário do nascimento da Hans<br />

Chistian Andersen, também ele um infatigável viajante. De uma visita a Portugal,<br />

no ano de 1866, deu testemunho em livro, que ainda serve de roteiro<br />

a muitos dinamarqueses que nos visitam. Para além das impressões colhidas<br />

no bloco-de-notas de viajante, outras impressões ou influências a sua<br />

extensa produção de contista deixou na nossa Literatura.<br />

Andersen, escrevendo com a simplicidade de um contador de histórias,<br />

“como um pequeno pensamento que entrasse desprevenidamente no coração”,<br />

provou que, no plano do imaginário, não há insignificantes e que<br />

todas as viagens, até a de um soldadinho de chumbo, podem ser tema narrativo<br />

e motivo de deslumbramento.


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

9


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

10<br />

Henrique Cayatte, Maria Cabral Pacheco de Miranda, Diogo Feyo, Eduardo Marçal<br />

Grilo e Manuel Carmelo Rosa<br />

Eduardo Marçal Grilo


Entrega do Grande Prémio <strong>Gulbenkian</strong> de Literatura para Crianças e Jovens:<br />

Henrique Cayatte, Maria Cabral Pacheco de Miranda, Jorge Araújo, André Letria,<br />

António Mota, Diogo Feyo, Eduardo Marçal Grilo e Manuel Carmelo Rosa<br />

Vencedores do Grande Prémio de Literatura para Crianças e Jovens: Jorge Araújo<br />

(modalidade Texto Literário), André Letria (modalidade Livro Ilustrado, autor da<br />

ilustração), António Mota (modalidade Livro Ilustrado, autor do texto) e Manuel<br />

Carmelo Rosa<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

11


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

12<br />

António Mota e André Letria<br />

Conferência de Abertura:<br />

Miguel Sousa Tavares


Exposição de Homenagem a Hans Christian Andersen no hall da zona dos Congressos:<br />

Diogo Feyo e Eduardo Marçal Grilo<br />

Obras cedidas pelo Museu do Brinquedo na Exposição de Homenagem a Hans<br />

Christian Andersen<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

13


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

14<br />

Peregrinação - espectáculo de Paulo Lages, com cenografia e participação cénica<br />

de Pedro Leitão<br />

Peregrinação - espectáculo de Paulo Lages, com cenografia e participação cénica<br />

de Pedro Leitão


Público infantil durante a Sessão para Crianças<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

15


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

16<br />

Prof. Eduardo Marçal Grilo<br />

Palavras de Abertura<br />

Senhor Secretário de Estado<br />

Caros Participantes<br />

Minhas Senhoras e Senhores<br />

Permitam-me em primeiro lugar que cumprimente o Senhor Secretário<br />

de Estado que aqui representa a Senhora Ministra da Educação que não<br />

quis deixar de se associar à realização deste Encontro de Literatura para<br />

Crianças que este ano organizamos pela décima sexta vez integrado com<br />

a Cerimónia de entrega do Grande Prémio <strong>Gulbenkian</strong> de Literatura para<br />

Crianças e Jovens.<br />

A <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> orgulha-se da organização deste evento e eu, em<br />

nome do Conselho de Administração e do Seu Presidente Doutor Emílio Rui<br />

Vilar, quero dar as boas vindas a todos os que hoje e nos próximos dias nos<br />

dão o gosto e a honra de participar neste encontro por onde vão passar inúmeros<br />

escritores, professores, especialistas e técnicos que dedicam a sua<br />

actividade no todo ou em parte a esta relevante área cultural da literatura<br />

para crianças e jovens.<br />

Para todos os que nos dão a satisfação e o privilégio de poder contar com<br />

a sua presença nos diferentes painéis que integram este encontro, vai o<br />

nosso agradecimento muito especial e muito reconhecido.Sem eles não<br />

poderia a <strong>Fundação</strong> organizar mais este encontro que seguramente vai<br />

constituir, como os anteriores, um marco na história do nosso contributo<br />

para o enriquecimento do debate sobre a questão central do livro, da leitura<br />

e do gosto de ler e aprender por parte das nossas crianças e dos nossos<br />

adolescentes.<br />

Meus Caros Amigos e minhas Caras Amigas<br />

Este XVI Encontro que foi organizado sob o título genérico de “O Bloco de<br />

Nautas” , tem como tema central a viagem e procura ligar a viagem aos<br />

clássicos da literatura o que permite expressar e sublinhar a importância<br />

que deve ser atribuída à literatura e ao estudo dos clássicos na educação<br />

e na formação das crianças seja em meio escolar, seja no ambiente mais<br />

restrito do núcleo familiar e do círculo cultural que deve envolver a criança<br />

no seu quotidiano.<br />

O Encontro é ao mesmo tempo uma homenagem a Hans Christian Andersen<br />

cujo bicentenário do nascimento se comemora no próximo ano. Hans


Christian Andersen é uma personagem única, considerada por muitos<br />

como o Pai da Literatura Infantil, mas autor igualmente de diversas obras<br />

que registam as aventuras e impressões do autor acerca das viagens que<br />

realizou, entre as quais se encontra aquela que fez a Portugal e que deu<br />

origem ao livro “Visit to Portugal”.<br />

Poderão aliás ver um exemplar deste livro, pertencente à Biblioteca Nacional,<br />

que está patente na exposição apresentada no Hall dos Congressos.<br />

Aproveito para agradecer à Biblioteca Nacional e ao seu Director, não apenas<br />

a cedência deste livro de Hans Christian Andersen, mas também toda<br />

a colaboração que nos quiseram prestar na organização desta exposição<br />

bibliográfica onde figuram obras do autor ou adaptações publicadas ao<br />

longo dos anos por diversas editoras.<br />

Da Exposição fazem parte igualmente peças que nos foram cedidas pelo<br />

Museu do Brinquedo e que marcam aquele mundo imaginário criado por<br />

Hans Christian Andersen que é preenchido por soldadinhos de chumbo e<br />

bonecas de porcelana que povoam o lado encantatório e fascinante das<br />

crianças que têm o privilégio de conhecer as histórias e os personagens<br />

imortalizados por este escritor. Hans Christian Andersen foi também cantor,<br />

actor e bailarino, mas foi sobretudo alguém que dedicou grande parte<br />

da sua vida a criar histórias e contos inesquecíveis dedicados às crianças,<br />

como são a Pequena Sereia, o Fato Novo do Rei, o Patinho Feio, a Princesa<br />

e a Ervilha, a Menina dos Fósforos, o Rouxinol ou as Flores da Pequena<br />

Ida.<br />

O nosso Encontro vai-se desenrolar ao longo de hoje e dos próximos<br />

dois dias iniciando-se depois desta Sessão de Abertura com a entrega do<br />

Grande Prémio <strong>Gulbenkian</strong> de Literatura para Crianças e Jovens este ano<br />

atribuído na modalidade de livro ilustrado a António Mota autor do texto e<br />

André Letria ilustrador com a obra “Se eu fosse Magrinho” e na modalidade<br />

de texto literário a Jorge Araújo com a obra “Capitão Hussi”. Aos premiados<br />

quero em nome do Conselho de Administração e em meu nome pessoal<br />

apresentar as nossas felicitações e dizer-lhes do gosto que é para nós vê-<br />

-los receber um prémio a que estão ligados tantos prestigiados autores de<br />

livros para crianças e jovens.<br />

A <strong>Fundação</strong> com este prémio pretende sobretudo criar incentivos aos autores<br />

e de igual modo contribuir para a divulgação da literatura infantil, uma<br />

vez que é nas idades mais precoces que se desenvolve e cria o hábito da<br />

leitura, o gosto de ler e o interesse pelos saberes e pelo conhecimento.<br />

As novas tecnologias têm hoje uma importância muito grande, mas nalguns<br />

casos até excessiva, dado que não raras vezes o livro parece ser relegado<br />

para uma prioridade secundária no contexto dos instrumentos de aprendizagem<br />

colocados à disposição de quem está no meio escolar.<br />

O livro é e continuará a ser um instrumento privilegiado não apenas de<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

17


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

18<br />

aprendizagem na escola, mas sobretudo como um dos mais eficazes pilares<br />

de uma cultura e de uma forma de estar e ser, assentes no estudo, na<br />

reflexão, na análise e no conhecimento rigoroso do mundo que nos rodeia.<br />

Bem sei que outros meios nomeadamente a televisão são bem mais fáceis<br />

e atraentes do que o livro, mas enquanto que este cultiva a exigência, a<br />

atenção, a disciplina e o esforço, a primeira permeia o superficial, o efémero,<br />

o espectacular e por vezes mesmo a imbecilidade e o fortuito.<br />

Duas últimas notas antes de terminar. A primeira para agradecer a todos<br />

os que estiveram envolvidos na preparação e realização deste encontro<br />

nomeadamente os Drs. Violante Florêncio e António Torrado que são os<br />

comissários deste Encontro, e o Henrique Cayatte que concebeu a imagem<br />

gráfica do Encontro e que foi vencedor do prémio ilustração da edição anterior.<br />

Agradecimentos são devidos também aos ilustradores Manuela Bacelar,<br />

António Modesto, João Caetano e André Letria, bem como aos organizadores<br />

da mostra da Exposição ILUSTRARTE que está patente no Hall dos<br />

Congressos e onde estão expostos alguns trabalhos elaborados a partir de<br />

temas Andersianos.<br />

Agradecimentos à gráfica António Coelho Dias que é igualmente patrocinadora<br />

deste Encontro.<br />

A última palavra vai para duas homenagens que são devidas a duas grandes<br />

figuras da cultura portuguesa que dedicaram grande parte das suas vidas à<br />

Literatura destinada aos mais novos e às crianças em particular. Refiro-me a<br />

Natércia Rocha e a Sophia Mello Bryner que nos deixaram recentemente.<br />

Natércia Rocha esteve muito ligada à <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> tendo estado<br />

na organização dos primeiros Encontros para crianças e tendo além disso<br />

feito parte da nossa Comissão de <strong>Leitura</strong> Infantil na qualidade de consultora<br />

do Serviço que ao tempo era responsável pelas Bibliotecas e Apoio à<br />

<strong>Leitura</strong>.<br />

Sophia Mello Bryner considerada a maior poetisa portuguesa do século<br />

XX deixou-nos uma obra imensa que a torna uma escritora imortal. Como<br />

dizia Inês Pedrosa num texto muito bonito publicado recentemente “Sobre<br />

Sophia não se pode dizer nada que não morra diante de um só verso dela,<br />

num sítio tão frágil como o mundo”.<br />

Minhas Senhoras e Meus Senhores,<br />

Antes de dar a palavra ao Senhor Secretário de Estado gostaria de desejar<br />

a todos um Encontro em que o debate seja vivo e interessante para quem<br />

decidiu usar o seu tempo marcando presença na <strong>Fundação</strong> ao longo destes<br />

três dias que vai durar o Encontro.<br />

A todos desejo um bom trabalho. Nós ficamos a aguardar pelas mensagens<br />

que nos quiserem transmitir no final deste Encontro.


Intervenção de<br />

Sua Excelência o Secretário<br />

de Estado da Educação<br />

Dr. Diogo Feyo<br />

Senhor Administrador da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>,<br />

Senhor Professor Marçal Grilo,<br />

Senhora e Senhores Administradores da <strong>Fundação</strong>,<br />

Senhora Dra. Manuela Eanes,<br />

Senhoras e Senhores participantes no XVI Encontro de Literatura para<br />

Crianças:<br />

Começo por agradecer o convite que a <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong> me<br />

fez para estar, hoje, aqui, no XVI Encontro de Literatura para Crianças, e não<br />

posso, nem quero deixar de salientar o importante papel que a <strong>Fundação</strong><br />

tem tido, ao longo dos anos, muitos anos, na promoção e desenvolvimento<br />

do gosto e dos hábitos de leitura, no nosso país.<br />

Hoje todos estamos de acordo quanto ao facto de a leitura ser essencial<br />

para o desenvolvimento pessoal e social de cada um, pois é através da leitura<br />

que nos apropriamos do conhecimento e temos acesso à informação.<br />

É, enfi m, por via da leitura que nos apetrechamos para a vida.<br />

Todavia, é recorrente a queixa de que as nossas crianças não lêem. De<br />

facto, sempre que se analisam as causas do nosso enorme insucesso escolar,<br />

a falta de hábitos de leitura aparece como um dos factores concorrentes<br />

para esse fracasso.<br />

Todos estamos, pois, de acordo em que é fundamental e urgente desenvolver<br />

esses hábitos e criar o gosto pela leitura. E é desde muito cedo que<br />

estes hábitos e este gosto se criam e se constituem como uma necessidade<br />

para a vida.<br />

A Escola tem, aqui, como não podia deixar de ser, uma responsabilidade<br />

acrescida. Em contexto de aprendizagem, os alunos lêem para aprender. É<br />

também necessário incentivar neles o prazer de ler.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

19


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

20<br />

Consciente da importância da aprendizagem da leitura, do papel fundamental<br />

da escola neste campo e da necessidade de apoiar os docentes<br />

nesta tarefa, o Ministério da Educação aposta numa estratégia de fomento<br />

do gosto pela leitura, através do lançamento de um plano de desenvolvimento<br />

da leitura, a nível nacional, através da inclusão de tempos lectivos,<br />

logo no primeiro ciclo, dedicados à leitura, em que a leitura seja vista, não<br />

como um processo imposto, dentro da escola, mas como um espaço lúdico<br />

em que os estudantes vão ganhando o gosto por ler.<br />

Por isso mesmo, nós teremos em relação a esta matéria uma visão pragmática,<br />

em que seja possível oferecer à classe docente um vasto leque de<br />

possibilidades, pedagógicas e didácticas, de exploração de textos, com<br />

criatividade e com base em diversas estratégias. São essas mesmas estratégias<br />

que contamos, até ao final do presente ano lectivo, poder apresentar<br />

e pôr à discussão na sociedade.<br />

É preciso que se entenda, de uma forma muito clara que o Portugal desenvolvido<br />

terá de ter na sua génese a educação e a formação dos seus cidadãos,<br />

e que é necessário, em relação a essa educação, fazer um aposta<br />

em opções que sejam um investimento muito claro no plano familiar e escolar.<br />

Por essa razão, pretendemos, com este plano, acompanhar as escolas,<br />

acompanhar os Encarregados de Educação e, assim, as famílias e, evidentemente,<br />

acompanhar os alunos.<br />

O Ministério da Educação assume este desafio de acordo com um princípio<br />

de maior colaboração com todas as instituições que compõem a nossa<br />

sociedade civil e, evidentemente, a <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong>, terá,<br />

com toda a certeza, um papel muito importante a desempenhar e prestará<br />

um auxílio que tem sido habitual e que é, essencialmente, um auxílio para<br />

bem de Portugal.<br />

Terminaria, agradecendo mais uma vez o convite que me foi feito, dizendo<br />

que a presença do Ministério da Educação demonstra o empenho que temos<br />

em relação a estas matérias.<br />

Desejo que os trabalhos decorram da melhor das formas.<br />

Muito obrigado.


Henrique Cayatte<br />

Palavras sobre a obra premiada<br />

na modalidade: livro ilustrado<br />

Queria agradecer à <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong> esta oportunidade e dar<br />

os meus parabéns a todos os premiados.<br />

Deve ser uma graça terem-me pedido para vir falar sobre um livro que se<br />

chama Se eu fosse muito magrinho!<br />

Estive neste júri, fruto de uma organização bem montada, que, quando nos<br />

dá o prémio leva-nos ao júri daí a dois anos e, depois, a este papel que<br />

estou agora aqui a desempenhar. Portanto, André, prepara-te! Tens dois<br />

anos!<br />

É-me muito difícil e muito fácil falar do André. Difícil porque estou demasiadamente<br />

próximo; e fácil porque a qualidade do trabalho do André é invulgar,<br />

aqui ou em qualquer sítio do mundo, como, de resto, já foi notado nos<br />

Estados Unidos num prémio que ele recebeu por uma ilustração para uma<br />

capa do Mil Folhas.<br />

O David Hockney dizia que um artista quando executa o seu trabalho tem<br />

muito pouco a explicar e eu tenho uma enorme difi culdade em explicar,<br />

não só o meu trabalho, como os trabalhos dos meus colegas, sobretudo<br />

daqueles que eu admiro muito.<br />

O André começou a ilustrar com dezanove anos e já tem no seu currículo os<br />

mais importantes prémios de ilustração deste país. Pertence à mais jovem<br />

geração dos ilustradores portugueses.<br />

Devo dizer-vos que aquilo que se passou em Portugal nos últimos anos, no<br />

que à ilustração diz respeito, é apaixonante! É apaixonante ver o nascimento<br />

de um conjunto de ilustradores de enorme talento e de enorme qualidade,<br />

que sobrevivem num panorama editorial complexo, com índices de leitura<br />

baixíssimos, e sobrevivem continuando a não misturar as difi culdades que<br />

têm no exercício da sua profi ssão, com o momento em que têm de executar<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

21


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

22<br />

o seu trabalho, em que têm de mostrar e caracterizar as suas ideias.<br />

Lembro-me de, há vinte e cinco anos, uma pessoa, que está aqui na sala<br />

e de quem eu gosto muito, chamada António Torrado, ter dito, numa carta<br />

que me escreveu (nós não nos conhecíamos): Henrique, quando chegar<br />

a Portugal (eu não estava em Portugal nessa altura) venha falar comigo!<br />

Mostre-me o seu trabalho. Quero desde já dizer-lhe que ninguém vive da<br />

ilustração em Portugal.<br />

E, vinte e cinco anos depois, a situação é rigorosamente a mesma!<br />

Estamos num quadro de acesso a bens culturais, como sabemos, deprimidíssimo<br />

e estamos numa situação em que a opção, como o Professor<br />

Marçal Grilo disse, pelo efémero, pelo fugaz do écran, pela total transformação<br />

da relação entre a palavra e o texto, (que poderia ser uma coisa interessante<br />

e é interessante quando se trata de objectos didácticos, pedagogicamente<br />

bem construídos, mas que, infelizmente não acontece na maior parte<br />

dos casos), representa o máximo da ocupação do tempo que os nossos<br />

jovens hoje têm.<br />

E, portanto, o papel do André é de uma enorme responsabilidade porque ele<br />

vai ensinar as crianças, que vão ser homens e mulheres amanhã, a aprenderem<br />

a ler imagens. Numa altura em que a palavra escrita tem tendência<br />

para se desmaterializar, ganhar contornos de oralidade, e, o mais preocupante,<br />

tem tendência para se perder. E é por isso que nós hoje temos<br />

situações críticas neste país que convém não esconder, se lhes queremos<br />

dar uma volta e melhorá-las.<br />

O André, com o seu trabalho de ilustração, transmite uma ideia de verdade<br />

e tem transmitido às crianças nas dezenas de livros que tem ilustrado (algumas<br />

das ilustrações estão expostas lá fora) com uma enorme competência,<br />

na forma como ocupa a mancha, como dialoga com o texto, não gritando,<br />

não ofuscando a palavra.<br />

Há uma maneira muito autêntica de o André trabalhar as ilustrações e de as<br />

pintar - porque estamos aqui na presença de um pintor. Estamos em presença<br />

de um pintor que opta por imprimir as suas pinturas e tentar levá-las<br />

ao maior número de pessoas possível em vez de as guardar em casa ou de<br />

as expor, para uma minoria, numa galeria.<br />

O que dizer mais do André? Ele é pai de um Rodrigo. Há informações segu-


as de que, um dia, o Rodrigo escreverá, perpetuando pois esta cadeia.<br />

É cenógrafo. É muito interessante perceber como é que o trabalho de um<br />

ilustrador pode ser transposto, embora com uma qualidade completamente<br />

diferente, para uma cenografia. Os cenógrafos costumam dizer que se pinta<br />

de dia para se ver à noite, que se pinta na horizontal para se ver na vertical<br />

e que se pinta ao perto para se ver ao longe.<br />

Sob esse ponto de vista, o André, enquanto ilustrador tem o seu trabalho<br />

mais próximo, a maneira como ele o executa está mais próxima da maneira<br />

como as crianças o vão ver.<br />

Há uns meses na Ilustrarte no Barreiro, (para quem não sabe é a mais fantástica<br />

realização de ilustração que este país tem, a par das iniciativas da<br />

Bedeteca, onde de resto, o André também colabora), havia uma exposição<br />

de ilustrações do André que contavam uma história sem texto. Eram imagens<br />

panorâmicas, que, até pela sua escala de concepção, nos levavam<br />

a viajar dentro das próprias imagens; portanto, se eu fosse magrinho se<br />

calhar talvez conseguisse entrar numa das tuas ilustrações!<br />

Parabéns!<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

23


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

24<br />

Maria Cabral Pacheco de Miranda<br />

Palavras sobre a obra premiada<br />

na modalidade: texto literário<br />

Encarregou-me o Júri de apresentar a obra vencedora do Grande Prémio<br />

<strong>Gulbenkian</strong> de Literatura para Crianças e Jovens, na modalidade “Texto<br />

Literário”, o livro Comandante Hussi, do autor Jorge Araújo, nascido na<br />

ilha de S. Vicente, Cabo Verde, a quem vivamente felicito, englobando nesta<br />

homenagem a editora Quetzal, responsável pela sua publicação, em 2003.<br />

Este prémio pretende distinguir a originalidade e a qualidade estética e<br />

literária de uma obra publicada nos últimos dois anos, e a sua adequação a<br />

um público infantil ou juvenil.<br />

É uma história em que se cruzam vários géneros: saída da mão de um<br />

jornalista de profi ssão tem muito de reportagem, na medida em que nos<br />

confronta com factos da vida real que o autor parece conhecer muito de<br />

perto - neste caso a realidade é a da guerra civil num qualquer país africano<br />

de língua ofi cial portuguesa, possivelmente a Guiné-Bissau. Mas é<br />

também uma fi cção com uma certa dose de fantasia e aventura, uma luta<br />

entre o Bem e o Mal à maneira dos contos tradicionais e, como eles, acabando<br />

com um fi nal feliz e uma viagem iniciática em que uma criança se<br />

torna prematuramente adulta à força de percorrer um caminho semeado de<br />

difi culdades e obstáculos. Em pano de fundo, não falta até uma romântica<br />

história de amor (de amor e morte, como todas as histórias verdadeiramente<br />

românticas...).<br />

Estruturada em curtíssimos capítulos que pontuam os sucessivos episódios,<br />

esta novela é escrita numa linguagem clara e acessível, mas cuidada,<br />

com diálogos curtos e incisivos e descrições vivas e expressivas que levam<br />

o leitor a situar-se facilmente dentro da atmosfera narrativa.<br />

Para começar, o herói da história é um miúdo com o qual o jovem leitor<br />

rapidamente se identifi ca: com cerca de 12 anos, Hussi vive com a família<br />

na margem de um rio seco, em Porto de Batuquinhos, um dos inúmeros<br />

bairros de lata que pululam em volta de uma qualquer cidade africana.


O dia-a-dia de Hussi é semelhante ao de outras crianças africanas da sua<br />

idade e decorre pacificamente entre as idas à escola e à catequese, a participação<br />

nas tarefas domésticas, os treinos para os grandes desafios do<br />

Batuque Futebol Clube e, acima de tudo, os passeios na companhia da sua<br />

fiel bicicleta, uma bicicleta decrépita e mágica com a qual trava infindáveis<br />

diálogos.<br />

O seu quotidiano sem história é subitamente interrompido por uma guerra<br />

civil. Mais uma, de tão banal que se tornou, mas que vai transtornar completamente<br />

a vida da família Sissé, e de mais uns milhares de homens,<br />

mulheres e crianças.<br />

Esta brusca passagem da banalidade do dia-a-dia para a banalidade da<br />

guerra vai ser vivida por Hussi como um ritual iniciático, transformando-<br />

-lhe as coordenadas habituais de tempo e de espaço e provocando nele<br />

um amadurecimento precoce. A partir do instante em que a guerra entra<br />

na sua vida, a partir do momento “em que foi obrigado a deixar para trás a<br />

sua bicicleta”, tudo passa a ser diferente: não só deixa para trás a infância,<br />

ao ser obrigado a tomar o lugar do pai e a responsabilizar-se por toda a<br />

sua família, como a entrada no mundo dos adultos se faz da maneira mais<br />

violenta: pois este menino, oferecendo-se como “correio” dos revoltosos,<br />

vai também defrontar-se, como um soldado, com toda a barbaridade da<br />

guerra.<br />

Assim, o autor faz desfilar perante nós a absoluta irracionalidade da guerra,<br />

utilizando um ponto de vista muito visual, diria mesmo cinematográfico:<br />

“ruas desertas cobertas de cadáveres, casas abandonadas vestidas de<br />

medo. Uma sandália adormecida para sempre no lençol do rio. Um boné<br />

esquecido na atrapalhação da fuga”.<br />

É todo um mundo de caos e destruição que nos é dado através de pequenos<br />

detalhes, que indiciam uma observação próxima e objectiva de alguém<br />

que conhece por dentro esta dura realidade.<br />

Por outro lado, também são desmontados aos olhos do jovem leitor, (felizmente<br />

muito afastado deste tipo de regimes políticos), alguns dos mecanismos<br />

da tirania, embora de uma forma simplificada e até caricatural. Nas<br />

várias cenas em que assistimos aos caprichos de um ditador que decide<br />

da paz e da guerra, da vida e da morte dos súbditos, como uma criança<br />

prepotente e cruel, a própria violência é temperada por uma aguda ironia e<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

25


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

26<br />

um humor distanciador. Reparemos, a título de exemplo nesta cena paradigmática<br />

do mecanismo a que me referí:<br />

“Os generais nunca sabiam se o comandante falava a sério ou a brincar<br />

quando se referia ao pintor do regime. O que sabiam é que ele nunca mais<br />

voltaria a pintar – o presidente tinha mandado arrancar-lhe os olhos com<br />

um alicate por não gostar da maneira como pintou o seu nariz no último<br />

quadro.<br />

– Pensas que sou algum rinoceronte – foram as últimas palavras que o pintor<br />

ouviu da última vez que viu a luz do dia.<br />

O pintor do regime até costumava ser generoso na maneira como retratava<br />

o todo poderoso líder. Era, aliás, graças aos sucessivos retoques de generosidade<br />

que conseguia adiar a morte. Mas não podia exagerar e foi para<br />

dar algum realismo ao seu último quadro que optou pelo meio termo – entre<br />

as narinas do comandante Trovão e de Michael Jackon escolheu as do<br />

rinoceronte. Foi o seu único pecado: esquecer que o comandante Trovão se<br />

achava com pinta de estrela de cinema.”<br />

A caracterização física e psicológica dos personagens é efectuada por um<br />

processo “cumulativo” que, sobretudo quando aplicado aos personagens<br />

ou situações negativas, resulta num efeito de excesso que dá às situações<br />

mais dramáticas um tom de comicidade a que os jovens são particularmente<br />

sensíveis.<br />

Por exemplo: “O professor Bambara era uma criatura minúscula, roliça, óculos<br />

de lentes espessas que nem fundo de garrafa, colar de conchas à volta<br />

do pescoço, barba de três dias, o corpo forrado por uma densa floresta de<br />

pêlos por desbravar. Parecia uma almôndega peluda que rolava pelo soalho<br />

ao sabor das ordens do comandante Trovão”.<br />

Os próprios nomes dos personagens denotam a sua situação no eixo do<br />

Bem ou no do Mal. Assim, de um lado temos o comandante Trovão, e os<br />

seus sequazes: o Major Katinga, o professor Bambara, o coronel Bufo...<br />

enquanto do outro, além de Hussi e seu pai, o bravo combatente Abdelei,<br />

encontramos o valente Comandante Raio de Sol e ainda Capacete de Ferro<br />

ou Rambo das Facas,...<br />

Também, como nos velhos contos, esta novela acaba com a vitória dos<br />

bons e a aniquilação dos maus, o reconhecimento da coragem de Hussi,<br />

que é promovido a “Comandante” e o seu regresso à vida normal.


Regresso tão mais desejado quanto é uma recuperação de tudo o que,<br />

durante este intervalo, parecia definitivamente perdido: o pai, a mãe, os<br />

irmãos, os amigos e até, nas páginas finais, a sua velha e mágica bicicleta.<br />

Esta história tão séria mas, ao mesmo tempo, divertida, mostra-nos que<br />

vale a pena ser corajoso, que vale a pena lutar pela justiça, que vale a pena<br />

acreditar, com muita força, nos nossos sonhos.<br />

Então, com Hussi, enrolemos à volta do pescoço o cachecol do Barcelona,<br />

ajustemos os pedais com a sola das sandálias e sintamo-nos de novo donos<br />

do mundo...<br />

Não queria terminar sem uma palavra para as pequenas aguarelas de Pedro<br />

Sousa Pereira. Embora a ilustração não esteja aqui em foco, estes simples<br />

esquissos contribuem para ir “desdramatizando” os lados mais escuros da<br />

narrativa, acentuando o humor e o optimismo subjacentes a este magnífico<br />

texto.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

28<br />

Miguel Sousa Tavares<br />

A Viagem<br />

Estou, há mais de um ano, a tentar escrever um livro de literatura infantil<br />

cujo tema é uma viagem no espaço de dois cosmonautas. Não digo qual é<br />

a essência da história – porque o segredo é a alma do negócio – mas posso<br />

revelar que, através dessa viagem dos dois cosmonautas pelo espaço, eu<br />

tento tornar acessível e apetecível aos leitores infantis aquilo que, para mim,<br />

são os 3 elementos essenciais de uma viagem:<br />

- a partida<br />

- a descoberta e o encontro<br />

- o regresso<br />

De facto, o que é verdadeiramente essencial numa viagem? O desejo de<br />

partir, a vertigem da descoberta, a alegria do encontro e, depois, a obsessão<br />

do regresso. Não encontramos nenhum grande viajante que não<br />

tenha experimentado todos estes sentimentos, sucessivamente. Alguns<br />

atardaram-se mais do que outros, uns foram mais persistentes, quiseram<br />

ir mais além, roçaram os limites e o ponto de não regresso. Mas todos eles<br />

desesperavam por partir, por encontrar e por voltar.<br />

Uma viagem é sempre, assim e antes de mais nada, uma questão connosco<br />

próprios. Podemos viajar em solitário, a dois, a quatro, até em pequeno grupo.<br />

Mas as únicas viagens que contam, que marcam e que vivem connosco<br />

para sempre, são aquelas para as quais nos preparámos mentalmente,<br />

aquelas que começam por ser interiores, antes de serem exteriores.<br />

As viagens que verdadeiramente me marcaram são aquelas que continuaram<br />

depois do regresso – aquelas que, passe o pleonasmo, continuam a<br />

viajar comigo constantemente. E essas, não têm que ver tanto com o monumento<br />

que visitei, com o restaurante onde comi ou com a paisagem que<br />

vi: têm que ver, sobretudo, com o estado de espírito em que me encontrava<br />

nessas ocasiões, nas sensações que experimentei, os desejos que tinha, o<br />

cansaço ou a calma, o calor do sol no corpo, a paz de espírito e o desejo de<br />

ir mais além, ou a tentação de fi car ali para sempre.<br />

Dou um exemplo: uma das melhores recordações de viagem que tenho foi


uma noite passada no Sahara marroquino, quando eu e um amigo meu, que<br />

é um companheiro de viagem exemplar, nos tivemos de recolher de uma<br />

tempestade de areia, num abrigo de ocasião – uma espécie de acampamento<br />

berbere permanente, onde os viajantes de passagem são servidos<br />

do que houver na panela, dormem em tendas colectivas e, se tiverem sorte,<br />

até podem tomar um duche frio. Como, nesse fim de dia, a tempestade<br />

crescia descontrolada, tivemos de passar sem o duche, comemos rapidamente<br />

uma tagine de borrego – pobre de carne, mas maravilhosa de sabor – e<br />

recolhemos a uma tenda com uns doze colchões dispostos na areia e onde<br />

éramos os únicos hóspedes. Avisadamente, esse meu amigo foi-se deitar<br />

num dos colchões do fundo, longe da abertura da tenda, por onde a areia<br />

já começava a entrar em golfadas sucessivas. Uma tempestade de areia é<br />

um espectáculo cósmico que me fascina e me aterroriza, ao mesmo tempo.<br />

E, nessa ocasião, des-prezando os sensatos conselhos do meu companheiro<br />

de viagem, tendo triunfado o fascínio sobre o terror, fui-me deitar<br />

exactamente junto à entrada da tenda, no primeiro colchão. Durante cerca<br />

de uma hora, até ser vencido pelo sono e pelo cansaço, fiquei ali, petrificado<br />

de espanto, a ouvir aquele ruído ensurdecedor, a assistir àquela tremenda<br />

batalha entre o céu, a noite e o vento, e obviamente submerso debaixo de<br />

nuvens de areia. Por incrível que possa parecer, adormeci assim, embalado<br />

por aquele caos apocalíptico e acordei, como seria de esperar, coberto de<br />

areia, entranhado de areia em tudo o que era centímetro quadrado de roupa,<br />

de orifício ou de pele. Mas foi inesquecível; foi uma das melhores noites<br />

da minha vida. Tão inesquecível e tão importante que ainda hoje, às vezes,<br />

quando deitado no conforto do meu colchão ortopédico, a cabeça em almofadas<br />

de penas e um silêncio adequado, apesar de tudo não consigo<br />

adormecer, acontece-me pensar que estou nessa tenda no deserto de Marrocos,<br />

debaixo da tempestade de areia e, então, adormeço em paz: assim<br />

concluí que a insónia é um luxo urbano-depressivo.<br />

Viajar é também um acto de liberdade. Porque viajar é conhecer e todo o<br />

conhecimento é uma condição de liberdade. Viajar é descobrir o outro – os<br />

seus costumes, as suas tradições, o seu país, a sua paisagem, os seus<br />

sonhos e as suas ilusões. Viajar é ver as coisas em perspectiva – nós e os<br />

outros, o nosso mundo e o dos outros. É compreender, apreender, aceitar<br />

as diferenças. Por isso, a viagem é o maior antídoto, também, contra a ignorância<br />

e contra a auto-suficiência, de onde nascem todos os fanatismos<br />

e todas as intolerâncias.<br />

Eu cubro a cabeça numa sinagoga, descalço-me numa mesquita, não<br />

porque tenha passado a acreditar em Deuses ou Religiões alheias e que me<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

30<br />

são estranhas, mas porque isso faz parte do contrato ético entre o viajante<br />

e os seus hospedeiros. O mundo seria infinitamente melhor – não tenho<br />

dúvidas – se fosse governado por antigos viajantes ou, ao menos, por dirigentes<br />

que tivessem viajado. O mundo seria infinitamente mais seguro se,<br />

por exemplo, quando chegou ao poder, Bush conhecesse mais qualquer<br />

coisa para além do México, do Texas e de Paris. Porque o viajante não tem<br />

leis, nem credos universais. Ele sabe que o mundo é demasiado vasto para<br />

a nossa capacidade de compreensão, que o mundo é demasiado diferente<br />

e complexo para ser reduzido a verdades pretensamente universais. Por<br />

isso, o verdadeiro viajante não parte com ideias-feitas nem sai de casa com<br />

o catálogo dos locais a visitar nem a programação detalhada da viagem.<br />

Como eu gosto de dizer, quando se viaja, não se procura, encontra-se. Ou,<br />

dito por outras palavras que já usei algures, não se encontra o que se procura,<br />

mas o que se encontra.<br />

Nos tempos que correm ( e vocês que me estão a ouvir devem estar a<br />

pensar nisso mesmo), é difícil, todavia, distinguir um viajante de um turista.<br />

Durante dez anos, à frente da Revista “Grande Reportagem”, que inaugurou<br />

em Portugal uma secção editorial de viagem, eu tentei – subtilmente umas<br />

vezes, irritadamente outras – explicar aos leitores a diferença entre uma<br />

e outra coisa. Porque, na altura, eu sempre vi o turismo de massas como<br />

a morte da viagem, a antítese da viagem. No meu conceito romântico e,<br />

talvez elitista, de viagem ela deve conter necessariamente uma dose q.b.<br />

de solidão, de desconforto e de desnorte. Exactamente, o oposto do turismo<br />

organizado, que é mais fácil, mais seguro, mais barato e onde, acima<br />

de tudo, o que valoriza a viagem é o “convívio” e não a solidão. Hoje, sei<br />

que esta é uma causa perdida. O turismo de massas tem aspectos sociais<br />

que não são neglicenciáveis. As excursões de grupo, fazendo baixar os<br />

preços, abriram um horizonte novo a milhões de pessoas que, de outra<br />

forma, nunca teriam viajado. De acordo com a regra democrática essencial,<br />

o direito da maioria triunfa sobre o da minoria. E não há nada a dizer, não há<br />

razão para protestos. Apenas um leve reparo: acho que os programas das<br />

agências de viagens deviam deixar mais tempo livre para os seus clientes<br />

descobrirem os países por si próprios, em lugar de terem a papinha toda<br />

feita e programada ao minuto: pequeno-almoço no hotel às 9:00h, saída<br />

em autopulmann para visita às Pirâmides de Gizé, às 10:00h, com possibilidade<br />

de passeio a cavalo à roda das pirâmides, partida para Luxor às<br />

12:00h, com paragem para almoço no Oásis de Nefrit, no Hotel 4 estrelas<br />

Ramsés II, chegada a Luxor às 17:00h e visita ao templo de Hatshepsut e<br />

ao túmulo de Tutankhamon, alojamento no navio-cruzeiro Song of Nile, 4<br />

estrelas, com jantar a bordo e espectáculo de danças tradicionais com par-


ticipação dos hóspedes, possibilidade de fotografias com escravo núbio,<br />

rainha egípcia, sacerdote de Thebos, Pharaó e serpente, etc., etc. obrigado<br />

por ter viajado connosco... E também acho que as agências deviam deixar<br />

de fora dos seus programas as chamadas “visitas obrigatórias” e que<br />

quantidade dos seus clientes dispensariam de bom grado, com vantagem<br />

para eles e para os outros – os visitantes que o são por vontade própria e<br />

não por compra prévia de um programa.<br />

Apesar de tudo, apesar de conceder que não é possível lutar contra a inevitabilidade<br />

das coisas e que, portanto o turismo de massas vai, aos poucos,<br />

matando a liberdade dos viajantes – quanto mais não seja porque, bem<br />

vistas as coisas, o mundo também não é assim tão vasto que nele caibam,<br />

simultaneamente, a multidão e a solidão – há outra forma, mesmo assim,<br />

outra filosofia, outra atitude e, sobretudo, uma memória de viagem que devemos<br />

preservar e incentivar.<br />

E porque – ao que fui informado – este é um Encontro sobre literatura infantil<br />

e a plateia será maioritariamente composta por professores e educadores<br />

infantis – eu permito-me, uma vez mais, chamar a atenção para o que uma<br />

viagem, o relato de uma viagem, o despertar do fascínio pelas viagens,<br />

pode ter de formativo para o espírito de uma criança.<br />

Recapitulo e acrescento:<br />

- uma viagem dá-nos a conhecer a nós próprios e, muitas vezes, o limite de<br />

nós próprios;<br />

- dá-nos a conhecer o mundo e os outros, ensinando-nos a entender e a<br />

respeitar as diferenças;<br />

- desperta o sentido de descoberta, a vontade de conhecimento, de encontro<br />

– em contraste com o mundo fechado, virtual e cativo da televisão,<br />

dos jogos de computador e da comunicação humana hertziana, que é hoje,<br />

tristemente, o mundo dos nossos filhos;<br />

- a viagem ensina-nos a ser responsáveis, solidários, desenrascados, livres<br />

e auto-suficientes;<br />

- enfim, a literatura de viagem ensina-nos que o mundo conhecido foi descoberto<br />

por quem se aventurou a descobri-lo, por quem trocou o conforto,<br />

a segurança e a crença de que o centro do mundo somos nós e o nosso<br />

lugar, pela curiosidade de ver o que havia para além e pelo prazer de dar<br />

testemunho da descoberta. Muito mais do que os conquistadores, muito<br />

mais do que os dirigentes, muito mais do que os profetas e os pregadores,<br />

o mundo que temos foi-nos trazido e dado a descobrir e a desfrutar pelos<br />

viajantes.<br />

Se eu fosse professor de crianças – e desculpem meter a foice em seara<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

31


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

32<br />

alheia – há quatro livros, pelo menos, cuja leitura eu imporia, nem que fosse<br />

a chicote, aos meus alunos:<br />

- A Ilha do Tesouro<br />

- As Viagens de Gulliver<br />

- Robinson Crusoe<br />

- Moby Dick.<br />

Poderia não lhes ensinar mais nada, mas na idade da reforma, ninguém<br />

seria capaz de dizer que eu não teria tentado. Que não teria tentado abrir<br />

um horizonte hoje tão fechado. Abri-lo à ideia fascinante da viagem. E, para<br />

quem, porventura, entendesse – como eu entendo – que a literatura de<br />

viagens é, não apenas uma maneira de viajar em espírito, mas também, e<br />

talvez, a mais completa, a mais humana e a mais pedagógica das literaturas,<br />

não faltam, felizmente livros e autores de referência – daqueles sobre os<br />

quais poderíamos dizer que ninguém deveria morrer sem os ter lido.<br />

Nem todos os grandes viajantes foram escritores, porque a ideia de que a<br />

viagem deveria, naturalmente, ser completada pelo seu relato escrito, funcionando<br />

como testemunho para os outros, surgiu tardiamente na história.<br />

De facto, só do século XVIII em diante é que vamos encontrar os grandes,<br />

os clássicos escritores de viagem que são simultaneamente viajantes e escritores<br />

– umas vezes escritores porque viajantes, outras vezes o inverso<br />

– escritores que viajavam para escrever, como Mark Twain.<br />

Assim os primeiros grandes viajantes não escrevem, têm, quando muito,<br />

quem escreva por eles – como Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, Colombo,<br />

Fernão de Magalhães. Mas há excepções prematuras, como Marco<br />

Polo, que viveu 24 anos na China, em pleno século XIII e que escreveu após<br />

regressar a Veneza; Ibn Batuta, o grande viajante árabe, nascido em 1377;<br />

Leão, o Africano, de seu verdadeiro nome Al-Hasson Mohamed Al-Fassi,<br />

que, depois de ter sido levado como cativo para a corte do Papa Leão X,<br />

escreveu, em 1550, a sua famosa História e Descrição de África e das Coisas<br />

Notáveis que aí existem; ou, entre nós, Fernão Mendes Pinto, com a<br />

sua “Peregrinação”, ou Duarte Pacheco Pereira, com o Esmeraldo de Situ<br />

Orbis.<br />

Mas, como disse, a grande literatura de viagens pode-se estabelecer, como<br />

género, a partir do século XVIII e, com especial ênfase, no século XIX e<br />

princípios do século XX. E pode-se estabelecer, a benefício de ordem, por<br />

zonas geográficas:<br />

Temos a Ásia, cujo percursor é James Cook, descobridor da Nova Zelândia


e Robert-Louis Stevenson, que começou por viajar de canoa, na Bélgica e<br />

de burro, em França, acabando por morrer em Samoa, em 1894. Temos,<br />

a seguir, o inglês Peter Flemming, que viajou e escreveu sobre o Brasil, a<br />

China e a Mongólia ou, mais tarde, o austríaco Heinrich Harrer, alpinista nos<br />

Himalaias, feito prisioneiro pelos ingleses durante a 2ª Guerra mundial que<br />

daí escapou e chegou ao Tibete. Foi o primeiro ocidental no Tibete, desde<br />

os jesuítas portugueses, 200 anos antes; viveu lá 5 anos e acabou como<br />

tutor do actual Dalai Lama. Temos, ainda na Ásia, os clássicos Graham<br />

Greene e Somerset Maugham.<br />

Temos a África, o continente por excelência dos escritores-viajantes, a<br />

começar por Charles Darwin que nos deu o “Relato da Viagem do Beagle”,<br />

em 1831 e que foi uma viagem para mapear a costa sul africana.<br />

Os grandes sertanistas, os portugueses Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo,<br />

Silva Porto, Roberto Ivens, e o quarteto inglês dos famosos membros da<br />

National Geographic Society: John Spike, David Livingstone, Henry Morton<br />

Stanley e, o mais fascinante deles, em minha opinião, Richard Burton<br />

– tudo gente da segunda metade do século XIX, do tempo da Conferência<br />

de Berlim, quando o direito de posse em África deixou de ser baseado na<br />

descoberta para passar a ser na ocupação, no conhecimento.<br />

Depois, temos o Próximo Oriente, com viajantes como a escritora inglesa<br />

Evelyn Waugh, que entre 1928 e 37 não tinha nem morada fixa nem bens<br />

que não coubessem numa carreta de mão; ou a extraordinária Gertrude<br />

Bell, viajante, escritora, alpinista, arqueóloga e membro dos Serviços Secretos<br />

Ingleses, que viajou entre 1899 e 1920 pelo Oriente Próximo, criando<br />

tal fama que houve um chefe árabe que exclamou uma vez, a propósito de<br />

ela: “Se isto são as mulheres deles, por Alá, como serão os homens?”; e<br />

temos ainda Lawrence Durrell com o seu O Quarteto de Alexandria.<br />

Temos a seguir, os malucos do deserto:<br />

Rimbaud, que foi traficante de armas em Aden. Thomas Edward Lawrence,<br />

que escreveu aquilo que Churchill considerava o mais importante livro da<br />

literatura inglesa do sec. XX: “Os sete pilares da sabedoria”. Theodore<br />

Monod, com o seu “Viajantes do deserto”. Isabelle Eberhardt, que era uma<br />

louca e se vestia de chefe árabe para andar misturada com eles.<br />

Wilfred Thesiger, o maior viajante do deserto, que atravessou o chamado<br />

“quarto vazio” no deserto arábico em 46/47 e, no ano seguinte, fez uma<br />

viagem ainda mais extraordinária: a travessia das areias ocidentais, onde<br />

ele relata, com simplicidade e como se fosse a coisa mais banal do mundo,<br />

o que era estar 16 dias, dia após dia, sem encontrar água.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

34<br />

Todos estes estiveram no deserto arábico, no Sahara que, apesar de tudo,<br />

é o deserto dos desertos. O principal terá sido Charles de Foulcaud, o Père<br />

Foulcaud, que era um aristocrata francês, que se juntou ao exército e, depois<br />

foi padre e que, além do mais, era um extraordinário desenhador e<br />

navegador. Há um livro dele, de 1885, de desenhos, lindíssimo, chamado<br />

“Esquisses sahariennes”, com legendas. Foi o primeiro homem a fazer um<br />

dicionário de tarki/francês (tarki é a língua dos tuaregues). Foi misteriosamente<br />

assassinado pelos tuaregues, de quem era amigo.<br />

Nas Américas, temos o nosso Pedro Teixeira, que fez o relato da descida do<br />

rio Amazonas para o Rei Português; o alemão Alexander de Humbold, que<br />

esteve, em 1800, a viajar pela amazónia e pela América Central e do Sul; o<br />

inglês naturalista Charles Watterton, que viajou pela Guiana no princípio do<br />

século XIX e, já nossos contemporâneos, Chatwin e Luís Sepúlveda, que<br />

viajaram pela Patagónia.<br />

Na América do Norte, temos, entre muitos, o clássico Kerouac (mais pela<br />

literatura do que pela viagem) e, para acabar, temos os grandes viajantes<br />

escritores dos extremos da Terra:<br />

Charles Willdes, o primeiro na Antártida. E os homens dos Pólos: Schackletton,<br />

Scott, Edmund Hillary (Everest e Pólo Sul) e Richard Byrd que sobrevoou<br />

o Pólo Norte, em 1926, e lá hibernou.<br />

E eis uma lista que, por muito que vos possa ter parecido aborrecida, eu<br />

fiz questão de citar – porque eles são, verdadeiramente, os indispensáveis<br />

–ao falar de viagens e de literatura de viagens, são autêntico Património da<br />

Humanidade. Ao ler os seus livros ou relatos de viagem, um leitor desconhecedor<br />

ou desatento poderá ser levado a pensar que eles viveram coisas<br />

extraordinárias, num mundo deslumbrante, que hoje já não existe. E, em<br />

parte é verdade. Só que a outra parte, que muitas vezes não é evidente<br />

por si, é o tremendo esforço físico e psíquico, os sacrifícios inenarráveis<br />

que penaram, a obstinação, a coragem e a loucura de que tiveram de dar<br />

mostras para levar a cabo as suas viagens. Quando, por exemplo, lemos<br />

na escrita depurada, quase humilde, de Wilfred Thesiger, a sua descrição<br />

da travessia das Areias Ocidentais do Deserto Arábico, não conseguimos<br />

imaginar o que significa andar 16 dias sem encontrar água, sabendo que<br />

a vida está suspensa de dois acontecimentos: encontrar o próximo poço<br />

naquela imensidão vazia e que o poço não esteja seco. E, todavia, nesses<br />

dias em que se jogava a sua própria vida, Thesiger foi capaz de escrever<br />

páginas exaltantes sobre a grandiosidade do que via e sentia e de tirar


fotografias de uma beleza quase irreal. Também essa obstinação, esse esforço<br />

até ao limite dos nossos próprios limites, essa extrema capacidade de<br />

sobrevivência e de lucidez simultaneamente, essa vontade de chegar lá ao<br />

fundo, voltar e dar testemunho, são um exemplo, um paradigma de comportamento,<br />

nas sociedades confortáveis em que hoje vivemos e em que<br />

a população de uma aldeia que passe um dia sem água aparece à noite,<br />

revoltada no telejornal.<br />

Recordo aqui dois casos extremos de viajantes no limite de si mesmos.<br />

Sir Francis Chichester, o primeiro circunavegador solitário, que, ao passar<br />

no Cabo Horn, de noite, sozinho e debaixo de uma tempestade desabrida,<br />

fez tudo o que podia fazer: ficou apenas com a vela davante, tirou o azimute,<br />

fixou o piloto-automático e, não tendo mais condições para se manter<br />

na coberta do navio e convencido de que não conseguiria atravessar o<br />

Horn e morreria nessa noite, foi para o convés, escreveu uma maravilhosa<br />

carta de despedida à mulher, abriu uma garrafa de vinho tinto e deitou-se<br />

tranquilamente a ler e à espera da morte... que afinal não veio – felizmente<br />

para nós que pudemos ler o seu extraordinário relato da travessia do Cabo<br />

Horn em solitário. O segundo caso passa-se com o Almirante Richard Byrd,<br />

de que atrás falei, o primeiro homem a sobrevoar o Pólo Norte e também o<br />

primeiro a decidir hibernar lá, sozinho, durante mais de 40 dias, numa cabana<br />

rudimentar, ligado apenas por rádio à base mais próxima. Sem nunca<br />

revelar que estava no extremo limite da sua fraqueza, Byrd foi salvo justamente<br />

pelo seu interlocutor da rádio, que percebeu pela sua voz que ele<br />

estava à beira de se deixar ir. Quando foi resgatado, Byrd – que era já um<br />

perso-nagem célebre – respondeu, quando lhe pediram um primeiro comentário<br />

sobre a sua experiência de náufrago solitário e voluntário no Pólo<br />

Norte: “Deixei lá o que me restava de juventude e de presunção”.<br />

Esta é, foi sempre uma das minhas frases-guia, ao longo das incomparavelmente<br />

menores viagens que tive a sorte de viver.<br />

Deixar em viagem o que nos resta de juventude é a maneira mais certa de<br />

continuar a viajar para sempre – em espírito, se já não fisicamente. Deixar<br />

em viagem o que nos resta de presunção é sinal claro de que não desperdiçámos<br />

o privilégio de viajar, de que não falhámos o encontro.<br />

Quem verdadeiramente viaja, procura-se. Encontra-se. Vive e está vivo. Até<br />

à última das viagens, até à viagem final, a única que não depende da nossa<br />

vontade, todas as outras fazem de nós pessoas livres e mais ricas.<br />

Só quem teve um dia a oportunidade, o privilégio, a coragem, a audácia e<br />

a juventude de viajar assim, poderá mais tarde, tendo vivido e sobrevivido,<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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escrever qualquer coisa como este excerto final do livro de João Teixeira<br />

de Vasconcelos, de Amarante, irmão do poeta Teixeira de Pascoaes, que<br />

foi o maior caçador de elefantes de África. O livro chama-se: África vivida<br />

– Memórias de um caçador de elefantes. João Teixeira de Vasconcelos partiu<br />

com 20 e poucos anos, em 1914, para Angola; daí andou pelo Zaire e<br />

pelo norte de Angola, ao longo de mais de 20 anos, tendo morto mais de<br />

100 elefantes. Isto dito hoje, parece politicamente incorrecto, mas quem ler<br />

o livro vai ver que não havia aqui nada de fácil. Cito:<br />

Hoje, a meio caminho da vida, com meio mundo andado, desde a Holanda<br />

aos confins do continente africano; tendo destruído tanta caça, experimentado<br />

todos os climas, gozado todas as paisagens; não me palpitando mais<br />

novidades pela terra e não podendo ter nas mãos a Lua que, de longe,<br />

vejo rolar no espaço, o meu maior desejo seria ver-me novamente naquela<br />

idade, naquela força em que fracas eram as feras e pequenina a África para<br />

o poder extraordinário dum sonho, em tenros anos. Doutro modo, o que<br />

resulta da minha vida é apenas um homem vincado, pilado pelo sol tropical,<br />

quase palha pela força de tanto a trilhar nas calorentas planícies, arrumado<br />

ao canto duma lareira nortenha, martirizando-se no impossível de viver.<br />

“O impossível de viver”. O impossível de viver naturalmente, normalmente.<br />

Eis uma frase que só um grande viajante poderia ter escrito.<br />

Hoje, com todo o mundo calcorreado, já nenhum de nós poderá aspirar a<br />

semelhante vida. Mas podemos – devemos! – lê-los, ensiná-los, dá-los a ler<br />

aos que hoje se martirizam no impossível de sonhar.


Paulo Lages<br />

Peregrinação<br />

As aventuras de Fernão Mendes Pinto nos mares e terras do Oriente,<br />

contadas às crianças num espectáculo de Paulo Lages, com cenografi<br />

a e participação cénica de Pedro Leitão<br />

Distinguem-se os viajantes dos demais que viajam, dizem, pelo sentido da<br />

viagem, mais do que pelo remoto ou exótico destino dela. É ao encontro do<br />

Outro em outro lugar que vão, disponíveis para o relacionamento, dispostos<br />

à aceitação das diferenças, prontos para a partilha de experiências.<br />

Em “Peregrinação”, Fernão Mendes Pinto, viajante da fortuna, escreve direito<br />

por linhas tortas, dando-nos a perceber o Outro, fazendo-nos reconhecer<br />

a sua identidade e, tantas vezes, forçando-nos a render à sua superioridade<br />

moral, através de uma narrativa pejada de violências e crueldades,<br />

cometidas à sombra de uma divina Providência, que, todavia, não dorme e,<br />

por isso, além do socorro, também providencia o castigo, pelo pecado da<br />

hostilidade cega, origem do confronto brutal.<br />

Ao escolher encenar “Peregrinação” e dela fazer um espectáculo para<br />

crianças, impunha-se não desvirtuar esse sentido da viagem, que, por via<br />

satírica, embora, ela promove.<br />

Apresentámo-la como “as aventuras de Fernão Mendes Pinto nos mares e<br />

terras do Oriente” e fi zemos as crianças participarem...tomando-as, as mais<br />

das vezes, como piratas muçulmanos e gentios, atribuímos-lhes o papel do<br />

Outro – do suposto inimigo, do estranho, do estrangeiro, do diferente, que<br />

é, afi nal, um igual.<br />

Ao identifi carmos as crianças como “inimigos da nação portuguesa”, entre<br />

elas localizámos o corsário-mor, Coja Acém, em cuja busca se desenrola<br />

toda uma primeira parte da peça; e, já na segunda parte, seguindo em demanda<br />

de Calempluy, a ilha de ouro, na plateia descobrimos o estranho<br />

povo dos gigauhós (sic) – gente, concluímos, com cabeça, tronco e membros....<br />

como os demais!<br />

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As duas partes referidas traçam um único sulco na esteira vasta e luminosa<br />

da “Peregrinação”, como disse Aquilino Ribeiro, em cuja adaptação primeiro<br />

a lemos: o das aventuras com António de Faria. Nisso, não fomos mais<br />

longe do que alguns outros, e do que o próprio Aquilino, quando destinaram<br />

a mesma obra à infância.<br />

Fizemos, no entanto, seguir aquelas aventuras de um epílogo, que desfaz<br />

em so-nho os episódios vividos. O sonho de um pobre rapaz, leitor compulsivo<br />

de “Peregrinação” (único livro que possui, de resto...), que anda de<br />

feira em feira com o seu severo pai, a vender fazendas.<br />

De noite, no quarto de Próspero, que assim se chama, por ironia, o rapaz,<br />

eles são, respectivamente, Fernão Mendes Pinto e o capitão António de<br />

Faria, a cama é um barco, e os lamés dourados, o ouro de Calempluy. De<br />

dia, são como que as personagens trazidas ao tempo de hoje. Porque há<br />

résteas da noite no dia, do sonho na vida, da ficção na realidade. Fernão,<br />

mentes?


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José Pedro Serra, Maria João Seixas e Mário Avelar<br />

Alice Vieira, Glória Bastos, Violante Florêncio e José Carlos Seabra Pereira


Diogo Dória, Rui Marques Veloso, Marta Martins e Leonor Riscado<br />

Francisco Pacheco, Pedro Rosa Mendes, António Torrado e Luísa Ducla Soares<br />

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António Torrado e Matilde Rosa Araújo<br />

Público na Sala 1


Maria João Seixas<br />

Presidente da mesa<br />

Começo por agradecer à <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> esta magnífi ca iniciativa<br />

dos Encontros de Literatura para Crianças e aos responsáveis pelo Serviço<br />

de Educação e Bolsas.<br />

Obrigada pela vossa presença e, maior coragem que vir ouvir os clássicos e<br />

a inevitabilidade dos clássicos, é virem ouvir-me a mim como moderadora,<br />

que normalmente não dou muito tempo para falar a quem foi convidado<br />

para falar. Mas eu prometi aos meus queridos amigos da <strong>Gulbenkian</strong> portar-me<br />

bem, e vou resistir porque me apetecia imenso dizer muitas mais<br />

coisas, mas a seu tempo ...<br />

Ora bem, tenho de começar!<br />

Reparem bem neste imperativo categórico e moral, com o Professor José<br />

Pedro Serra a olhar-me de lado, porque, além de grande amigo, vem de<br />

longe este despique.<br />

O Professor José Pedro Serra, licenciado em Filosofi a, meu colega portanto,<br />

pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, doutorado, andou<br />

também pelas áreas da Teologia. Tem uma dedicação quase exclusiva ao<br />

universo antigo, estes primeiros irmãos que nos deixaram vestígios, justamente,<br />

a proximidade com os nossos amigos clássicos.<br />

Saúdo a <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> pelo título dado a esta manhã por ser na afi rmativa.<br />

Muitas vezes interrogo-me: serão os clássicos inevitáveis? Gostei<br />

muito deste lado assumidamente afi rmativo de que o são. Professor, antes<br />

de me alongar mais como gostaria, agradeço a sua presença. O Professor<br />

Mário Avelar lá terá de esperar que a hora da contemporaneidade chegue,<br />

mas vamos ouvir o Professor José Pedro Serra e, de seguida, ouviremos o<br />

Prof. Mário Avelar.<br />

Agradeço muito ao Professor José Pedro Serra, ao Professor Mário Avelar<br />

a participação.<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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Há bocado, ouvindo o Professor Mário Avelar falar sobre a alegoria da<br />

prudência de Titiano, lembrei-me do elogio da paciência.<br />

Eu era muito impaciente em miúda e, um dia, o meu pai - era sempre ele<br />

- chamou-me e com um ar muito sério disse-me assim: - Vou ler para ti uma<br />

página de um autor português, criador de artes plásticas e literárias, que se<br />

chama Almada Negreiros. Não sabia de todo quem era!<br />

E o Almada tem um conto que, se não me engano, se chama O Homem que<br />

sabia demais, onde se insere esta história que eu vos deixo para terdes a<br />

paciência que vos faltará com certeza, para encarar os vossos alunos e, sobretudo,<br />

para não deixar matizar diminutivamente o entusiasmo com que,<br />

de certeza, praticais a vossa nobilíssima profissão.<br />

Então era assim: Havia um convento, perto de uma aldeia, e os monges<br />

do convento acharam que a sala do refeitório deveria ser pintada. Foram à<br />

aldeia e convidaram o pintor mais prestigiado. O pintor chegou um dia com<br />

uma escada, uma lata de tinta, uns pincéis, que colocou num cantinho, falou<br />

com o abade, o monge superior daquele convento, que o levou à sala e<br />

lhe disse que aquela era a sala que ele devia pintar. O pintor ouviu, aceitou<br />

a encomenda e saiu. No dia seguinte, os monges esperaram por ele e nada!<br />

Dois dias depois, nada! Uma semana depois, nada!<br />

Até que o monge cozinheiro regressou ao convento e disse: - vi o pintor<br />

no mercado da aldeia! Estava a olhar com muita atenção para a banca dos<br />

legumes e das frutas.<br />

- E disseste-lhe alguma coisa?<br />

- Não, não o quis interromper.<br />

- Andaste bem!<br />

Mais uma semana, nada do pintor aparecer! Sempre a escada, a lata de<br />

tinta e os pincéis. Passados dez dias sobre essa primeira semana, há outro<br />

monge, o monge que se ocupava de ir colher as ervas das margens de um<br />

rio próximo, chegou ao mosteiro e diz: - Vi o pintor. Estava sentado numa<br />

pedra a olhar com muita atenção para as águas do rio, para os peixes e para<br />

as árvores.<br />

- E disseste-lhe que estamos à sua espera?<br />

- Não, não quis interromper a atenção com que ele estava.<br />

Até que um dia, o pintor, com muita serenidade, chega ao mosteiro, pega<br />

na escada, na lata de tinta, nos pin-céis e ninguém lhe disse nada sobre<br />

aquele atraso de meses. Vai para o refeitório e começa a pintar os legumes,<br />

os frutos, as árvores, as águas do rio, os peixes.


E o meu pai terminava, de resto como o Almada: - grande sabedoria teve o<br />

monge superior deste mosteiro por ter a paciência amorosa de dar tempo<br />

ao pintor que, por seu lado, grande sabedoria mostrou por não se precipitar<br />

sobre a invenção de um motivo, respeitar, justamente, a qualidade da encomenda<br />

e fazê-la habitar com a sua experiência mais amorosa.<br />

E o encontro do meu pai comigo nesse dia terminou assim: - E tu, o é que<br />

querias ser nesta história? - O pintor ou algum dos monges?<br />

Até hoje trago comigo esta questão! Não lhe sei dar resposta.<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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José Pedro Serra<br />

Inevitáveis Clássicos<br />

Desconfi o dos professores que não se sobressaltam com o saber de que<br />

são mensageiros, desconfi o dos educadores que vêem a educação como<br />

um processo mecânico de resultados previsíveis e seguros, desconfi o das<br />

abundantes certezas sem a bordadura das dúvidas. Desconfi o porque o<br />

tempo me vai ensinando que na aprendizagem há um poético fulgor que<br />

se desvela e acontece, qualquer coisa de irredutível à explicação, algo indomável,<br />

algo epicamente solitário, seja na árvore tantas vezes olhada mas<br />

apenas na graça daquele momento realmente vista, seja no pensador tantas<br />

vezes lido, mas redescoberto à luz daquela hora rara, seja no espanto<br />

pelas sempre renovadas feições do amor, da alegria, do sofrimento. Reconhecer<br />

e aceitar a primazia e a autoridade desse pessoal, insubstituível<br />

e íntimo núcleo, semente a partir da qual a inalienável aventura de cada um<br />

se vai esculpindo, signifi ca respeitar o outro, e o exercício desse respeito<br />

e a possibilidade dessa aventura têm um precioso nome: liberdade. Liberdade<br />

é também poder fazer e poder dizer, mas, antes disso, como condição<br />

de possibilidade de um agir e de um dizer livres, é conceder que a vida<br />

vá amadurecendo em cada um, sem atropelo de tempos ou imposição de<br />

visões, de acordo com o que cada um vai vendo e descobrindo. E todos sabemos<br />

que há sempre muito a descobrir e que o descoberto continuamente<br />

se transfi gura em cousa nova. Por isto me oponho aos docentes que, desvirtuando<br />

o sentido do termo, procuram e ambicionam na sua docência a<br />

docilidade dos discentes. O mestre, porém, sabe que não é tanto na docilidade<br />

mas no respeito autêntico e insubmisso que a docência frutifi ca.<br />

Procuram estas palavras sintetizar o princípio fundador da acção educativa.<br />

Ter-me-ei expressado mal, muito mal, todavia, se, no relevo dado à<br />

inviolabilidade da autonomia pessoal na apropriação de um qualquer saber,<br />

deixei no ar a sugestão de uma abstenção, de um afastamento pretensamente<br />

liberal e tolerante dos educadores enquanto educam. Ao contrário,<br />

justamente porque é impossível a alguém fazer por outro o seu caminho,<br />

porque é solitária e de cada um a barca da sua viagem, é decisivo anunciar<br />

os mares das ilhas afortunadas, dar a ver os grandes enigmas, relembrar<br />

o destino e o pensamento de homens de eleição, procurar em comum o<br />

sentido da vida como pescadores de pérolas, derramar perfumes raros e


equintados que o olfacto aprenda a distinguir, silenciar o ruído para que<br />

se oiça o marulhar de vozes secretas e distantes, rasgar horizontes largos<br />

para que o gesto não definhe pela tacanhez do espaço, enfim, dar a amar<br />

as coisas amáveis. Dar a amar ainda que o amor só frutifique na atenção e<br />

no cuidado de cada um para com o seu horto.<br />

O traço mais imediatamente perceptível nesta dádiva traduz-se na exigência<br />

de escolhas, com os riscos que lhe são inerentes. Peneirar, seleccionar,<br />

hierarquizar é a tarefa incontornável de quem educa. Poderemos fazê-lo<br />

consciente, deliberada e intencionalmente, convictos da nossa demanda,<br />

ou podemos fazê-lo cega e inconscientemente, arrastados por modas e<br />

ao sabor das circunstâncias, movidos por ambições estéreis, sucessos<br />

efémeros, satisfações fáceis. Educar, porém, é sempre hierarquizar, arriscarmo-nos<br />

num juízo valorativo que impõe diferenças e distinções. Percebe-se<br />

assim facilmente quão activo é o múnus do educador, quão distante<br />

está de uma permissiva passividade, que confunde o que é distinto,<br />

que se abstém de avaliar o que se apresenta com valor diferente. Dar a<br />

ver, dar a amar, constitui celebradamente uma vocação, que não se concilia,<br />

nem com indiferença, nem com esquecimento, nem com demissão.<br />

Professores, escritores, pais, educadores têm a enorme responsabilidade,<br />

não apenas técnico-profissional ou paternal, mas ético-política, ou melhor,<br />

humana, de dar a ver e de dar a amar. Esquecê-lo ou escamoteá-lo é grave<br />

lacuna e irresponsável demissão.<br />

Dar a ver, dar a ouvir, dar a amar. Mas qual o propósito último desta dádiva?<br />

Que finalidade é essa que nos convoca, que norteia o gesto e modela a palavra?<br />

Que fim é esse que pelo desejo que desperta vai orientando a viagem?<br />

O que está em causa é uma primordial ideia acerca do homem, do que lhe<br />

é próprio, do que lhe convém. Sei bem que o estatuto da criança enquanto<br />

criança possui uma dignidade e exige um respeito inquestionáveis, facto<br />

aliás proclamado nos “Direitos da Criança”, mas em última análise está a<br />

grandeza possível do homem que na criança se anuncia, promessa que<br />

poderá ser prematuramente mutilada, ou atentamente cuidada. No sorriso<br />

da criança está a alvorada do sorriso do homem maduro, no gesto infantil<br />

está, embora envolta nas misteriosas vestes do tempo, a semente de um<br />

agir futuro. Como na enigmática pergunta da Esfinge, o que está em causa<br />

é sempre o homem, quem ele é no perfil que para ele desejamos; o que<br />

está em causa é sempre a promessa de nós próprios que mais à frente por<br />

nós espera. Por isso é a educação obra de cultura. Termo de origem latina,<br />

a cultura remete-nos para o verbo colo, colis, colere, colui, cultum, que<br />

significa “habitar”, “estar em”. Se seguirmos o trilho sugerido pela etimolo-<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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gia, a cultura designa o trabalho daquele que, habitando uma terra, a torna<br />

ubérrima. A cultura supõe, então, como condição do seu próprio aparecer,<br />

uma terra potencialmente fértil e os cuidados necessários à transformação<br />

da aridez em fertilidade. No espírito, como no campo, a cultura designa o<br />

processo transfigurador, a mudança qualitativa, metamorfose daquele que,<br />

pelo exercício do cultivo, aspira a uma compreensão mais profunda, mais<br />

larga, mais plena da realidade. E a infância é um vasto campo de promessas<br />

várias, de férteis e imensas possibilidades; a inteligência do agricultor<br />

está na sábia adequação às estações e na mestria do cultivo cujo objectivo<br />

é actualizar essa potência, tornar ubérrimo o campo potencialmente fértil.<br />

A causa final da cultura é o homem e o desenho que dele queremos traçar.<br />

Educar é, pois, construir, formar, mas de acordo com uma forma, isto é, com<br />

um princípio, com uma ideia que regula e orienta o processo. O contrário é<br />

comprometer a liberdade e submergir sob a avalanche das circunstâncias.<br />

Se assim é, se a tensão entre a criança que está e o homem que poderá<br />

vir a estar é o cerne do processo educativo, então qual o princípio que nos<br />

orienta? Sob que ideia de homem nos colocamos? Qual o desenho do humano<br />

que nos obriga à lealdade? Em suma, que homem temos em vista<br />

quando educamos? A dificuldade da pergunta deixa-me perplexo, embaraçado.<br />

Afinal que homem quero eu formar? À complexidade iniludível da<br />

natureza da pergunta, junta-se ainda a turbulência do momento concreto<br />

que vivemos. Não foram denunciados como ilusórios alguns pilares sobre<br />

os quais assentava a nossa cultura? Não se fala há muito de uma difusa<br />

crise de valores, sem que desse diagnóstico se infira nem a possibilidade<br />

de restauração dos mesmos, nem a benevolência de novos valores? Não<br />

é um facto o imenso poder dos media que, regidos muitas vezes por duvidosos<br />

critérios de popularidade e sucesso, parece fazer ruir outros mais<br />

cuidados e nobres propósitos? Não nos colocou o avanço científico e tecnológico<br />

no limiar de novas fronteiras, antes inimagináveis, e que nos obrigam<br />

a repensar os limites do humano? No seio desta turbulência, como<br />

dizer o homem que queremos para amanhã? Nem que prolongássemos o<br />

tempo de reflexão a pergunta seria inteiramente respondível; mas não nos<br />

sintamos derrotados, não desistamos agora; é já muito termos feito a pergunta.<br />

Ainda que o desenho permaneça incompleto, é certamente possível<br />

ensaiar um esboço, salientar algum traço que determine o perfil, ainda que<br />

incompleto, desse homem que buscamos. Por mim, gostaria que o homem<br />

não perdesse e até agudizasse a consciência da dimensão histórica da sua<br />

existência. Esta é uma luta que tomo para mim.<br />

Quando falo da dimensão histórica do nosso existir, não me refiro estrita-


mente à especificidade do saber histórico, nem à convicção de que o tempo<br />

envolve as nossas obras. Refiro-me, sim, à partilha de um destino, à<br />

comunhão de uma demanda, ainda que expressa de múltiplas e variadíssimas<br />

formas. Da arte rupestre à mais vanguardista arte abstracta, no mito<br />

como na literatura, na ciência como na religião, o que se mostra e dá sinal<br />

é a dor de uma fractura ontológica, uma primordial aspiração a algo mais.<br />

É esta aspiração, este ansioso desejo de ser, a que a morte outorga uma<br />

trágica autenticidade, que nos une a todos, mortos e vivos, e faz dessa viagem<br />

começada há milhares de anos ainda a nossa viagem. Foi na forja dos<br />

antigos gestos que nos tornámos quem somos, é na colheita de antigas<br />

palavras que forjamos o nosso próprio e original dizer. E a consciência disto<br />

transfigura a compreensão do homem, do mundo e da vida.<br />

Esta demorada aspiração a ser, nunca inteiramente cumprida, embora<br />

tenha ab ouo marcado o ritmo da nossa já ancestral demanda, ganhou,<br />

na Grécia antiga, um nome de que somos herdeiros e do qual nos não<br />

podemos separar: filosofia. Philo-sophia, palavra que fala grego, designa<br />

não tanto um saber, mas uma atitude, não tanto uma posse, mas uma demanda,<br />

não um seguro repouso, mas uma inquieta tensão. Ao longo do<br />

tempo, e certamente pela riqueza inesgotável do termo, a filosofia assumiu<br />

diversos contornos e muitos foram os que dela tiveram um determinado entendimento.<br />

Na sua matriz, porém, está a marca indelével de um desejo, de<br />

um amor a alguma coisa que não se possui, mas para o qual amorosamente<br />

se tende, em direcção à qual se viaja. A filosofia nasce de um exílio, de<br />

um radical afastamento, fragmentado exílio da Unidade, do Absoluto, disso<br />

que se torna presente pela ausência, ausência que nos move e desperta o<br />

desejo. Este primordial e original exílio funda a nossa vocação e delimita o<br />

horizonte no qual se inscreve a nossa acção, a nossa cultura, obra continuamente<br />

orvalhada pela brisa de uma ontológica saudade. No épico ou<br />

no trágico, no cómico ou no satírico, no estremecimento da visão da morte<br />

ou na heróica celebração da finitude, no sorriso irónico ou no riso trocista<br />

é sempre de uma perda, de uma dorida perda que se trata. Sem ela, fonte<br />

das mais puras alegrias e das mais nobres tristezas, não seríamos quem<br />

somos, nem posso mesmo imaginar quem seríamos. Sombra mortal que<br />

aspira à imortalidade, inacabado fragmento que sonha a unidade, gesto<br />

estendido à outra margem, voz atirada aos céus, esta é a nossa chancela e<br />

o sopro modelador do nosso reino. O desejo do Bem, do Belo, da Verdade,<br />

ou a dilacerada afirmação da ausência deles – o que constitui, de resto,<br />

uma expressão avessa de um mesmo desejo – ilumina a intencionalidade<br />

última do nosso estar e do nosso agir e delimita o horizonte da partilha de<br />

uma história e de um destino comuns. E que magnífica é a cumplicidade,<br />

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50<br />

porque nada nos é inteiramente estranho, e que magnífica é a variedade do<br />

já feito, do já dito, do já vivido, quando se olha para trás ainda que com a<br />

mão colocada no futuro. Se somos hoje sensíveis, e bem, ao longo tempo<br />

de formação da Terra até que a árvore frondosa se constitua, se somos hoje<br />

sensíveis, e bem, à pegada do dinossauro, vestígio de um animal que nesta<br />

terra se moveu, como não o ser relativamente às marcas deixadas na alma<br />

pelos outros semelhantes a nós que nos antecederam? Estas constituem<br />

parte da nossa seiva mais profunda, mais rica, mais criativa. Receber o<br />

testemunho, acrescentá-lo com a nossa obra, transmiti-lo àqueles que nos<br />

seguem, isso é a tradição e a tradição é a memória expressiva da nossa<br />

ansiosa incandescência. Quão ingénuo é o entendimento da tradição como<br />

algo ancilosado, morto e carcomido, petrificado.<br />

Regressemos, então, à natureza da dádiva dos pais, dos professores, dos<br />

educadores. Dar a ver, dar a ouvir, dar a amar, continuando uma demanda<br />

essencial, intentando descobrir mais, ser mais livre, ser mais. E podem os<br />

clássicos ainda ajudar-nos a continuar a viagem? Têm ainda alguma coisa<br />

a dizer-nos? Continuam, como fachos de luz intensa, a iluminar-nos o caminho,<br />

ou são apenas resíduos fumegantes de uma memória velha e gasta,<br />

que apenas por inércia se apresenta? A resposta é para mim evidente, mas<br />

as indecisões que nos atravessam obrigam a tornar mais evidente a evidência.<br />

Não vejo, de resto, em que pode ser prejudicial tornar dito e pensado o<br />

que passa por uma inclinação imediata.<br />

Aflorando apenas as dificuldades implícitas no termo, “clássico” é o autor<br />

ou a obra que integra a matéria de estudo da classe, da escola. Mas<br />

como a escola exige e merece o melhor, clássico só é aquele ou aquilo<br />

que de uma forma ou de outra atinge um valor supremo na hierarquia implícita<br />

a qualquer magistério. Não pode por isso ser retirado ao clássico a<br />

aura de uma especial significação, da revelação de um especial sentido,<br />

condição da sua excelência. São clássicos porque são da classe e porque<br />

têm classe. Em sentido estrito, pela influência que exerceram sobretudo no<br />

Renascimento – embora ainda a continuem a exercer – clássicas são as<br />

obras de alguns dos autores greco-latinos compreendidos entre a aurora da<br />

civilização grega e a queda do império romano. O passar dos anos, porém,<br />

fez aumentar o património dos clássicos, acrescentando aos nomes da antiguidade<br />

outros nomes que, pela projecção que tiveram nos vindouros, se<br />

tornaram igualmente clássicos. Tocamos aqui um dos aspectos importantes<br />

no reconhecimento de um clássico: a resistência ao tempo, o trespassar os<br />

séculos. Deve aliás acrescentar-se que esta emprestada imortalidade arrancada<br />

à trituração do tempo, nem sempre é correctamente entendida e é


frequentemente motivo de uma desfigurada apreciação que lhes degrada as<br />

feições, outorgando um peso e uma rigidez que de modo nenhum convêm<br />

aos clássicos. Sob a capa de um postiço apreço, podem os clássicos ser<br />

objecto de uma idolatria, de uma ilusória e distorcida veneração que apenas<br />

os empobrece e afasta. Nem a aceitação leviana, nem o louvor acrítico<br />

explicam a resistência à passagem do tempo. Para que uma obra vença os<br />

séculos é necessário que, de uma forma ou de outra, tenha tocado as mais<br />

subtis cordas da alma humana, experiência cuja ressonância quebra os limites<br />

da hora, das circunstâncias, das modas. Os clássicos fundam modos<br />

primeiros e originais de inteligir a realidade e por isso se impõem para além<br />

de particularismos privados e subjectivos. É esse dizer de um fundo matricial,<br />

que se não deixa enredar nas malhas da moda, que importa descobrir e<br />

atentamente escutar. Quanta arrogância seria evitada se soubéssemos ler e<br />

escutar as vozes antigas esculpidas nas mãos do tempo. A Ilíada, a Eneida,<br />

Os Lusíadas são clássicos porque ao arquitectarem o épico me devolvem<br />

generosamente a possibilidade do meu agir heróico; se são clássicos os<br />

sonetos de Camões, são-no porque melhor dizem o que julgo sentir e o que<br />

posso sentir; se Ésquilo e Séneca e Shakespeare são clássicos é porque,<br />

tornando-me mais autêntico, me colocam na senda do trágico, dimensão<br />

sem a qual a vida é logro e embuste. Devo, aliás, confessar, nesse desenho<br />

sempre um pouco inventado que fazemos de nós próprios, que talvez nenhum<br />

livro me tenha formado tão determinantemente quanto a Ilíada. Foi<br />

à sombra desses heróis gregos e troianos que aprendi, reconheci em mim<br />

que a consciência da nossa condição de mortais reclama de nós um gesto<br />

largo e nobre, como se as divindades da morte, que sobre nós rondam aos<br />

milhares, em lugar de definhar ou petrificar o nosso gesto, nos convocassem<br />

para a glória de um destino heróico. É claro que é já outro o modo de<br />

entender a glória; mas, no que se sente e no que se pensa, no que com<br />

outro se descobre, a possibilidade de um destino glorioso que dê corpo à<br />

nossa vocação épica é um tesouro guardado no jardim que trago sempre<br />

comigo.<br />

São muitos os riscos de nos afastarmos dos clássicos, mas, para mim, o<br />

maior risco é perdermos a incandescência da nossa histórica demanda,<br />

consagrado louvor à nossa imperfeição. É por isso que o desprezo pelos<br />

clássicos representa uma amnésia mutiladora, um empobrecimento dos<br />

sentidos, um depauperamento da linguagem. E se o tema deste colóquio<br />

é a viagem, aprendamos com os clássicos a alegria e a aventura do viajar,<br />

metafórica prefiguração dessa outra aventura que exige, como os gregos<br />

a imaginavam, saída armada da cabeça de Zeus, uma inteligência forte e<br />

heróica, como forte e heróico deve ser o modo como se pensa e se vive.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

51


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

52<br />

Mário Avelar<br />

Os inevitáveis clássicos...<br />

nossos contemporâneos<br />

No passado mês de Junho a Academia das Ciências realizou uma sessão<br />

de homenagem a Manuel Alegre. Numa breve troca de palavras já no fi nal<br />

da cerimónia confi denciei-lhe que tinha duas primeiras edições de livros<br />

seus. Tal nada teria de especial não fossem estas de O Canto e as Armas<br />

e Praça da Canção. Lembro que algo inocentemente, e sem saber quão<br />

acertadas eram as minhas palavras, numa aula no meu então 5º ano de<br />

Português (actual 9º do segundo ciclo do ensino básico), após uma divisão<br />

de orações de Os Lusíadas, disse à minha professora que deveríamos ler<br />

também poetas como Manuel Alegre que, apesar de jovens, eram já fundamentais<br />

na nossa literatura. De facto, estes e outros livros de poetas revelados<br />

nos anos sessenta acompanharam a minha adolescência num misto<br />

de revolta endógena a essa fase da vida que na altura se estendia ao clima<br />

político e cultural dominante. Pertenço à última geração que cresceu lendo<br />

versos na então instrução primária, que os continuou a ler no então liceu,<br />

no meu caso recorrendo a vozes silenciadas colhidas em circuitos clandestinos,<br />

e que, desde então, não deixou de a ler, e de ser, também por ela,<br />

formado. Por isso mesmo não deixo de sentir perplexidade ao constatar a<br />

sua tão proclamada balcanização na formação dos jovens.<br />

A sua leitura e partilha acabou por se transformar em algo de central na<br />

minha vida, embora com uma desfocagem face a esses já algo distantes<br />

dias. De facto, desde há mais de vinte anos que o meu percurso académico<br />

se tem vindo a centrar, não na literatura portuguesa, mas sim nas literaturas<br />

americana e inglesa dos séculos XIX e XX, embora com um enfoque particular<br />

na primeira. Entre vários géneros possíveis, a poesia tem sido objecto<br />

privilegiado desse meu percurso: na minha dissertação de Mestrado trabalhei<br />

os dois últimos livros de poemas de Herman Melville, na minha tese de<br />

Doutoramento, o conjunto da poesia de Sylvia Plath, e, na minha lição das<br />

provas de Agregação, a dimensão visual na poesia de Walt Whitman. Sempre<br />

me interessou tentar desvendar a forma como o discurso poético que,<br />

temporalmente, se encontrava próximo de mim, acolhia as alterações de um<br />

real em constante e acelerada mutação. Tomei, porventura, como minhas as<br />

palavras de Whitman em “Canto de mim mesmo”, que reproduzo de acordo


com a versão de José Agostinho Baptista: “Nunca houve mais princípio do<br />

que agora, / Nem mais juventude ou velhice do que agora, / E nunca haverá<br />

mais perfeição do que agora, / Nem mais Céu ou Inferno do que agora.”<br />

(Whitman, 1992: 13) Quando me refiro à actualidade, não me refiro, porém,<br />

a um segmento circunscrito ao instante presente; refiro-me, sim, ao espaço<br />

mais dilatado de um paradigma iniciado em meados do século XIX e que se<br />

prolongará, eventualmente, até hoje. Refiro-me a um paradigma marcado<br />

pela abrangente reformulação do conceito de representação, e associado<br />

à ênfase na mudança de ritmos quotidianos, na ace-leração do tempo, a<br />

qual decorrerá da crescente importância dos meios de transporte (caminho<br />

de ferro, automóvel, avião) e da emergente indústria dos media; na passagem,<br />

enfim, de uma sociedade arcaica rural para uma sociedade urbana<br />

moderna. Não posso, por isso, deixar de lembrar o impacte que essa alteração<br />

teve nas inovações de Turner. Mas lembro também como Cézanne<br />

levou mais longe essas inovações, reformulando o conceito de perspectiva<br />

e de mimesis, e abrindo caminho para as múltiplas rupturas na pintura dos<br />

primeiros anos do século XX. Lembro a determinante viragem imposta por<br />

Schonberg; a assimilação pelo texto musical de registos culturais distintos<br />

realizada por Charles Ives em Três Lugares da Nova Inglaterra; ou os datados<br />

e patuscos instrumentos criados pelos futuristas de modo a captar e<br />

reproduzir as sonoridades da cidade industrial. Na sequência do legado<br />

freudiano, lembro as rupturas face ao conceito de narração oitocentista,<br />

realizadas, nas primeiras décadas do século XX, por Joyce em Ulysses,<br />

por Faulkner em The Sound and Fury, ou por Virginia Woolf em The Waves.<br />

Lembro, obviamente, o cinema, e, em particular, o pathos conseguido pela<br />

montagem em Eisenstein. Lembro a polifonia dramática com a qual Eliot<br />

propôs uma nova abordagem do lirismo. Lembro a consagração da fotografia<br />

como forma de expressão artística. A catalogação poderia prosseguir.<br />

Num brevíssimo parêntesis, chamo a vossa atenção para uma forma de expressão<br />

artística que se consagrou a partir dos anos oitenta do século XX, e<br />

que pode e deve ser explorada pedagogicamente, o video-clip. Lembro que<br />

algumas das sátiras mais demolidoras a um certo tipo de media sensacionalistas,<br />

prenunciados e denunciados no século XIX por Oscar Wilde em “The<br />

Soul of Man Under Socialism” surgem no video-clip de Peter Gabriel, The<br />

Barry Williams Show (a pornografia dos reality shows) e no video-clip dos<br />

REM, A Bad Day (neste caso, a logorreia da informação nos noticiários).<br />

Depois deste parêntesis, proponho-vos que centremos a nossa atenção<br />

em dois aspectos: em primeiro lugar, na radical mudança a nível de representação<br />

que, generalizadamente, entre finais do século XIX e princípios<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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do século XX se opera nas diferentes formas de expressão artística; em<br />

segundo lugar, na hospitalidade com que essas diferentes formas de expressão<br />

acolhem as inovações exógenas. Permitam-me que ilustre este último<br />

aspecto através de T. S. Eliot, um poeta americano que viria a adquirir<br />

a nacionalidade inglesa. Tanto em “A canção de amor de J. Alfred Prufrock”,<br />

de acordo com a versão portuguesa de João Almeida Flor, como em “Terra<br />

Devastada”, segundo a versão portuguesa de Gualter Cunha, Eliot assimila<br />

a estratégia cinematográfica da montagem e da elipse para contrapor dramaticamente<br />

fragmentos textuais com origens diversas. O facto de estes<br />

fragmentos de linguagem terem origens distintas, cria uma justaposição<br />

de texturas, tal como na arte dada, simultaneamente exibindo uma polifonia<br />

de sentidos, tensões, e expectativas, obviamente evocadora da arte da<br />

música. Esta interacção entre a literatura (a poesia em particular), e outras<br />

formas de expressão artística, esta intertextualidade, se quisermos recorrer<br />

a um termo bastante disseminado tanto no actual jargão crítico como<br />

no pedagógico, sustenta os momentos maiores da poesia oitocentista e<br />

novecentista anglo-americana. Alguns breves exemplos: Wordsworth escreve<br />

uma elegia tomando como impulso um quadro de George Beaumont;<br />

Keats reflecte sobre a perenidade da poesia e da arte tendo como impulso<br />

a observação de um vaso grego com o qual se cruza no British Museum;<br />

Shelley aborda a efemeridade do poder temporal através das ruínas de uma<br />

estátua encontrada no deserto; Whitman concebe o livro da sua vida numa<br />

constante revisão da sua identidade através das fotografias que inclui nas<br />

sucessivas reedições e que espelham tanto a degenerescência do corpo<br />

como um irónico jogo com o leitor; Melville reconhece nos monumentos<br />

da Grécia Antiga os vestígios de um sentido que a América do seu tempo<br />

não lhe oferece; Williams descobre em Breughel o estoicismo que de algum<br />

modo lhe permite revisitar a fundação setecentista da nacionalidade americana;<br />

Frank O’Hara assimila a estética dada na sua poesia, enquanto Ashbery<br />

realiza, inicialmente, algo de idêntico através do surrealismo, para mais<br />

tarde ir descobrir no minimalismo musical uma perturbadora experiência de<br />

leitura; Sylvia Plath toma De Chirico como leit-motiv para um reencontro<br />

com os seus freudianos fantasmas. A lista poderia prosseguir por muito<br />

mais tempo, tão fértil e intensa é a tradição desse diálogo entre a poesia e<br />

outras artes tanto nos Estados Unidos como em Inglaterra.<br />

Outro aspecto deve ser mencionado: quando, em 1981, estudei pela primeira<br />

vez a poesia de Melville, não foi apenas a Antiguidade Clássica que ali<br />

se insinuou, já que esta poesia iluminava caminhos onde se antecipavam<br />

os cenários dramáticos do poeta de Alexandria Constantino Kavafys e do<br />

nosso Jorge de Sena. Recorde-se que Sena transpôs essa tradição para


Portugal através desses momentos maiores da nossa poesia do século XX<br />

que são Metamorfoses e Arte da Música, não deixan- do de a recordar no<br />

posfácio a eles destinado, e no seu livro A Literatura Inglesa. A geração<br />

que lhe sucedeu, João Miguel Fernandes Jorge, António Franco Alexandre,<br />

Joaquim Manuel Magalhães, prolongá-la-ia em novas direcções. Importa,<br />

no entanto, acentuar que esse diálogo não se limita a uma reprodução do<br />

objecto artístico pela linguagem poética. Como referi através do exemplo<br />

da assimilação da música minimal por Ashbery, esse diálogo pode significar<br />

uma reformulação do próprio conceito de leitura. Em muitos dos exemplos<br />

acima mencionados, o poema descreve obras de arte presentes ou imaginadas,<br />

de acordo com as diferentes estratégias ekphrásticas que têm como<br />

momento fundador o chamado episódio do “escudo de Aquiles”, narrado<br />

por Homero na Ilíada. Surgem, todavia, interiorizações mais subtis como<br />

aquela que William Carlos Williams leva a cabo em vários poemas que antecedem<br />

a sua, já referida, abordagem sistemática de Brueghel; por exemplo,<br />

a pluralidade de perspectivas consagrada pelo cubismo é transposta para a<br />

poesia, por Williams, através de um jogo sintáctico com a quebra de verso<br />

que permite a coexistência semântica de uma pluralidade de sentidos, ou<br />

.... de perspectivas.<br />

Igualmente no plano ensaístico, os poetas americanos e os poetas ingleses<br />

têm, desde há muito, vindo a desenvolver reflexões em torno de outras<br />

formas de expressão artística. Não elaboro nenhum catálogo destas reflexões<br />

já que ele seria extensíssimo e poderia, até, simular um mero snobismo<br />

académico. Cito, por isso, apenas o ensaio de Ezra Pound, sobre<br />

o escultor Henry Gaudier Brezeska, e o de Ted Hughes, sobre o escultor<br />

Leonard Baskin. Embora subordinadas a agendas pessoais distintas, tanto<br />

num caso como noutro a reflexão em torno de uma forma de expressão<br />

artística exógena permite aos poetas reflectir, inviamente, sobre aquelas<br />

que consideram ser as suas próprias estratégias do momento; isto é, a<br />

interacção dinâmica entre as diferentes artes no vorticismo, para Pound,<br />

e a vitalidade do mito num espaço de dissolução das metanarrativas, para<br />

Hughes. Estes são apenas alguns exemplos de possibilidades de leitura<br />

(não mencionei os diálogos com os blues e com o jazz, os quais, por si só,<br />

poderiam constituir espaço para inúmeras e apaixonantes reflexões e descobertas;<br />

no caso português lembro a recente e impressionante Antologia<br />

de poesia de língua portuguesa onde o jazz é convocado, a qual foi compilada<br />

por José Duarte e Ricardo António Alves, e intitulada Poezz)... possibilidades<br />

de leitura, portanto, que ilustram a riqueza tanto daquelas tradições<br />

literárias como da reflexão crítica e teórica indissociáveis da criação poética,<br />

uma reflexão que, num fecundo diálogo, invade novos territórios para,<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

56<br />

no retorno, permitir que o discurso poético seja por eles contaminado. Veja-<br />

-se, no caso português, os ensaios sobre pintura de João Miguel Fernandes<br />

Jorge que poderão permitir desvendar, obliquamente, linhas de leitura para<br />

a sua poesia.<br />

Tanto na poesia americana como na poesia inglesa, a análise de um texto<br />

poético contemporâno pressupõe, portanto, nos seus momentos maiores,<br />

um olhar atento para as diferentes vanguardas estéticas; o poema revela-<br />

-se, afinal, enquanto espaço de queda de inovações várias que perturbam<br />

a sintaxe, evocam possibilidades de sentido, ou reproduzem estratégias<br />

visuais (perspectiva, cor, tonalidades, polifonias, ritmos...). Para a leitura do<br />

poema não importa apenas reconhecer uma sintaxe ou a articulação com<br />

tradições rítmicas e prosódicas que nos são estranhas (o pentâmetro jâmbico,<br />

por exemplo, não é de fácil percepção a um leitor português). Importa,<br />

também, estar atento à música que se vai fazendo (desde a mais erudita, à<br />

pop, passando pelas fusões várias; recorde-se o exemplo que dei há pouco<br />

de John Ashbery), a uma “qualquer” exposição de pintura, fotografia ou<br />

escultura, ao filme que escapa às convenções de leitura a que nos habituámos;<br />

às artes que emergem, como o já referido video-clip; importa estar<br />

atentos a todos estes aspectos, pois, em qualquer momento, podemos ser<br />

surpreendidos por um poema que exibe subtis diálogos com outras formas<br />

de expressão artística.<br />

A leitura de um poema pressupõe, deste modo, atenção à novidade, disponibilidade<br />

intelectual e capacidade para desvendar essa inovação e para<br />

saber distingui-la da mera reprodução ou do artifício. Ler significa, portanto,<br />

saber distinguir, saber escolher. Poder-se-á considerar que este pressuposto<br />

implica algo que o discurso dominante tem vindo a questionar, cultura e<br />

gosto; no entanto, a modernidade exige a sua recuperação e a sua reformulação,<br />

não de acordo com a caduca dicotomia “Alta Cultura” vs “Cultura<br />

Popular”, mas sim num vasto campo de interpenetrações e consequentes<br />

perturbações estéticas. Qual pesquisa arqueológica, a exploração do texto<br />

passará, assim, por diferentes níveis de leitura; pela superação de sucessivas<br />

camadas até ao contacto com um nível de profundidade. Este é um<br />

aspecto relevante para quem faz do seu quotidiano um constante encontro<br />

com os mais jovens. Estarão eles na posse dos instrumentos que lhes possibilitem<br />

penetrar nesse imenso espaço de diálogos tantas vezes insinuados<br />

apenas? Obviamente que não. Tão pouco estarão muitos daqueles que<br />

com eles trabalham. Tal não significa, porém, que não se possam conceber<br />

estratégias de convocação do texto que lhes permitam tomar consciência<br />

desses níveis vários de leitura. Aponto apenas dois exemplos de disser-


tações de Mestrado por mim orientadas, uma que recorreu ao hipertexto<br />

para explorar a leitura e a escrita do texto poético, destinada a alunos do<br />

secundário de inglês, e outra que recorreu a textos poéticos relacionados<br />

com a pintura, destinada a alunos do terceiro ciclo do ensino básico de<br />

inglês. Ambas foram testadas com sucesso. Ao referir sucesso tenho em<br />

conta, também, a receptividade dos alunos, entre os quais se encontravam<br />

casos de dificuldade a nível da aprendizagem.<br />

A leitura implica, portanto, expandir conhecimentos e distinguir. A alternativa<br />

passará pela absorção passiva de todo e qualquer objecto, aquilo que será<br />

o oposto da cidadania que se deseja, e que poderemos designar síndrome<br />

de Zelig. Recordar-se-ão, porventura, da personagem do filme homónimo<br />

criada por Woody Allen. Esta personagem percorre o século XX, passando<br />

pelas mais variadas situações culturais ou políticas, da emergência do jazz<br />

ao nazismo. Qual camaleão, Zelig assume a identidade dominante em todos<br />

os ambientes com os quais, ao longo da vida, vai contactando; por<br />

exemplo: fica negro entre músicos de uma banda de jazz, transforma-se<br />

num judeu hortodoxo no seio de uma comunidade judaica, veste a farda<br />

SS durante um comício nazi. Allan Bloom, num livro que causou considerável<br />

polémica nos Estados Unidos, The Closing of the American Mind,<br />

e que em português obteve a insólita designação A Cultura Inculta, reconheceu<br />

em Zelig a postura politicamente correcta incapaz de assumir uma<br />

posição crítica face a um determinado objecto, devido ao receio de poder<br />

ser acusada de discriminação. Importa regressar a esta questão um pouco<br />

mais adiante. Dever-se-á, todavia, desde já assumir que a nossa identidade<br />

passa pelo encontro com e pelo reco-nhecimento de outras identidades.<br />

Só se as soubermos descodificar, poderemos avaliar qual a sua relevância.<br />

E para o fazer, refiro-me ainda e sempre ao texto poético, devemos saber<br />

desvendar os tais nexos intertextuais. E será apenas a isto que estamos<br />

obrigados? Se o que está aqui em causa é o aqui e agora, aquilo que se<br />

escreve hoje, motivado pelas inquietações do presente e das exigências de<br />

superação face a quem se antecipou nas inovações da escrita, não deve rasurar<br />

a importância do passado. Vejamos: então, se estou a ler algo escrito<br />

por alguém que não se encontra distante de mim no tempo, para que me<br />

interessará, afinal, ler aqueles que parecem estar demasiado longe de mim?<br />

Valerá a pena lê-los? O que é que eles me podem transmitir de verdadeiramente<br />

significativo? Lembremos, de novo, o exemplo de Jorge de Sena.<br />

Quando há uns anos atrás, no âmbito de um trabalho que me tem vindo a<br />

ocupar (um livro sobre a Literatura e as Artes), analisei com mais atenção a<br />

tradição ekphrástica em Metamorfoses, constatei que Sena explorava todas<br />

as vertentes que esta estratégia de enunciação conhecera na Antiguidade<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

58<br />

Clássica, as quais, obviamente, não importa aqui desenvolver. Ao falar aos<br />

seus filhos sobre os fuzilamentos de Goya, ao pôr Camões a dirigir-se aos<br />

seus contemporâneos, ao reflectir sobre a nave de Alcobaça, Sena ampliava<br />

as suas reflexões através das possibilidades de enunciação específicas<br />

que determinados subgéneros poéticos clássicos lhe transmitiam.<br />

De igual modo, William Carlos Williams reflecte inviamente sobre a América<br />

do seu tempo através, por exemplo, do quadro de Breughel que ironicamente<br />

retoma a narrativa mítica da queda de Ícaro; através dele, Williams<br />

elabora acerca da actualidade e das virtualidades da moral estoica. Para ler<br />

Williams, um poeta contemporâneo, devemos, portanto, em primeiro lugar,<br />

conhecer as tradições prosódicas face às quais ele pretende inovar poeticamente,<br />

para assim prosseguir a tradição épica whitmaniana; em segundo<br />

lugar, devemos ter noções mínimas acerca da obra de Breughel; em terceiro<br />

lugar, devemos considerar os princípios estóicos; e, em quarto e último<br />

lugar, devemos estar conscientes das narrativas míticas clássicas. Ou seja,<br />

para ler um poeta de hoje devemos forçosamente regressar ao passado<br />

cultural da nossa civilização grego-romana e judaico-cristã.<br />

Além disso, quando falo, por exemplo, de Sena, Williams ou Ted Hughes, estou,<br />

afinal, a falar de clássicos meus contemporâneos, isto é, falo daqueles<br />

cujas identidades se destacam das que os antecederam, e, por isso mesmo,<br />

superaram já a efemeridade e resistirão à erosão do tempo; daqueles<br />

que, de acordo com a expressão de Sena, “especularam emocionalmente<br />

em verso”, e me transmitiram algo que me permite reflectir esteticamente.<br />

Saber distinguir o trigo do joio, percepcionar onde a novidade se insinua,<br />

onde a inovação se distingue da reprodução, é, portanto, o desafio que se<br />

me coloca enquanto investigador e docente de literatura contemporânea.<br />

Mas, porque sou também professor, qual será o testemunho que transmito<br />

aos meus alunos? Creio que este testemunho é, fundamentalmente,<br />

intelectual e ético.<br />

Testemunho intelectual porque a leitura dos textos que me têm acompanhado<br />

ao longo dos anos e daqueles que virei entretanto a descobrir, revelam<br />

uma perturbação face à solenidade dos cânones e uma urbanidade que<br />

obriga à hospitalidade face ao diferente, ao diálogo para além das fronteiras<br />

da “minha aldeia” (como ilustra o exemplo do percurso de Melville para<br />

Sena e Cavafis). Uma urbanidade que permite superar o provincanismo.<br />

Testemunho ético porque ele se afigura enquanto apelo à responsabilidade<br />

pessoal e à liberdade. Recordando o já mencionado poema de Sena, “Não<br />

sei meus filhos que mundo será o vosso,” confesso que não quero que os


meus filhos trilhem os meus caminhos; prefiro acreditar que eles descobrirão<br />

os seus próprios caminhos, experimentarão inevitáveis decepções<br />

e, por fim, serão felizes e livres. Recordo algo que Kierkegaard escreveu<br />

algures: o difícil não é deter alguém com quem nos cruzamos na rua, agarrando-o<br />

pelo braço e obrigando-o a ouvir aquilo que lhe queremos dizer; o<br />

que é difícil é cruzarmo-nos com alguém, transmitir o que temos para lhe<br />

dizer, sem interromper nem o seu percurso nem o nosso. Ou, como escreveu<br />

Whitman em “Canto de mim mesmo”, que uma vez mais reproduzo<br />

de acordo com a versão de José Agostinho Baptista: “Não terás coisas<br />

em segunda ou terceira mão, nem verás pelos olhos dos mortos, nem te<br />

alimentarás dos espectros nos livros,/ Nem através dos meus olhos verás,<br />

nem de mim terás as coisas, / Escutarás tudo e todos e tudo em ti filtrarás.”<br />

(Whitman, 1992: 11)<br />

Na minha perspectiva, educar não significa orientar normativamente mas<br />

sim... fornecer instrumentos que permitam disponibilidade intelectual e a<br />

consequente escolha inteligente e livre de caminhos; que permitam desvendar<br />

o que de fascinante nos rodeia, distinguindo-o da banalidade intelectual<br />

e estética; é nesse sentido que tanto o testemunho intelectual<br />

como o testemunho ético são essenciais. No limite o que se pretende,<br />

encontra-se sintetizado num belo e perturbante quadro de Ticciano, Uma<br />

Alegoria da Prudência. Nele o pintor reproduz três rostos humanos, o de<br />

um homem em plena maturidade que nos olha de frente, o de um velho de<br />

perfil, à sua direita, e o de um jovem, também de perfil, à sua esquerda; sob<br />

cada um deles encontram-se, respectivamente, um leão, uma raposa e um<br />

cão. Independentemente de outras leituras possíveis que passam, também,<br />

pela representação de uma narrativa familiar (o velho seria o próprio pintor,<br />

o homem, o seu filho e colaborador Orazio, e o jovem, o primo Marco<br />

Vecellio), gosto de reconhecer nestes rostos e no diálogo que os diferentes<br />

animais com que eles estabelecem os versos do Eclesiastes, não invalidado,<br />

aliás, pela inscrição existente no quadro: “Do passado, o homem do<br />

presente age com prudência para não pôr em perigo o futuro.” Perdoar-me-<br />

-ão que os transcreva a partir da versão da Bíblia protestante inglesa do Rei<br />

Jaime mas a minha formação anglo-saxónica e a minha memória soissante<br />

huitard tardia assim mo exige: “For every reason there is a season and a<br />

time for every purpose under the heaven.” Este quadro evoca a sabedoria<br />

do Eclesiastes que nos leva a reflectir sobre a necessidade de viver o presente<br />

sabendo aceitar a passagem do tempo; algo que eu associo ao facto<br />

de saber descobrir os sinais de mudança que nele se insinuam. A sabedoria<br />

deverá constituir, também, um objectivo a atingir por aquelas e aqueles a<br />

quem nos dirigimos; a sabedoria tão rasurada nos discursos que sistemati-<br />

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camente nos reiteram competências como se estas fossem fins em si e não<br />

meros instrumentos para atingir algo mais.<br />

Afinal, o verdadeiro objectivo da nossa profissão pode ser reconhecido<br />

numa frase proferida por um grande actor americano, James Stewart, acerca<br />

do seu percurso profissional: “Se tivermos personalidade, se tivermos<br />

sorte, se Deus nos ajudar, damos às pessoas pequenos pedaços de tempo<br />

que elas não esquecem.” Espero que os “pequenos pedaços de tempo”<br />

que há mais de vinte anos tenho vindo a partilhar com os meus alunos e<br />

orientandos, lhes tenha permitido desvendar mais intensamente a realidade<br />

que os cerca, permitindo-lhes, assim, serem mais livres.


Violante Florêncio<br />

Presidente da Mesa<br />

Começarei por agradecer o convite feito pela <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong> para<br />

estar nesta mesa. É sempre uma honra poder colaborar com a <strong>Fundação</strong>.<br />

Queria agradecer a vossa presença e a presença dos três elementos que<br />

estão aqui hoje para nos falarem de alguns dos nossos clássicos escritos<br />

para crianças em Portugal.<br />

Vamos abordar ao longo da sessão alguns autores mas, antes de mais,<br />

como é normal, vamos tentar conhecer um pouco, se é que ainda não conhecemos,<br />

os convidados que estão na mesa.<br />

Começo pela Professora Doutora Glória Bastos. É para mim um prazer especial<br />

apresentar a Glória, de quem fui colega, já lá vão uns aninhos. A<br />

Glória trabalha na Universidade Aberta e já na altura do seu mestrado em<br />

Cultura e Literatura Portuguesas trabalhou na obra de Virgínia de Castro<br />

Almeida, uma das autoras que se irá abordar nesta sessão. Além disso,<br />

penso que é com particular prazer e quase orgulho meu, os colegas têm<br />

sempre estas manias de ter algum orgulho no que os seus amigos fazem,<br />

que informo que a Glória fez uma tese de doutoramento sobre literatura<br />

dramática, cujo título é “A construção do social e do individual na literatura<br />

dramática para crianças em Portugal”. Desenvolve também muitas actividades<br />

relacionadas com a leitura, com a divulgação e dinamização do livro<br />

e tem muito trabalho de formação efectuado nessa área.<br />

O Professor José Carlos Seabra Pereira é professor da Faculdade de Letras<br />

da Universidade de Coimbra. Tem vários estudos publicados e, porque são<br />

muitos, eu vou seleccionar apenas aqueles que tive o prazer de estudar<br />

afi ncadamente: Decadentismo e Simbolismo na Poesia Portuguesa, Do fi m<br />

do século ao tempo do Orpheu. Tem vindo a trabalhar um leque enorme<br />

de autores como, por exemplo, Cesário Verde, Camilo Pessanha, António<br />

Nobre, Eugénio de Castro, Fernando Pessoa, Sá Carneiro, João de Barros,<br />

Jaime Cortesão, Aquilino e também Ana de Castro Osório, que, aliás, será<br />

o autor que irá abordar.<br />

Tenho agora o privilégio de apresentar a Alice Vieira, porque, se os ingleses<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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62<br />

têm o seu Carroll com a sua Alice, nós temos a nossa Alice, ponto final. Tenho<br />

que lembrar que a nossa Alice, para além de ser a nossa Alice, também<br />

é jornalista e penso que é meritório dizê-lo. A obra de Alice Vieira é conhecida<br />

de todos os presentes. É uma obra feita com um cuidado especial para<br />

um público mais pequeno e para um público maiorzinho. Muita gente, nesta<br />

sala, terá acompanhado já não a Alice, mas as Alices da Alice, as Rosas,<br />

as Paulinas, a Ana Marta; além disso, recordo sempre um trabalho, que, a<br />

mim, me agrada particularmente, que são as suas recriações para o público<br />

infantil, nomeadamente, os recontos dos contos tradicionais portugueses.<br />

Ora os autores que aqui vão ser abordados, sempre na perspectiva de serem,<br />

por um lado, clássicos, que escreveram livros que já são um suporte<br />

de toda a nossa literatura para a infância, mas também porque contêm narrativas<br />

de viagens vão ser, e por esta ordem, Virgínia de Castro e Almeida<br />

e Raul Brandão, Ana de Castro Osório e, finalmente, Adolfo Simões Müller,<br />

que a Alice apresentará.<br />

Quero agrdecer as intervenções dos nossos convidados e, para terminar<br />

gostava de vos dar uma definção ampla de “clássico” da autoria de Ítalo<br />

Calvino: “clássicos são os livros que constituem uma riqueza para quem os<br />

leu e amou”.<br />

Mesmo que não nos recordemos de todos os livros que lemos, o mais importante<br />

é irmo-nos educando sucessivamente a seleccionar estética e eticamente<br />

aquilo que vamos lendo. É por isso que julgo tão importante que,<br />

mesmo que um livro pareça menos apetecível do ponto de vista do que se<br />

passa hoje, que quem tem a responsabilidade de educar, ou seja peneirar,<br />

seleccionar, hierarquizar, tem mesmo de separar o que não tem uma linguagem<br />

que valha a pena. Quantas mais propostas vierem, melhor, e foi isso<br />

que tentámos fazer aqui: trazer algumas dessas propostas, a hierarquização<br />

agora é vossa!


Glória Bastos<br />

Livros clássicos com viagens<br />

“Toda a viagem é aprendizagem, seja qual for o seu propósito consciente.<br />

Quem não aprendeu não viajou: deslocou-se apenas”, afi rma o professor<br />

Stephen Reckert 1 no seu esboço de uma tipologia da viagem na literatura.<br />

Esta é, na verdade, uma ideia central em diversas obras portuguesas para<br />

crianças, dos princípios do século XX. Encontramos aí o topus da viagem<br />

como aprendizagem e como descrição do mundo, numa travessia que, mais<br />

do que dar a conhecer um determinado espaço geográfi co, vai confi gurar<br />

visões do mundo e opções de conhecimento, patentes na construção textual.<br />

O convite que agora faço é para que partamos hoje, também nós,<br />

numa descoberta de alguns desses “clássicos com viagens”.<br />

Os comentários que vou fazer centram-se em dois textos escritos por personalidades<br />

bastante distintas, e publicados nos princípios do século XX,<br />

mas em tempos históricos marcados igualmente por diferentes vivências.<br />

São esses livros, por ordem de publicação, Céu aberto, de Virgínia de Castro<br />

e Almeida, publicado em 1907 (tenho aqui a 7.ª edição, de 1958) e Portugal<br />

pequenino, de Maria Angelina e Raul Brandão, publicado em 1930.<br />

Em relação a estas duas obras esclareço, desde já, que a viagem actua a<br />

dois níveis, que correm em paralelo. Por um lado, a deslocação subjacente<br />

à viagem é pretexto para a transmissão de informações, sendo um motor<br />

de conhecimento e aprendizagem sobre o mundo. A erudição constitui um<br />

dos motores centrais da narrativa – sobretudo em Céu aberto –, mesmo<br />

se aqui e ali é atenuada por situações mais consentâneas com o universo<br />

infantil, no qual o lúdico desempenha um papel assinalável. Mas a viagem<br />

será, sobretudo, um movimento essencial de indagação e de construção da<br />

identidade das personagens infantis que protagonizam estas histórias.<br />

Embora se possa identifi car esse paralelismo ao nível da “estrutura profunda”<br />

dos textos, os dois níveis que mencionei concretizam-se de forma<br />

bastante distinta e assumem pesos igualmente diferenciados no livro de<br />

1 “O signo da viagem”, in Stephen Reckert e Y. K. Centeno (org.), A viagem (entre o real e o imaginário),<br />

Lisboa: Arcádia, 1983, p. 20.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

63


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

64<br />

Virgínia de Casto e Almeida e no de Maria Angelina e Raul Brandão.<br />

Vejamos então agora como se vão operacionalizar nas histórias.<br />

Céu aberto narra-nos a viagem empreendida por uma família burguesa, do<br />

princípio do século XX, constituída pelos pais, Dinis e Maria, um filho e uma<br />

filha, Rodrigo e Rita, aos quais se juntam o excêntrico primo Jeremias e<br />

o sobrinho órfão, João. Estas personagens irão, naturalmente, cruzar-se<br />

com outras durante a travessia. A primeira parte da viagem é de barco, de<br />

Lisboa a Génova, e daqui seguem de comboio, passando por Pisa, Roma,<br />

Nápoles, Veneza e Milão.<br />

O didactismo, a urgência de transmitir conhecimentos, apresenta-se como<br />

a característica mais relevante da narrativa. Deparamos a cada passo –<br />

quase que a cada página – com um discurso explicativo/educativo, numa<br />

espécie de ostentação de um saber enciclopédico sobre o mundo. Esse<br />

discurso surge, curiosamente, quase sempre envolto numa situação pertencendo<br />

tipicamente ao universo infantil: o contar histórias. Na verdade,<br />

grande parte dos segmentos mais relevantes desses episódios resulta de<br />

um pedido das figuras infantis, dirigido aos adultos, para que estes clarifiquem<br />

ou expliquem determinado aspecto, assumindo assim o papel de<br />

contadores de histórias perante as crianças-ouvintes. Neste contexto, refira-se<br />

que o verbo “contar” constitui um dos elementos lexicais nucleares da<br />

narrativa (assim como o termo “história”). As formas clássicas de introdução<br />

da narração de histórias vão surgir, naturalmente, associadas a este facto:<br />

“Era uma vez um homem chamado Papin.” (p. 99); “Há 500 anos governava<br />

em Portugal um grande rei que se chamava D. João I. Havia nesse tempo<br />

um costume muito bonito” (p. 114); “O que eu vou contar passou-se num<br />

tempo muito mais antigo” (p. 150); “Era uma vez um país que podia ser dos<br />

mais ricos e fortes se os seus habitantes fossem unidos” ( p 166) – segue-se<br />

depois a história da unificação da Itália e da figura de Garibaldi que é introduzida<br />

nos seguintes termos: “Vivia naquele tempo um italiano que fazia o<br />

espanto de todo o mundo” (p. 172); etc.<br />

Esta característica de Céu aberto é facilitada pelo facto de estarmos perante<br />

uma narrativa que recorre à forma dialogada – princípio que vem do<br />

século XIX e, mais distante ainda, da República, de Platão, que justifica o<br />

valor do diálogo como o tipo de discurso mais agradável e acessível ao<br />

leitor. Evidentemente que o privilégio dado à forma dialogada acarreta determinados<br />

resultados, com destaque para o relativo apagamento da figura<br />

do narrador em benefício da voz das personagens.


Refira-se ainda que esta característica constitui, em termos da construção<br />

textual, um dos traços que mais diferenciam esta obra do livro de Raul<br />

Brandão e Maria Angelina, onde o diálogo é pouco relevante, com a clara<br />

primazia para a voz e para as longas reflexões do narrador, depositário privilegiado<br />

do saber sobre o mundo.<br />

Em Céu aberto, a mensagem do saber é veiculada, como não poderia<br />

deixar de ser, pelos adultos. Mas não qualquer adulto. Dos quatro adultos<br />

que assumem posição de destaque só dois, efectivamente, cumprem os<br />

requisitos para assumir o discurso explicativo-educativo. Trata-se de Dinis,<br />

o pai, e do sr. Novais, que conhecem durante a viagem, no navio. Ficam de<br />

fora, Maria, a mãe, e o primo Jeremias. A caracterização que é feita destas<br />

quatro personagens elucida quanto aos traços considerados desejáveis<br />

para a função magistral que lhes é conferida. Dinis e o Sr. Novais estabelecem<br />

facilmente uma relação empática com as crianças, sendo o segundo<br />

um “velho de lunetas e grandes barbas brancas”; em relação a Maria, talvez<br />

o seu ponto fraco esteja no facto de ser ainda “muito jovem”, no que se<br />

refere ao primo Jeremias, este é apresentado como um excêntrico pouco<br />

sociável.<br />

Esse discurso educativo é relativamente amplo, versando assuntos muito<br />

diversos, e cumprindo assim as intenções formativas que a autora esclarece<br />

no prefácio. Geografia, História, Arte, Biologia são alguns dos tópicos<br />

que vão sendo sucessivamente abordados, em segmentos textuais que<br />

seguem sempre a mesma estrutura:<br />

1. observação/referência a um elemento desconhecido<br />

2. pedido das crianças para que se conte a sua “História”<br />

3. satisfação do pedido pelo adulto<br />

Vejamos um exemplo, entre muitos, deste tipo de ocorrência:<br />

“O Sr. Novais – Vamos para a terra de Galileu! […]<br />

Rita – Quem é Galileu?<br />

O Sr. Novais – Era um grande homem, um grande sábio que viveu há trezentos<br />

anos.” (p. 176-177)<br />

Há, diríamos, uma espécie de contrato informativo que é repetidamente<br />

posto em cena, conduzindo as personagens – e, não podemos esquecer,<br />

os leitores visados – de uma posição de menos-saber para mais-saber.<br />

Verifica-se quase que uma fobia ao “vazio informativo”, tal a quantidade e a<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

65


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

66<br />

frequência de situações que têm como objectivo mais imediato preencher<br />

as lacunas de conhecimento dos jovens protagonistas. Aliás, no prefácio<br />

esclarece-se bem que se pretende aproveitar a atenção das crianças – a<br />

sua natural curiosidade – para lhes “incutir conhecimentos úteis”.<br />

A esta permanente atenção à “lição das coisas”, que configura um processo<br />

cognitivo de conhecimento do mundo, associa-se, como se referiu<br />

no início, um outro percurso – o da maturação psicológica. Nesta acepção,<br />

a viagem/deslocação num espaço físico determinado (Lisboa – Milão)<br />

assume-se ainda como viagem/percurso iniciático, projectando no futuro<br />

a continuidade desse trajecto, concretamente ao avançar-se com dados<br />

referentes a situações que as personagens irão enfrentar posteriormente<br />

(e que a obra seguinte de Virgínia de Castro e Almeida, Em pleno azul, irá<br />

retratar).<br />

Assistimos, pois, a um movimento na procura da mudança, pretendendo-<br />

-se desenvolver igualmente um projecto de preparação das crianças para<br />

a vida, um movimento em direcção à sua maturidade. No início do livro os<br />

dois rapazes são apenas uns “homenzinhos” (p. 27), e o intuito da viagem<br />

é que se tornem “gente” (p. 27), deixando de agir como uns “cãezinhos”<br />

andando cegamente atrás dos adultos (ideia repetida nas págs. 32 e 264).<br />

Crescimento psicológico e autonomia são as duas ideias-chave sublinhadas<br />

pela narrativa.<br />

E quais são os vectores dessa maturação em relação às três personagens<br />

crianças? Rodrigo, caracterizado por um certo auto-centramento (egoísmo),<br />

vai aprender progressivamente o caminho da solidariedade; João, marcado<br />

por um certo excesso na expressão dos sentimentos, vai aprender o valor<br />

do saber (prometendo ser mais estudioso). A encenação de uma certa<br />

oposição nas atitudes destas duas personagens tem como intuito valorizar<br />

um certo modo de estar social, caracterizado por uma relativa contenção<br />

nas atitudes – procura do ponto de equilíbrio entre a atitude solipsista do<br />

primeiro e a preocupação extrema do segundo -, dando-se primazia à ideia<br />

do senso comum, segundo a qual, “no meio é que está a virtude”. Em relação<br />

a Rita, é menos evidente a sua evolução, apontando-se para a importância<br />

da autonomia e da bondade.<br />

São estes os valores morais que se destacam, predominando uma lição<br />

“social” que visa a reprodução dos modelos adultos em presença, sobretudo<br />

na figura dos pais: Dinis – homem trabalhador, habituado a estudar,<br />

alegre e bom; Maria – senhora bonita, expressão de bondade e doçura.


Partimos então desta ideia de viagem como aprendizagem de si para visitarmos<br />

o livro de Maria Angelina e Raul Brandão. Essa é uma vertente central<br />

no livro Portugal pequenino. É evidente que a deslocação através de<br />

um espaço geográfico – neste caso o espaço, como está anunciado no<br />

título, é o território português, e não direi de Norte a Sul do país, como se<br />

costuma dizer, porque aqui o percurso empreendido não é esse, ficando<br />

mais correcto referir do litoral para o interior do país – constitui um núcleo<br />

importante na obra – e não pretendo tirar mérito a essa componente.<br />

A este respeito, ou seja, no que se refere ao percurso geográfico, podemos<br />

identificar duas partes na obra. Seguindo a edição da Vega (1985), que tem<br />

173 páginas, mais ou menos a meio do livro – concretamente na p. 83 – temos<br />

uma espécie de momento síntese que sumaria o espaço já percorrido<br />

pelas personagens: “Viram tudo, o Algarve que é um pomar cultivado com<br />

esmero, e a costa, a mais recortada e piscosa de Portugal, com as suas<br />

praias esplêndidas, a água que às vezes parece caldo azul e ao pé dos<br />

areais as armações do atum, o peixe que com a sardinha dá mais dinheiro<br />

em Portugal. Voaram ao acaso. Voltaram para o norte e meses depois, em<br />

cima do banco da sardinha, deixaram-se vogar sobre as águas até ao sul.<br />

Descobriram os cabos formidáveis entrando pelo mar dentro, o Mondego<br />

ao pé da Figueira, o dramático carvoeiro ao pé de Peniche, e as suas rochas<br />

figurando castelos, onde o mar brame se descanso, o da Roca, varanda<br />

da serra de Sintra sobre o mar, o Raso e o Espichel, o de Sines e o de S.<br />

Vicente com a ponta de Sagres…<br />

Que linda terra!”<br />

Esta síntese conclui a parte do livro em que a matriz de Os Pescadores está<br />

presente. A partir daqui a viagem segue para as terras do interior – interior<br />

algarvio, Alentejo e Ribatejo, e sobrevoa-se Lisboa.<br />

Mas o que, de forma evidente, sobressai neste texto é a sua dimensão profundamente<br />

reflexiva, que vai estabelecer uma aliança forte com o percurso<br />

de maturação da personagem central – o Ruço de Má Pêlo. Se em Céu<br />

aberto, como se apontou, tínhamos o domínio do diálogo, revelando uma<br />

estrutura textual mais constante, aqui o diálogo é menos marcante, alternando<br />

com o registo narrativo e reflexivo, apontando para uma escrita fragmentada,<br />

característica, aliás, de outras obras em prosa de Raul Brandão.<br />

A narrativa, no tempo passado e na terceira pessoa, das peripécias vividas<br />

pelo Ruço de Má Pêlo e pela sua companheira, a Pisca, entretece-se com<br />

uma voz – poderia também dizer uma consciência – que, na primeira pes-<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

67


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

68<br />

soa, traz até ao presente a realidade observada. Uma realidade em que,<br />

mais do que o espaço geográfico, interessa sobretudo pelas figuras que<br />

o habitam – figuras humanas, mas também os animais, numa intensa simbiose<br />

cósmica que atravessa todo o livro. Vejam-se, como exemplos emblemáticos,<br />

os episódios sobre as andorinhas (p. 38), os pardais (p. 127), ou<br />

sobre o homem do Douro (p. 60).<br />

O que essencialmente se verifica neste texto, por contraste com Céu aberto,<br />

em que a realidade é objecto de uma leitura fundamentada num registo de<br />

inscrição pragmática, é que o processo contemplativo/reflexivo ocupa um<br />

lugar determinante – e que encontrará alguma similitude na personagem do<br />

primo Jeremias, o excêntrico contemplativo da outra obra. Podemos neste<br />

sentido afirmar que, enquanto no livro Céu aberto predomina um discurso<br />

de tipo didáctico-magistral, em Portugal pequenino salienta-se a matriz<br />

descritiva-reflexiva.<br />

Mas esse aspecto concretiza-se aqui segundo um processo activo, e a força<br />

da dimensão onírica que caracteriza a narrativa, ao mesmo tempo que decompõe<br />

a realidade – nomeadamente através das sucessivas metamorfoses<br />

por que passam as personagens centrais – afirma-se como um caminho<br />

profundo e alternativo de conhecimento. É neste sentido que a viagem pela<br />

realidade telúrica, e que dá a conhecer os recursos naturais e humanos de<br />

Portugal – desde a fauna, com especial detalhe para algumas espécies animais,<br />

e a flora, às actividades humanas – se associa a uma outra viagem, a<br />

viagem interior.<br />

Esta viagem interior surge construída de acordo com o paradigma ascensional<br />

– com alguns percalços pelo meio – que conduz no final, simbolicamente,<br />

à redenção da personagem central. Acontece que o Ruço de Má<br />

Pêlo, conhecido pelas maldades que faz aos animais, é condenado pela<br />

Bruxa das Portelas a vaguear sem destino, sendo transformado sucessivamente<br />

em diferentes elementos da natureza: saltão – penedo do Marão<br />

– gota de água (chuva) – gaivota – cegonha – pardal – rã – grilo – e, finalmente,<br />

andorinha.<br />

Com o finalizar do sonho – pois tudo não passará afinal de um sonho – o<br />

Ruço de Má Pêlo regressa ao seu espaço familiar, mas entretanto operou-<br />

-se uma transformação: a viagem/sonho permitiu-lhe descobrir o verdadeiro<br />

sentido da vida e da força da amizade. Uma amizade que fez com que<br />

a Pisca partilhasse do mesmo fadário, mesmo sem ser obrigada a fazê-lo.<br />

Esta é a figura mais madura, capaz da “transferência objectal dos seus afec-


tos”, como observa com perspicácia Maria João Reynaud 2 . Mas o mesmo<br />

não acontece com o Ruço, cuja atitude solipsista faz com que esteja centrado<br />

apenas em si, permanecendo sem “alma”. Como dirá a Pisca, “Ele<br />

não sabe nada, não conhece ninguém, nem a mim. Com quem viveu sempre,<br />

me conhece. É um corpo sem alma” (p. 166). E é para conquistar essa<br />

alma, ou seja, a capacidade de compreender, de dialogar e de sentir com<br />

o outro, que a viagem tem de realizar-se. Esse momento acontece quando<br />

a Pisca, transformada, como ele, em andorinha, desfalece esgotada com<br />

o frio. Perante a iminência da sua morte, o pensamento do Ruço dirige-se<br />

finalmente para a companheira: “Meu Deus, salvai-a a ela!”.<br />

Tal como na Maravilhosa viagem de Nils Holgersson (1907), de Selma<br />

Langerloff, obra com a qual este livro é tantas vezes comparado, temos<br />

a metamorfose como processo de redenção da figura humana. A viagem<br />

iniciática é percurso de expiação e de aprendizagem, proporcionando o<br />

crescimento psicológico dos dois protagonistas, simbolizando, desta maneira,<br />

a passagem da infância à adolescência. É desta forma também tematizado<br />

o “problema existencial da dor do crescimento e a conflitualidade<br />

subjacente aos sentimentos mais íntimos” 3 . Em contacto com a natureza,<br />

sobretudo na convivência com os bichos, cuja linguagem passam a compreender,<br />

a vida vai-se-lhes descobrindo. E vai-se descobrindo também a<br />

capacidade de sonhar, sendo o “sonho” uma das palavras nucleares desta<br />

obra, que se corporiza, por exemplo, numa expressão e numa figura particularmente<br />

feliz, a do “lavrador dos Sonhos”, espécie de S. Francisco, que<br />

prega os valores éticos e o sentido mais profundo da vida.<br />

Por comparação com as restantes duas obras mencionadas, esta dimensão<br />

ética e de reflexão social é efectivamente mais densa e assume novos<br />

contornos em Portugal pequenino. Há uma vertente social que aqui aparece<br />

destacada e há sobretudo uma profunda reflexão sobre o homem e a sua<br />

condição, num registo algumas vezes amargo, que tem levado a diversas<br />

considerações sobre o leitor visado. Esse discurso é, em certas ocasiões,<br />

colocado na boca dos animais, com diversos monólogos – do boi, do lobo,<br />

do cavalo – e discussões que dão conta dos paradoxos que rodeiam o<br />

comportamento humano:<br />

“- Nós temos medo dele porque está de pé e fala-nos, e sentimos que é<br />

grande, que é todo poderoso, o amo que nos dá de comer. - Mas é um<br />

2 “Raul Brandão: ficção e infância”, in Revista da Faculdade de Letras «Línguas e Literaturas», Porto,<br />

XII, 1995, p. 233-243.<br />

3 Idem.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

69


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

70<br />

bicho esquisito. É um bicho que às vezes faz coisas incompreensíveis. –<br />

atalhou o burro …” (p. 43)<br />

Estes e muitos outros momentos revelam, ao mesmo tempo, a harmonia do<br />

mundo e a sua extrema complexidade, desvendando o valor da solidariedade<br />

e da fraternidade entre os seres vivos – valor que finalmente o Ruço<br />

de Má Pêlo irá por si descobrir, numa derradeira metamorfose interior.<br />

Sendo um livro nem sempre compreendido e com frequência questionado<br />

na sua condição de livro para crianças, terminaria esta intervenção com<br />

as palavras de uma autora que, na época, terá compreendido melhor o<br />

alcance desta viagem. Ana de Castro Osório, que será também evocada<br />

nesta mesa, afirma num artigo publicado na Seara Nova (n.º 204, 13-3-<br />

1930): “Sim, é um bom livro para crianças, porque é um livro que as ensina<br />

a pensar, que lhes dá a visão interior, que lhes alarga o sentimento e as<br />

debruça na vida com a sensibilidade das pequenas coisas e alargamento<br />

das grandes.”


José Carlos Seabra Pereira<br />

Livros clássicos com viagens<br />

Em primeiro lugar, quero agradecer, na pessoa da Dr.ª Violante Florêncio,<br />

o convite dos organizadores do congresso para participar neste painel, e<br />

dizer do meu gosto em estar acompanhado, como estou, nesta mesa.<br />

De certo modo, sou hóspede nesta matéria da literatura infantil, embora<br />

não seja a primeira vez que sou chamado a pronunciar-me sobre produções<br />

literárias para a infância e, sobretudo, compreendo, que no caso de Ana de<br />

Castro Osório me tenha sentido com alguma responsabilidade no esforço<br />

que vários estudiosos têm feito para não a deixar cair no mais que injusto<br />

esquecimento.<br />

Ana de Castro Osório é de uma família originária da Beira Alta e mesmo<br />

aqueles que nunca leram nenhum livro ou nenhum texto dela mas se interessam<br />

pela vida literária portuguesa e contemporânea, já se encontraram<br />

com ela, desde logo pelas ligações biográfi cas, e de consequências<br />

literárias importantes, a Camilo Pessanha. É irmã de um dos principais<br />

poetas do fi m do século XIX, Alberto Osório de Castro, que, além de excelente<br />

poeta simbolista e decadentista nas suas primícias, tem para nós o<br />

valor de ser o amigo dilecto de Camilo Pessanha, em Coimbra e nos anos<br />

que se seguiram. É mãe de dois elementos muito importantes para a cultura<br />

portuguesa da primeira metade do século XX, embora escritores com<br />

orientações ideológicas diferentes, João de Castro Osório e José Osório<br />

de Oliveira. Finalmente, um dos nomes principais da poesia portuguesa da<br />

segunda metade do século XX vem ainda dessa família: António Osório,<br />

ainda em plena criação.<br />

Ana de Castro Osório ultimamente tem sido recordada porque foi possível<br />

chegar a documentos epistolográfi cos e outros que vieram confi rmar ter<br />

havido uma ligação afectiva muito forte de Camilo Pessanha a Ana de Castro<br />

Osório, digamos mesmo um anseio amoroso que teria desejado consumar-se<br />

em ligação conjugal, não fora a decisão moral de Ana de Castro<br />

Osório a ter inviabilizado. Esse malogro de uma relação amorosa conjugal<br />

com Ana de Castro Osório foi um dos factores determinantes, para, não só<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

71


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

72<br />

o afastamento para Macau, mas também do desenraizamento de Pessanha<br />

em relação a Portugal metropolitano.<br />

Ana de Castro Osório veio viver cedo para Setúbal e fez uma trajectória<br />

muito diversa, mesmo do ponto de vista literário, do seu irmão Alberto<br />

Osório de Castro. Primeiro, opta por escrever sempre em prosa, em narrativa,<br />

o que levanta, por vezes, alguns problemas em relação à fronteira<br />

de ficcionalidade e à narrativa não ficcional. Sobretudo torna-se uma figura<br />

muito interessante do ponto de vista cívico-cultural, porque tem uma intervenção<br />

cívica muito importante mas que reveste sempre uma feição cultural,<br />

e tem uma feição cultural que nunca abdica da sua valência interventiva.<br />

Começa com essa intervenção cívico-cultural ainda no final do século<br />

XIX e, já no final da sua vida, já nos anos 30 do século XX, mantém uma<br />

actividade bastante intensa, mais notória por partir de uma mulher. Essa<br />

intervenção tem, pelo menos, uma tripla feição: uma claramnete política,<br />

através da imprensa, do livro, da palestra, de teor emancipalista, uma luta<br />

pela emancipação, quer da emancipação de classes desfavorecidas, não<br />

apenas economicamente, mas sócio-culturalmente, quer da emancipação,<br />

em particular, da mulher. A intervenção de teor emancipalista não abdica<br />

naturalmente da sua componente crítica, que conduz a uma finalidade mais<br />

pedagógica do que subversiva, e o estilo, a forma de conteúdo dos seus<br />

textos nunca é panfletária Ela evita a ênfase declamatória, os estereótipos<br />

estilísticos de grande eloquência.<br />

A orientação ideológica dela é claramente republicana e dentro desse campo<br />

republicano, (que ela partilhava, aliás, com o marido, um poeta secundário,<br />

Paulino de Oliveira, que, em tempos, David Mourão-Ferreira quis também<br />

arrancar do esquecimento e que eu contemplei também na minha tese de<br />

doutoramento em Coimbra) distingue-se por uma luta particular em favor,<br />

por um lado, da condição feminina, por outro lado, da educação, uma crença<br />

muito própria dessa geração e que vem na sequência do que foi a aposta<br />

dos grupos minoritários no campo intelectual português que tentaram uma<br />

introdução da modernidade de matriz iluminista e depois, em particular,<br />

com a geração de 70.<br />

Uma obra onde isso se reflete é Às Mulheres Portuguesas, mas eu referiria,<br />

de preferência, um outro livro que já faz a transição para a faceta da criadora<br />

literária, A Grande Aliança, que recolhe uma série de conferências feitas no<br />

Brasil no início dos anos 20. Aí ficam muito claros certos traços ideológicos<br />

que hoje se esquecem quando pensamos na oposição dessa altura entre o<br />

campo republicano/jacobino e o campo monárquico/tradicionalista. Estou


a referir-me a dois aspectos; mas um muito importante que poderá tomar a<br />

forma de nacionalismo, uma ideia de origem romântica, o espírito do povo,<br />

a alma lusíada que se corporizava na pátria, em termos históricos, e na mátria,<br />

em termos de território para a viagem.<br />

Por outro lado, um certo idealismo de convivência que acontece na obra de<br />

intervenção cívico-cultural da Ana de Castro Osório. Ana de Castro Osório<br />

tem convicções muito nítidas, espírito crítico acentuado nessa luta pelos<br />

ideais da emancipação republicana, mas, ao mesmo tempo, um grande<br />

espírito de concórdia intelectual.<br />

Como criadora literária, há uma faceta que desabrocha com mais força na<br />

obra de Ana de Castro Osório, que é a criação de ficção narrativa para<br />

adultos e não para a infância. Cultiva o conto, a novela, o romance podendo<br />

ser incluída num tipo de escritor que abunda nessa viragem do século XIX<br />

para o século XX, que assimila a técnica realista do romance de espaço,<br />

do romance de costumes, mas cuja mundividência, em termos da sua<br />

expressão literária, parece já claramente impregnada de uma tonalidade<br />

neo-romântica. Um neo-romantismo progressista, no caso dela e de outros<br />

escritores, e isso transparece menos no primeiro livro, que é um livro de<br />

contos, chamado Infelizes, mas muito fortemente nos romances seguintes,<br />

sobretudo no romance Ambições, depois Quatro Novelas, e finalmente no<br />

romance cujo título exprime, de forma emblemática, a componente utópica<br />

desta literatura, O Mundo Novo.<br />

Qualquer passo do romance Ambições, por exemplo, mostra como ela projecta,<br />

nesse caso, num contexto da Beira Alta, tão tradicional, essa concepção<br />

de um mundo de nova harmonia social, de nova justiça económica,<br />

etc., promovida através da educação e da cultura. Claro que, por vezes,<br />

com algumas tintas de humanitarismo que hoje nos pode parecer demasiado<br />

datado, mas sem nunca descambar para neo-compromissos demasiado<br />

fáceis com o chamado neo-franciscanismo dessa altura.<br />

Por exemplo, a questão da relação com os pobres é muito diversa dos<br />

escritores neo-românticos tradicionalistas que adoptam essa feição neo-<br />

-franciscana: o tópico da recusa da esmola, a esmola como um processo,<br />

ao mesmo tempo, vexante para quem recebe e aviltante para quem dá; a<br />

relação de promoção com o que há de melhor na humanidade dos pobres<br />

através do processo de consciencialização, etc., são claramente a matriz<br />

iluminista que aí prevalece.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

73


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

74<br />

Em Ana de Castro Osório, a criação literária e a acção dela em favor de uma<br />

literatura para a infância que não se restringe à criação de textos próprios<br />

originais, não se compreende, sem se conhecer minimamente essas duas<br />

outras facetas que estive a referir. E, provavelmente, o caminho de regresso<br />

também se pode fazer: quem lê os livros dela para crianças, começa a fazer<br />

um flashback, um efeito de retorno, e dizer “afinal ainda não li bem os outros<br />

livros, os outros romances” porque há uma retrojecção de novas luzes depois<br />

de se lerem os livros dela para a infância. Nessa actividade é que ela,<br />

a partir de certa altura, se notabiliza mais.<br />

Estou convencido que Ana de Castro Osório, no início do século XX, ainda<br />

acreditava que ia ser uma escritora de ficção para adultos, embora, mais<br />

tarde, a imagem que se foi fixando no campo literário português foi mais de<br />

uma escritora, por um lado, emancipalista, e, por outro lado, de literatura<br />

infantil. O seu trabalho em prol da literatura para a infância começa por volta<br />

de 1897, de forma mais notória em termos de efeito no espaço público.<br />

E, desde esse momento, há um título, que ela vai buscar a João de Deus,<br />

simbólico de todo um património que ela quer fazer-se, ao mesmo tempo,<br />

herdeira e mediadora – é Para as Crianças. Para as Crianças vai aparecer<br />

como título de colecções, de folhetos ou de livros, como título de empreendimentos<br />

editoriais, mas também como subtítulo dos seus textos, dos seus<br />

livros, etc. Ela vai trabalhar em vários planos: traduzindo, seleccionando<br />

e adaptando textos de grandes clássicos estrangeiros, Andersen, Grimm,<br />

etc...<br />

Outro plano, que é até agora o único que mereceu um estudo condigno,<br />

(é uma excelente tese de mestrado aqui da Universidade Nova, de Fátima<br />

Oliveira de Medeiros), é a compilação de contos tradicionais portugueses,<br />

através de informantes vivos, que ela chamava “os narradores das lindas<br />

histórias”, e que a levou a contactar com Leite de Vasconcelos, e a escrever,<br />

versões adaptadas ou, pelo menos, largamente inspiradas nesses contos<br />

tradicionais portugueses. Ela faz uma espécie de reconto, seleccionando<br />

aqueles que lhe pareciam melhores para serem, eu agora retomo o título,<br />

Histórias Maravilhosas da Tradição Popular Portuguesa.<br />

Essas histórias são maravilhosas em sentido duplo: maravilhosas por serem<br />

encantadoras, com um grande potencial de sedução, mas maravilhosas<br />

também porque contêm um elemento de maravilhoso. Para além disso,<br />

organiza sucessivas colecções de livros, com textos dela ou textos de outros<br />

autores; tem jornais, nalguns casos especificamente dedicados só a<br />

textos para crianças; procura difundir a importância da literatura para crian-


ças na imprensa, através de palestras, e depois, naturalmente, tem os seus<br />

próprios contos originais.<br />

Cito só os títulos mais importantes: Alma Infantil, de 1899, Os Animais, em<br />

1903, A Princesa Muda, Os nossos amigos, já em 22, de parceria com o seu<br />

marido. Escreve menos para o teatro, mas há pelo menos duas peças que<br />

têm algum sucesso: a comédia Lili, em 1903, e O Sermão do Padre Cura,<br />

em 1907. A propósito deste teatro infantil, queria só fazer um ressalto para<br />

os textos de narrativa. Nas suas narrativas o diálogo tem sempre um papel<br />

importante e isso mostrs que ela não tinha dificuldade em ir para a ficção<br />

dramática em vez da ficção narrativa.<br />

Mas é efectivamente na ficção narrativa que ela nos deixa um legado mais<br />

forte. Os desígnios programáticos enquanto criadora de ficção narrativa<br />

para crianças são simples, são clássicos, e pretendem nas palavras dela,<br />

instruir, divertindo ou educar alegrando as crianças. Muitas vezes, indirectamente,<br />

ao pronunciar-se de uma forma empática sobre outro escritor, transmite<br />

o que é o seu pensamento sobre os objectivos e a axiologia estética<br />

da literatura para a infância. Os seus textos de ficção narrativa têm a sua intertextualidade<br />

propiciatória: os contos tradicionais portugueses, com essa<br />

exigência, esse vector ideológico muito presente na cultura do seu tempo<br />

que era a preocupação com a identidade nacional. Essa identidade nacional<br />

estaria, digamos assim, adulterada na cultura ou na incultura de certos<br />

meios urbanos, mas estaria ainda preservada nas fontes da cultura popular.<br />

Mas é nítido para quem lê esses textos que essa matriz se cruza com<br />

outra, que é a matriz da modernidade iluminista e os contos de fadas, por<br />

exemplo do iluminismo francês, transparecem muito no substrato da ficção<br />

narrativa de Ana de Castro Osório.<br />

O colóquio é sobre a viagem e como há viagem em muitos dos seus contos<br />

dispersos e há viagem desde logo no subtítulo Viagens aventurosas de Felício<br />

e Felizarda, primeiro ao Pólo Norte e depois ao Brasil.<br />

Mas, a viagem pode aparecer, tal como para outros escritores, dum ponto<br />

de vista, estrutural em textos que parecem não estar focados para a viagem.<br />

É precisamente o que a Dr.ª Fátima Ribeiro de Medeiros conclui depois do<br />

seu estudo de um corpus seleccionado de setenta das suas Histórias Maravilhosas<br />

da Tradição Popular Portuguesa, que estão organizados como se,<br />

ao mesmo tempo, fossem um mapa e uma espécie de roteiro e esse roteiro<br />

é um roteiro por formas, por espaços, por lugares, mas, mais do que isso, é<br />

um roteiro por condições de vida, formas de visão do mundo, modelos de<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

76<br />

relacionamento interpessoal, etc. Na verdade, há quase sempre uma figura<br />

que conduz a narrativa e conduz essa viagem, que mais do que física, é<br />

muitas vezes uma viagem mental e imaginativa. O que é interessante, é que<br />

a finalidade ideológica de Ana de Castro Osório é provocar na sociedade<br />

portuguesa e, sobretudo, na sua suposta elite intelectual, uma viagem que<br />

era também de reforma mental e moral. Essa viagem assenta naturalmente<br />

na crença de que o desenvolvimento orientado da imaginação infantil tem<br />

um papel imprescindível no processo educativo; por isso, ela achava que<br />

podia falar de tudo para essas crianças.<br />

O caso mais típico, e que geralmente até vem omitido nas suas tábuas<br />

bibliográficas, é o livrinho de noventa e nove páginas - “Como Portugal foi<br />

chamado à guerra: história para crianças” - que ela escreveu para crianças<br />

entre os oito e os dez anos quando Portugal entrou na Primeira Grande<br />

Guerra. Isto mostra bem que ela achava que as questões, também cívicas,<br />

que faziam parte do devir histórico da nação, deviam ser também transmitidas,<br />

de forma especificamente ade-quada, à imaginação e à inteligência<br />

sensível das crianças.<br />

Chegámos mesmo às viagens, e aqui o que eu acho mais interessante é<br />

isto: ela procurou sempre que as suas narrativas para crianças entrassem<br />

no sistema educativo e assumissem a forma de livros de leituras, propostos<br />

às comissões próprias do Ministério da Instrução para aprovação oficial e<br />

consegue-o, mesmo antes da implantação da República, com o livro, muito<br />

alentado, A minha Pátria, num território comum ao liberalismo constitucional<br />

e à propaganda republicana. E como é que se fala da minha pátria num<br />

texto de leituras sucessivas? É sempre uma narrativa semi-ficcionalizada,<br />

em que há, uma personagem de óptica privilegiada, que conduz o jogo e a<br />

viagem – um pouco entre Gil Vicente e Brecht - uma espécie de representador<br />

que vai encenando e vai mantendo, ao mesmo tempo, a distância,<br />

porque muitas vezes o que acontece é que essa personagem está a dialogar<br />

com uma ou mais crianças a que a ligam laços ou de dever sócioprofissional<br />

ou, quase sempre, de família. E, quando a criança vai reagir<br />

num determinado sentido, essa persona-gem encarrega-se de ir avivando<br />

o espírito crítico dele e de ir desmontando o que seria qualquer panaceia,<br />

demasiada idealização ou qualquer cedência aos estereótipos da educação<br />

tradicional. É o que acontece com Viagens Aventurosas de Felício e<br />

Felizarda, que, ao contrário de Pátria, não foram aprovadas como livros<br />

oficiais antes da implantação da República e vieram a sê-lo mais tarde, já<br />

nos inícios dos anos 20.


Mais engraçado é que estes livros trazem, a abrir, uma espécie de parecer<br />

do relator da comissão e nota-se logo que o relator da comissão, e porventura<br />

a comissão, viu nisto apenas o capital informativo, mas não o contrato<br />

informativo sob forma de narrativa ficcional para crianças. Efectivamente há<br />

aqui dados de aprendizagem de geografia física e, sobretudo, de geografia<br />

humana, mas não é isso o mais importante; há o papel formativo de desenvolvimento<br />

da sensibilidade ou da inteligência sensível, a partir de uma<br />

crença muito forte no papel da ciência, das luzes, da razão, mas também de<br />

numa educação da afectividade, que se tornasse fonte de energias.<br />

Esta série de narrativas são narrativas de uma viagem imaginada de quem?<br />

De dois bonifrates, de dois bonecos, que a senhora,a personagem narrador,<br />

a mestra e condutora da viagem, está a fazer para, em vez de dar<br />

esmola a uma velhinha lá qualquer de Mangualde, dar-lhe meios de ela se<br />

sentir útil e colaborar com ela numa actividade que ela tinha. São esses<br />

dois bonecos que vão fazer a viagem. O arranque desta narrativa é idêntico<br />

ao do romance para adultos de que há bocado falei ao início do romance<br />

Ambições.<br />

E embora ancorado nos aspectos paisagísticos, sociológicos típicos da<br />

Beira Alta no final do século dezanove, não tem aqui a armadilha do pitoresco,<br />

o engodo do pitoresco fácil, nem nenhuma panaceia rústico-patriarcal.<br />

É uma sociedade pobre, em geral, de miséria, de injustiça, de ignorância,<br />

etc., mas tudo isso aparece pelo meio das festas e das lides quotidianas.<br />

Logo no início, quando eles chegam ao barco, há logo, por um lado, a<br />

paisagem de Lisboa, a despedida, os largos horizontes, mas também o<br />

fenómeno da emigração. No porão, da terceira classe, estão os trabalhadores<br />

portugueses que vão emigrar nas piores condições, que não podem<br />

subir aos outros andares do barco e a lição começa logo aí porque o Felício<br />

olha para aquilo: Olha que pitoresco! Que típico! São diferentes! E apanha<br />

logo uma primeira lição, a pedagogia de que eles não são nenhum elemento<br />

folclórico, no sentido pejorativo do termo.<br />

Permitia-me dizer-vos que no final das Viagens Aventurosas de Felício e<br />

Felizarda ao Pólo Norte, em duas páginas só encontra-se, uma teoria de<br />

ficção de mundos possíveis, que depois resvala para a sequência de uma<br />

ideia que vinha do romantismo: a primazia da criatividade do espírito enquanto<br />

sujeito. Mas daí passo para a vibração empática entre ser humano<br />

e universo físico e também a ideia, que vinha desde a ciência romântica da<br />

alma do mundo, de um universo animado, do espírito objectivando-se na<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

78<br />

natureza, segundo Shelley, depois os grandes poetas românticos alemães<br />

e, finalmente, uma espécie de mise en abyme em termos de géneros, pois<br />

esta ficção narrativa para crianças vai debruçar-se ou usar como argumento,<br />

o modelo dos contos de fadas:<br />

o pequenito, que tinha partido a perna, “cheguei, que bem que acabei a<br />

viagem, cheguei a imaginar que ficassem despedaçados nalgum icebergue<br />

ou se afogassem no mar tormentoso e fossem engolidos por alguma baleia,<br />

o Felício e a Felizarda. Não ficaria muito farta com o jantar, em todo o caso<br />

como elas só se alimentam de moluscos e pequenos peixes não devem ser<br />

muito exigentes!<br />

Correram tantos perigos, disse rindo, podiam bem ter ficado no mais pequeno<br />

deles!<br />

Oh! Os nossos pequenos amigos são imortais! Nada os vence! Não conhecem<br />

o medo nem a dor!<br />

- Sabe minha mãe - disse o Pedrinho com ar grave - apesar de saber que<br />

os dois amigos são bonifrates de trapos e feitos pela viúva Teresa e vestidos<br />

pela mãezinha, cheguei o outro dia a estar aflito a recear pela sua existência<br />

no meio de tantas aventuras como se realmente vivessem!<br />

- E vivem, Pedrinho!<br />

Não, já te disse que, de facto, existem, que têm a realidade que nós lhe damos.<br />

São animados pela nossa própria alma!<br />

- Se assim fosse, não havia nada que se pudesse considerar inerte, coisa<br />

que não se pudesse fazer viver!<br />

- E não há Pedrinho, a morte não existe! A morte é a transformação da matéria.<br />

(a ciência jacobina a funcionar.)<br />

A morte é a transformação da matéria e não há coisa alguma que não tenha<br />

alma própria, que não fale, que não viva de facto, que não subsista através<br />

do espaço.<br />

- Mas eu, mãezinha, nunca ouvi as pedras falar, nem as árvores, nem mesmo<br />

os animais, só o papagaio da tia Isabel, e esse diz sempre a mesma coisa<br />

que lhe ensinaram, chegando até a irritar pela sua estupidez!<br />

- Diz-me uma coisa Pedrinho, os contos de fadas que tanto te entretinham,<br />

ainda há poucos anos, hão-de te agradar sempre, tenho a certeza, pois esses<br />

contos que hoje tanto prendem a atenção da Marianinha, se não fosse<br />

o entusiasmo de os poder ler não chegaria a ser uma boa estudante. Nunca<br />

conheceste um génio maravilhoso, uma fada ou qualquer encanto que<br />

desse aos mortais a faculdade de compreender a linguagem dos animais e<br />

das coisas? Quantas vezes aparecem nos contos boas fadas que dão aos<br />

seus afilhados essa faculdade. E até lunetas mágicas que fazem ver tudo<br />

quanto se passa à distância ou perto e ler o pensamento alheio.<br />

- Mas isso, mãe, são contos de fadas!


- Pedrinho, não sejas incrédulo!<br />

Na vida há duas fadas maravilhosas que nos dão ouvidos para compreendermos<br />

todas as vozes da natureza e nos abrem os olhos da alma para vermos<br />

as maravilhas que nos rodeiam!<br />

E não poderei eu conhecer essas duas senhoras?” – e agora aqui é que<br />

podia parecer uma via de escapismo e de evasão vai reverter outra vez à<br />

questão da instrução de matriz iluminista.<br />

- Pode sim porque uma nasceu contigo, é a Inteligência (com letra grande já<br />

se vê) que nos dá a compreensão de todas as coisas, a única superioridade<br />

do ser humano, a outra é a Ciência, que enche a nossa alma de luz para tudo<br />

vermos e explicarmos. Com uma sentimos, com a outra certificamos, uma<br />

sem a outra pouco valor têm, são objectos ocos, só de aparência.<br />

- E sendo sábio podem ouvir-se os animais e as árvores?<br />

- Ouvimos, mas não é com os ouvidos. Sentimos e vemos, mas não é com<br />

os olhos. Compreendemos o que dizem, mas não é com as palavras.<br />

Tu nunca estiveste à beira de um regato, etc, etc!”<br />

Sem aquele génio encantatório do verbo de Raul Brandão acho que Ana de<br />

Castro Osório sabia muito bem levar a água ao seu moinho!<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

80<br />

Alice Vieira<br />

Livros clássicos com viagens<br />

Boa tarde.<br />

Queria agradecer o convite para vir cá falar do Adolfo Simões Müller.<br />

Por razões várias já não estou nestes Encontros há uns dois ou três anos e<br />

também me é muito agradável voltar a esta casa. De qualquer modo é-me<br />

ainda um bocadinho difícil estar aqui na <strong>Gulbenkian</strong> e nestes Encontros e<br />

não encontrar a Natércia Rocha, ali sentada, ela zangava-se connosco, ela<br />

rezingava, mas ela era, realmente, a alma destes Encontros e esteve na<br />

sua organização desde o início. Neste momento deve estar aborrecida por<br />

qualquer coisa que a gente já disse aqui! O pior é que agora, infelizmente,<br />

não pode replicar!<br />

Depois, queria dizer que fi quei muito contente por ter fi cado para último<br />

lugar porque assim já tiveram oportunidade de ouvir duas excelentes conferências,<br />

já ganharam a tarde, e já não esperam que eu diga grandes coisas.<br />

Adolfo Simões Müller, que é de todos estes clássicos que nós estamos a<br />

falar aqui esta tarde, o único que alguns de nós, conheceram vivo, é um bocadinho<br />

diferente dos outros. E, no meu caso, eu tive realmente o privilégio<br />

de ser amiga dele, de ter contactado muito com ele, sobretudo na última<br />

década da sua vida. Vá se lá saber porquê ele adoptou-me, e passei coisas<br />

muito divertidas com ele, entre as quais uma ida a um programa de televisão,<br />

em directo, em que o apresentador passou todo o programa a fazer-<br />

-lhe perguntas pensando que estava a entrevistar um bailarino reformado.<br />

Só realmente uma pessoa com grande capacidade de mudar o texto, de<br />

mudar as respostas como o Adolfo Simões Müller, é que aguentaria aquele<br />

tempo todo sem se rir. Foram realmente umas coisas divertidas.<br />

Quando aqui há uns meses, o meu amigo António Torrado me convidou<br />

para vir aqui falar disse-me: Olha, podes ir falar sobre o Adolfo Simões<br />

Müller? Eu disse: Posso! Não sabia de mais nada! Depois comecei a receber


informação aqui da <strong>Gulbenkian</strong>, esclarecendo que este Encontro tinha a ver<br />

com a viagem. Eu pensei: Bom, como é que eu vou enfiar o Adolfo Simões<br />

Müller na viagem? Depois pensei que a viagem é um assunto muito amplo.<br />

Está ali a Maria Augusta Seabra Dinis que, em 1984, fez aqui uma brilhante<br />

dissertação sobre um rol imenso de viagens, possíveis e imaginárias. Como<br />

Adolfo Simões Müller escreveu muito e escreveu sobre tantos assuntos,<br />

escreveu também, evidentemente, sobre viagens.<br />

Tenho muita pena que a obra do Adolfo Simões Müller esteja praticamente<br />

esgotada, ou não esteja nas livrarias, ou ninguém conheça, ou ninguém<br />

saiba onde é que ela está.<br />

Na releitura dos livros do Adolfo Simões Müller, fiz uma divisão de viagens,<br />

entre as viagens da vida das pessoas, as viagens que se fazem através da<br />

memória, e as viagens, através de montes e vales. A viagem da vida das<br />

pessoas, que é sempre a mais aventurosa que se pode contar, foi tratada<br />

pelo Adolfo Simões Müller de forma extremamente importante na colecção<br />

que fez de biografias. A colecção chamava-se Gente Grande para Gente<br />

Pequena. E foram editados, não sei se por imposição do editor, só seis livros!<br />

Para aquela colecção de biografias, (ele depois viria a escrever mais biografias<br />

noutra colecção), ele escolheu seis possíveis biografados. A primeira a<br />

sair foi A Pedra Mágica e a Princesinha Doente, que tem a ver com a vida<br />

da Madame Curie, depois seguiram-se O Homem das Mil Invenções, que<br />

relata a vida de Thomas Edison; O Capitão da Morte, sobre o Capitão Scott;<br />

O Piloto e o Fantasma, sobre Wagner; O Grande Almirante das Estrelas do<br />

Sul, sobre Gago Coutinho e Sacadura Cabral e a viagem ao Brasil e Trinca<br />

Fortes, sobre Camões. Só Camões e Gago Coutinho, foram os portugueses<br />

escolhidos para esta colecção. Depois, como já afirmei, continua noutro<br />

tipo de colecção com a história da Florence Nightingale.<br />

Quando eu digo que é muito importante é porque uma das falhas que eu<br />

encontro na literatura que as nossas crianças e os nossos jovens lêem é<br />

exactamente essa: não há biografias, eles não sabem das vidas, não sabem<br />

das histórias, não sabem o que aconteceu. E as pessoas depois espantam-<br />

-se muito quando há feriados, comemorações importantes, e vão para a<br />

rua, de microfone em punho, perguntar às crianças sobre o que é que se<br />

está a comemorar. Claro que eles não sabem! Como é que hão-de saber!<br />

Ninguém nasce ensinado! Nós já não estamos nos anos 40, e teria de ser<br />

feita de outra maneira, mas acho que faz muita falta uma colecção que fale<br />

de histórias que tenham a ver com a nossa história.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

82<br />

Outra viagem possível, através da memória, que ele também fez muito – e já<br />

hoje se falou de outros autores que o fizeram – é a viagem ao mundo fascinante<br />

das histórias tradicionais, do maravilhoso, das lendas, das histórias<br />

populares. Nesse caso, ele tem muitas recolhas de lendas, de fábulas, de<br />

histórias e tem um livro que se chama O Príncipe Imaginário e outros Contos<br />

Tradicionais Portugueses, onde começa por dizer que não se destina<br />

só a um público infantil, mas tanto quanto possível, a toda a gente. Nós<br />

sabemos que a literatura popular não era exclusivamente para um público<br />

infantil. Daí que estas histórias, sejam, muitas vezes, intercaladas por notas,<br />

explicações, que não são já aquele tipo de intervenções muitas vezes<br />

pedagógicas, que ele dava nos textos que escreveu. Estas explicações são<br />

dirigidas a um público adulto e por isso não se fazem dentro do próprio<br />

texto, mas em rodapé.<br />

E Müller salienta muito, nessas recolhas que vai fazendo, a importância<br />

fundamental dos contadores de histórias, do tempo em que havia tempo<br />

para estar à lareira a ouvi-los e, realmente, há muitos autores, muitos escritores<br />

que ele, neste livro, vai evocando que, de uma maneira ou doutra,<br />

devem o seu amor pela escrita ou a sua paixão pela escrita a velhas pessoas<br />

que lhes contavam histórias. Fala, por exemplo, da personagem da<br />

ama, que vamos encontrar desde Menina e Moça de Bernardim Ribeiro ao<br />

Guerra Junqueiro, ao Fernando Pessoa de vez em quando; a mulata Rosa<br />

de Lima; a tia Brísida que se encontra mencionada pelo Almeida Garrett; a<br />

velhinha de cabelos de marfim que o Tomás Ribeiro evoca; a velha Carlota;<br />

o embarcadiço Arrabalde e a costureira Mesticosa, de que fala o António<br />

Nobre, como personagens que sempre lhes contaram histórias. Fala na avó<br />

do António Sardinha, mas todas as avós, acho eu, contam histórias aos<br />

netos! E sem ser aos netos, há sempre aquela tendência das avós para contarem<br />

histórias! Também nessa época, as avós eram as transmissoras das<br />

histórias de tradição popular. Não esquecendo uma importantíssima, que<br />

era a velha Doroteia, que terá contado aos irmãos Grimm mais de metade<br />

das histórias que eles depois viriam a relatar.<br />

No caso do Simões Müller ele também teve a sua contadora de histórias<br />

que era a velha Sérgia. A Sérgia era uma velhota que não era propriamente<br />

uma empregada da casa; era mãe de uma empregada da casa. A velha<br />

Sérgia contava-lhe histórias, pô-lo em contacto com outras realidades, com<br />

outras magias e, posteriormente, a menina Letícia que era uma empregada<br />

do Colégio Figueiredo, em Campo de Ourique, onde ele estudou, e a quem<br />

depois terá pago essas histórias, escrevendo-lhe quadras, que foram as<br />

suas primeiras quadras, quando tinha para aí seis ou sete anos. As primeiras


quadras de amor foram para a menina Letícia, que lhe tinha contado muitas<br />

histórias no Colégio Figueiredo! Nessas histórias nós podemos, realmente,<br />

viajar, por esses longos serões das espaçosas noites de Inverno, pelo murmúrio<br />

das vozes junto à lareira, pelas xácaras e romances de princesas e<br />

cavaleiros, pelas bruxas e lobisomens, pragas e feitiços.<br />

E é também, evidentemente, uma viagem pelas palavras! Esta era outra<br />

questão que eu gostaria de abordar, muito ligeiramente: a questão do vocabulário.<br />

Agora está um bocadinho na moda dizer-se que não se devem<br />

escrever palavras que os meninos não conhecem porque, já é tão complicado,<br />

e se eles encontram no texto uma palavra que não conhecem?...<br />

Eu acho que isto é um grande disparate! Para já, porque não é a palavra<br />

ser complicada, ou não; é, realmente, se a palavra se integra ali, se o texto<br />

tem qualidade ou não tem. É evidente que há palavras de todos os dias,<br />

que, num texto para crianças, até podem ser muito más porque não têm<br />

qualidade nenhuma! É extremamente enriquecedor que as crianças, desde<br />

muito pequeninas, ouçam histórias sem as pessoas se preocuparem se elas<br />

entendem ou não entendem as palavras todas.<br />

Eu levei a minha infância toda sem saber o que eram timbales e charamelas<br />

que vinham atrás dos reis, mas não havia história nenhuma, que fosse<br />

história a sério se não tivesse timbales e charamelas. Era fatal! E, pelo meio,<br />

chegavam os bufarinheiros! Também não sabia o que eram os bufarinheiros<br />

mas que tinham de entrar em todas as histórias, isso tinham!<br />

Há este enriquecimento de vocabulário, que também faz parte da magia,<br />

que também faz parte do maravilhoso. Reduzir a história a um fiozinho só<br />

de palavras é, muitas vezes, um crime. O som, as lengalengas e as rimas e<br />

a toada, tudo isso é importante! Muitas vezes é esse som que leva as crianças,<br />

que as atrai à leitura!<br />

Também aqui nestas Histórias Maravilhosas e nestas histórias em que a<br />

criança é levada a outro mundo, que não aquele em que ela vive, há outro<br />

tipo de linguagem para além da linguagem funcional: passa-me um copo,<br />

dá-me a água, escovaste os dentes? Nestas histórias também encontramos<br />

uma linguagem rica!<br />

É verdade que em Adolfo Simões Müller ainda se encontra muito, como<br />

foi aqui referido em relação a outros escritores anteriores, a preocupação<br />

pedagógica. Os livros, numa época em que a escola não era o que é hoje,<br />

funcionavam como, digamos, a extensão da escola: a escola não ensinava<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

84<br />

tudo, a escola ensinava pouco. Se calhar, havia muito menos tempo de aulas,<br />

e era preciso que os livros dessem alguma cultura às crianças, dessem<br />

mais sabedoria para as crianças serem cidadãos de corpo inteiro, cidadãos<br />

que pudessem depois trabalhar.<br />

Temos também livros muito mais dirigidos às viagens: de 1962, Através do<br />

continente misterioso, de 71, Uma primeira volta ao mundo, e já nos anos<br />

80, o que eu considero ser o melhor da obra dele neste campo, que são dois<br />

livros sobre o percurso dos rios, um livro sobre o Tejo, Tejo – rio universal,<br />

e sobre o Douro, Douro – rio das mil aventuras. No Douro, ele diz mesmo<br />

que é uma viagem pelo curso do grande rio, desde a sua nascente, em<br />

Espanha, e depois de mil curvas e mil saltos, de muita dor e muita alegria,<br />

os pauliteiros de Miranda, as broas de Avintes, as regueifas de Valongo, o<br />

Douro chega, finalmente, ao mar. Mas não são apenas os pauliteiros, as<br />

broas, as regueifas nesta viagem pelo Douro. Aqui entra um rol imenso de<br />

personagens. Nesta viagem entra, por exemplo, o Cid, o Campeador, D.<br />

Afonso Henriques, o Magriço e mais os seus onze companheiros, a Defensora<br />

de Miranda nas invasões francesas, as aventuras de Camilo Castelo<br />

Branco, até chegar a uma figura interessantíssima que é a figura do Arrais<br />

Napoleão Loureiro. O Arrais Napoleão Loureiro foi o que fez, em 1971, a<br />

última viagem de um barco rabelo no Douro. Era uma viagem simbólica,<br />

porque, nessa altura, os barcos rabelos já não funcionavam muito, mas<br />

aquela foi considerada a última viagem de um barco rabelo levado pelo<br />

Arrais Napoleão Loureiro, que sempre tinha vivido disso. Há uma história<br />

magnífica neste livro - que é já no fim da viagem - quando o Arrais olha para<br />

o rio já sem os barcos rabelos, e murmura, com enorme desprezo, para as<br />

pessoas que estavam ao pé dele: Agora, meus senhores, o rio Douro já não<br />

é macho! E, realmente, aquilo já não era o que ele tinha conhecido, já não<br />

era macho!<br />

Para lá das pessoas, o livro tem também de incluir os monumentos, as batalhas,<br />

as inundações, as desgraças, os filhos mais conhecidos que tinham<br />

nascido por aquelas margens. É um rio, como diz o Adolfo Simões Müller,<br />

que tem muito que contar como todos os rios, e é um livro que é praticamente<br />

um manual, pois temos ali a geografia, a história, a imaginação e temos<br />

a criatividade; está tudo ali, e é um livro pequeno. Este, creio eu, ainda<br />

se pode encontrar!<br />

Para além disto, e não tendo já muito a ver com o tema da viagem, o<br />

Adolfo Simões Müller também adaptou muitas obras clássicas. Era também<br />

uma altura em que se adaptava muito as obras clássicas. Havia adaptações


que tornavam os livros quase autónomos do original, quase livros diferentes<br />

como, por exemplo, toda a série das Mulherzinhas, da Louise Alcott,<br />

transformados pela Maria Paula de Azevedo. Eu só muito mais tarde é que<br />

percebi que aquilo que eu tinha lido, O Colégio da Ameixoeira, Os Rapazes<br />

da Maria João, que aquilo era as Mulherzinhas e todos os outros livros da<br />

Louise Alcott.<br />

O Adolfo Simões Müller adaptou Os Lusíadas; a Peregrinação; A Morgadinha<br />

dos Canaviais e As Pupilas do Senhor Reitor do Júlio Dinis; As Viagens<br />

de Gulliver; do Dickens adaptou O Natal do Avarento; As Mil e uma noites<br />

adaptou em banda desenhada e adaptou Miguel Strogoff, que teria fatalmente<br />

de adaptar, porque Miguel Strogoff, um exemplar lindíssimo do livro<br />

do Júlio Verne, foi a prenda que o pai lhe deu quando fez a quarta classe<br />

e ficou distinto. Era no tempo em que os meninos faziam a quarta classe,<br />

ficavam distintos e no tempo em que os meninos gostavam muito que lhes<br />

dessem livros! Para ele foi um dia inesquecível, por todas essas razões!<br />

Mas, para lá disto tudo, uma das grandes viagens que podemos fazer com<br />

Adolfo Simões Müller é através da imprensa, e aí ele é muito importante<br />

também. O Adolfo Simões Müller foi extremamente importante através dos<br />

jornais que criou. Em 1935, fundou o jornal O Papagaio e é responsável pelo<br />

jornal até 1941, quando sai para ir fundar O Diabrete, sem interrupção. Em<br />

1952, nasce O Cavaleiro Andante, que deve ter marcado toda uma geração,<br />

que tem hoje a minha idade. Custava em 1952 dezoito tostões; não era<br />

barato! Tinha uma periodicidade semanal e aguentou-se dez anos. Também<br />

em todos estes jornais houve sempre uma grande preocupação dele (que<br />

já se notava também, evidentemente, na ilustração dos livros) de chamar<br />

grandes nomes das artes plásticas, grandes nomes da ilustração para os<br />

jornais, para as revistas e também para a ilustração dos livros. Das artes<br />

plásticas, colaboraram, por exemplo, e também evidentemente no caso<br />

dos jornais, Reinaldo Ferreira, a Maria Archer, Virgínia de Lopes Mendonça,<br />

a Etelvina Lopes de Almeida, a Esther de Lemos, a Maria Lamas o Fernando<br />

Bento, o Stuart Carvalhais, o José Rui, o Vítor Péon, o José Garcês. Acho<br />

que todos os nomes, e eu apenas referi alguns, que tinham peso naquela<br />

época estão representados n’ O Cavaleiro Andante e já estavam n’ O Papagaio.<br />

Hoje nós reparamos que se há coisa que falte no nosso quotidiano para<br />

crianças e para jovens é um jornal, é uma revista. Os adultos também já<br />

não lêem jornais mas se, realmente, houvesse alguma coisa que levasse<br />

as crianças a habituarem-se a ler uma revista, a habituarem-se a ter o seu<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

85


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

86<br />

jornal, como naquela época havia ...<br />

Eu lembro-me de toda a excitação com que nós esperávamos O Cavaleiro<br />

Andante e era uma época em que não havia só isso. Estou a falar destes<br />

só porque estou a falar do Adolfo Simões Müller, mas era uma época em<br />

que havia um outro tipo de revistas, e esperava-se por essas revistas. Havia<br />

uma revista da Mocidade Portuguesa, que nunca me esqueço porque tinha<br />

um título engraçadíssimo, chamava-se O Camarada. Tenho vagamente a<br />

ideia qu’ O Camarada entrava lá em casa porque as pessoas não liam e não<br />

sabiam de onde é que vinha O Camarada, mas uma coisa daquele tipo não<br />

devia ser má! E, realmente, eu sempre assinei O Camarada!<br />

Lembro-me, por exemplo, que passei uns tempos da minha infância na<br />

Serra da Estrela, nas Penhas da Saúde, (que era, naquela altura, um deserto),<br />

e lembro-me da alegria que era no dia em que chegava O Cavaleiro<br />

Andante. O Cavaleiro Andante, a dada altura, teve um suplemento, que era<br />

mais pequenino, enfiava-se lá dentro. Nesse suplemento d’ O Cavaleiro Andante<br />

apareceu uma vez uma carta de uma criancinha que tinha para aí<br />

nove anos, a dizer que gostava muito de ler O Cavaleiro Andante e que,<br />

algum dia, ainda havia de escrever histórias. Era eu!<br />

Não sei como é que aquilo foi parar ao Pagem! Se me lembro deste episódio<br />

é porque o Adolfo Simões Müller uma vez me ofereceu esse Pagem, e<br />

disse-me: está a ver isto? Estava lá eu realmente e até lá estava a fotografia!<br />

Outra coisa porque nós devemos estar eternamente gratos ao Adolfo<br />

Simões Müller é o facto de ter sido por sua influência, que o Tintim, o meu<br />

colega de jornalismo, veio parar a Portugal e que as suas aventuras foram<br />

publicadas. As personagens tinham nome em português mas realmente o<br />

Tintim apareceu aqui pelas mãos do Adolfo Simões Müller. O Adolfo Simões<br />

Müller era amigo do Hergé, o autor do Tintim, que era belga. O Hergé, (isto<br />

em 42, 41, durante a guerra), tinha um irmão que estava preso na Alemanha.<br />

Os direitos de autor que o Simões Müller pagava ao Hergé, em Portugal,<br />

eram transformados em géneros e eram enviados daqui para o campo de<br />

concentração onde estava o irmão, porque o Hergé, estando na Bélgica<br />

ocupada, não podia fazer isso. Todos os direitos de autor daqueles primeiros<br />

anos foram sempre transformados em conservas, em pacotes para o<br />

campo onde ele estava e daí ter ficado sempre uma relação de amizade<br />

muito forte entre Hergé e Simões Müller.


Ora bem, eu acho que o fundamental, como dizia Alexandre Herculano, a<br />

melhor homenagem que se pode fazer a um escritor é ler os seus livros.<br />

Neste caso, seria poder fazer com que estes clássicos estivessem acessíveis,<br />

que as crianças e os jovens tivessem a possibilidade de ler, não<br />

digo todos, evidentemente; mas esta série de biografias porque são um<br />

tipo de biografias que não se limitam a contar a história; Müller junta sempre<br />

qualquer coisa de inventado, de criativo, de insólito.<br />

Lembro-me, por exemplo, n’A Pedra Mágica e n’A Princesinha Doente, que<br />

é a história da Madame Curie, que uma das coisas que me ficou sempre<br />

daquela história não foi a invenção da Madame Curie, mas, para a criança<br />

que eu era, o mais importante daquilo tudo eram duas imagens que ele<br />

dava extremamente fortes: uma era a Madame Curie, que, quando foi estudar<br />

era tão pobrezinha e tinha tanto frio que, para se aquecer, punha uma<br />

cadeira em cima da cama e em cima dela. Nunca percebi como é que uma<br />

cadeira podia fazer calor! E fartava-me de ler aquilo! Outra é Madame Curie,<br />

já tão importante, com aquelas descobertas todas, no dia que coincidiu<br />

com a grande descoberta do rádio, estava muito preocupada porque a filha,<br />

pequenina, tinha-lhe caído o primeiro dente e chorava muito! Essas coisas<br />

a mim tocavam-me muito porque como nunca ninguém ligava à minha<br />

queda de dentes, eu achava que uma mãe, que tinha descober-to uma<br />

coisa tão importante, e ainda se preocupava com a filha que lhe tinha caído<br />

um dente, que estava cheia de dores, devia ser uma mãe extraordinária!<br />

Do livro da Madame Curie, do Adolfo Simões Müller, são essas coisas que<br />

eu me lembro! Claro, pelo meio deve estar a história toda, penso eu! Mas,<br />

aquilo que fica é outra coisa, e em todos os livros dele desta co-lecção há<br />

sempre outra coisa! No caso do Trinca Fortes, por exemplo, a história com<br />

a Dinamene é a coisa mais importante do livro, como é evidente! Muito mais<br />

importante do que Os Lusíadas!<br />

No fundo, é a arte de chegar ao leitor mais jovem, contando o que se quer<br />

mas dando-lhe assim estes rebuçadinhos; e o Adolfo Simões Müller fazia-o<br />

muito bem. Em todos os livros, ele tenta sempre captar os leitores, que é,<br />

no fundo, aquilo que todos nós queremos! Por isso, se deste Encontro, se<br />

destas conversas sair uma ideia qualquer de reeditarem estes clássicos,<br />

não falo só no caso do Adolfo Simões Müller, ficaria muito feliz.<br />

Eu faço cursos de escrita criativa e muitas vezes quero livros destes e é<br />

muito difícil encontrá-los. Acho que isso já era uma boa conclusão para<br />

estes Encontros e para o esforço de todos que os organizam e que estão<br />

aqui.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

88<br />

Marta Martins<br />

Moderadora<br />

Muito bom dia. Chamo-me Marta Martins. Sou a moderadora desta mesa. À<br />

minha direita estão o actor Diogo Dória e o Professor Rui Veloso, da Escola<br />

Superior de Educação de Coimbra, e, à minha esquerda, está a professora<br />

Leonor Riscado, também da Escola Superior de Educação de Coimbra.<br />

Vamos ter duas intervenções sobre Andersen. A primeira vai ser da Dr.ª<br />

Leonor Riscado, a seguir haverá a leitura de um texto pelo actor Diogo<br />

Dória, faremos um intervalo e depois será a altura da intervenção do Dr. Rui<br />

Veloso. Seguidamente haverá um debate sobre a intervenção da primeira<br />

parte, conjuntamente com a intervenção da segunda parte.<br />

Passo então a apresentar a Dr.ª Leonor Riscado. É professora adjunta de<br />

nomeação defi nitiva da Escola Superior de Educação de Coimbra, onde<br />

lecciona Literatura para a Infância. Licenciou-se em Línguas e Literaturas<br />

Modernas, variante de Português/Francês, na Faculdade de Letras da Universidade<br />

de Coimbra, de que foi docente durante vários anos. Aqui concluiu<br />

o mestrado em Literatura Portuguesa, com uma tese sobre a Narrativa<br />

Quinhentista. Tem participado em congressos em Portugal e no estrangeiro,<br />

cuja temática se liga à sua especialização: literatura em geral, e literatura<br />

infantil em particular. Colaborou como formadora em projectos europeus,<br />

Língua e Erasmus, e, em Portugal, no FOCO, formação contínua de professores.<br />

É autora de artigos sobre literatura para a infância e para a juventude.<br />

Colaboradora permanente da revista “Malas Artes”, é membro da<br />

Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil (Secção<br />

Portuguesa do IBBY). É investigadora no âmbito da criação literária para<br />

crianças.<br />

Que melhor complemento poderíamos desejar neste momento do que assistirmos<br />

às palavras do próprio Andersen na boca do actor Diogo Dória.


A Sombra<br />

de Hans Christian Andersen<br />

Nos países tropicais o sol queima de uma forma terrível. Aí, as pessoas<br />

põem-se trigueiras como o cajueiro e, nos países mais quentes, escuras como os<br />

negros. Vindo do seu país frio, chegara um sábio a uma destas regiões quentes,<br />

que julgava poder ali passear como na sua terra; mas cedo se persuadiu do contrário.<br />

Viu-se obrigado, como qualquer pessoa razoável, a fechar-se, durante o dia,<br />

em casa; parecia adormecida ou abandonada. De manhã à noite, o sol brilhava por<br />

entre as casas altas, ao longo da pequena rua onde ele morava. Na verdade, era<br />

insuportável.<br />

O sábio dos países frios, que era ainda jovem, julgava-se uma fornalha ardente;<br />

emagrecia cada vez mais; a sua sombra estreitava-se consideravelmente. O<br />

sol prejudicava-o. Na verdade, ele só se reanimava depois do poente.<br />

Que prazer, então! Assim que, no quarto, se acendia uma vela, a Sombra<br />

estendia-se por toda a parede e até no tecto se estirava o mais possível, para recuperar<br />

as forças.<br />

O sábio, por seu lado, ia até à varanda, para lá se deitar e, à medida que as<br />

estrelas apareciam no céu admirável, sentia-se reviver, a pouco e pouco. Em breve<br />

surgia gente em todas as varandas da rua, pois até as pessoas da cor do cajueiro<br />

precisam de ar! Como tudo se animava então! Os sapateiros, os alfaiates, todos se<br />

espalhavam pela rua. Viam-se ali mesas, cadeiras e milhares de luzes. Um falava,<br />

outro cantava; passeava-se; rodavam as carruagens; passavam burros fazendo soar<br />

as campainhas; era deitado à terra um morto, ao som de cantos sacros; os garotos<br />

atiravam petardos; os sinos das igrejas repicavam; numa palavra, a rua estava bastante<br />

animada.<br />

Só uma casa, aquela que estava situada em frente da do sábio, é que não<br />

dava sinal de vida. Todavia, morava lá alguém, pois, na varanda, desabrochavam<br />

flores admiráveis, o que necessariamente indicava que alguém as regava. À noite,<br />

também se abria a porta, mas, lá dentro, de onde saía uma música suave, estava<br />

escuro. O sábio achava aquela música incomparável, mas isso talvez fosse produto<br />

da sua imaginação, pois ele, com satisfação considerava tudo incomparável nos<br />

países quentes, se o sol não brilhasse ali sempre. O proprietário da casa em que<br />

morava disse-lhe que ignorava em absoluto o nome e a condição do locatário<br />

daquela casa, e, quanto à música, declarou-a horrivelmente enfadonha.<br />

«É alguém que estuda continuamente o mesmo trecho sem o conseguir<br />

aprender - disse ele. - Que perseverança!»<br />

Uma noite, o sábio despertou e julgou ver um clarão estranho na varanda<br />

da casa vizinha; todas as fIores brilhavam como chamas e, no meio delas, estava<br />

de pé uma rapariga alta, esbelta e encantadora, que brilhava tanto como as flores.<br />

Esta luz intensa feriu os olhos do nosso homem, que se levantou de chofre e foi<br />

afastar a cortina da janela, para observar a casa em frente; mas tudo desaparecera.<br />

Apenas estava entreaberta a porta que dava para a varanda, continuando a ouvir-<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

90<br />

-se a música. Forçosamente havia bruxedo ali dentro. Quem habitava ali? Por onde<br />

seria a entrada? O rés-da-chão era todo constituído por lojas; em nenhuma parte se<br />

via corredor nem escada que conduzisse aos andares superiores.<br />

Uma noite, estava o sábio sentado na varanda e, por detrás dele, no quarto,<br />

brilhava uma vela; era, pois, muito natural que a sua sombra se desenhasse na<br />

parede do vizinho. Ela destacava-se entre as fIores e repetia todos os movimentos<br />

do sábio.<br />

«Creio que a única coisa que ali vive, em frente, é a minha sombra: como<br />

ela se instala elegantemente entre as flores, junto à porta entreaberta! Devia ser<br />

bastante fina para entrar, ver o que se passa e vir-mo contar.»<br />

- Vamos! - gritou ele, por gracejo. - Ao menos, mostra que serves para alguma<br />

coisa. Entra!<br />

E fez com a cabeça um sinal à Sombra, e a Sombra repetiu o sinal.<br />

- Vai! Mas não fiques lá muito tempo.<br />

A estas palavras o sábio levantou-se e a Sombra fez o mesmo que ele.<br />

Voltou-se e a Sombra voltou-se igualmente. Mas alguém que tivesse prestado atenção<br />

teria visto que a Sombra entrava, pela porta entreaberta, em casa do vizinho, no<br />

momento em que o sábio, por sua vez, entrava no seu quarto, correndo atrás de si<br />

o cortinado.<br />

No dia seguinte, quando saiu, para ir tomar o seu café e ler os jornais, estando<br />

ao sol, exclamou, de repente:<br />

- Que é isto? Onde está a minha sombra? Terá ela, realmente, partido ontem<br />

à noite e ainda não terá vindo? É excessivamente aborrecido!<br />

Grande era a sua contrariedade, não por a Sombra ter desaparecido, mas<br />

porque ele conhecia, como toda a gente nos países frios, a história de um homem<br />

sem sombra, e, se um dia, quando regressasse, contasse a sua própria história,<br />

acusá-lo-iam de plagiário, acusação que de nenhum modo merecia. Resolveu, pois,<br />

não falar nisso a ninguém. E fez bem.<br />

À noite, voltou à varanda, depois de ter colocado a luz bem por detrás dele,<br />

com o fim de fazer voltar a sua sombra; mas foi em vão que se estendeu, se encolheu<br />

e repetiu a mesma palavra: «Vem! vem!» A sombra não apareceu.<br />

Esta separação atormentou-o muito; mas, nos países quentes, tudo cresce<br />

depressa, e, ao fim de oito dias, notou, com grande prazer, que das suas pernas,<br />

enquanto passeava ao sol, saía uma nova sombra. Provavelmente ficara lá a raiz da<br />

antiga. Ao fim de três semanas, tinha uma sombra decente, que, em viagem para<br />

os países do Norte, cresceu de tal forma, que o nosso sábio até se contentaria com<br />

metade.<br />

De regresso ao seu país, escreveu vários livros sobre o que o mundo tem<br />

de verdadeiro, de belo e de bom, e, assim, muitos anos se passaram.<br />

Um dia, estava ele sentado no seu quarto, quando alguém bateu à porta.<br />

- Entre! - disse.<br />

Mas ninguém entrou. Foi abrir e viu um homem muito alto e muito magro,<br />

correctamente vestido e com ar distinto.


- A quem tenho a honra de falar? - perguntou o sábio.<br />

- Já calculava que o senhor não me reconheceria - respondeu o homem,<br />

delicadamente. - Vê? É que eu fiz-me corpo; tenho carne e uso fato. Não reconhece<br />

a sua antiga sombra? O senhor julgou que eu nunca mais voltasse. Tive muita sorte,<br />

depois que o deixei; estou rico e tenho, por conseguinte, meios para me resgatar.<br />

E fez tilintar um molho de berloques ligados à pesada corrente de ouro do<br />

relógio, enquanto os seus dedos, cobertos de brilhantes, lançavam mil chispas.<br />

- Ainda não estou em mim! - disse o sábio. – Que significa isto?<br />

- Realmente, é extraordinário, mas o senhor mesmo não é também um<br />

homem extraordinário? E eu, sabe-o muito bem, segui, desde a infância, os seus<br />

exemplos. Achando-me amadurecido para fazer sozinho o meu caminho na vida, o<br />

senhor lançou-me nela, e eu colhi perfeito êxito. Senti desejo de o ver antes da sua<br />

morte e, ao mesmo tempo, visitar a minha pátria. O senhor bem sabe, ama-se sempre<br />

a pátria. Como sei que o senhor tem outra sombra, cumpre-me perguntar-lhe<br />

agora se devo alguma coisa a ela ou ao senhor. Faça favor de dizer.<br />

- És então tu, realmente! - respondeu o sábio. É extraordinário! Nunca pensei<br />

que a minha antiga sombra me voltasse sob a forma de um homem.<br />

- Diga o que devo - redarguiu a Sombra. - Não gosto de dívidas.<br />

- De que dívidas falas tu? Crê que me sinto feliz com a tua sorte. Senta-te,<br />

velho amigo, e conta-me tudo o que se passou. Que vias tu em casa do vizinho, no<br />

país quente?<br />

- Contar-Iho-ei, mas com uma condição: é que jamais dirá a ninguém, daqui<br />

da cidade, que eu fui a sua sombra. Tenciono casar-me; os meus meios permitem-<br />

-me sustentar família e até mais do que isso.<br />

- Fica tranquilo! Não direi a ninguém quem tu és. Aqui tens a minha mão,<br />

prometo-te. Um homem é um homem e uma palavra…<br />

- E uma palavra é uma sombra.<br />

Ditas estas palavras, a sombra sentou-se e, ou fosse por orgulho ou para<br />

aprender, colocou os pés calçados de botas de verniz sobre o braço da nova sombra,<br />

que repousava aos pés do dono como um cão de água. Esta conservava-se<br />

muito quieta para ouvir, tão impaciente estava por saber como poderia libertar-se e<br />

tornar-se senhora de si própria.<br />

- Veja se adivinha quem morava no quarto do vizinho! começou a primeira<br />

Sombra. - Era um ente encantador, era a Poesia. Permaneci lá três semanas, e este<br />

tempo valeu para mim três mil anos. Li todos os poemas possíveis, conheço-os<br />

perfeitamente. Através deles vi tudo e tudo sei.<br />

- A Poesia! - exclamou o sábio. - Sim, é verdade; não era, mais que um<br />

eremita no meio das grandes cidades. Vi-a por um instante, mas o sono pesava-me<br />

sobre os olhos. Brilhava na varanda como uma aurora boreal. Vamos! Continua.<br />

Uma vez passada a porta entreaberta...<br />

- Encontrei-me na antecâmara; estava um pouco escuro, mas distingui na<br />

minha frente uma fila imensa de quartos, cujas portas se encontravam abertas de<br />

par em par. Fazia-se luz a pouco e pouco e, sem as precauções que tomei, teria sido<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

92<br />

fulminado pelos raios, antes de chegar junto da donzela.<br />

- Mas, afinal que vias tu? - perguntou o sábio.<br />

- Eu via tudo, como lhe disse há pouco. Não é por orgulho, evidentemente;<br />

mas, como homem livre e com os meus conhecimentos, sem falar da minha posição<br />

e da minha fortuna, desejo que não me trate por tu.<br />

- Peço-lhe perdão; é um hábito antigo. Tem toda a razão, isso não acontecerá<br />

mais. Enfim, que via o senhor?<br />

- Tudo! Eu vi tudo e sei tudo.<br />

- Que aspecto ofereciam as salas interiores? Pareciam-se com a fresca<br />

floresta, com uma santa igreja ou com o céu estrelado?<br />

- Pareciam-se com tudo isso. É verdade que eu não as atravessei; mas, da<br />

antecâmara, vi tudo.<br />

- Mas, enfim, os deuses da antiguidade passavam por essas salas? Os antigos<br />

heróis combatiam lá? Porventura encantadoras crianças brincavam e contavam<br />

aí os seus sonhos?<br />

- Repito-lhe mais uma vez que vi tudo. Entrando ali, o senhor não se converteria<br />

em homem, mas eu converti-me. Aprendi ali a conhecer a minha verdadeira<br />

natureza, os meus talentos e o meu parentesco com a poesia. Quando eu<br />

ainda estava consigo, nunca reflectia nisso; mas o senhor deve recordar-se como<br />

eu aumentava sempre ao nascer e ao pôr do Sol. Ao luar, eu parecia quase mais<br />

distinto que o senhor mesmo; somente, não compreendia então a minha verdadeira<br />

natureza; foi na antecâmara para onde me enviou, que aprendi a conhecê-la.<br />

Estava amadurecido no momento que me lançou no mundo, mas o senhor partiu,<br />

de repente, deixando-me quase nu. Depressa me envergonhei ao encontrar-me em<br />

tal estado; precisava de vestuário, de botas, de todo esse verniz que faz o homem.<br />

Escondi-me, digo-lhe sem receio, persuadido de que o senhor não o publicará,<br />

debaixo das saias de uma confeiteira que ignorava o meu valor. Só à noite é que eu<br />

saía para percorrer as ruas, ao luar. Subia e descia ao longo das paredes, olhando,<br />

pelas grandes janelas para dentro dos salões, e, pelas clarabóias, para as mansardas.<br />

Eu vi por onde ninguém podia ver e o que ninguém podia nem devia ver. Para<br />

lhe dizer a verdade, este mundo é muito vil; e, se não fosse este preconceito de que<br />

um homem significa alguma coisa, eu não me preocuparia em o ser. Vi coisas inimagináveis<br />

entre as mulheres, entre os homens, entre os pais e as crianças encantadoras.<br />

Vi o que ninguém havia de saber, mas o que todos anseiam por saber - o mal<br />

do próximo. Se tivesse escrito um jornal, devorá-lo-iam; mas antes queria escrever<br />

às próprias pessoas, e em todas as cidades onde eu passava, desencadeava-se um<br />

terror inaudito. Temiam-me e amavam-me. Os professores fizeram-me professor, os<br />

alfaiates deram-me fatos; tenho-os em grande quantidade; o director da Casa da<br />

Moeda cunhava-me belas moedas; as mulheres achavam-me gentil. Foi assim que<br />

me tornei no que sou. E agora apresento-lhe os meus respeitos. Eis o meu cartão;<br />

moro do lado do sol e, em tempo de chuva, encontrar-me-á sempre em casa.<br />

Ditas estas palavras, a Sombra saiu.<br />

- É na verdade, um caso muito notável - murmurou o sábio.


Exactamente um ano depois, voltou a Sombra.<br />

- Como está? - perguntou ela.<br />

- Escrevi acerca da verdade, da beleza e da bondade, mas ninguém deu<br />

atenção a tudo isso. Estou desesperado.<br />

- Faz mal; olhe para mim; eu engordo, e é o que é preciso. O senhor não<br />

conhece o mundo. Aconselho-o a fazer uma viagem; e, melhor ainda, como tenciono<br />

fazer uma este Verão, dar-me-á muito prazer se me quiser acompanhar, na<br />

qualidade de sombra. E eu pago a viagem.<br />

- O senhor vai longe de mais.<br />

- Isso é conforme. Pode estar certo de que a viagem lhe fará bem. Seja a<br />

minha sombra, não tem nenhuma despesa a fazer.<br />

- É de mais! - disse o sábio.<br />

- O mundo é assim e será sempre assim - redarguiu a Sombra, indo-se<br />

embora.<br />

O sábio sentia-se cada vez pior, à força de aborrecimentos e desgostos.<br />

O que ele dizia da verdade, da beleza e da bondade, produzia na maior parte dos<br />

homens o mesmo efeito que as rosas numa vaca.<br />

- Você parece uma sombra - disseram-lhe uma vez, e isso fê-lo estremecer.<br />

- O senhor precisa de tomar banhos - aconselhou-lhe a Sombra, que o<br />

tinha voltado a ver -, é o único remédio. Irei consigo, pois a minha barba não cresce<br />

convenientemente, e isto é doença. É preciso ter barba. Eu pago a viagem; o senhor<br />

fará a descrição e isso entreter-me-á pelo caminho. Seja razoável. Aceite a minha.<br />

oferta, viajaremos como antigos camaradas.<br />

Puseram-se a caminho. A Sombra tornara-se o amo, e o amo converterase<br />

na sombra. Por toda a parte eles se seguiam um ao outro, sempre em contacto,<br />

pela frente ou por trás, conforme a posição do Sol. A Sombra sabia sempre ocupar<br />

o conveniente lugar do amo, e o sábio não se formalizava com isso. Estava com boa<br />

disposição e um dia disse à Sombra:<br />

- Visto que somos companheiros de viagem e que temos crescido juntos,<br />

tratemo-nos por tu, é mais íntimo.<br />

- O senhor fala com franqueza - disse a Sombra, ou, antes, o verdadeiro<br />

amo -, eu também lhe vou falar com franqueza. Na qualidade de sábio, o senhor<br />

deve saber quão estranha é a Natureza. Há pessoas que não podem tocar um bocado<br />

de papel pardo sem se sentirem mal; outras tremem quando ouvem esfregar<br />

um prego numa vidraça; quanto a mim, sinto a mesma sensação quando ouço<br />

tratarem-me por tu: afigura-se-me que isso me deita por terra, como no tempo em<br />

que eu era a sua sombra. Bem vê que isto em mim não é orgulho, mas sentimento.<br />

Não posso deixar-me tratar por tu, mas tratá-Io-ei a si: será metade do que deseja.<br />

A partir desse momento, a Sombra tratou por tu o seu antigo amo.<br />

«Esta é forte! - pensou este. - Eu trato-o por senhor e ele trata-me por tu.»<br />

Não obstante, resignou-se.<br />

Chegados aos banhos, encontraram uma grande quantidade de es-<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

93


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

94<br />

trangeiros; entre outros, uma formosa princesa. que, afectada de um sinal inquietador,<br />

via claro de mais.<br />

Com esta qualidade, distinguiu a Sombra entre todas as outras pessoas.<br />

«Ele veio aqui para fazer crescer a barba, segundo dizem; mas a verdadeira causa<br />

da sua viagem é que não tem sombra nenhuma.»<br />

Cheia de curiosidade, estabeleceu, durante um passeio, conversação com aquele<br />

estrangeiro. Na sua qualidade de princesa, não necessitava de fazer muitos rodeios<br />

e, por isso, lhe disse:<br />

- A sua doença é não produzir sombra.<br />

- Vossa Alteza Real acha-se felizmente muito melhor - respondeu a Sombra.<br />

- Sofria de ver demasiado claro, mas agora está curada, pois não vê que tenho uma<br />

sombra, e até uma sombra extraordinária? Vê a pessoa que me segue continuamente?<br />

Não é uma sombra vulgar. Do mesmo modo que, às vezes, se dá por libré<br />

aos criados um tecido mais fino que aquele próprio que se usa, assim eu adornei a<br />

minha sombra como um homem. Até lhe dei uma sombra. Por muito caro que isso<br />

me custe, eu gosto de ter coisas que os outros não têm.<br />

«O quê! - pensou a princesa. - Estarei realmente curada? É verdade que a<br />

água, na época em que vivemos, possui uma virtude singular, e estes banhos têm<br />

grande reputação. No entanto, não os deixarei ainda; divirto-me aqui muito e este<br />

rapaz agrada-me. Oxalá que a barba lhe não cresça, porque, então, vai-se embora!»<br />

À noite, a princesa dançou com a Sombra no grande salão de baile. Ela era<br />

muito ágil, mas o seu cavalheiro ainda o era mais; nunca encontrara um como ele.<br />

Disse-lhe o nome do seu país, que ele conhecia muito bem, pois tinha olhado para<br />

ele através das janelas do comboio. Ele contou mesmo à princesa certas coisas,<br />

que a surpreenderam bastante. Decerto, era o homem mais instruído do mundo!<br />

Ela testemunhou-lhe, pouco a pouco, toda a sua estima e, quando mais uma vez<br />

dançaram, traiu o seu amor por olhares que pareciam atravessá-lo. Não obstante,<br />

como erá rapariga sensata, disse para consigo: «Ele é instruído, está bem; dança<br />

perfeitamente, ainda está bem; mas possui acaso conhecimentos profundos? É<br />

isso que há de mais importante; vou examiná-lo um pouco a este respeito.»<br />

E começou a interrogá-lo sobre coisas de tal modo difíceis, que ela própria não<br />

seria capaz de responder. A sombra fez uma careta.<br />

- Então, não sabe responder? - interrogou a princesa.<br />

- Eu sabia tudo isso na minha infância - respondeu a Sombra - e estou<br />

certo de que a minha sombra, que vedes ali, em frente da porta, lhe responderia<br />

facilmente.<br />

- A sua sombra! Seria muito de admirar.<br />

- Não estou bem certo disso, mas julgo que sim, visto que ela me seguiu e<br />

escutou durante tantos anos. Somente, Vossa Alteza Real permitir-me-á que chame<br />

a sua atenção para um facto muito particular: esta sombra está de tal forma orgulhosa<br />

de permanecer junto a um homem, que para a encontrar de bom humor,<br />

condição necessária para responder bem, é preciso tratá-la absolutamente como


se fosse uma pessoa.<br />

- Estou de acordo - disse a princesa.<br />

E aproximou-se do sábio para lhe falar do Sol, da Lua, do homem sob todos<br />

os aspectos. Ele respondia-lhe convenientemente e com muito espírito.<br />

«Que homem tão distinto - pensou ela - para ter uma sombra tão sábia!<br />

Seria uma benção para o meu povo, se eu o escolhesse para esposo.»<br />

E a princesa e a Sombra depressa ajustaram o casamento; mas ninguém o<br />

devia saber antes de a princesa ter regressado ao seu reino.<br />

- Ninguém! Nem mesmo a minha sombra - disse a Sombra, que tinha razões<br />

para isso.<br />

Logo que eles chegaram ao país da princesa, a Sombra disse ao sábio:<br />

- Escuta, meu amigo: sou feliz e poderoso até ao máximo, e vou agora dar-<br />

-te uma prova particular da minha benevolência. Habitarás o meu palácio, tomarás<br />

lugar a meu lado na carruagem real e receberás cem mil escudos por ano. No<br />

entanto, ponho uma condição para isso: é que te deixes qualificar de sombra por<br />

toda a gente. Nunca dirás que foste um homem, e, uma vez por ano, quando eu me<br />

mostrar ao povo na varanda iluminada pelo sol, deitar-te-ás a meus pés como uma<br />

sombra. Está assente que eu despose a princesa e a boda efectua-se esta noite.<br />

- Não, é de mais! - exclamou o sábio. Nunca consentirei nisso; vou desenganar<br />

a princesa e todo o país. Quero dizer a verdade: sou um homem, e tu, tu não<br />

és mais do que uma sombra vestida.<br />

- Ninguém te acreditará: sê razoável, ou chamo a guarda.<br />

- Vou já ter com a princesa.<br />

- Mas eu chegarei em primeiro lugar e mandar-te-ei prender.<br />

E a Sombra chamou a guarda, que já obedecia ao noivo da princesa, e o<br />

sábio foi levado.<br />

- Tu estás a tremer! - disse a princesa, quando voltou a ver a Sombra. - Que<br />

há? Tem cuidado, não adoeças no dia da tua boda.<br />

- Acabo de assistir a uma cena cruel: a minha sombra enlouqueceu. Imagina<br />

que se lhe meteu na cabeça que é um homem, e que eu sou a sua sombra.<br />

- É horrível! Espero que a tenham fechado.<br />

- Sem dúvida; receio que nunca mais se restabeleça.<br />

- Pobre sombra! - disse a princesa. - É bem infeliz. Talvez fosse um benefício<br />

tirar-lhe o pouco de vida que lhe resta. Sim, pensando bem, julgo necessário<br />

acabar com ela em segredo.<br />

- É uma resolução medonha – respondeu a Sombra, fingindo que suspirava.<br />

– Perco um servidor fiel.<br />

“Que nobre carácter!” – pensou a princesa.<br />

À noite, toda a cidade esteve iluminada, e dispararam-se salvas de artilharia;<br />

por toda a parte se ouvia músicas e cantares. A princesa e a Sombra mostraram-se<br />

à varanda, e o povo, ébrio de alegria, aclamou-os três vezes.<br />

O sábio não viu nada, não ouviu nada, porque o tinham matado.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

95


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

96<br />

Depois da intervenção da Professora Leonor Riscado, vamos assistir à intervenção<br />

do Professor Rui Veloso, que nos vai dar continuidade a este<br />

tema – “Viajantes Intranquilos – homenagem a Hans Christian Andersen”.<br />

O Professor Rui Veloso começou a sua actividade docente em 1967, no<br />

Liceu de Chaves. É mestre em Literatura Portuguesa Contemporânea, na<br />

especialidade de literatura infantil e professor adjunto na Escola Superior de<br />

Educação de Coimbra, a cujos órgãos de gestão pertenceu durante nove<br />

anos. Mantém uma actividade científica e pedagógica intensa, traduzida na<br />

docência e supervisão de estágios, na publicação de artigos em revistas<br />

nacionais e internacionais, na concretização de acções para professores,<br />

na colaboração com outras instituições de ensino superior e com o Ministério<br />

da Cultura, na intervenção em projectos europeus, na participação em<br />

congressos e realização de conferências em Portugal e no estrangeiro. Em<br />

1993 é admitido como membro efectivo no IRSCL, que é uma associação<br />

internacional de investigação em literatura infantil e é co-fundador da Associação<br />

Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil, na Secção<br />

Portuguesa do IBBY e do Teatrão, teatro para a infância de Coimbra.<br />

Ora, um grande obrigada ao Professor Rui Veloso por nos ter trazido, aqui,<br />

a pretexto da obra de Andersen, tantas outras vozes de autores, que nós,<br />

gostosamente, homenageamos.<br />

Creio que quem está sentado lá atrás, não tem visibilidade suficiente para<br />

perceber que muitas das referências que foram feitas se situam em escritores<br />

do nosso tempo que, felizmente, se encontram entre nós, aqui nesta<br />

sala, na fila da frente.<br />

É sobretudo a eles que nós, hoje, homenageamos a partir deste regresso à<br />

obra de Andersen.


Leonor Riscado<br />

Hans Christian Andersen<br />

da Dinamarca para o Mundo<br />

Hans Christian Andersen nasceu a 2 de Abril de 1805, em Odense, na ilha<br />

de Fiónia, de uma família muito pobre. Quase sempre assim começam as<br />

inúmeras biografi as do escritor dinamarquês, nada fazendo pois prever que<br />

sessenta e dois anos mais tarde - corria já o ano de 1867 - se visse cidadão<br />

honorário da cidade onde nascera, rodeado da admiração dos concidadãos,<br />

do brilho das luzes e dos discursos com que o acolhiam e festejavam 1 .<br />

Filho de um sapateiro, Hans Andersen, que ganhava a vida a consertar sapatos,<br />

não fazendo sequer parte da Corporação dos Sapateiros, ele tinha<br />

no pai um homem amargurado por não ter podido seguir os estudos para os<br />

quais se sentia dotado 2 . A mãe de Andersen, Anne-Marie Andersdatter, sete<br />

ou oito anos mais velha que o marido, com quem casara dois meses antes<br />

de Hans Christian nascer, já tinha uma fi lha de outro homem; a avó por parte<br />

da mãe estivera presa depois de ter dado à luz o terceiro fi lho ilegítimo. Dos<br />

avós paternos, registam-se a mitomania da avó que insistia no parentesco<br />

com a nobreza alemã, por via de uma hipotética antepassada, e a loucura<br />

do avô cujas extravagâncias provocavam o escárnio geral. Da recordação<br />

deste avô herdou Andersen o medo de também ele vir a fi car demente pois<br />

tinha nítida consciência, como escreveu posteriormente, que era da sua<br />

carne e do seu sangue 3 ; em relação à meia-irmã, prostituta, teve sempre receio<br />

que ela lhe aparecesse para o atormentar, o que de facto veio a acontecer,<br />

provocando-lhe grande embaraço 4 . A pobreza do então jovem casal<br />

1 Sobre a vida e obra de Hans Christian Andersen registem-se, em Portugal, de Adolfo Simões Müller,<br />

o primeiro volume da colecção para a infância e juventude, “Histórias de Sempre”, O Contador de<br />

Histórias – o conto de fadas da vida de Andersen e as suas mais belas histórias, Lisboa, Figueirinhas,<br />

1982 e, de Silva Duarte, o estudo Andersen e a sua Obra, Lisboa, Livros Horizonte, 1995. Para<br />

além destes dois títulos recordem-se, também, de Maria Isabel de Mendonça Soares, Hans Christian<br />

Andersen Vida e Obra, Lisboa, Ministério da Educação e Cultura, 1974 e a Homenagem a Hans Christian<br />

Andersen no Aniversário da Sua Morte 4 de Agosto de 1989, Sintra, (org.) Câmara Municipal de<br />

Sintra, 1989. Além desses, encontra-se na tradução de Ana de Castro Osório e Lisa Tilberg, A princesa<br />

e a ervilha e outros contos, Lisboa, Vega, 1993, um capítulo da responsabilidade daquela pedagoga<br />

sobre a vida de Andersen, intitulado “A mais linda história do livro”, a pp. 87-95.<br />

2 A propósito do meio social desfavorecido que rodeou a infância de Andersen e da sua posterior ascensão,<br />

veja-se o esclarecedor Prefácio de Marc Auchet a Andersen, Contes, (Préface, Notes et Traduction<br />

Nouvelle par Marc Auchet), Paris, Classiques de Poche, 2003.<br />

3 Estes e outros receios de Andersen aparecem referidos por Naomi Lewis, na sua Introdução a Hans<br />

Andersen’s Fairy Tales – a Selection, (Translated from the Danish by L. W. Kingsland and an Introduction<br />

by Naomi Lewis), Oxford-New York, Oxford University Press, 1998, p. X.<br />

4 Idem, Ibidem, p. X.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

97


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

98<br />

– em 1805, o pai de Andersen tem apenas vinte e dois anos – é tanta que<br />

a cama foi improvisada com a madeira do catafalco da igreja onde estivera<br />

exposto o ataúde de um nobre 5 o que levou, algum tempo depois, a criança<br />

a interrogar-se sobre o que seriam uns pedaços de pano preto que pendiam<br />

do leito 6 . E numa descrição do ambiente e da casa da infância, recorda Andersen,<br />

mais tarde - No algeroz, entre a nossa casa e a do vizinho, tinham<br />

posto uma calha cheia de terra, onde cresciam magnificamente cebolinhas<br />

e salsa: e a isto se reduzia a horta da minha mãe 7 . A própria infância da mãe<br />

lhe causa dor, quando sabe que, obrigada pelos pais a pedir esmola, ela<br />

chorava e se escondia debaixo da ponte, sem ousar voltar para casa – Com<br />

a minha imaginação de criança conseguia ver tão bem esta cena que só de<br />

pensar nela as lágrimas corriam-me 8 . As carências materiais eram de tal ordem<br />

que o facto de, no dia da Confirmação, ter tido o primeiro par de botas<br />

novas feitas pelo pai lhe provocou tamanha alegria que quase lhe desviou a<br />

atenção da cerimónia religiosa e isso provoca-lhe um remorso que o leva a<br />

confessar: A minha devoção foi perturbada. Dava-me conta disso e estava<br />

torturado porque os meus pensamentos iam tanto para os meus sapatos<br />

como para o bom Deus 9 ; para complicar mais a situação, vinham-lhe também,<br />

provavelmente, à memória uns sapatos de baile, vermelhos, com os<br />

quais esse mesmo pai falhara a prova de admissão no castelo vizinho que<br />

buscava um sapateiro 10 e, entre a realidade presente e a experiência passada,<br />

o seu espírito devoto entretinha-se a deambular, sempre, por outras<br />

paragens. Com o pai terá aprendido a imaginar e talvez esta sua tendência<br />

para a imaginação e o inconformismo lhe tenha salvo a infância e o futuro<br />

porque, a par dela, terá recebido como carga genética paterna a tendência<br />

para a melancolia, a hipersensibilidade e a instabilidade emocional. Em<br />

contrapartida, a mãe ter-lhe-á incutido, lado a lado com uma enorme dose<br />

de superstição e uma religiosidade ingénua, a capacidade de sobreviver<br />

através das agruras da vida 11 . A partir desta polifacetada herança, Hans<br />

Christian Andersen vai criar, para si próprio e transmitir aos outros, a ideia<br />

jamais desmentida de que a sua vida foi um “belo conto” 12 e de que o bom<br />

Deus dispõe tudo pelo melhor. Assim, também a Providência protege os<br />

eleitos mas, para isso, eles devem demonstrar merecê-lo 13 . A impressão<br />

5 Estas e outras informações sobre a vida de Andersen e as suas memórias da infância surgem em Carmen<br />

Bravo-Villasante, na sua História da Literatura Infantil Universal, vol. I, Lisboa, Vega, 1977.<br />

6 Adolfo Simões Muller, op. cit., p.23.<br />

7 Carmen Bravo-Villasante, op. cit., p.54.<br />

8 Idem, Ibidem, p.55.<br />

9 A citação é extraída do Prefácio de Alain Faudemay a Andersen – Contes choisis, Paris, Gallimard,<br />

2001, p. 25.<br />

10 Esta é a hipótese avançada por Adolfo Simões Muller, op. cit., pp. 30-32.<br />

11 Alguns destes aspectos são referidos na Introdução já citada de Naomi Lewis, a pp. X e XI.<br />

12 O texto consultado encontra-se em Project Gutenberg’s The True Story of My Life, by Hans Christian<br />

Andersen, na página www.gutenberg.net<br />

13 Carmen Bravo-Villasante, op. cit., p.56.


que ele apresenta sobre a sua infância é, apesar de todas as adversidades,<br />

a de uma infância feliz e esse sentimento de felicidade infantil também<br />

nunca foi negado. É, contudo normal que estes condicionalismos da juventude<br />

tenham levado à sua omnipresente admiração e simpatia pelos<br />

pobres e desfavorecidos 14 , em detrimento dos poderosos, excepto quando<br />

estes manifestam benevolência e humanidade. Na sua ingenuidade, decerto<br />

conservou na memória as profecias da vidente que predissera à mãe<br />

o reconhecimento mundial para aquele filho, em louvor do qual Odense se<br />

iluminaria e, juntamente com a recordação de alguns contos narrados ou<br />

lidos pelo pai, fácil se lhe tornou imaginar que, depois de algumas duras<br />

provas, a glória chegaria.<br />

Para atingir a celebridade, Andersen parte, em 1819, com catorze anos e<br />

magras bagagens, em direcção a Copenhaga. Um desejo incomensurável<br />

de se tornar célebre a qualquer preço fá-lo passar fome, submeter-se ao<br />

ridículo 15 e ocupar-se de ínfimas e variadas tarefas menores que o aproximassem<br />

do mundo do Teatro Real pois o seu grande anseio era ser actor.<br />

Esta predisposição vem-lhe dos tempos de criança, quando depois de ter<br />

visto uma peça de Holberg, se deliciou a escrever peças para os bonecos<br />

com que, juntamente com o pai – entretanto falecido em 1816 – ensaiava as<br />

suas representações. A vida em Copenhaga mostrou-se difícil e mais não<br />

conseguiu do que desempenhar papéis insignificantes em uma ou outra<br />

peça, até que conseguiu a protecção de um amigo que o adoptou para<br />

sempre, Jonas Collin, membro da comissão do Teatro Real. Uma vez confiado<br />

ao director da Escola Latina de Slagelse, o reitor Simon Meisling, onde<br />

ficará até 1827, Andersen vai encetar os cinco anos mais sombrios da sua<br />

existência devido à dureza e tirania do mestre de quem só se liberta definitivamente<br />

quando é admitido na Universidade, em 1828, então já com 23<br />

anos.<br />

Algumas tentativas literárias foram surgindo e a narrativa de viagens, Viagem<br />

a pé do Canal de Holmen à Ponta Leste de Amager, de 1829, influenciada<br />

por Hoffman e Heine, teve boa recepção por parte da crítica.<br />

O seu primeiro desgosto de amor surge com a irmã de um colega estudante,<br />

Riborg Voigt, que conheceu numa viagem de vários meses à Jut-<br />

14 Sobre a vida, obra e filosofia de Hans Christian Andersen, veja-se Marc Soriano, Guide de Littérature<br />

pour la Jeunesse, Paris, Flamarion, 1975, “Hans Christian Andersen”, pp. 42-46.<br />

15 Entre as suas primeiras tentativas desastradas para entrar para o Teatro conta-se a da entrevista com<br />

Madame Schall diante de quem H. C. Andersen cantou e dançou de tal forma empolgado que ela o<br />

julgou louco. A este propósito e, também, a propósito da sua difícil escalada para a fama, veja-se Silva<br />

Duarte, op. cit., “Uma Biografia”.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

99


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

100<br />

lândia e à Fiónia, em 1830. O compromisso de Riborg com outro jovem,<br />

fará com que a atracção – que parece ter sido partilhada – não tenha tido<br />

resultados práticos e eles só se verão doze anos mais tarde, ela já casada<br />

e com filhos. De uma sensibilidade feminina, marcado pelo desgosto da<br />

rejeição, Andersen foge e empreende a sua primeira viagem ao estrangeiro;<br />

as viagens que, para ele, paradoxalmente, eram imprescindíveis como a<br />

Vida - “Viajar é Viver!” - e lhe causavam terrores e fobias 16 , serviram, também,<br />

decerto, para o afastar de outros desgostos de amor provocados por<br />

Sofia Orsted, Louise Collin, filha do seu protector Jonas Collin, ou a cantora<br />

sueca Jenny Lind; até ao fim da sua vida, para além da Alemanha, fará<br />

mais de trinta viagens que o levarão a França, à Suiça, à Itália, onde se<br />

demora por Roma e Nápoles, Holanda, Bélgica, Inglaterra, Escócia, Suécia,<br />

Noruega, Turquia, Espanha e Portugal que dá origem ao relato Uma visita<br />

em Portugal em 1866 17 . Em 1835, Andersen completa, na Dinamarca, O<br />

Improvisador, romance iniciado em Roma, que lhe abrirá definitivamente as<br />

portas do sucesso e o consagrará como escritor de importância europeia.<br />

Mas serão os Contos para crianças deste mesmo ano que farão comentar<br />

ao físico Orsted que se «O Improvisador» o tinha tornado famoso, os contos<br />

fá-lo-iam imortal 18 , numa notável prefiguração do valor da sua obra contística,<br />

e em total desacordo com as agoirentas palavras da crítica, para<br />

quem tinham muitos pontos fracos, além de serem deploráveis do ponto de<br />

vista moral 19 . É também Orsted quem, referindo-se ao conjunto dos contos<br />

de Andersen, afirma que eles agradaram, em primeiro lugar pelo seu romantismo,<br />

e depois pela sua sensibilidade e humor 20 .<br />

Até ao dia da sua morte, a 4 de Agosto, em Copenhaga, Hans Christian<br />

Andersen escreveu mais contos e histórias, num total de 156 títulos 21 , afastando-se,<br />

progressivamente, dos temas populares e das histórias ouvidas<br />

em criança, para desenvolver um estilo, cada vez mais, pessoal e único, em<br />

que as suas vivências afloram constantemente, em que o contador-actor<br />

cria tantas máscaras que, através delas, se desvela e desnuda de forma<br />

bem mais integral do que nos seus diários, protegido aqui pelo véu da fan-<br />

16 Refere Silva Duarte, em Andersen e a sua Obra, que ele transportava sempre na bagagem uma longa<br />

corda para se poder salvar caso houvesse algum incêndio.<br />

17 Esta viagem a Portugal surgiu do convite feito por Jorge O’ Neill; este, bem como seu irmão, José<br />

O’ Neill, filhos do Cônsul de Portugal na Dinamarca, travaram conhecimento com Andersen, em casa<br />

do Almirante Wulff, em Copenhaga, nos tempos de juventude. A edição portuguesa mais recente desta<br />

obra é traduzida directamente do dinamarquês, tem prefácio e notas de Silva Duarte, e foi publicada<br />

pela Gailivro, em 2003.<br />

18 Cf. Silva Duarte, Andersen e a sua Obra, p. 15.<br />

19 Idem, ibidem.<br />

20 Marc Soriano, op. cit., p.43.<br />

21 Veja-se The Hans Christian Andersen Center www.andersen.sdu.dk onde surge a listagem dos títulos<br />

dos contos em dinamarquês assim como se indicam as suas traduções.


tasia. Não precisou de se contentar com o fugaz papel de figurante da juventude<br />

pois ganhou, para si e para a eternidade, o estatuto de estrela que<br />

tanto perseguiu, e quando, já na velhice, vem a descobrir, através de uma<br />

fotografia, que afinal se tornara respeitável e digno, quase belo, isso enche-<br />

-o de uma alegria infantil 22 . Ao ver-se transfigurado nesse retrato tardio<br />

talvez tenha podido entender até que ponto também ele transfigurara tudo<br />

o que escrevera através da magia que resulta do simples milagre do amor,<br />

dessa ternura radiosa a que se pode chamar a inteligência do coração 23 ;<br />

talvez tenha então, também, visto como a sua aspiração de ser um escritor<br />

de todos os tempos se concretizara, ele que tivera a intuição de que a ingenuidade<br />

fora apenas um elemento dos contos mas o verdadeiro sal fora o<br />

humor. A forma como contava, a oralidade que imprimia ao discurso, a vivacidade<br />

que dele se desprendia, os comentários cúmplices e coniventes, a<br />

musicalidade e o ritmo encantavam crianças e adultos, que compreendiam<br />

os contos dentro da medida das suas capacidades 24 . Hoje em dia, as mais<br />

de cem línguas em que os contos de Andersen se encontram traduzidos<br />

revelam o interesse que, ao longo dos tempos, eles despertaram, mas as<br />

diferentes versões - sobretudo as traduções indirectas em larga escala - fazem<br />

também pensar em que medida o acesso à genuinidade de Andersen<br />

está, na maior parte dos casos, vedada aos seus leitores 25 .<br />

As fontes de inspiração foi-as acumulando ao longo da vida, desde o folclore<br />

nórdico, às narrativas d’As Mil e Uma Noites e da Bíblia, passando por<br />

Anacreonte e Bocaccio, Hoffman, Heine, Chamisso e Walter Scott; vivendo<br />

na junção de dois mundos – o velho e o novo – Hans Christian Andersen<br />

sentiu-se atraído por alguns episódios históricos do passado da Dinamarca<br />

bem como pela novidade e pelo progresso científico e daí a influência de<br />

Orsted 26 ; mas a maior e mais produtiva fonte de inspiração foi a sua vida<br />

e a vida dos seres que o rodeavam. A sua fé cristã, que o levava a encarar<br />

a morte como iluminação, libertação e continuidade da vida, e Deus como<br />

um bom pai, acompanhou-o, em maior ou menor grau, ao longo da vida.<br />

Uma parte da infância, com a sua ingenuidade e a sua capacidade de en-<br />

22 Marc Soriano, op. cit., p.43.<br />

23 Idem, Ibidem.<br />

24 Relembramos o caso da leitura, por Andersen, d’ «O rouxinol», na casa do jurista berlinense Savigny,<br />

referido por Alain Faudemay em Andersen – Contes choisis. Face às reacções sisudas da assistência,<br />

o autor teve a estranha impressão que eles não compreenderam a história.<br />

25 Em Portugal, existem traduções directas do dinamarquês, por Silva Duarte; consultaram-se Contos<br />

de Andersen, Lisboa, Portugália, 3ªed., 1970; Hans Christian Andersen - Contos para Adultos, Barcelos,<br />

Civilização, 1979; Os cisnes selvagens e outros contos, Lisboa, Estampa, 2ª ed., 2003; Contos,<br />

Lisboa, Estampa, 3ª ed., 2001. Para além destes, foi também possível aceder à tradução do dinamarquês,<br />

já indicada, de Ana de Castro Osório e Lisa Tilberg, A princesa e a ervilha e outros contos,<br />

Lisboa, Vega, 1993.<br />

26 Cf. Silva Duarte, Andersen e a sua Obra.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

101


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

102<br />

tendimento superior das coisas permaneceu sempre nele mas toda a sua<br />

existência foi marcada pela errância e pela solidão, pela procura de um lar<br />

que nunca teve, e nunca conseguiu ou não quis construir; oriundo de uma<br />

sociedade que extremava as classes sociais, marcou-o sempre o estigma<br />

das suas origens e, mesmo quando reconhecido e admirado entre os ricos<br />

e poderosos do Mundo do seu tempo, apesar de uma satisfação evidente,<br />

certo desconforto permanecia nesse espírito hipersensível e orgulhoso.<br />

O conto foi, para Andersen, não só forma de exorcizar as origens, elevando-<br />

-se acima da sua condição, como também de se elevar acima dos poderosos<br />

pela imortalidade do seu génio. De acordo com Isabelle Jan, duas<br />

palavras resumem simultaneamente o seu génio e o seu destino: ele foi o<br />

narrador e foi o viajante 27 . Na obra anderseniana, a oralidade precede e sobrepõe-se<br />

à escrita, e em toda ela perpassa a interrogação sobre a natureza<br />

do conto e o papel do contador que não se limita a subjazer à narrativa,<br />

antes está lá presente sob várias formas. Para além disso, o narrador parte,<br />

com frequência, à procura do conto, porque ele se esconde em todo o lado<br />

e é preciso saber escutar e tocar as coisas pois aí reside a inspiração; não<br />

basta ver de longe, é necessário aproximar-se e entrar uma vez que tudo<br />

tem uma história de vida para contar.<br />

Os temas dos seus contos 28 desenvolvem-se à volta do núcleo constituído<br />

pelo narrador, pelas personagens - humanas, animais ou objectos - e pelas<br />

paisagens - externas ou internas - numa atmosfera de quase permanente<br />

realismo, em que o sonho, por norma, não invade a vida real. Vamos encontrar,<br />

de 1835 a 1872, temas populares - expurgados e redimensionados<br />

- mas, sobretudo, temas originais, com o cunho, ora humorístico, ora grave<br />

de vários desdobramentos de um Andersen quase omnipresente, envergando,<br />

muitas vezes, as vestes das personagens, vivendo por transferência<br />

ou simpatia, até mesmo envelhecendo e recordando, num eterno retorno,<br />

fazendo sempre ouvir a sua voz, particularmente nos contos “O Sapo”<br />

(1866) e “O Patinho Feio” (1843).<br />

“As Flores da Idinha” (1835) esboçam, desde cedo, uma performance de<br />

Andersen enquanto jovem; o contraponto entre o pensamento animista<br />

da infância, representado pela simbiose entre Idinha e o estudante, que<br />

acreditam na “vida” das flores, e a razão dos adultos (o professor de Botâni-<br />

27 A propósito de Andersen e dos seus contos destaca-se, pela originalidade de perspectivas, o capítulo<br />

“Andersen ou la Réalité”, de Isabelle Jean, in La Littérature Enfantine, Paris, Les Éditions Ouvrières,<br />

5ème édition, 1985, pp. 57-67.<br />

28 As citações dos contos que, a partir de agora, se transcrevem foram retiradas das traduções portu-<br />

guesas anteriormente indicadas


ca e o Conselheiro de Chancelaria), que não compreendem o que consideram<br />

estúpida fantasia, será recorrente nos seus contos; assim, também,<br />

a simpatia manifestada pelo narrador perante aquele estudante que recorta<br />

figuras divertidas e engraçadas: ora um homem que estava pendurado numa<br />

forca e segurava um coração na mão, pois era um «ladrão de corações», ora<br />

uma velha bruxa que cavalgava uma vassoura e tinha o marido no nariz. O<br />

mesmo contraponto entre a imaginação positiva e a razão castradora surge<br />

em “Dança, Dança, Minha Bonequinha!” (1871); as personagens são, uma<br />

outra vez, o estudante e a criança que se opõem ao adulto – neste caso<br />

a tia. Ameliazinha tinha tão só três anos mas gostava muito do estudante<br />

que dava lições aos irmãos, porque era divertido e lhe ensinara uma canção<br />

que ele próprio compusera e que achava excelente, uma canção que<br />

ela e as suas bonecas entendiam; apenas a Tia Melle discordava porque,<br />

tendo passado para além da ombreira da infância - nas palavras do narrador<br />

- decerto perdera o entendimento. Em “Olavinho Fecha-os-Olhos” (1842),<br />

o avô de Hialmar agradece a Olavinho Fecha-os-Olhos - personagem de<br />

contornos andersenianos - as histórias que conta ao neto mas pede-lhe<br />

também, como adulto, que não lhe baralhe as ideias; Hielmar, contudo, indiferente<br />

aos receios do avô, anseia pelas outras histórias que Olavinho tem<br />

para contar. A clivagem entre o universo adulto e o universo infantil, a partir<br />

das suas distintas formas de percepcionar o mundo, encontra no narrador<br />

anderseniano e nas suas personagens – ali, o estudante, aqui Olavinho Fecha-os-Olhos,<br />

ambos alter-egos do contador – o fiel de uma balança que<br />

pende, invariavelmente, para o lado da infância e da sua inteligência do<br />

coração.<br />

O tema da morte, que desponta já em “As Flores da Idinha”, abre a porta<br />

para a ideia da perenidade e da renovação, pois as flores, uma vez mortas e<br />

enterradas, florirão no Verão e tornar-se-ão mais bonitas. Essa morte física<br />

revela-se, muitas vezes, - na perspectiva anderseniana - como uma luz ou<br />

um fogo que assegura a continuidade, a eternidade e o renovo, que é elevação<br />

e não queda. É o que acontece no conto “O Linho” (1848) - quando<br />

todo o papel se incendiou e no mesmo momento foi todo uma labareda (...)<br />

foi tão alto no ar, como nunca o linho conseguira erguer a sua florzinha azul<br />

e brilhou como nunca o pano de linho conseguira brilhar. Outras vezes, a<br />

morte transporta consigo, em muitos casos, a ideia da resignação cristã e<br />

da crença de uma vida feliz no Céu, como prémio do sofrimento na terra.<br />

Assim se passa com a “A Rapariguinha dos Fósforos” (1845), provável referência<br />

à infância miserável da mãe de Andersen. A rapariguinha dos fósforos<br />

e a sua avó voaram em esplendor e júbilo, tão alto, tão alto! E não havia<br />

aí nenhum frio, nenhuma fome, nenhum medo... estavam com Deus! Mas<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

103


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

104<br />

as pessoas que a viram na rua, morta pelo frio, e a encontraram sorridente,<br />

com os seus fósforos queimados, jamais souberam em que esplendor ela<br />

com a velha avó tinham entrado no júbilo do Ano Novo! Esta percepção<br />

cristã da vida e da morte pode conduzir ao sentimento de culpa, ao remorso<br />

e consequente arrependimento. São disso exemplos os contos “Os Sapatos<br />

Vermelhos” (1845) e “Ana Isabel” (1859). O percurso de expurgação dos<br />

pecados mostra-se longo e doloroso em ambos os casos; a luta e o sofrimento<br />

constituem portagem necessária para transpor a ponte que separa<br />

o Mal do Bem e a Infelicidade da Felicidade. Depois de ter expiado o seu<br />

pecado de orgulho na terra, Karen alcança a paz no céu, e o coração ficou<br />

tão cheio de luz de sol, de paz e de alegria que rebentou. A alma voou na<br />

luz do sol para Deus e ninguém houve aí que lhe perguntasse pelos sapatos<br />

vermelhos. Ana Isabel sente que tem de se penitenciar pelo facto de não<br />

ter amado suficientemente o filho e, por isso, ver-se-á obrigada a travar um<br />

duro combate com a sua consciência pesada a fim de recuperar a alma do<br />

filho e a sua própria. E ela chega, enfim, à “casa de Deus” - Quando o Sol se<br />

pôs completamente, já a alma de Ana Isabel se encontrava lá no alto, onde<br />

não há nenhum temor, quando se lutou bem. E bem lutara Ana Isabel até ao<br />

fim. É este comentário apreciativo do narrador que sublinha quanto é mais<br />

importante o arrependimento e a penitência do que o pecado, uma vez que<br />

este pode, com trabalho humano, dissolver-se na absolvição divina.<br />

A identificação dos defeitos da sociedade desempenha um papel importante<br />

nos contos de Andersen e ele não se exime a uma revelação que<br />

decorre, em grande parte, da sua experiência de vida; colocada no meio<br />

de dois lugares e de dois meios sociais incompatíveis, não raras vezes,<br />

a personagem anderseniana (tal como o próprio autor) fica separada de<br />

todos para sempre, carente de afectos, de reconhecimento, marcada pela<br />

solidão. Assim aconteceu com Ana Isabel que deixou o filho para ser ama<br />

de uma criança a quem criou - o doce filho do conde - e que, anos volvidos,<br />

já nem a lembrava sequer. Olhou-a, mas não disse uma palavra. Não a reconheceu.<br />

Esta separação entre o mundo dos ricos e o mundo dos pobres<br />

surge também, de forma mais subtil, através do distanciamento provocado<br />

pela interposição entre as personagens de objectos que as impedem de<br />

tocar o outro ou pela própria distância que lhes permite verem-se, apenas<br />

ao longe (referimo-nos às situações vividas pela Rapariguinha dos Fósforos”<br />

e pel’ ”O Firme Soldado de Chumbo” (1838). A dicotomia dos mundos<br />

aparece plasmada num conto trágico, com fortes contornos biográficos,<br />

que representa uma belíssima homenagem de Andersen à mãe - trata-se de<br />

“Não Prestava Para Nada!” (1853), conto em que a senhora, dirigindo-se à<br />

lavadeira, diz: Respeito os pobres (...) Perante Deus podem vir a ocupar um


lugar mais alto do que muitos ricos, mas, na terra, não se pode ir por caminhos<br />

tortuosos quando se quer avançar ou voltar-se-á a carruagem (...).Essa<br />

mesma realidade enforma-a, contudo, em humor para, simultaneamente,<br />

desvelar e exorcizar o mal que a diferença causa e lhe causa; paradigmáticos<br />

a esse nível são os contos “Tudo no Seu Devido Lugar” (1853) e “O<br />

Jardineiro e o Senhor” (1871). No primeiro, um dos barõezinhos olha para<br />

o retrato dos antepassados e comenta: - Mas não são verdadeiramente da<br />

nossa família! (...) Ele era negociante de meias e ela moça de gansos. Não<br />

eram como o papá e a mamã! Partindo do princípio de que “a verdade sai<br />

da boca das criancinhas”, a criancinha em questão veicula a ideia, decerto<br />

bem arreigada na sua mente, de que a nobreza de espírito e de carácter<br />

são letra morta diante da riqueza e do prestígio social. Em “O Jardineiro e<br />

o Senhor” a oposição mostra-se, desde logo, no título; Larsen, o jardineiro,<br />

era um artista que - qual Andersen - encontra e mostra a beleza das coisas<br />

onde ela deve ser procurada e não onde ela está exposta mas o dono do<br />

solar e de Larsen apenas via, nos seus dotes, motivo de orgulho para si<br />

próprio. As falas reproduzidas - Tudo o que Larsen faz - declarou Sua Senhoria<br />

- é apregoado a todos os ventos. É um homem com sorte! Quase me<br />

sinto orgulhoso de o ter ao meu serviço! - levam-nos a sentir, de forma mais<br />

intensa, a ironia amarga que se desprende das palavras com que o narrador<br />

aprecia o seu carácter e desmistifica os seus sentimentos - não era<br />

orgulho o que sentia! Sabia que era o senhor, que o podia despedir, o que<br />

não fazia, é claro, por ser boa pessoa; e nesta classe há muito boas pessoas,<br />

o que é também uma sorte para todos os Larsens. (Tal como Larsen,<br />

também Andersen sabia o que era servir senhores que não sabem apreciar<br />

os talentos que lhes passam ao lado). Ganha então outro sentido o brevíssimo<br />

final - Pois é esta a história do jardineiro e do senhor! O apelo directo<br />

do narrador ao ouvinte-leitor que fecha a história insinua uma cumplicidade,<br />

uma simpatia indisfarçável do narrador pela personagem, que neste caso<br />

passa a assumir-se como representante de toda uma classe desfavorecida<br />

à nascença, logo desprezada ao longo da vida. Larsen/Anderse é uma personagem<br />

comovente pela ingenuidade e, simultaneamente, pela força de<br />

vontade com que se entrega à busca da perfeição. Comovente, de uma<br />

outra forma, se revela o conto “Filho de Porteiro” (1866). O narrador estabelece,<br />

logo no início do texto, a oposição social entre os intervenientes<br />

- A família do general vivia no primeiro andar, a do porteiro na cave. Havia<br />

uma grande distância entre as duas famílias, todo um andar e a posição<br />

social. Os pais queriam, para Emiliazinha, um príncipe, mas um príncipe<br />

verdadeiro; só o Génio de Jorge, as suas capacidades para a Arte, o seu<br />

empenho, o ser arquitecto, os seus planos para a imortalidade não demoviam<br />

o general e a mulher mas... Jorge prosperou, veio a ser conselheiro de<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

106<br />

estado e Emília veio, naturalmente, a ser a mulher do conselheiro de estado.<br />

(Tal como Jorge, Andersen era humilde, tal como ele teve o Génio e a força<br />

para atingir a imortalidade na Arte, só não obteve o Amor e apenas este<br />

pormenor os separa)<br />

O amor entre homem e mulher, nos contos de Andersen, pauta-se, regra<br />

geral, pelo desacerto no bater dos corações, deixando o jovem, afectiva<br />

e efectivamente exilado. Amor silencioso, viagem, sofrimento e libertação<br />

pelo sono da morte são alguns dos ingredientes do belíssimo conto “Sob<br />

o Salgueiro” (1853), que constituem, segundo o próprio Andersen, um par<br />

de folhas da história da sua própria vida. (Tratar-se-ia, neste caso, do amor<br />

infeliz pela cantora sueca, Jenny Lind). Em “Namorados” (1843), já o desencontro<br />

amoroso surgia como tema, terminando a história com o reencontro,<br />

anos passados, do pião e da bola, prováveis representantes de Andersen e<br />

de Riborg Voigt - e o pião não falou mais do seu antigo amor. Esvanece-se,<br />

quando a namorada permanece cinco anos numa goteira a encharcar-se,<br />

sim, já não se a conhece, quando se volta a encontrá-la no barril do lixo.<br />

Tema recorrente é o da afinidade entre os objectos e os homens, que resulta<br />

do pensamento animista de Andersen. O destino dos objectos é, também<br />

ele, o reflexo desapiedado do destino humano na terra. Recordem-se, a<br />

esse propósito, “A Agulha de Passajar” (1845) e “O Bule” (1864), escrito, segundo<br />

Andersen, em Toledo, mas tendo muito mais de si próprio do que de<br />

Toledo. A agulha, presumida e arrogante ao longo da vida, acaba na valeta<br />

para todo o sempre; o bule, outrora tão orgulhoso que, reconhecendo embora<br />

os seus defeitos, nunca falava deles, acaba, sem préstimo e lançado<br />

para o jardim como um caco velho; as diferenças entre eles estão em que o<br />

velho bule tem recordações que ninguém lhe pode tirar enquanto a agulha<br />

nem isso tem; e as recordações são a pedra de toque da existência e do<br />

conto que a perpetua, porque são elas sempre que tecem o conto – mais<br />

ou menos trágico – da vida.<br />

O interesse e a admiração pelo progresso científico nascente que permitirá<br />

estabelecer pontes entre o velho e o novo serve de tema ao conto “A<br />

Grande Serpente do Mar” (1871), metáfora para designar o cabo telegráfico,<br />

grande e com o comprimento de milhas que os homens colocavam<br />

no fundo, entre a Europa e a América; este conto permitir-lhe-á, também,<br />

em tom paródico, analisar as reacções de compreensão ou estupefacção<br />

dos peixes perante as invenções lá de cima. Dominados ambos pelo tom<br />

bem-humorado surgem os temas do Teatro e do Teatro de Fantoches em<br />

“A Comadre” (1866) e ”O Homem dos Fantoches” (1851); naquele, através


do discurso indirecto livre do narrador, ouve-se o delicioso pensamento<br />

da Comadre que, mesmo doente, não perdia uma comédia – Não podia<br />

decerto imaginar o Reino dos Céus sem que aí devesse haver também um<br />

teatro. Não nos fora, em verdade, prometido, mas era de pensar que os<br />

muitos actores e actrizes notáveis que para lá tinham partido antes, devessem<br />

ter a sua esfera de acção continuada. A Arte e a reflexão sobre o Belo<br />

dominam os contos “Psique” (1861) e “Que Bela!” (1859), sendo este último<br />

pautado, em alguns momentos, por um humor construído sobre jogos de<br />

linguagem que facilmente provocam o riso. A Poesia e o Poeta, a Literatura<br />

e o Livro são outros tantos temas basilares de Andersen e através deles, ou<br />

com eles, se realizam longas viagens de reflexão e auto-conhecimento em<br />

“A Tia Dor-de-Dentes” (1872), “A Sombra” (1847), “O Duende em Casa do<br />

Merceeiro” (1853) ou “O Aleijadinho” (1872).<br />

Hans Christian Andersen, o filho do pobre sapateiro de Odense, sempre<br />

sonhou ser actor, célebre e ganhar a imortalidade. Não se limitou, no entanto,<br />

a sonhar. Intrépido, lutou durante toda a vida para o conseguir e, se<br />

não homenageou Talma no palco do Teatro Real de Copenhaga, o grão da<br />

sua voz ecoou através das cento e cinquenta e quatro actuações na Arte do<br />

Conto. Elas granjearam-lhe o reconhecimento na Dinamarca e no Mundo.<br />

Deixemo-lo descansar um pouco da longa viagem que tem feito ao longo<br />

destes quase dois séculos. Façamos-lhe, agora, momentaneamente, a vontade<br />

e atendamos ao seu pedido: Quando vier o tempo de eu próprio com a<br />

história da minha vida ser encadernado numa sepultura, ponde então como<br />

inscrição: «Um bom humor». É a minha história. (“Um Bom Humor”)<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

108<br />

Rui Marques Veloso<br />

Trilhos Andersenianos na<br />

Literatura Infantil Portuguesa<br />

Creio ser um facto constatado por todos a clara infl uência que Hans Christian<br />

Andersen exerceu e continua a exercer na criação literária para crianças.<br />

Num outro plano, verifi camos que ao longo de várias gerações os seus<br />

contos preencheram o imaginário infantil, constituindo suporte de momentos<br />

únicos que são os das histórias contadas pelos pais ou avós aos pequenos<br />

seres ávidos da descoberta do mundo e dos segredos que ele encerra.<br />

Quem é que nunca se sentiu patinho feio, recusado e agredido pelos outros,<br />

até descobrir um lugar ao sol? Quem é que nunca encontrou, no percurso<br />

apressado para o local de trabalho ou para o espaço de lazer, meninas de<br />

fósforos a pedirem-nos que compremos o pouco que têm para vender a fi m<br />

de fugirem à agressão quotidiana e prometida? Quem é que nunca reparou,<br />

ao folhear as revistas da chamada vida social, que há certas princesas com<br />

tamanha sensibilidade que encontram ervilhas incómodas onde se deveria<br />

degustar a seda pura e os veludos mais caros? Quem é que nunca sentiu<br />

asco pela estupidez e vaidade imperiais daqueles que, na sua prepotência,<br />

se julgam, narcisicamente, os mais belos e os mais inteligentes?<br />

Passados dois séculos sobre o nascimento de Andersen, a herança da<br />

obra do autor permanece viva e reitera a verdade que todos sabemos – os<br />

grandes autores superam a barreira do tempo e continuam a dar-nos nos<br />

seus textos a frescura inicial. Em termos formais, a sua escrita é única,<br />

pois cultiva um discurso narrativo dinâmico e envolvido por uma cinemática<br />

que prende o destinatário extratextual, com uma sábia gestão dos ritmos<br />

consentânea com a capacidade de visualização do receptor. No plano dos<br />

conteúdos, a discussão sobre os seus contos não será tão pacífi ca, em especial<br />

pelo modo como valoriza a Providência divina e a morte como fonte<br />

de Luz e solução para o sofrimento humano. Um aparente pessimismo resultante<br />

do facto de em mais de metade dos seus contos o protagonista<br />

morrer para encontrar a paz e o contacto com Deus. Mas será que podemos<br />

fazer uma leitura tão redutora? Terá sido esta vertente a dominante na<br />

infl uência exercida sobre os nossos escritores? Creio que não. É um facto<br />

que em numerosos contos há como que um Bonjour, tristesse, que nos prenuncia<br />

uma melancolia que irá acompanhar a narração até a um desenlace


fatal; o herói vai soçobrar perante poderosas forças que se alimentam de<br />

um determinismo que ultrapassa a força e a inteligência humana. Andersen<br />

deixa verter para os contos as marcas de uma infância sofrida que moldaram<br />

para sempre o seu olhar, mesmo quando a fama e a fortuna passaram<br />

a acompanhá-lo; não esqueçamos que os tempos que se viviam na época<br />

eram de miséria generalizada e de fortíssimos contrastes sociais. Não vejo,<br />

no entanto, na literatura portuguesa, precisamente porque os contextos são<br />

outros e os movimentos estéticos são diferentes e não se confundem com<br />

o romantismo tardio do autor dinamarquês, um seguidismo desta linha criativa.<br />

Se olharmos a obra de Andersen numa perspectiva pragmática, verificamos<br />

que a arte de contar ali encontrou sede própria. Todos os biógrafos e testemunhos<br />

vários focam esta valência como um dos elementos mais importantes<br />

na caracterização da escrita anderseniana. Sobre esta arte tão peculiar,<br />

António Torrado afirmava, há vinte anos, em entrevista ao vespertino<br />

A Capital 1 que a comunicabilidade do escritor para crianças, a comunicabilidade<br />

sem demagogias, deve partir de uma transparência de escrita como<br />

se as palavras não estivessem lá. É uma escrita em voz alta. Dificilmente encontraremos<br />

em toda a literatura universal destinada ou não às crianças um<br />

autor que tenha conseguido, de forma sublime, associar a criação literária<br />

à eterna arte de contar; saber captar a atenção permanente do leitor como<br />

se de um ouvinte se tratasse. A infância de Andersen povoada de muitas<br />

histórias contadas pelo pai associada às limitações escolares resultantes<br />

de um certo abandono de que foi vítima até conquistar a protecção da<br />

família Collin poderão explicar a especial sensibilidade para as marcas do<br />

código oral. O que se passa na infância fica marcado, de forma indelével,<br />

no espírito do homem. Ora, no primeiro quartel do século XIX os ventos do<br />

Romantismo aliados a uma natural reacção contra a derrotada hegemonia<br />

napoleónica levam a um aprofundamento das raízes culturais e a um fortalecimento<br />

da identidade cultural do povo dinamarquês; a recolha e a valorização<br />

dos contos da tradição popular são uma consequência natural desta<br />

procura. Se pensarmos no percurso de Almeida Garrett, compreendemos<br />

facilmente o caminho percorrido por Andersen – os contos que pontificam<br />

o início da sua carreira são os da tradição oral, de cunho popular, sendo por<br />

si recriados com o génio de quem não esqueceu as suas raízes.<br />

A escolha de somente quatro autores portugueses, cuja obra possa ilustrar<br />

a influência do génio de H.C.Andersen, assenta na necessidade de fo-<br />

1 “A literatura infantil é uma escrita em voz alta” in A Capital, 28.12.1984<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

110<br />

calizar a nossa análise num corpus restrito. Matilde Rosa Araújo, Sophia de<br />

Mello Breyner Andresen, Ricardo Alberty e António Torrado são escritores<br />

galardoados com o Grande Prémio da <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong> pelo<br />

conjunto da sua obra; outros houve na lista deste Prémio onde também<br />

poderíamos encontrar pontos de contacto com Andersen. Creio que a influência<br />

deste escritor é de tal maneira vasta que será lícito afirmar que os<br />

bons escritores para crianças, em Portugal e no mundo, têm um quinhão,<br />

grande ou pequeno, de dívida para com ele. Algumas das coordenadas que<br />

nortearam o nosso trabalho de reflexão e pesquisa aplicar-se-ão a outros<br />

escritores contemporâneos ou de um passado mais ou menos longínquo<br />

– de Virgínia de Castro e Almeida a Luísa Dacosta há matéria para estabelecer<br />

pontes entre o escritor dinamarquês e a literatura portuguesa.<br />

O traço mais flagrante da obra de Matilde Rosa Araújo é a ternura do olhar;<br />

não encontro em toda a nossa literatura uma autora que tenha compreendido<br />

de forma tão profunda e que tenha amado tanto a Criança. Enquanto<br />

alguns que pretendem escrever para o público infantil insistem em discursos<br />

piegas e estupidificantes, a autora, honrando a memória de Andersen,<br />

dá-nos nos seus textos a infância autêntica, com as suas dores, as suas<br />

angústias, as suas alegrias e os seus sonhos. Afirmou José António Gomes<br />

que a poética de Matilde se organiza em torno de três grandes temários – a<br />

infância dourada, a infância agredida e a infância como projecto 2 . Concordo<br />

em absoluto com esta análise, embora perspective aqui a poética num sentido<br />

mais abrangente, ou seja, uma poética que inclui também a prosa. O<br />

olhar triste que Andersen lança sobre os meninos tristes e sofredores vamos<br />

encontrá-lo, com igual ou maior intensidade até, na narrativa O Palhaço<br />

Verde 3 . Aqui a autora deixa transparecer o quanto a chocou a miséria,<br />

a pobreza, o sofrimento de um espectáculo de circo a que assistiu – tal<br />

como em Andersen, a realidade convive com a ficção, tornando-se por isso<br />

mesmo mais gritante. Um menino que vende moinhos de papel esquece a<br />

sua condição ao partilhar com o palhaço a alegria que ele transmite a todas<br />

as crianças presentes; ao dar-lhe um moinho feito flor mostra a todos os<br />

homens que a pureza do coração de uma criança é a chave de um mundo<br />

melhor. As lágrimas que acompanham a emoção alimentam a convicção de<br />

que a felicidade é possível porque ela é feita de pequenos nadas.<br />

Mas as lágrimas podem ser a imagem visível de muito sofrimento. Nós,<br />

professores, se olharmos os alunos com o coração, veremos o que os olhos<br />

não captam...mas, às vezes, falhamos e isso deixa marcas. Matilde é Pro-<br />

2 Maria José Costa (coord.), Matilde Rosa Araújo, Porto, Livraria Civilização Editora, 1995, pág. 95<br />

3 Matilde Rosa Araújo, O Palhaço Verde, Coimbra, Atlântida Editora, 1976


fessora e a alegria que sempre a acompanhou no exercício da docência<br />

não apaga os momentos em que não viu o sofrimento dos alunos. Penitencia-se<br />

por isso, contando-nos as suas histórias. As botas de meu pai 4 e A<br />

fita vermelha 5 são exemplos paradigmáticos; nestes dois contos a ficção<br />

traduz a realidade vivida – o João e a Aurora foram crianças que sofreram.<br />

O primeiro, ainda com feridas abertas, reconciliou-se com a vida, mas a<br />

segunda partiu sem o sorriso esperado da professora que tanto amava.<br />

Nos contos da nossa grande escritora encontramos como protagonistas<br />

muitas outras crianças que mostram uma infância agredida. São retratos<br />

em sépia onde os contrastes se diluem num claro-escuro, reflectindo a pobreza,<br />

a luta pela vida ou a luz da descoberta do amor e da ternura – e aqui<br />

Andersen e Matilde estão muito próximos. Uma boneca de trapos pode<br />

ser um tesouro ou um casaco novo a esperança de um mundo melhor.<br />

Mas os seus contos dão-nos também uma infância dourada pelos afectos<br />

e pelos laços fortes que ligam a criança ao adulto – a Nina ou a Maria ou a<br />

Joana-Ana. Esta é uma das ideias-chave da obra de Matilde: a teia que, no<br />

quotidiano da criança, se tece pelas mãos de adultos que a olham com o<br />

permanente deslumbramento e alegria convicta de que ali está o Futuro.<br />

A recusa em aceitar o fatalismo da irreversibilidade das situações de sofrimento<br />

da criança e a permanente crença de que o Amor, traduzido em gestos<br />

e actos marcados por uma efectiva ternura, constituem elementos marcantes<br />

na escrita de Matilde Rosa Araújo. Em vários contos presentes em<br />

O Sol e o menino dos pés frios, título, por si só, suficientemente sugestivo<br />

do modo de ver a criança, encontramos sempre a consciência de que é<br />

imperioso acreditar nela, dado que encerra em si um capital de esperança<br />

que só uma sociedade cega poderia recusar. Veja-se como no último conto<br />

desta colectânea, intencional e simbolicamente intitulado Menino 6 (uma<br />

das palavras recorrentes em Matilde), aquela criança, que ainda não tem<br />

memória no coração, recusa permanecer no chão à espera das esmolas<br />

dos transeuntes que apressadamente atravessam o Terreiro do Paço, para<br />

subir para o ponto mais alto da estátua de D. José e aí contemplar o Poder<br />

e o Mundo; o seu sorriso silencioso soou a um grito profundo que nos deixa<br />

saudavelmente abalados nas nossas certezas e no nosso alheamento às<br />

crianças que sofrem.<br />

O olhar sofrido para a infância está igualmente presente na poesia de Matil-<br />

4 Idem, As Botas de meu Pai, Lisboa, Livros Horizonte, 1977<br />

5 Idem, O Sol e o Menino dos Pés Frios, Lisboa, Ática, 1972, págs. 31-35<br />

6 Idem, Ibidem, págs. 117-120<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

111


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

112<br />

de Rosa Araújo; recusando a passividade e porque a criança é um ser impoluto<br />

e, no fundo, consciência de uma sociedade, cria poemas que nos<br />

tocam pelo olhar deslumbrado (veja-se a quadra com que se inicia O Livro<br />

da Tila 7 ou o poema Apontamento presente em O Cantar da Tila 8 ), mas<br />

também pela força que emana de uma coragem feita esperança. Quando<br />

escreve Os Direitos da Criança 9 , desenvolve em dez estrofes dez premissas<br />

que nos demonstram o seu comprometimento permanente com a<br />

criança e a sua profunda crença num Futuro que tenha por núcleo uma<br />

infância respeitada e jamais abandonada.<br />

Creio indispensável marcar aqui uma diferença substancial no modo como<br />

a autora conclui os seus textos relativamente a Andersen. A inteligência do<br />

coração, para utilizar uma expressão muito feliz de Marc Soriano 10 , que<br />

caracteriza os contos do autor dinamarquês, leva-o a cair num flagrante<br />

pessimismo, visível na resignação que perpassa em numerosos contos e<br />

na valorização de uma vida eterna onde a felicidade suprema irá ao encontro<br />

do protagonista pondo fim ao seu sofrimento terreno. Em Matilde<br />

há uma forte consciência social e a aparente fragilidade dos heróis dos<br />

seus contos transfigura-se numa imensa força; esta provém da resposta<br />

solidária do leitor e da activação da nossa capacidade de lutar pelos mais<br />

desfavorecidos. No olhar da autora não descortinamos qualquer parcela de<br />

conformismo; há, isso sim, um grito surdo de revolta perante as injustiças<br />

do mundo e um apelo à mudança, ao regresso à nossa capacidade de nos<br />

emocionarmos de forma consequente com o sofrimento alheio, especialmente<br />

quando são as crianças que estão em jogo, sem cruzar os braços<br />

numa aceitação de impotência.<br />

Todos conhecemos a obra de Sophia de Mello Breyner Andresen e, muitos<br />

de nós, professores, temos sido mediadores no trabalho de recepção que<br />

proporcionamos aos mais novos, em especial quando trabalhamos a leitura<br />

orientada, para que as crianças aprendam a fruir a beleza dos seus textos.<br />

Quando procuramos sinais da presença da estética anderseniana na autora<br />

de A menina do mar, confrontamo-nos com algumas dificuldades, dada<br />

a magia luminosa que individualiza, de forma muito aguda, a sua escrita.<br />

Creio que a força da descrição, marcadamente lírica, representa um dos<br />

pontos de ancoragem desta nossa análise; os espaços, onde decorrem os<br />

acontecimentos que dão substância às suas narrativas, são apresentados<br />

7 Matilde Rosa Araújo, O Livro da Tila, Coimbra, Atlântida Editora, 1976, pág. 11<br />

8 Idem, O Cantar da Tila, Coimbra, Atlântida Editora, 1973, pág. 29<br />

9 Idem, O Sol Livro, Lisboa, Livros Horizonte, 1976, págs. 64-65<br />

10 Marc Soriano, Guide de littérature pour la jeunesse, Paris, Flammarion, 1975, pág. 45


com o rigor cromático e dinâmico de um pintor deslumbrado perante a<br />

magia do que vê e do que lhe é permitido imaginar. Afirmou Sophia, no seu<br />

testemunho inserido na antologia De que são feitos os sonhos, que Procurei<br />

a memória daquilo que tinha fascinado a minha própria infância. (...)<br />

Aliás, nas minhas histórias para crianças quase tudo é escrito a partir dos<br />

lugares da minha infância 11 . É esta presença de elementos recuperados<br />

dos anos de ouro da infância que se manifesta na descrição da Natureza<br />

como companheira das brincadeiras; as árvores constituem espaço privilegiado<br />

de um maravilhoso que envolve a criança protagonista e que lhe<br />

oferece a passagem para as aventuras vividas. A autora cria vida, traduzida<br />

em linguagem e sentimentos, nos elementos vegetais e nos animais, alimentando<br />

interacções múltiplas com o leitor, o que acentua o protagonismo<br />

das crianças. Florinda, Isabel, a Menina do Mar e o rapaz, seu companheiro,<br />

integram-se na Natureza e dão coerência a toda a construção da narrativa.<br />

Os contos de Andersen apresentam-nos personagens bem caracterizadas<br />

e os espaços demoradamente definidos para que o leitor possa imaginar na<br />

plenitude o cenário onde decorre a acção; é o olhar da criança que é solicitado<br />

e, por isso, há um flagrante animismo naquilo que poderia parecer estático<br />

ou passivo. Digamos que os elementos mágicos concorrem para que<br />

as fronteiras entre o real e a fantasia se diluam. Parecem-me exemplares<br />

as descrições presentes na narrativa A virgem dos gelos 12 , onde a Suiça<br />

e os Alpes em particular constituem um território de eleição para nos falar<br />

de Rudy. A caracterização desta criança, o seu percurso até à vida adulta e<br />

a derrota face a destino que não consegue evitar encontram no enquadramento<br />

de uma natureza agreste mas bela uma unidade que o tornam um<br />

dos mais belos contos do autor dinamarquês. A Escandinávia vai oferecer,<br />

igualmente, planos de rara beleza no enquadramento da longa procura que<br />

Gerda enceta até reencontrar e salvar Kay; também neste conto – A rainha<br />

das neves 13 - há um percurso de maturação, já que, no epílogo os dois<br />

amigos são já adultos, ainda que mantenham o espírito da infância nos seus<br />

corações.<br />

Detenhamo-nos nos aspectos focados para compreendermos as pontes<br />

passíveis de serem propostas na leitura conjunta destes dois autores. As<br />

personagens presentes na obra de Sophia para crianças, são, na opinião de<br />

Marta Martins, num estudo notável sobre a autora, personagens “comprometidas”,<br />

que vivem segundo regras e alianças que estabeleceram com os<br />

11 Luísa Ducla Soares (coord.), De que são feitos os sonhos, Porto, Areal, 1985, pág. 19<br />

12 Hans Christian Andersen, Contos, Lisboa, Publicações Europa-América, 1974, págs. 105-154<br />

13 Idem, Ibidem, págs. 51-85<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

113


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

114<br />

outros 14 . É interessante verificar que as crianças que protagonizam grande<br />

parte dos contos de Andersen se apresentam, também, como seres solidários,<br />

prontos para superarem obstáculos que se apresentem na caminhada<br />

da vida; o caso de Gerda, atrás referido, é flagrante, embora possamos<br />

encontrar mais exemplos. Observar a caracterização das personagens permite-nos,<br />

nos dois autores em análise, verificar que o comprometimento<br />

resulta de determinadas marcas presentes na sua índole e, mesmo que a<br />

morte venha ao seu encontro, não desfalecem perante a adversidade.<br />

A transfiguração do real encontra na linguagem de ambos os autores uma<br />

subjectividade lírica que persegue a envolvência do leitor no mundo que<br />

lhe é oferecido. Os sentidos são chamados para captarem, dentro das sinestesias<br />

que os textos oferecem, as múltiplas sensações da vida e dos<br />

espaços. São os sons das tempestades ou dos pássaros, mas também<br />

os cheiros das florestas e das casas antigas, o frio do gelo e da neve, a<br />

policromia tonal do verde das árvores ou da transparência das águas, as<br />

fragrâncias das flores, o brilho da luz ou a aspereza do chão. Mas para lá<br />

de toda a transformação que decorre do tratamento literário do texto, há<br />

uma procura da verdade na essência das coisas – é a pureza da criança<br />

que permite atingi-la.<br />

A descoberta do mundo que a viagem nos oferece – Andersen e Sophia<br />

foram viajantes assumidos – tem em O cavaleiro da Dinamarca 15 uma<br />

alegoria extremamente feliz. O cavaleiro parte de uma floresta no norte da<br />

Dinamarca para, anos depois, ali regressar numa noite de Natal. O renascimento<br />

que o regresso representa, com toda a sabedoria acumulada pela<br />

descoberta do outro em múltiplas e variegadas paragens, lembra ao leitor<br />

que a nossa dimensão humana exige um olhar lúcido, mas sensível, sobre<br />

o mundo.<br />

Ricardo Alberty pertence a uma geração de ouro que nos anos 60 marcou<br />

a literatura para a infância em termos de qualidade e exigência, recusando<br />

o moralismo fácil e a alienação precoce. Tal como Matilde Rosa Araújo e<br />

Sophia de Mello Breyner Andresen, figuras tutelares desta geração de escritores,<br />

este autor construiu histórias na percepção de que o destinatário-<br />

-criança merece um profundo respeito na escrita que lhe é destinada, já que<br />

há a noção clara de que tudo o que ela recebe é absorvido e assimilado e,<br />

assim, conto a conto, se vai alimentando a sua imaginação com elementos<br />

potencializadores da criatividade e da liberdade. Embora constate um<br />

14 Marta Martins, Ler Sophia, Porto, Porto Editora, 1995, pág. 86<br />

15 Sophia de Mello Breyner Andresen, O Cavaleiro da Dinamarca, Porto, Figueirinhas, 1964


injusto esquecimento dos seus livros, creio que eles não estão datados e a<br />

recepção que poderão ter justificaria novas edições.<br />

Um dos títulos mais conhecidos deste autor é A galinha verde 16 , um conto<br />

em que o direito à diferença nos surge como valor essencial numa sociedade<br />

que se quer livre. A galinha assume-se como um exemplo de trabalho<br />

e responsabilidade, qualidades fundamentais para uma sociedade<br />

estruturada em valores que dignificam o homem e geram desenvolvimento,<br />

marcando de forma muito clara a abjecção do racismo e da maledicência.<br />

A dramatização de largos trechos da narrativa valoriza a dimensão oral do<br />

texto e facilita a adesão da criança. Também Andersen teve de lutar contra<br />

estas iniquidades sociais até ser reconhecido pelas suas qualidades e pelo<br />

seu talento – O patinho feio 17 , um dos contos mais conhecidos, constitui<br />

uma metáfora do que foi a sua vida e um exemplum para os leitores de todos<br />

os tempos.<br />

O escritor dinamarquês mostrou-nos, em muitas das histórias que nos contou,<br />

que os contrastes sociais são duros e as crianças os seres mais vulneráveis.<br />

Poucos serão os que não conhecem A menina dos fósforos 18<br />

– as crianças (e adultos, também) já verteram muitas lágrimas ao ouvir esta<br />

história; infelizmente, ela continua com uma actualidade chocante. O autor<br />

soube tocar as fibras mais íntimas do leitor, ao mostrar-nos a injustiça do<br />

mundo, com a sensibilidade aguda que marca a sua escrita. Vamos encontrar<br />

em Ricardo Alberty dois contos onde a intertextualidade com a narrativa<br />

atrás referida é flagrante; são eles O anjo e Flores de neve, inseridos<br />

na colectânea A terra natal 19 . Se no primeiro, o corpo do menino, que<br />

pedia esmola como quem espalha flores 20 , é encontrado morto e hirto de<br />

frio, no segundo, a menina que vendia flores, adormecida na noite de Natal<br />

na soleira de uma porta, é levada por um anjo para um mundo melhor, onde<br />

as flores são todas brancas de neve e não se vendem, onde os homens são<br />

bons e todas as noites são noites de Natal 21 . Nunca estaremos preparados<br />

para aceitar a morte, sobretudo quando se trata de crianças. Nestes<br />

dois contos, o autor soube utilizar uma linguagem marcadamente poética,<br />

transmitindo-lhes aquela luz que já tínhamos registado nas narrativas de<br />

Andersen, quando a morte é uma mera passagem para uma vida eterna de<br />

perene felicidade.<br />

16 Ricardo Alberty, A Galinha Verde, Lisboa, Ática, 1959, págs. 7-14<br />

17 Hans Christian Andersen, Contos, Lisboa, Publicações Europa-América, 1974, págs. 40-48<br />

18 Idem, Ibidem, págs. 86-88<br />

19 Ricardo Alberty, A Terra Natal, Lisboa, Verbo, 1968<br />

20 Idem, Ibidem, pág. 111<br />

21 Idem, Ibidem, pág. 149<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

115


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

116<br />

Em Alberty são raros os contos dominados pela tristeza; tal facto deve-se a<br />

uma certa forma de ver o mundo, valorizando a esperança e a felicidade que<br />

as crianças nos dão. A metáfora de um reino, ilocalizável no mapa, composto<br />

só por crianças, onde domina uma permanente alegria, concretizou-a<br />

no conto O país dos sorrisos 22 – reside aqui uma das ideias-chave da sua<br />

obra para a infância: a percepção de que os valores que poderão purificar<br />

a sociedade estão de forma embrionária na criança e, por isso, ela terá de<br />

ser o motor da mudança. Como? Alimentando-lhe o espírito e a imaginação<br />

com a beleza, com o humor, com a liberdade e com a fraternidade. Uma<br />

forte crença na capacidade de regeneração e na possibilidade de sermos<br />

felizes pela mão das crianças afasta-o da melancolia que perpassa em numerosos<br />

contos de Andersen.<br />

No plano discursivo, Ricardo Alberty oferece-nos uma linguagem simples,<br />

popular, metafórica, na senda da qualidade literária do autor de Os cisnes<br />

selvagens. Encontramos narrativas onde o leitor é interpelado, qual<br />

ouvinte atento às palavras saborosas do contador de histórias, outras onde<br />

a capacidade de explanação do narrador domina o texto. Há textos onde a<br />

prosa poética sobressai, o que nos leva a recordar frequentes momentos de<br />

grande força lírica na escrita de Andersen: A casa feita de sonho 23 constitui<br />

um exemplo paradigmático do talento de Alberty.<br />

Concluímos a nossa breve análise com um olhar atento sobre o trabalho<br />

de escrita para crianças iniciado há mais de trinta anos por António Torrado.<br />

Tal como em Andersen, temos a recolha e valorização do património<br />

tradicional, assim como histórias criadas de raiz sem cedências no plano<br />

da qualidade literária. Num outro plano, lançando mão das novas tecnologias<br />

de comunicação e informação, Torrado cria um sítio 24 onde pode<br />

diariamente apresentar histórias originais destinadas preferencialmente ao<br />

público infantil, qual contador que, rodeado de crianças, não prescinde de<br />

lhes dar uma história cheia de imaginação, num discurso límpido e quente,<br />

abrindo-lhes uma janela para o mundo e mostrando-se pronto a ouvir a<br />

sua opinião, ainda que de forma diferida. É uma nova forma de contar, pioneira<br />

nos termos em que se desenvolve, que procura ultrapassar a falta<br />

de tempo e de disponibilidade (ou, talvez, de vontade) que pais e professores<br />

manifestam quando se coloca a questão nuclear – a hora do conto.<br />

A possibilidade de ter a voz do contador, ainda que digitalizada, e de imprimir<br />

o texto (associado às boas ilustrações de Cristina Malaquias) é algo<br />

22 Idem, O País dos Sorrisos e Outras Histórias, Lisboa, Verbo, 1981<br />

23 Idem, Os Quatro Corações do Coração, Lisboa, Afrodite, 1968, págs. 19-22<br />

24 www.historiadodia.pt


que H.C.Andersen, se vivesse hoje, não desdenharia, estou certo, ele que<br />

sempre sonhou com prolongar a sua obra muito para lá da sua morte, pela<br />

garantia de perenidade que a tecnologia oferece. Parece-me ser este um<br />

dos trilhos andersenianos mais estimulantes que o autor da “História do<br />

dia” percorreu.<br />

As Histórias Tradicionais Portuguesas Contadas de Novo 25 mostram-<br />

-nos como está ali presente a herança deixada pelo escritor dinamarquês.<br />

Confrontando as histórias recriadas com os registos fixados por Adolfo<br />

Coelho, Teófilo Braga ou José Leite de Vasconcelos, percebemos como,<br />

em termos do discurso narrativo, os textos saem imensamente valorizados<br />

pela naturalidade, pelo ritmo e pelo imenso respeito relativamente às marcas<br />

orais da nossa língua. Lê-los é captar os múltiplos registos da voz do<br />

contador, que se disponibiliza para se aproximar do receptor e em plena<br />

comunhão saborearem a musicalidade das palavras. Na senda de Andersen,<br />

Torrado consegue transformar um conto oral aparentemente anódino<br />

numa quase epopeia. Em O Menino Grão de Milho 26 o autor dá-nos, logo<br />

na introdução, um retrato vivo de uma aldeia portuguesa, na sua dimensão<br />

humana, para contextualizar as vivências daquela criança de tamanho tão<br />

especial; a própria caracterização do protagonista é feita com tal pormenor<br />

e com uma dinâmica que permitem uma visualização quase cinematográfica.<br />

Um outro elemento intertextual que me parece marcante consiste na<br />

finalização do conto: o narrador, num reforço de uma aparente verosimilhança<br />

que pretende imprimir ao relato dos acontecimentos, refere que assistiu<br />

à festa dada para celebrar o regresso do Grão de Milho, participando<br />

activamente no lançamento dos foguetes. Em Andersen, recordemos que<br />

no final de A Polegarzinha o narrador afirma que:<br />

Quanto à andorinha, essa voltou a afastar-se, voando em direcção ao norte,<br />

para a Dinamarca, onde vive o homem que conta histórias de fadas. A andorinha<br />

cantou esta história a esse homem, e foi assim que viemos a conhecê-la,<br />

27<br />

o que dá uma original forma de certificar a veracidade da narrativa, já que<br />

teria obtido o testemunho directo de uma personagem fundamental no desenrolar<br />

dos eventos. Torna-se oportuno trazer à colação uma das histórias<br />

mais bonitas que tive o prazer de ouvir no sítio “História do Dia” – A gota<br />

com sede. O final desta história é muito próximo do acima transcrito: diz-<br />

25 António Torrado, Histórias Tradicionais Portuguesas Contadas de Novo, Porto, Civilização, 2002<br />

26 Idem, Ibidem, págs.17-28<br />

27 Hans Christian Andersen, A Polegarzinha, Porto, Civilização, 1992<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

117


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

118<br />

-nos o narrador que aquela gota, que tinha sede de matar a sede a alguém,<br />

Soltou-se da folha para a garganta de um passarinho que a engoliu e, logo<br />

de seguida, piou, agradecido. Foi o passarinho, tempos depois, que me<br />

contou esta história. 28<br />

Nos outros contos de raiz tradicional manifesta-se igualmente este enorme<br />

prazer de, na recriação, introduzir marcas de oralidade e elementos complementares<br />

que, resultantes de um demorado trabalho criativo, sugerem uma<br />

aparente improvisação, em reforço do aforismo “quem conta um conto,<br />

acrescenta-lhe um ponto”.<br />

À semelhança de Andersen, os contos criados por António Torrado abordam<br />

temáticas diversificadas, mas, no seu tratamento, o nosso escritor tem<br />

um percurso próprio que o afasta do seu inspirador. A religiosidade e uma<br />

certa resignação face ao que considera desígnio de Deus, visíveis em parte<br />

significativa dos seus contos, não se encontram em Torrado. Enquanto no<br />

escritor dinamarquês o/a protagonista morre em mais de metade dos contos,<br />

a morte não é chamada para as narrativas do autor de Como se faz<br />

cor-de-laranja. Basta ler a sua vasta obra para percebermos quanto é clara<br />

a sua opção. Em resposta a um inquérito publicado na revista Discursos,<br />

o autor propõe que:<br />

para elas (as crianças) carreiremos o que de melhor guardámos para nós<br />

próprios. Afastamos do caminho decepções, tédios, malquerenças, feias<br />

osgas e lobos uivando o sentido trágico da vida. O que, incorrupto e luminoso,<br />

sobrar, em embalagens de fantasia, eis a nossa dádiva para o presépio<br />

da vida. 29<br />

Estando nós a falar das pontes que podemos descortinar entre estes dois<br />

autores, seria inaceitável não trazer para aqui um título – O pajem não se<br />

cala 30 - que tem a particularidade de dar continuação a uma das histórias<br />

de Andersen onde o cómico de situação impera – O fato novo do imperador<br />

31 . O seu final, aparentemente aberto, permite a António Torrado encontrar<br />

matéria para lhe dar continuidade, não no sentido de acabar algo que<br />

está incompleto – o conto de Andersen é perfeito – mas de aproveitar como<br />

28 www.historiadodia.pt, 22 de Agosto<br />

29 Inquérito in Discursos, nº8, Outubro 1994, pág. 176<br />

30 António Torrado, O pajem não se cala, Porto, Civilização, 1992<br />

31 O fato Novo do Imperador in Os mais belos contos de Andersen, Porto, Civilização,1992, p. 51-62


elemento despoletador o futuro imediato daquela criança que, na sua pureza,<br />

afirmou que o rei ia nu. Ao escolher como narratário deste novo conto<br />

uma criança que se tinha sentado ao seu lado no jardim, o autor explora sabiamente<br />

o tom coloquial com que o narrador nos relata os acontecimentos<br />

e constrói um final estruturado no diálogo entre o contador da história e a<br />

criança/ouvinte que manifesta uma opção clara e radical para o desenlace<br />

dos acontecimentos. Todos os mecanismos de cativar a audiência estão<br />

aqui de forma paradigmática, ou seja, estamos perante um bom exemplo<br />

do que é um escritor acumular o talento de bom contador.<br />

Embora considere ser esta arte de contar a dimensão mais flagrante no trilho<br />

anderseniano percorrido por António Torrado, a questão temática deve<br />

igualmente ser equacionada já que a imaginação do autor é uma fonte inesgotável<br />

de histórias construídas a partir do mundo real captado por um olhar<br />

de sensibilidade muito especial; nelas encontramos animais, pequenos ou<br />

grandes, as pessoas, com especial atenção para as crianças, objectos e<br />

até elementos inesperados como sinais de pontuação. Pode-se afirmar, em<br />

síntese, que o nosso autor cria mundos imaginários que nos falam da vida<br />

real. A concisão de grande parte dos seus contos mostra bem o que é ser<br />

simples – burilar a peça, retirando-lhe tudo o que é acessório, aperfeiçoá-la<br />

até chegar a um estádio que possamos considerá-la perfeita; com efeito,<br />

em Torrado a legibilidade nunca foi perturbada por essa filtragem a que<br />

sujeita os seus textos.<br />

A presença de Hans Christian Andersen ao longo destes dois séculos parece-me<br />

inquestionável. A sua obra deu-lhe a eternidade com que sempre<br />

sonhou e a literatura para a infância de hoje mantém para com ele uma<br />

dívida que jamais será paga.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

119


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

120<br />

António Torrado<br />

Modernos Nautas<br />

Boa tarde a todos.<br />

Vamos começar esta sessão que continua o tema da viagem.<br />

Nós, ao longo destes dias, temos tratado do tema da viagem, no sentido<br />

da rotação e da translação, da viagem que se pode fazer à volta do mundo,<br />

mas também da viagem à roda de nós próprios.<br />

Nesta área em que a viagem é sempre uma travessia passando por nós,<br />

em que toda a viagem é um tempo de conhecimento e de crescimento, ela<br />

pode tomar várias confi gurações.<br />

Falámos de nautas, falámos provavelmente de astronautas, falaremos também<br />

de cibernautas e dos viajantes de hoje, aqueles que estão deixando<br />

para o futuro as viagens como se faziam no século XX e já no XXI.<br />

É verdade, já estamos no século XXI!<br />

Vou começar por apresentar a Luísa Ducla Soares, o que, para mim, é muito<br />

difícil porque não tenho distanciamento sufi ciente para falar da Luísa, já<br />

que fomos colegas, amigos de escola, de universidade, temos a memória<br />

comum dos tempos de luta e luto do período da vida associativa e das suas<br />

vicissitudes.<br />

Mais ou menos ao mesmo tempo teremos começado a escrever e a publicar<br />

nos mesmos jornais académicos, associativos e universitários.<br />

Também, lá mais para diante, começámos a escrever para crianças, quase<br />

também em simultâneo, visto que foi nas páginas do Diário Popular, mais<br />

propriamente na página infantil dirigida por um senhor muito, muito simpático,<br />

que foi um pouco nosso patrono nessa área, o senhor José de Lemos,<br />

onde quase que alternavam as nossas histórias: uma semana era uma<br />

história da Luísa, outra semana era uma história minha.


A partir daí, sempre acompanhei o percurso da Luísa Ducla Soares, admirando<br />

a sua obra e deliciando-me, muito particularmente, com o seu humor,<br />

porque, com este aspecto muito sereno, a Luísa tem um toque muito especial,<br />

uma certa perversidade, no bom sentido, que impregna toda a sua<br />

escrita.<br />

Bem, mas nada melhor do que ouvir a Luísa falar nos novos nautas.<br />

Em relação ao que disse há bocado, eu tenho de emendar, remendar-me<br />

porque eu disse que era do mesmo tempo que a Luísa Ducla Soares, mas<br />

não!<br />

Ela está muito mais avançada em relação a mim, porque eu fiquei no século<br />

XX, na primeira metade, e daqui a bocadinho, quando falar sobre o Francisco<br />

Pacheco, eu revelarei que continuo a utilizar o suporte antigo de correio,<br />

provavelmente até pombos correio ou garrafas atiradas às ondas!<br />

Pois bem agora vamos ouvir o Pedro Rosa Mendes.<br />

Só queria dar a seguinte nota: há tempos, eu fiz parte de um júri e, nestas<br />

tarefas de júris, há a leitura e há depois o encontro dos jurados para decidirem<br />

qual o premiado.<br />

Se, na maioria dos casos, nestes encontros há dificuldade de alcançar um<br />

consenso, no caso deste concurso aconteceu que, em cinco minutos, menos<br />

do que cinco minutos, tínhamos já decidido e tínhamos a acta feita e<br />

viemos todos embora. Devo isso ao Pedro Rosa Mendes, autor de Baía dos<br />

Tigres, o livro a concurso, e foi com esse livro debaixo do braço que cada<br />

um dos elementos do júri apareceu na reunião.<br />

E foi num instantinho que se resolveu!<br />

Tenho aqui, diante de vós, o Pedro Rosa Mendes e vamos ouvir a sua intervenção.<br />

Agradeço ao Pedro e só queria dizer o seguinte: eu tive um tio viajante.<br />

Não viajou tanto quanto o Pedro, mas viajou o seu quê e, sobretudo, era<br />

muito imaginativo.<br />

E ouvindo agora o Pedro Rosa Mendes, eu estava a pensar: na próxima vez<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

121


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

122<br />

que eu for criança, eu quero ter um tio como o Pedro Rosa Mendes!<br />

E vamos agora descansar um bocadinho: fazer o recreio e estaremos de<br />

volta ao quarto para as cinco, rigorosamente, porque há continuação.<br />

Pois bem, vamos continuar.<br />

Há pouco estava a perguntar a mim próprio, mas como é que eu vim parar<br />

a esta mesa? Sendo eu, provavelmente, dos poucos autores portugueses<br />

que ainda escreve à mão: escreve, reescreve, emenda, sempre a partir do<br />

manuscrito.<br />

Mas, de facto, uma das razões, senão a principal, porque eu aqui estarei é,<br />

por um lado, gostar de estar entre amigos e, por outro, porque também vou<br />

apresentar o Francisco Pacheco, que é o responsável, ele sim o responsável,<br />

daquele sítio chamado www.historiadodia.pt .<br />

Desse sítio eu só posso ser chamado à responsabilidade pela história do<br />

dia, até com acento (eu quando escrevo, escrevo com acento).<br />

Mas o www ponto e depois o pt é da responsabilidade do Francisco Pacheco.<br />

E vou dar-lhe a palavra desde já.<br />

Agradeço redobradamente a intervenção do Francisco Pacheco.<br />

E, agora, gostava que se estabelecesse o diálogo aqui nesta sala, que fizessem<br />

perguntas à mesa, porque senão começo a fazer perguntas à sala!


Luísa Ducla Soares<br />

Os Novos Nautas<br />

Trabalho na Biblioteca Nacional, vivo rodeada de 3 milhões de obras manuscritas,<br />

impressas e, desde há alguns anos, tenho, sete horas por dia,<br />

um computador à minha frente que me liga a uma incomensurável rede de<br />

informação.<br />

Se, antigamente, considerava impensável viver sem livros, hoje afi gura-se-<br />

-me também impensável dispensar as múltiplas potencialidades que a informática<br />

proporciona.<br />

Já não escrevo prosa sem recorrer ao processamento de texto, substituí a<br />

generalidade da correspondência por e-mails, pesquiso na internet, dou entrevistas<br />

em chats. Trabalho, divirto-me, arranjo e cultivo amizades através<br />

do pequeno écran.<br />

Ah, como é fantástico carregar num botão mágico que nos leva a viajar<br />

no novo tapete voador! Tendo por companheiro um rato, posso partir a<br />

qualquer hora, para qualquer destino. Num abrir e fechar de olhos dou a<br />

volta ao mundo, aterro na Austrália, nos Estados Unidos, no Iraque, na selva<br />

amazónica. Haverá maior magia?<br />

Nunca me passa pela cabeça a ideia de que, embarcando nessa aventura,<br />

me afasto da realidade, das pessoas de carne e osso. Pelo contrário. A realidade,<br />

muitas realidades se me revelam e são seres humanos e não robôs<br />

que comigo comunicam, dedilhando teclados com a mesma naturalidade<br />

com que conversam ou pegam numa caneta.<br />

À nossa volta vão ruindo as paredes tradicionais que nos separam dos<br />

outros, as contingências da distância, do estatuto social, da idade, das disponibilidades<br />

económicas, da timidez. Parece que tudo se torna possível,<br />

que somos fi nalmente cidadãos da mesma aldeia global.<br />

Os jovens e a internet<br />

Nada me admira que os pais, os professores, os bibliotecários se entusias-<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

123


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

124<br />

mem e, simultaneamente, estremeçam com a atracção que os computadores<br />

exercem sobre os mais novos.<br />

http://www.leme.pt/criancas<br />

Quem hoje entrar num centro de recursos multimédia vê-se frequentemente<br />

confrontado com a seguinte cena: jovens acotovelando-se junto dos poucos<br />

computadores existentes, esquecendo os livros que esperam, perfilados<br />

e abandonados, que um professor exija a sua leitura.<br />

Que pretendem os alunos? Utilizar os computadores para passarem trabalhos<br />

a limpo porque muitos docentes já se recusam a decifrar caligrafias?<br />

Não necessariamente.<br />

A pesquisa<br />

A grande aventura é ser um homem aranha capaz de se mover na teia gigantesca<br />

que dá a volta ao mundo.<br />

Rapidamente aprendem a dominar as técnicas de navegação e lá vão eles<br />

singrando, com ou sem destino, numa ânsia de descoberta. Seguem rotas<br />

imprevisíveis, embatem em escolhos, desviam-se, deixam-se encantar pelo<br />

canto das sereias, aportam a ilhas miríficas, inesperadas. Vivem no computador<br />

a sua odisseia.<br />

Será a internet um local seguro e dimensionado para os mais novos?<br />

Existem inúmeros sites direccionados especificamente para crianças e<br />

adolescentes, aliando vertentes culturais e lúdicas. São maioritariamente<br />

em língua inglesa e os de língua portuguesa depressa nos revelam que<br />

foram, quase sempre, produzidos no Brasil ou traduzidos automaticamente,<br />

de forma desastrosa.<br />

Há sites para todas as idades, a partir dos 2-3 anos, exigindo estes naturalmente<br />

o acompanhamento de adultos.<br />

De entre todos, gostaria de destacar A História do Dia, com contos diários de<br />

António Torrado, que irá ser abordado numa das comunicações seguintes.<br />

http://www.historiadodia.pt/pt/index.aspx<br />

Várias instituições nacionais se têm empenhado em chegar aos mais novos<br />

pela net. Eu própria colaborei num site, o da Presidência da República, que<br />

faculta uma visita guiada ao palácio de Belém, nos apresenta um presidente<br />

próximo, que já foi menino, permitindo que lhe escrevamos directamente.<br />

Inclui jogos sobre a Presidência da República, o 5 de Outubro, o 25 de Abril.<br />

E apresenta histórias, em determinadas datas.<br />

http://www.presidenciarepublica.pt/pt/main.html<br />

Após algumas viagens, os nautas anotam as páginas preferidas, seleccio-


nando-as como favoritas, guardando os respectivos endereços para consultas<br />

frequentes.<br />

Gostaria de saber quais as páginas e conteúdos preferidos dos nossos jovens<br />

utilizadores mas nos estudos que realizei referentes a dados portugueses<br />

não encontrei essa informação.<br />

Não nos iludamos, convencendo-nos de que as crianças se limitam aos<br />

sites que lhes são dedicados. A sua curiosidade é insaciável e a internet<br />

faculta, incentiva inclusivamente o acesso a matérias consideradas tabus,<br />

como a pornografia.<br />

Não é apenas necessário que os técnicos que apoiam os mais novos nos<br />

centros de recursos lhes ensinem as manobras necessárias à navegação<br />

na net, abandonando-os depois numa aventura solitária de descoberta.<br />

Se a experimentação, o autodidatismo são importantes, necessário também<br />

se me afigura que os jovens disponham de uma lista seleccionada de<br />

endereços adequados às diversas idades e interesses elaborada por adultos<br />

responsáveis. Ela funcionará como um mapa de boas enseadas onde<br />

lançar âncora.<br />

Em casa, quando há um único computador, é habitual instalá-lo no quarto<br />

do filho (segundo as estatísticas a que tive acesso, os rapazes mantêm a<br />

primazia). Não seria preferível colocá-lo na sala comum para que os pais<br />

se familiarizassem com a informática e, de certo modo, partilhassem as<br />

viagens infantis?<br />

O problema da censura a conteúdos, que neste momento abala especialmente<br />

as bibliotecas americanas, é polémico. Entre o moralismo exacerbado,<br />

castrador e a total liberdade de acesso a páginas que incitam à violência,<br />

ao racismo, ao exibicionismo sexual há que estabelecer um equilíbrio.<br />

O correio electrónico<br />

O e-mail constitui um dos programas preferidos dos jovens. Hoje é possível<br />

escrever para o Japão e receber, cinco minutos depois, a resposta. Quem<br />

tem paciência para esperar vários dias? As cartas passaram, com razão,<br />

a serem designadas como correio caracol . Os postais estáticos em papel<br />

foram substituídos por postais electrónicos, muitas vezes animados, acompanhados<br />

de música à escolha. Gratuitos, contemplam todas as temáticas<br />

e celebrações.<br />

http://web.alice.pt<br />

Este tipo de correspondência contribui largamente para a comunicação e<br />

sociabilidade entre jovens, para a criação e manutenção de laços de relacionamento<br />

pessoal e institucional.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

125


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

126<br />

São muitas as escolas que se correspondem com congéneres nacionais<br />

e estrangeiras, ao longo do ano. Segui o exemplo da Escola EB 2,3 de<br />

Arouca, noticiado através do seu jornal, O Caminho. Manteve com um colégio<br />

de Zamora assíduos contactos, que culminaram com a visita de alunos<br />

portugueses a Espanha e vice-versa.<br />

São evidentes as vantagens destes intercâmbios.<br />

Chats (Internet Relay Chat)<br />

Se os e-mails são, apesar de tudo, pouco mais que correio super expresso,<br />

o IRC ou chat, como desejarmos chamar-lhe é, de facto, uma conversa, por<br />

escrito, em tempo real, com número indeterminado de participantes. Pode<br />

associar imagem, recorrendo a uma câmara.<br />

Há numerosos canais de chats dirigidos aos jovens, alguns sem temática<br />

específica, outros orientados de acordo com os interesses dos participantes:<br />

sobre desportos, música, ambiente, animais, amizade, etc.<br />

Tendo entrado em diversos, concluí que em geral se limitam a típicas conversas<br />

entre conhecidos ou pessoas que pela primeira vez se encontram.<br />

O facto de os intervenientes utilizarem nomes fantasiosos fomenta a desejável<br />

desinibição dos menos afoitos mas permite, em contrapartida, que<br />

indivíduos suspeitos se intrometam para fins pouco recomendáveis, ligados<br />

por, exemplo, à pedofilia.<br />

Exigindo um rápido dedilhar no teclado, conduzem a algo que se aproxima<br />

da estenografia, com a utilização sistemática de abreviaturas, símbolos,<br />

que, para um não iniciado, podem constituir uma linguagem cifrada.<br />

Já existe inclusivamente em português um dicionário da internet e do<br />

telemóvel de autoria de Jovana Benedito.<br />

http://www.centroatl.pt/titulos/solucoes/dicionario-net-telemovel.php3<br />

http://bvi.clix.pt/aprender/icons_emocao.html<br />

Uma conversa cara a cara, vive também da expressão fisionómica que<br />

acompanha as palavras. Para a substituir criaram-se os smileys que, por<br />

sinais gráficos, apresentam o sorriso, a perplexidade, a irritação, todos os<br />

estados de alma. É possível mandar beijos, abraços, chorar, deitar a língua<br />

de fora, dizer adeus com a ajuda destes ícones.<br />

http://es.bestgraph.com/gifs/s_grands-1.html<br />

Até, sem palavras, se pode oferecer uma rosa.<br />

@»--;--<br />

O IRC pode atingir potencialidades muito mais amplas quando transforma-


do em meio de debate ou de criatividade colectiva. Gostaria de apresentar<br />

a experiência de alguns em que participei, organizados pela Associação de<br />

Professores de Português.<br />

O 1º consistiu numa entrevista, na qualidade de escritora, com diversas escolas<br />

do 1º ciclo, que tinham assim oportunidade de falar com alguém que<br />

conheciam das páginas dos livros.<br />

http://www.app.pt/nte/luisads.htm<br />

O último suscitou a escrita colectiva de uma história que iniciei. Intitulei-a<br />

A Menina do Capuchinho Vermelho no Século XXI para que a personagem<br />

central fosse conhecida de todos. Confesso que estava receosa do resultado.<br />

A certa altura pareceu-me que cada escola puxava a história no seu<br />

sentido e que ela iria esfrangalhar-se. Afinal tudo se compôs e acabou por<br />

ter sentido.<br />

Foruns de discussão e newsletters<br />

Para jovens curiosos, participativos há foruns de discussão em que são<br />

abordados temas sobre os quais é possível emitir opiniões. Alguns surgem<br />

em jornais escolares, outros em sites para jovens e não só.<br />

http://www.nonio.uminho.pt/Netescrit@2/forum.htm<br />

é dirigido a alunos do 1º ciclo.<br />

http://www.cunsp.web.pt<br />

encontra-se aberto a todos, independentemente da faixa etária.<br />

Listas de endereços seleccionados permitem o envio de informação e contacto<br />

entre os que nelas se inscreveram. Eventualmente contam com a colaboração<br />

de especialistas nas matérias abordadas: cientistas, informáticos,<br />

escritores, músicos, etc.<br />

Se nalguns países são numerosos os foruns abertos à infância, entre nós<br />

são raridade, começando a ter expressão apenas no final da adolescência,<br />

pelo que não me irei alongar sobre eles.<br />

Blogs<br />

Estão actualmente muito em voga pois tornaram-se tribuna de figuras<br />

mediáticas.<br />

Mas existem também blogs de crianças e adolescentes.<br />

http://abcdosmiudos.blogspot.com<br />

São frequentemente a versão informática dos diários. Diários que, em vez<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

128<br />

de se fecharem à chave, se publicitam. Verdadeiros ou falseados? Assinados<br />

pelo autor ou recorrendo a pseudónimo? Como sabê-lo?<br />

Quem escreve, mesmo para a gaveta, pensa em geral num destinatário<br />

mesmo imaginário ou desconhecido. Escrever um diário corta a solidão de<br />

quem não tem interlocutores próximos com quem compartilhar a intimidade.<br />

Transcrevo uma página que me parece deveras interessante:<br />

“Os blogs/sites dão-nos mais carinho e orgulho que certas pessoas”<br />

A autora envia aos leitores um abraço virtual:<br />

“Estás a receber o meu abraço virtual. Por favor segue as instruções<br />

abaixo:<br />

Coloca a mão direita no teu ombro esquerdo e a tua mão esquerda no teu<br />

ombro direito... Agora aperta com toda a força!”<br />

http://arco-iris.weglog.com.pt<br />

Há blogs nitidamente intimistas, outros compartilhados por um grupo de<br />

amigos, outros que revelam uma grande cumplicidade familiar, como o da<br />

Diana, miúda de 11 anos, que tem estado nos tops da popularidade.<br />

http://diana.blogs.sapo.pt/<br />

Alguns apresentam inquestionável qualidade literária.<br />

Páginas e jornais escolares<br />

Várias escolas se têm empenhado na criação de páginas próprias, algumas<br />

muito rudimentares, outras envolvendo e animando a comunidade escolar<br />

que aí se vê representada.<br />

Há as que se limitam a apresentar a fotografia do edifício escolar, riscos e<br />

rabiscos de crianças, um endereço electrónico a par com as que incluem<br />

múltipla informação, jornais on-line deveras elaborados que pressupõem<br />

um apoio informático profissional, um clube de jornalismo na escola, um<br />

enorme empenhamento de professores e alunos.<br />

Percorrendo uma relativamente ampla lista de sites, verifica-se que muitos<br />

deixaram de ser acessíveis ou suspenderam a publicação.<br />

O da Escola Secundária Sebastião da Gama, de Setúbal destacou-se como<br />

o mais interessante, num estudo abrangendo 500, seguido do da escola<br />

Emídio Navarro de Viseu.<br />

A imagem da sua página inicial poderá não prenunciar todas as potencialidades<br />

que oferece e vos aconselho a explorar.<br />

http://www.prof200.pt:9999/users/essg/escola/default.asp<br />

O jornal Público tem organizado concursos de jornais escolares em que têm


participado numerosos periódicos online, concursos que têm funcionado<br />

como importante estímulo a projectos jornalísticos.<br />

Algumas destas publicações têm especificidades próprias. A Páginas Tantas,<br />

da Escola José Saramago, de Mafra, apresenta ampla bibliografia sobre<br />

o patrono e alberga um Centro de Estudos Saramaguianos.<br />

http://paginastantas.org/Saramago/memorial.htm<br />

A Palmatória da escola Pedro da Fonseca de Proença-a-Nova, que mantém<br />

um Clube da Floresta, remete-nos para essa problemática.<br />

http://apalmatoria.no.sapo.pt<br />

Os Pequenos Mirandeses de Miranda do Douro apresentam textos na língua<br />

local.<br />

http://www.eb2-miranda-douro-rcts.pt/50/mirandes.htm<br />

Outros pretendem ultrapassar a comunidade de alunos e professores, estando<br />

abertos a pessoal não docente e encarregados de educação. É o<br />

caso do Colégio Teresiano, que inclui um fórum de participação alargada.<br />

O estudo<br />

Os pais compram, muitas vezes com sacrifício, computadores para os filhos,<br />

esperando investir na sua educação. Pagam a ligação à internet, convictos<br />

de que assim terão acesso a uma parafernália de informação imprescindível<br />

para trabalhos escolares, aprendizagem de línguas estrangeiras e<br />

alargamento de horizontes.<br />

A internet fornece, de facto, livros on-line, textos, imagens sobre matéria<br />

curricular e extracurricular, alberga dicionários, enciclopédias, abre as portas<br />

de bibliotecas, museus, permite conhecer, não as sete mas as mil e uma<br />

maravilhas do mundo. Sugiro-vos uma visita ao Oceanário de Lisboa.<br />

http: www.oceanario.pt<br />

O governo português lançou os projectos Minerva e Nónio, apostando na<br />

internet na escola. O acesso generalizado à informática deverá conduzir à<br />

democratização da cultura, à aquisição de uma formação capaz de criar<br />

cidadãos dotados de competências e hábitos que lhes permitam a integração<br />

numa sociedade infodependente. As escolas e bibliotecas vão sendo<br />

informatizadas. Com algumas excepções. Ainda há pouco perguntei ao director<br />

de uma biblioteca do interior por que não me escrevia por e-mail e<br />

ele respondeu-me que a biblioteca que dirigia ainda não tinha ligação à<br />

internet.<br />

Infelizmente nem sempre o empenhamento e formação de docentes ou técnicos<br />

de bibliotecas acompanham as necessidades neste campo.<br />

Os professores mais velhos rejeitam muitas vezes os avanços tecnológi-<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

129


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

130<br />

cos. Limitam-se a indicar a bibliografia clássica, de livros que conhecem,<br />

desleixando a oportunidade de conquistarem adeptos se completassem<br />

as consultas com sites da internet. Alguns são apoios importantes, como o<br />

que vou apresentar, direccionado para a astronomia:<br />

http://www.minerva.uevora.pt<br />

Aquilo que apenas se ouve facilmente se esquece, o que se lê mais perdura,<br />

o que se aprende activamente fica gravado na memória. A busca na internet<br />

obriga a um envolvimento pessoal, a um trabalho de selecção que a leitura<br />

linear de um livro não implica.<br />

Muitos docentes rotineiros receiam ver-se ultrapassados. Eles e a suas bibliotecas<br />

estão a deixar de ser as únicas fontes de sapiência. Como podem<br />

competir com o hipertexto enriquecido com fotografias, vídeos, música,<br />

inúmeras potencialidades interactivas?<br />

Em vez de rejeitarem a inovação, seria preferível procurarem nela uma colaboradora<br />

na difícil tarefa de ensinar jovens muitas vezes desmotivados.<br />

Só conhecendo a internet poderão, além disso, ajudar os estudantes a distinguir<br />

o trigo do joio, seleccionando sites de qualidade, que se encontram<br />

dispersos entre muitos de autoridade duvidosa ou de extrema superficialidade.<br />

Grandes casas editoriais como a Texto ou a Porto Editora vêm apostando<br />

nesta vertente, dirigindo-se a docentes e discentes dos vários níveis<br />

de escolaridade.<br />

www.universal.pt/scripts/site/intro/exe<br />

www.junior.te.pt/servlets/Bairro?P=sabias&ID=1256<br />

Jogos<br />

São indubitavelmente os jogos a principal atracção dos jovens. Quase todos<br />

os jogos tradicionais foram adaptados informaticamente e numerosos<br />

outros surgiram, aproveitando as potencialidades informáticas.<br />

Há os que procuram ter um substracto didáctico relacionado com a língua,<br />

a ciência, a cultura geral. Outros, especificamente infantis, baseiam-se nas<br />

figuras dos desenhos animados, das histórias aos quadradinhos, da Barbie.<br />

Os mais procurados por rapazes são os que estimulam a adrenalina, recorrendo<br />

a provas de velocidade, com percursos cheios de obstáculos que é<br />

necessário vencer. Muitos recorrem a lutas em que as forças do bem e do<br />

mal se confrontam, encarnando tanto arquétipos tradicionais como o príncipe<br />

e o dragão como figuras actuais ou de ficção científica.<br />

Se muitos destes passatempos podem ser considerados como exercícios<br />

de perícia, rapidez de reflexos que não envolvem o apelo à violência, outros


fazem-no indubitavelmente.<br />

Os sites de jogos são geralmente descobertos, ao acaso, pelas crianças<br />

que os dão a conhecer aos amigos. Algumas páginas, através de links,<br />

remetem-nas para outras congéneres.<br />

www.jogos10.com<br />

Não seria também vantajoso que adultos responsáveis facultassem aos<br />

mais novos endereços adequados?<br />

É muito comum este entretenimento converter-se em hábito, em mania,<br />

em vício. Em casos extremos poderá ocasionar problemas de saúde, até<br />

ataques epilépticos, em garotos para tal predispostos, mas mais frequentemente<br />

conduz ao desinteresse por actividades físicas, à obesidade, ao<br />

corte com a vida social.<br />

Mas, podemos interrogar-nos, não se tornarão as crianças obcecadas devido<br />

à falta de alternativas gratificantes?<br />

Ler na internet<br />

Embora a internet albergue muitos textos publicados em livros, ou em tudo<br />

semelhantes aos que nos habituámos a ler em suporte de papel, a verdade<br />

é que a linguagem, a estrutura dos textos especificamente concebidos para<br />

leitura no pequeno écran obedecem a características específicas.<br />

A linguagem é geralmente muito acessível, a frase breve, a linearidade do<br />

discurso perde-se nas ligações que frequentemente somos convidados a<br />

accionar, clicando com o rato, em cima duma palavra.<br />

O leitor torna-se agente activo da leitura, escolhendo, a seu belo prazer a<br />

possibilidade de enveredar por caminhos laterais. Este tipo de sequência<br />

aproxima-se do fluir da consciência, da oralidade em que, a qualquer momento,<br />

um interlocutor pode intervir, desviando a conversa.<br />

O hipertexto, além disso, recorre a formas de comunicação audiovisual que<br />

se tornam aliciantes.<br />

Como escritora, considero que o importante é comunicar, com qualidade,<br />

seja qual for o suporte utilizado. Pessoalmente lamento que os livros me<br />

não permitam a utilização de tantas potencialidades, que já integrei no meu<br />

imaginário.<br />

Os detractores da inovação já acusaram a rádio, a televisão de serem coveiros<br />

dos livros, agora apontam o dedo ao computador.<br />

Mas, de facto, qualquer utilizador minimamente atento verificará que a internet<br />

se tornou o mais extenso catálogo de livros de que há memória e a<br />

Amazon a maior livraria do planeta.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

131


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

132<br />

A literatura infantil na internet<br />

Existem interessantíssimos sites e revistas sobre literatura infantil e seus<br />

autores na net. Professores, pedagogos, escritores, ilustradores aí poderão<br />

recolher um manancial de informação e crítica sobre publicações, eventos,<br />

prémios, a par de biografias de autores, entrevistas, textos inéditos ou reproduzidos.<br />

Em Portugal não existem propriamente revistas dedicadas ao tema, como<br />

o Doce de Letra do Brasil, a Imaginária, da Argentina, o Ricochet de França<br />

e inúmeras congéneres de língua inglesa.<br />

http://www.imaginaria.com.ar<br />

http://www.ricochet-jeunes.org/<br />

http://calgary.ca/~dkbrown/journals.html ver<br />

No entanto há diversas páginas portuguesas que se revelarão muito úteis.<br />

Refiro-me à da Associação dos Professores de Português, ao sítio dos Escritores<br />

de Sonho, ao do Crilij ou da Universidade do Minho.<br />

http://guida.querido.net./autor.htm<br />

http://boasleituras.com/projectocrilij.asp<br />

http://nonio.uminho.pt ver<br />

A Editorial Caminho construiu um site interactivo dedicado às autoras da<br />

colecção Aventura e uma página mais modesta para Alice Vieira. Sofia Ester<br />

e outros mantêm as suas próprias páginas com e-mail, que permite o contacto<br />

directo com os leitores.<br />

Como será o futuro?<br />

Não voltaremos ao ieroglifo nem ao rolo de pergaminho ou ao códice iluminado.<br />

Não regressaremos à escrita com caracteres tipográficos inventados<br />

por Gutemberg. Hoje os livros são compostos em computador. A ilustração<br />

é, por vezes, integralmente trabalhada informaticamente. A importância<br />

do visual levou ao aparecimento de muitos e espectaculares ilustradores.<br />

Vários livros são acompanhados de CDs. Alguns publicam-se inclusivamente<br />

em versão electrónica.<br />

Não me parece que o livro se encontre ameaçado. Continua a ser o bastião<br />

da cultura tradicional, o suporte privilegiado da grande literatura, o íntimo<br />

companheiro.<br />

Mas voaremos cada vez mais na crista da onda da internet, sobre um<br />

oceano imenso, em perpétuo movimento. Como a criatividade do homem<br />

é imparável, havemos ainda de descobrir novas formas de navegar no futuro.


Pedro Rosa Mendes<br />

Modernos Nautas<br />

Obrigado e obrigado também à Luísa Ducla Soares pela sua riquíssima intervenção.<br />

Provavelmente fui convidado para este encontro de literatura infantil muito<br />

por culpa deste livro e desta viagem que foi publicada com o nome Baía dos<br />

Tigres, embora eu confesse que, quando a Dr.ª Helena Borges primeiro me<br />

convidou, fi quei um pouco surpreendido, embaraçado porque me considero<br />

uma pessoa com uma imaginação bastante fraca. Digo isto sem querer<br />

ser blasé; é por isso, talvez, que tenho tanta sede de viajar e de escutar.<br />

Por falta de imaginação, eu nunca consegui escrever nada para crianças;<br />

portanto, se calhar, a justifi cação mais próxima para a minha presença em<br />

qualquer encontro de literatura infantil são as minhas duas fi lhas, para quem<br />

eu continuo a tentar encontrar histórias à medida do seu mundo. É muito<br />

mais fácil escrever para o mundo dos adultos! É muito mais fácil para mim,<br />

como adulto, tentar sonhar outros espaços, tentar sonhar outros territórios<br />

do que ter a inteligência e a imaginação para conseguir ler o mundo à altura<br />

das minhas duas fi lhas, que têm quatro e sete anos.<br />

Eu lembro-me, de há uns dois ou três anos, um amigo meu, também escritor,<br />

bastante conhecido, que tem um fi lho agora com sete anos (na altura<br />

o Carlinhos tinha cinco), me ter contado que certo dia eles estavam num<br />

quiosque, ou numa livraria, e o Carlinhos pegou numa edição brasileira da<br />

Playboy, começou a folhear e parou numa página em que estava uma mulher<br />

nua, com um cinto à cowboy. O Carlinhos fi cou parado na fotografi a e<br />

chamou: «Papá, olha esta página, esta imagem!» O meu amigo fi cou também<br />

a olhar para a mulher totalmente despida. Depois de alguns segundos,<br />

o Carlinhos perguntou: «Já viste que o cinto de cowboy dela é quase igual<br />

ao que eu tenho?» O Carlinhos conseguiu folhear a revista Playboy num<br />

ângulo que eu ou o José Eduardo, de certeza, não teríamos ao folhear a<br />

revista!<br />

É verdade que o mundo visto pelas crianças, – e para voltar ao tema e à<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

134<br />

literatura infantil e às viagens – tem uma ingenuidade, uma naiveté, que tem<br />

a ver com uma abertura total, uma espécie de porosidade para apreender e<br />

para ter uma insaciedade enorme em relação a tudo o que os rodeia.<br />

Penso sempre que, em primeiro lugar, o que há de comum entre esta demanda<br />

da literatura de viagens e a literatura infantil (e, às vezes, as coisas<br />

são coincidentes, os resultados são coincidentes), é, digamos, esta<br />

abertura também total e uma postura quase obsessiva de curiosidade para<br />

viajar. Pode não ser viajar literalmente, pode não ser estar no outro lado<br />

do mundo, mas, em primeiro lugar, ter uma atitude intelectual de busca e<br />

de pensar, pois o primeiro motor de busca nesta era da Internet é a nossa<br />

própria inteligência, como diria o Mia Couto, é uma arma de construção<br />

maciça, com que nós todos contamos.<br />

Sou provavelmente classificado como um viciado da Internet, nos sítios<br />

mais incríveis eu preciso de ter acesso ao meu e-mail, pelo menos, e, todos<br />

os dias, durante várias horas, leio os jornais, tiro imensa informação<br />

da Internet, e, portanto, uma explicação como a que a Luísa Ducla Soares<br />

nos fez mostra, de facto, todas as potencialidades que há, também para a<br />

criança, hoje, com a Internet.<br />

Por outro lado, - e gostaria de acrescentar esta perspectiva – há também um<br />

lado geográfico, digamos, de uma cartografia desta mesma questão da viagem,<br />

da importância da Internet e do acesso ao conhecimento e dos vários<br />

mecanismos de curiosidade com que hoje somos confrontados. É verdade<br />

que este mundo da aldeia global, para nos remetermos à expressão do<br />

MacLuhan, é um mundo também em grande parte virtual. Basta salientar<br />

que, para a maior parte da humanidade, para centenas de milhões de seres<br />

humanos não há sequer o acesso que, digamos, faz parte da logística mais<br />

básica para participar, para entrar, para ser um cidadão desta aldeia global,<br />

que é uma linha telefónica. É verdade que hoje, aqui em Lisboa, Portugal,<br />

Europa, Norte, Ocidente, o que queiramos chamar, há uma aldeia global<br />

que funciona em termos de espelho de si próprio, também na Internet. A<br />

Internet está espalhadíssima por todo o mundo. Obviamente, às vezes é<br />

mais vital em sítios onde não há outra forma de acesso ou de circulação da<br />

informação.<br />

Estou a falar de espaços politicamente fechados; por exemplo, a importância<br />

da Internet, hoje, na China, em termos individuais e em termos de espaço<br />

de liberdade, é algo que nós, população de um mundo democrático,<br />

dificilmente podemos tocar. É algo vital!


Mas essa aldeia exclui, e cada vez mais é um processo de exclusão paradoxal.<br />

Paradoxal, porque sendo criança ou adulto, sendo jornalista, sendo<br />

escritor, ou qualquer outra coisa, nunca, como hoje, uma pessoa teve um<br />

acesso tão instantâneo a tanta informação. Normalmente, informação, diria<br />

o grosso de informação que está disponível na Internet, o grosso dos conteúdos<br />

como se costuma dizer, são conteúdos (por isso, eu falava de espelho)<br />

postos por nós para nos vermos ou para nos revermos.<br />

Em muitos países, em muitos sítios, fora da nossa normalidade ocidental<br />

– estou a falar de África ou de alguns sítios da Ásia, sobretudo da Ásia<br />

Central, desde o Afeganistão à Libéria – é impressionante a quantidade de<br />

cibercafés que, por exemplo, até há um ano, antes da batalha de Monróvia,<br />

existia em Monróvia, era quase a cada esquina, porque é, de facto, vital<br />

para as pessoas. Só que em Monróvia ou em Cabul, ou em muitos outros<br />

sítios, pode-se ter acesso e tem-se acesso à informação e a conteúdos<br />

que são, em primeiro lugar, europeus e, sobretudo, americanos; portanto<br />

há aqui uma dupla exclusão que a Internet pode fazer: uma exclusão de<br />

acesso e uma exclusão de informação.<br />

Estou a lembrar-me, por exemplo, de um sítio como Bissau, em que a maioria<br />

das crianças em idade escolar, tem acesso a livros infantis, a livros escolares<br />

que reflectem uma realidade que não é a deles. São histórias que<br />

se passam em países onde há montanhas, onde há neve, onde há quatro<br />

estações, onde há flores de uma determinada cor, onde há certos animais,<br />

onde há animais domésticos tão diferentes dos de lá; portanto, queria pôr<br />

este outro lado da realidade que é tomada de uma forma cada vez mais<br />

virtual e vice-versa.<br />

Voltando à viagem, e porque estamos a falar da Internet, eu tenho um site<br />

que não está disponível agora, que é o mais óbvio, baiadostigres.com, que<br />

é um site magnífico, posso dizer magnífico porque não é a minha parte, foi<br />

feito por um web designer um site da Baía dos Tigres que foi publicado,<br />

lançado no mesmo dia, à mesma hora, do livro em papel, e na altura não<br />

foi óbvio.<br />

Lembro-me de algumas discussões que tive com o meu editor, que tinha<br />

muito receio de que esta viagem que estávamos a lançar em papel, (esta<br />

viagem de Angola à contra costa, é esse o pretexto para levar o leitor para<br />

uma multiplicação, para um harmónio de outras viagens), ao mesmo tempo<br />

estivesse integralmente (quatrocentas páginas de texto) disponível na Internet.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

135


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

136<br />

Acabei por convencê-lo de que, em primeiro lugar, quem tem acesso, quem<br />

tinha na altura – estávamos em 1999 - acesso a um computador e à Internet<br />

não se dava ao trabalho de imprimir oitenta janelas diferentes, que correspondem,<br />

grosso modo, aos capítulos do livro, com quatrocentas páginas<br />

de texto para não pagar os doze ou treze euros do livro. Quero dizer, é um<br />

não problema! E convenci-o também, questão mais importante, que a viagem<br />

virtual que era possível ao leitor fazer no site da Baía dos Tigres era<br />

uma viagem, também paradoxalmente, muito mais autêntica, mais próxima<br />

da viagem que eu tinha feito, uma viagem durante o Verão de 1997, de Junho<br />

a Setembro, que acabou, precisamente, duas semanas antes da minha<br />

filha mais velha nascer e, pour cause, tinha de acabar, tinha esse timing.<br />

Essa autenticidade da minha experiência, das emoções, da informação, e<br />

dos encontros que tinham acontecido nessa viagem. A tudo isso o leitor<br />

podia ter um acesso mais completo através do site.<br />

Tentei que a Baía dos Tigres fosse constituída por uma espécie de fluidez,<br />

um percurso, um rio de histórias de informação e que, a cada página, o<br />

leitor pudesse acompanhar-me e pudesse sentir que estava, não a viajar<br />

virtualmente, a viajar sem ter acesso a nada em termos de emoções, em<br />

termos do que está em causa numa viagem, mas pudesse participar um<br />

pouco nisso, pudesse angustiar-se, pudesse ter medo (a própria mecânica<br />

do hipertexto possibilitava isso).<br />

Para o bem e para o mal, o livro tem uma linearidade implícita, que é a<br />

linearidade tipográfica. Começamos a ler na página um até à página cem,<br />

duzentos, etc. No site, essa ordem não existe, pelo menos eu não quis dá-<br />

-la assim, portanto, o site tem uma estrutura com oitenta fragmentos, e em<br />

cada fragmento, o leitor tem três escolhas para evoluir na viagem, que reproduzem<br />

as escolhas que eu tinha de fazer em cada momento da viagem<br />

africana: ficar no mesmo sítio, e isso no site significa continuar a um nível<br />

mais profundo, por exemplo, descer mais à intimidade de um determinado<br />

personagem, saber mais sobre um episódio histórico, portanto, descer à<br />

intimidade da história, ou ir para a frente, ou recuar. Nada mais do que estas<br />

três hipóteses me eram dadas nessa viagem entre Angola e o norte de<br />

Moçambique e eu quis que o leitor fosse confrontado com isso. Isso é possível,<br />

não no papel, em que, de facto, as pessoas têm uma linearidade que<br />

as obriga a ler dessa maneira, mas há uma maior plasticidade, por absurdo<br />

que pareça, no livro virtual. O livro virtual é mais real!<br />

E é o livro virtual que também possibilita, por exemplo, que a viagem na In-


ternet tenha crianças a cantar, tenha canções, tenha o relato de crianças do<br />

Cuito sobre a sua própria guerra, tenha toda uma iconografia, tenha sons<br />

de uma canoa a atravessar um rio; portanto, há palavras e há narrativas que<br />

completam a própria narrativa que está no papel.<br />

Isto porque, voltando à noção de viagem e dos mecanismos de curiosidade,<br />

na literatura infantil, e em qualquer boa obra literária, às vezes é quase impossível<br />

distinguir o que é para um nível de conhecimento adulto ou não.<br />

É importante ter a noção de que viajar é percorrer um determinado mapa,<br />

uma determinada cartografia, não é aquele mapa de x graus norte, x graus<br />

este ou oeste, aquele mapa, diríamos, aquele mapa político; tem a ver com<br />

cartografias íntimas, pessoais, que nos põem em relação com o outro. E<br />

essa é uma cartografia feita de palavras e, portanto, a viagem não é, na<br />

Internet ou no terreno, um sítio, não é um site, neste aspecto. A viagem é<br />

muito mais um momento. A viagem é quando se dá um encontro e quando<br />

estamos abertos para esse encontro e isso acontece naquele momento,<br />

naquele instante.<br />

Não sei se é essa a experiência da Luísa. Por exemplo, até a experiência<br />

dos chats, até a experiência de consultar coisas na Internet, às vezes tentamos<br />

repeti-las e já não estão lá.<br />

Os postais que recebemos pela Internet em vez de recebermos pelo correio<br />

normal! Parece que a palavra fugiu! Mas a palavra existiu, mesmo que já<br />

não exista, mas nós sabemos que existiu porque, apesar de irmos ao sítio<br />

dessa palavra, que não está lá, nós lembramos o encontro que a tornou<br />

possível, portanto houve esse momento, houve esse instante em que nós<br />

interceptámos a nossa curiosidade, o nosso saber, a informação disponível<br />

com outra pessoa.<br />

Isto é, digamos, o mecanismo base da viagem e, por isso, em termos do<br />

que é produzido em papel, toda a história da literatura de viagens, da boa<br />

literatura de viagens, é riquíssima em termos de encontro do autor com o<br />

outro e quando isso não acontece, quando o autor é estanque a toda a interacção,<br />

a toda a comunicação, então produzimos coisas de um exotismo<br />

ou de um grande narcisismo.<br />

A importância da palavra para construir um espaço torna-se cada vez menos<br />

óbvia, precisamente para a nossa parte do mundo, que vivemos com<br />

este paradigma da rede de Internet e da ilusão do acesso a todo o tempo,<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

137


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

138<br />

a toda a informação. Penso que estamos a perder uma noção táctil do que<br />

é que nos constrói e de qual é a nossa posição, porque a identidade de<br />

cada um de nós, como pessoa, como grupo, tem também a ver com uma<br />

cartografia, um lugar no mundo em relação aos outros.<br />

Isso é uma noção que, noutros sítios do planeta, as pessoas têm de uma<br />

forma muito aguda.<br />

Estive recentemente, no início do Verão, a trabalhar várias semanas em<br />

Timor num novo livro, que vai sair antes do Natal, com um autor que os<br />

meus colegas de mesa conhecem bem, que é o Alain Corbel. Não é por<br />

gostar dele, por ter uma relação de amizade, por termos feito dois livros<br />

juntos, mas o Alain é precisamente das pessoas que eu conheço que consegue<br />

melhor funcionar num registo “infantil”, em termos de uma pureza<br />

poética e de uma abertura total para uma espécie de originalidade pura de<br />

estímulos ao que o rodeia.<br />

Nós juntámo-nos para este projecto, para uma grande reportagem ilustrada<br />

sobre Timor, e tivemos o privilégio de um dia sermos convidados para uma<br />

cerimónia muito rara, apesar de este tipo de cerimónias acontecer agora<br />

um pouco por todo o território, que foi a cerimónia de reconstrução de<br />

uma casa ludic, que durante uma geração, quase duas gerações não pôde<br />

acontecer.<br />

“Ludic” é sagrado em tétum, portanto, é uma casa totémica, casa onde<br />

habitam os antepassados da tribo, no sentido em que os antepassados são<br />

toda a linhagem, desde o primeiro fundador da linhagem até cada um dos<br />

membros dessa tribo, desse clã. A maior parte destas casas foram abandonadas<br />

ou destruídas no tempo indonésio. Timor, na independência, consegue<br />

voltar a formas muito fortes de religiosidade, sincrética e animista,<br />

muito mais poderosas que o catolicismo romano que foi adquirido, pela<br />

maior parte da população, sob o regime indonésio, algo que nós, aqui em<br />

Portugal, costumamos ignorar.<br />

Nós fomos convidados para ir à montanha, mais de dois mil metros de altitude,<br />

já acima das nuvens, numa cerimónia que começou às seis da tarde e<br />

quando nós saímos, ao meio-dia do dia seguinte, ainda continuava.<br />

Aquela cerimónia teve lugar nos contrafortes do Tatamailau, que é o pico<br />

mais alto de Timor. Era a montanha mais alta de todo o império português!<br />

Três mil metros de altitude! Nós estávamos num dos contrafortes. Vêm pes-


soas dessa linhagem, desse clã, de Dili, de todo o Timor para lá.<br />

Algures na madrugada, não sei a que horas, porque depois há o cansaço, há<br />

o álcool, há o tabaco mascado, portanto entra-se num outro universo, mas<br />

há um momento fundamental em toda a cerimónia, extremamente ritualizada,<br />

vivida e participada pelo grupo, que é a narrativa: há uma narrativa<br />

de grupo feita por um sacerdote, que é o dono das palavras, as palavras<br />

das quais todo o clã, toda a tribo, retira a sua própria identidade.<br />

Isto é claro para estes timorenses na montanha - voltando a esta noção de<br />

viagem como construção de identidade - o que interessa não é o sítio que<br />

ocupam; o que define o facto de eles existirem como indivíduos ou como<br />

povo não é terem aquele sítio ou não, é saberem de que sítio vieram e, sobretudo,<br />

saberem quais as palavras, entre um sítio e outro e, digamos que,<br />

ao extremo, é saber que pessoas são, cada um deles que lugar ocupa no<br />

mundo, através, no fundo, de uma viagem que é uma viagem mítica e nesse<br />

sentido é uma viagem virtual, é uma viagem mentirosa, mas é uma viagem<br />

que os constrói, no mesmo sentido em que as canções dos aborígenes<br />

australianos do Bruce Chatwin constroem um grupo e um indivíduo através<br />

de uma narrativa, de uma palavra que coincide com uma viagem e que<br />

coincide, por sua vez, com a construção de uma identidade e a descoberta<br />

de uma identidade.<br />

E é tudo.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

140<br />

Francisco Pacheco<br />

Modernos Nautas<br />

Muito boa tarde a todos e a todas. É um prazer sempre grande estar aqui<br />

nesta casa a apresentar uma viagem cuja primeira etapa terminou há dias.<br />

Esta viagem chamada História do Dia não é, obviamente, um projecto meu<br />

e, precisamente por não ser um projecto meu, sinto-me perfeitamente à<br />

vontade para o poder elogiar.<br />

Se calhar juntei-me a uma equipa de muita gente que tornou possível, de<br />

facto, esta realidade de trezentas e sessenta e seis histórias durante trezentos<br />

e sessenta e seis dias na Internet.<br />

Dizia o António Torrado no início do projecto: ainda por cima calha-nos um<br />

ano bissexto! Temos de escrever mais uma história!<br />

Digamos que é de viagens que se trata!<br />

Eu ando, de certa maneira, a viajar por estes mundos das tecnologias desde<br />

os idos anos 80 do século passado, quando acreditei, por estar em<br />

Portalegre, que provavelmente as tecnologias poderiam ser e seguramente<br />

são (está a ser demonstrado que são) um poderoso aliado das regiões mais<br />

desfavorecidas.<br />

Eu dei particular atenção à utilização da Internet em contexto educativo durante<br />

os anos 90, principalmente, com o surgimento de alguns dos projectos<br />

que a Dr.ª Luísa Ducla Soares já abordou, ligado a uma rede telemática<br />

educativa, na altura com dezasseis escolas e jardins-de-infância do mundo<br />

rural. Que loucura!<br />

Precisamente quando as escolas do 1º ciclo ainda nem telefone tinham.<br />

Nós estendíamos os cabos de telefone, montávamos o computador e ligávamos<br />

a Internet ao mesmo tempo; portanto foi um upgrade tecnológico<br />

estonteante para escolas de um meio rural da região de Portalegre.<br />

Esta atenção pela componente tecnológica levou-me, desde cedo, a acreditar<br />

numa coisa: a tecnologia sim, nas escolas o mais possível, mas, por<br />

favor, uma tecnologia de rosto humano, uma tecnologia balizada pelas e


para as pessoas!<br />

Daí também consciencializei, de certa maneira cedo, a pobreza dos conteúdos<br />

em Língua Portuguesa e isso constituiu, para mim (porque sou um<br />

pouco desinquieto) um motivo acrescido de preocupação e também de estímulo,<br />

porque, como educador de infância que sou, não admito que as<br />

crianças portuguesas dos três aos seis anos e dos seis aos dez anos tenham<br />

menos oportunidades que as crianças de Língua Inglesa.<br />

E sei que têm! porque neste mundo da comunicação virtual, neste mundo<br />

dos conteúdos, se o meu filho falar Inglês como língua materna vê os sítios<br />

que a NASA produz especialmente para crianças, vê os museus virtuais de<br />

todo o mundo.<br />

Nós, em Portugal, provavelmente por sermos demasiadamente formais,<br />

criamos sítios na Internet a pensar nos adultos, honrosa excepção seja feita<br />

ao contributo da Dr.ª Luísa Ducla Soares que transformou o sítio do Presidente<br />

da República num sítio também para crianças.<br />

Eu penso que devia ser uma medida política obrigar todos os serviços públicos,<br />

que têm páginas e presenças na Internet, a terem uma zona especialmente<br />

dedicada às crianças e não que mostrassem apenas os aspectos<br />

formais do museu, o organigrama e, muitas das vezes, a cafetaria, o bar e<br />

as coisas que se vendem. Digamos, portanto, que este foi o ponto de partida<br />

que nos finais dos anos oitenta, marcou talvez o meu início de viagem<br />

nesta aventura que foi a História do Dia.<br />

A minha motivação foi depois, já mais recentemente, espicaçada por um<br />

e-mail que considero um pouco emblemático.<br />

Era de uma lusa descendente holandesa, se a memória não me atraiçoa,<br />

que me dizia: consultámos o vosso sítio na Internet, o “Aproximar”, e diga-<br />

-me, por favor, onde é que eu arranjo formas de que o meu filho, que tem<br />

agora dois anos, possa continuar a falar Português?<br />

Nós somos um país de viajantes e esquecemo-nos que temos viajantes<br />

espalhados e ancorados por todo o mundo e a grande viagem da História<br />

do Dia, se calhar, é uma viagem pela lusofonia!<br />

É uma viagem que, por ser deste meio, por ter o rótulo que tem – um escritor<br />

que dispensa qualquer tipo de apresentações – por estar diariamente<br />

em Língua Portuguesa e em Língua Inglesa, tem sido felizmente, talvez, um<br />

acenar a todos aqueles que pelo mundo fora fizeram a viagem, continuaram<br />

a poder ler e, neste caso também, a poder ouvir em Língua Portuguesa!<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

142<br />

Eu tenho que fazer uma pequena viagem desta mesa para a outra mesa,<br />

atendendo a que a História do Dia é um projecto na Internet, nós temos<br />

acesso à Internet e eu prefiro falar com o sítio ao lado. Com licença.<br />

Seguramente para a maioria dos presentes nesta sala não é nada de novo<br />

o que vos estou a mostrar: o sítio “História do Dia”, todos os dias uma<br />

história nova na Internet, escrita e contada por António Torrado e ilustrada<br />

por Cristina Malaquias, dois elementos fundamentais de uma vasta equipa<br />

sedeada, na maior parte dos casos, em Portalegre.<br />

E aqui é também um aspecto que eu gosto sempre de destacar: este mundo<br />

das tecnologias permite-nos uma coisa muito importante – podemos<br />

descentralizar.<br />

A equipa que aqui está, na maior parte da sua componente tecnológica é<br />

constituída por jovens recém-licenciados, na maior parte dos casos, que<br />

encontraram, em Portalegre, neste e noutros projectos financiados (no caso<br />

pelo Programa da Sociedade de Informação) a possibilidade de regressarem<br />

à sua terra natal.<br />

É, de facto, um problema com que nós nos debatemos a nível do interior e,<br />

digamos, que até este nível as tecnologias podem ser um contributo precioso<br />

para que meios menos centrais, que na Internet não há seguramente<br />

locais físicos, possam impor-se e, dessa forma, dar trabalho, prestígio, vontade<br />

de testar os meios de onde as pessoas, ao fim ao cabo, são, de onde<br />

muitas das vezes saem, contra vontade, empreendendo viagens que não<br />

seriam aquelas que mais gostariam de fazer.<br />

É todo ele falado (pensámos logo nas crianças mais pequenas e numa utilização<br />

autónoma por parte das crianças mais pequenas) e tem também<br />

uma versão em Língua Inglesa.<br />

Da experiência da História do Dia, ao longo dos primeiros trezentos e<br />

sessenta e seis dias, ficou-me a pena de ainda não o ter conseguido colocar<br />

em castelhano.<br />

Em castelhano, não por Espanha, não por estar ali na zona raiana, mas principalmente<br />

pela quantidade de acessos que nós tivemos da América Latina,<br />

perfeitamente gratificante o que fará pensar que qualquer projecto de continuidade<br />

desta História do Dia terá forçosamente que pensar no castelhano<br />

como língua importantíssima para, de certa maneira, dar resposta a essa<br />

parte do mundo.<br />

Trezentas e sessenta e seis histórias que vão ficar na Internet.<br />

Sei que isto era uma questão que assustava um pouco o António Torrado:


ficar até quando, até sempre?<br />

Eu tenho uma chamada cópia de segurança de tudo isto, portanto, o mundo<br />

digital, digamos, não é perecível.<br />

Há discos que mantêm toda esta informação e, se calhar, no século XXVIII,<br />

algures no espaço, no ciberespaço, poder-se-á ouvir o António Torrado a<br />

contar, por exemplo, Os Caracóis Portugueses, ou outra qualquer história.<br />

A questão da democraticidade parece-me extremamente importante neste<br />

projecto, ou seja, toda a gente teve acesso a poder ouvir as histórias de<br />

uma forma gratuita, portanto, o sítio é de livre acesso.<br />

O facto de ter sido financiado no âmbito do Programa para a Sociedade<br />

de Informação – o que foi interessante, pois nós batemos a muitas portas,<br />

estávamos quase a desanimar, a pensar que o projecto teria de ficar na<br />

gaveta, mais um entre tantos em Portugal – pelo facto de ter tido este financiamento<br />

público, pôde ser, e apraz – nos muito, um sítio de livre acesso ad<br />

eternum, se assim quiserem.<br />

Neste momento já estão cá todas as histórias, são mesmo trezentas e<br />

sessenta e seis.<br />

Eu vou fazer uma pesquisa, vou passar para português, no arquivo, sem<br />

colocar nomes de histórias, o que significa que ela me vai dar todas as<br />

histórias disponíveis e, portanto, vão ver que são mesmo trezentas e<br />

sessenta e seis.<br />

Vão se repetir sempre ao longo dos dias de cada mês: a história correspondente<br />

ao mesmo dia do ano passado, volta a ser editada hoje.<br />

Paralelamente à história, existe uma ilustração ou duas, mas habitualmente<br />

uma ilustração original de Cristina Malaquias, para cada uma das histórias.<br />

Temos sempre a possibilidade de ouvir a voz do autor, a voz do escritor.<br />

Mas, associadas a cada uma das histórias aparecem sempre algumas propostas<br />

para que as crianças possam pesquisar por si. Esta parte das propostas<br />

é da minha responsabilidade directa, nunca pela interpretação da<br />

história!<br />

Penso que é sempre uma das coisas que nós, professores e educadores,<br />

devemos ter mais presente do que na realidade temos.<br />

Não me interessa aqui de forma alguma que as propostas vão por uma interpretação<br />

da história, o que leva a uma conclusão, queremos que sejam<br />

algo que possa expandir a curiosidade.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

144<br />

No caso d’ Os Caracóis Portugueses, hipoteticamente será saber mais sobre<br />

caracóis e haverá, seguramente, na Internet muitos sítios onde se pode<br />

saber mais sobre caracóis e também fazer aqui uma pequena maldade,<br />

como sabem, os caracóis são uma “cultura” e, portanto, também se podem<br />

dar algumas receitas bem portuguesas de como comer os caracóis.<br />

Entretanto temos sempre duas, três, quatro propostas que ligam a criança<br />

à Internet numa perspectiva de, a partir da história, poder encontrar fontes<br />

de informação.<br />

Construímos nós próprios, através de um dos técnicos do projecto, jogos<br />

que, respondendo também ao que já aqui foi falado, à curiosidade e ao interesse<br />

natural das crianças por jogos, os levam a alguns jogos de carácter<br />

(eu não gosto muito da palavra) didáctico, que pudessem ter alguma coisa<br />

a ver com os conteúdos abordados nas histórias.<br />

Basicamente, o História do Dia é isto!<br />

Eu tenho para mim que os projectos quanto mais simples, melhor!<br />

Acho que muitas das vezes o difícil é chegar à simplicidade!<br />

É sempre um grande desafio que temos!<br />

Foi muito bom ter cruzado a viagem da equipa de Portalegre, e não é a<br />

minha viagem pessoal, é a viagem de uma equipa.<br />

Hoje, por acaso, estou eu aqui e a minha colega da Associação de Profissionais<br />

de Educação do Norte Alentejo, Joaquina Caeiros, responsável pela<br />

tradução para inglês.<br />

Mas foi muito importante este cruzamento da equipa de Portalegre desta<br />

viagem com algumas viagens, cada vez mais frequentes, do António Torrado<br />

a Portalegre, porque cruzámos, alguns interesses. O António Torrado<br />

dizia há pouco que é ainda um escritor muito avesso a estas tecnologias: eu<br />

que o diga!, o que eu penei com essas aversões!, porque, como calcularão,<br />

muitas das vezes não é fácil traduzir a escrita manual do António Torrado,<br />

mas também, por isso mesmo, tivemos uma equipa de revisores gráficos.<br />

Enfim, esta viagem terminou a sua primeira etapa no dia 30 de Setembro, e<br />

os números que aqui vos apresento poderão servir apenas para ver se fomos,<br />

ou não fomos, eficazes, se, ao fim ao cabo, esta viagem que fizemos<br />

valeu a pena, se atingiu os seus objectivos.<br />

A vantagem da Internet é também dar-nos diariamente, através de um<br />

relatório, tudo o que acontece naquela máquina onde está sedeada a informação.


Nós temos dados muito fidedignos, se assim quiserem, do que se passou<br />

durante os trezentos e sessenta e seis dias.<br />

Se calhar, se eu vos disser que tivemos cerca de três milhões de visitas,<br />

isto quer dizer que devemos estar muito satisfeitos porque, afinal, temos<br />

leitores! Nós temos leitores!<br />

Nós temos miúdos que, todos os dias, nesta zona do sítio, que é o Comunicar,<br />

deixavam mensagens a falar sobre a história.<br />

Nós temos aqui cerca de vinte e tal mil mensagens!<br />

A propósito! eu desafio a Associação de Professores de Português a fazer<br />

um estudo sobre o erro em Portugal a partir das mensagens que aqui estão,<br />

porque, em certa altura, houve uma polémica que foi: deviam ou não corrigir<br />

os erros ortográficos que aqui estão ?<br />

Nunca!<br />

Isto é a escrita de quem escreve!<br />

Para mim foi o melhor testemunho!<br />

Estes erros provaram-me uma coisa: é a escrita não mediada!<br />

O que me diz que houve apetência directa das crianças pela utilização deste<br />

sítio!<br />

Agora que isto daria uma belíssima tese de mestrado ou doutoramento sobre<br />

o erro das crianças dos seis ao catorze anos, ai garanto-vos que dava!<br />

Depois, surpresas absolutas, nestes milhares de mensagens que por aqui<br />

apareceram, a última de ontem à noite, salvo erro, quando estive a fazer a<br />

actualização das mensagens que têm de ser pré-validadas, foi de uma senhora,<br />

que trabalha numa empresa de segurança e faz horário nocturno, e,<br />

para ela, não é a História do Dia, é a História da Noite!<br />

Ela dizia, e está aí escrito, que o companheiro da noite é a história do dia!<br />

Quem trabalha com estes meios nunca sabe a quem é que se está a dirigir<br />

e esse talvez seja um dos grandes aliciantes de trabalhar estes meios!<br />

Eu também não sabia, aqui há uns meses atrás, que estava a falar com<br />

um senhor em Nova Jersey, salvo erro, que escreveu: “ainda bem que há<br />

uma história do dia! Eu já há muito tempo que não falava português, seguramente<br />

se o José Saramago me ouvisse falar não sei o que me faria e<br />

agora, ouvindo o António Torrado todos os dias, lendo, eu estou a praticar<br />

e a aprender muito mais português”.<br />

E, seguramente vos garanto, este sítio foi pensado como um espaço de<br />

literatura para crianças!<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

146<br />

Mas estava a falar-vos um pouco dos números, destes cerca de três milhões<br />

de amigos que nos visitaram ao longo do primeiro ano, o que dá, se<br />

contarmos todos os dias e fizermos uma divisão simples por trezentos e<br />

sessenta e seis, uma média de sete mil e oitocentas, sete e mil novecentas<br />

visitas por dia.<br />

Mas, como eu sei também que nos fins-de-semana (porque, infelizmente,<br />

ainda vivemos num país em que o acesso à Internet em casa das pessoas<br />

é dos mais baixos da Europa) tenho um abaixamento de visitas de cerca de<br />

um terço, o que quer dizer que se eu apenas fizer a previsão dos dias da<br />

semana, temos cerca de doze mil visitas diárias durante os dias de semana,<br />

incluindo todo o período de férias de Julho e Agosto.<br />

Eu falo-vos dos números só pelo lado de lá, pelo gozo que me dá saber<br />

que estas coisas estão a ser lidas, porque nós acreditamos na eficácia e na<br />

qualidade do que aqui está; portanto, quando no mês de Agosto, nós temos<br />

uma média de três, quatro mil visitas por dia, sabemos que não está a haver<br />

uma mediação por parte da escola.<br />

É extremamente interessante!<br />

E eu deixo-vos estes números só para que pensemos todos em conjunto!<br />

Temos público para a escrita em Língua Portuguesa!<br />

Ele está lá à nossa espera!<br />

Há uma mensagem de ontem à noite: ”já estou a sentir saudades”, porque<br />

foi alguém que, com certeza, nos acompanha desde o dia um de Outubro,<br />

e, portanto, se calhar, já está repetir e diz – “Já estou a sentir saudades”!<br />

Quatrocentos e quarenta e duas mil impressões da história no formato pdf!<br />

Eles podem votar, podem imprimir e coleccionar uma versão em formato<br />

pdf - e sei que ela está coleccionada em muitos sítios, porque por questões<br />

técnicas, não publicámos dois ou três dias e houve logo uma chuva de<br />

mensagens de pessoas não estavam a conseguir imprimir e estavam a coleccionar!<br />

Como por exemplo uma avozinha, aqui de Lisboa, que tinha o neto em casa<br />

no fim-de-semana e, então, a prenda era ter as histórias impressas para lhe<br />

poder ler, lá em casa, no domingo.<br />

Queria dizer-vos também que esta viagem, que nós empreendemos em<br />

conjunto, foi consumida em cinquenta e cinco países!<br />

E é extremamente gratificante saber, e eu poder dizer aqui hoje, que ela foi


consumida em todos os países de língua oficial portuguesa, sabendo nós<br />

todos que estamos nesta sala, as fragilidades do acesso à tecnologia e à<br />

Internet dos países de língua oficial portuguesa.<br />

Achei particularmente enternecedor (o sítio dá-me essa informação) saber<br />

que diariamente eu tinha visitas de Moçambique que, diariamente, eu tinha<br />

visitas de Timor, que tivemos visitas – e temos provas factuais disso – de<br />

todos os países de língua oficial portuguesa.<br />

A seguir a Portugal, como calculam, o maior consumidor da História do Dia<br />

foi o Brasil, e a seguir os Estados Unidos, que é protagonista de uma célebre<br />

história, que alguns conhecerão.<br />

Como nós tínhamos uma média superior a quatrocentas visitas por dia<br />

disparou, como é normal que dispare, o serviço de controlo de visitas dos<br />

servidores americanos e, portanto, nós fomos visitados pelo Pentágono<br />

e, portanto, como em Portugal, isto não é nenhuma crítica, o que faz, às<br />

vezes, notícia é o Pentágono visitar um sítio português e não o facto de<br />

portugueses estarem a fazer um sítio em Portugal.<br />

De facto, nessa altura foi bom porque nunca se falou tanto da História do<br />

Dia, e eu, encarecidamente, daqui agradeço ao Pentágono, se me estiver a<br />

ouvir, esta oportunidade de publicidade acrescida que nos deu.<br />

Mas, portanto, estivemos mesmo nas cinco partidas do mundo!<br />

Abrir o mapa de África, por exemplo, e ver estes salpicos vermelhos e saber<br />

que andámos por aqui...<br />

Valeu a pena a viagem?<br />

Valeu pois!<br />

Estes sítios todos, estas bolinhas vermelhas são os sítios por onde nós<br />

andámos, por onde a História do Dia e, consequentemente, a Língua Portuguesa<br />

para crianças!<br />

Pouco mais vos posso adiantar sobre a História do Dia, a não ser garantirvos<br />

que ela vai ficar, continuar online.<br />

Dizer-vos que isto nos criou a responsabilidade acrescida de pensar no que<br />

fazer com esta espada!<br />

Vamos ver!<br />

Vamos continuar!<br />

Vamos pensar num conjunto de projectos a partir da História do Dia!<br />

Este é o ponto de partida!<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

148<br />

Vamos, seguramente, convidar outros escritores e bons escritores da lusofonia<br />

para estar connosco, alguns, com certeza, presentes nesta sala!<br />

Vamos associar-nos, em parceria com outras instituições e fazer muitas<br />

histórias do dia!<br />

Digamos que está quase garantida a história com arte, ou seja, criar histórias<br />

infanto-juvenis a partir das principais obras de arte dos museus portugueses.<br />

Está pensado um projecto megalómano que é a história do dia em que tu<br />

nasceste.<br />

É um projecto que pretende ser uma base de dados dos acontecimentos<br />

mais relevantes em Portugal e no mundo nos últimos trinta anos, para que<br />

a criança escreva o dia em que nasceu e que tenha um simulacro do jornal<br />

que fez notícia nesse dia, sendo portanto, a história do dia em que ele<br />

nasceu!<br />

António Torrado vai-se “virar”, de certa maneira, por desafio pessoal, para<br />

alimentar as crianças que, por natural crescimento, se interessarão por outros<br />

temas e por outras leituras.<br />

Queremos é continuar a tê-los como leitores, e, provavelmente, no ar anda<br />

todo um conjunto de projectos e de subprojectos a partir desta História do<br />

Dia que foi, atrevo-me a dizê-lo, das viagens mais interessantes que consegui<br />

fazer nos últimos anos!<br />

Vou terminar com uma coisa muito simples: estou agora, por questões<br />

meramente pessoais (o que me havia de dar com quarenta e tal anos) mais<br />

ligado ao mundo agrícola, e vejo, todos os dias, um conjunto de sobreiros<br />

lindíssimos, enormes – eu adoro sobreiros! – Há dias estava a passear por<br />

debaixo daqueles sobreiros e pensei assim: eu agora estou a tomar conta<br />

desta terrinha, mas estes sobreiros devem estar a rir-se de mim porque já<br />

houve tanta gente antes de mim a tomar conta desta terra e, seguramente<br />

(eles já estão a pensar) tanta gente que vai ainda passar por aqui a seguir<br />

a ele.<br />

As boas histórias infanto-juvenis são como os sobreiros: dão sombra a muita<br />

gente! Obrigado.


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

149


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

150<br />

Miguel Che, Marta Martins, Olga Pombo, Paula Moura Pinheiro, Ana Maria Magalhães,<br />

Ondjaki e José Pedro Serra<br />

Isabel Marques da Costa, Ana Sousa Dias, Eduardo Marçal Grilo, Manuel Carmelo<br />

Rosa e Maria Helena Melim Borges


Debate:<br />

Clássicos: inevitáveis?<br />

Moderadora – Paula Moura Pinheiro (PMP)<br />

Muito bom dia.<br />

O XVI Encontro de Literatura para Crianças, dedicado ao tema da viagem,<br />

celebra também, antecipadamente, os 200 anos do nascimento de Hans<br />

Christian Andersen, um clássico que nos chega trazendo a marca dos tempos<br />

que o precederam e a marca dos tempos que atravessou e que continua<br />

a ressoar em nós com a frescura e a novidade do que resiste à erosão<br />

dos dias, como todos os clássicos.<br />

Clássicos: são eles inevitáveis?<br />

É este o debate a que vamos proceder esta manhã.<br />

Comigo tenho seis personalidades com formações, sensibilidades e percursos<br />

distintos, cujo diálogo, aviso já, não produzirá sempre convergências<br />

pacífi cas, mas vai, seguramente, fornecer-nos mais elementos para melhor<br />

refl ectirmos sobre a importância fundamental, ou não, (peço desculpa por<br />

esta heresia à cabeça, mas parece-me importante que todas as hipóteses<br />

estejam em aberto), da leitura dos grandes textos clássicos.<br />

Peço às pessoas da plateia que não deixem, durante a próxima hora, de<br />

anotar as interpelações que, eventualmente, queiram fazer aos nossos convidados<br />

na segunda parte desta sessão onde o debate será aberto à sala.<br />

Passo agora a apresentar, muito brevemente, os protagonistas da viagem<br />

que estamos prontos e prestes a empreender.<br />

Começo, naturalmente, pelas senhoras. À minha esquerda, Ana Maria Magalhães,<br />

que, muito antes de ser, juntamente com Isabel Alçada, a prolixa<br />

e bem sucedida autora de literatura infanto-juvenil que todos conhecemos,<br />

acumulou uma larga e diversa experiência como professora em escolas do<br />

segundo ciclo. Em 1993, assinou, com Isabel Alçada, o estudo: Os jovens e<br />

a leitura nas vésperas do século XXI.<br />

Olga Pombo, à minha direita, A escola, a recta e o círculo, o penúltimo livro<br />

de Olga Pombo, é apenas um dos muitos textos onde se dá a ver a rigorosa<br />

refl exão que Olga Pombo tem realizado sobre as questões da educação.<br />

Doutora em História e em Filosofi a da Educação, Olga Pombo é Professora<br />

Auxiliar da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Coordenadora<br />

Científi ca do projecto: Enciclopédia e Hipertexto da <strong>Fundação</strong> para a<br />

Ciência e Tecnologia.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

151


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

152<br />

Marta Martins, aqui ao centro, à minha direita, autora do livro Ler Sofia,<br />

os valores, os modelos e as estratégias discursivas, na obra de Sophia de<br />

Mello Breyner Andersen para crianças. Marta Martins é licenciada em Filologia<br />

Românica pela Universidade Clássica de Lisboa e prestou provas de<br />

aptidão pedagógica e capacidade científica em Língua Portuguesa e Literatura<br />

Infantil na Universidade do Minho, onde também leccionou. Marta<br />

Martins é professora da Escola Superior de Educação Paula Frasinetti, no<br />

Porto, onde lecciona Literatura para a Infância.<br />

E agora os cavalheiros: José Pedro Serra, Doutor em Cultura Clássica,<br />

é membro docente do Departamento de Estudos Clássicos da Faculdade<br />

de Letras de Lisboa onde tem leccionado disciplinas na área do Grego, da<br />

Literatura Grega e da Cultura Clássica. José Pedro Serra foi, em 2003, o<br />

brilhante, peço desculpa pela subjectividade, mas penso que é uma subjectividade<br />

que, no caso, encontrou muitos paralelos em muita gente, o<br />

brilhante comentador da Oresteia de Ésquilo na primeira Edição dos Clássicos<br />

na <strong>Gulbenkian</strong>.<br />

Ondjaki, à minha esquerda ao centro, com 27 anos apenas e compreenderão<br />

que no caso se justifica a menção, Ondjaki tem já seis títulos publicados<br />

numa das mais prestigiadas editoras portuguesas e uma obra traduzida em<br />

França. Mas para lá da poesia, do conto e do romance, Ondjaki estudou<br />

teatro e cinema e realizou duas exposições individuais de pintura. Ondjaki,<br />

que nasceu e viveu em Luanda até aos 17 anos, licenciou-se em Sociologia,<br />

em Lisboa, no ISCTE.<br />

Miguel Che Soares, à minha direita, licenciado em Biologia e Doutorado em<br />

Imunologia pela Universidade de Lovaine, na Bélgica. Miguel Che Soares,<br />

esteve dez anos na Universidade de Harvard, em Boston, onde abriu o seu<br />

primeiro laboratório de investigação em Imunologia, está, há um ano, a viver<br />

em Lisboa e a trabalhar como investigador no Instituto <strong>Gulbenkian</strong> Ciência,<br />

sob a direcção de António Coutinho.<br />

E, para quem esteve nos dias precedentes a este encontro, imagino que a<br />

questão que agora vou colocar já tenha surgido, mas creio que é, por uma<br />

questão de método, obrigatório começar por aqui. Para que saibamos pelo<br />

menos, não digo que todos estamos a partir do mesmo patamar, ou que<br />

os senhores, em presença, têm todos a mesma opinião, mas para quem<br />

nos está a ouvir e para vós também fique claro do que é que cada um fala<br />

quando fala de clássicos.<br />

Começo pelo nosso Professor em Cultura Clássica e queria saber, José<br />

Pedro Serra, como é que identifica, sinteticamente, um Clássico?<br />

José Pedro Serra (JPS)<br />

Antes de mais nada eu queria voltar a agradecer, aliás como já fiz ontem,<br />

à <strong>Fundação</strong> <strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong> e especialmente ao Serviço de Educa-


ção e Bolsas, mas, estendendo esse agradecimento, gostaria de saudar a<br />

nossa moderadora, excessivamente amável nas suas palavras e dirigir um<br />

cumprimento muito especial aos meus colegas de debate e também ao<br />

público.<br />

A pergunta que me põe não é, de modo nenhum, uma pergunta fácil e não<br />

é ingénua. E eu, depois de ontem ter aqui tentado dar a ver a inevitabilidade<br />

dos clássicos sinto-me um pouco como quem deu a moralidade e agora vai<br />

contar a história.<br />

Mas, retomemos a pergunta, de facto, acerca da inevitabilidade ou não dos<br />

clássicos.<br />

PMP<br />

Desculpe José Pedro Serra, interrompê-lo.<br />

A pergunta é: o que é um clássico?<br />

A inevitabilidade já lá vem.<br />

JPS<br />

Compreendo que quem quer discutir essa questão tenha metodologicamente<br />

de começar por tentar estabelecer, ainda que indecisamente, o perfil<br />

do que é um clássico.<br />

Ora bem, eu julgo que há dois modos de responder à pergunta: num sentido<br />

mais restrito e num sentido mais alargado.<br />

Diz-se de um autor que é clássico quando está compreendido tradicionalmente<br />

entre o período que vai desde os Poemas Homéricos até ao Século<br />

V antes de Cristo.<br />

A primeira vez que aparece a expressão scriptor classicus justamente, diz<br />

respeito aos autores que pertenciam a este período histórico, mas eram<br />

clássicos porque, de uma forma ou de outra, serviam de modelo e, subjacente<br />

a isso estava um juízo de valor, uma apreciação, segundo a qual, por<br />

mérito, qualquer que ele seja, inerente, pelo seu especial significado, pelos<br />

sentidos que acumulavam, dele se dizia que era um clássico.<br />

Em sentido mais lato, clássico é o autor ou a obra que justamente por mérito<br />

inerente rasga o tempo e paralelamente à antiguidade greco-latina me<br />

surge também como um ponto de referência inevitável de um processo ou<br />

de uma demanda histórica que é a nossa. Nesse sentido, o clássico não é<br />

já o elemento pertencente a um mundo restrito que pela história da cultura<br />

foi particularmente valorizado num dado momento, particularmente no Renascimento,<br />

mas diz respeito sim àquele que, de uma forma ou de outra, foi<br />

arrancado à trituração do tempo, e isso parece-me importante.<br />

Subjacentemente à admissão de um clássico estão duas coisas que servem<br />

de critério e que eu gostaria de sublinhar.<br />

Primeiro, trata-se de uma obra ou de um autor eleito e por isso intrinsecamente<br />

na apreciação ou no julgamento «isto é um clássico» há uma peneira,<br />

uma distinção, uma separação entre o clássico e outros, que é inevitável.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

154<br />

Segundo, há uma espécie de trespassar o tempo, de vitória sobre o dobrar<br />

dos séculos que faz dele um ponto de referência que pode ser dito como de<br />

identidade ou de fonte de inspiração, isto é, que, em todo o caso, serve de<br />

fonte particularmente inspiradora ao nosso pensar e ao pensar do processo<br />

histórico que se vai seguindo.<br />

Esta era a minha proposta.<br />

PMP<br />

Ana Maria Magalhães: Para si o que é um clássico?<br />

AMM<br />

Para mim o que é um clássico?<br />

Antes de mais queria também agradecer à <strong>Fundação</strong> o convite para estar<br />

aqui e dizer que é um prazer participar nesta mesa redonda.<br />

Mas, eu vou ser muito mais breve.<br />

Para mim, um autor clássico é um autor que nos deixou uma obra de arte.<br />

Miguel Ângelo deixou-nos a Capela Sistina, Camões deixou-nos Os Lusíadas,<br />

Tolstoi deixou-nos a Guerra e Paz, portanto são os grandes autores<br />

que deixaram grandes obras de arte.<br />

Tout court.<br />

PMP<br />

Tout Court. Tout court é refrescante, porque isto não é habitual em Portugal.<br />

Mas, sem querer, enfim, insistir muito, como é que destrinça, (o José Pedro<br />

usou uma expressão que é adequada e que estava inerente à pergunta que<br />

eu fiz), o critério para identificar, uma obra de arte? Podemos deixar essa<br />

questão como sendo relativamente pacífica e ultrapassada e concentrar-<br />

-nos noutra: de entre todas as obras de arte que fazem parte do capital da<br />

humanidade – e não falo agora só no contexto da cultura ocidental, – como<br />

é que entre essas define as que se inscrevem na História como um elo de<br />

uma cadeia, como de alguma forma dizia o José Pedro Serra.<br />

AMM<br />

De alguma forma essa pergunta equivale, eu acho, àquelas: o que é o amor?<br />

o que é o tempo? Nós sabemos o que é e não vale a pena eu estar a dizer<br />

este é clássico, aquele não será, porque viveu noutra época, porque não<br />

teve tantas edições, todos sabemos o que é uma obra de arte.<br />

Os grandes autores não é preciso dizer quais, sabe-se quais são, assim<br />

como se sabe quais são os grandes pintores. Impõem-se, sobrevivem!<br />

Acho que é uma perda de tempo eu estar a dizer estes são clássicos e<br />

aqueles não são, pelo menos do meu ponto de vista.<br />

PMP<br />

Marta Martins, Professora de Literatura Infantil. Quando se diz Clássicos<br />

Infantis, eu confesso-lhe e peço desculpa se estou a manifestar uma extrema<br />

ignorância, que esta classificação me levanta uma interrogação, porque


ou é clássico ou não é. Porquê esta destrinça?<br />

Até porque eu tenho presente, do Encontro de há dois anos, que alguém<br />

levantou, pertinentemente a questão da Literatura para Infância ou para<br />

Crianças padecer sempre, como o Tribunal de Menores, de uma espécie<br />

de estatuto de menoridade e eu pergunto-me se a classificação, Clássicos<br />

Infantis, não poderá arrastar esse ónus, esse risco. Porque não dizer só<br />

clássicos?<br />

MM<br />

Pois, eu penso que é importante não confundir o estatuto de menoridade<br />

com uma especificidade.<br />

PMP<br />

Não, mas eu não estou a dizer que isso seria o adequado. Eu digo é que há<br />

esse risco, haverá?<br />

MM<br />

De facto, há referentes que pertencem a determinadas faixas etárias. O que<br />

não quer dizer que não se prolonguem para a vida toda.<br />

Provavelmente os clássicos da literatura para a infância são textos matriciais<br />

que organizam o nosso imaginário para toda a vida.<br />

PMP<br />

Isso também se pode dizer do Homero para quem o leu.<br />

MM<br />

Sim, mas repare, isso depende. Depende se leu Homero no texto original,<br />

se leu nas adaptações, se leu nas vulgatas dirigidas às crianças. Do que é<br />

que nós estamos a falar quando falamos desse tipo de referências?<br />

Eu penso que são textos que nos trouxeram temas e personagens que convivem<br />

connosco ao longo da vida e que nos fazem sentir uma reconfortante<br />

segurança numa comunidade cultural. Sentimos que temos elos de pertença<br />

a uma determinada comunidade. São essas referências básicas que nos<br />

permitem constituir uma identidade cultural, um sentido de pertença no espaço.<br />

Hoje, que tanto se fala em Europa, é importante perceber que o nosso<br />

imaginário, sobretudo na literatura para a infância, é comum, porque nós<br />

importámos os grandes autores europeus quando a nossa literatura para<br />

crianças ainda era muito incipiente e hoje, provavelmente, quando nós falamos<br />

em clássicos portugueses não nos apercebemos que os clássicos<br />

alemães, os franceses e os ingleses, já andam misturados com os clássicos<br />

portugueses, porque eles são tanto nossa pertença como são, obviamente,<br />

de outros países.<br />

PMP<br />

Eis um argumento que os federalistas iam adorar ouvir. É um óptimo e<br />

poderoso argumento sob o ponto de vista do comportamento das pessoas<br />

e das mentalidades.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

156<br />

Estamos sempre a dizer que isto é um saco de gatos inventado, esta comunhão<br />

é uma coisa inventada.<br />

MM<br />

Provavelmente. Não tenha dúvida.<br />

PMP<br />

Eis um dado que nunca me tinha ocorrido e que me parece muito importante.<br />

Olga Pombo (OP)<br />

Eu gostava de dizer três coisas.<br />

Esqueci-me de fazer os agradecimentos, peço desculpa, mas como já<br />

foram tão repetidos assumo-os inteiramente e faço minhas as palavras dos<br />

colegas que falaram antes de mim.<br />

Curiosamente as três coisas que eu tinha pensado dizer sobre essa questão,<br />

que era inevitável, têm muito a ver com o que os colegas disseram.<br />

A primeira tem a ver com a correspondência entre a chamada Antiguidade<br />

Clássica e o Clássico que leva a uma tal concepção restrita, como disse o<br />

José Pedro Serra, que faz com que se identifique, num primeiro momento,<br />

o Clássico com o autor da Antiguidade Clássica, Grega e Romana. Daí se<br />

poderia dizer que sai uma espécie de modelo.<br />

Eu não poria tanto as coisas em termos de modelo, mas em termos de pensar<br />

o seguinte: será que esta utilização, quase histórica ou fundacional de<br />

que o Clássico é o autor da Antiguidade Clássica, poderia levar a concluir<br />

que só esses é que seriam os Clássicos? Penso que não!<br />

Acho eu que estaríamos todos de acordo de que pode haver um Clássico,<br />

o Fernando Pessoa, por exemplo.<br />

A questão pertinente é perguntar que sentido tem esse deslocamento, ou<br />

seja, será que esta tendência para pensar que o Clássico é apenas o autor<br />

da Cultura Clássica decorre de uma utilização dupla da palavra Clássico e<br />

de uma espécie de um abuso da palavra Clássico?<br />

Será que essa é a utilização restrita da palavra, como dizia José Pedro<br />

Serra, ou será que haverá de facto alguma razão que leve a pensar de uma<br />

forma mais constitutiva esta espécie de equívoco que leva muita gente a<br />

pensar que o Clássico é apenas o autor da antiguidade clássica?<br />

Parece-me, não tanto em termos de exemplo ou de modelo, que os grandes<br />

temas da literatura posterior foram, em grande parte, dados pela Cultura<br />

Clássica. Assim, por exemplo, o tema da viagem foi um tema tratado pelos<br />

Gregos, e que nos leva imediatamente a pensar na Odisseia.<br />

Quer dizer: não há, atrevo-me a dizer, obra que trate o tema da viagem, seja<br />

infantil ou não, juvenil ou o que seja, que não tenha necessariamente o regresso<br />

e a viagem de Ulisses como matriz; então se assim é, e se eu tenho<br />

razão naquilo que estou a dizer, o que é profundamente discutível, então


haveria quase uma legitimidade original para pensar que o Clássico, mesmo<br />

o Clássico contemporâneo, é aquele que, de alguma maneira, está inscrito<br />

em qualquer coisa que se iniciou na Cultura Clássica Grega e Romana.<br />

Portanto, não seria uma relação abusiva, mas seria uma relação constitutiva.<br />

Os temas das relações pais/filhos, das relações mães/filhos, o tema da relação<br />

do herói, o tema do regresso, da viagem, que posteriormente só vieram<br />

a ser acrescentados, e isto é referido por alguns autores, os temas relativos<br />

ao amor cortês, na Idade Média, e à paixão a partir, em grande parte, de<br />

Shakespeare: a gente pensa em Othello e pensa na paixão e todas as modalidades<br />

da paixão e todos os romances posteriores sobre a paixão terão<br />

a ver ou com Romeu e Julieta ou com Othello ou com as grandes peças de<br />

Shakespeare.<br />

PMP<br />

Olga, desculpe interrompê-la.<br />

Mesmo que, e é importante sublinhá-lo, as pessoas não tenham disso a<br />

menor consciência, é importante sublinhar, não é?<br />

É qualquer coisa que subjaz...<br />

OP<br />

Era aí que eu ia agora chegar.<br />

E porque é que isto acontece? É porque aquilo que os Gregos produziram<br />

não é qualquer coisa que eles poderiam ter produzido ou não. Aquilo que<br />

eles produziram foi a passagem do fundo oral da cultura humana para a<br />

cultura escrita. E este primeiro momento de passagem vai ao encontro de<br />

qualquer coisa que é primordial a todas as culturas e que nós, obviamente,<br />

só conhecemos através da cultura escrita, porque não temos acesso às<br />

culturas orais antigas, senão em casos excepcionais já escritos, obviamente,<br />

ou então que se conservam na memória popular, mas essa é outra<br />

questão.<br />

Agora a segunda coisa que eu queria dizer é que é muito importante para<br />

mim a pergunta o que é?<br />

Aí estou em total desacordo, inclusive com a minha ex-colega de faculdade.<br />

PMP<br />

Sim, porque a Ana Maria Magalhães também é de Filosofia, temos aqui uma<br />

dominância de Filosofia.<br />

OP<br />

Descobrimos hoje que fomos colegas de faculdade. Eu reconheci-lhe a voz,<br />

não pelo nome, não pela figura, mas pela voz.<br />

E a segunda questão é essa, que eu acho, de facto, que é muito importante<br />

a pergunta o que é? Para mim é a pergunta mais importante que há.<br />

Para que serve?, por exemplo, é uma pergunta muito menos interessante.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

158<br />

O que é que eu faço com isto? é uma pergunta muito menos interessante.<br />

A mais importante de todas é saber o que é? É também a mais difícil, claro,<br />

porque se tivermos algumas luzes sobre esta pergunta o que é? depois vem<br />

por arrastamento, para que serve, para quê isto para quê aquilo. É a própria<br />

pessoa, na liberdade do seu conhecimento sobre o que é, que depois escolhe<br />

aquilo que tem a dizer.<br />

Agora, em que é que isto se prende com a questão do Clássico?<br />

É que não gosto de definir o Clássico como aquilo que resiste à passagem<br />

do tempo, porque acho que é uma definição negativa: ele é aquele que não<br />

é erodido pelo tempo, é aquele que não é efémero e eu não gosto desta<br />

forma negativa de dizer o que é o Clássico.<br />

Há duas maneiras fundamentais para dizer o que é. Os medievais ensinaram-nos,<br />

por exemplo, que dizer o que é Deus é impossível. A única coisa<br />

que podemos fazer é dizer o que ele não é. Quem somos nós para dizer<br />

agora o que é Deus? E há toda uma teologia negativa que parte justamente<br />

desta impossibilidade, da consciência desta impossibilidade de definir o<br />

que é. Então tenta-se circunscrever o que é dizendo o que é que Ele não<br />

é, porque em relação a Deus, sobretudo na Idade Média, esta questão foi<br />

muito debatida, é muito importante e é lindíssima.<br />

Gostaria mais de dizer que Clássico é aquele que reenvia ao universal, é<br />

aquele que nunca acaba e aqui entram as célebres definições que Calvino<br />

dá naquele texto famoso, Porquê ler os Clássicos? Todas elas estão certas.<br />

Todas estas definições, pela positiva, reenviam a qualquer coisa que eu<br />

diria que é uma décima quinta definição. Ele deu catorze, e eu quero ser<br />

atrevida, e vou sintetizar estas catorze numa décima quinta que seria dizer<br />

assim: Clássico é aquele que serve para compreendermos quem somos<br />

e aonde chegámos, nós, como alguém que pertence a alguma coisa que<br />

vem de muito longe e, de facto, nós pertencemos a isso. Portanto, uma<br />

definição pela positiva e não pela negativa.<br />

E a terceira questão que gostava de pôr é a seguinte e também tem a ver<br />

com a positiva. É que um Clássico reenvia – e isto tem a ver com a questão<br />

da literatura para crianças – sempre a uma nostalgia face ao primordial.<br />

Nós quando estamos a ler um grande texto sentimos que há nele qualquer<br />

coisa que nos aproxima do começo, do inaugural, em alguns casos, da infância.<br />

Quando estamos a ler, por exemplo, um Clássico Grego, para falar<br />

restrito, sentimos muito isso, estamos na infância, mas numa infância de<br />

uma exuberância, uma infância rica, plena de potencialidades.<br />

E o que um Clássico muitas vezes nós dá, quando nós lemos um texto<br />

desses, é exactamente as potencialidades, a riqueza de estar perante uma<br />

criança. Quanto mais velhos somos menos possibilidades temos, não é?<br />

Quando somos jovens temos todas as possibilidades abertas e a leitura de<br />

um Clássico promove uma experiência do primordial, uma experiência do


inicial, uma experiência do inaugural e, portanto, num certo sentido, uma<br />

experiência da infância com toda a abertura de possibilidades que uma<br />

qualquer criança tem. Ela ainda pode vir a ser tudo, nós já não podemos vir<br />

a ser grande coisa.<br />

PMP<br />

Já volto a passar-lhe a palavra.<br />

Uma aliciante exposição, como, aliás todas até agora e sobretudo porque<br />

se completam e acrescentam.<br />

Miguel Che Soares (nós combinámos antes do início deste encontro que<br />

nos iríamos tratar por tu, por isso não estranhem), quais são os teus Clássicos?<br />

Talvez não seja irrelevante dizer, para quem acabou de chegar, que o Miguel<br />

é um investigador na área da Imunologia e isso é interessante, porque, para<br />

pôr a coisa pela negativa, pela exclusão, não é de Filosofia, quando três das<br />

quatro pessoas que já falaram são.<br />

Miguel Che Soares (MCS)<br />

Só reiterar os agradecimentos em dois segundos, não vou perder mais tempo:<br />

os meus agradecimentos.<br />

Quais são os meus Clássicos, pessoalmente?<br />

Eu acho que o interesse não é tanto o pessoalmente; eu presumo que a pergunta<br />

é mais para um pobre cientista que passa a vida a olhar para genes<br />

e células a mexerem.<br />

Eu acho que as definições que acabam de ser expostas são quase universais.<br />

Primeiro, acho que tenho os mesmos Clássicos que todas as outras pessoas.<br />

No campo da ciência, penso que exactamente os mesmos critérios podem<br />

ser aplicados, tirando o facto de não termos a definição mais académica e<br />

estrutural de tempo e espaço: não são os gregos não são os romanos, mas<br />

esta definição de universalidade.<br />

Eu não estava muito de acordo com o que estava a dizer a Olga Pombo,<br />

pois, um Clássico, na minha percepção, não tem uma fronteira cultural.<br />

Um verdadeiro Clássico pode ser africano, chinês, europeu e, no fundo,<br />

toca com qualquer coisa que nós é universal.<br />

São pessoas que conseguem, através da escrita ou do cinema ou de outra<br />

forma de expressão, transmitir-nos algo que nós nem sabemos porque o<br />

sentimos como universal; se calhar é por isso que os Clássicos são gregos<br />

e romanos: por terem sido os primeiros a ter a oportunidade de expor temas<br />

universais.<br />

No caso da ciência, nós temos coisas que são absolutamente clássicas;<br />

por exemplo, os investigadores que descobriram a estrutura genética do<br />

ADN, o que faz os nossos genes, o que nós temos todos em comum e, no<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

160<br />

fundo, o que codifica o que somos.<br />

Essa informação é transmitida, depois de feita uma investigação, em forma<br />

de um artigo, que é uma página, e que ainda por cima é escrito de uma<br />

maneira cada vez mais leiga.<br />

Todos nós podemos ler e perceber qual é a mensagem e isso torna-se no<br />

fundo um Clássico, porquê? Porque volta a tocar nos mesmos temas, é<br />

absolutamente universal, e penso que será transmissível durante os próximos<br />

milhares de gerações. Tem uma coisa muito diferente da literatura: em<br />

ciência, quando se chega a este ponto, como este artigo que define qual é<br />

a base genética estrutural bioquímica, a mensagem é imutável, não pode<br />

ser nunca mais modificada. Aquilo é assim e vai ser sempre assim. E isso,<br />

talvez, por definição, seja um Clássico, porque, daqui a vinte séculos vamo-<br />

-nos referir sempre a esta descoberta e dizer: «nós até nos referimos a uma<br />

descoberta clássica» (em inglês é seminal finding).<br />

As pessoas têm uma percepção dos cientistas como sendo nada emocionais,<br />

completamente frios e dizem: «nós fizemos isto e descobrimos<br />

aquilo», ponto final parágrafo. Neste caso específico, os quatro autores que<br />

descobriram o ADN poderiam ter feito isso: a base bioquímica do código<br />

genético é esta, ponto; mas não, eles acabam com uma frase que eu acho<br />

que é muito emocional e que talvez possa acentuar ainda mais o facto de<br />

terem feito deste artigo um Clássico. Dizem: não escapou à nossa atenção<br />

as possíveis implicações das descobertas que acabámos de fazer, o que se<br />

tornou noutro Clássico, numa maneira de dizer: isto é muito importante, vai<br />

tornar-se um Clássico.<br />

PMP<br />

É uma bela frase, repete lá.<br />

MCS<br />

Não escapou à nossa atenção a importância e as implicações das descobertas<br />

que acabámos de fazer.<br />

PMP<br />

É uma hiper consciência. É engraçado.<br />

MCS<br />

Eu acho que é a consciência de entrar, não sei se se pode dizer num classicismo,<br />

mas numa categoria do imutável, que nunca mais mudará, que<br />

será transmitido.<br />

PMP<br />

Que fundou alguma coisa. É uma frase que explica a consciência.<br />

MCS<br />

Eles estavam na melhor instituição do mundo.<br />

PMP<br />

Estavam de costas muito quentes.


MCS<br />

Era mais isto: «nós perdemos imenso tempo, mas agora damos este presente<br />

à humanidade». É quase dar uma prenda à humanidade.<br />

Agora não sei se todas as pessoas que fazem um Clássico têm a noção de<br />

dar…<br />

PMP<br />

Eu acho que a novidade, nesse caso, é precisamente a consciência disso.<br />

Eu diria quase o desplante.<br />

MCS<br />

Penso que Shakespeare tinha essa noção. Não sei há outros autores, não<br />

só na literatura, mas noutras formas artísticas, que tenham a perfeita noção;<br />

pelo menos têm a aspiração. Depois pode não passar o teste do tempo.<br />

(Não sei se saí muito da pergunta e isso é um conflito que eu tenho)<br />

A noção de Clássico é uma coisa que não muda, é um padrão que vai ficar<br />

para sempre, mas talvez eu não tenha razão e isto seja um argumento sentimental.<br />

Eu acho que os Clássicos, muitas vezes, vêm por ruptura. Uma pessoa que<br />

consegue estabelecer um Clássico não vem propriamente no seguimento<br />

de tudo o que foi feito. Muitas vezes vêm por ruptura; por exemplo, neste<br />

caso da descoberta do ADN, ninguém a podia prever e aquilo era uma ruptura<br />

com tudo o que estava para trás.<br />

PMP<br />

É engraçado que isto, de alguma forma, seja o contrário do que foi dito. É<br />

a inscrição numa cadeia, é uma espécie de passagem de testemunho, não<br />

é?<br />

Estamos a falar da ciência, precisamente, mas também se inscreve numa<br />

história.<br />

Eu queria aferir com o Miguel isto: estamos a falar de ciência, não é? Mas<br />

haverá assim uma diferença tão grande? Porque, de facto, para se ter chegado<br />

a essa página da (qual era a revista?) The Nature, para se ter chegado a<br />

essa página sobre o ADN e a essa frase há toda uma história para trás.<br />

Portanto, a pergunta que eu faço é (agora sim, vou usar uma expressão<br />

completamente sentimental): que carinho é que os cientistas, os investigadores<br />

têm pela história que os precede e que precede os seus trabalhos?<br />

Interessam-se? Cultivam a consciência do lugar que ocupam numa cadeia<br />

ou estão absolutamente tomados pela experiência imediata? É porque isto<br />

remete para a ideia da consciência, da pertença a uma comunidade e eu<br />

tinha curiosidade de espreitar para dentro de um laboratório, dos vossos<br />

laboratórios e saber como é que vocês se colocam.<br />

MCS<br />

A resposta é sim.<br />

Nós não nos podemos posicionar como um satélite que acabou de apa-<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

161


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

162<br />

recer e que não entra no contexto do que foi feito. E temos uma maneira<br />

muito formal de fazer isso. Transmitimos o que fazemos e o que descobrimos,<br />

eventualmente em debate e, às vezes, na televisão, mas o veículo é a<br />

publicação científica, como por exemplo, essa publicação na Nature.<br />

É feito de uma maneira muito formal que é: quando se insere uma nova<br />

descoberta no conhecimento da humanidade - sendo que a descoberta é<br />

pôr mais um tijolo no muro do conhecimento - tem que se definir qual é o<br />

muro. Não se pode dizer: «eu vou pôr um tijolo mais ou menos aqui». Tem<br />

de se dizer onde é que se está a pôr o tijolo e isso faz-se de uma forma<br />

muito formal de referenciação. Por isso, por cada fase que nós fazemos,<br />

temos de dizer quem é que a descobriu.<br />

Agora, eu não acho que haja qualquer necessidade – e parece-me uma atitude<br />

juvenil, apesar de tudo, salutar – de romper com os Clássicos. Mas, no<br />

entanto, em ciência há a ideia de challenge, de dizer: «este é o muro, será<br />

que este muro está bem feito?»<br />

Se se provam coisas que consolidam o muro, muito bem, mas se se descobrem<br />

coisas que fazem com que o muro tome uma outra forma, e se as coisas<br />

são muito importantes, essas coisas tornam-se Clássicos. Mas nunca<br />

se perde a percepção de base desse muro. Não sei como é na literatura.<br />

PMP<br />

Acho que foste claríssimo.<br />

OP<br />

Morais Soares escreveu um livro que se chamava A Filosofia Do Não, referindo-se<br />

justamente aos cientistas. Os cientistas são aqueles que dizem<br />

não. São aqueles que dizem: «não, não é assim, até aqui foi assim, mas<br />

agora passa a ser de outra maneira». Portanto, é um conhecimento que<br />

cresce.<br />

PMP<br />

E, portanto, sob esse ponto de vista há uma diferença fundamental relativamente<br />

às humanidades.<br />

Não vamos agora gastar aqui o nosso tempo todo, porque nos atrasámos<br />

um bocadinho a começar, mas é tão interessante que é imperdível desenvolver<br />

isto. O José Pedro também quer intervir.<br />

MCS<br />

Referimos a Capela Sistina e não é literatura. A minha pergunta é: a Capela<br />

Sistina quase de certeza que surge como uma ruptura em relação ao que<br />

se fazia antes e que se tornou depois num Clássico. Se calhar não é tão<br />

diferente da ciência.<br />

Havia uma base, uma maneira, uma percepção de transmitir pela forma da<br />

pintura emoções e conhecimento e, de repente, aparece uma pessoa, que<br />

tem uma forma, na altura, completamente nova, que entra em ruptura com


o que se faz. Mas, por ser uma mensagem tão universal, por ser tão resistente<br />

ao tempo torna-se, ela própria, um Clássico.<br />

PMP<br />

José Pedro Serra, eu sei que queria intervir.<br />

JPS<br />

Queria por isto, sobretudo queria dirigir-me à Olga, estou e não estou de<br />

acordo.<br />

O que não é um bom começo para quem quer ser coerente.<br />

Em primeiro lugar, queria salvaguardar o seguinte, quando eu disse que os<br />

Clássicos, em sentido restrito, eram um objecto de imitação ou modelo, falava<br />

como um facto histórico, isto é, porque o foram numa época em que os<br />

Clássicos Greco-Latinos eram fonte de inspiração e, sobretudo, de imitação.<br />

É um facto histórico; não quer dizer que eu tome esse modelo ou esse<br />

aspecto modelar, essa tentativa de imitação, que, de resto, é uma imitação<br />

criativa, não é apenas a cópia. Justamente, o que me parece é que o andar<br />

do tempo mostrou que a criatividade humana era maior do que essa estrita<br />

imitação e, por isso, estou de acordo: é necessário fazer uma transferência<br />

do tempo Clássico para algo que sucedeu a essa época histórica em que<br />

se imitavam os autores greco-latinos.<br />

No que não estou inteiramente de acordo consigo, que deu uma imagem<br />

muito negativa a essa resistência ao tempo, é porque me parece que o que<br />

está em causa é sempre, sempre, um reavivar de algo primordial, o que quer<br />

que seja – podemos depois discutir – que se está reavivando, a que é que<br />

se está regressando e quem é que o fez? São duas perguntas distintas.<br />

PMP<br />

Eu agradeço que se esclareçam para avançarmos.<br />

Percebo que queira, como a Olga o interpelou, responder. Mas, é um ponto<br />

de partida este tópico. Não é o nosso móbil.<br />

JPS<br />

Mas eu acho que se está a perder uma dimensão importante. É que justamente<br />

esse regresso a uma fonte primordial importa, não apenas como<br />

regresso a um mesmo ponto, mas como histórias do regresso e isso recoloca-nos<br />

numa demanda que é histórica e que é ela própria semeada de<br />

Clássicos. Por isso é que eu penso que a questão do tempo se transforma<br />

na questão da história, e é importante.<br />

PMP<br />

Eu tinha esperança, independentemente de querer responder à Olga, que<br />

quisesse fazer um comentário ao Miguel e à Olga quando ela sugeria que<br />

o universo da ciência, não tem nada a ver com este universo das Humanidades,<br />

concretamente.<br />

Não disse isso? Então como é que era?. Mas, disse: «mas é a ciência, é<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

163


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

164<br />

outra coisa, é a ruptura».<br />

OP<br />

Na formação de um cientista, veja lá se está de acordo comigo, eu penso<br />

que os Clássicos não pesam muito.<br />

Como diz o Thomas Kuhn, «os Clássicos estão lá nas bibliotecas onde raramente<br />

os cientistas vão», porque fazem aquilo que você disse, lêem as<br />

grandes revistas onde estão os últimos texto publicados, porque é sobre<br />

esses últimos, contra esses últimos ou na dialéctica com esses últimos que<br />

as suas próprias investigações se processam.<br />

PMP<br />

O Miguel está a dizer que não, mas a Marta também quer intervir.<br />

OP<br />

Isto até nem é meu, é de Thomas Kuhn. Por isso, é que ele diz que haveria<br />

um interesse muito grande em regressar aos Clássicos.<br />

Também sei que os grandes cientistas fazem esse trabalho, vão ler Newton,<br />

embora já estejam muito longe do Newton, vão ler na mesma o Arquimedes,<br />

vão ler na mesma Euclides, compreende? mas como uma espécie<br />

de complemento compreensivo do que é a ciência e não como uma ferramenta<br />

para poder desenvolver o seu trabalho. Ninguém vai hoje ler Newton<br />

para poder desenvolver o seu trabalho. Vai ler a Nature, com certeza.<br />

Era isto que eu queria dizer.<br />

PMP<br />

Miguel, concordas?<br />

MCS<br />

Não, mas acho que vamos sair do tema.<br />

PMP<br />

Marta, para terminar esta fase.<br />

MM<br />

Eu queria dizer o seguinte: é engraçado, nós, de certo modo, estamos a<br />

universalizar as referências culturais, estamos a centrar as matrizes na Cultura<br />

Greco-Latina, mais uma vez estamos a esquecer que estamos a fazer<br />

uma leitura muito etno-centrada da cultura. Nós somos europeus…<br />

PMP<br />

O Ondjaki saiu por cinco minutos. O Ondjaki ia dar-nos exactamente o outro<br />

lado.<br />

MM<br />

Onde é que está essa universalidade?<br />

PMP<br />

Está aqui! Muito bem representada, pois até tivemos o cuidado de incluir<br />

variadas disciplinas e também vários contextos geográficos.<br />

MM<br />

Mas Paula, eu queria acrescentar outra coisa. É sobre a matéria-prima dos


Clássicos. Nós estamos aqui num encontro de literatura e estamos a chamar<br />

obviamente outras áreas ao debate, mas agora temos de pensar que os<br />

tecidos de que se fazem os Clássicos são completamente diferentes.<br />

É relativamente fácil universalizar o David de Miguel Ângelo, porque é uma<br />

escultura, mas, de qualquer modo, a universalização passa por imagem,<br />

por fotografia e não na visão da própria estátua.<br />

Agora, no tecido da palavra o que é que vai acontecer? Nós universalizamos<br />

o quê? O tema? As personagens? As traduções que temos das obras?<br />

Repare, como é que é divulgada a obra de Andersen. Os textos estão em<br />

dinamarquês, nenhum de nós, provavelmente, aqui na sala consegue ler<br />

dinamarquês e, por isso, todos nós recebemos os textos em segunda<br />

mão.<br />

O que é para nós comum em termos culturais, são os temas, as personagens,<br />

e acreditamos, que lemos uma boa tradução. Agora, é sobre o material<br />

que constitui o texto, isso sim, que se exerce a arte.<br />

O que é que dizia, há bocado, a Ana Maria Magalhães, o que é uma obra<br />

de arte? Uma tradução é uma obra de arte, se o tradutor fizer arte com ela.<br />

Todos os tradutores fazem por isso.<br />

Como é que eu dou por isso se não conheço o original? Pelo bom português?<br />

mas pode ser um mau dinamarquês. Nós estamos a receber uma<br />

quantidade de coisas em segunda e terceira mão.<br />

PMP<br />

Esse era um dos temas obrigatórios: qual é a importância.<br />

Mas antes disso, a Ana Maria já está a ficar enervada, porque acha este<br />

chão uma grande maçada, muito teórico e muito académico.<br />

O Ondjaki ainda não falou e é fundamental que o faça até para nos ilibarmos<br />

desta suspeição de que estamos a ser completamente etnocêntricos.<br />

Eu vou recordar, para quem não estava cá no início deste debate, que o<br />

Ondjaki com uma notável, sobretudo atendendo à sua idade, produção<br />

literária – conto, poesia, romance – estudou teatro e cinema, pinta, e fez já<br />

exposições individuais.<br />

Estás aqui, evidentemente, na qualidade de criador, mas também porque<br />

pode dar um contributo importante em relação ao que a Marta Martins<br />

dizia.<br />

Tu nasceste e viveste em Luanda até aos dezassete anos. Todos nesta sala<br />

temos presente que Angola esteve em guerra desde os anos sessenta,<br />

portanto foram muitos anos e sobretudo a pós independência deu origem<br />

a uma enorme migração dentro do próprio território angolano, com uma<br />

enorme convergência para Luanda. Este dado é importante para sublinhar<br />

que tu frequentaste escolas públicas, segundo sei, e portanto, sendo tu um<br />

urbano, cosmopolita, que estudou em Lisboa, que viveu em Nova Iorque,<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

165


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

166<br />

estiveste até aos dezassete anos em Luanda e tiveste, muito seguramente,<br />

muitos colegas que vinham de muitas partes de Angola e a pergunta, como<br />

é evidente, é: o que é para um menino do Huambo, (que é aquela boutade<br />

habitual quando se fala destas coisas) ou para outro jovem ou outra pessoa<br />

qualquer de outra parte de Angola, (que são muitas nações dentro daquela<br />

nação), um Clássico em função do que tu observaste?<br />

Ondjaki<br />

Nós, os que somos de outras latitudes, normalmente a nossa presença é<br />

requisitada, mais por causa disso do que por causa…<br />

PMP<br />

Não, eu disse que estavas aqui como criador.<br />

Ondjaki<br />

Eu estou aqui como criador africano, mas não há problema nenhum.<br />

PMP<br />

Eu não disse africano.<br />

Eu disse como criador, mas, já agora, fala-nos sob esse ponto de vista.<br />

Ondjaki<br />

Só ia dizer que é curioso, a requisição normalmente é essa e está bem que<br />

seja, de vez em quando. Para mim também seria bom participar simplesmente<br />

porque escrevo ou porque sonho. Isto para começar a explicar que<br />

eu vou aqui fazer uma brevíssima reflexão que é, de facto, uma reflexão<br />

cultural e contextualizada. Sendo que eu não gosto muito, porque não sou<br />

estudioso da matéria, de falar de questões que acabam por generalizar,<br />

não posso falar daquilo que é o Clássico dos angolanos ou aquilo que os<br />

angolanos consideram Clássico, mas posso, eventualmente, passar a visão<br />

daquilo que eu apreendi.<br />

Eu fiz aqui um esquema breve, porque, de facto, nos últimos tempos e<br />

principalmente para as pessoas da minha geração, não é possível falar de<br />

Angola, das coisas de Angola e de coisas relacionadas com o nosso processo<br />

de maturação e crescimento, que não passem pela guerra. Essa é<br />

uma das coisas que me interessa e que eu vou observando, quer se fale<br />

de bicicletas, de literatura, de história, de qualquer tipo de criatividade, de<br />

criação; nas crianças, nos jovens há sempre o factor guerra presente. Agora<br />

é um factor guerra imanente, começa a ser ausente, mais como memória<br />

do que como prática.<br />

Isto divide basicamente a coisa em dois contextos: o rural e o urbano. Eu<br />

cresci num contexto urbano, tive contactos com pessoas que vieram de<br />

contextos rurais. Começo pela guerra, porque a guerra criou uma série de<br />

limitações, isto é, os sítios de apreensão daquilo que seriam os Clássicos,<br />

mesmo do ponto de vista literário, que se dividem, por exemplo, entre a<br />

casa, a escola e depois os processos individuais de cada um, em Angola,<br />

começa só na Escola.


A falta de condições – estou a falar da maioria das pessoas, eventualmente,<br />

há excepções – que havia naquele contexto fazia com que o primeiro contacto<br />

literário das pessoas fosse feito na escola, com uma prévia escolha<br />

pedagógica; ou seja, os alunos tomam contacto com os livros que o sistema<br />

sugere.<br />

Daí que é curioso que apareçam como Clássicos, aquilo que eu julgo que<br />

os jovens da minha idade chamariam os Clássicos e que terá influenciado o<br />

seu imaginário, os livros do Luandino e as aventuras de Ngunga do Pepetela.<br />

Mas uma coisa muito curiosa e muito bonita, que eu vou tentando encontrar<br />

e vou partilhando, é que há um texto muito bonito do escritor moçambicano<br />

Luís Bernardo Honwana, que é Nós matámos o cão tinhoso, e até hoje eu<br />

estudo e detecto isso, que, na sexta e oitava classe, os rapazes tinham<br />

receio que lhes fosse pedida a leitura deste texto na turma, porque se emocionavam,<br />

e tinham vergonha de chorar nas aulas.<br />

Eu escrevi uma crónica sobre isso e entreguei-me: fiz tudo por tudo e até<br />

expliquei que pensamentos é que eu usava na altura, à medida que estava<br />

a ler o Cão Tinhoso e o Dino a apontar a arma e a Isaura a chorar. Recebi<br />

um monte de emails de gente, mais ou menos da minha geração, a dizer:<br />

«é verdade, aquele texto do Cão Tinhoso»; parecia que era um referente<br />

geracional. Muitos não sabiam quem era o autor do texto, eu indiquei, mas<br />

lembravam-se da Isaura e do cão tinhoso.<br />

Isto só para dizer, que, obviamente, os Clássicos variam de contexto para<br />

contexto.<br />

A guerra dificulta a comunicação. A imagem, a fotografia são coisas que,<br />

agora com a Internet, começam a entrar mais em linha de conta.<br />

Depois fazia aqui uma breve referência ao veículo dos Clássicos Orais. E eu<br />

ponho aqui a pergunta: existirão Clássicos Orais? Obviamente que sim!<br />

A fixação e a circulação desses Clássicos é mais complicada.<br />

Em África existem os textos que se vão repetindo, que vão ficando ao longo<br />

da memória e que vão sendo alterados e daí vamos para aquela categoria:<br />

quem é que elege o quê?<br />

Eu penso que é uma necessidade, a pertinência dos textos vai resistindo<br />

aos séculos e aí é a própria urgência ou a maneira de contar que define<br />

porque é que aquele Clássico, que eu estou aqui a chamar de Clássico Oral,<br />

se vai manter. É uma espécie de eleição.<br />

Depois, por causa da guerra, eu diria que há o impedimento de migrações<br />

físicas e imaginárias. A guerra, por um lado, criou êxodos, depois impediu<br />

certo tipo de movimentações, mas também as imaginárias. Já não gosto<br />

muito de falar da guerra, mas aqui é pertinente. E a guerra ocupa um espaço<br />

no imaginário das pessoas.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

167


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

168<br />

Uma amiga minha comentou comigo que um primo seu tinha uma pistola<br />

em casa, e que o filho ia chegar à escola e dizer aos outros colegas: «ai! o<br />

meu pai tem uma pistola em casa». Isso não é problemático?<br />

Eu respondi: «não, porque todos os outros pais também têm uma pistola<br />

em casa e todas as crianças já mexeram e já viram pistolas.»<br />

A guerra está inculcada no nosso imaginário, mesmo quem não esteve lá,<br />

sofreu os efeitos colaterais da guerra. Mas é curioso, como ocupa espaço<br />

e cria um imaginário próprio.<br />

As crianças contavam histórias de guerra, agrediam-se verbalmente com<br />

histórias da guerra, «o meu tio é melhor que o teu, isto e aquilo».<br />

Por outro lado, queria ler-vos só um pedacinho deste livro do Manuel Rui<br />

Monteiro, Rio Seco, porque conta uma coisa curiosa, que é o encontro de<br />

uma senhora mais velha, que veio do sul, da guerra, chega a Luanda, e refugia-se<br />

numa ilha, que é a Ilha de Mossulo e está ali a tomar os primeiros<br />

contactos com aquela realidade. Ela é do interior, não tem aquela coisa<br />

do mar, da água salgada e há um miúdo, dos seus onze, doze anos, que<br />

está a falar com ela e pede-lhe para contar uma história. Ela preferiu contar<br />

na forma como bem sabia o bombardeamento aéreo, as casas cobertas<br />

de capim a incendiar-se num fósforo repentino, os meninos que ficavam<br />

sem os pais e as pessoas a fugirem atoamente, sem escolherem caminho<br />

e a deambularem pelo mato fora sempre em desespero pelo imprevisto.<br />

A fome, a sede e a solidariedade anónima. Por sorte, em cada sanzala se<br />

encontrava um pouco de aconchego, um fogo para aquecer, mesmo pobre,<br />

todavia cheio de amor. Mas eu não gosto de falar da guerra, disse a senhora.<br />

E o miúdo – “então fale outra vez do jacaré.” Contei já no outro dia,<br />

diz a senhora – “mas fala mais.”<br />

Então lá está: ou a guerra ou o jacaré. Ou falo do presente, do real, do duro<br />

ou vou remeter para a oralidade, para o belo, o bonito, que também contém<br />

ensinamentos.<br />

Portanto, eu só quis dar uma perspectiva de relatividade desta questão do<br />

que é o Clássico.<br />

PMP<br />

Fez muito bem. Mas sublinho que isso é mais um dado do que tens para<br />

partilhar connosco; não é a razão fundamental pela qual te convidámos.<br />

Italo Calvino, no seu Porquê ler os Clássicos, a que Olga Pombo já aludiu<br />

aqui, coloca, sem ironia, uma pergunta que seguramente está na cabeça de<br />

muitas pessoas que estão aqui connosco.<br />

Porquê ler os Clássicos? sobretudo depois de tudo o que já aqui foi dito.<br />

De alguma forma, os Clássicos e os Clássicos Modernos, inscrevem-se<br />

numa cadeia e, portanto, são subsidiários (pode-se dizer assim) de uma<br />

espécie de filiação matricial, mesmo que quem os escreve não tenha disso


consciência de alguma forma, tudo isto faz parte do mesmo caldo e, portanto,<br />

os Clássicos Modernos participam disto.<br />

Porquê ler os Clássicos? em vez de nos concentrarmos em leituras que<br />

nos façam compreender agora, aqui, o nosso tempo. Evidentemente que<br />

ele está a referir-se aos textos mais complexos, mais difíceis, de mais difícil<br />

acesso.<br />

Esta é uma pergunta que Calvino coloca, sobretudo no pressuposto de que<br />

todos os textos participam da tal matriz, pelo menos os melhores.<br />

Ana Maria, porquê?<br />

AMM<br />

Eu aproveitava para dar uma pedrada no charco.<br />

Na verdade, a esmagadora maioria da população não lê os Clássicos. Nós<br />

estamos aqui, entre nós, partilhando o nível máximo de literacia, o patamar<br />

sublime, superior da leitura, todos os que estamos aqui chegámos ao ensino<br />

superior, estão aqui professores da faculdade, um cientista, um escritor<br />

que já escreveu, não foram seis, foram oito livros.<br />

PMP<br />

Mas então tens que acrescentar ao teu currículo, só lá estavam seis, contei-<br />

-os.<br />

AMM<br />

Só tem vinte sete anos. Portanto as pessoas podem sair daqui arrebatadas<br />

com esta sensação: «que maravilha, vou levar aos meus alunos os Clássicos»,<br />

quando, na realidade, a esmagadora maioria da população não os lê,<br />

não chega lá. E, agora, no fim do século XX, princípio do século XXI, surgiu<br />

um problema grave: já não chega lá só quem não teve acesso à instrução.<br />

Posso referir-vos uma experiência imediata. Foi ontem à noite, estive a jantar<br />

em casa de uns amigos, tinham muita gente convidada e vários jovens.<br />

O filho do dono da casa é um jovem professor do ensino secundário, da<br />

área de Artes, e estava a preparar uma aula com vídeo e, em conversa,<br />

disse-me: «eu tenho que preparar tudo em vídeo, porque com os alunos<br />

de Arte do secundário é escusado pensar: eles não lêem». Fiquei muito<br />

admirada: «então eles não lêem nada? Então depois como é que se manifestam<br />

os conhecimentos por escrito?» «Muito mal, e se eu quero ter algum<br />

sucesso uso o vídeo».<br />

Depois, em conversa, estava também outra sobrinha dos donos da casa<br />

que é estudante de arquitectura, daquelas conversas cruzadas, ao jantar,<br />

eu disse, anteontem estava em casa sozinha, estava chateada e comecei a<br />

fazer um zapping e vi uma coisa extraordinária, a Júlia Pinheiro a falar com<br />

um burro e pensei, mas como é que alguém quer ver isto?<br />

PMP<br />

Nem faz ideia quanta gente.<br />

AMM<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

169


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

170<br />

A resposta dela foi extraordinária, tendo em conta que é uma estudante do<br />

terceiro ano de arquitectura, de uma família que pertence à classe média<br />

alta, que tem livros em casa, que já os avós eram formados. Se fosse uma<br />

aluna minha, ou noutras circunstâncias eu aprofundaria, porque tento sempre<br />

ir ao fundo das coisas procurando a verdade, que é muito difícil.<br />

Como professora, eles pensam sempre que se dizem o que pensam, se<br />

calhar, têm pior nota, portanto, é melhor dizer o que o professor quer ouvir.<br />

Mas eu tenho por hábito, conduzi-los a dizer a verdade, porque não os<br />

penalizo por isso e sempre fiz isto na vida. Não nasci com a capacidade de<br />

me iludir.<br />

Estou aqui a criar suspense sobre o que ela me disse do programa em que<br />

a Júlia Pinheiro fala com um burro, na Quinta das Celebridades. Disse-me<br />

assim: «sabe, ver esses programas é difícil, é preciso aprender a vê-los, não<br />

é uma coisa fácil, mas depois quando a pessoa aprende é muito interessante».<br />

Fiquei estupefacta e como vos digo gostaria de ter aprofundado o<br />

que ela me queria dizer com aquilo, porque ela não estava a brincar!<br />

Portanto, é óptimo estarmos aqui a falar de tudo isto e às vezes esquecermo-nos<br />

do mundo que está lá fora.<br />

Eu ponho sempre o problema: o que é que eu posso fazer, com estes alunos,<br />

para semear o desejo de ler para que eles, por sua alta recreação, seja<br />

qual for o seu percurso, cheguem a poder um dia apreciar uma obra de arte.<br />

Por exemplo, quem olha para os Jerónimos e não sabe nada de História,<br />

nunca ouviu falar nada da História da Arte, vê um edifício grande, branco<br />

e vai achar bonito, mas não vai muito além disso; quanto mais História da<br />

Arte souber, melhor vai apreciar tudo aquilo. Portanto, o que é que eu posso<br />

fazer com os meus alunos para que ainda que se tornem, por exemplo, funcionários<br />

de uma bomba de gasolina, tenham adquirido hábitos de leitura<br />

que lhes abram horizontes? O caminho não é um, o caminho é múltiplo,<br />

não há um percurso único. Se quisermos um percurso único, conseguimos<br />

cativar uma pequena faixa e os outros ficam todos de fora.<br />

E nisto volto à história da verdade.<br />

Tenho uma experiência que gosto de contar do que é procurar a verdade.<br />

Eu fui um dia ao Faial, estava na Cidade da Horta, e, por uma série de<br />

coincidências engraçadíssimas, o único leitor que tínhamos nessa altura,<br />

(agora temos muitos) na Cidade da Horta, era filho duma funcionária da TAP.<br />

Quando eu fui tratar do bilhete, ela chamou o filho para me ver. Fui dar um<br />

passeio com o miúdo para ele falar da sua terra. Quando íamos na marginal<br />

que tem aquelas casas antigas muito bonitas, o miúdo começa-me a dizer:<br />

“estas casas maravilhosas, antigas têm de ser preservadas, não se pode<br />

tocar em nada disto, não se pode nunca alterar…”<br />

Eu comecei a achar aquilo tão estranho, fui criando à-vontade, fomos conversando<br />

e depois disse: “olha lá, Pedro, se tu mandasses realmente, se


tivesses o poder, o que é que fazias?” E o miúdo disse-me também uma<br />

coisa extraordinária: “Mas quer mesmo saber a minha opinião? O que é que<br />

eu penso?” E eu disse: “sim, gostava mesmo de saber o que é que tu pensas”.<br />

“Deitava isto tudo abaixo! Construía prédios altos e ali naquela ponta<br />

fazia um hotel de quinze andares chamado Baía Palace”.<br />

Portanto, nós muitas vezes conseguimos um discurso muito politicamente<br />

correcto, as crianças dizem a tudo que sim e não conseguimos atingir a<br />

alma deles.<br />

Os professores ou os pais, ou quem quer que seja, julgam que os convenceram<br />

e eles até já têm nome para o hotel de quinze andares que hão-<br />

-de mandar fazer ali, um dia se puderem.<br />

PMP<br />

O Zé Pedro diz que não. Também fazia o Baía Palace. A maioria fazia o Baía<br />

Palace, também me parece.<br />

AMM<br />

É muito frequente, e a fase em que nós os apanhamos, embora para nós<br />

seja o primeiro ano, para eles é o quinto que estão numa escola. E aquilo que<br />

eles dizem que fizeram é muito engraçado. Por exemplo, dizem o seguinte<br />

em relação ao que leram no ano anterior, na quarta classe: “Lemos isto.”<br />

“E gostaram?” “Muito, muito”. “Então agora vamos à biblioteca!” “Ooooh,<br />

não!” E gostaram, não é?<br />

Então aqui, podemos optar: ou falamos só de coisas magníficas e elevadas<br />

e depois vamos com a alma refrescada lá para fora, ou lembramo-nos também<br />

que cá fora não é bem assim.<br />

PMP<br />

Então, na prática, o que é que se faz? Eu sei que varia de contexto para<br />

contexto e que não há um só caminho. Aliás, acabou de o dizer.<br />

Mas, antes de passar a palavra à Marta, que eu gostava de ouvir sobre isto,<br />

porque isto diz-lhe directamente respeito, só queria saber, Ana Maria Magalhães,<br />

perante o desejo profundo de construir o Baía Palace, de quinze<br />

andares, o que é que lhes dá a ler, apesar disso, com esse dado?<br />

AMM<br />

O que eu tento fazer é usar a metáfora da escadaria. Entendo que o acesso<br />

aos patamares da leitura é uma grande escadaria, e tento perceber em que<br />

patamar ou em que degrau estão os meus alunos. Por isso, nunca na vida<br />

preparei um ano lectivo, nunca fiz projectos antes de os ver e de falar com<br />

eles; isso significa que não tenho nunca um projecto e se o grupo de português<br />

decidiu um projecto, eu digo a tudo que sim, mas não pratico. Se por<br />

acaso aquilo que combinámos em grupo é adequado para os meus alunos,<br />

com certeza; senão limito-me a dizer à Delegada que para os meus alunos<br />

não se adapta, e portanto, o que eu tento é saber em que degrau eles estão,<br />

do que é que eles gostam e vou começar por aí, seja o que for que eu sinta<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

171


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

172<br />

que os pode fazer aderir.<br />

Isto para quê? Para que, a partir de certa altura, sigam sozinhos. Um professor<br />

pode fazer muito, mas não pode fazer tudo; quantos livros pode ler<br />

com os seus alunos num ano? Tem é que lhes criar o gosto, o desejo, a<br />

ansiedade, o vício pela leitura.<br />

Se eu der aos meus alunos um livro que eles achem uma maçada, provavelmente<br />

não o lêem, fingem que o lêem. Copiam fichas de trabalho dos<br />

colegas.<br />

Aliás, eu pertenço a uma família de quinze irmãos e tive um irmão que odiava<br />

ler e então, em pequenos, ensaiámos tudo o que é possível para enganar<br />

os professores.<br />

Eu lia os livros e combinava com ele o que é que ele dizia para fazer um<br />

vistão nas aulas e fomos sempre bem sucedidos. Ele nunca foi apanhado!<br />

Portanto, eu digo sempre aos meus alunos que não me conseguem enganar,<br />

porque eu fiz tudo o que é possível para enganar um professor!<br />

Se eu der um livro maçador eles levam para casa, começam, acham uma<br />

chatice, fecham o livro e vão ver a Júlia Pinheiro a falar com um burro.<br />

Se lhes der um livro que, de facto, os arrebate, se calhar, eles reagem ao<br />

contrário e acham estúpido um programa com uma mulher a falar com um<br />

burro! E então eles é que vão encontrar o seu caminho. Como eu encontrei<br />

o meu. Mas eu sou, para já, privilegiada. Nasci a gostar de ler. Fui para a<br />

escola em Outubro, analfabeta e, no Natal, já só pedi livros. Aos dez anos,<br />

por exemplo, em férias, na quinta, eu podia ler Os Cinco e depois ia à biblioteca<br />

do meu avô e lia O Jogador do Dostoievski; portanto fui misturando<br />

tudo num entusiasmo, numa alegria, numa felicidade, numa descoberta.<br />

Depois podia falar sobre Os Cinco com os meus irmãos mais novos, mas<br />

sobre o Dostoievski, tinha que esperar que o meu avô estivesse disponível<br />

para falar comigo.<br />

Portanto, sou privilegiada, como todos os que estão aqui, porque todos<br />

provavelmente nasceram a gostar de livros, mas os outros temos de os<br />

puxar para que eles partilhem deste gosto e se lhes impusermos um caminho<br />

que foi o nosso, se eu puser alunos de dez anos a ler Dostoievski afasto-os<br />

definitivamente da leitura, porque acham aquilo uma seca e vão concluir<br />

o quê? “Isto da leitura não é para mim”. E está o assunto arrumado.<br />

PMP<br />

O assunto não está arrumado. Vamos tomar um café, e quem vai assumir<br />

a palavra imediatamente a seguir ao intervalo é a Marta. Eu já ouvi a Olga a<br />

dizer que não.<br />

Portanto, isto promete para a segunda parte, pois vamos também abrir o<br />

debate à sala e falaremos sobre as adaptações e construções de elencos<br />

e das experiências de criação de bibliotecas singulares. Até daqui a dez<br />

minutos.


PMP<br />

Vou sintetizar a intervenção da Ana Maria Magalhães, ou seja, no fundo,<br />

a nossa realidade (a Ana Maria Magalhães não usou esta expressão, mas<br />

corrija-me se não se revir nela), a revolução de costumes, de mentalidades<br />

e tecnológica, que é uma coisa de que ainda não se falou, os consumos de<br />

audiovisuais que os miúdos têm, a Internet, as alternativas, tudo isso colide,<br />

bem como outros problemas de natureza social, de contexto, etc, tudo isso<br />

colide, dificulta a passagem, que é uma expressão que me agrada particularmente,<br />

a passagem do gosto pela leitura aos outros e concretamente aos<br />

mais novos. Esta passagem de testemunho, passagem na qual podiam e<br />

deviam ser veiculados os Clássicos.<br />

Marta Martins, depois da intervenção da Ana Maria Magalhães, impõe-se<br />

ouvi-la. Vou pedir a todos que sejam muito objectivos no que querem dizer,<br />

com toda a sinceridade, que sabemos que terão, mas muito objectivos,<br />

porque queremos também interpelações da sala.<br />

MM<br />

No que diz respeito à própria relação que as crianças estabelecem com os<br />

Clássicos eu lembrava exemplos extremamente simples.<br />

Quando as crianças brincam com peças de lego, por exemplo, admiram<br />

as construções e têm interesse em fazê-las, porque manipulam peças de<br />

diferentes tamanhos, diferentes cores e fazem selecções, etc.<br />

Uma pessoa que ama roupas, por exemplo, provavelmente gosta de texturas,<br />

tem uma sensibilidade cromática apurada, uma sensibilidade ao design.<br />

Ora, nós falamos de uma matéria chamada literatura que é muito específica<br />

e que trabalha com uma matéria prima chamada linguagem e nós, muitas<br />

vezes, esquecemos que só se pode amar literatura se se amarem as palavras<br />

e é normativo dizer isto.<br />

Nós temos de começar com as crianças, desde muito pequenas, ensiná-las<br />

que as palavras funcionam como pecinhas de lego. O gozo de as montar<br />

e desmontar, o gozo de as variar, porque em literatura, mais importante do<br />

que aquilo que se quer dizer, é a forma como se diz, é essa particularidade<br />

que faz dum texto um texto artístico.<br />

Se nós tivermos uma cultura onde tanto faz dizer de uma maneira como<br />

dizer de outra, como é que depois queremos que haja um amor pelo dizer<br />

diferente, haja a fruição estética de encontrar?<br />

PMP<br />

A Marta é especialista em Sophia, (pelo menos o seu livro é sobre Sophia de<br />

Mello Breyner), forma professores e, portanto, não está em contacto com<br />

os tais miúdos do segundo ciclo.<br />

MM<br />

Estou em contacto por interposta pessoa, pelas estagiárias, vou às salas<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

173


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

174<br />

onde elas estão. Os meninos são reais no meu quotidiano.<br />

PMP<br />

Mas é uma coisa mediada.<br />

Vamos falar de uma família de classe média-baixa, onde os pais não têm<br />

quaisquer hábitos de leitura e que vêem pessoas a falar com burros na<br />

televisão sendo este o seu prato dilecto, que, de facto, destruiriam todas<br />

as casas antigas, que consideram velhas e substituiriam por arranha-céus<br />

espelhados.<br />

Como é possível fazer uma criança neste ambiente, que não tem qualquer<br />

espécie de intimidade inicial com esse gosto pelas palavras, apaixonar-se<br />

pelas palavras de Sophia de Mello Breyner, por exemplo?<br />

MM<br />

Retomo o que estava a dizer e vou fazer uma ligação com isso. O menino<br />

pode vir de um meio muito desfavorecido da cultura escrita, mas se vive<br />

numa família onde se gosta de conversar, onde se gosta de contar coisas,<br />

em que as pessoas escolhem as palavras, escolhem os silêncios, há toda<br />

uma paixão pela palavra e pelo dizer que faz com que as crianças depois<br />

amem também o texto escrito. O que é preciso é que esses meninos tenham<br />

hipótese de ter quem os oiça, de serem elogiados na forma como<br />

estão a dizer as coisas.<br />

PMP<br />

E se disseram mal?<br />

MM<br />

Se não forem corrigidos, pela prática de ouvirem coisas bem ditas, porque<br />

não é uma questão de ter um professor sempre à perna a corrigir. Os meninos<br />

imersos em determinadas comunidades sofrem as correcções da<br />

própria comunidade, isso é óbvio.<br />

Podem não dizer bem sob o ponto de vista do português padrão. Mas, podem<br />

ter paixão na forma de dizer!<br />

Conhecemos no nosso quotidiano pessoas que nos contam histórias espantosas;<br />

se entrarmos naquelas mercearias de bairro, há sempre duas<br />

ou três figuras que permanecem lá mais tempo a fazer compras, porque<br />

são pessoas que contam histórias espantosas e que têm à volta delas um<br />

público. Ora, essas pessoas, em casa, conversam, contam e também estimulam<br />

o amor a conversar e a dizer.<br />

Portanto, é mais fácil pegar nessa apetência e desenvolvê-la do que pegar<br />

num menino, inclusive de um estrato médio-alto, que não tem qualquer<br />

prazer em conversar. Nós apanhamos na escola meninos que têm uma relação<br />

completamente solitária, ou com a televisão, ou com o computador e<br />

que não lhes apetece rigorosamente nada partilhar conversas.<br />

É isto que os fará amar os produtos que vêem nesse tecido constituído por<br />

palavras.


PMP<br />

E depois conduzi-los à excelência, a partir disso.<br />

MM<br />

Depende do conceito de excelência.<br />

Cada comunidade estabelece os seus Clássicos conforme os poderes<br />

dominantes. Quando nós consideramos excelência, estamos a considerar<br />

também os níveis de excelência que o poder permite. É evidente que, para<br />

mim, seria excelente se dominassem os Clássicos que eu domino, se não<br />

valorizassem os Clássicos que eu desconheço.<br />

Os professores nas aulas valorizam os seus saberes e passam esses saberes<br />

aos meninos. Em determinadas comunidades é imperdoável não<br />

conhecer determinadas referências, mas completamente perdoável não<br />

conhecer outras.<br />

PMP<br />

Ana Maria Magalhães, faça o favor. O Miguel e a Olga também pediram a<br />

palavra. Breves, todos.<br />

AMM<br />

Eu serei muito breve.<br />

Comecei a minha vida profissional em África, num bairro periférico de Lourenço<br />

Marques, depois trabalhei no meio rural, em seguida na cidade de<br />

Lisboa, depois na cintura industrial e finalmente voltei à cidade.<br />

Na verdade, eu não acho que a relação das crianças com os livros tenha<br />

nada a ver com o meio social a que pertencem. A relação de uma criança<br />

com uma história é como uma relação de amor, inexplicável.<br />

Por exemplo, uma das melhores alunas que tive na vida era filha de um<br />

vaqueiro analfabeto, era uma criança super inteligente, só lia livros do melhor<br />

que há, vivia nos Forros de Salvaterra de Magos e nas horas vagas<br />

ajudava o pai com as vacas.<br />

Por isso, o que eu tenho é de pôr o máximo possível de livros à disposição<br />

para ver qual é que faz soar campainhas.<br />

PMP<br />

Que livros? Não no sentido de eu esperar que algum dos senhores apresente<br />

aqui uma lista. Não é isso que se espera. Mas que critérios utilizar?<br />

MCS<br />

Se eu estou a perceber bem, do que se trata é de saber como é que se pode<br />

levar uma criança a apreciar os Clássicos. Eu acho que a mensagem que<br />

estava a ser dada antes do intervalo é a que eu acredito seja a verdadeira.<br />

Eu tenho que lhes tocar na alma. Não interessa como é que se chega lá,<br />

mas tem de se lhes tocar na alma. It takes one to see one. Só uma pessoa<br />

que foi tocada é que pode tocar noutras pessoas.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

175


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

176<br />

PMP<br />

Isso é um dado muito importante: só quem foi tocado é que pode tocar.<br />

A questão é: quantos professores de português gostam realmente de ler e<br />

têm uma paixão verdadeira pela leitura? Essa é a questão principal.<br />

MCS<br />

Eu gostaria de dar um exemplo de como é que eu fui tocado. Cada um tem<br />

o seu veículo, e o meu chama-se António Alfredo, uma pessoa absolutamente<br />

fantástica. Só para dar um exemplo, eu apresentava-lhe este exercício<br />

de física: uma bola cai, a que velocidade é que cai, com que força é que<br />

bate e porque é que parte o vidro?<br />

PMP<br />

Eu adoro estes exemplos.<br />

MCS<br />

Ele era arquitecto, tinha enormes conhecimentos de física e quando não<br />

tinha mentia, o que era uma coisa maravilhosa porque eu acreditava em<br />

tudo.<br />

Então eu chegava e dizia muito rapidamente, “olha António, tenho este dever<br />

para a escola, ajuda-me lá. O que é esta coisa da força”. Ele dizia: “os<br />

gregos…” E eu dizia: “não, não, espera aí, mas eu só quero saber...”. Ele<br />

nunca me deixou fazer isso. Contava-me a história dos gregos, os amores<br />

entre eles, e depois, lá no meio daquilo tudo, aparecia a bola e eu nunca<br />

mais me esquecia e apaixonava-me por essas coisas. É um exemplo de<br />

como é que se pode tocar na alma de uma criança. Ele utilizava esse veículo,<br />

e era o mais maravilhoso mentiroso contador de histórias.<br />

PMP<br />

Olga, depois o José Pedro Serra e o Ondjaki.<br />

OP<br />

Esta questão é muito complicada e eu só vou dizer duas ou três coisas.<br />

Induzir nos outros o amor por aquilo que nós amamos, é capaz de ser uma<br />

boa possibilidade, uma boa forma de dizer o que é a escola. Ela foi, em<br />

parte, inventada para isso. Depois da família ter já exercido todos os efeitos<br />

sobre a criança, aos quatro, aos cinco, aos seis anos, cada vez mais cedo,<br />

a criança sai de casa para ir a uma outra instituição que foi inventada há<br />

dois mil e quinhentos anos, com uma porta, com um jardim, com um pátio,<br />

com uma cabana, varia consoante o lugar, o espaço, o mapa em que nós<br />

nos situamos. Mas é sempre uma escola e tem alguns elementos que a caracterizam<br />

como tal. Um dos elementos fundamentais é que lá dentro dessa<br />

escola haveria de estar alguém que amasse alguma coisa, e que achasse<br />

que isso que ela tem deveria ser dado às crianças que vão entrar com uma<br />

expectativa enorme de aprender.<br />

Não se pode pensar na escola se não se acredita em duas coisas: na inteligência<br />

das crianças e no valor da cultura humana.


A escola serve para fazer passar às crianças aquilo que elas nunca aprenderiam<br />

se não fossem à escola, por isso, é que as crianças não ficam em<br />

casa. O que uma criança quer é aprender a descobrir, a crescer e a ser<br />

adulto, e ela tem toda uma apetência para crescer, aprender e descobrir.<br />

A escola é o lugar onde as crianças são introduzidas, na expectativa de que<br />

lá esteja um professor (a própria palavra “professor” tem muito que se lhe<br />

diga: é aquele que professa uma determinada profissão) que é alguém que<br />

transmite (a palavra “transmite” significa o elo de continuidade do mundo<br />

que já existia antes para o mundo que vai existir depois). Ele vai permitir<br />

à criança aprender aquilo que ela nunca saberia se não fosse à escola. O<br />

professor tem de amar aquilo que vai ensinar, aquilo que vai pôr em palavra,<br />

é esse o gesto de ensinar.<br />

Se se começa por perguntar às crianças o que é que elas gostam, do meu<br />

ponto de vista está tudo estragado, porque elas não vão à escola para<br />

aprender aquilo de que gostam, ou que já sabem ou que já faz parte do seu<br />

mundo. Elas vão lá para aprender aquilo que nunca aprenderiam se lá não<br />

fossem, e aprender o quê? Aquilo que vale a pena aprender. E o que é que<br />

vale a pena aprender? A grande ciência, a grande arte, a grande literatura,<br />

etc.<br />

A Marta pôs, e muito bem, o caso da passagem da língua à literatura. No<br />

caso do português é ainda mais importante, porque aprender português<br />

não é apenas aprender português, é aprender a possibilidade de aprender<br />

todas as outras coisas. Portanto, aprender a ler não é uma aprendizagem.<br />

Eu posso aprender, ou não, a fazer uma construção, posso nunca aprender<br />

na minha vida a fazer um copo, que isso não faz de mim menos pertencente<br />

ao género humano. Agora, se eu não souber ler, sou de certeza grandemente<br />

prejudicada na minha humanidade.<br />

Não quero com isto dizer que não haja pessoas que, embora analfabetas,<br />

não tenham conseguido grande valor humano mediante a oralidade, porque<br />

aí também é a palavra, é o ler e o ouvir, a palavra lida e a palavra falada e<br />

escrita. De qualquer maneira tem de se ser introduzido no universo das<br />

palavras.<br />

Ser homem é também saber ler, escrever, é saber pensar, mas com os instrumentos<br />

necessários. É o passaporte para tudo.<br />

Portanto, há que ser extremamente rigoroso, no que diz respeito à literatura.<br />

Num livro recente, George Steiner escrevia com toda a frontalidade, que a<br />

escola tem o dever de obrigar as crianças a gostarem daquilo que vale a<br />

pena gostar e aquilo que vale a pena gostar também tem obviamente de ser<br />

alguma coisa de que o professor gosta.<br />

Há aqui um triângulo que é importante, pois eu não consigo tocar a alma<br />

de uma criança com um texto medíocre do Big Brother. Agora se eu fizer<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

177


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

178<br />

um esforço, se eu mostrar o meu gosto, se eu for capaz de transmitir aquilo<br />

que, de facto, é o meu amor por um texto magnífico, esplendoroso que<br />

atravessou gerações, que tem, em si mesmo, na sua constituição, elementos<br />

de uma beleza objectiva que não se pode discutir, então a criança vai<br />

ser tocada.<br />

PMP<br />

José Pedro Serra, há pouco, a Ana Maria Magalhães estava a dizer que<br />

à universidade chegavam os alunos já peneirados e o José Pedro Serra<br />

abanou a cabeça e disse que não. O que é que esse não queria dizer? E<br />

a outra pergunta que lhe ponho, é: que critérios para construir um elenco<br />

de leituras obrigatórias? Não uma lista; os critérios. Onde é que temos de<br />

ser intransigentes na construção dessa biblioteca e onde é que podemos<br />

ser mais flexíveis e atender ao interlocutor? Porque a Olga entende, como<br />

ouviram, que a escola é para nos introduzir naquilo a que nunca teríamos<br />

acesso se lá não fossemos.<br />

OP<br />

Eu não gosto de contar experiências pessoais, mas já agora conto uma<br />

muito pequenina.<br />

Na Faculdade de Ciências, há alunos de matemática que nunca contactaram<br />

com nenhum Clássico na sua vida académica e eu leio quase todos<br />

os anos com eles um diálogo de Platão. No fim do ano, (quase sinto pudor<br />

em dizer) os alunos ficam absolutamente fascinados com o que é Platão,<br />

com o que é aquele texto que não lhes vai servir para nada.<br />

PMP<br />

Não lhes vai servir para nada?!<br />

OP<br />

Vai-lhes servir para tudo o que você quiser.<br />

PMP<br />

Não há uma finalidade estrita.<br />

OP<br />

É uma coisa que é livre no sentido pleno da palavra. Vai-lhes servir para<br />

tudo o que eles quiserem.<br />

JPS<br />

Francamente não sei que dizer.<br />

PMP<br />

Concorda que é um problema, encontrar critérios para construir uma biblioteca?<br />

JPS<br />

Antes disso, deixe-me dizer uma coisa.<br />

Enquanto estava a ouvir, muito atentamente, as intervenções anteriores,<br />

lembrei-me que a etimologia da palavra escola, do grego skhole, significa<br />

esta coisa, para mim fantástica, que é “o espaço onde nada se fazia”, não


fazer nada!<br />

É claro que há aqui um sentido imediato e que, no contexto da cultura<br />

grega, queria dizer “o espaço da ausência de uma ocupação manual para<br />

fazer uma outra coisa”.<br />

Mas, eu entendo isso talvez de uma outra forma que não é oposta, mas que<br />

a completa; “não fazer nada”, significa hoje, e talvez em qualquer momento,<br />

“silenciar os ruídos”, “calar este tumulto dos pragmatismos, das aparentes<br />

finalidades para tentar ouvir, ver e amar aquilo que se revela como amável,<br />

audível e visível”. Na verdade, para isso é preciso um grande ascetismo,<br />

porque calar os ruídos é muito difícil. Não apenas para o professor, mas<br />

para os alunos.<br />

Ora, o que me parece é que há, neste nosso debate, dois níveis distintos:<br />

um que assenta nesse aspecto muito pragmático, muito vivido, muito respeitável,<br />

por ser vivido, por ir ao encontro do que se experiencia; e outro<br />

que procura pensar ou dar a ver aquilo para o que deve tender a nossa<br />

viagem. Saber o que é, e como estabelecer o porto, para o qual a nossa<br />

viagem da descoberta com o outro se deve dirigir.<br />

Eu devo dizer que por mais respeito que eu tenha pelas dificuldades pessoais,<br />

concretas, que cada um de nós vai encontrando na escola primária,<br />

no liceu ou na faculdade, não consigo desligar isso dessa formulação principal,<br />

original, que é: qual o país para onde vamos?<br />

Por isso, há pouco, a minha intenção não era apenas dizer, à boa maneira<br />

grega, que lástima são os alunos da faculdade. Não! Também na faculdade<br />

há um exercício de descoberta intensa, de dar a ver. Também aí estamos a<br />

amar ou a dar a ver.<br />

Já que a Olga falou do Steiner, há uma expressão do Steiner, no início de<br />

um curso, que muito me tocou. Numa aula, o Steiner disse ao entrar: “sobre<br />

esta matéria eu sei infinitamente mais do que os senhores. Sei muito<br />

mais! O meu objectivo, é que, no final do ano, se invertam as posições”.<br />

E isso significa que há a assunção de uma responsabilidade, de um saber<br />

que compete ao professor. Sou um pouco heterodoxo quando se fala nos<br />

didactismos, na interactividade, soa nos meus ouvidos como uma espécie<br />

de capitulação perante o movimento.<br />

Quer dizer o que é preciso é: que se mexam, interajam. Penso que não há<br />

interacção maior do que a do aluno que está atentamente a ouvir aquilo que<br />

o professor diz e que é, se for bom, profundamente interpelativo e, nesse<br />

sentido, muitíssimo interactivo.<br />

Vi, há pouco tempo, num manual, que para se falar do aspecto coercivo<br />

da lei, se devia desenhar três quadradinhos de banda desenhada em<br />

que num está, uma Eva pudicamente tapada com três parras; no outro um<br />

Adão igualmente pudicamente tapado, mas só com uma parra, e num terceiro<br />

quadrado, um ancião de costas, com os braços abertos e um cajado<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

180<br />

na mão, onde se podia ler estas legendas: ai meu Adãozinho, ai minha<br />

Evazinha, e a expulsão do Paraíso.<br />

Eu fico esmagado, fico absolutamente chocado, porque, de facto, tudo está<br />

a ser menorizado, que é o contrário do que deve ser exigido.<br />

Qual é o critério?<br />

Eu peço desculpa por discordar da minha caríssima colega de debate, mas<br />

eu acho que os critérios não são subjectivos.<br />

PMP<br />

Está a falar da Marta Martins?<br />

JPS<br />

Sim. Disse que dependia de comunidade para comunidade. Eu aceito que<br />

há uma franja indecisa na passagem e transmissão dos Clássicos, no sentido<br />

em que aceito que uma dada época se possa rever melhor num, ou<br />

que interprete um outro ou que, sobretudo, o ponha mais em evidência,<br />

que o ilumine; eu aceito, o que, inesperadamente, Joyce fez com Ulisses,<br />

por exemplo.<br />

Agora, uma coisa é admitir que a criatividade duma época balance no perfil<br />

indeciso dos limites dos Clássicos, e outra é ter a infantil e cruel arrogância<br />

de pensar que na sua relatividade pessoal pode instaurar os Clássicos a seu<br />

gosto. É que não pode! Isso é uma moda que o tempo triturará.<br />

Os Clássicos impõem-se por si e, tal como eu digo aos meus alunos, o<br />

gosto por Homero não é critério de vida, nem Homero depende dos alunos<br />

gostarem ou não gostarem dele. Eu serei melhor professor se ao falar de<br />

Homero e “dessa manhã de verdes róseos” os tornar sensíveis à madrugada,<br />

mas o valor de Homero não depende do valor judicativo dos alunos.<br />

Nem do meu!<br />

Por isso, eu acho que há aqui um reconhecimento já não subjectivo, mas<br />

objectivo daquilo que os Clássicos revelam, dessa matriz inicial, como uma<br />

espécie de fonte primeira, que nos ensina a dizer, que marca um ritmo novo,<br />

uma musicalidade nova e, nesse sentido, marca a música da minha própria<br />

vida.<br />

PMP<br />

Muito bem.<br />

Para sintetizar: há um núcleo duro de capital, de conhecimento acumulado<br />

e de produção da humanidade que não é negociável no contexto de uma<br />

escola; é para transmitir e não é relativo. A Olga subscreve, já suspeitava.<br />

JPS<br />

Mas não ensaiámos.<br />

PMP<br />

Imagino, imagino! Mas podiam não coincidir.<br />

OP<br />

Aliás, eu já tinha dito quando falei do triângulo. É o professor e o aluno e


há o amor entre ambos. O professor ensina aquilo que ama. Imagine que<br />

o professor ama o romance inferior. Não é assim; tem que haver o terceiro<br />

elemento. É que aquilo que o professor ama, é aquilo que é para amar.<br />

PMP<br />

Portanto, há um cânone.<br />

Ondjaki, como criador – e quando digo criador é nestas múltiplas disciplinas<br />

a que já aludi aqui – tu foste introduzido aos Clássicos, na escola e<br />

em casa, porque és dos que teve o privilégio de ter um contexto familiar<br />

onde também, com certeza, te foi dada alguma introdução a grandes textos.<br />

Mas, tu como criador, com certeza, que construíste, subjectivamente, a<br />

tua própria biblioteca, lato sensu. Qual a biblioteca que te alimenta, que te<br />

inspira, cingindo-nos aos livros?<br />

Ondjaki<br />

A minha biblioteca são as histórias que eu oiço, escritas no sentido em que<br />

as leio, oiço, porque chegam até mim no sentido auditivo da coisa.<br />

Depois desta ronda fui apanhando pedaços que fariam aqui um novo<br />

puzzle, mas eu não posso pegar em tudo. Vou fazer alguns apontamentos,<br />

por exemplo, penso que a socialização das pessoas é feita em casa, depois<br />

na escola e depois na sociedade em vários pontos. Em todos esses sítios<br />

sofremos influências. Todo o tipo de aprendizagens depende dos contextos<br />

em que estamos inseridos. Eu não sei em que grau é que depende; penso é<br />

que não seja independente do sítio onde estamos, das pessoas com quem<br />

nos cruzamos, como diz o provérbio brasileiro: não independe a nossa formação<br />

e o nosso trajecto.<br />

Curiosamente, a ideia do vazio trouxe-me à memória uma palavra chinesa<br />

muito bonita que é wuji, wuji é precisamente o vazio; eles usam-na em termos<br />

filosóficos e até nas artes marciais, como por exemplo, no Tai Chi e no<br />

Kung Fu, onde o Mestre diz: vocês devem procurar o wuji, e se eu procurar<br />

o wuji vou estar quieto e estar quieto é estar em harmonia com o universo;<br />

portanto, esse wuji, esse vazio, essa escola do silêncio, remete-me para<br />

uma ideia de criar espaço para uma aprendizagem, não no sentido de calar<br />

tudo, calar apenas o desnecessário, o não essencial.<br />

Mas, isto tudo para chegar onde? À sensibilidade!<br />

Eu acho que esta ideia de aproximar as pessoas, a paixão com que se<br />

transmite uma coisa e a maneira como se convence um aluno a aproximar-<br />

-se seja de um Clássico, seja de outro texto, tem muito a ver com a ideia de<br />

sensibilidade e, claro, a sensibilidade depois vai englobar o amor, o talento<br />

ou a maneira como se fala com os alunos.<br />

Eu gosto de contar histórias e vou contar duas histórias muito rápidas.<br />

O meu avô era para se chamar Aníbal. Quando chegaram ao registo, o senhor<br />

disse: “ai! Aníbal não, não gosto desse nome, vai-se chamar Eduardo”.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

181


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

182<br />

Mas, lá em casa, continuaram a chamar-lhe Aníbal.<br />

Quando ele mudou da terceira para a quarta classe, a professora tinha ouvido<br />

falar que vinha um Aníbal que era terrível. Ela nem sabia quem era! Mal<br />

o meu avó entrou, ela perguntou:, quem é o Aníbal? Ele levantou-se e levou<br />

logo umas reguadas; segundo dia, outras reguadas, terceiro dia, diz ela:<br />

“eu já sei que tu és terrível; pelo sim pelo não eu vou-te já cascando”! Ao<br />

fim de dez dias, o meu avô, com onze, doze anos, chegou a casa e disse<br />

ao pai que não ia mais à escola. O pai dele que era pescador, disse “não<br />

vais à escola, vais comigo para a pesca”. Esteve cinquenta e cinco anos<br />

na pesca, teve um acidente, veio embora. Há pouco tempo, estava muito<br />

doente e já naquela fase delirante, chamou-me porque eu era das poucas<br />

pessoas que o entendia: – O que é avô? – Eu quero ir lá fora. Estava frio e<br />

ele não tinha condições físicas. – Queres ir fazer o quê? – Quero ir brincar<br />

com os meus amigos.<br />

E eu achei aquilo engraçado. Tinha um elemento de demência, mas para<br />

mim, a relação imaginária que eu fiz foi: estás a ver, não brincaste na escola,<br />

foste para a pesca, agora queres ir brincar.<br />

Portanto, a sociabilidade constrói histórias, constrói momentos e aquele<br />

momento foi para mim muito ternurento. A minha avó estava tristíssima,<br />

porque ele estava a morrer e eu ali deliciado a ouvir estas coisas, não podia<br />

era sorrir, porque se não a minha avó podia ficar chateada.<br />

Mas, há outra história muito rápida.<br />

O escritor Manuel Rui é uma pessoa com quem estabeleci uma relação<br />

muito interessante, porque julgo que descobri nele, ou na obra dele, uma<br />

coisa que é a ternura, uma imensa ternura. Às vezes, é desagradável com<br />

as pessoas, responde mal aos jornalistas, não gosta de americanos, nem<br />

de sul-africanos, enfim, é uma pessoa problemática, mas quando eu vou a<br />

casa dele lanchar e falamos, ele sempre conta histórias de ternura, seja a<br />

falar de um feijão, seja a cozinhar, seja a beber, está sempre a ternura.<br />

E um dia contou-me a história de uma menina a quem perguntaram o significado<br />

de uma determinada cor. E que cor era aquela e a miúda não conseguia<br />

explicar. – Mas que cor é essa?, é cor de rosa?, e a miúda disse: não<br />

é bem isso. – É cor de laranja? – Não! – Então é o quê? A miúda disse: “é<br />

um vermelho devagarinho”.<br />

Só uma criança é que se pode lembrar de dizer que uma cor é vermelho<br />

devagarinho.<br />

Eu só me lembrei disto, porque o que me marca são as histórias relativas à<br />

sensibilidade. A sensibilidade tem muita força e muita brutalidade, em termos<br />

de simplicidade, que depois se torna muito, muito verídica.<br />

A lista dos livros, devo dizer que passa muito por aí.<br />

Os livros que me tocam são os livros com os quais vou, de facto, criar uma


habilidade para depois poder tocar os outros quando quiser passar.<br />

Como o vermelho devagarinho, o Manuel Rui disse que a história pode<br />

circular.<br />

PMP<br />

Miguel, tu és imunologista e, portanto, a palavra contaminação é-te seguramente<br />

familiar e muito presente no teu quotidiano de laboratório.<br />

Tudo isto de que estivemos a falar me remete para uma ideia de contaminação,<br />

esta passagem de testemunho, às vezes, mais facilitada pelo amor<br />

que se tem ao testemunho do mestre, outras vezes mais dificultada, porque<br />

o mestre não tem esse amor. Achas que pode haver uma analogia possível<br />

entre a passagem dos Clássicos de geração em geração e a ideia da<br />

contaminação? Eu tenho curiosidade em ouvir-te a ti, um cientista, ainda<br />

por cima desta área, dizer se esta ideia é um disparate ou se há, de facto,<br />

analogias possíveis e como é que tu as estabeleces.<br />

MCS<br />

Contaminação é uma coisa que nós vemos todos como relativamente horrível,<br />

porque são as doenças que nos matam, se somos contaminados, e<br />

por isso tem um lado negativo. Na transmissão do testemunho do Homero,<br />

por exemplo, o mestre que transmite não quer, de modo algum que o processo<br />

de transmissão caia, se suje e que depois, se aparece uma pessoa<br />

que fica com ele, já não é bem Homero, é um Homero que se sujou. Em<br />

cinco séculos se ele estiver sempre a cair no chão já não é Homero.<br />

O que eu pretendo dizer é que na transmissão desse texto, podemo-nos<br />

sempre referir à base, está escrito, e que a função do professor ao transmitir<br />

esse texto, não é transmitir uma adaptação, mas esse texto, é o testemunho<br />

no seu original e sensibilizar as pessoas para essa mensagem. Nesse<br />

sentido a contaminação é uma coisa negativa, se se mudar o texto e se se<br />

deturpar o seu sentido.<br />

É absolutamente necessário manter um testemunho exactamente como<br />

ele é, mas não impedir que outras ideias que sejam completamente contra<br />

essa mensagem, não apareçam.<br />

O facto de preservar, não deve limitar os horizontes ao aparecimento de<br />

coisas que vão ser outros testemunhos que vão ser passados.<br />

JPS<br />

Por mim, devo-lho dizer que vejo a sua contaminação com muita alegria.<br />

MCS<br />

Mas é engraçado, porque quando se fala, no sentido leigo, do mestre que<br />

transmite os Clássicos, é de uma maneira caricatural…<br />

JPS<br />

Cuidado…<br />

MCS<br />

...de uma maneira caricatural no sentido de ser uma pessoa clássica. Quem<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

183


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

184<br />

transmite os Clássicos é um preservador daquele património, mas, no fundo,<br />

há que manter o horizonte aberto para outros…<br />

E a contaminação nisto tudo?<br />

Eu vou dar um exemplo: Houve agora um filme, que era uma versão americana<br />

toda modernaça do Romeu e Julieta. Aquilo não é um Clássico; o<br />

Clássico é Romeu e Julieta; no fundo, é uma contaminação do Clássico,<br />

que pode ter o seu valor, mas não é um Clássico, não o substitui e eu pessoalmente<br />

não acho que aquilo não seja um avanço, de modo algum. Mas,<br />

há outras coisas que vão aparecer de repente, que não tem a ver com os<br />

Clássicos, e que eles próprios se vão tornar Clássicos e que são contaminações<br />

talvez paralelas.<br />

PMP<br />

Então os Clássicos geram um movimento de desdobramento.<br />

Intervenção sem ser identificado o orador<br />

Paula, deixe-me dar um exemplo. As Fábulas de La Fontaine, que são uma<br />

grande matriz referencial na literatura para a infância, são do século XVII; no<br />

entanto, sabemos que foram criadas a partir dos textos de Fedro do século<br />

I d.c., mas de Fedro porquê? La Fontaine sabia latim, mas não sabia grego,<br />

se soubesse grego teria ido aos de Esopo, que, supostamente, não se tem<br />

a certeza, são do século VI a.c.; portanto, nós hoje, nem Fedro, nem Esopo,<br />

só La Fontaine. Qual é o nosso Clássico afinal? Onde é que está a matriz?<br />

Intervenção sem ser identificado o orador<br />

O que é bonito é que todos diziam a mesma coisa. Isso é que é bonito.<br />

Intervenção sem ser identificado orador<br />

E repare, chegam às nossas mãos, longíssimo do texto de La Fontaine,<br />

que é, enfim, um texto do século XVII, ao gosto da época. Portanto, em<br />

verso, como já eram os anteriores, e a nós aparece-nos nas mãos em texto<br />

narrativo corrido, adaptado, truncado, etc, e as pessoas adoptam-nos nas<br />

escolas como Clássicos.<br />

OP<br />

Quanto à contaminação, eu acho que a grande figura da escola é a figura<br />

do anão e do gigante; nós somos anões aos ombros de gigantes e, portanto,<br />

temos de nos deixar contaminar pelos gigantes.<br />

Segunda coisa, em relação à adaptação dos Clássicos para crianças eu<br />

acho que é um problema, mas, hoje em dia, há um problema muito maior,<br />

que é a adaptação das histórias infantis para adultos, que enchem as<br />

prateleiras das bibliotecas e das livrarias. Esse é que é o grande problema.<br />

A história que vende é no fundo, uma história infantil para adultos, contada<br />

para adultos. O bestseller do romance.<br />

PMP<br />

Ainda bem que disse isso, porque o Miguel Che e mais gente aqui tem<br />

uma experiência americana. Ele viveu dez anos nos Estados Unidos, e, de


facto, comentávamos isso, no outro dia, lê-se imenso, objectivamente lê-se<br />

imenso, nos Estados Unidos, na Inglaterra e muitíssimo mais do que aqui,<br />

mas lê-se o quê?<br />

MCS<br />

Lê-se porcaria. Lêem-se coisas que se compram no supermercado, que<br />

têm todas o mesmo formato.<br />

É como no cinema, no fundo, há uma estrutura que é imposta, que é o que<br />

eles chamam bestsellers e, no fundo, isso acontece porque não lhes tocaram<br />

na alma. São histórias muito simples e o facto de se ler e de se ter a<br />

capacidade de ler, de se concentrar, de se sentar e de ir para a cama ler não<br />

é suficiente; tem que se ser dirigido no que é que se vai ler. Há toda uma<br />

outra educação que não tem que ver com o facto de ler.<br />

Mas depois há outro problema, (eu não quero entrar em grandes debates<br />

sociais), que é o seguinte: se nós tivéssemos a capacidade de tocar na alma<br />

de noventa e nove por cento da nossa população era o pânico, porque a<br />

nossa sociedade não funcionava e a estrutura americana não funcionava.<br />

Por exemplo, eu tenho um laboratório de dez pessoas e quero que as dez<br />

pessoas se sintam plenamente a trabalhar, que se divirtam, que sejam todos<br />

inteligentes. Se eu tiver dez pensadores eruditos, o laboratório funciona<br />

no que nós chamamos “para a frente em todas as direcções”, ou seja, não<br />

funciona, fica parado. Já que estamos a falar da minha experiência americana<br />

vou dizer-lhes como funciona: há uma “dose” igual para toda a gente,<br />

depois há uma triagem e só alguns, por critérios que são aceites ou que<br />

não são aceites, é que têm então a educação máxima e o acesso aos Clássicos<br />

e a isso tudo. Não estou a dizer que é a boa maneira de o fazer, mas é<br />

como eles o fazem e é uma coisa de que os americanos não têm vergonha.<br />

Que toda a gente leia essa literatura de aeroporto, a eles não lhes importa<br />

nada, aquilo é bom, good for business, mas depois há uns que lêem os<br />

Clássicos.<br />

Isto é um discurso que na Europa social é inadmissível, é escandaloso!<br />

PMP<br />

Estamos a ser esvaziados da nossa inteligência na Europa. Meus senhores<br />

muito mais haveria a dizer, mas chega.<br />

Agradeço aos membros desta mesa, que foram óptimos.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

185


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

186<br />

Isabel Marques da Costa<br />

Observadora Sala 1<br />

Em primeiro lugar gostaria de agradecer à Drª Maria Helena Melim Borges<br />

o convite que me fez para ser observadora do XVI Encontro de Literatura<br />

Infantil. É um convite que muito me honrou e que, ele próprio, resultou<br />

numa viagem à minha infância e adolescência. Despertou-me a curiosidade<br />

e também a necessidade de rever, nalguns casos reler (O “Cavaleiro da<br />

Dinamarca”, por exemplo, já que falavamos de viagens) ou simplesmente<br />

voltar a tocar nos livros que me foram oferecidos.<br />

Livros de Matilde Rosa Araújo, Sophia de Mello Breyner, Alice Vieira, Maria<br />

Rosa Colaço, Maria Alberta Menéres, António Torrado, isto só para citar<br />

alguns. São dezenas de livros que até há uma semana estavam religiosamente<br />

guardados numa estante em casa da minha mãe, mas que agora<br />

estão todos em minha casa. E quando digo todos, são TODOS... mesmo<br />

aqueles que foram autografados e dedicados aos meus irmãos.<br />

Agradeço, por isso, esta viagem ao passado... e também a viagem que foi<br />

este Encontro. Três dias muito enriquecedores.<br />

E agora, então, o meu Bloco de Nautas recolhidas na Sala 1...<br />

Os trabalhos começaram na quarta-feira, como habitualmente, com uma<br />

sessão mais formal. Uma sessão daquelas que geralmente marca o início<br />

de iniciativas como esta, mas que, a ser verdade, teve, desde logo, uma<br />

boa notícia.<br />

O Secretário de Estado da Educação, que marcou presença em substituição<br />

da ministra (Maria do Carmo Seabra estava no Parlamento a dar explicações<br />

sobre o atraso no início do novo ano escolar), anunciou a criação<br />

de um Plano para a Promoção da <strong>Leitura</strong> e da Escrita para crianças com<br />

idades entre os 6 e os 10 anos. Um plano em que não estará incluído o tal<br />

chicote (invocado por Miguel Sousa Tavares na Conferência de Abertura<br />

quando questionado sobre de que forma pensaria ser possível incentivar<br />

os miúdos a ler...), e que poderá ser uma pequena luz ao fundo do túnel. A<br />

esperança de que todas as crianças de norte a sul do país, ricas ou pobres,


ganhem o hábito da leitura, passem mais tempo a ler em vez de ficarem<br />

frente a um cumputador, sozinhas, horas a fio, a jogar, a aceder a endereços<br />

vazios de conteúdo ou impróprios para as suas idades.<br />

Mas uma criança frente a um computador pode fazer outras coisas que não<br />

jogar. O computador pode, e já é seguramente, um objecto incontornável<br />

do futuro.<br />

Na Conferência de Abertura com Miguel Sousa Tavares foi dada uma<br />

perspectiva mais negativa, menos esperançosa do futuro no que às<br />

crianças e novas tecnologias, como o computador e a internet, diz respeito.<br />

Mas, ontem, quinta-feira, na sessão da tarde, na Sala 1, a mensagem foi<br />

outra, como mais à frente mencionarei.<br />

Da parte da manhã o tema foi “VIAJANTES INTRANQUILOS”: uma homenagem<br />

a Hans Christian Andersen, pelo bicentenário do seu nascimento, que<br />

se completa em Abril de 2005. Uma homenagem que foi também estendida<br />

a Natércia Rocha, uma das iniciadoras destes Encontros nos anos 80, numa<br />

sessão moderada por Marta Martins.<br />

A primeira a usar da palavra foi Leonor Riscado. Autora de vários artigos<br />

sobre a literatura para a infância e juventude, a professora da Escola Superior<br />

de Educação de Coimbra sobre a vida e obra de Andersen... e de<br />

como também elas foram um belo conto. Com uma forma muito terna de<br />

comunicar (e com um tom de voz fantástico para contar histórias!), falou-<br />

-nos do início de vida difícil do escritor dinamarquês e de como isso marcou<br />

todo o seu percurso como homem e escritor. Contou-nos também como<br />

Andersen começou por escrever contos populares, dando continuidade à<br />

tradição oral da sua região (não esquecendo as suas raízes), mas que depois<br />

começou a desenvolver um estilo único com marcas visíveis da sua<br />

infância. Um estilo que o levou a escrever 156 contos traduzidos já em mais<br />

de 100 idiomas.<br />

Depois de Leonor Riscado foi Diogo Dória. O actor contou-nos e encantou-<br />

-nos com “A Sombra” de Andersen, como não podia deixar de ser.<br />

Por último Rui Marques Veloso.<br />

Também professor na Escola Superior de Educação de Coimbra e co-fundador<br />

da Associação Portuguesa para a Promoção do Livro Infantil e Juvenil<br />

falou-nos dos trilhos ANDERSENIANOS na literatura infantil portuguesa.<br />

Ou seja, sendo Andersen reconhecido como o maior escritor de literatura<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

187


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

188<br />

para crianças e tendo sido a sua obra amplamente divulgada em Portugal,<br />

alguns escritores portugueses foram, naturalmente, por ele influenciados.<br />

Rui Marques Veloso destacou quatro. Sophia de Mello Breyner, Matilde<br />

Rosa Araújo, Ricardo Alberty e António Torrado. Entre eles e Andersen, o<br />

professor consegue estabelecer uma ponte, encontrar semelhanças... mas<br />

também consegue identificar diferenças. Entre elas, e comum aos quatro<br />

escritores, um aspecto importante. Ao contrário do escritor dinamarquês,<br />

os escritores lusos valorizam a esperança nas suas fábulas.<br />

No final da sessão uma pequena intervenção de Matilde Rosa Aráujo que<br />

comoveu grande parte, se não toda, a plateia e também um comentário de<br />

António Torrado, comissário do Encontro. O escritor contou que quando<br />

era miúdo leu as histórias de Hans Christian Andersen, entre elas a “A Sombra”.<br />

Um conto que o perturbou, mas que decerto, como todos os outros, o<br />

inspiraram e, quem sabe, foram determinantes para se tornar o fantástico<br />

escritor de literatura infantil que é. Eu acho que é!<br />

Da parte da tarde falou-se, então, dos MODERNOS NAUTAS. Dos viajantes<br />

de hoje. E, como referi há pouco, numa perspectiva mais positiva. Ao contrário<br />

do primeiro dia de trabalhos.<br />

Luísa Ducla Soares contou-nos como no seu dia-a-dia na Biblioteca Nacional<br />

já não dispensa o computador e a internet. E como através deles<br />

é possível escrever, aprender, dar entrevistas, pesquisar... Não há dúvida:<br />

rendeu-se completamente às novas tecnologias. Como Luísa disse (creio<br />

que foi mais ou menos assim): ‘é como viajar num tapete voador, tendo<br />

como companheiro um rato... e num abrir e fechar de olhos dá-se a volta ao<br />

mundo’. Muitos pais e educadores estão assustados com as novas tecnologias,<br />

mas para Luísa Ducla Soares elas podem dar bons exemplos desde<br />

que as crianças sejam bem acompanhadas e não sejam largadas a seu<br />

bel-prazer frente ao aparelho.<br />

Sugeriu até que fossem criadas, por adultos responsáveis, listas de sites<br />

adequados a cada faixa etária. Uma espécie de guias.<br />

Os mails, os jogos, os sites didácticos, os blogs, os chats podem ser instrumentos<br />

positivos de aprendizagem e conhecimento, assim como a internet<br />

pode estimular a leitura. Mas, ao contrário de outros países, como Inglaterra<br />

onde existe um sem número de sites de e com literatura infaltil, na língua<br />

portuguesa ainda há relativamente pouco ao dispôr. Mas já há qualquer<br />

coisa e deu como exemplo o site “História do dia” de António Torrado. Para<br />

Luísa é impossível voltar atrás. As novas tecnologias existem e são um su-


porte privilegiado da literatura. O importante agora, diz, é “descobrir novas<br />

formas de navegar o futuro.”<br />

Pedro Rosa Mendes, jornalista e escritor, é da mesma opinião. A internet é<br />

já um meio indispensável, sendo que o principal motor de busca utilizado<br />

por cada um de nós, adultos e crianças, deve ser a nossa própria imaginação.<br />

E provou-o quando no mesmo dia em que lançou o seu livro em papel<br />

“A Baía dos Tigres” – uma viagem de Angola ao norte de Moçambique<br />

– lançou um site na internet onde também era possível ler o livro na íntegra<br />

e até ir mais longe. Para Pedro esse livro virtual é mais real porque permite<br />

um acesso mais completo. Permite, por exemplo, recorrer a elementos<br />

iconográficos ou musicais.<br />

Por último, Francisco Pacheco. Educador de infância em Portalegre considera<br />

que as novas tecnologias são grandes aliadas das regiões mais desfavorecidas.<br />

Francisco Pacheco é o responsável pela existência da “História<br />

do dia” de António Torrado. E não deixa de ser curioso que António Torrado,<br />

que confessou que ainda escreve as suas histórias com a ajuda de papel<br />

e de uma caneta, também se tenha rendido às novas tecnologias. Durante<br />

um ano publicou todos os dias uma história diferente no site.<br />

Foram 366 histórias.<br />

Francisco Pacheco falou-nos do imenso sucesso do site português de<br />

gema, mas que também tem uma versão em inglês. E deu-nos números<br />

(que tanto agradam aos jornalistas e que eu me apressei a anotar!). Foram 3<br />

milhões de visitantes, crianças mas também adultos, de 55 países. Naturalmente<br />

de Portugal, do Brasil, mas também de todos os países africanos de<br />

língua oficial portuguesa e de toda a américa latina. (De resto, esta imensa<br />

afluência hispânica fez com que, quando voltar a arrancar, este site tenha<br />

também uma versão em castelhano). Receberam também mais de 20 mil<br />

mensagens, foram por 4 mil e 300 vezes impressas histórias...o que significa<br />

que foram guardadas para voltarem a ser contadas.<br />

Um caso de verdadeiro sucesso em português de Portugal, que andou nos<br />

quatro cantos do mundo e que por agora, desde 30 de Setembro, está<br />

parado. Mas promete voltar à carga.<br />

Todos esperamos que sim. Sinceramente, espero que sim!<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

190<br />

Ana Sousa Dias<br />

Observadora Auditório 2<br />

O Miguel Sousa Tavares, na quarta-feira, disse que havia quatro livros que<br />

todos devíamos obrigar as crianças a ler, nem que fosse a chicote: “A Ilha do<br />

Tesouro”, o “Moby Dick”, “As Viagens de Gulliver” e o “Robinson Crusöe”.<br />

O chicote é o lado MST da conversa - um homem, que escreveu “O Segredo<br />

do Rio” e que ouviu em criança as histórias daquela mãe, não está a<br />

falar a sério quando recomenda chicotes para pôr as crianças a ler - o gag<br />

que levou o Henrique Cayatte a explicar que os chicotes estão à venda na<br />

net, depois de um debate em que alguns – incluindo o Miguel – disseram<br />

que os mais novos passam a vida agarrados aos jogos de computador. Este<br />

momento e um outro – a Alice Vieira a contar que foi a um programa de televisão<br />

em directo com o Adolfo Simões Müller que foi tratado pelo apresentador<br />

como um bailarino reformado – poderiam exemplifi car como questões<br />

que à partida podem ser vistas como negativas acabam por mostrar que<br />

não há nada melhor do que não nos levarmos demasiado a sério.<br />

Vamos então começar pelo princípio, e no princípio, neste caso, era o Prémio.<br />

Isto é, a nossa primeira manhã do XVI Encontro de Literatura para<br />

Crianças foi a parte, digamos, institucional. A Isabel já deu a notícia do que<br />

foi anunciado pelo secretário de Estado Diogo Feyo, portanto eu começo<br />

mais tarde. Henrique Cayatte falou sobre o prémio atribuído ao André Letria<br />

e ao António Mota pelo livro “Se eu Fosse Muito Magrinho” e realçou a importância<br />

da nova geração de ilustradores que veio revigorar este campo da<br />

literatura. Falou do André em especial, da forma como ocupa a mancha da<br />

página e da capacidade de preservar o diálogo com o texto sem ofuscá-lo,<br />

e esta é uma atitude que tem muito que se lhe diga. Sublinhou que o André<br />

é também pintor, pai e cenógrafo, numa ordem aparentemente irrelevante.<br />

Maria Cabral Pacheco de Miranda explicou as razões da atribuição do prémio<br />

na modalidade “Texto Literário” a Jorge Araújo, pelo livro “Comandante<br />

Hussi”. Este livro conta uma viagem iniciática de um menino em direcção à<br />

idade adulta, uma viagem precipitada pela guerra. Quem ler o livro, e aqui a<br />

observadora passa para outro papel e recomenda-o, vai certamente guardar<br />

a ideia de Hussi e da bicicleta amorosa, saudosamente escondida para<br />

um reencontro permitido pela paz.<br />

O tema da conferência de Miguel Sousa Tavares era a Literatura de Viagens,


ele que é um viajante solitário de desertos. Para além do pessimismo – e no<br />

dia em que o ouvirmos dizer uma frase optimista podemos ficar preocupados<br />

– o Miguel, na agressividade do seu pudor, acabou por dizer, por exemplo,<br />

que o mundo seria infinitamente mais seguro se fosse governado por<br />

antigos viajantes. “Quando se viaja, não se procura – encontra-se. Mesmo<br />

que seja preciso ir ao limite de nós mesmos.” Aproveitou para fazer um<br />

repto à <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong>, depois secundado por Henrique Cayatte,<br />

para que promova um debate sobre a comunicação social.<br />

A questão dos novos meios de informação começou a ser debatida nesta<br />

sessão mas, como a Isabel Marques da Costa já explicou, foi aprofundada<br />

depois na Sala 1.<br />

Voltei ao Auditório 2, no segundo dia, para a sessão sobre “Inevitáveis Clássicos”.<br />

As histórias da infância da Maria João Seixas, a moderadora, eram<br />

também de uma viagem – suponho que ninguém naquela sala vai esquecer<br />

a imagem da casa em que viveu enquanto o pai coordenava a obra dos<br />

caminhos-de-ferro, no norte de Moçambique, a casa que se deslocava de<br />

lugar em lugar e ficava sustentada em bidões, mas que compunha, com<br />

outras três casas, um largo itinerante com vista para os animais e a vegetação<br />

de África.<br />

José Pedro Serra fez uma intervenção sobre a presença dos clássicos na<br />

cultura ocidental, e sobre o papel que o educador deve assumir. Este tema<br />

foi depois retomado no debate final de quarta-feira, mas já aqui José Pedro<br />

Serra, eloquente, se manifestou desconfiado das “certezas sem a bordadura<br />

das dúvidas”, contra os professores que “procuram a docilidade dos<br />

alunos”. Foi um apelo à insubmissão e ao apelo a dar a amar as coisas<br />

amáveis. O caminho que propôs aos docentes foi o de “peneirar, seleccionar<br />

e hierarquizar” o conhecimento, para “dar a ver, dar a ouvir, dar a amar”.<br />

Homem da Filosofia, defendeu que os clássicos – tema que foi central na<br />

manhã de quarta-feira – são os que resistiram ao tempo e sempre tocaram<br />

as mais subtis cordas da alma. E usando uma palavra com que depois Maria<br />

João Seixas o atormentou durante o almoço (e é verdade, como disse<br />

ontem a Alice Vieira, que há coisas muito importantes que são ditas nos<br />

intervalos das sessões) “o maior risco de ignorar os clássicos é perder a<br />

incandescência da nossa demanda”. Exemplo máximo da incandescência,<br />

o livro que José Pedro Serra afirma que o moldou – a “Ilíada”.<br />

Mário Avelar começou por dizer que é possuidor de primeiras edições da<br />

“Praça da Canção” e de “O Canto e as Armas”, de Manuel Alegre, façanha<br />

que assume muitos significados e não meramente a de coleccionador de<br />

livros. Partiu da “Praça da Canção” para a literatura anglo-saxónica, em que<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

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XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

192<br />

se especializou, fazendo principalmente um roteiro das “viagens” entre as<br />

diferentes formas de arte – a literatura que nasce da pintura, da música, e<br />

em sentido inverso a música ou as imagens que nascem da literatura. Deu<br />

como exemplos o livro “Poezz”, antologia de poesia de língua portuguesa<br />

relacionada com jazz, recentemente editada, e também os video clips dos<br />

REM ou de Peter Gabriel. Porque, defendeu, o papel do educador está em<br />

distinguir o trigo do joio, acompanhar a novidade intelectual com o testemunho<br />

ético, numa sabedoria alicerçada. “Educar é fornecer ferramentas”<br />

e tentar evitar aquilo a que chamou o “sindroma de Zelig”, o camaleão que<br />

faz uma identificação acrítica com o politicamente correcto.<br />

Na tarde de ontem, o Auditório 2 ouviu três intervenções centrais sobre<br />

clássicos portugueses da literatura para crianças e jovens. Glória Bastos<br />

estabeleceu os pontos de contacto e as diferenças entre “Céu Aberto” de<br />

Virgínia de Castro e Almeida e “Portugal Pequenino” de Raul Brandão e Maria<br />

Angelina. José Carlos Seabra Pereira falou sobre a vida e a obra de Ana<br />

de Castro Osório e, no final, Alice Vieira falou sobre Adolfo Simões Müller.<br />

Violante Florêncio presidiu à mesa e relembrou um dos conceitos de Italo<br />

Calvino: “Os clássicos são os livros que constituem uma riqueza para quem<br />

os leu e amou”.<br />

Os três oradores fizeram abordagens diversas mas todos lamentaram a<br />

dificuldade de encontrar hoje no mercado as obras de que falaram, apelando<br />

à sua reedição. Vincaram as intenções didácticas de cada um destes<br />

escritores. Certamente estas intervenções vão ser impressas, mas deixo<br />

aqui a ideia de que os três oradores se mostraram pessimistas e classificaram<br />

mesmo de “crise” a situação actual em termos de textos literários para<br />

crianças – sublinhando que a ilustração está precisamente no pólo oposto,<br />

em grande florescimento.<br />

Para Alice Vieira, faz sobretudo falta um jornal ou revista de qualidade destinado<br />

aos mais novos, e no fim de contas ela estava a falar de Adolfo<br />

Simões Müller que criou o “Papagaio”, o “Diabrete” e o inesquecível “Cavaleiro<br />

Andante”, com o seu suplemento “O Pajem”. Lembrou mais um autor,<br />

Olavo d’Eça Leal, e o hilariante “Iratan e Iracema, os Meninos Mais Malcriados<br />

do Mundo”.<br />

A sessão da última manhã, a que provavelmente a maioria dos que aqui<br />

estão assistiu, foi muito participada e foi certamente a que envolveu mais<br />

polémica no debate. E tudo porque, mais uma vez, se falava de clássicos e<br />

de como as obras fundadoras devem chegar às novas gerações. O debate<br />

foi moderado por Paula Moura Pinheiro e juntou Ana Maria Magalhães, Olga<br />

Pombo, Marta Martins, José Pedro Serra, Ondjaki e Miguel Che Soares. O<br />

ponto de partida – “O que é um clássico?” – é naturalmente um ponto de


partida para mil e uma discussões. Em comum, todos os participantes têm<br />

o mesmo amor pelos seus clássicos – a menina que fala de um “vermelho<br />

devagarinho”, para Ondjaki, ou a “Ilíada” de José Pedro Serra ou o Sófocles<br />

que veio da assistência, trazido por Isabel Alçada. Mais do que discutir,<br />

convém explicar apenas que o que estava em causa era o percurso do<br />

professor para levar o aluno a gostar dos clássicos, os diferentes passos.<br />

Do chicote de Miguel Sousa Tavares passámos agora para a metáfora da<br />

piscina – do banho fatal para quem não sabe nadar até ao indispensável<br />

banho de cultura de que José Pedro Serra falou. Por onde começar, então?<br />

Suponho que todos estão de acordo que é importantíssimo conhecer os<br />

clássicos, mas cada um tem um caminho diferente para lá chegar. No fundo,<br />

cada um de nós percorreu um caminho muito próprio até aprender a<br />

apreciar e a eleger os clássicos que nos moldaram a vida.<br />

Agora, como estou aqui no papel de observadora e como, ao contrário do<br />

que me tinham dito sobre as edições anteriores destes encontros, verifiquei<br />

que o auditório não esteve cheio (e sublinho que a outra sala esteve a transbordar<br />

de gente interessada, como relatou a Isabel) deixo aqui algumas<br />

ideias minhas.<br />

Proponho que tragam aqui professores, se necessário a chicote, e que lhes<br />

seja dado participar numa reunião em que haja ideias concretas, pistas,<br />

sinais, de como podem levar os seus alunos a gostar de ler, mesmo que mais<br />

tarde venham a trabalhar numa bomba de gasolina. Que o próximo Encontro<br />

não coincida com um lastimável momento de estranhíssimo processo<br />

de colocação de professores, para que eles possam vir até cá, como nós<br />

viemos, conhecer escritores cujo trabalho amamos – a Matilde Rosa Araújo,<br />

a Luísa Ducla Soares, o António Torrado, a Alice Vieira, o António Mota - e<br />

que haja um alargamento a mais autores que aqui não encontrei – e que se<br />

calhar são os que estão a renovar os nossos paradigmas. E como gosto<br />

imenso de fazer de menina um bocadinho malcriada, também gostava de<br />

pedir que houvesse um bocadinho menos de filosofia e um bocadinho mais<br />

de experiências concretas, práticas, porque suponho que esta questão de<br />

alargar o gosto pela leitura nos preocupa a todos e tendemos a ter urgência<br />

em dar mais passos. Claro que devemos saber pensar, parar para reflectir, ir<br />

aos clássicos e duvidar das ideias feitas, mas sou muito pragmática e gosto<br />

de aprender caminhando.<br />

E como, apesar de tudo, sou um bocadinho bem-educada, quero agradecer<br />

à <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong>, ao seu serviço de Educação e Bolsas, à Maria<br />

Helena Melim Borges e à Ana Gaiaz o convite e a impecável organização do<br />

Encontro que aqui nos juntou.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

193


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

194<br />

Prof. Eduardo Marçal Grilo<br />

Sessão de Encerramento<br />

Muito obrigada à Isabel e à Ana por estes magnífi cos resumos. Como lhes<br />

foi pedido, transmitiram-nos as suas opiniões, e fi zeram um trabalho notável,<br />

de acompanhamento, de observação e de crítica ao Encontro.<br />

Eu queria, antes de encerrar, fazer duas ou três brevíssimas refl exões.<br />

A primeira tem a ver com o papel da <strong>Fundação</strong> nesta matéria.<br />

A <strong>Fundação</strong> tem como objectivo, com este tipo de Encontros e com o Prémio<br />

(porque o Encontro está associado à cerimónia de entrega dos prémios),<br />

proporcionar este debate, isto é, fazer com que, na <strong>Fundação</strong>, as<br />

pessoas se encontrem, conversem, tenham oportunidade de poder participar<br />

nestes debates de uma forma aberta, possam ouvir as pessoas que<br />

nós convidamos. Por vezes convidamos bem, outras vezes, se calhar, não<br />

convidamos tão bem. Acho que desta vez convidámos muito bem, todos<br />

os membros dos painéis são pessoas com um curriculum, um trabalho,<br />

uma acção, uma actividade constante nestas matérias e que enriqueceram<br />

enormemente este Encontro.<br />

Não tive ocasião de assistir a tudo, mas assisti a mais do que as pessoas<br />

pensam, porque assiste-se ali de cima sem estar aqui na sala.<br />

Quanto a haver recomendações ou haver conclusões, eu sou sensível à<br />

crítica da Ana, relativamente a um maior pragmatismo.<br />

Temos também que perceber que, infelizmente, as pessoas que vêm a estes<br />

debates são os convertidos, as pessoas que aqui estão vêm aqui, porque<br />

entendem que este tema é prioritário, é importante nas suas actividades,<br />

gostam destes temas, sabem que esta matéria tem uma importância muito<br />

grande nas suas vidas, enfi m, nas suas actividades profi ssionais.<br />

A maior parte são pessoas ligadas à Educação e, portanto, as recomendações<br />

que se poderiam fazer são aquelas que cada um tira por si, cada um<br />

dos participantes neste Encontro retira e leva seguramente as suas próprias<br />

recomendações, e é capaz de encontrar um sentido muito prático, e muito<br />

pragmático, para aquilo que aqui foi discutido e talvez com um pouco mais


de filosofia e teoria de acordo com a crítica da Ana, que eu aceito.<br />

O segundo grande objectivo da <strong>Fundação</strong> é incentivar os próprios criadores<br />

e acho que o temos feito não apenas nesta área. Procuramos fazê-lo não<br />

apenas na área da literatura para crianças, mas em muitas outras áreas. A<br />

<strong>Fundação</strong> funciona como um estímulo promovendo oportunidades e incentivos<br />

para os criadores, seja na área da Ciência, seja na área da Escrita, seja<br />

na área das Artes.<br />

O Miguel Sousa Tavares disse aqui, anteontem, uma coisa, que eu acho<br />

que é muito importante reter, é que nós vamos passar a distinguirmo-nos<br />

pelos que lêem e os que não lêem. E hoje isto já é muito claro, por exem-<br />

plo, há pessoas que consomem imenso televisão e nota-se, porque as pessoas<br />

têm uma agenda na cabeça e uns conteúdos na cabeça que se percebe<br />

que foram apanhados ali naquela coisinha rápida daqueles quinze<br />

segundos. Os americanos agora treinam os políticos para debates de nove<br />

segundos, em nove segundos, é preciso transmitir uma mensagem que as<br />

pessoas apanhem.<br />

Ora, eu julgo que num país que tem sessenta por cento da população com<br />

o máximo de seis anos de escolaridade, a nossa grande preocupação, pelo<br />

menos a minha, independentemente de clássicos ou não clássicos, é pôr<br />

as pessoas a ler, é tentar que as pessoas leiam e percebam que a leitura<br />

tem um efeito encantatório e fantástico, tão grande ou maior do que a televisão.<br />

A televisão tem esta capacidade da cor, do ritmo, da música, e tudo isto é<br />

muito atractivo, mas os livros têm um encanto muito maior.<br />

Eu permito-me dizer isto, mas houve aqui uma participante, na quarta feira,<br />

que me dizia que -“você está a dizer isto porque é sobre livros, se fosse<br />

sobre a Internet, você dizia o contrário, não é verdade?“.<br />

Ora digo isto com uma enorme convicção! E acho que a esmagadora maioria<br />

das pessoas que está aqui pensa desta forma.<br />

O livro tem um encanto enorme, muito maior do que qualquer programa em<br />

DVD, ou qualquer vídeo, ou algo que possamos ver na televisão.<br />

Isto significa que para nós o desafio é enorme!<br />

Sobretudo para quem contacta com as crianças e com os adolescentes e<br />

que tem a enorme responsabilidade de ser educador.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

195


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

196<br />

Acho que esta é uma matéria a que temos de ser muito sensíveis: somos<br />

um país em que ainda há muita coisa a fazer no sentido de atrair mais e<br />

mais jovens para a área da leitura, e do livro.<br />

A terceira questão, prende-se um pouco com a ideia do chicote.<br />

Eu acho que não há chicote e não acredito no chicote. Mesmo os chicotes<br />

da Internet não devem ser muito utilizáveis nesta matéria, falo daqueles que<br />

se vendem na Internet e a que o Henrique aqui se referiu.<br />

Agora, como é que se consegue que os miúdos tenham atracção pelo livro?<br />

Eu confesso que não sou especialista nesta matéria. A minha formação de<br />

base é engenharia mecânica, não é propriamente uma área muito próxima<br />

destas matérias. Mas, quando se tem netos a gente percebe como é que<br />

os miúdos reagem e eu gosto muito de ler histórias às minhas duas netas,<br />

sobretudo à mais velha que tem cinco anos. Mas, as histórias que ela mais<br />

gosta não são as histórias dos livros, há quatro ou cinco que ela vai escolhendo,<br />

mas quando eu lhe digo: - Matilde que história é que gostavas? Ela<br />

normalmente diz: - uma história da tua cabeça. Conta-me a história da tua<br />

cabeça.<br />

E eu vou inventando umas histórias, tant bien que mal, a gente acaba por<br />

ver muita coisa e acaba por ter capacidade de inventar e acabo por conseguir<br />

entretê-la durante meia hora ou vinte minutos. Mais de meia hora,<br />

às vezes, é mais complicado. É preciso ter uma capacidade de imaginação<br />

que, eu por vezes, ao fim do dia já não tenho. Os nautas e os cavalos com<br />

asas, aquelas coisas todas que nós vamos inventando que atraem miúdos<br />

enormemente. E atraem muito mais do que pela televisão, se “a hora do<br />

conto” for um encontro pessoal.<br />

Eu não me esqueço, confesso que já contei aqui isto uma vez, e não resisto<br />

a contar novamente.<br />

Eu tinha uma tia quando era miúdo, a tia Lucrécia, que era prima direita do<br />

meu pai, era uma pessoa muito idosa e uma contadora de histórias, contava<br />

histórias, tinha uma série de histórias na cabeça, que ela tinha decoradas,<br />

sempre na mesma sequência.<br />

Lembro-me, quando nós estávamos doentes – peço desculpa a quem já<br />

ouviu – em Castelo Branco e não havia televisão. Isto passa-se no início dos<br />

anos cinquenta, a minha tia era cega, no final da vida cegou eu já só a conheci<br />

cega e ela era trazida para nossa casa, vivia sozinha, o carro ia buscá-<br />

-la, ela vinha para o nosso quarto, sentava-se numa cadeira e desbobinava<br />

aquelas histórias todas na mesma sequência e eu lembro-me, coitadinha


da senhora, que já lá está, mas eu utilizava-a como uma espécie de vídeo,<br />

eu dizia-lhe: - Oh tia, agora esta, agora a outra. Ela andava para trás e para<br />

diante e contava as histórias todas e tinha histórias fantásticas.<br />

Lembro-me apenas de uma, muito recauchutada, porque eu não tenho<br />

aquela memória, não fixei e que conto a uma das minhas netas e ela adora<br />

e, de facto, é uma história cheia de movimento e cheia de animais e tudo<br />

aquilo. Eu ganhei o gosto pelos livros com esta minha tia, confesso, porque<br />

percebi que aquilo tinha que estar escrito num sítio qualquer, quer dizer<br />

não havia tia Lucrécia toda a vida, coitadinha!, depois morreu em 1961 e,<br />

obviamente, que fui atraído para um outro tipo de histórias, um outro tipo<br />

de contos que acabou por me proporcionar momentos inesquecíveis, ainda<br />

hoje falo nesta minha tia, eu e os meus irmãos, com alguma emoção.<br />

Portanto, eu acho que o chicote tem de ser inventado. Temos que inventar<br />

uma forma e cada um tem a sua forma de inventar.<br />

Há um conceito que eu não aceito muito bem, que é dos livros obrigatórios.<br />

É obrigatório ler este livro e isto diz-se a uma pessoa quando tem dez anos<br />

e quinze e vinte e quando tem quarenta e, até eu que tenho sessenta e dois,<br />

diz-se-lhe: - tens que ler este livro.<br />

Não tenho nada que ler o livro!<br />

Eu leio o livro que eu quiser!<br />

Esta coisa de se dizer de uma matéria, tu agora interessaste-te muito por<br />

isto, este livro é obrigatório. Quanto à ideia da obrigatoriedade do livro, que<br />

me desculpem alguns pedagogos, eu sou contra. Acho que cada um faz na<br />

sua cabeça a biblioteca que quiser e escreve na cabeça o livro dos livros<br />

que quiser.<br />

É essa a minha ideia, é por aí que eu acho que nós devemos ir. Isto é um<br />

pressuposto, contém o pressuposto que a Ana aqui referiu, e que a Isabel<br />

também o intuiu no que disse relativamente ao uso do computador e da<br />

Internet. Contido na frase que, salvo erro, foi dita por Pedro Rosa Mendes<br />

“é preciso que cada um tenha o seu próprio motor de busca”.<br />

Eu acho que isto é muito verdade, o Umberto Eco, aqui há três semanas,<br />

em Bolonha, numa conferência, terminou dizendo uma coisa fantástica: que<br />

com isto da Internet, hoje em dia, aquilo que era o conceito de enciclopédia,<br />

a partir do século XVIII, com o Diderot e d’Allambert, as enciclopédias são<br />

essencialmente trabalhos colectivos de equipas imensas de especialistas<br />

que as escrevem. Como Eco dizia, com o acesso à Internet, hoje, qualquer<br />

um dos seis biliões de terrestres que tenha acesso à Internet pode fazer a<br />

sua própria enciclopédia, desde que tenha capacidade para o fazer, isto é,<br />

desde que tenha capacidade de escolha, que tenha o tal motor de busca,<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

197


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

198<br />

que introduza os filtros que permitam retirar da Net aquilo que é a enciclopédia<br />

de cada um, nas mais diversas áreas.<br />

Ele, aliás, dizia uma coisa muito engraçada: que cada um poderá fazê-lo<br />

inclusivamente na sua própria língua, o problema depois é que as enciclopédias<br />

sejam lidas pelos outros cinco biliões, novecentos e noventa e nove,<br />

novecentos e noventa e nove e ele dizia, com alguma graça, nem Bruxelas<br />

tem intérpretes e tradutores para traduzirem os seis biliões das enciclopédias<br />

que cada um fizer e isto mostra, que o mais importante, antes do motor<br />

de busca, é a formação pessoal de cada um.<br />

É a formação de base de cada um, é o domínio da língua materna, é o<br />

domínio dos fundamentos da matemática, é o domínio dos conceitos essenciais,<br />

é o domínio da história, da geografia, de onde vimos, o que somos<br />

e para onde vamos.<br />

Eu acho que isto nos retorna e nos reporta àquilo que é a formação de base<br />

sobretudo nos primeiros anos da escolaridade, e a importância enorme que<br />

têm a parte do pré-escolar e dos quatro primeiros anos de escolaridade,<br />

para não falar na escolaridade obrigatória dos nove anos ou dos doze,<br />

como quiserem.<br />

A sexta nota é sobre o debate da comunicação social, que aqui foi proposto<br />

pelo Miguel e depois foi proposto e foi consolidado pelo Henrique e que a<br />

Ana, agora, reforçou.<br />

Nós, como tive a ocasião de dizer, na sessão de abertura, organizámos em<br />

1993 ou 94, se a memória não me falha, um debate sobre comunicação social,<br />

exactamente aqui nesta sala, sob a égide do Professor Ferrer Correia,<br />

que nessa altura era o Presidente da <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong>. Foi a primeira<br />

grande conferência organizada, da chamada série das Conferências do<br />

Presidente, sobre o tema Comunicação Social e os Direitos da Personalidade,<br />

que era uma questão que nos preocupava muito e eu reconheço que<br />

hoje, à velocidade a que tudo se alterou nos últimos dez anos, esse debate<br />

necessitará, talvez, de ser actualizado.<br />

Tentarei fazer por isso, proporcionar o debate, talvez até um pouco mais<br />

alargado, estendendo-o aos professores, aos técnicos de educação, e aos<br />

editores, em temas ligados à escrita e à literatura.<br />

É uma sugestão, recomendação, que nós seguramente vamos ter em conta.<br />

O último aspecto que eu gostava de referir são os agradecimentos.<br />

Gostava muito de agradecer, em primeiro lugar, a todas as pessoas que<br />

quiseram vir à <strong>Fundação</strong> nestes três dias, algumas que estiveram todo o<br />

Encontro, outras que estiveram apenas uma parte, e dizer-lhes do gosto


que é sempre para nós tê-los na <strong>Fundação</strong> <strong>Gulbenkian</strong>. Temos imenso gosto<br />

em que venham à <strong>Fundação</strong>, em que façam barulho na <strong>Fundação</strong>.<br />

A <strong>Fundação</strong> é um bocadinho sossegada de mais, quer dizer, as pessoas entram<br />

aqui, às vezes, como se entra numa igreja, fala-se baixo. Eu acho que<br />

as pessoas devem falar alto, gosto imenso que os miúdos venham aqui,<br />

gosto imenso que os miúdos encham estas salas, estes corredores e este<br />

hall com aquela berraria que anteontem aqui houve e que é muito saudável<br />

para todos nós.<br />

O segundo agradecimento é para todos os membros dos painéis, os coordenadores,<br />

os moderadores e os membros especialistas que aqui estiveram,<br />

escritores e comentadores, jornalistas e professores, para lhes<br />

agradecer muito, grande parte deles não é a primeira vez que colaboram<br />

connosco e, portanto, este é um agradecimento reforçado.<br />

Depois queria agradecer às nossas duas muito queridas observadoras, à<br />

Isabel e à Ana, por se terem disponibilizado para fazer este trabalho, que<br />

muito trabalho lhes deu, que lhes ocupou tempo, e que nós agradecemos<br />

muito.<br />

Finalmente queria, permitam-me que eu faça agora um agradecimento para<br />

dentro da casa, estes são os agradecimentos para o exterior mas dentro<br />

da casa. Queria agradecer muito aos serviços Centrais e ao seu Director,<br />

bem como ao Centro de Arte Moderna, pelo apoio que nos deram na organização<br />

do Encontro, e na própria exposição, e depois finalmente, last but<br />

not least - peço desculpa por dizer isto em inglês, porque é sempre desagradável,<br />

num sítio onde tanto se pugna pela língua portuguesa - mas queria<br />

agradecer muito ao Serviço de Educação e ao Dr. Manuel Carmelo Rosa,<br />

que é o Director do Serviço, mas, sobretudo, às duas pessoas que organizaram,<br />

conduziram e arcaram com a responsabilidade deste Encontro, a<br />

Maria Helena Borges e a Ana Gaiaz. Estão aqui as duas e quero dizer-lhes<br />

que, na minha perspectiva, o sucesso do Encontro se deve muito a elas e à<br />

capacidade organizativa que tiveram para o levar para a frente.<br />

E daqui por dois anos cá estaremos, se Deus quiser, para entregar prémios<br />

e para os receber para o XVII Encontro.<br />

Muito obrigado, muito boa tarde a todos e muito bom fim de semana.<br />

XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

199


XVI Encontro de Literatura para Crianças<br />

200<br />

um concurso, uma exposição, uma bienal<br />

ILUSTRARTE é uma oportunidade de reunir, no Barreiro, de dois em dois<br />

anos, ilustradores de livros para a infância, originais de ilustração, coleccionadores,<br />

editores e leitores, qualquer que seja a sua idade. Criar um espaço<br />

onde se veja e discuta a melhor ilustração para a infância mundial e consolidar<br />

o Barreiro como um dos pólos europeus de excelência, promotores<br />

desta arte, são ainda alguns dos objectivos desta bienal.<br />

Desafi aram-se ilustradores de livros para a infância de todo o mundo,<br />

principiantes ou consagrados, a participar enviando 3 trabalhos originais,<br />

inéditos ou publicados há menos de um ano. A 1ª edição da ILUSTRARTE<br />

contou com a participação maciça de 476 ilustradores de 32 países num<br />

total de 1428 ilustrações.<br />

O júri da 1ª edição contou com a presença de cinco personalidades de<br />

grande prestígio internacional na área da ilustração e do design: Henrique<br />

Cayatte (português, ilustrador e designer de comunicação), Lisbeth<br />

Zwerger (austríaca, ilustradora), Martin Jarrie (francês, pintor e ilustrador),<br />

Olivier Douzou (francês, ilustrador e editor) e Stefano Giovanonne (italiano,<br />

designer industrial).<br />

O Prémio ILUSTRARTE 2003 foi atribuído à ilustradora francesa Frédérique<br />

Bertrand. O júri atribuiu ainda 3 menções especiais aos ilustradores Chiara<br />

Carrer (Itália), Katja Gehrmann (Alemanha) e José Manuel Saraiva (Portugal)<br />

e seleccionou 50 ilustradores para a exposição, que esteve patente<br />

no Auditório Municipal Augusto Cabrita, de 1 a 30 de Novembro de 2003.<br />

Ao longo de 2004 a selecção esteve exposta no Centro de Arte de S. João<br />

da Madeira, no Porto no Museu das Belas Artes e ESAD, em Coimbra na<br />

<strong>Fundação</strong> Bissaya Barreto e no Teatro Gil Vicente e fi nalmente na galeria<br />

do Instituto Camões em Paris. O conjunto de obras expostas na <strong>Fundação</strong><br />

<strong>Calouste</strong> <strong>Gulbenkian</strong> durante o XVI Encontro de Literatura para Crianças é<br />

uma pequena selecção das 150 ilustrações da exposição original.<br />

Comissariada por Ju Godinho e Eduardo Filipe, ILUSTRARTE é uma iniciativa<br />

conjunta da Câmara Municipal do Barreiro e da VER P’RA LER – Associação<br />

pr’á ilustração de livros infantis.

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