Vigotski ea prática do psicólogo - Vigotski - Brasil
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VIGOTSKI E A PRÁTICA DO PSICÓLOGO<br />
em percurso da psicologia geral à aplicada *<br />
Achilles Delari Junior **<br />
L. S. <strong>Vigotski</strong> (1896‐1934): cria<strong>do</strong>r da teoria histórico‐cultural<br />
* **<br />
* Para referência: DELARI JR., A. <strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> psicó‐<br />
logo: em percurso da psicologia geral à aplicada. Mimeo.<br />
Umuarama, 2009. 40 p. (2ª versão)<br />
** Psicólogo pela UFPR, mestre em Educação pela Unicamp. E‐<br />
mail: delari@uol.com.br.<br />
SUMÁRIO<br />
Palavras iniciais.............................................................01<br />
1 Princípios éticos em psicologia histórico‐cultural.....03<br />
1.1 Contextualização e critérios axiológicos (...) ...........04<br />
1.2 Contradições enfrentadas pelo <strong>psicólogo</strong> (...).........08<br />
1.3 O méto<strong>do</strong> construtivo e a psicologia (...).................10<br />
2 Princípios de psicologia geral numa abordagem histó‐<br />
rico‐cultural...................................................................12<br />
2.1 Unidade psicofísica..................................................12<br />
2.2 Determinação da consciência pela existência (...) ..13<br />
2.3 Consciência: psiquismo propriamente humano .....17<br />
2.4 Consciência compreendida mediante unidades......20<br />
2.5 Psiquismo mediante sua gênese histórica...............25<br />
3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa aborda‐<br />
gem histórico‐cultural ..................................................30<br />
3.1 Princípios éticos em sua dimensão <strong>prática</strong>..............31<br />
3.2 Princípios de psicologia geral em sua dimensão práti‐<br />
ca...................................................................................32<br />
Para continuar o diálogo ..............................................37<br />
Referências ...................................................................38<br />
“Na futura sociedade, a psicologia será em r<strong>ea</strong>lidade a ciência<br />
<strong>do</strong> novo homem. Sem ela a perspectiva <strong>do</strong> marxismo e da<br />
história da ciência seria incompleta. Entretanto, esta ciência<br />
<strong>do</strong> novo homem será também psicologia. Por isso hoje man‐<br />
temos suas réd<strong>ea</strong>s em nossas mãos. Não há necessidade de<br />
dizer que esta psicologia se parecerá tão pouco com a atual,<br />
como, segun<strong>do</strong> as palavras de Espinosa, a constelação <strong>do</strong> Cão<br />
se parece com o cachorro, animal ladra<strong>do</strong>r (Ética, teorema<br />
17, Escólio)”<br />
— Lev <strong>Vigotski</strong> (1927/1991, p. 406) ***<br />
Palavras Iniciais<br />
Tem si<strong>do</strong> muito importante no <strong>Brasil</strong> a contribui‐<br />
ção da obra de Lev <strong>Vigotski</strong> à psicologia da educa‐<br />
ção e às <strong>prática</strong>s pedagógicas de mo<strong>do</strong> geral. As‐<br />
sim, pre<strong>do</strong>minantemente, sua obra tem si<strong>do</strong> apre‐<br />
sentada e discutida no contexto de cursos de for‐<br />
mação de educa<strong>do</strong>res, tanto quanto nas discipli‐<br />
nas da formação <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> ligadas aos temas<br />
<strong>do</strong> desenvolvimento humano e das relações de<br />
ensino‐aprendizagem formais ou não formais. Isso<br />
não é desproposita<strong>do</strong>. A educação tem um lugar<br />
fundamental na proposta de <strong>Vigotski</strong> para uma<br />
“nova psicologia”. Segun<strong>do</strong> ele “a educação é a<br />
primeira palavra que [a nova psicologia] mencio‐<br />
na” (VIGOTSKI, 1926/1991, p. 144). Isso implica<br />
mencionar a palavra “educação” numa acepção<br />
antropológica, isto é, conceber que só o ser hu‐<br />
mano é capaz de educar‐se, de aprender com a<br />
experiência histórica das gerações anteriores e<br />
assim constituir a sua própria vivência como ser<br />
singular. Entende‐se que o ato de educarmo‐nos,<br />
na família, na escola, nas demais instituições em<br />
que se estabeleçam nossas relações com outras<br />
pessoas, seja essencial na constituição das fun‐<br />
ções psíquicas propriamente humanas, de nossa<br />
*** Todas as citações para títulos que na bibliografia consta‐<br />
rem em língua estrangeira são de minha autoria exceto Vi‐<br />
gotski (1929/1989) e Puzirei (1989a) – cujas traduções <strong>do</strong><br />
inglês são da professora Enid Abreu Dobránszki. A marcação<br />
de duas datas, e.g. “1927/1991”, uma para a primeira publi‐<br />
cação ou término da redação da obra e outra para a publica‐<br />
ção que utilizei, será a<strong>do</strong>tada apenas para as obras de Vigots‐<br />
ki, com fins didáticos de contextualização histórica, por se<br />
tratar da referência principal <strong>do</strong> texto.
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
consciência em especial e nossa personalidade<br />
como um to<strong>do</strong>.<br />
Contu<strong>do</strong>, neste texto preten<strong>do</strong> relembrar que<br />
<strong>Vigotski</strong> não produziu exclusivamente uma psico‐<br />
logia educacional ou escolar, nem sua teoria se<br />
restringe a uma subdivisão das teorias da aprendi‐<br />
zagem. Ao contrário, trata‐se desde sua origem, e<br />
principalmente, de uma contribuição geral à psico‐<br />
logia concreta <strong>do</strong> homem (ver VIGOTSKI, 1929/<br />
1989, 1929/2000). A qual pode nos permitir pen‐<br />
sar a atuação <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> em diferentes contex‐<br />
tos práticos, como a promoção de saúde mental:<br />
nas <strong>prática</strong>s sociais comunitárias, nos sistemas<br />
públicos de saúde coletiva, nas relações de traba‐<br />
lho, entre outros... Tanto quanto em qualquer<br />
situação em que se efetivem simultan<strong>ea</strong>mente: (a)<br />
relações simbolicamente mediadas entre as pes‐<br />
soas, (b) constituição social de senti<strong>do</strong>s para tais<br />
relações e (c) significação para nossa própria vi‐<br />
vência no curso desse processo. Trabalharemos<br />
aqui com a concepção de que um <strong>psicólogo</strong> orien‐<br />
ta<strong>do</strong> pela abordagem histórico‐cultural, buscan<strong>do</strong><br />
compreender o ser humano na concretude de<br />
suas relações sociais, a um só tempo: situa‐o na<br />
especificidade delas (na família, no namoro, na<br />
escola, no trabalho, na vida comunitária, na luta<br />
por direitos civis, no lazer, na atividade lúdica, na<br />
criação artística, noutras instituições, etc.); e arti‐<br />
cula tais contextos específicos no conjunto sistê‐<br />
mico, inter‐funcional, dinâmico e contraditório da<br />
personalidade humana, no fluxo de seu desenvol‐<br />
vimento histórico.<br />
Por um la<strong>do</strong>, o que há de geral no psiquismo hu‐<br />
mano solicita contextualização. Se to<strong>do</strong> o ser hu‐<br />
mano é um constante tornar‐se, aquilo em que<br />
nos tornamos demanda situações r<strong>ea</strong>is para a<br />
r<strong>ea</strong>lização <strong>do</strong> nosso devir. Se to<strong>do</strong> o ser humano é<br />
um animal social, o nosso mo<strong>do</strong> de sermos sociais<br />
implica relações com outras pessoas que não nos<br />
estão pré‐determinadas e só acontecem no pró‐<br />
prio ato, por vezes tenso, de se estabelecerem e<br />
de se refazerem. Se to<strong>do</strong> o ser humano é um ser<br />
simbólico, o nosso próprio mo<strong>do</strong> de simbolizar as<br />
coisas, os outros e a nós mesmos está relaciona<strong>do</strong><br />
à linguagem que nossa sociedade e nossos grupos<br />
sociais criam e recriam para codificar sua experi‐<br />
ência histórica e dar‐lhe/impedir‐lhe acesso às<br />
novas gerações. Assim o devir, a sociabilidade e a<br />
significação, como características gerais da vida<br />
propriamente humana colocam‐nos, ao mesmo<br />
tempo, a necessidade de compreender o específi‐<br />
co de sua r<strong>ea</strong>lização para cada ser humano con‐<br />
creto. Por outro la<strong>do</strong>, a nossa vivência mais espe‐<br />
cífica, mais singular, mais situada e contextualiza‐<br />
da, não pode deixar de ter algo de geral, partilha‐<br />
<strong>do</strong> com nossos semelhantes. Posto que nossa<br />
própria personalidade não tem como r<strong>ea</strong>lizar‐se e<br />
desenvolver‐se senão em relação com outras pes‐<br />
soas, senão mediante processos sociais de signifi‐<br />
cação, senão no fluxo de uma gênese histórica.<br />
Esta, por sua vez, r<strong>ea</strong>liza‐se como um “tornarmo‐<br />
nos” humanos, que só acontece em relação com<br />
os <strong>do</strong>is primeiros critérios, mas não pode, para<br />
nós, por alguma contingência ou arranjo conjuntu‐<br />
ral, simplesmente “deixar de acontecer”, da noite<br />
para o dia, exceto no caso mesmo de a própria<br />
humanidade deixar de existir. Sen<strong>do</strong> assim, a a‐<br />
bordagem histórico‐cultural não se apresenta aqui<br />
como visão “relativista” na qual o homem poderia<br />
ser social ou não, simbólico ou não, histórico ou<br />
não, dependen<strong>do</strong> da situação... A caracterização<br />
<strong>do</strong> humano como ser social, simbólico e histórico,<br />
compõe um conceito pertinente à constituição<br />
ontológica mais profunda e elevada da condição<br />
humana, no interior da abordagem teórica à qual<br />
estamos nos referin<strong>do</strong>. Ao mesmo tempo, essa<br />
generalidade concretiza‐se em sua dialética com a<br />
especificidade da condição singular de cada socie‐<br />
dade, de cada tempo e espaço históricos, de cada<br />
classe e grupo sociais, de cada ser humano em<br />
particular. Deduz‐se assim que não se trata de<br />
uma abordagem que só seria aplicada a um único<br />
contexto específico de relações sociais, seja ele a<br />
escola, o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, as organizações<br />
comunitárias, as <strong>prática</strong>s terapêuticas e assim por<br />
diante. A psicologia histórico‐cultural busca com‐<br />
preender o ser humano, e assim ao seu contexto<br />
caberá articular sua condição genérica e vice ver‐<br />
sa.<br />
Partin<strong>do</strong> desse princípio, dirigin<strong>do</strong>‐me, nesse<br />
momento, às componentes <strong>do</strong> grupo de estu<strong>do</strong>s<br />
orienta<strong>do</strong> em “Teoria histórico‐cultural (sócio‐<br />
histórica) na <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>”, buscarei orga‐<br />
nizar uma breve introdução à contribuição de<br />
<strong>Vigotski</strong>, principal propositor da teoria histórico‐<br />
cultural 1 em psicologia. Neste texto introdutório,<br />
1 Segun<strong>do</strong> Valsiner e Van der Veer (1996) “teoria histórico‐<br />
cultural” é um termo cunha<strong>do</strong> por <strong>Vigotski</strong> e Luria para de‐<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
para fins de exposição, abordarei: (1) princípios<br />
éticos em psicologia histórico‐cultural; (2) princí‐<br />
pios de psicologia geral numa abordagem históri‐<br />
co‐cultural; e (3) orientações gerais à psicologia<br />
aplicada numa abordagem histórico‐cultural. Digo<br />
“para fins de exposição”, pois evidentemente a<br />
ética, a teoria e a <strong>prática</strong> são aspectos simultâneos<br />
da r<strong>ea</strong>lidade humana na qual se dá a construção<br />
tanto de uma obra como a de <strong>Vigotski</strong> quanto a de<br />
nossa aprendizagem acadêmica e atuação profis‐<br />
sional. Pese‐se que nossa consciência possa, para<br />
fins de sistematização e/ou organização, focar‐se<br />
mais num aspecto <strong>do</strong> que em outro, os demais<br />
nunca deixarão de estar presentes, de algum mo‐<br />
<strong>do</strong> ou em algum grau de generalidade. Nosso mo‐<br />
<strong>do</strong> prático de viver e relacionarmo‐nos engendra<br />
valores éticos. Nossos valores orientam <strong>prática</strong>s e<br />
opções por determina<strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s de teorizar o<br />
r<strong>ea</strong>l. Estes, por sua vez, (re)organizam ainda nos‐<br />
sas formas de agir e viver. Agin<strong>do</strong> e viven<strong>do</strong> r<strong>ea</strong>va‐<br />
liamos nossos conceitos, destituímos e/ou conso‐<br />
lidamos valores.<br />
Antes de seguir, cabe ainda dizer que minha forma<br />
de articular os conceitos aqui, tanto mais de mo<strong>do</strong><br />
tão abrevia<strong>do</strong> e introdutório, é uma produção<br />
minha com base nas leituras que venho fazen<strong>do</strong><br />
desde o final <strong>do</strong>s anos oitenta, articuladas às ex‐<br />
periências que tive, às vivências que nelas se cons‐<br />
tituíram e às que hoje também me perpassam.<br />
Assim como em psicanálise, em behaviorismo, ou<br />
qualquer abordagem em psicologia e demais ciên‐<br />
cias humanas, não há em teoria histórico‐cultural<br />
apenas uma leitura quanto ao significa<strong>do</strong> <strong>do</strong>s clás‐<br />
sicos. Minha orientação geral a qualquer pessoa<br />
nominar sua concepção de desenvolvimento humano, traba‐<br />
lhada, sobretu<strong>do</strong>, entre 1928 e 1931. Embora não comporte,<br />
portanto, toda a obra de <strong>Vigotski</strong>, serve para designá‐la como<br />
uma metonímia da parte pelo to<strong>do</strong>. O termo “teoria sócio‐<br />
histórica da atividade” foi cunha<strong>do</strong> mais tarde por Leontiev.<br />
No <strong>Brasil</strong> existe uma diversidade de denominações, as quais<br />
por sua vez implicam diferenças teóricas e meto<strong>do</strong>lógicas na<br />
interpretação <strong>do</strong> autor clássico como: sócio‐interacionismo,<br />
sócio‐construtivismo, abordagem sócio‐cultural, abordagem<br />
sócio‐histórico‐cultural, etc. Não nos cabe entrar no mérito<br />
das disputas por qual denominação seria mais correta ou<br />
mais fiel à teoria <strong>do</strong> autor, pois a diversidade de leituras faz<br />
parte <strong>do</strong> processo social da apropriação de qualquer obra.<br />
A<strong>do</strong>tarei a denominação “histórico‐cultural” por ser a que o<br />
próprio <strong>Vigotski</strong> teria cunha<strong>do</strong> e por ser a mais usada hoje na<br />
própria Rússia. Contu<strong>do</strong>, como diz <strong>Vigotski</strong> “O mais importan‐<br />
te é o significa<strong>do</strong>, e não o signo. Mude‐se o signo, preserve‐se<br />
o significa<strong>do</strong>” (1924/2009, p. 41).<br />
que me pergunte por onde seria melhor começar<br />
a ler <strong>Vigotski</strong>, não pode deixar de ser a de que se<br />
comece pelo próprio autor. Muitas vezes, disputas<br />
se erguem ao re<strong>do</strong>r de qual seria a melhor inter‐<br />
pretação ou o melhor comentário a um autor clás‐<br />
sico. Mas antes de avaliarmos os autores clássicos<br />
a partir de quem os lê, melhor seria avaliar tais<br />
leitores a partir <strong>do</strong>s primeiros. Nem sempre isso<br />
acontece na <strong>prática</strong> – algum grau de leitura intro‐<br />
dutória sempre é necessário. Mas saibamos ape‐<br />
nas que este texto é um posicionamento de um<br />
homem concreto com seus limites e potencialida‐<br />
des, que pode e deve ser questiona<strong>do</strong> em seguida,<br />
sob o critério da crítica e da leitura <strong>do</strong> próprio<br />
clássico a cujo estu<strong>do</strong> nos dedicaremos. De toda<br />
forma, as escolhas para as leituras a serem r<strong>ea</strong>li‐<br />
zadas não são neutras, e se orientam pela visão de<br />
mun<strong>do</strong> e pelas características de personalidade<br />
social de quem as indica. Tais aspectos serão ex‐<br />
plicita<strong>do</strong>s ao longo deste texto, justamente como<br />
convite ao diálogo e à composição coletiva.<br />
1 Princípios éticos em psicologia histórico‐<br />
cultural<br />
“O méto<strong>do</strong>, ou seja, o caminho segui<strong>do</strong>, é visto como<br />
um meio de cognição: mas o méto<strong>do</strong> é determina<strong>do</strong> em<br />
to<strong>do</strong>s os seus pontos pelo objetivo a que conduz”<br />
— <strong>Vigotski</strong> (1927/1996, p. 346)<br />
Quan<strong>do</strong> falo aqui de ética não me refiro aos pa‐<br />
drões de conduta que se formalizam em códigos<br />
de ética profissional, ou se normatizam em proce‐<br />
dimentos solicita<strong>do</strong>s por comitês de ética em pes‐<br />
quisa com seres humanos ou animais. Estes são<br />
importantes e necessários, mas refiro‐me antes ao<br />
campo <strong>do</strong>s princípios e valores mais gerais que<br />
permitem inclusive formular tais códigos e orien‐<br />
tar as normas de comitês como esses. Valores sem<br />
os quais eles se tornam destituí<strong>do</strong>s de senti<strong>do</strong> ou<br />
exerci<strong>do</strong>s apenas pelo motivo de fugir‐se à puni‐<br />
ção. Fazer ou deixar de fazer algo apenas pelo<br />
critério de não ser puni<strong>do</strong> em caso contrário é<br />
próprio <strong>do</strong> que poderíamos chamar de uma “ética<br />
fraca”. Uma ética substancial, sobretu<strong>do</strong>, diz res‐<br />
peito à reflexão <strong>do</strong> homem sobre os valores rela‐<br />
tivos ao caráter bom ou ruim de suas próprias<br />
ações em termos das conseqüências que elas ve‐<br />
nham a ter para nós e para nossos semelhantes.<br />
Historicamente, diferentes <strong>do</strong>utrinas éticas se<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
diferenciam, ademais, em termos <strong>do</strong> que definem<br />
como um “bem” a ser busca<strong>do</strong> e cuja ausência<br />
deve ser evitada. A ética, assim, nos diz mais de<br />
um “bem que se quer” <strong>do</strong> que de uma “punição<br />
da qual fugir”. Desse mo<strong>do</strong> as éticas que tiveram<br />
como valor e bem maior a felicidade, foram cha‐<br />
madas de “eudemonistas”. As que tiveram o pra‐<br />
zer como valor e bem maior se denominaram<br />
“he<strong>do</strong>nistas”. Àquelas que viam na utilidade das<br />
ações humanas o bem e o valor maior, pôde‐se<br />
chamar de “pragmatistas”. E assim por diante 2 .<br />
Pensemos então em qual poderia ser o valor cen‐<br />
tral para a perspectiva histórico‐cultural, valor que<br />
se constitui então como seu objetivo principal, sua<br />
meta, sem a qual nenhum méto<strong>do</strong> pode ser defi‐<br />
ni<strong>do</strong>.<br />
1.1 Contextualização geral e critérios axiológicos 3<br />
para um humanismo crítico na abordagem históri‐<br />
co cultural.<br />
Certamente reduzir cada <strong>do</strong>utrina ética a uma<br />
única palavra é temerário, tanto quanto cabe<br />
lembrar que pode haver duas ou mais <strong>do</strong>utrinas<br />
sob uma só categoria geral e porta<strong>do</strong>ras de traços<br />
específicos bem distintos – dependen<strong>do</strong>, por e‐<br />
xemplo, <strong>do</strong> que se define como felicidade, tere‐<br />
mos diferentes “eudemonismos”, e assim por<br />
diante. Contu<strong>do</strong>, só levantamos estes exemplos de<br />
mo<strong>do</strong> ilustrativo para articular o conceito de ética<br />
com o de um “bem” que se busca, que se almeja,<br />
que se tem então como valor maior. Trabalharei<br />
aqui com a interpretação de que a ética da obra<br />
de <strong>Vigotski</strong>, pautada em princípios marxistas, e<br />
como síntese ainda das demais tradições filosófi‐<br />
cas e culturais às quais este autor se filia (como o<br />
espinosismo ou a própria tradição judaica na qual<br />
foi educa<strong>do</strong> 4 ), pode ser adjetivada como “huma‐<br />
nista”, lato sensu. Não se trata <strong>do</strong> mesmo huma‐<br />
nismo cristão de Carl Rogers, ou ateu de J<strong>ea</strong>n‐Paul<br />
Sartre. Mas tem em comum com o deles o princí‐<br />
2 Para um estu<strong>do</strong> detalha<strong>do</strong> sobre a constituição histórica de<br />
diferentes <strong>do</strong>utrinas éticas, ver Vasquez (1975).<br />
3 Por “axiologia” enten<strong>do</strong> aqui apenas “discurso sistemático<br />
sobre os valores”, sobre sua hierarquia, sua apreciação e<br />
significação. O adjetivo “axiológico” aqui é utiliza<strong>do</strong> apenas<br />
com a acepção de “relativo aos valores éticos” e aos juízos<br />
que com eles se estabelecem na/para a orientação de nossa<br />
atividade vital e de nossa relação com outras pessoas no<br />
interior dela.<br />
4 Sobre a influência <strong>do</strong> judaísmo no pensamento de <strong>Vigotski</strong><br />
ver Friedgutt e Kotik‐Friedgutt (2008).<br />
pio de tomar o ser humano e a r<strong>ea</strong>lização de suas<br />
potencialidades como um valor que se não for o<br />
principal, também não pode deixar de ser consi‐<br />
dera<strong>do</strong> como imprescindível e inalienável ao seu<br />
projeto em psicologia. Sobretu<strong>do</strong>, cabe o desta‐<br />
que de que, na concepção de <strong>Vigotski</strong>, as potenci‐<br />
alidades humanas só se r<strong>ea</strong>lizam e se ampliam no<br />
âmbito da ação coletiva e em aliança com a alteri‐<br />
dade, com os outros sociais, não sen<strong>do</strong> seu foco<br />
ético uma r<strong>ea</strong>lização humana apartada daquela de<br />
nossos semelhantes, o outro não é impeditivo de<br />
nossa liberdade e r<strong>ea</strong>lização pessoal, mas uma das<br />
suas principais condições de possibilidade.<br />
Pode‐se interpretar que o valor da humanidade<br />
como bem a ser preserva<strong>do</strong> e cultiva<strong>do</strong>, <strong>do</strong> ponto<br />
de vista da ética presente na obra de <strong>Vigotski</strong>: (a)<br />
em primeiro lugar não se traduz como humanismo<br />
ingênuo nem liberal; e (b) em segun<strong>do</strong> lugar, con‐<br />
seqüentemente, demanda, frente a outras orien‐<br />
tações axiológicas, critérios próprios, como o seu<br />
entendimento quanto à superação, à cooperação<br />
e à emancipação. Com relação ao que aqui deno‐<br />
mino “humanismo ingênuo”, lembre‐se que pro‐<br />
priamente humanas não são só as denominadas<br />
“grandes r<strong>ea</strong>lizações”, expressões maiores de<br />
criação artística, solidariedade ou luta pela vida e<br />
o bem comum. Não basta algo ser humano para<br />
ser bom. Também são humanos, ausentes noutros<br />
animais, muitos atos de crueldade, degradação da<br />
natureza e autodestruição da espécie. Tristes e‐<br />
xemplos de ganância, expropriação, intolerância,<br />
terrorismo, tortura, genocídio, destruição em<br />
massa, da<strong>do</strong>s ora pelo capitalismo fascista ou<br />
liberal ora até mesmo por certas orientações no<br />
dito “socialismo r<strong>ea</strong>l”, são, infelizmente, também<br />
r<strong>ea</strong>lizações humanas. Karl Marx dissera ser sua<br />
frase preferida um dizer de Terêncio: “Sou homem<br />
e nada <strong>do</strong> que é humano eu considero alheio a<br />
mim”. Os males da humanidade fazem parte <strong>do</strong><br />
que somos, reconhecermo‐nos como humanos é<br />
ver bens e males coletivos como algo de que so‐<br />
mos to<strong>do</strong>s potencialmente capazes e, em alguma<br />
medida, até mesmo responsáveis. A ética huma‐<br />
nista que nos importa não elevará qualquer ato<br />
humano a valor maior. Portanto, a ela cabe acres‐<br />
centar critérios diferencia<strong>do</strong>res frente ao huma‐<br />
nismo ingênuo, <strong>do</strong>s quais trataremos adiante.<br />
Outro aspecto que solicita critérios para definir de<br />
qual humanismo se trata, é o de não confundir<br />
toda ética que dá à humanidade valor central,<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
com uma visão “liberal” de ser humano. O libera‐<br />
lismo como ideologia de sustentação de uma clas‐<br />
se social ascendente com o advento <strong>do</strong> capitalis‐<br />
mo, coloca o “homem no centro” (antropocen‐<br />
trismo), em oposição à visão hegemônica na Idade<br />
Média, da “divindade no centro” (teocentrismo).<br />
Mas de que “homem” se tratava? Sem nos alon‐<br />
garmos, apenas recordemos o que diferentes au‐<br />
tores críticos já vêm alertan<strong>do</strong> há algum tempo. O<br />
conceito de homem <strong>do</strong> liberalismo surgi<strong>do</strong> na<br />
Europa, com a modernidade, o advento <strong>do</strong> capita‐<br />
lismo e a ascensão da burguesia, envolve um privi‐<br />
légio de certo modelo masculino, branco, euro‐<br />
peu, adulto, heterossexual, letra<strong>do</strong>, proprietário,<br />
entre outros traços. O que flagra que, ao tentar‐se<br />
apresentar a idéia de tal ser humano constituir<br />
valor universal, ao mesmo tempo se impunha às<br />
mais diversificadas manifestações da vida e cultu‐<br />
ra humana um modelo deriva<strong>do</strong> de interesses<br />
particulares, próprios de uma classe social restrita.<br />
Não sem razão, Paul‐Michel Foucault (1995; 2009)<br />
é sério crítico <strong>do</strong> humanismo ocidental moderno<br />
hegemônico, entenden<strong>do</strong> que ele seja uma inven‐<br />
ção social questionável tanto quanto o próprio<br />
conceito atual de “homem”, o qual já indicaria seu<br />
fim próximo. Ademais, o conceito liberal de ho‐<br />
mem é, sobretu<strong>do</strong>, foca<strong>do</strong> na nossa existência<br />
individual e na noção de que nossa liberdade é a<br />
priori para cada um de nós, algo que “nasce co‐<br />
nosco”. Trata‐se da ideologia de que se to<strong>do</strong>s so‐<br />
mos naturalmente livres para vender nossa força<br />
de trabalho e para prosperar com nossos empre‐<br />
endimentos pessoais, o fracasso ou sucesso de<br />
cada um será devi<strong>do</strong> exclusivamente aos seus<br />
méritos e defeitos individuais.<br />
Se a ética humanista que se insinua na psicologia<br />
de <strong>Vigotski</strong> não se pauta no critério ingênuo <strong>do</strong><br />
homem como ser essencialmente bom, nem no<br />
liberal com foco na sua r<strong>ea</strong>lização individual, quais<br />
critérios acrescentar para o valor da<strong>do</strong> ao humano<br />
nessa abordagem, se ela ainda não advoga a<br />
“morte <strong>do</strong> homem”? Na minha compreensão, há<br />
pelo menos três ações próprias ao ser humano às<br />
quais a abordagem histórico‐cultural não valoriza<br />
só em tese, mas também busca construir através<br />
de sua <strong>prática</strong> social, às quais podemos, de mo<strong>do</strong><br />
conciso, nom<strong>ea</strong>r como: (a) superação, (b) coope‐<br />
ração e (c) emancipação. A noção de superação<br />
em <strong>Vigotski</strong>, entendida como ato e necessidade de<br />
superarmo‐nos, de irmos além <strong>do</strong>s nossos limites<br />
atuais, é ressaltada pelo estudioso russo Andrei<br />
Puzirei como algo que manifesta “as finalidades e<br />
os valores fundamentais presentes em to<strong>do</strong> o<br />
pensamento de <strong>Vigotski</strong>” (PUZIREI, 1989b, p. 16 ‐<br />
grifos na fonte). Uma leitura mais rigorosa da obra<br />
de <strong>Vigotski</strong> nos permite identificar nela uma forte<br />
“orientação ao ‘supremo’ no homem ou, para<br />
dizê‐lo com palavras de Dostoiévski, ao ‘homem<br />
no homem’, à sua organização psíquica e espiritu‐<br />
al, desde o ponto de vista <strong>do</strong> que pode ser, em<br />
geral, o homem e <strong>do</strong>s caminhos que existem para<br />
este esta<strong>do</strong> possível, <strong>do</strong>s caminhos que abre, em<br />
particular, a arte e a psicologia da arte.” (PUZIREI,<br />
1989b, p. 16 ‐ grifos na fonte). Tal orientação da<br />
abordagem histórico‐cultural ao que “podemos<br />
ser”, ao que podemos alcançar de “supremo”, no<br />
senti<strong>do</strong> de mais eleva<strong>do</strong>, mais avança<strong>do</strong>, implica,<br />
em outras palavras, que se vê o humano tanto<br />
como ser apto a ir além de seus limites, quanto<br />
como o que só se r<strong>ea</strong>liza quan<strong>do</strong> se supera. Con‐<br />
tu<strong>do</strong>, r<strong>ea</strong>lizarmo‐nos como humanos, é algo que<br />
pode ocorrer ou não, em função de dadas condi‐<br />
ções materiais, concretas. Uma das principais<br />
condições concretas para a superação humana é a<br />
cooperação entre as pessoas.<br />
Enquanto a ideologia liberal valoriza a competição<br />
como força motriz da superação humana, a tradi‐<br />
ção à qual <strong>Vigotski</strong> se filia discorda de que um ser<br />
humano só avance quan<strong>do</strong> outro é sobrepuja<strong>do</strong><br />
ou derrota<strong>do</strong>. Se aquela visão supõe o “homem<br />
como lobo <strong>do</strong> homem”, e o outro como alguém a<br />
temer ou subjugar, esta supõe que até para ser‐<br />
mos indivíduos necessitamos a presença e os cui‐<br />
da<strong>do</strong>s de outras pessoas para conosco. Se consi‐<br />
derarmos o simples fato da fragilidade <strong>do</strong> “filhote<br />
humano” e o tempo que demora para poder ga‐<br />
rantir por conta própria a sua sobrevivência, já<br />
teremos noção <strong>do</strong> quanto necessitamos colabora‐<br />
ção de alguém para virmos a ser nós mesmos e<br />
quanto podemos nos fazer necessários para al‐<br />
guém vir a ser ele próprio... Isso pode ser ilustra<strong>do</strong><br />
na própria teoria <strong>do</strong> desenvolvimento da persona‐<br />
lidade e das funções da linguagem, <strong>do</strong> signo, se‐<br />
gun<strong>do</strong> <strong>Vigotski</strong>. Para ele, a função das primeiras<br />
palavras não é, como se pensa, estritamente afe‐<br />
tiva, "expressar emoções", mas primordialmente<br />
indicativa, para "pedir ajuda". O primeiro propósi‐<br />
to da linguagem "é, antes de tu<strong>do</strong>, um pedi<strong>do</strong> de<br />
ajuda, uma chamada de atenção e, por conseguin‐<br />
te, a primeira transposição <strong>do</strong>s limites da persona‐<br />
lidade, isto é, uma colaboração..." (VIGOTSKI,<br />
1931/2000a, p. 338). Ainda assim, a necessidade<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 5 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
de atuar junto a mais alguém para avançar em<br />
nossos potenciais não se restringe a aprendermos<br />
a andar, a falar, a cuidar de nossa própria higiene,<br />
a ler e escrever ou a contar. Por toda vida há situ‐<br />
ações em que a superação de nossos limites exige<br />
a presença de outrem, mais experiente, que pro‐<br />
porcione mediações necessárias e a quem dirija‐<br />
mos solicitações. Se desejo aprender uma língua<br />
estrangeira, a exercer uma profissão ou a <strong>do</strong>minar<br />
alguma arte, devo recorrer a outros. Mas não se<br />
restringe a necessidade de cooperação a obter<br />
instrução de alguém mais experiente: também<br />
cooperamos com nossos pares, aprendemos com<br />
amigos, colegas, familiares. E ainda com as crian‐<br />
ças, os mais novos, menos experientes que nós,<br />
seja por sua perspicácia, seja por lhes tentarmos<br />
ensinar algo – momento talvez em que mais de‐<br />
vemos nos superar.<br />
Se para nos tornarmos nós mesmos necessitamos<br />
<strong>do</strong> outro, caberia eticamente lembrarmos que<br />
para irmos além <strong>do</strong> que já somos, o outro também<br />
é alia<strong>do</strong> essencial. Contu<strong>do</strong>, se não somos egoístas<br />
por natureza (humanismo liberal) também não<br />
somos altruístas por natureza (humanismo ingê‐<br />
nuo). A cooperação é condição inevitável para o<br />
avanço de nossos potenciais, mas isso não signifi‐<br />
ca que toda e qualquer relação social nos permita<br />
ir além. De fato, poderíamos ainda acrescentar<br />
que nem toda cooperação, sen<strong>do</strong> para o bem de<br />
um da<strong>do</strong> grupo, necessariamente o é para o bem<br />
da humanidade. Fascistas podem cooperar visan‐<br />
<strong>do</strong> a derrota da democracia, liberais podem coo‐<br />
perar forman<strong>do</strong> cartéis monopolistas, dizen<strong>do</strong>‐se<br />
democratas, etc. Então, nesses casos, a superação<br />
pode estar sen<strong>do</strong> vista não como um constante<br />
processo de to<strong>do</strong>s e cada um desafiarem seus<br />
próprios limites e tornarem‐se melhores em al‐<br />
gum aspecto de sua personalidade, profissão ou<br />
trabalho criativo, mas apenas como uma forma<br />
obter mais benefícios pessoais ou corporativos e<br />
prevalecer‐se sobre os demais. Pode haver então<br />
formas de cooperação em função da restrição <strong>do</strong><br />
potencial de avanço <strong>do</strong> outro, e até mesmo em<br />
função de subjugá‐lo e destruí‐lo. O crime organi‐<br />
za<strong>do</strong> poderia ser um exemplo <strong>do</strong>s mais comuns, e<br />
mesmo as guerras não deixam de ser algo seme‐<br />
lhante, ainda que num plano político bem distinto<br />
– o que têm de similar é a cooperação de um cole‐<br />
tivo para a destruição <strong>do</strong> inimigo como um ganho<br />
e uma meta. Desse mo<strong>do</strong>, se nem toda ação con‐<br />
junta leva a um aumento de força que tenha em<br />
conta uma cooperação mais generalizada e uma<br />
superação mais elevada, cabe articular esses <strong>do</strong>is<br />
primeiros critérios para o humanismo próprio à<br />
abordagem histórico‐cultural a mais um terceiro e<br />
decisivo: a busca da emancipação humana. Em<br />
outras palavras: o valor ético da conquista e ma‐<br />
nutenção da liberdade, no seu senti<strong>do</strong> mais pro‐<br />
fun<strong>do</strong> e substancial.<br />
Dizer que o conceito de liberdade em <strong>Vigotski</strong> não<br />
é liberal poderá confundir o leitor, mas é preciso<br />
que se entenda que se trata justamente disso. O<br />
conceito de liberdade é uma construção da huma‐<br />
nidade que veio sofren<strong>do</strong> várias alterações na<br />
história <strong>do</strong> ocidente, desde a antiga polis grega ao<br />
ideário da Revolução Francesa e desse ao sonho<br />
socialista, nunca plenamente r<strong>ea</strong>liza<strong>do</strong>, ou à pro‐<br />
posta anarquista auto‐gestionária, também pou‐<br />
cas vezes concretizada. Desse mo<strong>do</strong>, carregan<strong>do</strong><br />
origens histórico‐sociais diversas, os senti<strong>do</strong>s para<br />
a palavra “liberdade” também seguem sen<strong>do</strong> hoje<br />
os mais varia<strong>do</strong>s. Desde os mais ingênuos aos<br />
mais críticos, <strong>do</strong>s mais id<strong>ea</strong>listas aos mais concre‐<br />
tos, <strong>do</strong>s mais demagógicos aos mais francos, <strong>do</strong>s<br />
mais racionalistas aos mais apaixona<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong><br />
digo que o conceito de <strong>Vigotski</strong> não é liberal, refi‐<br />
ro‐me ao liberalismo como ideologia política pró‐<br />
pria <strong>do</strong> conceito europeu <strong>do</strong>minante desde a as‐<br />
censão da burguesia como classe hegemônica.<br />
Sem nos alongarmos sobre esse ponto, reitera‐se<br />
o já destaca<strong>do</strong> acima: o conceito liberal de liber‐<br />
dade, tanto quan<strong>do</strong> o de humanismo, é pauta<strong>do</strong><br />
fundamentalmente numa concepção individualis‐<br />
ta de mun<strong>do</strong>. A qual, mais das vezes, é sustentada<br />
por um discurso naturalista, pelo qual as diferen‐<br />
ças individuais são fruto exclusivo da herança ge‐<br />
nético‐molecular, e os méritos das pessoas são<br />
trata<strong>do</strong>s como <strong>do</strong>ns, capacidades abstratas, com<br />
as quais foram agraciadas independentemente de<br />
educação social ou desenvolvimento histórico.<br />
Supõe‐se, portanto, que um autor como <strong>Vigotski</strong>,<br />
cujas bases filosófico‐meto<strong>do</strong>lógicas estão forte‐<br />
mente articuladas com uma tradição da ontologia<br />
<strong>do</strong> ser social marxista, não teria um conceito libe‐<br />
ral de liberdade ou de emancipação humana. Há<br />
<strong>do</strong>is pontos que cabe destacar no conceito de<br />
liberdade/emancipação em <strong>Vigotski</strong>: (a) trata‐se<br />
de uma conquista não um pressuposto; (b) é uma<br />
conquista que se obtém cooperan<strong>do</strong> com alguém<br />
e não sozinho.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 6 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
Não há necessidade aqui de optarmos pela pala‐<br />
vra “liberdade” em preferência à “emancipação”,<br />
nem o contrário. Contu<strong>do</strong>, entenda‐se que ao<br />
falarmos em “liberdade” concebemos o processo<br />
de permanentemente obtê‐la, e não como um<br />
esta<strong>do</strong> id<strong>ea</strong>l que atingi<strong>do</strong> faz cessar a necessidade<br />
de buscá‐lo. E por “emancipação”, entenda‐se o<br />
mesmo, ainda que a terminação da palavra talvez<br />
ajude a nos sugerir uma idéia de “ação”, portanto<br />
“movimento”. O bebê humano é o mais depen‐<br />
dente de to<strong>do</strong>s os filhotes conheci<strong>do</strong>s, o que nas‐<br />
ce menos prepara<strong>do</strong>, o que demora mais tempo<br />
para atingir a forma adulta, o que precisa mais<br />
aquisições <strong>do</strong> ambiente para justamente poder<br />
lidar com ele. Sen<strong>do</strong> assim, é certo que não nas‐<br />
cemos livres, nem autônomos. Portanto, to<strong>do</strong> um<br />
desenvolvimento humano é necessário para con‐<br />
quistar maior autonomia, liberdade de pensamen‐<br />
to e de ação, ou mesmo independência afetiva.<br />
Esse curso de desenvolvimento, na concepção de<br />
<strong>Vigotski</strong>, vai “<strong>do</strong> social ao individual”. A ênfase é<br />
distinta da de autores como Freud e Piaget (ver<br />
BRUNER, 2005), para quem a criança é um ser<br />
individual que só progressivamente se socializa.<br />
Na perspectiva da abordagem histórico‐cultural,<br />
nascemos já em mun<strong>do</strong> social, e só podemos nos<br />
manter vivos se em contato com outras pessoas.<br />
Assim, pela mediação delas, processualmente,<br />
vamos nos diferencian<strong>do</strong> e nos “subjetivan<strong>do</strong>”,<br />
toman<strong>do</strong> consciência de nossa própria existência,<br />
constituin<strong>do</strong> nosso mun<strong>do</strong> priva<strong>do</strong> e assumin<strong>do</strong><br />
um lugar específico no mun<strong>do</strong> público no qual já<br />
estávamos situa<strong>do</strong>s desde sempre.<br />
Desse mo<strong>do</strong>, não há qualquer liberdade a ser<br />
constituída que não passe pela relação com os<br />
outros. As próprias regras que, desde pequenos,<br />
aprendemos com os adultos e com outras crian‐<br />
ças, são condição de possibilidade para o alcance<br />
de maior autonomia e liberdade de pensamento,<br />
ação e afeto, e não necessariamente impedimen‐<br />
to. As modalidades de relação social que sejam<br />
impeditivas da autonomia humana não são consi‐<br />
deradas, como em outras teorias, algo natural e<br />
regra inevitável <strong>do</strong> desenvolvimento psicológico,<br />
mas formas historicamente constituídas que po‐<br />
dem pre<strong>do</strong>minar ou não. As quais, por sua vez,<br />
estão em constante tensão com aquelas relações<br />
que proporcionam o avanço para mo<strong>do</strong>s mais<br />
integra<strong>do</strong>s de compor com o mun<strong>do</strong> e de obter e<br />
exercer maior poder de r<strong>ea</strong>lização junto a ele.<br />
Pensemos apenas no exemplo da brincadeira da<br />
criança, na qual para haver um simples jogo são<br />
necessárias regras, mas brincar não só nos pode<br />
ser aprazível, como também permitir‐nos ir além<br />
<strong>do</strong> que está posto de imediato frente aos nossos<br />
olhos, avançan<strong>do</strong> ao distante no tempo ou no<br />
espaço no ato da imaginação cria<strong>do</strong>ra. Por fim<br />
poderíamos, de passagem, destacar que, em Vi‐<br />
gotski, o conceito de liberdade alia‐se ao de von‐<br />
tade, o qual por sua vez se traduz pelos atos hu‐<br />
manos que envolvem uma tomada de decisão,<br />
uma escolha. Diante de duas opções o ser humano<br />
necessita um ato volitivo para decidir o que have‐<br />
rá de obter (r<strong>ea</strong>lizar) e o que haverá de perder<br />
(deixar de r<strong>ea</strong>lizar). Nessa decisão, na tensão que<br />
ela envolve, está posta nossa possibilidade de<br />
superação com relação aos determinantes de<br />
cunho estritamente condiciona<strong>do</strong>s pelos estímu‐<br />
los <strong>do</strong> meio. Essas ações de escolher, por sua vez,<br />
passam por um processo de desenvolvimento ao<br />
longo de nossas vidas, que é o desenvolvimento<br />
de nossa própria vontade ou “volição”.<br />
Em seu estu<strong>do</strong> sobre o “<strong>do</strong>mínio da própria con‐<br />
duta”, <strong>Vigotski</strong> (1931/2000b) explora mais deta‐<br />
lhadamente esses aspetos. Num da<strong>do</strong> momento,<br />
ele retoma Marx e Engels para destacar que “o<br />
livre arbítrio (...) não significa mais <strong>do</strong> que a capa‐<br />
cidade de tomar decisões com conhecimento <strong>do</strong><br />
assunto” (apud VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 300).<br />
Desse mo<strong>do</strong>, as decisões mais livres não seriam<br />
aquelas que tão somente se toma com base no<br />
impulso, no fazer “como eu quero” ou “tu<strong>do</strong> que<br />
quero”, como dito no senso comum – pelo qual a<br />
ideologia liberal perpassa. Até porque uma ação<br />
tão somente “por querer”, sem que se intuam os<br />
motivos pelos quais se deseja, pode não ser tão<br />
livre quanto se imagine. Nota‐se que o conceito<br />
de liberdade alia<strong>do</strong> ao processo de tomada de<br />
consciência crítica, isto é, de percepção da dinâ‐<br />
mica contraditória <strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l, lembra o conceito es‐<br />
pinosiano de emancipação, como relativa à supe‐<br />
ração das nossas superstições. Ou seja, de supera‐<br />
ção de paixões tristes, de receios, idéias e afetos,<br />
que nos imobilizem, por desconhecermos as cau‐<br />
sas r<strong>ea</strong>is das coisas. E também por, desse mo<strong>do</strong>,<br />
ignorarmos as nossas próprias possibilidades e<br />
limitações com relação à transformação ou manu‐<br />
tenção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que aí está. <strong>Vigotski</strong> assume,<br />
embora não explicite em quais termos, a identifi‐<br />
cação de seus id<strong>ea</strong>is éticos com os de Baruch de<br />
Espinosa: “Não podemos deixar de assinalar que<br />
nossa idéia da liberdade e o auto<strong>do</strong>mínio coincide<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 7 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
com as idéias que Espinosa desenvolveu em sua<br />
“Ética”” (VIGOTSKI, 1931/2000b, p. 301). Caberá<br />
aprofundar as formulações aqui apresentadas.<br />
Mas, articulan<strong>do</strong> indícios e arriscan<strong>do</strong> nossa pró‐<br />
pria interpretação, cabe ainda relacionar o ideário<br />
emancipatório em <strong>Vigotski</strong> com a busca social (na<br />
então União Soviética) de desenvolver o chama<strong>do</strong><br />
“novo homem socialista”. Tal noção implicaria a<br />
ampliação das capacidades simbólicas e culturais<br />
de cada pessoa num contexto societário livre da<br />
expropriação de uma classe por outra (ver VI‐<br />
GOTSKI, 1930/1994). Isto pode ser sintetiza<strong>do</strong> no<br />
dito marxiano sobre o movimento de irmos “<strong>do</strong><br />
reino da necessidade, para o reino da liberdade”.<br />
Algo que ainda não aconteceu na história da hu‐<br />
manidade.<br />
1.2 Contradições enfrentadas pelo <strong>psicólogo</strong> que<br />
se orienta por um humanismo crítico e o critério<br />
ontológico da historicidade como recurso perti‐<br />
nente<br />
Uma vez que a ética humanista própria à perspec‐<br />
tiva histórico‐cultural, tal como lida aqui, implica<br />
um movimento de negação <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong>minan‐<br />
tes, bem poderíamos atribuir a tal humanismo o<br />
adjetivo de “crítico”. Contu<strong>do</strong>, apenas o façamos<br />
com o cuida<strong>do</strong> de não substantivar esse adjetivo,<br />
para não criar rótulos que mais sirvam para dis‐<br />
tanciar pessoas com metas comuns <strong>do</strong> que para<br />
aproximá‐las em projetos de cooperação por um<br />
bem maior, o que nos faria entrar numa luta inco‐<br />
erente por decidir qual seria o “melhor humanis‐<br />
mo”. Até porque “humanista” já fora desde o iní‐<br />
cio um adjetivo para dada ética. De qualquer ma‐<br />
neira, no nosso caso, a crítica é também um crité‐<br />
rio fundamental para a psicologia de orientação<br />
histórico‐cultural. Disse Karl Marx que: “é certo<br />
que a arma da crítica não pode substituir a crítica<br />
das armas, que o poder material tem que ser der‐<br />
roca<strong>do</strong> pelo poder material, mas também a teoria<br />
se transforma em poder material logo que se apo‐<br />
dera das massas. A teoria é capaz de se apoderar<br />
das massas quan<strong>do</strong> argumenta ad hominem, e<br />
argumenta ad hominem quan<strong>do</strong> se torna radical:<br />
ser radical é tomar as coisas pela raiz. Mas a raiz,<br />
para o homem, é o próprio homem” (apud CHA‐<br />
SIN, 1999, p. 9). Assim a crítica só é pertinente se<br />
argumenta “ad hominem”, não aqui no senti<strong>do</strong><br />
vulgar de argumentar “contra o homem”, desqua‐<br />
lifican<strong>do</strong> as características pessoais <strong>do</strong> outro para<br />
assim destituir de valor o seu argumento sem,<br />
contu<strong>do</strong>, mostrar em que tal argumento é falho –<br />
recurso muito usa<strong>do</strong> por alguns advoga<strong>do</strong>s, jorna‐<br />
listas, políticos e pseu<strong>do</strong>‐intelectuais. Mas sim no<br />
senti<strong>do</strong> mais profun<strong>do</strong> de argumentar “junto ao<br />
homem”, interpelan<strong>do</strong>‐o em sua existência con‐<br />
creta, pedin<strong>do</strong>‐lhe coerência entre palavras e vi‐<br />
vências, falan<strong>do</strong>‐lhe de coisas que lhe digam res‐<br />
peito pessoalmente e não apenas “em abstrato”,<br />
solicitan<strong>do</strong>‐lhe responsabilidade e tomada de<br />
atitude.<br />
Evidentemente, para virmos um dia a argumentar<br />
assim precisaremos voltar o mesmo recurso para<br />
nós mesmos – <strong>do</strong> contrário, na ética <strong>do</strong> discurso<br />
poderá pre<strong>do</strong>minar a ação estratégica sobre a<br />
comunicativa 5 , nos termos de Habermas (1989).<br />
De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, se no exemplo de Puzirei o “ho‐<br />
mem no homem” é o que se extrai para o mais<br />
alto, na fala de Marx é o que se retira <strong>do</strong> profun‐<br />
<strong>do</strong>, em suas raízes, ou seja, em nós mesmos –<br />
animais simbólicos, sociais e históricos. Sen<strong>do</strong><br />
assim, a r<strong>ea</strong>lização da emancipação, como con‐<br />
quista permanente de maior liberdade será social<br />
não apenas porque cada indivíduo precisa se rela‐<br />
cionar com outras pessoas para desenvolver sua<br />
capacidade de escolher, decidir voluntariamente,<br />
mas também por algo mais. O processo social de<br />
emancipação humana não é relativo só à emanci‐<br />
pação de cada um, mas à de to<strong>do</strong> o conjunto da<br />
sociedade, na construção de <strong>prática</strong>s democráti‐<br />
cas de convívio e de gestão <strong>do</strong> que é de interesse<br />
público. Sabemos, contu<strong>do</strong>, que em nossa socie‐<br />
dade, as restrições são fortíssimas. Nossa demo‐<br />
cracia é frágil, nossas instituições não são confiá‐<br />
veis. E a ideologia de uma “liberdade” em termos<br />
liberais, de jargões como “cada um para si” ou<br />
“leve vantagem você também”, é hegemônica.<br />
Colocamo‐nos diante de certo dilema ético quanto<br />
a agir ou não agir, com relação a esse esta<strong>do</strong> de<br />
coisas. Se Marx fala <strong>do</strong> confronto entre arma da<br />
crítica e crítica das armas, Espinosa, no “Tractatus<br />
politicus” também recorre a termos bélicos para<br />
5 Na ética <strong>do</strong> discurso de Habermas (1989), o agir estratégico<br />
é ti<strong>do</strong> como aquele em que nós argumentamos tão somente<br />
para sobrepujar a posição <strong>do</strong> outro e convencê‐lo, enquanto<br />
no agir comunicativo ambos dialogam e cedem mutuamente<br />
ten<strong>do</strong> como objetivo a busca da verdade. Ainda segun<strong>do</strong><br />
analistas dessa teoria, os <strong>do</strong>is mo<strong>do</strong>s de agir não se polarizam<br />
de forma pura e id<strong>ea</strong>l, mas na <strong>prática</strong> logram influenciar‐se<br />
mutuamente em alguma medida, numa relação dialética, ou<br />
seja, de contradição inter‐constitutiva.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 8 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
dizer da liberdade humana: “se numa Cidade os<br />
cidadãos não tomam das armas porque estão<br />
aterra<strong>do</strong>s pelo me<strong>do</strong>, não se pode dizer que aí<br />
exista paz e sim mera ausência de guerra. A paz<br />
não é pura ausência de guerra, mas virtude origi‐<br />
nada da força d’alma no respeito às leis [...]. Uma<br />
Cidade onde a paz é efeito da inércia <strong>do</strong>s súditos<br />
tangi<strong>do</strong>s como um rebanho e feitos apenas para<br />
servir merece antes o nome de solidão <strong>do</strong> que de<br />
Cidade” (apud CHAUI, 1995, p. 56).<br />
Não é necessário<br />
nos alongarmos a‐<br />
qui no diagnósti‐<br />
co da sociedade<br />
contemporân<strong>ea</strong>,<br />
dita “pós‐moder‐<br />
na”, também de‐<br />
nominada “neoli‐<br />
iberal”. Trata‐se<br />
de conteú<strong>do</strong> cor‐<br />
rente nas refle‐<br />
xões críticas sobre<br />
políticas públicas e<br />
as que dedicam‐se<br />
a algum tipo de<br />
análise das insti‐<br />
tuições atuais.<br />
Contu<strong>do</strong>, fica pos‐<br />
ta uma tensão en‐<br />
tre os valores que<br />
são o fundamento da ética da abordagem históri‐<br />
co‐cultural, tal como a lemos, e os valores privile‐<br />
gia<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> contemporâneo, de mo<strong>do</strong> geral,<br />
mais drasticamente em países periféricos e subal‐<br />
ternos como o <strong>Brasil</strong>. Como agir de acor<strong>do</strong> com<br />
valores como os da psicologia vigotskiana, num<br />
país em que tais valores hegemonicamente são<br />
ti<strong>do</strong>s como antiqua<strong>do</strong>s ou mesmo utópicos, quan‐<br />
<strong>do</strong> não inexistentes ou totalmente ignora<strong>do</strong>s? De<br />
fato, o marca<strong>do</strong>r semântico para nós importante<br />
nesse caso é a palavra “hegemonicamente”. O que<br />
é “hegemônico” é pre<strong>do</strong>minante, o que mais se<br />
destaca, o que mina e subordina as visões contrá‐<br />
rias, mas não é o “absoluto”, não prevalece de<br />
mo<strong>do</strong> homogêneo, não existe sem fissuras – as<br />
quais podem surgir como contestações organiza‐<br />
das, como desobediência civil, ou ainda como<br />
fraturas e convulsões de cunho retrógra<strong>do</strong>. A so‐<br />
ciedade na qual foi criada a teoria histórico‐<br />
cultural não existe mais, foi derrotada na chamada<br />
“Guerra Fria”. Ela mesma, por sua vez, durante o<br />
tempo que existiu não chegou a atingir to<strong>do</strong> o<br />
projeto a que se propôs, e talvez sua derrota seja<br />
indício justo disso.<br />
Na atual sociedade, na qual hoje as obras de auto‐<br />
res soviéticos como <strong>Vigotski</strong>, Luria, Leontiev, Ru‐<br />
binstein, Elkonin e Bojovitch (ver figura 1) vêm<br />
cobrar senti<strong>do</strong>, o ser humano nem sempre é o<br />
valor central e, quan<strong>do</strong> sim, geralmente o é em<br />
termos liberais ou ingênuos. Nossa atitude não<br />
pode ser muito mais que a de distanciamento<br />
crítico. Como disse<br />
meu colega o pro‐<br />
fessor Luiz Lastória<br />
(com. pessoal,<br />
1998), parafras<strong>ea</strong>n‐<br />
<strong>do</strong> A<strong>do</strong>rno: “Se não<br />
há cura, aprofunda<br />
o diagnóstico”. Pro‐<br />
postas apressadas<br />
de “cura”, sem o<br />
conhecimento r<strong>ea</strong>l<br />
<strong>do</strong> que gera os<br />
“sintomas” pode<br />
implicar fatores<br />
etiológicos hiatro‐<br />
gênicos, isto é, fa‐<br />
tores patológicos<br />
gera<strong>do</strong>s pela pró‐<br />
pria ação <strong>do</strong> trata‐<br />
mento. O que nos<br />
remete também ao alerta presente em Hipócra‐<br />
tes, para quem a missão <strong>do</strong> profissional da saúde<br />
é “curar se possível, ao menos não danar”. Eviden‐<br />
temente, estamos usan<strong>do</strong> termos médicos de<br />
mo<strong>do</strong> metafórico, não é esse nosso papel social.<br />
Mas trata‐se de uma analogia que pode ajudar‐<br />
nos a refletir. Pode‐se a ela adicionar que “diag‐<br />
nosticar” não é um ato passivo e descompromis‐<br />
sa<strong>do</strong>. Diagnosticar é, na raiz grega, conhecer “a‐<br />
travessan<strong>do</strong>” a r<strong>ea</strong>lidade, ou seja, desde o pro‐<br />
fun<strong>do</strong> ao eleva<strong>do</strong>, não se trata <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> vulgar<br />
da palavra como “rotular”. E para tanto é necessá‐<br />
rio compromisso, com o ato de conhecer e com<br />
aquele que se deseja conhecer, na relação com o<br />
qual passaremos também a nos conhecer melhor,<br />
posto que estamos falan<strong>do</strong> de um conjunto social<br />
<strong>do</strong> qual fazemos parte, desde que nascemos. Não<br />
são as pessoas com quem trabalhamos objeto de<br />
piedade ou caridade, mas sujeitos co‐autores <strong>do</strong><br />
mesmo processo histórico em que estamos inseri‐<br />
<strong>do</strong>s e que (re)produzimos diariamente.<br />
FIGURA1: PSICÓLOGOS SOVIÉTICOS<br />
(1) Aleksis Nikolaevitch Leontiev (1903‐1979); (2) Lidia Il’initchna Bojovitch<br />
(1908‐1981); (3) Aleksandr Romanovitch Luria (1902‐1977); (4) Serguei Leo‐<br />
ni<strong>do</strong>vitch Rubinstein (1889‐1960); (5) Daniil Borisovitch Elkonin (1904‐1984).<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
Desse mo<strong>do</strong>, em suma, cabe destacar que aos<br />
princípios éticos aqui insinua<strong>do</strong>s, comenta<strong>do</strong>s,<br />
acrescenta‐se um princípio ontológico que permi‐<br />
te abordá‐los com mais visibilidade. Trata‐se <strong>do</strong><br />
princípio da historicidade <strong>do</strong>s valores. Se nossas<br />
relações com as pessoas, nossos mo<strong>do</strong>s de simbo‐<br />
lizar o mun<strong>do</strong> mediante a linguagem e de agir<br />
sobre ele mediante o uso de instrumentos, se<br />
constituem historicamente, o mesmo se aplica aos<br />
nossos valores morais, isto é, à nossa ética. Nos‐<br />
sos valores se constituem historicamente, e tam‐<br />
bém só historicamente podem se consolidar ou se<br />
enfraquecerem dan<strong>do</strong> lugar a outros. A história<br />
implica contradições e lutas entre projetos políti‐<br />
cos e valores diversos, só em meio a tal contradi‐<br />
ção a r<strong>ea</strong>lização e/ou transformação <strong>do</strong>s nossos<br />
valores pode ocorrer. A busca de cooperação em<br />
função de superação constante, como conquista<br />
de uma mais potente emancipação humana, cons‐<br />
titui‐se, portanto, em um desafio histórico, coleti‐<br />
vo e pessoal. Não é pouco, nem é suficiente. Mas<br />
é uma interpelação que está posta. Trabalhar ins‐<br />
tiga<strong>do</strong>s por tal desafio é como assumir um dito<br />
que ouvi de Paulo Freire em Curitiba, em 12 de<br />
junho de 1992: “Cabe fazer o que é possível fazer<br />
hoje para que o que não é possível fazer hoje seja<br />
feito amanhã”. Os limites <strong>do</strong> possível, segun<strong>do</strong><br />
<strong>Vigotski</strong>, se ampliam na relação com o outro 6 (ver<br />
VIGOTSKI, 1935/1989) 7 , tanto quanto podem se<br />
estreitar dependen<strong>do</strong> de como nos relacionemos<br />
com esse outro e de quem é ele ou pode ser para<br />
nós. Nesse ponto nos cabe o ato volitivo de optar,<br />
se possível, pelas relações mais potencializa<strong>do</strong>ras.<br />
Descobrir quan<strong>do</strong> é possível ou não, no mesmo<br />
ato de buscar produzir a possibilidade, é o próprio<br />
exercício da ética.<br />
1.3 O méto<strong>do</strong> construtivo e a psicologia como<br />
constitutiva da vida humana<br />
Por fim, ten<strong>do</strong> já fala<strong>do</strong> sobre o critério meto<strong>do</strong>‐<br />
lógico da crítica e o ontológico da historicidade,<br />
como suportes para a ética, coloquemos também<br />
6 Sobre a teorização da superação <strong>do</strong>s limites no desenvolvi‐<br />
mento humano ontogenético e microgenético, mediante o<br />
conceito de “zona blijaishego razvitia”, ver nota “17”, p. 29.<br />
7 A fonte só fornece o ano da primeira publicação, mas não a<br />
data de quan<strong>do</strong> o trabalho teria si<strong>do</strong> concluí<strong>do</strong>. Trata‐se de<br />
uma publicação póstuma, já que <strong>Vigotski</strong> morreu em 11 de<br />
junho de 1934.<br />
o critério <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “méto<strong>do</strong> construtivo”, tal<br />
como concebi<strong>do</strong> por <strong>Vigotski</strong>, pois elucida um<br />
pouco o já fala<strong>do</strong> sobre o “aprofundamento <strong>do</strong><br />
diagnóstico”, como um ato no qual nos envolve‐<br />
mos como partícipes. Ato no qual, de certa forma,<br />
diagnosticamos a nós mesmos, nossa própria exis‐<br />
tência social e experiência histórica, no papel de<br />
<strong>psicólogo</strong>s que não se desvincula <strong>do</strong>s nossos de‐<br />
mais lugares simbólicos. Vejo esse momento da<br />
discussão com um ponto de conexão importante<br />
entre os valores gerais e a proposta de atuação <strong>do</strong><br />
<strong>psicólogo</strong> que se orienta numa perspectiva histó‐<br />
rico‐cultural. Nesse senti<strong>do</strong> retomo uma discussão<br />
já proposta anteriormente (DELARI JR., 2000), na<br />
qual me deparava com a trama de inter‐<br />
constituição das linguagens teóricas que assumi‐<br />
mos com a constituição de nossa própria subjeti‐<br />
vidade, consciência e personalidade. De fato, o<br />
vínculo profun<strong>do</strong> <strong>do</strong>s valores éticos com a <strong>prática</strong><br />
social e então com a <strong>prática</strong> profissional com um<br />
momento importante dela, em psicologia, está<br />
associa<strong>do</strong> ao problema das relações entre o “abs‐<br />
trato” e o “concreto”. Para o marxismo não há<br />
como chegar ao concreto sem passar pela abstra‐<br />
ção, porque o concreto não é mais só o “empíri‐<br />
co”, ou seja, a experiência pela experiência. Para<br />
entendermos determinações concretas da r<strong>ea</strong>li‐<br />
dade é preciso olhar para além <strong>do</strong> que se apresen‐<br />
ta diretamente aos senti<strong>do</strong>s, ver o que não se<br />
mostra, ouvir o que não foi dito, conectar, rela‐<br />
cionar, imaginar, interpretar, logo “abstrair”. Nes‐<br />
se senti<strong>do</strong> entende‐se a proposição de Marx de<br />
que é preciso “ascender ao concreto”. Ele é uma<br />
meta elevada, não só ponto de partida eventual.<br />
Mas para alcançarmos o concreto, a abstração<br />
não pode bastar‐se, nem perder seu vínculo com a<br />
vida social, com as necessidades e lutas de cada<br />
sociedade.<br />
Infelizmente, se uma abstração é sempre necessá‐<br />
ria ao cientista, ao <strong>psicólogo</strong> crítico, também é<br />
certo que nem sempre conseguimos ascender ao<br />
concreto. Para Puzirei, o fato de <strong>Vigotski</strong> dizer que<br />
sua “história <strong>do</strong> desenvolvimento cultural é a ela‐<br />
boração abstrata da psicologia concreta.” (1929/<br />
2000, p. 35) seria como uma “autocrítica” que<br />
“não apenas mostra a liberdade e espírito crítico<br />
com que ele avaliava sua própria obra, mas tam‐<br />
bém a profundidade e a radicalidade de seu pen‐<br />
samento” (PUZIREI, 1989a, p. 76). Tal pensamento<br />
teria formula<strong>do</strong> um projeto no qual <strong>Vigotski</strong> “via a<br />
‘linha geral’ <strong>do</strong> desenvolvimento posterior da psi‐<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
cologia histórico‐cultural. Esta tendência poderia<br />
significar uma superação radical <strong>do</strong> ‘academicis‐<br />
mo’ na psicologia tradicional” (PUZIREI, 1989a, p.<br />
76). Tal projeto para o futuro, visto <strong>do</strong> tempo de<br />
<strong>Vigotski</strong>, nos interessa hoje no século XXI, embora<br />
as condições da psicologia atual não sejam muito<br />
melhores que as <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em que a perspectiva<br />
histórico‐cultural surgiu. Trata‐se de um projeto<br />
que solicita: “um movimento em direção a um<br />
tipo completamente novo de investigação, que,<br />
em virtude de alguns <strong>do</strong>s aspectos fundamentais<br />
<strong>do</strong> seu “objeto”, um objeto histórico‐cultural e em<br />
desenvolvimento, e de exigências fundamentais<br />
(derivadas deste último) de seus méto<strong>do</strong>s, a sa‐<br />
ber, externalização e análise, deve, ele próprio,<br />
ser implementa<strong>do</strong> dentro <strong>do</strong> quadro organiza<strong>do</strong><br />
de alguma <strong>prática</strong> psicotécnica, servin<strong>do</strong> como um<br />
órgão necessário que torna possível a projeção,<br />
r<strong>ea</strong>lização, reprodução e desenvolvimento dirigi<strong>do</strong><br />
dessa <strong>prática</strong>. Esse projeto de reestruturação radi‐<br />
cal da psicologia permanece essencialmente irr<strong>ea</strong>‐<br />
liza<strong>do</strong> na história subseqüente da psicologia.”<br />
(PUZIREI, 1989a, p. 76)<br />
A psicologia concreta proposta por <strong>Vigotski</strong> convi‐<br />
da, assim, a uma mudança radical em nossa pró‐<br />
pria atitude: a psicologia passaria a ser entendida<br />
e conduzida como um componente da própria<br />
constituição <strong>do</strong>s fenômenos ou processos que ela<br />
mesma estuda, como ciência, e com os quais ela<br />
atua, como profissão. Trata‐se de algo sério, por<br />
evidenciar nossa grande responsabilidade. Ao<br />
mesmo tempo, trata‐se de algo previsível, no sen‐<br />
ti<strong>do</strong> de ser coerente com o que a própria aborda‐<br />
gem postula em seus conceitos sobre a constitui‐<br />
ção <strong>do</strong> humano, como ser social, simbólico e his‐<br />
tórico. Coerente com seus conceitos psicológicos<br />
(teóricos) e meto<strong>do</strong>lógicos (meta‐teóricos). Psico‐<br />
lógicos como os de que “toda a palavra é já uma<br />
teoria”, um mo<strong>do</strong> de generalizar a r<strong>ea</strong>lidade, e de<br />
que a consciência se constitui justamente median‐<br />
te o significa<strong>do</strong> da palavra. Meto<strong>do</strong>lógicos como o<br />
de que “a palavra é o gérmen da ciência, e neste<br />
senti<strong>do</strong> cabe dizer que no começo da ciência esta‐<br />
va a palavra” (VIGOTSKI, 1927/1991, p. 281). Se a<br />
ciência é, desde o início, “palavra” e se é nela, dita<br />
de corpo inteiro, que o humano r<strong>ea</strong>liza o específi‐<br />
co da sua existência social e histórica, é possível<br />
deduzirmos que as palavras de uma abordagem<br />
passam, de algum mo<strong>do</strong>, a ser constitutivas das<br />
pessoas que dela se apropriam e que com ela pas‐<br />
sam a trabalhar. Na medida em que nosso traba‐<br />
lho é também e sempre um trabalho com os ou‐<br />
tros, os nossos valores, os valores da abordagem<br />
que assumimos justamente por serem condizen‐<br />
tes com os nossos ou por sentirmos que podem<br />
potencializá‐los, passarão a interagir com os valo‐<br />
res de nossos interlocutores, as pessoas com<br />
quem trabalhamos, tensionan<strong>do</strong> com eles, numa<br />
relação em que nos enriquecemos mutuamente e<br />
nos refazemos constantemente, se para tanto<br />
houver disposição.<br />
Sobre o processo pelo qual nosso trabalho com‐<br />
põe‐se com nossa própria personalidade e a da‐<br />
queles com quem nele dialogamos, deixo uma<br />
última sugestão de reflexão sobre o chama<strong>do</strong><br />
“méto<strong>do</strong> construtivo” em pesquisa psicológica.<br />
Vejo‐o como pertinente também para a <strong>prática</strong><br />
profissional, se considerarmos o que Puzirei colo‐<br />
cava, na citação acima, sobre a articulação entre<br />
méto<strong>do</strong> de investigação e “<strong>prática</strong> psicotécnica” 8 .<br />
<strong>Vigotski</strong> diz que “um méto<strong>do</strong> construtivo implica<br />
duas coisas: (1) ele estuda antes construções <strong>do</strong><br />
que estruturas naturais; (2) não analisa, mas cons‐<br />
trói um processo” (VIGOTSKI, 1929/1989, p. 55).<br />
“Construções” aqui está como sinônimo de “pro‐<br />
cessos constituí<strong>do</strong>s culturalmente”, aqueles que<br />
não são da<strong>do</strong>s pela natureza em seu esta<strong>do</strong> pri‐<br />
meiro, mas emergem nela, pela transformação<br />
dela mediante a ação humana, planejada, dirigida<br />
a metas, visan<strong>do</strong> atender nossas necessidades<br />
básicas e as que criamos socialmente, para além<br />
delas. Ou seja, “construções” são criações históri‐<br />
co‐culturais, símbolos, instrumentos, mo<strong>do</strong>s de<br />
usá‐los, relações humanas, papéis sociais, experi‐<br />
ências partilhadas, mo<strong>do</strong>s de organizar nossas<br />
rotinas, procedimentos institucionais ou a contes‐<br />
tação deles, enfim. Criações que, ao serem r<strong>ea</strong>li‐<br />
zadas por nós, r<strong>ea</strong>lizam ao mesmo tempo o que<br />
somos. Trata‐se então de um méto<strong>do</strong> de investi‐<br />
gação, e porque não dizer de trabalho também,<br />
no qual não só “analisamos” processos, mas tam‐<br />
bém os construímos culturalmente, com nossos<br />
atos, nossa linguagem e nossa sensibilidade. Tal<br />
8 Evidentemente, nesse contexto, o conceito russo de “psico‐<br />
técnica”, também traduzi<strong>do</strong> como “psicotecnia” (em VIGOTS‐<br />
KI, 1927/1991 e 1927/1996), não é sinônimo de “psicometri‐<br />
a”, como se tornou comum no nosso contexto cultural. Ao<br />
contrário, “psicotécnica” indica um conceito mais abrangente<br />
com relação à aplicação <strong>prática</strong> da psicologia frente às de‐<br />
mandas concretas da sociedade, na educação, na clínica, no<br />
mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, etc.<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
concepção sustenta a afirmação anterior de Puzi‐<br />
rei de que a perspectiva iniciada por <strong>Vigotski</strong> se<br />
orienta para uma superação <strong>do</strong> academicismo em<br />
psicologia. Trata‐se justamente de uma psicologia<br />
que não recorre à “assepsia” para lidar com a r<strong>ea</strong>‐<br />
lidade de seu trabalho, mas a toca “de mãos nu‐<br />
as”, assumin<strong>do</strong> com ela um compromisso de com‐<br />
posição partilhada. Dessa maneira os valores de<br />
que falamos aqui estão implica<strong>do</strong>s na ação e no<br />
méto<strong>do</strong>, orienta<strong>do</strong> às metas que eles definem. E<br />
abre‐se para nós o convite para produzir uma<br />
<strong>prática</strong> profissional <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> que pronuncia<br />
uma “palavra que r<strong>ea</strong>lmente significa e é respon‐<br />
sável por aquilo que diz” (BAKHTIN, 1992, p. 196).<br />
2 Princípios de psicologia geral numa abordagem<br />
histórico‐cultural<br />
“Cada vez soam com maior freqüência vozes que colo‐<br />
cam o problema da psicologia geral como um problema<br />
de primeiríssima importância. Essas colocações (...) não<br />
partem <strong>do</strong>s filósofos (...) nem <strong>do</strong>s <strong>psicólogo</strong>s teóricos,<br />
mas <strong>do</strong>s <strong>psicólogo</strong>s práticos, que estudam aspectos<br />
concretos da psicologia aplicada (...)”<br />
— <strong>Vigotski</strong> (1927/1996, p. 203)<br />
O conceito de psicologia geral na obra de <strong>Vigotski</strong>,<br />
tanto quanto na tradição russo‐soviética como um<br />
to<strong>do</strong>, diferencia‐se <strong>do</strong> conceito escolar de “psico‐<br />
logia geral” com o qual comumente lidamos nas<br />
faculdades dessa ár<strong>ea</strong>, e que nos faz lembrar uma<br />
série de conteú<strong>do</strong>s introdutórios superficiais, não<br />
necessariamente conecta<strong>do</strong>s numa lógica teórica<br />
mais abrangente que lhes confira coerência. As‐<br />
sim, na psicologia acadêmica que conhecemos,<br />
“psicologia geral” soa mais como um vôo panorâ‐<br />
mico por sobre um território desconheci<strong>do</strong>, <strong>do</strong><br />
que como ár<strong>ea</strong> científica relevante para o nosso<br />
trabalho <strong>do</strong> profissional. Na psicologia soviética o<br />
significa<strong>do</strong> da palavra é distinto. Psicologia geral é<br />
o campo da ciência psicológica que trata de seus<br />
fundamentos, de seus princípios articula<strong>do</strong>res<br />
mais profun<strong>do</strong>s, das categorias meta‐teóricas que<br />
visam organizar a discussão, como: o “objeto de<br />
estu<strong>do</strong>”; seu “princípio explicativo”; a “unidade de<br />
análise” necessária para e investigação; e o “mo<strong>do</strong><br />
de proceder” a própria análise, liga<strong>do</strong> às interven‐<br />
ções sobre a r<strong>ea</strong>lidade que ele comporta. Com<br />
inspiração nessa orientação, como eu já disse em<br />
outro lugar (DELARI, 2004), uma atitude generalis‐<br />
ta <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> não é sinônimo de saber “introdu‐<br />
tório” ou “abrevia<strong>do</strong>” sobre cada aspecto da vi‐<br />
vência humana. O geral não é o “numeroso”, mas<br />
o que implica uma visão articulada e profunda <strong>do</strong><br />
conjunto. Aqui poderemos apenas colocar os con‐<br />
tornos de alguns princípios essenciais na psicolo‐<br />
gia geral da perspectiva histórico‐cultural. O apro‐<br />
fundamento desses princípios se desenvolverá<br />
com o nosso estu<strong>do</strong> posterior, ten<strong>do</strong> em vista a<br />
<strong>prática</strong> social <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> e os princípios éticos<br />
que a orientam. Organizei a exposição aqui se‐<br />
gun<strong>do</strong> os seguintes eixos: (2.1) Princípio da unida‐<br />
de psicofísica; (2.2) Princípio da determinação da<br />
consciência pela existência social; (2.3) Princípio<br />
da consciência como psiquismo propriamente<br />
humano; (2.4) Princípio da compreensão da cons‐<br />
ciência mediante unidades; (2.5) Princípio da<br />
compreensão <strong>do</strong> psiquismo humano mediante sua<br />
gênese.<br />
2.1 Princípio da unidade psicofísica<br />
Segun<strong>do</strong> Serguei Rubinstein “O princípio da uni‐<br />
dade psicofísica é o princípio mais importante da<br />
psicologia soviética” (1972, p. 40). Estamos habi‐<br />
tua<strong>do</strong>s a formar a partir da palavra “psicofísica” a<br />
imagem <strong>do</strong> trabalho de laboratório com os aspec‐<br />
tos fisiológicos <strong>do</strong> funcionamento mental humano<br />
ou animal. Contu<strong>do</strong>, aqui o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> termo<br />
posto como adjetivo para “unidade” é mais filosó‐<br />
fico e de orientação genérica. Lembremos que<br />
“psikhe” para os antigos gregos era o “sopro vi‐<br />
tal”, nosso “impulso de vida”, “aquilo que nos<br />
move”, e depois para alguns também “alma” ou<br />
“mente”, e que “physis” denotava a natureza,<br />
to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> natural. Intuiremos então que uma<br />
unidade entre o psíquico e o físico é a uma inte‐<br />
gração entre o que chamamos de funções mentais<br />
e a natureza como um to<strong>do</strong>. Dito de outro mo<strong>do</strong>,<br />
nada na psique humana é considera<strong>do</strong>, nessa a‐<br />
bordagem, como “sobrenatural”, “sobre‐huma‐<br />
no”, substancialmente distinto <strong>do</strong> que compõe o<br />
âmbito tangível e inteligível <strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l. No que a<br />
perspectiva histórico‐cultural vai numa direção<br />
diferente de grande parte das psicologias surgidas<br />
no final <strong>do</strong> século XIX e desenvolvidas ao longo <strong>do</strong><br />
século XX, as quais trazem fortes traços <strong>do</strong> dua‐<br />
lismo mente e corpo, psíquico e físico, herança<br />
platonista e cartesiana. O mesmo monismo, des‐<br />
taca<strong>do</strong> por Rubinstein, aparece também em Vi‐<br />
gotski, para quem “a psique não aparece isolada<br />
<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> ou <strong>do</strong>s processos <strong>do</strong> organismo nem<br />
por um milésimo de segun<strong>do</strong>” (1926/1991, p.<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
150). É preciso olhar com atenção para essa pro‐<br />
posição, pois já entrou para o senso comum aca‐<br />
dêmico o conceito de que “o homem não é um ser<br />
biológico, mas sim social, cultural, histórico”. Tal<br />
oposição, embora esteja correta no seu senti<strong>do</strong><br />
mais geral, não pode ser tomada ao pé da letra.<br />
Posto que sem a materialidade corporal, sem nos‐<br />
sos órgãos vitais, sem nossa existência material,<br />
também não há ser humano algum. O que a frase<br />
acima significaria, se apresentada de um mo<strong>do</strong><br />
mais criterioso, é que “a constituição biológica <strong>do</strong><br />
homem é de tal ordem que ela não basta a si<br />
mesma e exige dele que disponha de recursos<br />
para além de seus traços orgânicos hereditários”.<br />
O animal Homo sapiens precisa recorrer a outros<br />
de sua espécie para r<strong>ea</strong>lizar a sua existência, para<br />
fazê‐lo utiliza‐se de mediações próprias a uma<br />
dada cultura, criadas, transmitidas e desenvolvi‐<br />
das historicamente. O bebê humano não desen‐<br />
volve funções psíquicas superiores sem a media‐<br />
ção <strong>do</strong> outro e da cultura, linguagem e instrumen‐<br />
tos. Mas também, por mais meios culturais que<br />
déssemos a um macaco, isso jamais o tornaria um<br />
ser humano, pois aquele não tem aparato biológi‐<br />
co para isso.<br />
O princípio da unidade psicofísica marca filosofi‐<br />
camente que somos uma totalidade psíquica e<br />
física, mental e corporal, biológica e cultural. E<br />
esses pares não jogam seus papéis complementa‐<br />
res como “substâncias” opostas de mo<strong>do</strong> antagô‐<br />
nico, irredutíveis, mas como pares dialéticos, se só<br />
existem um em relação ao outro, contradizen<strong>do</strong>‐<br />
se e compon<strong>do</strong>‐se mutuamente, na medida em<br />
que juntos formam uma só r<strong>ea</strong>lidade. Trata‐se,<br />
assim, de aspectos, momentos, mo<strong>do</strong>s de ser, de<br />
uma mesma substância, uma mesma unidade<br />
dinâmica, extremamente complexa e contraditória<br />
que é a r<strong>ea</strong>lidade material – a totalidade da exis‐<br />
tência em suas múltipas determinações e diversos<br />
planos de organização. É interessante, nesse sen‐<br />
ti<strong>do</strong>, o resgate de <strong>Vigotski</strong> à obra de Espinosa, ao<br />
valorizar o papel <strong>do</strong> corpo: “até hoje ninguém<br />
definiu aquilo de que o corpo é capaz... mas dizem<br />
que seria impossível deduzir apenas das leis da<br />
Natureza, uma vez considerada exclusivamente<br />
como corpór<strong>ea</strong>, as causas das edificações arquite‐<br />
tônicas, da pintura e coisas afins que só a arte<br />
humana produz, e que o corpo humano não con‐<br />
seguiria construir nenhum templo se não estivesse<br />
determina<strong>do</strong> e dirigi<strong>do</strong> pela alma, mas eu já mos‐<br />
trei que tais pessoas não sabem de que é capaz o<br />
corpo e o que concluir <strong>do</strong> simples exame de sua<br />
natureza” (apud VIGOTSKI 1925/1999, p. IX). É<br />
difícil para nós, habitua<strong>do</strong>s ao dualismo platônico<br />
e cartesiano presente na formação <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>,<br />
concebermos isto: como pode um corpo produzir<br />
obras de arte? Como pode um ser humano produ‐<br />
zir o que há de mais belo e sublime, sem uma “al‐<br />
ma” que o guie? Mas entendamos apenas o se‐<br />
guinte: não se trata de que autor nos veja crian<strong>do</strong><br />
r<strong>ea</strong>lidades culturais como se fôssemos “autôma‐<br />
tos”, sem imaginar, conceber, projetar, sem o ato<br />
de pensar. Mas sim de que se antes se dizia que “o<br />
corpo age e a alma pensa e sente”, podemos pelo<br />
monismo de Espinosa entender que “o corpo age,<br />
pensa e sente”, por si próprio. O pensar é um as‐<br />
pecto que pertence ao corpo humano, como tam‐<br />
bém o sentir, das emoções mais básicas às mais<br />
sutis, tais quais as de cunho estético. Não preci‐<br />
samos, nessa visão, adicionar a nós algo sobrena‐<br />
tural, insondável, inexplicável, incompreensível,<br />
para que nos reconhecermos capazes de r<strong>ea</strong>liza‐<br />
ções culturais diversas, no interior das leis dialéti‐<br />
cas da própria natureza, no senti<strong>do</strong> amplo da pa‐<br />
lavra, da qual não estamos isola<strong>do</strong>s “nem por um<br />
milésimo de segun<strong>do</strong>”. Nesse princípio se apóia o<br />
posterior quanto às relações entre consciência e<br />
existência, sobretu<strong>do</strong> entendida como existência<br />
social.<br />
2.2 Princípio da determinação da consciência pela<br />
existência social<br />
No tópico anterior destacamos que não estamos<br />
aliena<strong>do</strong>s da natureza, não somos seres sobrena‐<br />
turais, supra‐ordena<strong>do</strong>s, reinan<strong>do</strong> sobre toda a<br />
criação. Precisamos pertencer à natureza para<br />
nela poder viver e virmos a entender que estamos<br />
vivos, que morreremos. Fenômenos físicos são<br />
necessários para existir vida na Terra, fenômenos<br />
biológicos são constitutivos da vida humana, se<br />
não por inúmeras condições orgânicas, que seja<br />
tão somente pelo falto dela ser ainda “vida” –<br />
“bios” (βίος ). Mas a isto cabe acrescentar que o<br />
nosso mo<strong>do</strong> de r<strong>ea</strong>lizar um momento da r<strong>ea</strong>lidade<br />
material da qual fazemos parte tem sua especifi‐<br />
cidade, sua singularidade, seu mo<strong>do</strong> particular de<br />
ser e devir. Consideran<strong>do</strong> a formação social da<br />
consciência como tema fundamental para a psico‐<br />
logia histórico‐cultural, podemos articular que não<br />
apenas somos parte viva da natureza, como tam‐<br />
bém nosso mo<strong>do</strong> específico, distintivo de r<strong>ea</strong>lizar<br />
nosso lugar dentro dela, ao mesmo tempo, nos<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
diferencia das demais formas de seres naturais.<br />
Um traço marcante para tal distinção está no fato<br />
de que o homem é, como diz Aristóteles, “zoon<br />
politicon” – animal social. Nossa própria constitui‐<br />
ção biológica nos dá bases para que isso ocorra:<br />
por um la<strong>do</strong>, pela fragilidade <strong>do</strong> nosso filhote que<br />
para se desenvolver e garantir sua própria exis‐<br />
tência demanda mais alguém com quem interagir<br />
por tempo prolonga<strong>do</strong>; por outro, pela grande<br />
complexidade de nosso aparato neurofuncional,<br />
que nos permite a utilização complexa de instru‐<br />
mentos e signos e nos demanda que eles sejam<br />
utiliza<strong>do</strong>s para que nosso próprio cérebro se de‐<br />
senvolva, na sua plasticidade funcional e organiza‐<br />
ção sistêmica. Sem entrarmos no mérito da dis‐<br />
cussão evolutiva sobre como essas características<br />
vieram a surgir geran<strong>do</strong> os primeiros seres huma‐<br />
nos, o fato é que somos animais para os quais a<br />
existência sobre o planeta não é possível sem as<br />
relações sociais. As quais por sua vez são media‐<br />
das pela linguagem, produto da própria <strong>prática</strong><br />
humana e que se materializa na cultura e se<br />
transmite e se transforma de geração para gera‐<br />
ção.<br />
Sen<strong>do</strong> o homem frente à natureza não um “impé‐<br />
rio dentro <strong>do</strong> império”, como critica Espinosa<br />
(1979), mas um momento singular de r<strong>ea</strong>lização<br />
dela, o pensamento marxista indica assim uma<br />
relação de determinação da consciência pela vida,<br />
entendida como vida social. No seu texto “A cons‐<br />
ciência como problema da psicologia <strong>do</strong> compor‐<br />
tamento” <strong>Vigotski</strong> diz que “a existência determina<br />
a consciência” (VIGOTSKI, 1925/2005, p. 37) 9 . Ele<br />
está parafras<strong>ea</strong>n<strong>do</strong> Marx e Engels em “A ideologia<br />
alemã”: “Moral, religião, metafísica e to<strong>do</strong> o res‐<br />
tante da ideologia e suas formas correspondentes<br />
de consciência, pois, não mais conservam o aspec‐<br />
to de sua independência. Elas não têm história<br />
nem evolução; mas os homens, desenvolven<strong>do</strong><br />
sua produção material e seu intercâmbio material,<br />
alteram, a par disso, sua existência r<strong>ea</strong>l, seu pen‐<br />
9 Cito aqui versão russa apenas porque nessa passagem, a<br />
edição brasileira (VIGOTSKI, 1925/1996) contém um erro<br />
também presente na edição espanhola (VIGOTSKI, 1925/<br />
1991), da qual foi traduzida. Trata‐se de que onde ali se lê “a<br />
experiência determina a consciência” (VIGOTSKI, 1925/1996,<br />
p. 80) ou “la experiencia determina la conciencia” (VIGOTSKI,<br />
1925/1991, p. 56), no russo está “Бытие определяет созна‐<br />
ние” [Bitie opredeliaet soznanie], ou seja, “a existência (bitie)<br />
determina a consciência”.<br />
samento e os produtos deste. A vida não é deter‐<br />
minada pela consciência, mas esta pela vida. No<br />
primeiro méto<strong>do</strong> de abordagem, o ponto de par‐<br />
tida é a consciência tomada como o indivíduo<br />
vivo; no segun<strong>do</strong>, são os próprios indivíduos vivos<br />
r<strong>ea</strong>is, tal como são na vida concreta, e a consciên‐<br />
cia é considerada unicamente como consciência<br />
deles" (MARX & ENGELS, 1983, p. 172 – grifo<br />
meu). Os aspectos ideológicos, culturais, não teri‐<br />
am história autônoma, posto que, são produções<br />
da existência humana, não existem independen‐<br />
temente dela. Nessa tradição, a própria consciên‐<br />
cia não tem vida própria, não é nenhum ser à par‐<br />
te: “a consciência é o homem consciente”. Ao que<br />
poderíamos acrescentar “o sentimento é o ho‐<br />
mem sentin<strong>do</strong>” ou “a atividade é homem agin<strong>do</strong>”,<br />
são movimentos nossos, são processos e não en‐<br />
tidades com vida própria. Quem toma consciência,<br />
sente e age é o homem. Mas quem é homem?<br />
Nessa abordagem, o homem, como já foi dito é<br />
um “ser social”. Digamos que só nesses termos<br />
podemos conceber “quem ele é”, e não apenas “o<br />
que ele é”.<br />
Dizer que o homem é um ser social requer ainda<br />
algumas especificações, pois há muitos senti<strong>do</strong>s e<br />
muitos mo<strong>do</strong>s de existir <strong>do</strong> social. Essa discussão,<br />
como as demais já levantadas, não se esgota aqui,<br />
mas para uma organização introdutória eu gosta‐<br />
ria de destacar apenas cinco planos articula<strong>do</strong>s e<br />
interdependentes da existência social com os<br />
quais podemos trabalhar em psicologia histórico‐<br />
cultural, embora outros possam ser acrescenta<strong>do</strong>s<br />
e alguns deles tenham si<strong>do</strong> mais aborda<strong>do</strong>s que os<br />
demais nas obras de <strong>Vigotski</strong> às quais tenho aces‐<br />
so: (a) relações sociais de classe; (b) relações soci‐<br />
ais institucionais; (c) relações sociais grupais; (d)<br />
relações sociais intersubjetivas; (e) relações soci‐<br />
ais no plano <strong>do</strong> indivíduo, na dinâmica e estrutura<br />
de sua personalidade. Nas obras de <strong>Vigotski</strong> que<br />
tive oportunidade de ler, desses cinco pontos os<br />
três que mais se destacam e se explicitam são as<br />
relações sociais de classe, as intersubjetivas e<br />
aquelas no plano <strong>do</strong> indivíduo em sua personali‐<br />
dade social. Pensar na articulação com esses pla‐<br />
nos o papel <strong>do</strong>s grupos e das instituições é um<br />
desafio importante e atual, de to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> isso não<br />
poderá se dar, nessa abordagem, sem integração<br />
com os demais processos, aos quais nos detere‐<br />
mos aqui. Em primeiro lugar a abordagem de Vi‐<br />
gotski a relação entre a formação e/ou desenvol‐<br />
vimento <strong>do</strong> psiquismo e a pertença <strong>do</strong> indivíduo a<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 14 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
uma dada classe social não é mecanicista. Se a<br />
pertença de cada um de nós a uma classe nos<br />
deixa as marcas das <strong>prática</strong>s e da ideologia pró‐<br />
prias a ela, o que cada ser humano particular in‐<br />
ternaliza não são só os traços da formação coleti‐<br />
va a qual pertence, mas o conjunto das contradi‐<br />
ções pertinentes à luta entre classes no seio da<br />
sociedade como um to<strong>do</strong>.<br />
<strong>Vigotski</strong>, no seu texto “A transformação socialista<br />
<strong>do</strong> homem”, de 1930, entende que “<strong>do</strong> mesmo<br />
mo<strong>do</strong> pelo qual a vida de uma sociedade não re‐<br />
presenta um to<strong>do</strong> singular e uniforme, e a socie‐<br />
dade é subdividida em diferentes classes, assim<br />
também, durante um da<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> histórico, não<br />
se pode dizer que a composição das personalida‐<br />
des humanas represente algo homogêneo e uni‐<br />
forme, e a psicologia deve levar em consideração<br />
o fato básico de que a tese geral que foi formula‐<br />
da agora mesmo, pode ter apenas uma conclusão<br />
direta: confirmar o caráter de classe, a natureza<br />
de classe e as distinções de classe que são respon‐<br />
sáveis pela formação <strong>do</strong>s tipos humanos. As várias<br />
contradições internas que são encontradas em<br />
diferentes sistemas sociais, têm sua expressão<br />
tanto no tipo de personalidade quanto na estrutu‐<br />
ra da psicologia humana naquele perío<strong>do</strong> históri‐<br />
co” (VIGOTSKI, 1930/1994, p. 176). Sen<strong>do</strong> as rela‐<br />
ções sociais heterogên<strong>ea</strong>s a formação da persona‐<br />
lidade também não será homogên<strong>ea</strong>, assim para<br />
compreender os conflitos próprios à nossa consti‐<br />
tuição psíquica, cabe contextualizá‐los no âmbito<br />
<strong>do</strong>s conflitos sociais mais amplos que organizam<br />
as condições de nossa existência, e <strong>do</strong>s quais par‐<br />
ticipamos inevitavelmente, como dirigentes ou<br />
subalternos, como opressores ou oprimi<strong>do</strong>s, como<br />
expropria<strong>do</strong>res ou expropria<strong>do</strong>s, na vivência clara<br />
de cada papel desses ou na mescla de posições<br />
concomitantes ou alternadas entre um e outro, de<br />
mo<strong>do</strong> consciente ou não consciente. A sociedade<br />
é heterogên<strong>ea</strong> tanto quanto a personalidade, mas<br />
também é crítico, complexo e heterogêneo o pro‐<br />
cesso pelo qual se dão as transições recíprocas<br />
entre relações sociais de classe e relações sociais<br />
de um homem singular consigo mesmo. A relação<br />
entre indivíduo e sociedade não é de simples có‐<br />
pia ou repetição mecânica. Há transformações de<br />
um plano a outro.<br />
Isso coloca questões para a psicologia. Pois não<br />
basta saber que determinada pessoa é de classe<br />
trabalha<strong>do</strong>ra ou burguesa para disso deduzir sua<br />
personalidade, seu mo<strong>do</strong> de agir, sentir e pensar,<br />
os significa<strong>do</strong>s e senti<strong>do</strong>s que atribui para o mun‐<br />
<strong>do</strong>, para os outros e para si. Senão vejamos o que<br />
diz também <strong>Vigotski</strong> em outro texto: “Queremos<br />
comparar o operário com o burguês. O fato não<br />
consiste como pensava W. Sombart, em que para<br />
o burguês o principal seja a avareza, em que tenha<br />
havi<strong>do</strong> uma seleção biológica de pessoas avaras<br />
para as quais o fundamental é a mesquinhez e a<br />
acumulação. Admito que existem muitos operá‐<br />
rios mais avaros que os burgueses. A essência da<br />
questão não consiste em que o papel social se<br />
deduz <strong>do</strong> caráter mas em que, a partir deste, cria‐<br />
se uma série de conexões caracterológicas. Os<br />
traços sociais e de classe formam‐se no homem a<br />
partir de sistemas interioriza<strong>do</strong>s, que nada mais<br />
são <strong>do</strong> que os sistemas e relações sociais entre<br />
pessoas traslada<strong>do</strong>s para a personalidade” (VI‐<br />
GOTSKI, 1930/1996, p. 133). Não há um tipo de<br />
personalidade hereditariamente da<strong>do</strong> que tenda a<br />
ser pertencente a uma classe ou outra por suas<br />
aptidões inatas, isso é o mais óbvio, embora não<br />
menos verdadeiro. Mas também, e tão importan‐<br />
te quanto, cabe destacar que não há relação iso‐<br />
mórfica entre a pertença de classe e a formação<br />
<strong>do</strong> caráter e personalidade de cada um. Isso é<br />
media<strong>do</strong> por relações complexas no seio de cada<br />
interação intersubjetiva que vamos estabelecen<strong>do</strong><br />
em meio aos grupos de que fazemos parte, na<br />
família, na escola, nas <strong>prática</strong>s religiosas, nos cír‐<br />
culos de amizade, nas relações de trabalho, e as‐<br />
sim por diante – nos quais podemos conviver com<br />
classes distintas e apreender junto a elas também<br />
distintos mo<strong>do</strong>s de agir, sentir e significar, não<br />
sempre de to<strong>do</strong> condizentes com os interesses<br />
históricos de nossa própria classe social. Portanto,<br />
ao critério de relações sociais de classe, cabe a‐<br />
crescentar na perspectiva da teoria histórico‐<br />
cultural ainda o critério das relações intersubjeti‐<br />
vas, mediante as quais, mo<strong>do</strong>s de conversão das<br />
<strong>prática</strong>s sociais públicas em <strong>prática</strong>s simbólicas<br />
privadas são constituí<strong>do</strong>s e postos em movimento.<br />
Como destaca<strong>do</strong> por Melo (2001), duas contribui‐<br />
ções importantes da psicologia de <strong>Vigotski</strong> podem<br />
ser trazidas ao diálogo quan<strong>do</strong> precisamos ampliar<br />
o conceito de relações sociais para além <strong>do</strong> de<br />
“relações sociais de classe”, mesmo este sen<strong>do</strong><br />
fundamental. Trata‐se de: (a) sua formulação so‐<br />
bre a “lei genética geral <strong>do</strong> desenvolvimento”; e<br />
(b) sua formulação sobre a “psicologia <strong>do</strong> drama<br />
de papéis sociais”. A lei genética geral <strong>do</strong> desen‐<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 15 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
volvimento, também conhecida como “lei da du‐<br />
pla formação”, geralmente é identificada na obra<br />
de <strong>Vigotski</strong> nos seguintes termos: “Um processo<br />
interpessoal é transforma<strong>do</strong> num processo intra‐<br />
pessoal. Todas as funções no desenvolvimento da<br />
criança aparecem duas vezes: primeiro no nível<br />
social, e depois, no nível individual; primeiro entre<br />
pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da<br />
criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmen‐<br />
te para a atenção voluntária, para a memória lógi‐<br />
ca e para a formação de conceitos. Todas as fun‐<br />
ções superiores originam‐se das relações r<strong>ea</strong>is<br />
entre indivíduos humanos” (VIGOTSKI, 1930/<br />
1989a, p. 64) 10 . A personalidade, dirá o próprio<br />
<strong>Vigotski</strong> (1931/2000a) não se pode confundir com<br />
cada função particular, nem é a mera junção arit‐<br />
mética de todas, mas uma síntese de ordem supe‐<br />
rior na qual o conjunto tem propriedades singula‐<br />
res e leis específicas com relação ao funcionamen‐<br />
to das partes isoladas. Nesse senti<strong>do</strong> é mais im‐<br />
portante o homem que tem essa memória, essa<br />
imaginação ou essa inteligência, <strong>do</strong> que tais capa‐<br />
cidades que o homem tem. Mas a personalidade<br />
como um to<strong>do</strong> também se desenvolve <strong>do</strong> interp‐<br />
síquico para intrapsíquico. Ora, resta deduzir que<br />
o desenvolvimento de cada pessoa no conjunto de<br />
suas relações com outras não pode se restringir a<br />
apenas uma só classe, um só grupo, uma só rela‐<br />
ção de pertença. Múltiplas possibilidades de cam‐<br />
pos interpsicológicos podem se estabelecer para<br />
cada um. Tal mulitiplicidade de relações intersub‐<br />
jetivas pode ser abordada teoricamente a partir<br />
<strong>do</strong>s conceitos de papel social e drama de papéis<br />
sociais.<br />
Nas suas anotações de 1929, depois chamadas<br />
pelos editores de “Psicologia concreta <strong>do</strong> ho‐<br />
mem”, <strong>Vigotski</strong> dialoga, entre outros, com o pen‐<br />
sa<strong>do</strong>r marxista francês de origem húngara Geor‐<br />
ges Politzer (1903‐1942). Este, em da<strong>do</strong> momento<br />
de sua pesquisa, na qual fazia a crítica da “psicolo‐<br />
gia abstrata”, <strong>do</strong>s clássicos <strong>do</strong> século dezenove, e<br />
o elogio de uma nascente “psicologia concreta”,<br />
10 Os editores da coletân<strong>ea</strong> na qual o texto cita<strong>do</strong> foi editada,<br />
no <strong>Brasil</strong> intitulada “A formação social da mente”, dizem ser<br />
os quatro primeiros capítulos retira<strong>do</strong>s de “O instrumento e o<br />
signo” – livro de 1930. Contu<strong>do</strong>, o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> capítulo é<br />
muito semelhante ao encontra<strong>do</strong> em “A história <strong>do</strong> desen‐<br />
volvimento das funções psíquicas superiores” – livro de 1931.<br />
Manteremos 1930, confian<strong>do</strong> nos organiza<strong>do</strong>res da obra<br />
(COLE, JOHN‐STEINER, SCRIBNER e SOUBERMAN, 1989).<br />
fala <strong>do</strong> seu conceito de “drama” e lança‐nos uma<br />
espécie de provocação: “O t<strong>ea</strong>tro deve imitar a<br />
vida? A psicologia, para escapar de uma tradição<br />
milenar e para retornar à vida, talvez deva imitar o<br />
t<strong>ea</strong>tro” (POLITZER apud GABBI JR, 1998, p. XII).<br />
Isto se relaciona ao conceito moderno de “dra‐<br />
ma”, pois se na antigüidade clássica essa palavra<br />
está relacionada aos textos que podem ser repre‐<br />
senta<strong>do</strong>s no t<strong>ea</strong>tro, como “ação”, seja ela trágica<br />
ou cômica, na modernidade ela implicará princi‐<br />
palmente o conflito. Conflito entre algo de trágico<br />
e algo de cômico, e assim uma expressão mais fiel<br />
“da vida como ela é” – não como a de “deuses” e<br />
“heróis” (típicos das tragédias), nem como de<br />
seres “grotescos” ou “inferiores” (típicos das co‐<br />
médias), mas como a de “seres humanos”. Essa<br />
“vida como ela é”, em suas múltiplas determina‐<br />
ções, no choque entre diferentes papéis sociais<br />
possíveis para uma mesma pessoa r<strong>ea</strong>l, seria o<br />
drama pertinente à psicologia concreta. <strong>Vigotski</strong><br />
usará um exemplo fictício de um magistra<strong>do</strong> que<br />
deve julgar a própria esposa. Nessa situação críti‐<br />
ca ele vive ao mesmo tempo <strong>do</strong>is papéis: o de juiz<br />
que condena e o de mari<strong>do</strong> que absolve. Em cada<br />
caso há uma hierarquia diferente de funções men‐<br />
tais, no primeiro a racionalidade tenta prevalecer<br />
sobre a afetividade, no segun<strong>do</strong> a hierarquia se<br />
inverte. Desse mo<strong>do</strong> não se sabe o que prevalece‐<br />
rá e podemos dizer que nesse confronto surge<br />
uma “suspensão” ou “epokhé”, uma recorrência à<br />
dúvida, uma abertura ao imprevisível e ao mesmo<br />
tanto a demanda de uma ação deliberada, volitiva.<br />
A “psicologia <strong>do</strong>s papéis” de <strong>Vigotski</strong> convida a<br />
refletir sobre como eles se entrelaçam solicitan<strong>do</strong>,<br />
possibilitan<strong>do</strong>, ou impedin<strong>do</strong>, adian<strong>do</strong>, tais ações<br />
deliberadas. “O papel social (juiz, médico) deter‐<br />
mina a hierarquia das funções: isto é, as funções<br />
mudam a hierarquia nas diferentes esferas da vida<br />
social. Seu choque = o drama” (VIGOTSKI, 1929/<br />
2000, p. 37 – grifos na fonte). De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, o<br />
foco está da<strong>do</strong> no fato de que em nós diferentes<br />
direções para a ação são possíveis em função de<br />
nossa inserção nas relações sociais que marcam<br />
nossos papéis (pai/filho; professor/aluno; subal‐<br />
terno/dirigente; livre/cativo; etc.), e com isso vi‐<br />
vemos um conflito com o qual se tecem nossos<br />
próprios senti<strong>do</strong>s para a vida. Tal conflito é tanto<br />
entre significa<strong>do</strong>s divergentes <strong>do</strong>s papéis opostos,<br />
quanto entre os sentimentos, conceitos e valores<br />
a eles amalgama<strong>do</strong>s: “O drama r<strong>ea</strong>lmente está<br />
repleto de ligações de tal tipo [conflitivo]: o papel<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 16 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
da paixão da avareza <strong>do</strong>s ciúmes, em uma dada<br />
estrutura da personalidade. Um caráter divide‐se<br />
em <strong>do</strong>is (...) O drama r<strong>ea</strong>lmente está repleto de<br />
luta interna impossível nos sistemas orgânicos: a<br />
dinâmica da personalidade é o drama (...) O dra‐<br />
ma sempre é a luta de tais ligações (dever e sen‐<br />
timento, etc.) Senão não pode ser drama, isto é,<br />
choque <strong>do</strong>s sistemas. A psicologia ‘humaniza‐se’”<br />
(VIGOTSKI, 1929/2000, 34‐35 – grifos na fonte).<br />
Podemos interpretar que a psicologia histórico‐<br />
cultural “retorna à vida” como quisera Politzer. Tal<br />
“humanização” da psicologia apresenta‐se assim<br />
como objetivo da proposta de <strong>Vigotski</strong> tanto no<br />
senti<strong>do</strong> axiológico (ético) como no epistemológico<br />
(científico). Para passarmos então das determina‐<br />
ções da consciência e personalidade humana pela<br />
nossa existência social mais geral, às suas dimen‐<br />
sões mais particulares, notamos que há media‐<br />
ções, transições e complexidade, interpõe‐se o<br />
intersubjetivo, e na sua r<strong>ea</strong>lização concreta per‐<br />
cebe‐se o drama da vida humana. Nele se for‐<br />
mam, se desenvolvem, nossas funções psíquicas e<br />
a consciência como momento propriamente hu‐<br />
mano de organização das mesmas, de estrutura‐<br />
ção de nossa ação e pensamento, de vivência du‐<br />
plicada de nossos próprios sentimentos. É <strong>do</strong> que<br />
trataremos no próximo tópico.<br />
2.3 Princípio da consciência como psiquismo pro‐<br />
priamente humano<br />
É bastante conhecida, e nem por isso deixa de ter<br />
valor, a chamada oposição de <strong>Vigotski</strong> a duas ten‐<br />
dências clássicas em psicologia, no final <strong>do</strong> século<br />
XIX e início <strong>do</strong> XX: o “mentalismo” e o “compor‐<br />
tamentalismo”. Segun<strong>do</strong> ele, ambas deixam de<br />
estudar cientificamente a consciência. A primeira<br />
porque a vê como importante, mas inexplicável a<br />
não ser pela apreensão direta de quem a vive. A<br />
segunda porque entende ser a consciência um<br />
fenômeno sem importância para a compreensão<br />
<strong>do</strong> comportamento que deveria ser explica<strong>do</strong> por<br />
fatores externos diretamente observáveis. Vigots‐<br />
ki sugere que este esta<strong>do</strong> de coisas na psicologia é<br />
crítico, pois se está deixan<strong>do</strong> de la<strong>do</strong> justamente o<br />
que diferencia o psiquismo humano <strong>do</strong> psiquismo<br />
animal, nossa consciência, nossa capacidade de<br />
observarmos a nós mesmos, como somos capazes<br />
de observar a outra pessoa, dentre as característi‐<br />
cas que nela podemos reconhecer. Tratarei aqui,<br />
de mo<strong>do</strong> resumi<strong>do</strong>, alguns pontos pertinentes ao<br />
conceito de consciência como psiquismo propria‐<br />
mente humano: (a) consciência como conheci‐<br />
mento partilha<strong>do</strong>; (b) consciência como vivência<br />
de vivências; (c) consciência como reflexo e refra‐<br />
ção da r<strong>ea</strong>lidade; (d) consciência como processo<br />
cognitivo e afetivo; (e) consciência e sua relação<br />
com os processos não conscientes.<br />
A noção de consciência como “conhecimento par‐<br />
tilha<strong>do</strong>”, advém da própria origem da palavra.<br />
Tanto em russo quanto em português, a etimolo‐<br />
gia remete ao latim “conscientia”, que dentre suas<br />
várias acepções, comporta tanto a idéia de “co‐<br />
nhecimento comum a muitos” (“co‐conhecimen‐<br />
to”), quan<strong>do</strong> a de “reflexão, capacidade de distan‐<br />
ciamento” (“meta‐conhecimento”). Em <strong>Vigotski</strong>,<br />
as duas coisas estão intimamente ligadas. Sobre‐<br />
tu<strong>do</strong>, por a consciência só poder vir a existir em<br />
função de relações sociais, tal como dissemos<br />
acima. Ele afirma, a respeito deste tema, que é<br />
“impossível relacionar‐se diretamente consigo<br />
mesmo” (VIGOTSKI, 1929/1989, p. 61), mas ape‐<br />
nas indiretamente, uma vez que “eu sou uma re‐<br />
lação social de mim comigo mesmo” (VIGOTSKI,<br />
1929/1989, p. 67). Além disso, utiliza de mo<strong>do</strong><br />
ilustrativo a alegoria de Pedro e Paulo, elaborada<br />
por Marx e Engels, a qual é retomada na íntegra<br />
em nota de Andrei Puzirei: “Ao simplesmente<br />
referir‐se à pessoa Paulo como alguém semelhan‐<br />
te a si próprio, a pessoa Pedro começa a referir‐se<br />
a si próprio como a uma pessoa. Mas até Paulo,<br />
como o to<strong>do</strong> de sua corporalidade paulina, torna‐<br />
se, para ele, uma manifestação da espécie ‘ho‐<br />
mem’” (MARX e ENGELS apud PUZIREI, 1989a, p.<br />
74). Assim, a atribuição de características ao ou‐<br />
tro, no campo “interpsíquico”, cria as possibilida‐<br />
des de que as atribuamos a nós mesmos, como<br />
que num espelho sem o qual não podemos obter<br />
nossa própria imagem, já que não somos capazes<br />
de nos enxergamos por completo sozinhos. Ao<br />
mesmo tempo, há algo ainda mais abrangente: a<br />
capacidade de reconhecer ao outro e a si mesmo<br />
como componentes <strong>do</strong> gênero humano, numa<br />
identificação de quem somos nós em diferencia‐<br />
ção aos outros seres no mun<strong>do</strong>. O outro nos no‐<br />
meia primeiro, mesmo antes de nascer já pode‐<br />
mos ter um nome escolhi<strong>do</strong> por nossos pais, de<br />
início as crianças podem se referir a elas mesmas<br />
<strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>, pelo próprio nome, em terceira<br />
pessoa. Mas o ato de referir‐se ao outro como<br />
alguém que tem nome próprio poderá lhe possibi‐<br />
litar então perceber que também tem nome pró‐<br />
prio e que ele pode ser designa<strong>do</strong> por um prono‐<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 17 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
me pessoal singular na primeira pessoa: “eu”. O<br />
compartilhar o processo de comunicação e de<br />
significação sobre as posições das pessoas nas<br />
relações umas com as outras, permitirá a emer‐<br />
gência da consciência tal como determinada pela<br />
existência social.<br />
Podemos a esta noção acrescentar a de consciên‐<br />
cia como “vivência de vivências”, ou “experiência<br />
de experiências”, conforme a tradução. A “vivên‐<br />
cia” (uma tradução para “perejivanie” 11 ), como<br />
veremos a seguir é uma unidade da relação “per‐<br />
sonalidade e meio”, uma unidade da consciência.<br />
Mas a consciência como tal, assim como é des<strong>do</strong>‐<br />
bramento <strong>do</strong> conhecimento sobre o próprio co‐<br />
nhecimento, é ainda uma vivência duplicada. Não<br />
só viver por estar vivo, como vive ou sobrevive um<br />
animal, mas ter a experiência vital com relação ao<br />
próprio ato de viver e todas as implicações que ele<br />
comporta. Isso não significa exatamente um ato<br />
de <strong>do</strong>mínio total sobre tu<strong>do</strong> que se passa em nos‐<br />
so viver, desde as sensações gerais que emanam<br />
<strong>do</strong>s órgãos <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s (exterocepção), ou das<br />
nossas estimulações internas (propriocepção e<br />
interocepção), até os movimentos pelos quais se<br />
organiza a própria lógica de nosso pensamento.<br />
Não se trata de uma onisciência de nós mesmos,<br />
mas o sentir a experiência presente para nós<br />
mesmos, seja ela de qual fonte for, mesmo que<br />
não tenha ainda um nome preciso que a defina.<br />
Nossa apropriação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> e de nossos próprios<br />
esta<strong>do</strong>s corporais estará posta para nós não como<br />
algo que nos é totalmente estranho. Mas como<br />
algo com o que, ao nos estranharmos e perce‐<br />
bermos o peso de sua singularidade, poderemos,<br />
ao mesmo tempo, nos identificarmos e sentirmos<br />
como nosso. Vivo a emoção de passar por uma<br />
situação social intensa, de <strong>do</strong>r ou prazer, de ale‐<br />
gria ou tristeza, de esperança ou de me<strong>do</strong>, de<br />
frustração ou de r<strong>ea</strong>lização, isso por si já é único.<br />
Mas, enquanto vivo, experiencio ainda o senti<strong>do</strong><br />
11 A palavra russa usada por <strong>Vigotski</strong> e outros autores como<br />
Rubinstein e Vasiliuk é “переживание” – “perejivanie”. Ela<br />
tem várias traduções, como: “experiência”; “experiência<br />
emocional”; “experiência vital”; “vivência”; “emoção”; “afli‐<br />
ção”; “provação”; dentre as principais. Eu a<strong>do</strong>tarei “vivência”<br />
como na edição espanhola das “Obras Escolhidas” de Vigots‐<br />
ki, apenas por ser uma palavra que traz em si um radical para<br />
“vida”, e “perejivanie” em russo tem a ver com o verbo arcai‐<br />
co “jivat’”: viver. Não é necessariamente a mesma concepção<br />
de “vivência” da psicologia “fenomenológico‐existencial”,<br />
embora haja espaço para esse diálogo.<br />
próprio dela para mim – naquela situação social<br />
dada num “aqui e agora”, mas também na memó‐<br />
ria posterior <strong>do</strong> já vivencia<strong>do</strong>, ampliação, redução,<br />
reinvenção <strong>do</strong> tempo‐espaço originário da vivên‐<br />
cia em si.<br />
Deste ponto, podemos nos ater à dupla caracteri‐<br />
zação da função da consciência como “reflexo e<br />
refração da r<strong>ea</strong>lidade”. Na concepção de <strong>Vigotski</strong><br />
a consciência é mediada pela linguagem, a lingua‐<br />
gem não é tida como sua mera forma de expres‐<br />
são exterior, mas como sua própria “substância”<br />
constitutiva, aquilo que lhe dá “corpo”. Falamos<br />
em “corpo” de mo<strong>do</strong> metafórico, mas lembramos<br />
da poesia de Osip Mandelshtan citada por Vigots‐<br />
ki: “esqueci a palavra que pretendia dizer, e meu<br />
pensamento, priva<strong>do</strong> de sua substância, volta ao<br />
reino das sombras” (apud VIGOTSKI, 1934/1989c,<br />
p. 103). Sen<strong>do</strong> então a consciência um processo<br />
semiótico, ou seja, constituí<strong>do</strong> por signos e signifi‐<br />
cação, podemos trazer para a compreensão dela a<br />
orientação de Bakhtin (1992) para quem to<strong>do</strong><br />
signo “reflete e refrata a r<strong>ea</strong>lidade”. Isto é, a lin‐<br />
guagem e, portanto, a consciência, são ao mesmo<br />
tempo capazes de nos proporcionar um espelho<br />
(reflexo) <strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l, fiel às suas contradições objeti‐<br />
vas, quanto de nos proporcionar imagens diver‐<br />
gentes (refratárias) destas mesmas contradições.<br />
Antes de me confrontar com a obra de Zaporojets<br />
(2002), importante colabora<strong>do</strong>r de <strong>Vigotski</strong>, eu<br />
vinha compreenden<strong>do</strong> o duplo aspecto reflexi‐<br />
vo/refratário da consciência como análogo à no‐<br />
ção de “consciência como processo cognitivo e<br />
afetivo” (ver DELARI, 2000, p. 80‐103). Ocorre que<br />
para Rubinstein (1972), o aspecto cognitivo da<br />
consciência está em ser sempre “consciência de<br />
algo” (implican<strong>do</strong> a compreensão de uma dada<br />
r<strong>ea</strong>lidade objetiva) e seu aspecto afetivo consiste<br />
em ser sempre “consciência da alguém” (sen<strong>do</strong><br />
relacionada às suas necessidades e motivações<br />
subjetivas). Meu engano estava em pensar que<br />
sempre o aspecto emocional estivesse envolvi<strong>do</strong><br />
em uma “refração” <strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l, em dar um colori<strong>do</strong><br />
particular à nossa leitura de mun<strong>do</strong>, que fizesse<br />
com que não déssemos conta da especificidade<br />
concreta <strong>do</strong> objeto apreendi<strong>do</strong>, mesmo que esse<br />
objeto fosse uma ação nossa.<br />
Com a leitura de Zaporojets (2002) fui leva<strong>do</strong> a<br />
repensar. Pois segun<strong>do</strong> ele, as emoções também<br />
têm a função de refletir a r<strong>ea</strong>lidade, não são ape‐<br />
nas um mo<strong>do</strong> irr<strong>ea</strong>lista de lidar com o mun<strong>do</strong>. É<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
possível compreender isso quan<strong>do</strong> um me<strong>do</strong> nos<br />
livra de situações desagradáveis, ou quan<strong>do</strong> um<br />
sentimento de solidariedade nos permite estabe‐<br />
lecer alianças como alguém em função de um bem<br />
comum, ou quan<strong>do</strong> um sentimento de responsabi‐<br />
lidade para com a fragilidade da vida de um bebê<br />
nos impulsiona a estarmos mais atentos no cuida‐<br />
<strong>do</strong> com ele. Assim o eixo refração/reflexão pode<br />
ter uma relação combinatória com o eixo afec‐<br />
ção/cognição, mas não são sinônimos. Diríamos<br />
por ora, que as emoções como aspecto inalienável<br />
da consciência e como mediadas pela linguagem,<br />
podem assim tanto refletir quanto refratar o r<strong>ea</strong>l,<br />
e a cognição <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong>. Podemos ter emo‐<br />
ções que não condizem com a r<strong>ea</strong>lidade como<br />
uma cólera com quem não nos fez exatamente um<br />
mal efetivo, assim como podemos ter cognições<br />
que não condizem com a r<strong>ea</strong>lidade, como uma<br />
teoria da conspiração de que o homem nunca<br />
chegou à lua. De to<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, fica apenas registra‐<br />
<strong>do</strong> que a consciência em <strong>Vigotski</strong> não é um pro‐<br />
cesso de natureza exclusivamente cognitiva ou<br />
racional, e a emoção no homem é momento fun‐<br />
damental da formação de seu psiquismo: "O afeto<br />
é o alfa e ômega, o primeiro e o último elo, o pró‐<br />
logo e o epílogo de to<strong>do</strong> o desenvolvimento psí‐<br />
quico" (VIGOTSKI, 1932/2006, p. 299). Está então<br />
presente desde as formações sistêmicas mais bá‐<br />
sicas, como o choro de um bebê, às mais comple‐<br />
xas e sutis, como a responsabilidade moral para<br />
com a vida desse mesmo bebê que chora. Um<br />
suposto ser humano exclusivamente racional não<br />
poderia ter uma visão r<strong>ea</strong>lmente r<strong>ea</strong>lista <strong>do</strong> mun‐<br />
<strong>do</strong>, estaria alheio às possibilidades de composição<br />
que nos proporcionam mais ou menos avanço,<br />
potência ou impotência, prazer ou <strong>do</strong>r, alegria ou<br />
tristeza.<br />
Por fim, muitas vezes liga<strong>do</strong> ao tema das emo‐<br />
ções, vem o problema da “consciência e sua rela‐<br />
ção com os processos não conscientes”. Creio que<br />
já esteja claro que “consciência” em <strong>Vigotski</strong> tem<br />
um papel muito diferente que o chama<strong>do</strong> “consci‐<br />
ente” em Freud, sobretu<strong>do</strong> o da primeira tópica<br />
que é ti<strong>do</strong> apenas como algo superficial e sem<br />
importância, uma “ponta <strong>do</strong> iceberg”. Quanto à<br />
segunda tópica não cabe nos pronunciarmos aqui,<br />
embora à consciência nela também não caiba<br />
alguma atribuição muito maior <strong>do</strong> que a de lidar<br />
com pressões de diferentes fontes. Mas se a me‐<br />
táfora histórico‐cultural fosse também com o gelo<br />
poderíamos dizer que a consciência em <strong>Vigotski</strong> é<br />
mais como o turbilhão de água e gelo produzi<strong>do</strong><br />
quan<strong>do</strong> um navio quebra‐gelo singra um mar gla‐<br />
cial. A consciência não está num lugar, num “to‐<br />
pos”, não é “tópica”, ela está mais para um movi‐<br />
mento, uma dinâmica, um poder de r<strong>ea</strong>lização,<br />
como se pode deduzir <strong>do</strong>s parágrafos anteriores.<br />
Entretanto, a consciência não é tu<strong>do</strong> em nossa<br />
personalidade, mesmo para a psicologia histórico‐<br />
cultural, até porque não é a consciência que r<strong>ea</strong>li‐<br />
za o trabalho <strong>do</strong> homem, mas o homem que r<strong>ea</strong>li‐<br />
za seu trabalho conscientemente e ao fazê‐lo não<br />
pode estar consciente de to<strong>do</strong>s os aspectos de sua<br />
ação, o que se ocorresse nos levaria a um colapso.<br />
O processo de agir conscientemente implica uma<br />
dialética com aspectos não conscientes da ativi‐<br />
dade. Segun<strong>do</strong> <strong>Vigotski</strong> na r<strong>ea</strong>lização de um de‐<br />
termina<strong>do</strong> ato, “a atividade da consciência pode<br />
seguir rumos diferentes” (1934/1989a, p. 78) 12 .<br />
Tal foco não pode deter‐se to<strong>do</strong> tempo num só<br />
objeto, e não pode de mo<strong>do</strong> algum deter‐se ao<br />
mesmo tempo em to<strong>do</strong>s os objetos de seu campo<br />
de atuação e percepção. A própria análise <strong>do</strong> pen‐<br />
samento esquizofrênico leva <strong>Vigotski</strong> (1933/1987)<br />
a afirmar que a descontinuidade da consciência<br />
constitui‐se em uma de suas funções saudáveis,<br />
ou seja, para um pensamento crítico com relação<br />
ao r<strong>ea</strong>l, é necessário “mudar de assunto”. Um<br />
pensamento cujo foco fosse indefinidamente o<br />
um mesmo tema discreto, ínfimo, insignificante,<br />
não seria o de uma consciência saudável. Ora, no<br />
fluxo de nosso pensamento não temos to<strong>do</strong> o<br />
<strong>do</strong>mínio de como transitamos de uma associação<br />
a outra, a própria motivação para cada mudança<br />
de assunto nem sempre está clara para nós.<br />
Tu<strong>do</strong> isso já é sabi<strong>do</strong>, porém cabe dizer que aqui<br />
não será de forma alguma esqueci<strong>do</strong> ou ignora<strong>do</strong>,<br />
embora não nos apressemos em encontrar causas<br />
ocultas ou explicações míticas para como isso se<br />
dá. Como procurei destacar em outro lugar (DE‐<br />
LARI, 2001), <strong>Vigotski</strong> vê as formulações teóricas de<br />
Freud sobre o tema inconsciente como demasia<strong>do</strong><br />
biologizantes, reconhecen<strong>do</strong> o mérito deste autor<br />
mais na formulação de boas perguntas <strong>do</strong> que nas<br />
12 É sabi<strong>do</strong> que o livro “Pensamento e linguagem” é uma<br />
junção de textos anteriores, feita por <strong>Vigotski</strong> em 1934, mas<br />
só os capítulos 1 e 7 são de 1934, os demais são de anos<br />
anteriores. Como no momento não tenho as datas <strong>do</strong>s de‐<br />
mais capítulos, os que forem cita<strong>do</strong>s aqui levarão a data<br />
original também de 1934. Posteriormente corrigirei essa<br />
imprecisão.<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
respostas que dá a elas. Por exemplo, elogia a<br />
dúvida que se pretende responder com a hipótese<br />
da “pulsão de morte”, dizen<strong>do</strong> não ser caminho<br />
fácil, mas “uma trilha alpina sobre os abismos para<br />
aqueles que não padecem de vertigens” (VIGOTS‐<br />
KI, 1991, p. 303). Mas não vê aí resposta apropria‐<br />
da e enfatiza que “a ciência também tem necessi‐<br />
dade desses livros: livros que não descubram ver‐<br />
dades, mas que ensinem a buscar a verdade, ain‐<br />
da que não a tenham encontra<strong>do</strong>” (idem – p. 303).<br />
Certamente, a obra <strong>do</strong> próprio <strong>Vigotski</strong> como de<br />
outros clássicos que conhecemos é também as‐<br />
sim, muitas vezes mais instigante nas perguntas<br />
<strong>do</strong> que conclusiva nas respostas. Desse mo<strong>do</strong>,<br />
aceitan<strong>do</strong> constatações comuns e o valor das dú‐<br />
vidas que elas nos trazem, é interessante lembrar<br />
também um tema talvez menos comum. Trata‐se<br />
<strong>do</strong> problema da relação <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s e mo<strong>do</strong> de<br />
operação da consciência com os seus motivos e<br />
sua orientação, os impulsos que animam e as me‐<br />
tas a que se dirigem nossas ações. Para <strong>Vigotski</strong>,<br />
como para Freud (ver VIGOTSKI, 1925/1999 e<br />
1930/1987,), não há emoção inconsciente: não<br />
tenho como estar triste sem me entristecer, nem<br />
alegre sem me alegrar. A emoção é sempre um<br />
fato r<strong>ea</strong>l e presente à consciência tal como desen‐<br />
volvida socialmente. Contu<strong>do</strong>, posso estar triste<br />
ou alegre, incomoda<strong>do</strong> ou satisfeito, sem ter co‐<br />
nhecimento claro <strong>do</strong> motivo que me levou a estar.<br />
É uma idéia simples, mas importante, que nos<br />
conduzirá a discussões posteriores. Por ora, cabe‐<br />
ria apenas destacar que não temos <strong>do</strong>mínio de<br />
to<strong>do</strong> o conjunto de relações sociais nas quais se<br />
constitui nosso drama de papéis, e os conflitos<br />
que lhes são próprios, mas a significação que da‐<br />
mos às coisas, aos outros e a nós mesmos, é cons‐<br />
tituída no interior de tais relações cuja totalidade<br />
nos escapa. Só isso já nos dará o que pensar, se<br />
concebermos o que não nos é consciente como<br />
tão social, histórico e cultural quanto nossa cons‐<br />
ciência, em sua dialética com ela. Poderíamos a<br />
isso acrescentar, portanto, a contribuição de Ba‐<br />
khtin (2004) de que a natureza mais profunda de<br />
nossos conflitos é essencialmente ideológica (va‐<br />
lorativa) e não biológica (instintiva), tal qual em<br />
outras abordagens. É quanto às motivações e ne‐<br />
cessidades sociais, aos valores ideológicos, i.e.,<br />
próprios a uma “visão de mun<strong>do</strong>”, que nos per‐<br />
guntamos: quais as forças motiva<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s nossos<br />
atos, como tomarmos consciência delas?<br />
Cabe lembrar que o tema da vivência se articula a<br />
essa discussão. Segun<strong>do</strong> <strong>Vigotski</strong>: “toda vivência<br />
está respaldada por uma influência r<strong>ea</strong>l, dinâmica,<br />
<strong>do</strong> meio com relação à criança. Desde este ponto<br />
de vista, a essência de toda a crise reside na rees‐<br />
truturação da vivência interior, reestruturação<br />
que radica na mudança <strong>do</strong> momento essencial<br />
que determina a relação da criança com o meio,<br />
isto é, na mudança de suas necessidades e moti‐<br />
vos que são os motores de seu comportamento. O<br />
incremento e a mudança dessas necessidades e<br />
apetências é o aspecto menos consciente e volun‐<br />
tário da personalidade e à medida que a criança<br />
passa de uma idade a outra, nascem nela novos<br />
impulsos, novos motivos ou, dito de outro mo<strong>do</strong>,<br />
os propulsores de sua atividade experimentam um<br />
r<strong>ea</strong>juste de valores. O que antes era essencial para<br />
a criança, valioso, apetecível, faz‐se relativo e<br />
pouco importante na etapa seguinte” (1933‐<br />
34/2006, p. 385 – grifo meu). No curso de nosso<br />
desenvolvimento nossas prioridades mudam, e<br />
não temos total <strong>do</strong>mínio quanto ao acontecimen‐<br />
to dessas mudanças, pois ocorrem no enlaçamen‐<br />
to de linhas biológicas e culturais, que não criamos<br />
em absoluto e com as quais vamos crian<strong>do</strong> a nós<br />
mesmos em nossas vivências. Isso não só na onto‐<br />
gênese com suas crises, mas também no interior<br />
de diversas outras crises próprias à nossa relação<br />
tensa com e na r<strong>ea</strong>lidade física, biológica e social<br />
da qual somos componentes e compositores, mas<br />
não necessariamente de mo<strong>do</strong> confortável ou<br />
harmonioso. Isto por ser a vida drama e drama ser<br />
conflito, por definição. Investigar o tema das ne‐<br />
cessidades, impulsos, motivos e, sobretu<strong>do</strong>, valo‐<br />
res, na dialética consciência/inconsciente torna‐se<br />
tarefa árdua e necessária para o desenvolvimento<br />
futuro da perspectiva histórico‐cultural. Tarefa<br />
para cujo cumprimento o suporte reside nos pró‐<br />
prios princípios comenta<strong>do</strong>s brevemente até aqui,<br />
ainda que seu desfecho nos ultrapasse.<br />
2.4 Princípio da compreensão da consciência me‐<br />
diante unidades<br />
Podemos, portanto, definir consciência de dife‐<br />
rentes e complementares maneiras, como: “co‐<br />
nhecimento partilha<strong>do</strong>” (co‐conhecimento); “pro‐<br />
cesso reflexivo” (meta‐conhecimento); “vivência<br />
de vivências”; “ato de reflexão e refração”; e ain‐<br />
da “síntese afetivo‐cognitiva”. Mas cabe notar<br />
ainda que nada disso é da<strong>do</strong> para o homem de<br />
mo<strong>do</strong> imediato, instantâneo. Trata‐se de caracte‐<br />
rísticas de nossa existência que se adquirem no<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 20 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
curso de nossas relações com os outros, que se<br />
modificam ao longo <strong>do</strong> desenvolvimento biológi‐<br />
co‐cultural, com o suporte de distintas mediações.<br />
O conjunto das funções da consciência, não só em<br />
suas características gerais, mas também na articu‐<br />
lação das funções mentais, como memória, aten‐<br />
ção, vontade, percepção, raciocínio, e a própria<br />
linguagem que proporciona relações inter‐<br />
funcionais, é um to<strong>do</strong> complexo, dinâmico e sis‐<br />
têmico, semanticamente estrutura<strong>do</strong>. Não temos<br />
como apreendê‐lo de mo<strong>do</strong> direto, nem instantâ‐<br />
neo. A consciência de alguém só se nos dá a ver<br />
por pistas, indícios, processos de exteriorização<br />
que por sua vez já transformam o que antes de<br />
serem r<strong>ea</strong>liza<strong>do</strong>s estava posto na esfera privada<br />
<strong>do</strong> psiquismo dessa pessoa. Não podemos ter<br />
acesso direto ao ser <strong>do</strong> outro, tampouco temos<br />
acesso direto ao nosso próprio ser, mas indireto,<br />
media<strong>do</strong> por palavras que com mais alguém a‐<br />
prendemos. <strong>Vigotski</strong> aborda esse problema não<br />
pela via da postulação de um incomunicabilidade<br />
a to<strong>do</strong> custo de um ser humano com outro, isto é,<br />
não pelo chama<strong>do</strong> “solipsismo”. Mas por uma via<br />
indireta. Não se pode dizer que não somos capa‐<br />
zes de estudar o átomo tão somente porque não<br />
podemos vê‐lo, que só o poderíamos estudar se<br />
ele nos afetasse os órgãos <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s. Assim<br />
também não se pode abdicar <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> da cons‐<br />
ciência, o que há de especificamente humano em<br />
nosso psiquismo, por não termos acesso direto a<br />
ela. Toma‐se um caminho indireto, aborda‐se o<br />
objeto de estu<strong>do</strong> mediante suas manifestações, e<br />
com apoio delas se busca reconstruir sua gênese.<br />
Nesse contexto, pode‐se colocar em pauta a dis‐<br />
cussão sobre as chamadas “unidades de análise”.<br />
A unidade, para <strong>Vigotski</strong>, diferente <strong>do</strong>s “elemen‐<br />
tos”, contém de mo<strong>do</strong> condensa<strong>do</strong> as principais<br />
contradições <strong>do</strong> to<strong>do</strong>. Como uma célula viva pos‐<br />
sui as funções principais de um ser vivo completo,<br />
como o processo de produção de valor de troca<br />
possui as contradições principais da economia<br />
capitalista.<br />
Contu<strong>do</strong>, se a célula pode ser uma unidade da<br />
biologia, e a produção de valor de troca uma uni‐<br />
dade da economia política, qual seria a unidade de<br />
análise da psicologia, para o estu<strong>do</strong> da consciên‐<br />
cia? Toda uma discussão sobre o méto<strong>do</strong> científi‐<br />
co se ergue em torno disso, em outras abordagens<br />
temos diversas unidades. Na própria psicologia<br />
marxista soviética, há mais de uma formulação e<br />
nem to<strong>do</strong>s concordam sobre qual deveria ser essa<br />
peça chave na compreensão da mente humana.<br />
Mas, aten<strong>do</strong>‐nos por enquanto apenas ao próprio<br />
<strong>Vigotski</strong>, entendamos que há duas formas princi‐<br />
pais dele mesmo compreender a unidade para a<br />
consciência, uma unidade que é tanto no senti<strong>do</strong><br />
de como a consciência existe mesmo, se constitui,<br />
quan<strong>do</strong> simultan<strong>ea</strong>mente no senti<strong>do</strong> de como se a<br />
pode estudar. No campo das relações entre “per‐<br />
sonalidade e meio” essa unidade é a “vivência”<br />
(“perejivanie” 13 ), no âmbito das relações entre<br />
“pensamento e linguagem” essa unidade é o “sig‐<br />
nifica<strong>do</strong> da palavra”, “palavra significativa” ou<br />
simplesmente “palavra”, consideran<strong>do</strong> que só<br />
pode ser palavra se tiver significa<strong>do</strong>. No meu en‐<br />
tendimento não são “instâncias” separadas, pala‐<br />
vra e vivência compõem‐se mutuamente: com a<br />
palavra eu digo o que vivenciei; com a vivência<br />
minha palavra tem r<strong>ea</strong>lmente o que dizer. Contu‐<br />
<strong>do</strong>, o campo das relações “personalidade e meio”<br />
não pode deixar de nos parecer mais vasto, posto<br />
que meio social está ainda em composição com o<br />
meio biológico e o físico, posto que a personalida‐<br />
de não envolve só o que é consciente, mas tam‐<br />
bém o que não é. Ainda assim, será só mediante a<br />
linguagem que esse campo vasto poderia deixar<br />
de ser apenas algo “em si” e tornar‐se também<br />
“para si”, isto é: não só existir como tal, mas tam‐<br />
bém para alguém, significan<strong>do</strong>‐lhe algo, fazen<strong>do</strong>‐<br />
lhe algum senti<strong>do</strong>. Desta forma, o menos vasto<br />
não é de importância ontológica nem meto<strong>do</strong>lógi‐<br />
ca menor. Porém, pela ordem da exposição, co‐<br />
mentemos primeiro algo sobre a vivência como<br />
unidade e em seguida sobre o significa<strong>do</strong>.<br />
Um <strong>do</strong>s principais momentos em que <strong>Vigotski</strong><br />
discute a questão da vivência como unidade afeti‐<br />
vo‐cognitiva foi em uma comunicação oral sua,<br />
cuja transcrição posteriormente recebeu o título<br />
de “O problema <strong>do</strong> ambiente” (VIGOTSKI, 1935/<br />
1994) 14 . Ali <strong>Vigotski</strong> procura destacar que a influ‐<br />
ência <strong>do</strong> meio social sobre a criança não é absolu‐<br />
ta, mas relativa ao seu momento de desenvolvi‐<br />
mento e a assim à sua vivência. Isso não se aplica<br />
só às crianças, mas o exemplo prático trabalha<strong>do</strong><br />
pelo autor é o de três crianças com dificuldades<br />
no processo educativo, que haviam presencia<strong>do</strong> o<br />
a<strong>do</strong>ecimento da mãe, por alcoolismo, e todas as<br />
13 Confira a nota “11”, p. 18.<br />
14 Aqui também, a fonte só fornece o ano da primeira publi‐<br />
cação, mas não a data de quan<strong>do</strong> o trabalho teria si<strong>do</strong> conclu‐<br />
í<strong>do</strong>.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 21 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
conseqüências desse processo nas relações dela<br />
com elas. O que ele argumenta é que com uma<br />
influência <strong>do</strong> meio relativamente estável, a <strong>do</strong>en‐<br />
ça da mãe, as crianças vieram a apresentar atitu‐<br />
des bastante diversas. O mais novo desenvolve<br />
“sintomas neuróticos”, subjuga<strong>do</strong> pelo horror<br />
acaba por entrar em “esta<strong>do</strong> de depressão com‐<br />
pleta e desamparo”. O segun<strong>do</strong> experimenta um<br />
“complexo de mãe‐bruxa”, no qual “o amor pela<br />
mãe e o terror pela bruxa coexistem” (VIGOTSKI,<br />
1935/1994, p. 340), o que o levava a um compor‐<br />
tamento contraditório, como quan<strong>do</strong> pediu para<br />
ser leva<strong>do</strong> para casa, mas logo demonstrou terror<br />
quan<strong>do</strong> se voltou a tocar no assunto. Por fim, o<br />
terceiro tinha habilidade mental limitada, mas<br />
“mostrou sinais de maturidade precoce, seriedade<br />
e solicitude” (VIGOTSKI, 1935/1994, p. 340), as‐<br />
sumin<strong>do</strong> um papel de “adulto da casa” e cuidan<strong>do</strong><br />
<strong>do</strong>s demais. <strong>Vigotski</strong> entende que “era uma crian‐<br />
ça cujo curso <strong>do</strong> desenvolvimento normal foi vio‐<br />
lentamente cindi<strong>do</strong>, um tipo diferente de criança”<br />
(1935/1994, p. 341) cujos interesses não eram<br />
simples como os próprios de sua idade. Seriam<br />
esses alguns exemplos clínicos de vivências dife‐<br />
rentes, momentos de desenvolvimento distintos,<br />
mas, acima de tu<strong>do</strong>, sínteses diversas entre os<br />
momentos de desenvolvimento e as influências <strong>do</strong><br />
meio social. Cabe ao <strong>psicólogo</strong> histórico‐cultural<br />
investigar e compreender tais vivências e não ao<br />
meio como índice absoluto, nem à bagagem gené‐<br />
tica como índice absoluto. Outro exemplo, da<strong>do</strong><br />
por <strong>Vigotski</strong> no mesmo texto, de cunho mais geral,<br />
é o da influência da linguagem <strong>do</strong>s adultos sobre<br />
as crianças. Posto que o mo<strong>do</strong> como os adultos<br />
falam uns com os outros na presença da criança, a<br />
estrutura gramatical, o vocabulário, etc., não é<br />
distinto para uma criança pequena, para uma pré‐<br />
escolar, uma escolar, etc., contu<strong>do</strong> a influência é<br />
distinta em cada momento. O processo de desen‐<br />
volvimento importa para a compreensão de como<br />
o meio social pode influir sobre a criança. Embora<br />
o desenvolvimento não seja uma força isolada,<br />
mas já um processo auto‐determina<strong>do</strong> geral que<br />
sintetiza tanto a influência <strong>do</strong> meio, quanto da<br />
herança. Tal idéia será apresentada talvez de mo‐<br />
<strong>do</strong> ainda mais dinâmico em outro texto <strong>do</strong> autor,<br />
também proveniente de uma conferência minis‐<br />
trada em Moscou, que se intitulou “a crise <strong>do</strong>s<br />
sete anos” (VIGOTSKI, 1933‐34/2006). 15<br />
15 Já cita<strong>do</strong> anteriormente para discutir a questão das mu‐<br />
Nessa conferência o autor disse claramente: “po‐<br />
demos assinalar (...) a unidade para o estu<strong>do</strong> da<br />
personalidade e o meio. Em psicologia e psicopa‐<br />
tologia essa unidade se chama vivência. A vivência<br />
da criança é a aquela simples unidade sobre a qual<br />
é difícil dizer se representa a influência <strong>do</strong> meio<br />
sobre a criança ou uma peculiaridade da própria<br />
criança. A vivência constitui a unidade da persona‐<br />
lidade e <strong>do</strong> entorno tal como figura no desenvol‐<br />
vimento. Portanto, no desenvolvimento, a unida‐<br />
de <strong>do</strong>s elementos pessoais e ambientais se r<strong>ea</strong>liza<br />
em uma série de diversas vivências da criança. A<br />
vivência deve ser entendida como a relação inte‐<br />
rior da criança como ser humano, com um ou ou‐<br />
tro momento da r<strong>ea</strong>lidade. Toda a vivência é vi‐<br />
vência de algo. Não há vivências sem motivo, co‐<br />
mo não há ato consciente que não seja ato de<br />
consciência de algo. Entretanto, cada vivência é<br />
pessoal. A teoria moderna introduz a vivência<br />
como unidade da consciência, isto é, como unida‐<br />
de na qual as possibilidades básicas da consciência<br />
figuram como tais, enquanto que na atenção, no<br />
pensamento não se dá tal relação. A atenção não<br />
é uma unidade da consciência, senão um elemen‐<br />
to da consciência, carente de outros elementos,<br />
com a particularidade de que a integridade da<br />
consciência como tal desaparece. A verdadeira<br />
unidade dinâmica da consciência, unidade plena<br />
que constitui a base da consciência é a vivência.”<br />
(VIGOTSKI, 1933‐34/2006, p. 383). Nas funções<br />
psicológicas isoladas (atenção, pensamento, me‐<br />
mória, percepção), não se poderia ter uma síntese<br />
mais fiel <strong>do</strong> conjunto da ação da consciência. A<br />
vivência não é só o que pensamos, ou para o que<br />
estamos atentos, mas o ato integral <strong>do</strong> homem de<br />
pensar, atentar, sentir, lembrar, perceber, um<br />
da<strong>do</strong> momento de sua existência, produzin<strong>do</strong><br />
senti<strong>do</strong>s para ela. Nessa direção, entendemos que<br />
a mediação da linguagem está presente na vivên‐<br />
cia como um <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s de buscarmos compre‐<br />
ender a dinâmica da consciência da qual a vivência<br />
é uma unidade viva essencial.<br />
Assim, por um la<strong>do</strong>, a vivência é, como vimos,<br />
uma unidade cognitivo‐afetiva de interpretação e<br />
sentimento <strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l na qual a consciência r<strong>ea</strong>liza<br />
sua potência e ao mesmo tempo, portanto, uma<br />
unidade “personalidade e meio”, uma vez que a<br />
consciência também poder ser definida como “a<br />
danças <strong>do</strong>s motivos, necessidades e valores na página 20.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 22 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
relação da criança com o meio” (VIGOTSKI, 1933‐<br />
34/2006, p. 386). Por outro, a consciência enten‐<br />
dida como referente também a uma relação entre<br />
a linguagem e o pensamento terá como sua uni‐<br />
dade o “significa<strong>do</strong>”, que é ao mesmo tempo um<br />
fenômeno da comunicação social e da organização<br />
sistêmica das funções mentais. Não é um tema de<br />
compreensão simples. Poderíamos imaginar que a<br />
linguagem fosse um aspecto <strong>do</strong> meio, e o pensa‐<br />
mento um aspecto da personalidade – para falar‐<br />
mos de mo<strong>do</strong> didático sobre pares distintos que<br />
se inter‐relacionam. Assim, como nem tu<strong>do</strong> que é<br />
meio é linguagem, e nem tu<strong>do</strong> o que é personali‐<br />
dade é pensamento, seria uma distinção apenas<br />
quanto ao grau de abrangência. Contu<strong>do</strong>, como<br />
não se trata só de “combinação” ou “interação”<br />
entre os pólos distintos, mas de inter‐constituição<br />
e integração dialética, a divisão “{meio (lingua‐<br />
gem)} {personalidade (pensamento)}” é im‐<br />
precisa e insuficiente. Por quais motivos? Primeiro<br />
porque o ser humano faz parte de seu próprio<br />
meio e “seu meio nunca é externo para ele” (VI‐<br />
GOTSKI, 1933‐34/2006, p. 382), depois porque a<br />
própria personalidade já é definida como “o social<br />
em nós” (VIGOTSKI, 1931/2000, p. 337). Ou seja,<br />
ela não é algo independente, pré‐existente às<br />
relações com o meio que pela pressão ou permis‐<br />
são dele apenas “é modificada”, ou “modelada”<br />
como uma massa passiva antes indiferenciada que<br />
toma forma pela ação de uma força exterior. Dito<br />
de mo<strong>do</strong> metafórico, a personalidade não seria<br />
como uma marionete de uma peça de t<strong>ea</strong>tro, sob<br />
o controle de uma manipula<strong>do</strong>ra “sociedade”,<br />
seria mais como a encarnação <strong>do</strong> ator situa<strong>do</strong><br />
com relação aos demais na performance <strong>do</strong> drama<br />
da vida social, com toda tensão e conflito que ele<br />
envolve.<br />
De mo<strong>do</strong> análogo, embora não idêntico, a lingua‐<br />
gem também não pode ser considerada como algo<br />
totalmente “externo a nós”. Quan<strong>do</strong> eu ouço al‐<br />
guém falar, as suas palavras existem, por um la<strong>do</strong>,<br />
independentemente de mim: (a) de meu corpo, na<br />
materialidade sonora delas, como ondas, como<br />
energia que se propaga, etc.; (b) de minha vonta‐<br />
de, na sua especificidade semântica como posição<br />
ideológica de alguém, com história própria, que<br />
não se subordina à minha, mesmo que para falar‐<br />
me sempre leve em conta minha possível réplica.<br />
Por outro la<strong>do</strong>, nesse mesmo ato de ouvir, a lin‐<br />
guagem só se r<strong>ea</strong>liza: (a’) se é produzida em mim<br />
uma materialidade neurofisiológica que sustenta<br />
minha audição e transpõe sua codificação para as<br />
ár<strong>ea</strong>s cerebrais correspondentes; tanto quanto<br />
(b’) se eu, além disso, atribuo senti<strong>do</strong>s para o que<br />
o outro pronuncia, no próprio ato de dirigir a ele<br />
minha réplica, com aprovação e/ou rejeição, com<br />
algum juízo de valor. Pensan<strong>do</strong> assim, como dizer<br />
se a linguagem é algo <strong>do</strong> meio social ou de nós<br />
mesmos? Não seria ao mesmo tempo de ambos,<br />
até porque somos parte desse meio que não nos é<br />
externo? Não seria um fenômeno de “interface”?<br />
O mesmo ocorre ao falarmos com alguém: falo<br />
produzin<strong>do</strong> o signo de meu convite à réplica ao<br />
outro, mas a um só tempo ouço o que falo como<br />
que vin<strong>do</strong> de “fora”. O signo possui tanto “rever‐<br />
sibilidade” (pode originar‐se de mim e dirigir‐se<br />
também a mim) quanto “simultaneidade” (pode<br />
existir ao mesmo tempo em mim e não apenas em<br />
mim). O fenômeno ocorre em nossos cérebros,<br />
mas também para além deles, em ligações que<br />
Luria chamou de “extra‐corticais”. As fronteiras<br />
“interno” e “externo” na linguagem se diluem.<br />
Que dizer então <strong>do</strong> pensamento? Talvez, em com‐<br />
paração com os termos já comenta<strong>do</strong>s (personali‐<br />
dade, meio, linguagem), seja aquele ao qual mais<br />
comumente possamos atribuir uma característica<br />
privada, íntima, “interior” – pois “como saber<br />
r<strong>ea</strong>lmente o que outra pessoa está pensan<strong>do</strong>?”.<br />
Mas também o pensamento é fenômeno de inter‐<br />
face. Em primeiro lugar, porque para pensarmos é<br />
preciso pensar “sobre algo”. Não há pensamento<br />
“puro”, sem imagens, sem impressões, sem influ‐<br />
ências, sem voltar‐se à compreensão de alguma<br />
coisa que não seja só ele mesmo. Em segun<strong>do</strong><br />
lugar, porque também é preciso pensar “de algum<br />
mo<strong>do</strong>”. Não há pensamento sem mo<strong>do</strong>s de orga‐<br />
nizá‐lo, sem formas de construir um argumento,<br />
mediante recursos retóricos que se voltem ao<br />
convencimento e/ou à busca de consensos, etc. E<br />
tais mo<strong>do</strong>s de organização também não nascem<br />
conosco, precisamos aprendê‐los em <strong>prática</strong>s<br />
partilhadas com outras pessoas. Contu<strong>do</strong>, não por<br />
uma oposição externo‐interno, mas pela própria<br />
complexidade <strong>do</strong>s fatores envolvi<strong>do</strong>s nas relações<br />
de constituição mútua entre pensamento e lin‐<br />
guagem, a noção <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> da palavra como<br />
unidade dessa relação se faz importante. Justa‐<br />
mente porque uma palavra significativa é tanto<br />
algo que pertence às relações sociais quanto aos<br />
processos de generalização <strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l próprios ao<br />
funcionamento <strong>do</strong> pensamento.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 23 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
Na palavra, o seu som ou traço escrito não são um<br />
fenômeno que se esgote em sua própria existên‐<br />
cia imediata, não são apenas uma “coisa” entre<br />
outras no mun<strong>do</strong>, que só pode nos afetar como<br />
estímulo aos nossos órgãos sensoriais. Ao contrá‐<br />
rio, na palavra, o som ou traço estão ali designan‐<br />
<strong>do</strong> ou significan<strong>do</strong> algo que não eles mesmos,<br />
para além deles e que, mediante eles, de alguma<br />
maneira, torna‐se presente. Se alguém diz: “cho‐<br />
verá”, a palavra evidentemente não é a própria<br />
chuva, mas ela é capaz de nos indicar o que pode<br />
vir a acontecer. Se eu digo: “estive em Campinas”,<br />
também meus signos não têm senti<strong>do</strong> senão ao<br />
possibilitar a outrem posicionar‐se frente ao que<br />
digo, perguntan<strong>do</strong> que fui fazer lá ou sugerin<strong>do</strong><br />
que não lhe importa o assunto, por exemplo. As‐<br />
sim, a linguagem para significar demanda que seu<br />
componente sensorialmente presente remeta a<br />
algo que não está necessariamente presente no<br />
campo perceptivo. Seja por nossas palavras reme‐<br />
terem a algo distante no tempo e/ou no espaço: a<br />
chuva (aqui, mas depois); Campinas (lá e antes).<br />
Seja pelo dito/escrito não poder traduzir‐se por<br />
imagem sensorial tão nítida, mesmo acontecen<strong>do</strong><br />
aqui e agora: a apreensão pela proximidade da<br />
chuva; a satisfação pela lembrança da viagem, etc.<br />
A palavra pode nos transportar à experiência da<br />
chuva ou da viagem, não apenas por ser feita de<br />
som ou traço, em si, mas por ter um “significa<strong>do</strong>”.<br />
Chamemos de “significa<strong>do</strong>” o processo de genera‐<br />
lização que nos permite vincular som/traço (signi‐<br />
ficante) com aquilo a que ele se refere (referente).<br />
Seja esse referente algo conversível em represen‐<br />
tação sensorial em nossa imaginação – como nu‐<br />
vens escuras carregadas para a chuva ou a dispo‐<br />
sição de estrelas junto à Lua num começo de noite<br />
em Campinas. Seja ele algo mais dinâmico e/ou<br />
abstrato – como os sentimentos de apreensão ou<br />
satisfação com relação à experiência vivida ou por<br />
viver. O significa<strong>do</strong>, portanto, não é nem o objeto<br />
em si, nem o som/traço em si, mas a nossa ação<br />
semiótica em r<strong>ea</strong>lizar algum mo<strong>do</strong> de articulação<br />
entre os <strong>do</strong>is. Uma só palavra pode remeter e<br />
remete a diferentes objetos: a palavra “homem”<br />
não se refere somente a “este” ser humano que<br />
aqui vejo e nomeio, ela se torna para mim um<br />
conceito geral, aplicável mesmo para pessoas que<br />
ainda não vi ou jamais verei. <strong>Vigotski</strong> (1934/1987;<br />
1934/1989b; 1934/2001) fala <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> como<br />
uma generalização ou um conceito. E a palavra<br />
não é palavra se não tem esse poder de generali‐<br />
zação, esse poder de remeter a outras r<strong>ea</strong>lidades<br />
que não são ela mesma, mas que mediante ela, de<br />
diversos mo<strong>do</strong>s, são evocadas, desde os mais sin‐<br />
créticos, desorganiza<strong>do</strong>s, aos mais conceituais,<br />
sistemáticos e ordena<strong>do</strong>s. Por este motivo, dentre<br />
outros, o “significa<strong>do</strong>” pode se tornar unidade de<br />
análise para as relações “pensamento e lingua‐<br />
gem”, unidade para a compreensão da consciên‐<br />
cia.<br />
Trata‐se, portanto, de um tema essencial na obra<br />
de <strong>Vigotski</strong>, e também repleto de des<strong>do</strong>bramen‐<br />
tos impossíveis de retratar detalhadamente aqui.<br />
Neste momento, como algo a retomar em segui‐<br />
da, vale destacar que junto ao conceito de signifi‐<br />
ca<strong>do</strong> situa‐se o de senti<strong>do</strong>, o qual para <strong>Vigotski</strong> é<br />
uma “região” mais ampla da significação, sen<strong>do</strong> o<br />
significa<strong>do</strong> só “um potencial, que só pode ser r<strong>ea</strong>‐<br />
liza<strong>do</strong> na fala viva, e na fala viva o significa<strong>do</strong> é<br />
apenas uma pedra no edifício <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>” (Vigots‐<br />
ki, 1934/1987 p. 276). A noção de senti<strong>do</strong> em Vi‐<br />
gotski também é social. Não se trata exatamente<br />
de que apenas o significa<strong>do</strong> seja social e o senti<strong>do</strong><br />
pessoal. Essa é uma forma de pensar, não é incor‐<br />
reta, mas também não é de to<strong>do</strong> precisa. Se para<br />
haver senti<strong>do</strong> é necessário haver linguagem, e se<br />
o senti<strong>do</strong> é algo próprio da linguagem não pode<br />
deixar de ser um processo tanto pessoal quanto<br />
social. Contu<strong>do</strong>, o que leva alguns autores a cate‐<br />
gorizar o senti<strong>do</strong> como algo pre<strong>do</strong>minantemente<br />
“subjetivo”, pode ser o fato de que o senti<strong>do</strong> im‐<br />
plica uma singularidade mais evidente para o nos‐<br />
so mo<strong>do</strong> de sentir e compreender cada palavra,<br />
cada signo. O senti<strong>do</strong> atribuí<strong>do</strong> por cada pessoa<br />
em particular para uma mesma “chuva”, para uma<br />
mesma “viagem”, cujo significa<strong>do</strong> já múltiplo<br />
permite a composição de regiões semânticas par‐<br />
tilhadas, tende a ser ainda mais diverso e multifa‐<br />
ceta<strong>do</strong>. O senti<strong>do</strong> é potencialmente único, no<br />
limite “intransferível” em sua totalidade, plasma‐<br />
<strong>do</strong> possivelmente à própria vivência singular de<br />
cada pessoa, um acontecimento que não se repe‐<br />
te. Ainda assim, não é totalmente precisa a afir‐<br />
mação de que ele não seja social em sua origem e<br />
funcionamento. Por um la<strong>do</strong>, porque para se fazer<br />
tão impar e multifaceta<strong>do</strong>, o senti<strong>do</strong> comporta em<br />
sua r<strong>ea</strong>lização já toda a trajetória de vida de al‐<br />
guém, na qual, junto aos outros, se constitui sua<br />
“visão de mun<strong>do</strong>” (ou ideologia, lato sensu) e está<br />
implica<strong>do</strong> o desenvolvimento de sua personalida‐<br />
de, social por definição. Por outro, porque sua<br />
definição envolve o reconhecimento de uma ten‐<br />
são constitutiva <strong>do</strong> processo de significação que<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 24 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
r<strong>ea</strong>liza, tensão essa inerente ao drama de papéis<br />
sociais assumi<strong>do</strong>s por cada pessoa, e ao ato afeti‐<br />
vo‐volitivo necessário para situar‐se nesse drama,<br />
assumin<strong>do</strong> papéis e posições, confrontan<strong>do</strong> moti‐<br />
vações e necessidades concorrentes, transfor‐<br />
man<strong>do</strong>‐as em outras nesse mesmo ato, r<strong>ea</strong>lizan<strong>do</strong><br />
escolhas imprescindíveis para a vida seguir seu<br />
curso.<br />
De qualquer maneira isso não diminui o lugar <strong>do</strong><br />
significa<strong>do</strong>, pois não está isola<strong>do</strong> da construção <strong>do</strong><br />
“edifício” <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>. Não é uma modalidade peri‐<br />
férica da significação, mas uma unidade que pode<br />
permitir‐nos compreender os campos mais am‐<br />
plos <strong>do</strong> senti<strong>do</strong>, da vivência e da própria consciên‐<br />
cia. De fato palavras como “chuva” e “viagem”,<br />
podem produzir inumeráveis efeitos de senti<strong>do</strong>,<br />
formações de senti<strong>do</strong>, em função de quem está<br />
falan<strong>do</strong>, para quem, por quais motivos, com quais<br />
orientações, de que mo<strong>do</strong>, com relação a quais<br />
referentes, e assim por diante. Contu<strong>do</strong>, o fato de<br />
haver um acor<strong>do</strong> social relativo à constituição <strong>do</strong>s<br />
campos semânticos para tais palavras, isto é, com<br />
relação que modalidades de generalização elas<br />
mais comumente são postas a produzir, não é<br />
impeditivo da singularidade <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, mas<br />
também uma das suas condições de possibilidade.<br />
O mesmo se pode dizer para quan<strong>do</strong> é necessário<br />
nos fazermos, em meio a toda diversidade inesgo‐<br />
tável <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s, entender por alguém, dizer‐lhe<br />
algo que posicione nossas motivações e necessi‐<br />
dades, nossas orientações e propósitos, nossos<br />
compromissos e valores, mesmo sen<strong>do</strong> eles algo<br />
tão nosso, tão priva<strong>do</strong>, tão íntimo e intransferível.<br />
Assim tanto a difusão <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s em senti‐<br />
<strong>do</strong>s, quanto a condensação <strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s em signi‐<br />
fica<strong>do</strong>s, são momentos dialéticos de um mesmo<br />
processo que é a significação, ou a mediação se‐<br />
miótica, ambos os termos toma<strong>do</strong>s em sua acep‐<br />
ção mais abrangente, como produção de significa‐<br />
<strong>do</strong>s e senti<strong>do</strong>s mediante o signo, mediante a pala‐<br />
vra como signo humano por excelência, seja ela<br />
falada, escrita ou gesticulada. Por fim, o tema da<br />
unidade de análise em <strong>Vigotski</strong>, <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> da<br />
palavra como unidade de análise é correlato ao da<br />
“palavra significativa” como “microcosmo”. Se‐<br />
gun<strong>do</strong> este autor: “A palavra se relaciona com a<br />
consciência (...) como a célula viva com o orga‐<br />
nismo, como o átomo com o cosmos. (...) A pala‐<br />
vra significativa é o microcosmo da consciência<br />
humana.” (VIGOTSKI, 1934/1989d, p. 208 – grifo<br />
na fonte). Quanto a esta passagem devo destacar<br />
<strong>do</strong>is pontos: (a) certamente que a palavra não<br />
pode tomar to<strong>do</strong> o lugar da consciência, como<br />
célula e átomo não são mais importantes que<br />
organismo e cosmos; mas também (b) como uni‐<br />
dade viva ela não é algo simplesmente “utiliza<strong>do</strong>”<br />
pela consciência de tal mo<strong>do</strong> que pudesse de al‐<br />
guma maneira tornar‐se “dispensável”, ao contrá‐<br />
rio, a totalidade não se r<strong>ea</strong>liza sem sua unidade<br />
constitutiva.<br />
2.5 Princípio da compreensão <strong>do</strong> psiquismo huma‐<br />
no mediante sua gênese histórica (origem e de‐<br />
senvolvimento)<br />
Discorremos no tópico anterior sobre duas unida‐<br />
des possíveis para a definição da própria existên‐<br />
cia da consciência (critério ontológico) e para a<br />
definição de como analisá‐la, compreendê‐la (cri‐<br />
tério meto<strong>do</strong>lógico). Discorren<strong>do</strong> brevemente<br />
sobre o lugar <strong>do</strong> conceito de “significa<strong>do</strong>” em<br />
<strong>Vigotski</strong>, pudemos tocar no tema das relações<br />
pensamento e linguagem, e das relações senti<strong>do</strong> e<br />
significa<strong>do</strong>. Contu<strong>do</strong>, tal exposição fica deven<strong>do</strong><br />
ainda a alusão a uma proposição que <strong>Vigotski</strong><br />
considera um ponto central em sua teoria sobre<br />
as relações entre pensamento e linguagem. Refe‐<br />
rin<strong>do</strong>‐se a estu<strong>do</strong>s r<strong>ea</strong>liza<strong>do</strong>s por seu grupo, diz<br />
que eles: “mostraram que toman<strong>do</strong> o significa<strong>do</strong><br />
da palavra como uma unidade <strong>do</strong> pensamento<br />
verbal nós criamos o potencial para investigar seu<br />
desenvolvimento e explicar sua característica mais<br />
importante nos vários estágios de desenvolvimen‐<br />
to. O resulta<strong>do</strong> principal deste trabalho, contu<strong>do</strong>,<br />
não é esta tese por ela mesma, mas uma conclu‐<br />
são subseqüente que constitui o centro conceitual<br />
de nossa investigação, qual seja, a conclusão de<br />
que o significa<strong>do</strong> da palavra desenvolve‐se. A des‐<br />
coberta de que o significa<strong>do</strong> da palavra muda e se<br />
desenvolve é nossa maior e fundamental contribu‐<br />
ição à teoria <strong>do</strong> pensamento e da fala. É nossa<br />
principal descoberta, uma descoberta que tem<br />
nos permiti<strong>do</strong> superar o postula<strong>do</strong> da constância e<br />
imutabilidade <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> da palavra que garan‐<br />
te os fundamentos das teorias anteriores <strong>do</strong> pen‐<br />
samento e da fala” (VIGOTSKI, 1934/1987, p. 245‐<br />
245 – grifo na fonte). O desenvolvimento <strong>do</strong> signi‐<br />
fica<strong>do</strong> das palavras é trata<strong>do</strong> ao longo de to<strong>do</strong> o<br />
livro “Pensamento e linguagem” (VIGOTSKI,<br />
1934/1987; 1934/1989b; 1934/2001). Há duas<br />
formas importantes pelas quais tal processo de<br />
desenvolvimento é aborda<strong>do</strong>: uma é o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s<br />
“conceitos artificiais”, outra é o estu<strong>do</strong> da relação<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 25 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
entre os “conceitos cotidianos e os científicos”.<br />
Sem entrar em detalhes, <strong>do</strong> primeiro tipo de estu‐<br />
<strong>do</strong> se deduziram três grandes modalidades de<br />
organização <strong>do</strong>s significa<strong>do</strong>s e/ou da relação pen‐<br />
samento e linguagem: (a) sincretismo (aglomera‐<br />
ção); (b) pensamento por complexos (associa‐<br />
ções); (c) conceitos propriamente ditos (sistemati‐<br />
zação). Para a criança pequena pre<strong>do</strong>mina a pri‐<br />
meira, para o adulto a última, mas ao longo <strong>do</strong><br />
tempo ou num mesmo perío<strong>do</strong> elas se combinam<br />
também. Nada impede que nós adultos tenhamos<br />
compreensão sincrética de assuntos novos ou<br />
difíceis de aprender, nem que procedamos por<br />
associações assistemáticas ou pré‐conceituais em<br />
alguns temas. O segun<strong>do</strong> tipo de estu<strong>do</strong> foi o que<br />
procurou investigar as relações entre conceitos<br />
“cotidianos” e “científicos”. Disto se tiraram as<br />
conclusões gerais de que: os conceitos cotidianos<br />
avançam <strong>do</strong> concreto para o abstrato com ajuda<br />
<strong>do</strong>s científicos; já os científicos avançam <strong>do</strong> abs‐<br />
trato para o concreto, com ajuda <strong>do</strong>s cotidianos.<br />
É algo semelhante o que pode se passar com um<br />
grupo de estu<strong>do</strong>s. Agora este texto pode estar<br />
abstrato, mas com ajuda <strong>do</strong>s exemplos cotidianos<br />
que vão surgir nas discussões eles poderão se<br />
tornar mais potentes, mais concretos, mais capa‐<br />
zes de aplicar‐se à vida, à profissão, e de ajudar a<br />
organizá‐las. Isso será retoma<strong>do</strong> constantemente.<br />
Por ora, apenas nos cabe deduzir que se a unidade<br />
para a análise da consciência humana é um pro‐<br />
cesso que se desenvolve, a própria consciência<br />
também não permanece imutável ao longo de<br />
nossas vidas. Desenvolver‐se é uma propriedade<br />
fundamental da consciência tanto quanto de sua<br />
unidade de análise. Ela se transforma não só<br />
quanto aos seus conteú<strong>do</strong>s, objeto de sua ação e<br />
simbolização, mas também quanto aos seus mo‐<br />
<strong>do</strong>s de organizar‐se, em sua dialética entre forma<br />
e conteú<strong>do</strong>. A consciência transforma‐se, desen‐<br />
volvesse‐se ao longo de perío<strong>do</strong>s sucessivos dife‐<br />
rencia<strong>do</strong>s, passa por transições críticas entre eles<br />
e se constitui, num momento atual (sincrônico) de<br />
seu funcionamento, da articulação entre suas<br />
aquisições anteriores e seu potencial futuro, em<br />
relação com os outros. Do mesmo mo<strong>do</strong>, com<br />
respeito a to<strong>do</strong> psiquismo humano, a abordagem<br />
histórico‐cultural, busca compreender sua forma‐<br />
ção social como processo de desenvolvimento,<br />
auto‐determina<strong>do</strong> e inter‐determina<strong>do</strong>, múltiplo,<br />
complexo e que não se dá de mo<strong>do</strong> lin<strong>ea</strong>r, mas<br />
“revolucionário”, na dialética entre linhas “evolu‐<br />
tivas” e “involutivas”. Tal processo envolve, por‐<br />
tanto, avanços e retrocessos, perío<strong>do</strong>s de aquisi‐<br />
ções gradativas, acúmulos quantitativos, mas<br />
também momentos de crise que podem rumar<br />
para pontos de culminância nos quais se r<strong>ea</strong>lizem<br />
sínteses dialéticas, pontos de virada, guinadas,<br />
saltos qualitativos, nos quais as nossas motiva‐<br />
ções, orientações e valores se modificam, inver‐<br />
tem‐se, subvertem‐se ou convertem‐se em ou‐<br />
tros, como vimos anteriormente 16 . Dito isso, po‐<br />
demos destacar ainda, brevemente, mais alguns<br />
princípios meto<strong>do</strong>lógicos gerais que caracterizam<br />
a orientação da teoria histórico‐cultural para a<br />
pesquisa das funções psíquicas superiores, isto é,<br />
propriamente humanas, mas que no nosso ponto<br />
de vista são de valor primordial também para a<br />
<strong>prática</strong> profissional como um to<strong>do</strong>.<br />
No capítulo 5 da coletân<strong>ea</strong> “A formação social da<br />
mente”, são apresenta<strong>do</strong>s por <strong>Vigotski</strong> (1930/<br />
1989b), três parâmetros básicos para pesquisas<br />
psicológicas que se proponham a compreender<br />
seu objeto de estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto de vista de sua<br />
gênese, sua origem e desenvolvimento histórico:<br />
(a) a análise de processos e não de objetos; (b) a<br />
explicação dinâmico‐causal e não apenas a descri‐<br />
ção; e (c) investigar processos aparentemente<br />
“fossiliza<strong>do</strong>s” mediante a reconstituição da sua<br />
origem viva. O parâmetro “a” nos sugere que as<br />
funções psíquicas, assim como o homem no qual a<br />
síntese viva delas se r<strong>ea</strong>liza, não podem ser trata‐<br />
das como “coisas” que tão somente se possa me‐<br />
dir ou pesar, como algo estático e imutável. Fun‐<br />
ções psíquicas não são objetos, mas potências,<br />
mo<strong>do</strong>s de agir, sentir e pensar, caben<strong>do</strong> conside‐<br />
rá‐las sempre em seu movimento, nas transfor‐<br />
mações que as tornaram aquilo que são, e que já<br />
as estão tornan<strong>do</strong> aquilo que serão. Uma apreen‐<br />
são instantân<strong>ea</strong> de qualquer manifestação psíqui‐<br />
ca isolada da processualidade da atividade huma‐<br />
na, não poderá ser suficiente para compreender a<br />
dinâmica que a gerou, tampouco aquilo que agora<br />
ela é e pode vir a ser. Isso conduz ao parâmetro<br />
“b” que indica, em <strong>Vigotski</strong>, uma diferenciação<br />
entre “explicar” e apenas “descrever”. Para expli‐<br />
car também é preciso descrever, mas esse é um<br />
movimento insuficiente para a explicação. Descre‐<br />
ven<strong>do</strong> superficialmente uma baleia podemos igua‐<br />
lá‐la a um peixe, ou falan<strong>do</strong> das características<br />
16 Ver página 20.<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
externas de um morcego, poderemos igualá‐lo a<br />
um pássaro. Mas <strong>do</strong> ponto de vista de sua origem,<br />
baleia e morcego são os mais próximos um <strong>do</strong><br />
outro <strong>do</strong> que <strong>do</strong>s pares similares em sua aparên‐<br />
cia. <strong>Vigotski</strong> recorre à contribuição de Marx, para<br />
quem “se as aparências coincidissem com a es‐<br />
sência, a ciência não seria necessária”. Assim ex‐<br />
plicar é buscar a essência, e a isso só se chega pela<br />
compreensão da gênese, origem e desenvolvi‐<br />
mento. Quanto ao parâmetro “c”, trata‐se tam‐<br />
bém de algo que se des<strong>do</strong>bra <strong>do</strong> dito anterior‐<br />
mente. Contu<strong>do</strong>, o foco está em que pode haver<br />
comportamentos, hábitos motores ou intelectu‐<br />
ais, mo<strong>do</strong>s de organizar talvez nossos próprios<br />
sentimentos, que tenham se torna<strong>do</strong> já tão auto‐<br />
máticos, aparentemente tão “naturais”, que não<br />
percebamos que tiveram uma origem histórica,<br />
social, cultural, mediada. Assim a tais organizações<br />
“cristalizadas” <strong>do</strong> funcionamento psíquico, Vigots‐<br />
ki nomeou com a metáfora <strong>do</strong> “fóssil”. Um fóssil é<br />
algo sem vida que trás as marcas de que algo vivo<br />
esteve ali antes e lhe deu origem. Contu<strong>do</strong> trata‐<br />
se de algo apenas aparentemente sem vida. O<br />
papel <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> é reconstituir a origem media‐<br />
da e viva desses processos torna<strong>do</strong>s “imediatos” e<br />
“sem vida”.<br />
Na fusão desses três parâmetros reside a análise<br />
“genético‐causal”. Ela estuda processos e não só<br />
objetos. Busca as causas e não só os efeitos, a<br />
explicação e não só a descrição, a essência e não<br />
só a aparência, bem como o vivo e não o fossiliza‐<br />
<strong>do</strong>. Ela o faz pelo recurso ao estu<strong>do</strong> da gênese.<br />
Uma última consideração sobre a abordagem <strong>do</strong>s<br />
fenômenos pela gênese, ou, se preferirmos, por<br />
sua história, é a de que há, pelo menos, quatro<br />
planos (ou <strong>do</strong>mínios) genéticos, conceitos de his‐<br />
tória, encontra<strong>do</strong>s nas pesquisas de <strong>Vigotski</strong>, por<br />
parte de seus estudiosos contemporâneos (ver<br />
WERTSCH, 1985; e SCRIBNER, 1985). Aqui os no‐<br />
m<strong>ea</strong>remos como: filogênesse; sociogênese; onto‐<br />
gênese; e microgênese. A filogênese define‐se<br />
como história <strong>do</strong> desenvolvimento da espécie.<br />
Esse <strong>do</strong>mínio diz respeito ao longo processo evo‐<br />
lutivo pelo qual viemos a surgir como espécie com<br />
traços distintivos decisivos para a organização<br />
biológica que possuímos hoje. Organização neces‐<br />
sária, mas não suficiente para nos desenvolver‐<br />
mos como indivíduos, já que se trata justamente<br />
de uma constituição orgânica de grande plastici‐<br />
dade e abertura às transformações próprias da<br />
cultura. <strong>Vigotski</strong> (1931/1989) ressalta que <strong>do</strong> pon‐<br />
to de vista da espécie to<strong>do</strong>s os grupos culturais<br />
possuem o mesmo aparato e, portanto, o mesmo<br />
potencial para desenvolver o que qualquer ser<br />
humano é capaz de desenvolver. As diferenças<br />
entre os sucessos ou insucessos <strong>do</strong>s povos nada<br />
teriam a ver com os indivíduos que os compõem<br />
terem menor ou maior capacidade orgânica para<br />
desenvolver este ou aquele aparato simbólico ou<br />
técnico. Chamaremos de Sociogênese a própria<br />
história <strong>do</strong> desenvolvimento <strong>do</strong>s diferentes gru‐<br />
pos sociais, ou seja, a história no senti<strong>do</strong> mais<br />
específico <strong>do</strong> termo, a história humana. Certa‐<br />
mente, mesmo pertencen<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os seres hu‐<br />
manos à mesma espécie, as sociedades têm suas<br />
características culturais distintas, seus códigos<br />
peculiares, seu próprio <strong>do</strong>mínio da técnica e da<br />
linguagem. Assim também uma mesma cultura, ao<br />
longo <strong>do</strong> tempo, terá sua própria trajetória, sua<br />
tradição específica, avanços e retrocessos, sua<br />
formação política, seus inimigos e alia<strong>do</strong>s, seus<br />
conflitos internos e com outros povos, seus dispo‐<br />
sitivos de controle e suas lutas por emancipação, e<br />
assim por diante. Certamente, ao longo desse<br />
longo tempo histórico, formas de significar o<br />
mun<strong>do</strong> são desenvolvidas, mo<strong>do</strong>s de educar os<br />
mais novos, tanto quanto. De mo<strong>do</strong> que a forma‐<br />
ção social <strong>do</strong> psiquismo individual também decor‐<br />
re das propriedades esse plano genético, embora<br />
não sejam coincidentes.<br />
Chamamos de ontogênese a história <strong>do</strong> desenvol‐<br />
vimento <strong>do</strong> ser humano singular. Trata‐se <strong>do</strong> pro‐<br />
cesso histórico que compreende to<strong>do</strong> o tempo de<br />
vida de uma pessoa, de um indivíduo, de um ser<br />
único. Para <strong>Vigotski</strong> “de nenhuma maneira (...) a<br />
ontogênese repete de alguma forma ou reproduz<br />
a filogênese ou constitui seu paralelo” (1931/<br />
1989, p. 93). Não repete basicamente pelo motivo<br />
de que ao surgirem os primeiros representantes<br />
adultos da espécie Homo sapiens, havia ainda<br />
adiante deles to<strong>do</strong> o desenvolvimento histórico<br />
das civilizações e culturas humanas por se dar.<br />
Enquanto que a criança em seu desenvolvimento<br />
ainda não é um adulto em termos biológicos, mas<br />
já está imersa numa cultura com to<strong>do</strong> seu acúmu‐<br />
lo simbólico e técnico disponível para ela – fun‐<br />
din<strong>do</strong>‐se seu desenvolvimento biológico com o da<br />
apropriação <strong>do</strong>s meios culturais que a sociedade<br />
lhe fornece. Num exemplo prosaico, poderíamos<br />
imaginar que para a humanidade ter chega<strong>do</strong> ao<br />
<strong>do</strong>mínio da tecnologia que permite criar os com‐<br />
puta<strong>do</strong>res teve que passar por um longo avanço<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
técnico, desde o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> fogo, à siderurgia, à<br />
eletrônica, etc.. Entretanto, é bem provável que a<br />
uma criança seja primeiro permiti<strong>do</strong> usar um<br />
mouse ou tecla<strong>do</strong> de micro‐computa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que<br />
lidar com um fogão de cozinha ou uma churras‐<br />
queira. A ontogênese <strong>do</strong> psiquismo humano não<br />
repete as mesmas etapas pelas quais a humanida‐<br />
de passou, justo por nossa capacidade de intera‐<br />
girmos desde crianças com um mun<strong>do</strong> cultural já<br />
constituí<strong>do</strong> – com instrumentos, técnicas e siste‐<br />
mas de linguagem que jamais descobriríamos ou<br />
criaríamos sozinhos numa só geração, <strong>do</strong>s quais<br />
podemos nos apropriar no tempo de apenas uma<br />
vida humana, com ajuda de outras pessoas já inse‐<br />
ridas na cultura, e das <strong>prática</strong>s sociais nas quais<br />
ela se organiza. O tema da ontogênese está articu‐<br />
la<strong>do</strong> ao da periodização <strong>do</strong> desenvolvimento.<br />
Muito se discutiu sobre <strong>Vigotski</strong> conceber ou não<br />
o desenvolvimento em termos de “fases”, por tal<br />
conceito em geral ser muito liga<strong>do</strong> à idéia bastan‐<br />
te criticada de uma “universalidade”, ou caráter<br />
“trans‐cultural”, das mesmas fases, cuja explica‐<br />
ção remeteria, via de regra, à determinação bioló‐<br />
gica no senti<strong>do</strong> restrito <strong>do</strong> termo. É certo que<br />
<strong>Vigotski</strong> não concebe fases <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que<br />
Piaget ou Freud, contu<strong>do</strong> também é certo que<br />
assume a existência de distinções qualitativas<br />
entre os diferentes momentos de vida <strong>do</strong> indiví‐<br />
duo. <strong>Vigotski</strong> não apresenta termos como “perío‐<br />
<strong>do</strong> sensório‐motor, pré‐operatório, operatório<br />
concreto e operatório formal” (Piaget), nem como<br />
“fase oral, anal, fálica, perío<strong>do</strong> de latência e fase<br />
genital” (Freud). Em geral nota‐se que ele fala em<br />
termos mais prosaicos como “crianças pequenas”,<br />
“crianças pré‐escolares”, “crianças escolares”,<br />
“a<strong>do</strong>lescentes”, “adultos”. Mas tais termos não<br />
ganham, digamos um estatuto de rótulo fixo para<br />
cada idade, e cada idade não deixa de ser com‐<br />
preendida em função das relações sociais que lhe<br />
são pre<strong>do</strong>minantes e com as quais estão articula‐<br />
das as principais mudanças no desenvolvimento.<br />
Como as relações afetivas com os pais para as<br />
crianças pequenas, a brincadeira para as pré‐<br />
escolares, a escolarização para as escolares, a<br />
eleição de um projeto de vida para os a<strong>do</strong>lescen‐<br />
tes, a atividade trabalho para os adultos, por e‐<br />
xemplo. De qualquer maneira, cabe lembrar o já<br />
dito anteriormente, quanto ao ser humano ser<br />
componente das próprias relações sociais que o<br />
impulsionam para novos patamares de desenvol‐<br />
vimento. Além disso, um delimita<strong>do</strong>r para as mu‐<br />
danças qualitativas no desenvolvimento ontoge‐<br />
nético, pode ser encontra<strong>do</strong> no conceito de “crise<br />
de desenvolvimento”. Segun<strong>do</strong> estudiosos de sua<br />
obra, <strong>Vigotski</strong> indicou que “o processo de involu‐<br />
ção <strong>do</strong>mina sobre o de evolução durante os perí‐<br />
o<strong>do</strong>s etários de ‘crise’. Contu<strong>do</strong>, cada ‘crise’ tem<br />
seu próprio ‘ponto de culminância’ (kulminatsion‐<br />
naia totchka) que é o locus no qual a síntese dialé‐<br />
tica se completa” (VALSINER e VAN DER VEER<br />
1991, p. 9). Além disso, “os pontos exatos de início<br />
e fim das crises não podem ser noticia<strong>do</strong>s de mo‐<br />
<strong>do</strong> exato, mas os perío<strong>do</strong>s durante os quais as<br />
transformações atuais das estruturas psicológicas<br />
têm lugar podem ser defini<strong>do</strong>s por causa de sua<br />
aparência desorganizada e natureza caótica. Seis<br />
perío<strong>do</strong>s de crise no desenvolvimento da criança<br />
foram sublinha<strong>do</strong>s por <strong>Vigotski</strong>: aquele da idade<br />
<strong>do</strong>s recém‐nasci<strong>do</strong>s, o primeiro, o terceiro, o sé‐<br />
timo, o décimo terceiro, e o décimo sétimo anos.<br />
É durante estes perío<strong>do</strong>s que a emergência de<br />
níveis mais eleva<strong>do</strong>s de organização psicológica<br />
têm lugar” (VALSINER e VAN DER VEER, 1991, p.<br />
8).<br />
Tais pontos de “culminância” podem ser vistos<br />
como pontos de “mudança de rumo” e não como<br />
um ápice que atingi<strong>do</strong> estabeleceria pleno equilí‐<br />
brio, total ausência de tensão, suspenden<strong>do</strong> o<br />
drama da existência humana. Justamente pela<br />
visão de alternância nas relações de pre<strong>do</strong>minân‐<br />
cia entre as linhas e fatores de desenvolvimento,<br />
e não um avanço de simples superação progressi‐<br />
va lin<strong>ea</strong>r, cabem ainda algumas considerações<br />
com relação à “ontogênese”. Leitores contempo‐<br />
râneos <strong>do</strong>s conceitos de <strong>Vigotski</strong> sobre este <strong>do</strong>mí‐<br />
nio genético ressaltam não haver “modelo id<strong>ea</strong>l”<br />
de desenvolvimento a ser atingi<strong>do</strong> por todas as<br />
pessoas. Tampouco a criança é vista como “ape‐<br />
nas alguém que ainda não atingiu esse modelo”.<br />
Cada momento de nossas vidas, singular no tempo<br />
e espaço, tem seu próprio valor, seu mo<strong>do</strong> de ser<br />
e significar, suas motivações e necessidades. Con‐<br />
tu<strong>do</strong>, também vale lembrar que <strong>Vigotski</strong> estava<br />
ocupa<strong>do</strong> em pensar uma educação, uma interven‐<br />
ção social sobre o desenvolvimento que contribu‐<br />
ísse para a conquista e manutenção de uma vida<br />
tão saudável e autônoma quanto possível. Por<br />
certo, se não há “modelo id<strong>ea</strong>l” de desenvolvi‐<br />
mento, “etapa final” preconcebida a ser necessa‐<br />
riamente atingida, também não é qualquer moda‐<br />
lidade de relação social que se incentiva, como<br />
aquelas mais coercitivas e limitantes que a injusti‐<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 28 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
ça social, a intolerância e o abuso de poder im‐<br />
põem a muitas pessoas, inclusive às que têm me‐<br />
nos força física para se defender. Ter clareza de<br />
que o ser humano sempre se desenvolverá de<br />
algum mo<strong>do</strong>, atribuirá senti<strong>do</strong>s às coisas, mesmo<br />
que sofra severas adversidades, não é o mesmo<br />
que assumir um relativismo de que to<strong>do</strong> e qual‐<br />
quer mo<strong>do</strong> de as pessoas conviverem com as ou‐<br />
tras seja igualmente desejável e aceitável <strong>do</strong> pon‐<br />
to de vista de nossos valores éticos e nossa visão<br />
de mun<strong>do</strong>.<br />
Por fim, o termo microgênese refere‐se à história<br />
<strong>do</strong> desenvolvimento de processos psíquicos parti‐<br />
culares de dada pessoa junto a outras num inter‐<br />
valo de tempo relativamente curto. Por exemplo,<br />
o aprendiza<strong>do</strong> de regras necessárias para solucio‐<br />
nar um problema lógico‐matemático novo, a com‐<br />
preensão e uso de táticas até então desconheci‐<br />
das para se participar de um jogo de estratégia, o<br />
ato de emocionarmo‐nos com a leitura de um livro<br />
ou uma peça de t<strong>ea</strong>tro, podem envolver processos<br />
microgenéticos. Pois funções psíquicas estão em<br />
jogo na aprendizagem de regras ou procedimen‐<br />
tos assim como na fruição da obra de arte. Diga‐<br />
mos, ainda, que atos de “tomada de consciência”<br />
com relação a um conceito relevante para nossa<br />
atuação profissional, a direitos nossos como cida‐<br />
dãos ou ainda à concepção quanto aos nossos<br />
cuida<strong>do</strong>s com a saúde, também podem ser vistos<br />
como “ponto de culminância” de processos mi‐<br />
crogenéticos. Trata‐se, por assim dizer, da onto‐<br />
genênese “em ato”, r<strong>ea</strong>lizada no tempo presente,<br />
e “em potência”, abrin<strong>do</strong> caminhos para a aquisi‐<br />
ção <strong>do</strong> novo, num futuro próximo 17 . Não é algo<br />
17 O avanço <strong>do</strong> desenvolvimento humano em termos ontoge‐<br />
néticos e microgenéticos pode ser conceitua<strong>do</strong>, em <strong>Vigotski</strong>,<br />
como relativo à chamada “zona blijaishiego razvitia”. Termo<br />
que literalmente pode ser traduzi<strong>do</strong> como “A zona <strong>do</strong> desen‐<br />
volvimento mais próximo”, mas que tem ganha<strong>do</strong> diferentes<br />
traduções para fins editoriais, como: “zona de desenvolvi‐<br />
mento proximal” (da trad. americana); “zona de desenvolvi‐<br />
mento próximo” (da trad. espanhola); “zona de desenvolvi‐<br />
mento imediato” (da trad. brasileira de Paulo Bezerra); e<br />
“zona de desenvolvimento eminente” (da trad. brasileira de<br />
Zóia Prestes). Em <strong>Vigotski</strong>, a ZBR indica a “distância” entre o<br />
desenvolvimento “r<strong>ea</strong>l” (posto em jogo pela pessoa em sua<br />
atividade individual) e o desenvolvimento “potencial” (emer‐<br />
gente da atividade partilhada da pessoa com alguém mais<br />
experiente que lhe proporciona mediações necessárias para<br />
extrapolar seus limites individuais) (VIGOTSKI, 1935/1989).<br />
Para Leontiev (1989) na ontogênese há mudanças na “ativi‐<br />
dade principal”, que não é a que ocupa necessariamente mais<br />
“instantâneo”, pois gênese envolve duração, pro‐<br />
dução e não “criação <strong>do</strong> nada”. Mas subentende‐<br />
se que inscreva‐se num tempo relativamente bre‐<br />
ve, articula<strong>do</strong> com processos concomitantes. Co‐<br />
mo nos <strong>do</strong>mínios cita<strong>do</strong>s antes, o foco principal<br />
não é a culminância, mas o próprio processo. Con‐<br />
tu<strong>do</strong>, na ontogênese as crises de idades podem<br />
dar talvez mais visibilidade sobre o curso geral <strong>do</strong><br />
desenvolvimento.<br />
A investigação <strong>do</strong>s diferentes momentos de um<br />
processo microgenético parece mais exeqüível se<br />
notamos que a ontogênese é um processo que<br />
dura o tempo de toda uma vida e por vezes só a<br />
vislumbramos retrospectivamente. Por outro la<strong>do</strong>,<br />
a microgênese, por sua dinâmica e simultaneidade<br />
de diferentes aspectos inter‐funcionais em jogo,<br />
também coloca dificuldades se pretendemos noti‐<br />
ciar seu exato surgimento, seus diferentes e des‐<br />
contínuos momentos constitutivos (avanços, re‐<br />
trocessos, mudanças) ou sua exata “conclusão”,<br />
ponto de culminância ou “mudança de rumo”.<br />
Como a vida é ininterrupta e as conquistas e per‐<br />
das anteriores estão sempre envolvidas no mo<strong>do</strong><br />
de funcionamento atual, nem sempre será possí‐<br />
vel discernir claramente tal gênese. Ainda assim,<br />
os processos microgenéticos emergem como im‐<br />
portante objeto de pesquisa e talvez também foco<br />
de atuação profissional. Estudiosos vêm desenvol‐<br />
ven<strong>do</strong> a chamada “análise microgenética” como<br />
aporte meto<strong>do</strong>lógico rico em possibilidades. Vol‐<br />
taremos a esse ponto em breve. Por ora, estes<br />
são os princípios teóricos básicos em psicologia<br />
geral de orientação histórico‐cultural que nos<br />
coube destacar. Em seguida trataremos de refletir<br />
sobre sua ligação bem como a <strong>do</strong>s princípios éti‐<br />
cos com a reflexão sobre a atuação <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>.<br />
tempo, mas aquela com a qual se relacionam as principais<br />
mudanças no desenvolvimento. O jogo de papéis na idade<br />
pré‐escolar, e a instrução na idade escolar, são exemplos de<br />
atividades principais. Pode‐se relacionar a ZBR com tais ativi‐<br />
dades: o jogo gera ZBR (VIGOTSKI, 1933/1989), o processo de<br />
ensino‐aprendizagem escolar gera ZBR (VIGOTSKI, 1935/<br />
1989). Ademais, as relações afetivas com a mãe para o bebê e<br />
os sonhos com um projeto de vida para o a<strong>do</strong>lescente tam‐<br />
bém são considera<strong>do</strong>s fonte de ZBR (VALSINER, com. pessoal,<br />
jun. 1992).<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
3 Orientações gerais à psicologia aplicada numa<br />
abordagem histórico‐cultural.<br />
“O princípio da <strong>prática</strong> e sua filosofia se impõem uma<br />
vez mais: a pedra que foi rejeitada pelos construtores,<br />
esta veio a ser a pedra angular” 18<br />
— <strong>Vigotski</strong> (1927/1996, p. 346)<br />
O que vem por último na exposição não é o menos<br />
importante, e pode fazer‐se a pedra angular de<br />
to<strong>do</strong> nosso trabalho, sem a qual sua arquitetura<br />
se torna frágil. Cabe dizer, contu<strong>do</strong>, que na cons‐<br />
trução de um edifício teórico é preciso evitar tan‐<br />
to excessiva flexibilidade, quanto excessiva rigi‐<br />
dez. A primeira, para não abrirmos mão daquilo<br />
sem o que nossa visão de mun<strong>do</strong> em nada se dife‐<br />
renciará <strong>do</strong> senso comum ou da alienação. A se‐<br />
gunda, para não nos afeiçoarmos a certas formu‐<br />
lações <strong>do</strong>gmáticas, que tu<strong>do</strong> devem “explicar”, às<br />
quais tentemos fazer a r<strong>ea</strong>lidade se adequar para<br />
não contradizê‐las. Não é para isso que devem<br />
servir as teorias, senão para permitir compreen‐<br />
der a própria r<strong>ea</strong>lidade, tanto quanto possível,<br />
como ela é, mesmo que não seja como imaginá‐<br />
vamos ou desejávamos que fosse – e é a isso que<br />
chamamos de “crítica”. É um desafio colossal pen‐<br />
sar a dimensão <strong>prática</strong> de to<strong>do</strong> e qualquer enunci‐<br />
a<strong>do</strong> teórico, e nenhuma abordagem em psicologia<br />
é ainda hoje capaz de fazê‐lo sem deixar alguma<br />
lacuna ou forçar a situação. No entanto, o mo<strong>do</strong><br />
possível de articular os princípios com a <strong>prática</strong><br />
não há de ser o de tu<strong>do</strong> operacionalizar previa‐<br />
mente, o de tu<strong>do</strong> colocar em termos de técnicas<br />
ou procedimentos especificamente desenha<strong>do</strong>s<br />
para toda e qualquer situação imaginável – tiran‐<br />
<strong>do</strong> <strong>do</strong> profissional a capacidade de analisar criti‐<br />
camente as situações diversas e formular seus<br />
próprios planos de trabalho para agir com relação<br />
a elas. Como há muito se tem ti<strong>do</strong>, nos cursos de<br />
psicologia, “não estamos numa profissão que para<br />
tu<strong>do</strong> tenha receitas de bolo”. Ou hoje se diria<br />
“não temos para cada relação humana um algo‐<br />
ritmo computacional”. Mas essa é apenas parte da<br />
verdade. Pois também está claro que não dar<br />
qualquer orientação sobre a atuação <strong>prática</strong> e<br />
simplesmente dizer ao profissional que ele deve<br />
18 <strong>Vigotski</strong> está deve estar se referin<strong>do</strong> ao Salmo 117, ver. 22<br />
(para os judeus salmo 118). O mesmo verso que é retoma<strong>do</strong><br />
numa fala de Jesus, narrada no Evangelho de Mateus, cap.<br />
21, ver. 42.<br />
“usar a sua criatividade”, certamente não é a ati‐<br />
tude mais correta. Como diz <strong>Vigotski</strong> (1930/1987),<br />
a imaginação tem como sua fonte a r<strong>ea</strong>lidade e a<br />
experiência acumulada. Deixar tu<strong>do</strong> ao critério de<br />
um abstrato “ser criativo”, sem necessidade de<br />
pesquisar, estudar, passar por experiências ante‐<br />
riores, pode nos condenar a só repetir o já apren‐<br />
di<strong>do</strong> sem necessidade de ciência alguma. Corren‐<br />
<strong>do</strong> o risco de ficar‐se no senso comum e, por fim,<br />
propor o que poderia ser feito sem que estivés‐<br />
semos lá, sem que a psicologia como ciência fosse<br />
necessária. Assim nos colocamos diante de um<br />
desafio, não podemos fornecer um algoritmo, mas<br />
também não podemos nos omitir de pensar sobre<br />
a ação, discutir a ação, formular exemplos de mo‐<br />
<strong>do</strong>s possíveis de agir. O caminho que a<strong>do</strong>tei aqui é<br />
intermediário entre a teoria e a técnica. Não pro‐<br />
porei para cada princípio teórico anterior uma<br />
técnica que o r<strong>ea</strong>liza, pois isso seria demasia<strong>do</strong><br />
artificial, sem o contexto da atuação de cada pes‐<br />
soa. Mas, ao mesmo tempo tentarei traduzir os<br />
princípios de psicologia geral em breves reflexões<br />
sobre atitudes necessárias ao agir <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong><br />
que se orienta pela abordagem histórico‐cultural<br />
em psicologia, tal como a concebo hoje, neste<br />
momento histórico. Reflexões que o convi<strong>do</strong> o<br />
leitor a fazer e refazer comigo.<br />
Façamos, então, um exercício de pensar as diretri‐<br />
zes de ação profissional <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> condizentes<br />
com cada um <strong>do</strong>s princípios éticos e teóricos cita‐<br />
<strong>do</strong>s antes já aqui neste texto.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 30 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
PRÍNCÍPIOS EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA<br />
I ‐ Princípios éticos O <strong>psicólogo</strong> pode trabalhar:<br />
1 ‐ Critérios axiológicos: * Orientan<strong>do</strong> seu méto<strong>do</strong> por suas metas<br />
a) O valor da superação * Em função de metas que vão além <strong>do</strong>s limites individuais atuais das pessoas e<br />
<strong>do</strong>s seus próprios – participan<strong>do</strong> da produção de “zonas de desenvolvimento<br />
proximal” 19 .<br />
b) O valor da cooperação * Propon<strong>do</strong> modalidades de atividades nas quais as potencialidades de uns con‐<br />
tribuam para a superação <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong>s outros e as <strong>do</strong>s outros para a superação<br />
<strong>do</strong>s de cada um.<br />
c) O valor da emancipação * Sugerin<strong>do</strong>, proporcionan<strong>do</strong> e participan<strong>do</strong> de atividades que permitam às pes‐<br />
soas ampliar os limites de sua autonomia, sua capacidade de compor, de superar<br />
criticamente superstições, de propor alternativas e engajar‐se ativamente em<br />
ações para concretizá‐las.<br />
2 ‐ Critério ontológico pa‐<br />
ra a ética:<br />
* Dimensionan<strong>do</strong> suas metas no horizonte <strong>do</strong>s limites e possibilida‐<br />
des históricos<br />
d) A historicidade <strong>do</strong>s valores * Avalian<strong>do</strong> criticamente a possibilidade de agir em conformidade com seus prin‐<br />
cípios e a tensão que isso envolve.<br />
* Não utilizan<strong>do</strong> meios contrários aos fins a que se propõe.<br />
* Saben<strong>do</strong> que fins sem meios que os r<strong>ea</strong>lizem tornam‐se fins inócuos.<br />
* Compreenden<strong>do</strong> as contradições presentes no espaço de intervenção entre o<br />
que joga a favor <strong>do</strong>s potenciais humanos e o que os restringe.<br />
* Compreenden<strong>do</strong> que tanto propor o inalcançável, quanto apenas repetir o já<br />
alcança<strong>do</strong> são ações que geram frustração.<br />
* Propon<strong>do</strong>, portanto, desafios condizentes com as possibilidades concretas de<br />
transformação da situação social, no momento histórico da<strong>do</strong>.<br />
* Lembran<strong>do</strong>, por fim, as palavras de Paulo Freire de que “devemos fazer o que é<br />
possível fazer hoje para que aquilo que não é possível fazer hoje seja feito ama‐<br />
nhã”...<br />
3 ‐ Critério meto<strong>do</strong>lógico<br />
para a ética<br />
e) A intervenção como constru‐<br />
ção<br />
19 Conferir nota “17”, p. 29.<br />
* Agin<strong>do</strong> como um componente constitutivo da própria r<strong>ea</strong>lidade na<br />
qual se está intervin<strong>do</strong>.<br />
* Encaminhan<strong>do</strong> sua própria atuação profissional como processo de mediação<br />
que participa da construção das situações sociais às quais que se propõe a enten‐<br />
der e sobre as quais pretende agir – situações não existentes até a efetivação<br />
dessa mesma mediação.<br />
* Perceben<strong>do</strong>, portanto, sua própria ação e consciência como processos que se<br />
transformam juntamente com a r<strong>ea</strong>lidade social sobre a qual se intervém, fazen‐<br />
<strong>do</strong> parte dela também, ten<strong>do</strong> assim a transformação de si mesmo como um obje‐<br />
tivo profissional e ético.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 31 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
PRÍNCÍPIOS EM SUA DIMENSÃO PRÁTICA<br />
II ‐ Princípios de psicolo‐<br />
gia geral<br />
O <strong>psicólogo</strong> pode trabalhar:<br />
1 ‐ Princípio da unidade * Entenden<strong>do</strong> mente e corpo como aspectos da mesma r<strong>ea</strong>lidade complexa e<br />
psicofísica<br />
contraditória, que é a existência humana concreta.<br />
* Dialogan<strong>do</strong> com outros saberes que permitam compreender melhor essa totali‐<br />
dade e suas condições de possibilidade.<br />
2 ‐ Princípio da determi‐<br />
nação da consciência pela<br />
existência social<br />
3 ‐ Princípio da consciên‐<br />
cia como psiquismo pro‐<br />
priamente humano<br />
a) Consciência como conheci‐<br />
mento partilha<strong>do</strong><br />
b) Consciência como vivência<br />
de vivências<br />
* Sen<strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> <strong>do</strong> homem concreto, que em sua existência social se faz cons‐<br />
ciente, e não apenas “<strong>psicólogo</strong> da consciência ou <strong>do</strong> inconsciente” de um ho‐<br />
mem, nem “<strong>psicólogo</strong> das funções mentais” de um homem.<br />
* Atuan<strong>do</strong> na identificação e compreensão da multiplicidade de fatores que com‐<br />
põem a vida social da qual a consciência humana emerge e na qual ela cumpre<br />
função.<br />
* Entenden<strong>do</strong> o próprio ser humano como componente de sua existência social,<br />
não sen<strong>do</strong> ela externa a ele.<br />
* Situan<strong>do</strong> seu foco de ação com as pessoas na articulação <strong>do</strong>s diferentes mo<strong>do</strong>s<br />
de existir <strong>do</strong> social frente aos quais/no interior <strong>do</strong>s quais suas vivências se consti‐<br />
tuem (classes, instituições, grupos, intersubjetividade e indivíduo).<br />
* Elegen<strong>do</strong> as táticas possíveis em cada plano da existência social, assim como<br />
priorizan<strong>do</strong> os planos em que transformações mais eficazes sejam exeqüíveis no<br />
momento histórico da<strong>do</strong> em função das condições disponíveis. {por exemplo: tra‐<br />
balhar com indivíduos não é deixar de trabalhar com o ser social, etc., nem sem‐<br />
pre se pode intervir com o mesmo peso com relação a to<strong>do</strong>s os planos de articu‐<br />
lação da existência social}<br />
* Identifican<strong>do</strong>, registran<strong>do</strong> e buscan<strong>do</strong> compreender a dinâmica geral <strong>do</strong> drama<br />
de relações e papéis sociais próprios <strong>do</strong>s diferentes espaços intersubjetivos, gru‐<br />
pais, institucionais, de classe e ainda de gênero, de etnia e de geração. Drama<br />
esse que, com suas regras próprias de prescrição e performance de papéis sociais,<br />
implica redes de ações partilhadas, complementares e/ou antagônicas, que cons‐<br />
tituem a própria produção situada, contextualizada, de mediações simbólicas nas<br />
quais cada pessoa, como ator social, se constitui – se limita, se delimita e se po‐<br />
tencializa.<br />
* Privilegian<strong>do</strong> ações que viabilizem a potencialização das funções psíquicas pro‐<br />
priamente humanas, ou seja, aquelas nas quais o homem se r<strong>ea</strong>liza como tal e<br />
que são a um só tempo: (a) voluntárias – que exigem tomada de decisão; (b)<br />
conscientes – que exigem pensar sobre o pensamento, sobre a emoção e a ação;<br />
(c) mediadas – que exigem recorrer à linguagem; e (d) de origem social – que<br />
implicam mo<strong>do</strong>s de participação de um outro e de ver a si mesmo como um ou‐<br />
tro.<br />
* Sen<strong>do</strong> um organiza<strong>do</strong>r e participante de situações em que as pessoas comuni‐<br />
can<strong>do</strong>‐se com demais (sobre o mun<strong>do</strong>, sobre os outros, sobre si mesmas) possam<br />
ir reorganizan<strong>do</strong> seu mo<strong>do</strong> de agir e também sua própria consciência <strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l e de<br />
si.<br />
* Possibilitan<strong>do</strong> ações em que a linguagem partilhada entre as pessoas trate de<br />
situações relevantes, <strong>do</strong> ponto de vista vital, para as pessoas envolvidas, desco‐<br />
lan<strong>do</strong>‐se das formas mais automatizadas e imediatas de entendimento e senti‐<br />
mento para a r<strong>ea</strong>lidade, desarticulan<strong>do</strong>‐as e permitin<strong>do</strong> o surgimento de novas e<br />
mais potentes formações de senti<strong>do</strong>.<br />
* Produzin<strong>do</strong> e dan<strong>do</strong> visibilidade a situações em que a comunicação social permi‐<br />
ta um ato de “espelhar” a ação, a fala e a emoção de cada um, proporcionan<strong>do</strong><br />
uma relação de suspensão, estranhamento e distanciamento necessários para a<br />
tomada de consciência da situação vivida junto com outros e junto a si mesmo.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 32 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
c) Consciência como reflexo e<br />
refração da r<strong>ea</strong>lidade<br />
d) Consciência como processo<br />
cognitivo e afetivo<br />
e) Consciência e o problema<br />
<strong>do</strong>s processos não conscientes<br />
4 ‐ Princípio da compre‐<br />
ensão da consciência me‐<br />
diante unidades<br />
a) Consciência e relações<br />
Personalidade Meio<br />
= a vivência como unidade...<br />
* Atentan<strong>do</strong> para que na sua própria consciência e na daqueles com quem atua,<br />
tanto se “reflete” uma imagem <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l (já que toda consciência é “consci‐<br />
ência de algo”), quanto se “refrata” essa mesma imagem (já que toda consciência<br />
é “consciência de alguém”, ou seja, perm<strong>ea</strong>da pelas necessidades e orientações<br />
desse alguém).<br />
* Perceben<strong>do</strong> e lidan<strong>do</strong> com a contradição dialética de a consciência tanto ser<br />
poder de ação e compreensão quanto limite para agir e compreender – de forma<br />
a não tratá‐la nem como impotente nem como onipotente no plano da transfor‐<br />
mação da r<strong>ea</strong>lidade.<br />
* Consideran<strong>do</strong> que a compreensão que as pessoas têm da r<strong>ea</strong>lidade não é ape‐<br />
nas intelectual, mas nuançada por afetos, os quais compõem a r<strong>ea</strong>lidade concreta<br />
<strong>do</strong> homem consciente. Que a compõem não só como algo que pode atrapalhar<br />
sua visão mais crítica da r<strong>ea</strong>lidade, mas também como algo que permite que tal<br />
visão se construa – se houvesse uma consciência totalmente desprovida de afeto,<br />
ela não teria como lidar de mo<strong>do</strong> r<strong>ea</strong>lista com o mun<strong>do</strong>.<br />
* Não operan<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> da simples contenção <strong>do</strong>s processos afetivos como<br />
garantia da emergência de ações eficazes e adaptadas, mas no da potencialização<br />
das emoções propriamente humanas necessárias para a ampliação da capacidade<br />
das pessoas de comporem com o mun<strong>do</strong>, com mais bem estar e alegria.<br />
* Com atitude de empatia em relação às emoções <strong>do</strong> outro, no senti<strong>do</strong> de que<br />
mesmo as causas das emoções sen<strong>do</strong> imaginárias, as próprias emoções continua‐<br />
rão sen<strong>do</strong> r<strong>ea</strong>is e merecem consideração e respeito.<br />
* Com atitude também de distanciamento com relação às emoções <strong>do</strong> outro, no<br />
senti<strong>do</strong> de que, mesmo elas sen<strong>do</strong> r<strong>ea</strong>is, isso não quer dizer que se tenha claro o<br />
que as está motivan<strong>do</strong>. Além <strong>do</strong> que, sermos totalmente impregna<strong>do</strong>s pelas emo‐<br />
ções <strong>do</strong> outro não sempre os ajudará a lidar melhor com elas.<br />
* Ten<strong>do</strong> conhecimento da dialética entre as funções da consciência e sua nega‐<br />
ção, não só pelo fato de que para saber de algo não é possível saber de tu<strong>do</strong> a um<br />
só tempo, como também pelo fato de que, como diz <strong>Vigotski</strong> “mesmo saben<strong>do</strong><br />
exatamente como agir, podemos agir de mo<strong>do</strong> diferente” – pois nem sempre<br />
conhecemos as motivações das nossas ações, sentimentos e pensamentos ou<br />
<strong>do</strong>minamos a disposição deles/para eles em nós.<br />
* Proporcionan<strong>do</strong> momentos de simbolização, comunicação e ação partilhada que<br />
permitam tomada de consciência quanto aos motivos até então não evidentes e<br />
amparan<strong>do</strong>, na relação com o outro, as dimensões afetiva, cognitiva e volitiva<br />
constitutivas desse ato simbólico.<br />
* Desmistifican<strong>do</strong> tanto para si quanto para aqueles com quem se trabalha (na<br />
medida em que se tornem crenças despotencializa<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> desenvolvimento da<br />
autonomia humana) as noções animistas <strong>do</strong>s processos inconscientes (toma<strong>do</strong>s<br />
como forças com vida própria) e valorizan<strong>do</strong> o homem como a unidade vida de<br />
suas funções mentais conscientes ou não.<br />
* Toman<strong>do</strong> diante das r<strong>ea</strong>lidades sociais e pessoais com as quais se vai trabalhar<br />
uma atitude de investigação e compreensão crítica sobre sua origem e funciona‐<br />
mento, sob o foco de fenômenos particulares (unidades) que as constituam e<br />
possibilitem uma visão integrada e sistêmica <strong>do</strong> psiquismo humano como um<br />
to<strong>do</strong>.<br />
* Buscan<strong>do</strong> formas de compreender e estar sensível às vivências (experiências<br />
vitais dinâmicas e singulares) das pessoas, as quais no curso e na situação social<br />
de seu desenvolvimento proporcionam uma síntese dialética <strong>do</strong>s traços caracte‐<br />
rísticos de formação da sua personalidade com as influências de to<strong>do</strong> o meio<br />
social, <strong>do</strong> qual a própria pessoa também faz parte.<br />
* Estabelecen<strong>do</strong> oportunidades e recursos de simbolização pelos quais tais vivên‐<br />
cias sejam partilháveis e presentes ao diálogo das pessoas com os outros e com<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 33 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
b) Consciência e relações<br />
Pensamento Linguagem<br />
= o significa<strong>do</strong> da palavra como<br />
unidade...<br />
5 ‐ Princípio da compre‐<br />
ensão <strong>do</strong> psiquismo hu‐<br />
mano mediante sua gêne‐<br />
se histórica (origem e de‐<br />
senvolvimento)<br />
a) Compreender os processos<br />
psíquicos pela sua gênese:<br />
i. Não estudar objetos fixos,<br />
mas processos<br />
elas próprias.<br />
* Procuran<strong>do</strong> não destituir as vivências de seu caráter de acontecimento, isto é de<br />
processo único, incomparável, irrepetível, no qual o homem se engaja literalmen‐<br />
te “em pessoa”, como personalidade social concreta, numa condição em que<br />
nenhum outro pode estar em seu lugar.<br />
* Procuran<strong>do</strong>, ao mesmo tempo, não fechar as vivências no campo <strong>do</strong> insondável,<br />
incompreensível e impossível de ser partilha<strong>do</strong> ou recria<strong>do</strong>.<br />
* Buscan<strong>do</strong> para si, como profissional responsável, e para o outro, como interlo‐<br />
cutor essencial, recursos para visualizar as conexões entre experiência acumulada<br />
histórica, social, e pessoal (auto‐biográfica), com as vivências no “aqui e agora” e<br />
suas marcas na memória de cada um, tanto quanto contribuin<strong>do</strong> para a reorgani‐<br />
zação <strong>do</strong> caráter dessas conexões na direção de mais saúde e autonomia.<br />
* Toman<strong>do</strong> uma atitude de dedicação sistemática à compreensão <strong>do</strong>s múltiplos<br />
significa<strong>do</strong>s da palavra <strong>do</strong> outro, como síntese dialética da linha <strong>do</strong> desenvolvi‐<br />
mento da fala com a <strong>do</strong> pensamento, toman<strong>do</strong> tal síntese em suas diferentes<br />
variações funcionais e etapas de desenvolvimento, como mediação por excelência<br />
para a gênese da consciência, tanto quanto como suporte à articulação inter‐<br />
semiótica com outras formas de significação verbais e não verbais.<br />
* Manten<strong>do</strong> atitude de respeito ao universo vocabular, sintático e semântico <strong>do</strong><br />
outro, aos gêneros discursivos próprios das diferentes situações e grupos sociais<br />
com os quais está habitua<strong>do</strong>, sem negar‐se a contribuir sempre que possível para<br />
a ampliação desse universo, reconhecen<strong>do</strong> que ao fazê‐lo também amplia o seu o<br />
seu próprio.<br />
* Procuran<strong>do</strong>, assim, compreender os significa<strong>do</strong>s de suas palavras tanto como<br />
múltiplos e inesgotáveis, quanto como passíveis de designações objetivas tangí‐<br />
veis, desde que articuladas às condições de produção das trocas dialógicas em<br />
que tais palavras se inserem.<br />
* Compreenden<strong>do</strong> que o significa<strong>do</strong> mais objetivo das palavras não esgota toda a<br />
dinâmica da produção de senti<strong>do</strong>s que implica ainda o to<strong>do</strong> de sua visão de mun‐<br />
<strong>do</strong> e sua personalidade.<br />
* Pautan<strong>do</strong>‐se na orientação de <strong>Vigotski</strong> de que para compreender o significa<strong>do</strong><br />
das palavras é preciso ainda buscar compreender o pensamento e/ou o seu sub‐<br />
texto, e que para compreender o pensamento cabe ainda buscar saber das moti‐<br />
vações e da esfera afetivo‐volitiva de quem pronuncia tais palavras.<br />
* Crian<strong>do</strong> situações de comunicação social e ação partilhada contextualizada, nas<br />
quais indícios desses diferentes mo<strong>do</strong>s de funcionamento <strong>do</strong>s processos de signi‐<br />
ficação possam ser colhi<strong>do</strong>s, interpreta<strong>do</strong>s e devolvi<strong>do</strong>s ao fluxo <strong>do</strong> diálogo com<br />
as pessoas envolvidas.<br />
* Orientan<strong>do</strong> sua <strong>prática</strong> com uma permanente atitude investigativa com relação<br />
ao funcionamento, a estrutura e a origem mais próxima e mais distante das vivên‐<br />
cias e processos de significação que se articulam e/ou se chocam na constituição<br />
social da personalidade daqueles com quem se está trabalhan<strong>do</strong>.<br />
* Entenden<strong>do</strong> que para compreender o desenvolvimento de alguém se passa ao<br />
mesmo tempo a participar dele, já que saber <strong>do</strong> desenvolvimento não se restringe<br />
a registrar uma anamnese, assim como a história da humanidade não se restringe<br />
ao nosso passa<strong>do</strong>.<br />
* Buscan<strong>do</strong> demover de si e daqueles com quem se trabalha a pré‐concepção de<br />
que uma <strong>do</strong>ença, um sintoma, uma capacidade, uma habilidade, um preconceito,<br />
um sentimento, um conflito, uma lei, uma determinação institucional, um gesto<br />
ou um senti<strong>do</strong>, a visão de mun<strong>do</strong> de alguém ou os traços de sua personalidade,<br />
sua consciência, sua inteligência e seus sistemas afetivos, sejam algum tipo de<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 34 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
ii. Não ficar nas aparências, mas<br />
buscar a essência<br />
iii. Olhar o já cristaliza<strong>do</strong> pelas<br />
marcas de sua origem viva.<br />
iv. Lançar mão da análise gené‐<br />
tico‐causal<br />
b) Compreender a articulação<br />
de diferentes planos genéticos<br />
ou históricos<br />
i. Filogênese ou história <strong>do</strong><br />
desenvolvimento da espécie<br />
objeto estático, algo pronto e acaba<strong>do</strong>, que sempre esteve ali daquele mo<strong>do</strong> e<br />
assim sempre haverá de estar.<br />
* Portanto, não ven<strong>do</strong> esses processos como “coisas”, como “entidades”, como<br />
algo que tão somente se classifica, se mede ou se enquadra, se tria, se usa, se<br />
descarta, se conserta ou reforma, mas como movimentos produzi<strong>do</strong>s por seres<br />
humanos vivos, concretos.<br />
* Agin<strong>do</strong> com relação a tais processos entenden<strong>do</strong>‐os como tais, portanto com<br />
cautela no estabelecimento de juízos, e com compromisso para com a própria<br />
constituição social <strong>do</strong>s mesmos – como sob a orientação de Aristóteles de que “só<br />
em movimento é que um corpo mostra o que é”.<br />
* Produzin<strong>do</strong> técnicas sistemáticas para obtenção de pistas que permitam com‐<br />
preender e atuar com relação ao psiquismo humano na sua processualidade, por<br />
mais focais que precisem ser as intervenções.<br />
* Estan<strong>do</strong> atento para o fato de que <strong>do</strong>is processos aparentemente idênticos<br />
podem ter origens bem diferentes, e de que processos com origens semelhantes<br />
podem não dar a vê‐lo, por na aparência mostrarem‐se diferentes. {váli<strong>do</strong> para os<br />
mesmos exemplos da<strong>do</strong>s logo acima, uma <strong>do</strong>ença, um sintoma, uma capacidade,<br />
etc.}<br />
* Estan<strong>do</strong> atento para o fato de que algo hoje já ti<strong>do</strong> como automático, natural,<br />
cristaliza<strong>do</strong>, simples de fazer, ou simples de dizer que não pode ser feito, teve<br />
também um processo histórico de constituição que o trouxe até esse esta<strong>do</strong>,<br />
processo esse cujas marcas de vida anterior podem estar cristaliza<strong>do</strong>s no que<br />
parece sem vida, como ocorre no caso de um “fóssil” (“comportamentos fossiliza‐<br />
<strong>do</strong>s, diz <strong>Vigotski</strong>”).<br />
* Conhecen<strong>do</strong> a meto<strong>do</strong>logia de pesquisa da investigação da mente humana pro‐<br />
posta pela abordagem, para lançar mão de seus recursos como aporte aos pro‐<br />
cessos diagnósticos da r<strong>ea</strong>lidade e de compreensão da r<strong>ea</strong>lidade durante o pró‐<br />
prio trabalho de intervenção, com isso subsidian<strong>do</strong> avaliações futuras e reorienta‐<br />
ção da <strong>prática</strong>.<br />
* Permitin<strong>do</strong> situações de interação nas quais se produzam, em diferentes mo‐<br />
mentos no tempo, processos nos quais novos recursos simbólicos sejam introdu‐<br />
zi<strong>do</strong>s para dar conta de uma tarefa significativa (num processo educativo para<br />
prevenção de <strong>do</strong>enças, por exemplo – a apropriação <strong>do</strong>s conceitos não se dá de<br />
mo<strong>do</strong> instantâneo), ten<strong>do</strong> assim dimensão da origem de novas formações ampa‐<br />
radas pela utilização/apropriação desses recursos.<br />
* Buscan<strong>do</strong>, portanto, compreender as causas <strong>do</strong>s processos por intermédio <strong>do</strong><br />
acompanhamento sistemático de sua origem (gênese) tal como ela se dá em sua<br />
própria intervenção sobre ela.<br />
* Entenden<strong>do</strong> que em teoria histórico‐cultural quan<strong>do</strong> se fala de “história” consi‐<br />
dera‐se tanto o seu conceito mais geral de processo dialético de constituição<br />
processual <strong>do</strong> r<strong>ea</strong>l, quanto de história no senti<strong>do</strong> estrito ou história da humanida‐<br />
de. Procuran<strong>do</strong> ampliar os princípios anteriores para os diferentes planos e <strong>do</strong>mí‐<br />
nios <strong>do</strong> conceito de história.<br />
* Toman<strong>do</strong> conhecimento <strong>do</strong> fato de que nossa espécie tem tanto limites quanto<br />
possibilidades, que a evolução é um processo que continua em curso, mas que<br />
por hora ainda somos “Homo sapiens”. O que significa entender que temos tam‐<br />
bém determinações biológicas e não somos onipotentes com relação a elas, tanto<br />
quanto entender que a própria espécie é provida de aparatos biológicos, em ge‐<br />
ral, e neuro‐funcionais, em particular, que permitem e solicitam a mediação <strong>do</strong><br />
outro e da linguagem para seu desenvolvimento efetivo e potencial.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 35 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
ii. Sociogênese ou história <strong>do</strong><br />
desenvolvimento <strong>do</strong>s diferentes<br />
grupos sociais<br />
iii. Ontogênese ou história <strong>do</strong><br />
desenvolvimento <strong>do</strong> ser huma‐<br />
no singular – envolve a questão<br />
da periodização.<br />
iv. Microgênese ou história <strong>do</strong><br />
desenvolvimento de processos<br />
psíquicos particulares de uma<br />
dada pessoa ou grupo num<br />
intervalo de tempo relativa‐<br />
mente curto.<br />
* Procuran<strong>do</strong> sistematicamente compreender a história da sociedade na qual se<br />
está inseri<strong>do</strong> assim como o estão as pessoas com quem se vai trabalhar – no sen‐<br />
ti<strong>do</strong> geral das lutas que a compõem, tanto quanto no senti<strong>do</strong> específico das narra‐<br />
tivas sobre a cultura <strong>do</strong>s grupos e setores sociais específicos dentro da configura‐<br />
ção societária mais ampla.<br />
* Agin<strong>do</strong> com relação às pessoas como sujeitos <strong>do</strong> processo de constituição cole‐<br />
tiva de sua história tanto quanto como constituí<strong>do</strong>s por relações que vão além da<br />
interferência de suas vontades individuais.<br />
* Assumin<strong>do</strong> que compreender sobre desenvolvimento ontogenético e seus perí‐<br />
o<strong>do</strong>s não é só para quem “lida com crianças”, mas que to<strong>do</strong> ser humano para ser<br />
tal como é hoje e para poder ser algo distinto amanhã, só o pode fazer com base<br />
nas conquistas e incompletude de seu desenvolvimento anterior. Com as sucessi‐<br />
vas crises que esse processo envolve (não só na a<strong>do</strong>lescência, como às vezes se<br />
imagina, mas em toda a ontogênese), com o mo<strong>do</strong> particular pelo qual tais crises<br />
são vividas de acor<strong>do</strong> com a relação que cada um estabelece com o contexto no<br />
qual se desenvolve e r<strong>ea</strong>liza seu constante “tornar‐se humano”.<br />
* Sen<strong>do</strong> um agente que participa <strong>do</strong> processo de desenvolvimento <strong>do</strong> outro, por<br />
intermédio de sua intervenção, cooperan<strong>do</strong> com ele, nas suas atividades –<br />
dirigidas a metas, <strong>do</strong>tadas de senti<strong>do</strong> e significa<strong>do</strong>s pertinentes à sua vivência e<br />
sua história,.<br />
* Sen<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong>, um “organiza<strong>do</strong>r <strong>do</strong> meio social” que proporciona as media‐<br />
ções necessárias para que o desenvolvimento se dê. Lembran<strong>do</strong> para o trabalho<br />
<strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong> o mesmo que <strong>Vigotski</strong> fala para o trabalho <strong>do</strong> educa<strong>do</strong>r, ou seja:<br />
“quem educa, não é apenas o professor, mas sim o meio social educativo”, o pro‐<br />
fessor é só o seu organiza<strong>do</strong>r. Assim também quem pode promover um desenvol‐<br />
vimento psicológico tão saudável quanto possível, não é apenas o <strong>psicólogo</strong>, é um<br />
“meio social promotor de relações saudáveis”... Ao <strong>psicólogo</strong> cabe um papel de<br />
organiza<strong>do</strong>r desse meio social.<br />
* Atuan<strong>do</strong> como partícipe da produção, formação, constituição conjunta de pro‐<br />
cessos psíquicos particulares (como a resolução de um problema cognitivo; como<br />
a transformação catártica de um da<strong>do</strong> sistema de afetos; como a aprendizagem<br />
de um conceito novo; como uma tomada de decisão quanto a um tema de impor‐<br />
tância vital; como a tomada de consciência de mo<strong>do</strong>s de agir prejudiciais à própria<br />
saúde; ou como a tomada de consciência de capacidades que até então não se<br />
entendia ter ou não se valorizava como aptas a promover ações eficazes sobre o<br />
r<strong>ea</strong>l, sobre o outro e sobre si...). Compreenden<strong>do</strong> sua emergência relativamente<br />
rápida não como algo mágico ou mecânico, mas como fruto de uma articulação<br />
com os demais <strong>do</strong>mínios, ou planos, genéticos envolvi<strong>do</strong>s na totalidade <strong>do</strong> desen‐<br />
volvimento psíquico das pessoas, em sua constituição como tais.<br />
GETHC ‐ Grupo de Estu<strong>do</strong>s em Teoria Histórico‐Cultural – Umuarama‐PR / Março‐Junho de 2009 36 de 40
<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
Para continuar o diálogo<br />
Foram expostos alguns princípios éticos, outros<br />
em psicologia geral e feito um breve exercício de<br />
reflexão sobre a atuação de um <strong>psicólogo</strong> genera‐<br />
lista a partir de tais princípios. Feito isto, só nos<br />
cabe relembrar a necessidade de fazermos nossa<br />
própria leitura de referências clássicas disponíveis<br />
em psicologia histórico‐cultural, tanto quanto <strong>do</strong>s<br />
estu<strong>do</strong>s mais recentes que procurem assumir al‐<br />
guns <strong>do</strong>s desafios que as primeiras nos colocam.<br />
Justamente no confronto dessas linhas introdutó‐<br />
rias traçadas aqui com a densidade <strong>do</strong>s textos<br />
mais complexos e profun<strong>do</strong>s, é que este trabalho<br />
ganhará senti<strong>do</strong> e cumprirá sua função social pri‐<br />
meira: convidar à leitura de <strong>Vigotski</strong> e seus cola‐<br />
bora<strong>do</strong>res. Se retomarmos a citação de <strong>Vigotski</strong>,<br />
em epígrafe neste texto, nos depararemos com<br />
uma constatação talvez para<strong>do</strong>xal, mas bastante<br />
instigante, desafia<strong>do</strong>ra. Ele nos diz que “a nova<br />
psicologia”, aquela que tem na dialética um prin‐<br />
cípio geral organiza<strong>do</strong>r, “se parecerá tão pouco<br />
com a atual, como, segun<strong>do</strong> as palavras de Espi‐<br />
nosa, a constelação <strong>do</strong> Cão se parece com o ca‐<br />
chorro, animal ladra<strong>do</strong>r” (VIGOTSKI, 1927/1991).<br />
Como vimos, ele mesmo reconhece que sua “his‐<br />
tória <strong>do</strong> desenvolvimento cultural é a elaboração<br />
abstrata da psicologia concreta.” (VIGOTSKI, 1929/<br />
2000, p. 35). E assim a constituição de uma psico‐<br />
logia concreta de orientação histórico‐cultural,<br />
sobre a base de uma epistemologia materialista<br />
dialética, não é pressuposto para o avanço da<br />
história da psicologia, mas objeto de busca, algo<br />
por ser cria<strong>do</strong> ao longo dessa mesma história. Por<br />
certo, os <strong>psicólogo</strong>s <strong>do</strong> século XXI têm, cada qual,<br />
suas próprias leituras <strong>do</strong>s clássicos, seus próprios<br />
projetos, necessidades e aspirações. Ceden<strong>do</strong> ou<br />
não às conveniências da ideologia política neolibe‐<br />
ral e/ou da dita “pós‐modernidade”, expressão<br />
cultural importante da primeira, estão to<strong>do</strong>s ocu‐<br />
pa<strong>do</strong>s de constituir seus próprios espaços de in‐<br />
terlocução, mesmo para resistir àquelas forças<br />
hegemônicas.<br />
Trata‐se de um mun<strong>do</strong> complexo o nosso, povoa‐<br />
<strong>do</strong> de composições diversas e formas de luta e<br />
resistência nem sempre convencionais. Não se<br />
pode, portanto, tomar <strong>Vigotski</strong> ou qualquer autor<br />
como um oráculo, fonte explicações absolutas e<br />
verdades definitivas, que se segue como <strong>do</strong>gmas.<br />
Cabe lê‐lo em sua radicalidade, naquilo que suas<br />
palavras nos vêm interpelar ainda hoje em tom de<br />
desafio, fazen<strong>do</strong>‐nos sentir até um tanto antiqua‐<br />
<strong>do</strong>s em nossas idéias e <strong>prática</strong>s, lançan<strong>do</strong>‐nos um<br />
convite ao futuro. Ao depararmo‐nos com a ne‐<br />
cessidade de produzirmos o que ainda não há, é<br />
emblemática a imagem <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> poeta ela‐<br />
boran<strong>do</strong> versos que atinjam seus leitores <strong>do</strong> mo<strong>do</strong><br />
mais fecun<strong>do</strong>. Como Carlos Drummond: “Eu pre‐<br />
paro uma canção / em que minha mãe se reco‐<br />
nheça (...)” – uma linguagem na qual as pessoas se<br />
vejam como tais, tão crítica e afetuosa que faça<br />
“acordar os homens” e “a<strong>do</strong>rmecer as crianças”. A<br />
busca de uma psicologia concreta, reivindicada<br />
por Politzer em analogia à arte, é também a da<br />
produção de um discurso no qual a humanidade<br />
se reconheça, em que as vozes das pessoas te‐<br />
nham lugar eqüipolente, não sejam sobrepujadas<br />
e mortificadas pelas categorias teóricas. Em geral<br />
a psicologia parece falar de muitas coisas: de pro‐<br />
cessos mentais, de determinações inconscientes,<br />
de contingências de reforço, mas poucas vezes<br />
fala de “pessoas”, tampouco “com” elas. É uma<br />
crítica que não deve ser feita só apontan<strong>do</strong> erros<br />
alheios, mas, sobretu<strong>do</strong>, como “autocrítica”. Não<br />
somos ainda a “constelação” pretendida, somos<br />
mais como o “animal ladra<strong>do</strong>r”. Nossa psicologia,<br />
certas vezes, é também um saber que “ladra, mas<br />
não morde”, que promete, mas não cumpre. Co‐<br />
mo no discurso já vulgariza<strong>do</strong> <strong>do</strong> “compromisso<br />
social”, que não sempre orienta <strong>prática</strong>s correla‐<br />
tas. Ou se alia a ideologias como a da “morte <strong>do</strong><br />
homem” e/ou <strong>do</strong> desprezo para com qualquer<br />
consistência epistemológica, satisfazen<strong>do</strong>‐se em<br />
mudar de referências ao sabor da conjuntura e/ou<br />
com reduzir sua função social a “produzir efeitos”.<br />
Tais atitudes apontam talvez para uma “morte da<br />
psicologia”, tida como sem objeto nem méto<strong>do</strong><br />
próprios, sustentada como instituição só por inte‐<br />
resses corporativos de agências forma<strong>do</strong>ras e<br />
entidades de classe. Contraposta a tal tendência<br />
hegemônica está a psicologia histórico‐cultural de<br />
<strong>Vigotski</strong> com seus valores éticos, seus princípios<br />
de psicologia geral e sua vinculação com a cons‐<br />
trução de uma psicologia aplicada coerente com<br />
eles. Convidar o leitor ao diálogo sobre esta busca,<br />
e a assumir um papel social ativo dentro dela, de<br />
mo<strong>do</strong> crítico e criativo, foi o nosso objetivo aqui.<br />
Achilles Delari Junior<br />
Umuarama, 17 de fevereiro de 2009.<br />
Última revisão em 07 de junho de 2009.<br />
Passará por revisões posteriores.<br />
Produção voluntária e independente.<br />
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<strong>Vigotski</strong> e a <strong>prática</strong> <strong>do</strong> <strong>psicólogo</strong>: em percurso da psicologia geral à aplicada (2ª versão) — Achilles Delari Junior<br />
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