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Construindo uma história invisível - TEL

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Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

<strong>Construindo</strong> <strong>uma</strong> <strong>história</strong> <strong>invisível</strong><br />

Denise Maria Hudson de Oliveira 1<br />

Entre os contos de A noite escura mais eu, 2 de Lygia Fagundes Telles,<br />

consta “Uma branca sombra pálida”, que ousa tratar de <strong>uma</strong> realidade que<br />

a sociedade se recusa a ver. Em meio à f<strong>uma</strong>ça e à dissimulação textual é<br />

que a narradora realça sua <strong>história</strong>.<br />

Lygia possui linguagem inquieta e <strong>uma</strong> sensibilidade ímpar para<br />

colher da realidade, e do lado mais tormentoso da vida, sua inspiração para<br />

criar e para escrever de forma consciente. Quando publicou A noite escura<br />

mais eu, já possuía outras obras, mas esta, para Caio F. Abreu, por exemplo,<br />

é talvez a sua obra prima pelo domínio da linguagem, pela densidade das<br />

<strong>história</strong>s dos contos e pelo poder estilístico.<br />

Analisar criticamente <strong>uma</strong> obra de Telles é sempre instigante, ainda<br />

mais em forma de conto, gênero em que se destaca. Tal gênero possui<br />

<strong>uma</strong> teoria rica e de difícil definição, chega a ser intraduzível. Cortázar<br />

(1974, p. 150-151) a respeito de conto, diz que ele “se move nesse plano do<br />

homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam <strong>uma</strong> batalha<br />

fraternal [...]; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, <strong>uma</strong> síntese<br />

viva ao mesmo tempo que <strong>uma</strong> vida sintetizada”. Diz que só por meio de<br />

imagens “se pode transmitir essa alquimia secreta, que explica a profunda<br />

ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica também por<br />

que há tão poucos contos verdadeiramente grandes”.<br />

Sintetizar um conto moderno é algo intricado, que encontra um<br />

problema técnico, conforme Piglia diz: “Como contar <strong>uma</strong> <strong>história</strong> enquanto<br />

se está contando outra?” (2004, p. 125). Em um conto há <strong>uma</strong> <strong>história</strong><br />

sendo contada (a aparente) e a que é contada nas entrelinhas (a oculta),<br />

a que toma vulto, independentemente da vontade do autor; nos pontos de<br />

1 Mestre em Literatura e Práticas Sociais pela Universidade de Brasília. E-mail: dehudson@<br />

gmail.com<br />

2 A noite escura mais eu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

cruzamento dessas <strong>história</strong>s está sua base. “Uma branca sombra pálida”<br />

apresenta <strong>uma</strong> vida sintetizada; possui <strong>uma</strong> abertura para muito além<br />

de suas linhas; e pode ser representado por <strong>uma</strong> bolha de sabão, por sua<br />

independência e leveza ainda que diante do trágico.<br />

Quinze anos após a publicação da obra, cremos que a temática é<br />

atualíssima, apenas mais visível. Além do lesbianismo, há expressão de<br />

homofobia, hoje agravada pelo neoliberalismo e que vem sendo cada vez<br />

mais aparente na sociedade. Porém, há <strong>uma</strong> sucessão de acontecimentos<br />

no Brasil e na América Latina que demonstram a existência de muitos e<br />

graves conflitos.<br />

A narradora conta-nos ter ido naquele dia ao cemitério e de longe<br />

ter visto as rosas vermelhas lá depositadas por Oriana. Esta é amiga de<br />

Gina, a filha da narradora, que é quem está morta. A mãe escreve sobre a<br />

vida familiar e sobre a amizade desta com Oriana, dando a ver <strong>uma</strong> vida de<br />

desencontros e ciúmes. Sobre as amigas e diante de tudo (ou do nada) que<br />

vê no dia a dia há suspeita de que se trata de <strong>uma</strong> relação íntima. N<strong>uma</strong><br />

noite, faz <strong>uma</strong> imposição dura à filha dizendo que ela deveria escolher: ou<br />

ela (mãe) ou Oriana; Gina então, na mesma noite, comete o suicídio. Eis a<br />

síntese do conto em tela.<br />

O título é tão branquelo quanto a narrativa. Ele se refere ao título<br />

da música (“de drogados”, como diz a mãe) A Whiter Shade of Pale, que<br />

as amigas ouvem muito. A tradução do título é o nome do conto, cuja<br />

imagem lembra a da palidez da falecida Gina e toda essa brancura pode<br />

ser percebida. A autora faz inúmeras menções a: alma, f<strong>uma</strong>ça de cigarro,<br />

a rosas brancas, a algodão, a quarto branco, a saia branca, à borboleta<br />

de desenhos prateados, ao papel cinza-prateado da floricultura, ao leite<br />

no pires e enfim, a tons claros. Soma-se ainda a tudo isso a visão de Gina<br />

por seu pai: “Minha filhinha é de vidro” (p. 135). O que destoa e contrasta<br />

de toda essa transparência são as rosas vermelhas que Oriana tem por<br />

hábito levar para Gina, além da gravata preta do pai e a roupa preta da<br />

mãe. Tal branquidão está longe de remeter o leitor ao sentimento de paz. O<br />

que se faz presente é a nebulosidade, como dando a ver que os fatos, suas<br />

razões e consequências, ficaram encobertos n<strong>uma</strong> névoa, remetendo-nos à


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desordem h<strong>uma</strong>na tão presente no conto. Para a narradora, Oriana, claro,<br />

também destoa, perturba e provoca a desordem. Ela e a morte.<br />

Nebulosidades<br />

Em relação à intimidade entre as duas garotas não há fatos. Temse<br />

acesso apenas à consciência da mãe; portanto, a suposta relação das<br />

amigas não é confirmada. Essa questão(-chave?) e outras ficam obscuras<br />

no decorrer da narrativa, enquanto a mãe levanta suas hipóteses: “A porta<br />

trancada e o toca-discos no auge, parece que a coisa só engrenava com<br />

fundo musical [...] Eu podia colar o ouvido na parede e só ouvia a cantoria da<br />

negrada se retorcendo de aflição e gozo” (p. 134). Notemos o tom maldoso e<br />

o indício dito en passant de duplo preconceito. A narradora coloca em cheque<br />

as suas próprias palavras. “Bons sonhos, querida, devo ter dito quando já<br />

estava na porta e agora já não sei se disse isso ou se pensei enquanto segui<br />

firme pelo corredor” (p. 137). Como a filha morreu, essa dúvida de ter dito ou<br />

não “bons sonhos, querida” ganha <strong>uma</strong> importância especial à mãe. Uma<br />

ironia trágica ou um carinho que ela gostaria de ter dito nesse final de vida?<br />

Ela reconhece ter sido “firme”, embora sem que exale, à primeira vista, algum<br />

tipo de arrependimento por isso. Mas seu sentimento de culpa aflora.<br />

A mãe não sabe por que teve o rompante de falar com fúria à filha,<br />

sem conseguir “segurar as palavras”; acha que se apoiou n<strong>uma</strong> mesa para<br />

não cair, etc. Em seu monólogo diz até não saber por que Gina escolheu<br />

um domingo de Páscoa para se matar, o que é sarcástico. As dúvidas,<br />

portanto, pairam no texto. Abrindo aqui um parêntese, Piglia (2004) nota<br />

que essa é <strong>uma</strong> característica do conto moderno: tem-se <strong>uma</strong> estrutura<br />

tal no conto que as tensões são trabalhadas sem que se resolvam. Neste,<br />

a tensão se dá por vários recursos e a narradora-testemunha contribui<br />

justo por ajudar a criar a atmosfera nebulosa, para mostrar o que está<br />

<strong>invisível</strong> e que deve ficar <strong>invisível</strong> a fim de não perturbar ninguém. Falar<br />

de homossexualismo há 15 anos, certamente era bem mais difícil. Trata-se<br />

de assunto não resolvido na sociedade brasileira, tanto que neste século<br />

XXI os homossexuais ainda se ressentem de toda a rejeição, preconceito,<br />

intolerância e violência. A situação da mulher lésbica nos anos 1980 e 1990,<br />

segundo dados do movimento organizado, era de <strong>uma</strong> forte opressão. Expor


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tal opção à sociedade era enfrentar consequências cotidianas em todas<br />

as esferas porque a lésbica era tida como marginal. No ano seguinte à<br />

publicação de A noite escura mais eu – não que tenha sido em consequência<br />

disso, evidente – aconteceu em São Paulo o I Seminário Nacional de<br />

Lésbicas, ocasião em que as militantes definiram o dia 29 de agosto para<br />

a “comemoração” do Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, movimento que<br />

se propôs mostrar à sociedade um fato social real que ela não queria deixar<br />

aparecer. Eleger um dia nacional é fato comum às minorias que precisam<br />

utilizar desse recurso para criar oportunidade de lançar ações coletivas<br />

que dêem visibilidade à luta e de apresentar bandeiras necessárias ao<br />

reconhecimento da existência do grupo. No decorrer das décadas citadas,<br />

o movimento GLBT (gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais) ficou<br />

fortaleceu impulsionado por <strong>uma</strong> série de fatores, porém não se trata de<br />

<strong>uma</strong> condição aceita passivamente pela sociedade mais recente. É de se<br />

registrar que de 1963 a 2001 aconteceram 2.092 homicídios homofóbicos<br />

(MOTT, 2007, p. 13), conforme dados foram coletados pelo Grupo Gay<br />

da Bahia que se empenha nisso desde sua fundação. O assassinato de<br />

homossexuais está longe de ser a única forma de agressão a eles, ou a<br />

única expressão de homofobia. A agressão vem da rua e da própria família,<br />

como acontece no presente conto.<br />

O que é lamentável, de acordo com Pinto-Bailey (1999), é que a<br />

crítica (não apenas a brasileira) não tem dado o devido reconhecimento à<br />

literatura com tal temática, vindo a reproduzir literariamente o que ocorre<br />

nas sociedades.<br />

No Brasil e, de modo geral, na América Latina, a existência<br />

de <strong>uma</strong> tradição lesbiana na literatura de autoria feminina<br />

não tem sido reconhecida pela crítica [...] A razão para<br />

a suposta ausência dessa tradição é o tabu que ainda<br />

cerca as relações homossexuais na América Latina, e a<br />

conseqüente censura e autocensura que impediriam a<br />

expressão do lesbianismo na literatura de mulheres.<br />

O tabu atinge críticos e leitores. Muitos têm receio até de escrever<br />

sobre o assunto e ser tido como homossexual, como se falar do tema fosse


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“comprometedor”. A propósito disso e indo além, aquela teórica faz a<br />

seguinte constatação:<br />

Se a expressão dessa experiência erótica feminina chega<br />

a ser tão problemática, a representação da sexualidade<br />

lesbiana o é ainda mais, pois rompe com as relações<br />

dominantes de gênero, ao excluir a figura do homem e<br />

colocar a mulher em <strong>uma</strong> posição de sujeito atuante, em<br />

vez do papel tradicional de objeto do desejo masculino.<br />

Assim, o desejo lesbiano na obra de escritoras brasileiras<br />

não só representa <strong>uma</strong> dimensão importante da<br />

sexualidade feminina, como também serve para expor e<br />

questionar o controle social sobre a sexualidade e o corpo<br />

femininos.<br />

E quanto ao leitor, é preciso que ele possua um discernimento tal que<br />

o permita ler a ambiguidade do texto e retirar a homossexualidade feminina<br />

da marginalidade literária, ou seja, da pornografia. Eis então <strong>uma</strong> abertura<br />

fundamental dessa obra de Telles.<br />

“Ou ela ou eu”<br />

O discurso é feito em primeira pessoa, por <strong>uma</strong> narradora-testemunha,<br />

que narra da periferia; seu ângulo de visão é restrito e suspeito. Fatos<br />

familiares vão surgindo, tais como o bom relacionamento entre pai e filha; a<br />

recomendação do pai no sentido de dar mais liberdade à menina; a morte do<br />

pai; o interesse de Gina por Letras, após conhecer Oriana, etc. Acontece da<br />

seguinte forma a breve, dura e fatídica conversa da mãe com a filha:<br />

[...] acho que me apoiei na mesa para não cair. Mas<br />

ainda me pergunta?! Falo dessa relação nojenta de vocês<br />

duas e que não é novidade para mais ninguém, porque<br />

está se fazendo de tonta? Não vão mesmo parar com<br />

essa farsa? Seria mais honesto abrir logo esse jogo, vai<br />

Gina, me responde agora, não seria mais honesto? Mais<br />

limpo? [...] Cruzei os braços com força porque eram os


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meus dentes que agora batiam. Levantei a voz mas falei<br />

devagar. A escolha é sua, Gina. Ou ela ou eu, você vai<br />

saber escolher, não vai? Ou fica com ela ou fica comigo,<br />

repeti e fui saindo sem pressa. (p. 137)<br />

A filha nesse momento cultiva as plantas, cortando os caules. Em<br />

instantes cortará sua própria vida. O suicídio de Gina revela coragem e<br />

fragilidade; além disso, é um gesto que desestabiliza a situação e a própria<br />

mãe, cujo perfil é o de <strong>uma</strong> mulher racional, aparentemente avessa a<br />

sentimentalismos: “Ah, mamãe, mamãe! ficou repetindo agarrada em mim.<br />

Ela sabe que não gosto de beijos, nem tentou me beijar mas apenas me<br />

abraçava” (p. 138).<br />

Essas características ajudam a justificar sua atitude para com a<br />

filha. E no final da <strong>história</strong>, n<strong>uma</strong> sutileza não surpreendente, dá vazão<br />

ao seu real e novo sentimento. Ela agora prejulga Oriana e expressa sua<br />

revolta só de imaginar que um dia Oriana encontrará outra pessoa e deixará<br />

de homenagear Gina (ou de amá-la): “Até quando Oriana vai se empenhar<br />

comigo nessa polêmica? [...] logo vai conhecer outra, é evidente”. E conclui:<br />

“Ao lado das suas rosas ressequidas ficarão apenas as minhas rosas<br />

brancas. Difícil explicar, mas quando isso acontecer, esta será para mim a<br />

sua maior traição” (p. 142).<br />

A observação confessada de que o sentimento que brotou da<br />

narradora é de difícil explicação não é bem <strong>uma</strong> verdade. Lembrando o que<br />

José Saramago observou, segundo Fucks, de que na narrativa de Telles<br />

“a palavra final irá tornar redondo, completo, imenso de sentido”, o trecho<br />

recém-citado, que é o final do conto, dá todo sentido à <strong>história</strong>, consegue<br />

fechar um círculo e completar os sentidos de tudo o que foi contado.<br />

Dissimulando o trágico<br />

Tudo no conto está interligado: a ironia, a calma aparente, a<br />

dissimulação... São todos elementos que ajudam a narradora a construir<br />

<strong>uma</strong> duvidosa lógica: a de que ela, mãe, não tem culpa pela tragédia que<br />

aconteceu, e que nada foi assim tão grave. Ajudam a reproduzir na ficção


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o que se dá no mundo. Para exemplificar: “Bem, Gina, você se matou, se<br />

pirulitou, como diz sua amiga, ela gosta desse verbo, pirulitar. Desertou do<br />

corpo mas está lúcida, certo? [...] Você parecia tão feliz lá no seu quarto”<br />

(p. 132). E ainda: “A respiração de Oriana foi se acelerando cada vez mais<br />

[...] Não aconteceu, não é verdade! [...], Aconteceu sim, minha querida. Aí<br />

está a sua amiguinha abarrotada de pílulas, ela não era a sua amiguinha?”<br />

(p. 140).<br />

Os fatos como são narrados perdem a real importância que tiveram<br />

e são contados com <strong>uma</strong> naturalidade que até incomoda. De um lado, a<br />

evidência de um desajuste familiar, de atitudes equivocadas, etc.; de outro,<br />

a banalidade, o descaso para com as mesmas situações e tentativas de<br />

não mostrar nada abertamente. De acordo com Bourdieu, a questão da<br />

dissimulação dá-se de forma previsível, como ele observa:<br />

A forma particular de dominação simbólica de que são<br />

vítimas os homossexuais, marcados por um estigma<br />

que, à diferença da cor da pele ou da feminilidade,<br />

pode ser ocultado (ou exibido), impõe-se através de<br />

atos coletivos de categorização que dão margem a<br />

diferenças significativas, negativamente marcadas, e<br />

com isso a grupos ou categorias sociais estigmatizadas.<br />

Como em certos tipos de racismo, ela assume, no caso,<br />

a forma de <strong>uma</strong> negação da sua existência pública,<br />

visível. A opressão como forma de “invisibilização”<br />

traduz <strong>uma</strong> recusa à existência legítima, pública, isto é,<br />

conhecida e reconhecida, sobretudo pelo Direito, e por<br />

<strong>uma</strong> estigmatização que só aparece de forma realmente<br />

declarada quando o movimento reivindica a visibilidade.<br />

Alega-se, então, explicitamente, a “discrição” ou a<br />

dissimulação que ele é ordinariamente obrigado a se<br />

impor (2007, p. 143-144).<br />

O suicídio de Gina, por exemplo, reforça a invisibilidade e a narradora<br />

explora a dissimulação. Num trecho, a <strong>uma</strong> borboleta, a narradora diz: “Foi<br />

acidente? Não, minha bela, respondo e sopro devagar a f<strong>uma</strong>ça do cigarro


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na sua direção, foi suicídio” (p. 132). Nem parece que o defunto é sua própria<br />

filha, e que talvez “viv(esse) envergonhadamente” (expressão de Bourdieu)<br />

com a provável descoberta por sua mãe. Vítima da sociedade burguesa<br />

e machista, Gina recebe justo de sua mãe a mais dura das imposições:<br />

escolher entre ela ou Oriana. É difícil crer que a narradora não sentisse<br />

culpa pelo que provocou, salientando que ela própria é fruto de seu meio e<br />

reage de acordo com ele.<br />

Há repetições que mostram a aflição da mãe, como o vício do cigarro:<br />

“Acendo outro cigarro [...] Leio a advertência no maço, F<strong>uma</strong>r É Prejudicial<br />

à Saúde. Mais prejudicial do que o cigarro é a memória, digo baixinho” (p.<br />

141). Tal afirmação é quase confissão da consciência pesada a que nos<br />

referimos. A narradora privilegia-se por meio de um diário em que se faz<br />

indagações e afirmações. Fernandes (1996, p. 138), ao tratar do aspecto<br />

do desequilíbrio entre personagens, o que favorece o narrador, acrescenta<br />

que este, em primeira pessoa “é reservado porque interroga – a si mesmo, o<br />

passado, o meio que o cerca”. Isso encontramos desde o início do conto.<br />

Contando as coisas a seu modo, ao terminar de fazer sua imposição<br />

a Gina, recolhe-se: “Peguei o tricô e varei a noite acordada, mas em nenhum<br />

momento me ocorreu que além das duas saídas que lhe ofereci, havia <strong>uma</strong><br />

terceira”. Por isso mesmo, esta <strong>história</strong> é um drama, não se pode negar. A<br />

desimportância que a mãe dá ao caso é a desimportância e o desprezo da<br />

sociedade que termina por expressar isso da pior forma. Ao dizer da “escolha”<br />

pelo suicídio dá a entender que havia outras opções para a menina, o que se<br />

revela inverídico. Na verdade, é pela incapacidade de escolha.<br />

Schüler (1989) diz que “Escrever em primeira pessoa mostrou-se, nos<br />

casos de sucesso, gesto de humildade” e este é um traço que, ao término<br />

do texto, pode ser notado na narradora de um modo sutil, por paradoxal que<br />

pareça. Apesar dos fingimentos e da “cara compungida”, o eu-testemunha<br />

não se esconde e narra sua frieza e seu preconceito. Seu registro escrito pode<br />

ser <strong>uma</strong> forma de punir-se. “Recordar fatos não significa compreendê-los”,<br />

diz Schüller, mas pode ser <strong>uma</strong> técnica para aproximar-se da compreensão<br />

das coisas.


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Jogo de sentidos e duelo de imagens<br />

O jogo de sentidos neste conto associa-se à ironia característica<br />

de Telles e está espalhado pela <strong>história</strong>, podendo ser assim ilustrado: o<br />

“refresco” que a mãe quer dar à filha no momento crucial de um discurso<br />

seu; quando diz que sua filha possui “[...] a cabeça pequena, a testa pura”<br />

(p. 129); quando Gina volta do ponto de táxi, após ter ido deixar Oriana,<br />

e chega com a “carinha lavada” e depois a narradora completa que “ela<br />

não usava maquiagem” (p. 134) e outros, como a atribuição do nome<br />

“Gina”, dando a ideia de “vagina”. Reis & Lopes destacam a importância<br />

da atribuição do nome dizendo ser um fator de peso na caracterização dos<br />

personagens, “sobretudo quando surge como um signo intrinsecamente<br />

motivado”. Essa motivação, eles dizem, “pode resultar de <strong>uma</strong> exploração<br />

poética da materialidade do significante (através, por exemplo, do<br />

simbolismo fonético) ou das conotações socioculturais que rodeiam certos<br />

nomes” (1989, p. 214).<br />

Como parte desse jogo, está presente na <strong>história</strong>, de forma<br />

marcante, o corpo de Gina, a prova concreta do drama narrado, para isso<br />

citando diversas partes dele n<strong>uma</strong> expressão da necessidade de manter viva<br />

a imagem daquele corpo, presente na memória da mãe: “[...] tinha um jeito<br />

tão gracioso de interrogar inclinando assim a cabeça e aquele jeito de rir,<br />

os olhos tão acesos e os cabelos de um castanho dourado tão profundo” (p.<br />

131); “[...] os braços caídos ao longo do corpo, a boca interrogativa, olhando”<br />

(p. 138); e “[...] deixasse suas rosas obscenas aí no caixão mas só da cintura<br />

para baixo, ventre, pernas, Ô! filha, eu deixei escapar” (p. 141).<br />

Criticando a farsa social, a hipocrisia da religião, mas mostrando seu<br />

preconceito, a narradora compõe-se. Reconhece-se lúcida e participando de<br />

<strong>uma</strong> farsa, movendo-se entre a dissimulação e a culpa. Num momento, fala<br />

da “mentira da superfície arr<strong>uma</strong>da escondendo lá no fundo a desordem,<br />

o avesso d(est)a ordem” (p. 131). Nely N. Coelho, a propósito, observa a<br />

respeito dos contos de Telles: “sobre a falência da razão ordenadora [...]<br />

(Lygia) reflete sobre a impossibilidade de a lógica comum explicar o fluxo<br />

da vida e as (des)razões do mundo” (LAMAS, 1995, p. 96). Segundo o senso<br />

comum, considera-se normal o que não choca e nem perturba; porém, a


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normalidade não existe pois que nela está contida <strong>uma</strong> concepção burguesa<br />

hipócrita.<br />

Este conto contribui com tal reflexão mostrando <strong>uma</strong> desordem<br />

h<strong>uma</strong>na e social e proporcionando aberturas para <strong>uma</strong> reflexão, <strong>uma</strong> vez<br />

que a atitude homossexual esbarra em questões pessoais e religiosas.<br />

Bourdieu quando trata de gays e homossexuais e da revolta que estes sentem<br />

contra a violência que sofrem, diz que essa revolta aviva a “ordem simbólica<br />

vigente e coloca de maneira bastante radical a questão dos fundamentos<br />

desta ordem e das condições de <strong>uma</strong> mobilização bem-sucedida visando a<br />

subvertê-la” (2007, p. 143).<br />

A <strong>história</strong> de Telles, em seu tempo e a seu modo, faz valer a literatura.<br />

A construção de “Uma branca sombra pálida” é fortemente coesa em meio à<br />

turbulência velada e também floreada. Fica estabelecido no conto o “duelo<br />

floral” (José Carlos Paes) simbólico entre a mãe e Oriana. A mãe deposita as<br />

rosas brancas e Oriana insiste nas rosas vermelhas; todas elas ornamentam<br />

o conto, mas se trata de um ornamento perigoso, pois pode nos iludir com<br />

<strong>uma</strong> imagem bela que, na verdade, não existe, pois Telles floreou o assunto<br />

de sua <strong>história</strong>. Para a mãe, as rosas vermelhas, desabrochadas demais, são<br />

vistas como obscenas; as brancas são puras e também não desabrocham<br />

tanto. Eis aí <strong>uma</strong> metáfora rasteira, mas tão bem construída.<br />

A narradora dá destaque, em meio ao roseiral, ao caule das flores,<br />

enfatizando o gesto da podagem dessas rosas por parte de Gina. Esta cuida<br />

sempre do caule das flores que é o órgão condutor da seiva, que é como o<br />

sangue que circula nas plantas para alimentar suas células. É singular que<br />

enquanto a mãe e Oriana cuidam da estética, do aparente, Gina cuida da<br />

vida das flores não para obter a beleza, mas para cuidar da preservação<br />

daquela espécie, a dela própria, a de sua amiga, de sua mãe. Bastante<br />

simbólica essa representação porque Gina é que era a vida e depois foi a<br />

morte. É também possível a vinculação do corte à ideia de castração. Nesse<br />

caso, a mutilação sexual simbolizaria a impossibilidade de <strong>uma</strong> reprodução<br />

sexual, o que é coerente com toda a construção, além de ser oposta à ideia<br />

da vida plena. Porém, resta a compreensão de que esses dois aspectos<br />

opostos e intrincados não se anulam, mas coexistem.


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As cores contrastantes seguem em duelo entre amor maternal e<br />

paixão – tipos diferentes de amor, que, em tese, não se disputam. Porém,<br />

pela lógica da narradora, no texto há mais de dez referências às rosas<br />

vermelhas e seis referências às rosas brancas. Não nos parece casual esse<br />

escore, <strong>uma</strong> vez que ao término do conto a narradora diz que a maior traição<br />

de Oriana seria ela encontrar outra amiga, como já mencionado. O amor<br />

maternal sutilmente agora permite que as rosas vermelhas ganhem das<br />

brancas. Ou seja, diante da tragédia, torna-se importante para a mãe que<br />

Oriana continue a gostar de Gina.<br />

E quanto à bonita imagem, quando no passado os familiares<br />

conversavam sobre cemitérios, a narradora anota: “Mas os cemitérios têm<br />

mesmo que ser românticos, disse Gina. Voltávamos do enterro do pai e agora<br />

me lembro que fiz <strong>uma</strong> observação que a desgostou, era qualquer coisa em<br />

torno desse ritual das belas frases, das belas imagens sem a beleza” (p.<br />

130 - 131).<br />

Podando<br />

As questões que surgem suscitam tantas outras e tão profundas que<br />

não se explicam nem se justificam pelo trivial. Para entendê-las é necessário<br />

ir para além do juízo de valores sem reflexão e sem base.<br />

A fragilidade da vida está aqui nesse universo criado por Telles:<br />

“Deitou-se [...] e amanheceu aquela imagem que eu enfeitava tentando<br />

botar ordem na desordem da morte, a morte é só desordem, sei como Gina<br />

deve estar agora” Em seguida, revela: “sei também como elas se amavam,<br />

andei lendo sobre esse tipo de amor” (p. 141).<br />

Se Telles acredita que apenas a arte pode negar a morte, seu<br />

diário nada mais é que a luta pela sobrevivência da personagem. Esta<br />

ficção não é mero exercício estético: carrega <strong>uma</strong> “alquimia secreta”<br />

(palavras de Cortázar), fisga o leitor e chama atenção para a realidade e<br />

para a imprevisibilidade das relações h<strong>uma</strong>nas, resultando em sua eficácia<br />

literária.


Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura<br />

Bibliografia<br />

BOURDIEU, Pierre. (2007) A dominação masculina. Trad.: Maria Helena Kühner. 5ª<br />

edição, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.<br />

BORGES, Babi; e RODRIGUES, Carol. “A (in)visibilidade lésbica”, disponível em www.<br />

pstu.org.br, item “Opressão”.<br />

CARROZZA, Elza. Esse incrível jogo do amor. São Paulo: Editora Hucitec, 1992.<br />

CORTÁZAR, Julio. Valise de cronópio. São Paulo: Perspectiva, 1974.<br />

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São Paulo: Ática, 1978.<br />

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