Pensar é transgredir
Pensar é transgredir
Pensar é transgredir
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Então, fiquei. Primeiro, junto da janela. Mais do que<br />
medo, senti curiosidade: tudo parecia tão novo e<br />
estava tão diferente, embora o quarto me fosse muito<br />
familiar com sua cama torneada, o toucador com os<br />
velhos objetos, o cheiro de água-de-colônia, e<br />
vagamente de coisa seca e fanada.<br />
Criando coragem saí de junto da janela e fui me sentar<br />
ao p<strong>é</strong> da cama.<br />
Aos poucos foi como se eu visse minha avó pela<br />
primeira vez. Tomei-me de um novo amor por ela,<br />
imaginando a menina de cabelos claros e crespos que<br />
levava para lavar no riacho as roupas de sua família;<br />
pensei na moça audaciosa de perfil um pouco<br />
arrogante e firme olhar azul, no retrato que hoje está<br />
junto de minha mesa de trabalho; tentei reconstruir em<br />
mim sua existência de afetos e trabalhos.<br />
Pela primeira vez assim juntas, eu na minha vida e ela<br />
na sua morte, fomos cúmplices. Sem a irritação que às<br />
vezes ela me causava quando eu era pequena, como<br />
tantas vezes mães e avós fazem, porque precisam<br />
cuidar e educar – o que <strong>é</strong> a parte pior do amor.<br />
Nunca mais tive medo dos mortos nem os achei<br />
estranhos. Pena que a gente não aprenda muito com<br />
nossas experiências importantes: estamos<br />
empacotados e rotulados nesses volumes de gente<br />
indiferenciada que se empilham nas casas, nos<br />
edifícios, nos automóveis.<br />
_________________________<br />
Lya Luft – <strong>Pensar</strong> <strong>é</strong> <strong>transgredir</strong><br />
116