17.04.2013 Views

5 Tradução de Joana Taborda e Marco Neves

5 Tradução de Joana Taborda e Marco Neves

5 Tradução de Joana Taborda e Marco Neves

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Tradução</strong> <strong>de</strong> <strong>Joana</strong> <strong>Taborda</strong> e <strong>Marco</strong> <strong>Neves</strong><br />

5


Há mais coisas no Céu e na Terra, Horácio,<br />

do que as que sonhas na tua fi losofi a.<br />

— Shakespeare<br />

Seria indiscreto venerar Satanás,<br />

mas po<strong>de</strong>mos ao menos respeitar-lhe os talentos.<br />

— Mark Twain<br />

7


CAPÍTULO UM<br />

A morte ro<strong>de</strong>ava-a. Encarava-a todos os dias, sonhava com ela todas as<br />

noites. Vivia sempre com ela. Conhecia os seus sons, os seus aromas,<br />

até a sua textura. Podia encará-la nos olhos negros e astutos sem um pestanejar.<br />

Ela sabia que a morte era um adversário cheio <strong>de</strong> truques. Uma<br />

hesitação, um pestanejar, e podia mover-se, podia mudar. Podia vencer.<br />

Dez anos como polícia não a haviam endurecido para essa realida<strong>de</strong>.<br />

Uma década no Corpo não a tinha feito aceitá-la. Quando olhava a morte<br />

nos olhos, era com o gélido aço do guerreiro.<br />

Eve Dallas olhava para a morte agora. E olhava para um dos <strong>de</strong>la.<br />

Frank Wojinski tinha sido um bom polícia, <strong>de</strong> confi ança. Alguns teriam<br />

dito laborioso. Ela recordava que ele tinha sido afável. Um homem<br />

que não se tinha queixado da mixórdia disfarçada <strong>de</strong> comida no Refeitório<br />

da NYPSD, ou a burocracia fatigante para os olhos que o trabalho gerava.<br />

Ou — pensava Eve — sobre o facto <strong>de</strong> ter sessenta e dois anos e nunca ter<br />

passado do posto <strong>de</strong> Sargento Detective.<br />

Tinha sido um pouco atarracado e tinha <strong>de</strong>ixado o cabelo embranquecer<br />

e rarear naturalmente. Em 2058 era raro um homem evitar a escultura<br />

corporal e os retoques. Agora, no seu caixão com lateral transparente,<br />

com a sua chuva singela <strong>de</strong> lírios chorosos, assemelhava-se a um monge <strong>de</strong><br />

tempos idos a dormir pacifi camente.<br />

Tinha nascido noutros tempos — pensava Eve absorta — tendo vindo<br />

ao mundo no fi nal <strong>de</strong> um milénio e vivido a sua vida no seguinte. Ele<br />

tinha passado pelas Guerras Urbanas, mas não tinha falado <strong>de</strong>las como o<br />

faziam tantos dos polícias mais velhos. Frank não tinha gostado <strong>de</strong> histórias<br />

<strong>de</strong> guerra — recordou ela. Mais <strong>de</strong>pressa mostrava a última fotografi a ou<br />

holograma dos fi lhos e netos.<br />

Gostava <strong>de</strong> contar piadas <strong>de</strong> mau gosto, falar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sporto e tinha uma<br />

fraqueza por cachorros-quentes <strong>de</strong> soja com recheio picante <strong>de</strong> pickles.<br />

Um homem <strong>de</strong> família — pensou ela —, um que <strong>de</strong>ixava para trás<br />

um enorme <strong>de</strong>sgosto. De facto, ela não conseguia pensar em ninguém que<br />

tivesse conhecido Frank Wojinski e que não tivesse gostado <strong>de</strong>le.<br />

Tinha morrido ainda com meta<strong>de</strong> da vida pela frente, morrido sozinho,<br />

quando o coração que todos tinham pensado ser tão gran<strong>de</strong> e tão forte<br />

tinha pura e simplesmente parado.<br />

— Raios partam.<br />

9


Eve virou-se, colocando uma mão no braço do homem que se chegou<br />

para o seu lado.<br />

— Lamento, Feeney.<br />

Ele abanou a cabeça, com os seus olhos <strong>de</strong> camelo esbugalhados repletos<br />

<strong>de</strong> tristeza. Com uma mão ajeitou o seu cabelo ruivo frisado. — Se<br />

fosse em acção teria sido mais fácil. Eu podia lidar com o facto <strong>de</strong> ser no<br />

cumprimento do <strong>de</strong>ver. Mas pura e simplesmente parar. Deixar-se ir no<br />

ca<strong>de</strong>irão <strong>de</strong>le a ver futebol <strong>de</strong> arena no ecrã. Não está certo, Dallas. Um<br />

homem não <strong>de</strong>ve parar <strong>de</strong> viver com a ida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le.<br />

— Eu sei. — Sem saber que mais fazer, Eve envolveu um braço sobre<br />

o ombro <strong>de</strong>le e levou-o dali.<br />

— Ele treinou-me. Cuidou <strong>de</strong> mim quando eu era novato. Nunca me<br />

<strong>de</strong>ixou fi car mal. — A dor irradiava <strong>de</strong>le e emprestava-lhe um brilho mortiço<br />

aos olhos, soçobrando-lhe a voz. — O Frank nunca <strong>de</strong>ixou ninguém<br />

fi car mal na vida.<br />

— Eu sei — disse ela novamente, pois não havia mais nada que pu<strong>de</strong>sse<br />

ser dito. Ela estava habituada a que Feeney fosse duro e forte. A <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za<br />

do <strong>de</strong>sgosto <strong>de</strong>le preocupava-a.<br />

Ela guiou-o por entre os enlutados. A sala do velório estava apinhada<br />

<strong>de</strong> polícias e <strong>de</strong> família. E on<strong>de</strong> havia polícias e morte, havia café. Ou o que<br />

passava por isso em tais locais. Ela serviu uma chávena, passando-lha.<br />

— Não consigo perceber. Há algo que me escapa. — Ele <strong>de</strong>ixou escapar<br />

um enorme suspiro entrecortado. Era um homem robusto e compacto,<br />

que usava o seu <strong>de</strong>sgosto tão abertamente quanto usava o casaco amarrotado.<br />

— Ainda não falei com a Sally. A minha mulher está com ela. Pura e<br />

simplesmente não consigo.<br />

— Não faz mal. Eu também ainda não falei com ela. — Como não<br />

tinha nada com que manter as mãos ocupadas, Eve serviu-se <strong>de</strong> uma chávena<br />

que não fazia intenções <strong>de</strong> beber. — Estão todos abalados com isto. Eu<br />

não sabia que ele tinha um problema cardíaco.<br />

— Ninguém sabia — disse Feeney calmamente. — Ninguém sabia.<br />

Ela manteve uma mão no ombro <strong>de</strong>le enquanto examinou a sala<br />

sobrelotada e sobreaquecida. Quando um outro agente morria no cumprimento<br />

do <strong>de</strong>ver, os polícias podiam zangar-se, podiam estar concentrados,<br />

escolher o seu alvo. Porém, quando a morte se esgueirava e entortava<br />

um <strong>de</strong>do caprichoso, não havia ninguém para culpar. E ninguém<br />

para castigar.<br />

O que ela sentia na sala e nela própria era impotência. Não se podia<br />

apontar a arma, ou o punho, ao <strong>de</strong>stino.<br />

O agente funerário, todo janota no seu fato preto tradicional e com<br />

uma cara tão cerosa como a <strong>de</strong> alguns dos clientes, andava pela sala a<br />

10


dar pancadinhas <strong>de</strong> consolo e com os olhos sóbrios. Eve pensou que preferiria<br />

que um cadáver se levantasse e lhe sorrisse do que ouvir as suas<br />

banalida<strong>de</strong>s.<br />

— Por que não vamos os dois falar com a família?<br />

Para ele era difícil, mas Feeney assentiu, pondo <strong>de</strong> lado o café por<br />

beber. — Ele gostava <strong>de</strong> ti, Dallas. “Aquela miúda tem tomates <strong>de</strong> aço e<br />

uma mente a condizer”, costumava dizer. Ele dizia sempre que se alguma<br />

vez estivesse metido numa alhada, era a ti que gostaria <strong>de</strong> ter cobrir-lhe a<br />

retaguarda.<br />

Isso surpreen<strong>de</strong>u-a e <strong>de</strong>ixou-a agradada, mas simultaneamente veio<br />

aumentar o seu <strong>de</strong>sgosto. — Não me tinha apercebido que ele pensava isso<br />

<strong>de</strong> mim.<br />

Feeney olhou para ela. Ela tinha uma cara interessante, não daquelas<br />

<strong>de</strong> fazer parar o trânsito, mas das que costumava fazer um homem olhar<br />

duas vezes, com os seus ângulos e ossos afi lados, a covinha no queixo.<br />

Tinha olhos <strong>de</strong> polícia, intensos e escrutinadores, e ele esquecia muitas vezes<br />

que eram <strong>de</strong> um castanho-dourado escuro. O cabelo <strong>de</strong>la era do mesmo<br />

tom, curto e <strong>de</strong>sesperadamente a pedir algum penteado <strong>de</strong>fi nido. Era alta e<br />

esguia e <strong>de</strong> constituição forte.<br />

Ele lembrou-se que tinha sido há menos <strong>de</strong> um mês que tinha dado<br />

com ela, maltratada e ensanguentada. Mas a arma tinha estado fi rme na<br />

mão <strong>de</strong>la.<br />

— Ele tinha essa opinião <strong>de</strong> ti. E eu também. — Enquanto ela pestanejava<br />

para ele, Feeney endireitou os seus ombros encurvados. — Vamos<br />

falar com a Sally e com os miúdos.<br />

Esgueiraram-se pela multidão compacta numa sala oprimida pela<br />

imitação <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira escura, cortinados vermelhos pesados e o cheiro funerário<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>masiadas fl ores enfi adas num espaço <strong>de</strong>masiado pequeno.<br />

Eve interrogou-se por que motivo os velórios dos mortos eram sempre<br />

acompanhados por fl ores e panos vermelhos estendidos. De que antiga<br />

cerimónia teria surgido o costume, e por que motivo a raça humana continuaria<br />

a manter-se fi el ao mesmo?<br />

Ela estava certa <strong>de</strong> que, quando o seu tempo viesse, não escolheria ser<br />

exposta para estudo pelos seus entes queridos e colegas numa sala sobreaquecida<br />

on<strong>de</strong> o aroma persistente das fl ores fazia lembrar podridão.<br />

Depois viu a Sally, apoiada pelos fi lhos e pelos fi lhos dos fi lhos, e<br />

apercebeu-se <strong>de</strong> que tais ritos eram para os vivos. Os mortos estavam muito<br />

para além <strong>de</strong> dar importância a essas coisas.<br />

— Ryan. — Sally esten<strong>de</strong>u as mãos — mãos pequenas, quase feéricas<br />

— e tocou com a face na <strong>de</strong> Feeney. Manteve-se nessa posição por um<br />

momento, os olhos fechados, a cara pálida e sossegada.<br />

11


Era uma mulher magra e <strong>de</strong> fala doce em quem Eve sempre tinha<br />

pensado como sendo <strong>de</strong>licada. Contudo, uma mulher <strong>de</strong> polícia que tinha<br />

sobrevivido ao stress do emprego durante mais <strong>de</strong> quarenta anos tinha <strong>de</strong><br />

ter fi bra. Em contraste com o simples vestido preto, tinha posto num fi o o<br />

anel <strong>de</strong> 25 anos na NYPSD do marido.<br />

Outro rito, pensou Eve. Outro símbolo.<br />

— Estou tão contente por aqui estares — murmurou Sally.<br />

— Vou sentir a falta <strong>de</strong>le. Vamos todos sentir a falta <strong>de</strong>le. — Feeney<br />

<strong>de</strong>u-lhe uma pancadinha <strong>de</strong>sajeitada nas costas antes <strong>de</strong> se afastar. Tinha o<br />

<strong>de</strong>sgosto na garganta, a estrangulá-lo. Engoli-lo só o alojou pesada e friamente<br />

nas suas entranhas. — Sabes que se houver alguma coisa…<br />

— Eu sei. — Os lábios <strong>de</strong>la curvaram-se ligeiramente, e ela <strong>de</strong>u um<br />

aperto rápido e reconfortante na mão <strong>de</strong>le antes <strong>de</strong> se virar para Eve. —<br />

Fico agra<strong>de</strong>cida por teres vindo, Dallas.<br />

— Ele era um bom homem. Um polícia como <strong>de</strong>ve ser.<br />

— Sim, pois era. — Reconhecendo-o como um gran<strong>de</strong> tributo, Sally<br />

conseguiu esboçar um sorriso. — Tinha orgulho em servir e proteger. O<br />

Comandante Whitney e a mulher estão cá, e o Chefe Tibble. E tantos outros.<br />

— O olhar <strong>de</strong>la vagueou cegamente pela sala. — Tantos. Ele contava,<br />

o Frank contava.<br />

— Claro que sim, Sally. Feeney ia alternando o peso <strong>de</strong> pé para pé. —<br />

Já, hã, sabe do Fundo <strong>de</strong> Sobreviventes?<br />

Ela voltou a sorrir, dando-lhe pancadinhas na mão. — Nós estamos<br />

bem. Não te preocupes. Dallas, acho que não conheces a minha família.<br />

Tenente Dallas, a minha fi lha Brenda.<br />

Baixa, com curvas arredondadas, reparou Eve enquanto apertavam<br />

as mãos. Olhos e cabelo escuros, um queixo um tanto ou quanto pronunciado.<br />

Saía ao pai.<br />

— O meu fi lho, Curtis.<br />

Esguio, <strong>de</strong> ossos pequenos, mãos suaves, olhos secos mas toldados<br />

pelo <strong>de</strong>sgosto.<br />

— Os meus netos.<br />

Eram cinco, o mais novo um rapaz com cerca <strong>de</strong> oito anos com nariz<br />

achatado coberto <strong>de</strong> sardas. Deitou um olhar inquisidor a Eve. — Porque é<br />

que estás armada?<br />

Corada, Eve apertou o casaco sobre o antebraço. — Vim direitinha<br />

da Central <strong>de</strong> Polícia. Não tive tempo <strong>de</strong> ir a casa mudar <strong>de</strong> roupa.<br />

— Pete. — Curtis lançou a Eve um olhar apologético. — Não incomo<strong>de</strong>s<br />

a tenente.<br />

— Se as pessoas se concentrassem mais nos seus po<strong>de</strong>res pessoais e<br />

espirituais, as armas seriam <strong>de</strong>snecessárias. Sou a Alice.<br />

12


Uma loura esguia vestida <strong>de</strong> preto <strong>de</strong>u um passo em frente. Em qualquer<br />

caso, ela seria um espanto — pensou Eve absorta — mas tendo origens<br />

tão vulgares, era estonteante. Os seus olhos eram <strong>de</strong> um azul suave e<br />

onírico, os lábios cheios e luxuriantes não estavam pintados. Usava o cabelo<br />

caído <strong>de</strong> modo a cair direito e brilhante sobre os ombros do seu vestido<br />

preto fl uído. Um fi o fi no <strong>de</strong> prata caía-lhe até à cintura. Na ponta tinha uma<br />

pedra preta encastrada em prata.<br />

— Alice, és mesmo uma cabeça-<strong>de</strong>-alho-chocho.<br />

Ela lançou um olhar frio sobre o ombro na direcção <strong>de</strong> um rapaz<br />

<strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>zasseis anos. Mas as mãos <strong>de</strong>la regressavam sempre à pedra<br />

preta, como pássaros elegantes a guardar um ninho.<br />

— O meu irmão, Jamie — disse ela numa voz sedosa. — Ainda acha<br />

que chamar nomes merece uma reacção. O meu avô costumava falar <strong>de</strong> si,<br />

Tenente Dallas.<br />

— Fico lisonjeada.<br />

— O seu marido não veio consigo esta noite?<br />

Eve arqueou uma sobrancelha. Não era apenas <strong>de</strong>sgosto, <strong>de</strong>duziu<br />

ela, mas nervos. Eram fáceis <strong>de</strong> reconhecer. Também havia sinais, mas não<br />

eram claros. A rapariga andava à pesca, pon<strong>de</strong>rou ela. Mas <strong>de</strong> quê?<br />

— Não, não veio. — Voltou a direccionar o seu olhar para Sally. —<br />

Mandou condolências, Sra. Wojinski. Não está no planeta.<br />

— Deve requerer imensa concentração e energia — interrompeu<br />

Alice — manter um relacionamento com um homem como Roarke enquanto<br />

se tem uma carreira exigente, difícil e até perigosa. O meu avô<br />

costumava dizer que assim que agarrava uma investigação, já não largava.<br />

Diria que tinha razão, Tenente?<br />

— Se largarmos, per<strong>de</strong>mos. Eu não gosto <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r. — Ela correspon<strong>de</strong>u<br />

ao estranho olhar <strong>de</strong> Alice por um momento, <strong>de</strong>pois, impulsivamente,<br />

agachou-se e sussurrou a Pete. — Quando eu era novata, vi o teu<br />

avô disparar contra um tipo a 9,15 m <strong>de</strong> distância. Ele era o maior. — Foi<br />

recompensada com um esgar rápido antes <strong>de</strong> se endireitar. — Ele não será<br />

esquecido, Sra. Wojinski — disse ela, esten<strong>de</strong>ndo a mão. — E ele contava<br />

muito para todos nós.<br />

Ela começou a recuar, mas Alice pousou-lhe uma mão no braço,<br />

inclinando-se. A mão, reparou Eve, tremia ligeiramente. — Foi interessante<br />

conhecê-la, Tenente. Obrigada por ter vindo.<br />

Eve inclinou a cabeça e voltou a diluir-se na multidão. Casualmente,<br />

colocou a mão no bolso do casaco e sentiu a fi na folha <strong>de</strong> papel que Alice<br />

lá tinha colocado.<br />

Demorou mais trinta minutos para sair dali. Esperou até estar lá fora<br />

e no seu carro antes <strong>de</strong> pegar no bilhete e <strong>de</strong> o ler.<br />

13


Encontre-se comigo amanhã, à meia-noite. Clube Aquário. NÃO<br />

CONTE A NINGUÉM. A sua vida está agora em perigo.<br />

Em vez <strong>de</strong> assinatura, tinha um símbolo, uma linha negra que corria<br />

num círculo em expansão, para formar uma espécie <strong>de</strong> labirinto. Quase tão<br />

intrigada quanto estava aborrecida, Eve enfi ou o recado no bolso e seguiu<br />

caminho para casa.<br />

Como era polícia, viu a fi gura envolta em negro, pouco mais do que<br />

uma sombra nas sombras. E como era polícia, sabia que ele a estava a observar.<br />

Quando Roarke estava fora, Eve preferia fi ngir que a casa estava vazia.<br />

Tanto ela como Summerset, que exercia as funções <strong>de</strong> chefe <strong>de</strong> gabinete do<br />

Roarke, faziam os possíveis para ignorar a presença um do outro. A casa era<br />

enorme, um labirinto <strong>de</strong> divisões, o que resumia o assunto a evitarem-se<br />

mutuamente.<br />

Ela entrou no átrio amplo, atirou o casaco <strong>de</strong> cabedal puído sobre o<br />

balaústre esculpido, porque sabia que isso faria Summerset cerrar os maxilares.<br />

Ele <strong>de</strong>testava que alguma coisa conspurcasse a elegância da casa.<br />

Especialmente ela.<br />

Ela subiu as escadas, mas em vez <strong>de</strong> ir para o quarto principal, <strong>de</strong>sviou-se<br />

para o seu escritório.<br />

Se Roarke tivesse <strong>de</strong> passar outra noite fora do planeta, como esperado,<br />

ela preferia passá-la na sua ca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontracção em vez <strong>de</strong><br />

na cama.<br />

Tinha muitas vezes pesa<strong>de</strong>los quando sonhava sozinha.<br />

Entre a burocracia atrasada e o velório, não tinha tido tempo para<br />

uma refeição. Eve encomendou uma sanduíche — pão <strong>de</strong> centeio com<br />

fi ambre da Virgínia verda<strong>de</strong>iro — e café que transbordava <strong>de</strong> cafeína genuína.<br />

Quando o AutoChef a entregou, inalou os aromas lentamente, com<br />

ganância. Deu a primeira <strong>de</strong>ntada com os olhos fechados para melhor <strong>de</strong>sfrutar<br />

do milagre.<br />

Havia verda<strong>de</strong>iras vantagens em estar casada com um homem que<br />

podia dar-se ao luxo <strong>de</strong> comprar carne verda<strong>de</strong>ira em vez <strong>de</strong> subprodutos<br />

e simulações.<br />

Para satisfazer a sua curiosida<strong>de</strong>, dirigiu-se à sua secretária e ligou o<br />

computador. Ela engoliu fi ambre, rematado com café. — Todos os dados<br />

disponíveis sobre o sujeito Alice, apelido <strong>de</strong>sconhecido. Mãe Brenda, <strong>de</strong><br />

solteira Wojinski, avós maternos, Frank e Sally Wojinski.<br />

14


A trabalhar…<br />

Eve tamborilou com os <strong>de</strong>dos no tampo da mesa, sacou do bilhete e<br />

voltou a lê-lo enquanto terminava a refeição rápida.<br />

Sujeito Alice Lingstrom. Data <strong>de</strong> Nascimento: 10 <strong>de</strong> Junho <strong>de</strong> 2040.<br />

Primeira e única fi lha <strong>de</strong> Jan Lingstrom e Brenda Wojinski, divorciados.<br />

Morada, 486 West Eight Street, Apartamento 48, Nova Iorque.<br />

Irmão, James Lingstrom. Data <strong>de</strong> nascimento: 22 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 2042.<br />

Educação, 12º ano completo, melhor da turma. Dois semestres <strong>de</strong> faculda<strong>de</strong>:<br />

Harvard. Major em antropologia. Minor em mitologia. Terceiro<br />

semestre adiado. Trabalha actualmente como empregada <strong>de</strong> balcão na<br />

Spirit Quest, 228 West Tenth Street, Nova Iorque. Estado civil, solteira.<br />

Eve passou a língua pelos <strong>de</strong>ntes. — Registo criminal?<br />

Sem registo criminal.<br />

— Parece bastante normal — murmurou Eve. — Dados sobre a<br />

Spirit Quest.<br />

Spirit Quest. Loja wicca e centro <strong>de</strong> consulta proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Isis Paige<br />

e Charles Forte. Há três anos na morada da Tenth Street. Rendimento<br />

bruto anual <strong>de</strong> 125 000 dólares. Sacerdotisa acreditada, ervanária e<br />

hipnoterapeuta registado disponíveis no local.<br />

— Wicca? — Eve reclinou-se fungando <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdém. — Bruxaria?<br />

Minha nossa. Que tipo <strong>de</strong> vigarice é esta?<br />

Wicca, reconhecida como religião e arte, é uma fé antiga e baseada na<br />

natureza que…<br />

— Pára. — Eve exalou um suspiro. Não procurava uma <strong>de</strong>fi nição <strong>de</strong><br />

bruxaria, mas uma explicação para o facto <strong>de</strong> um polícia duro como uma<br />

pedra acabar com uma neta que acreditava em lançar feitiços e cristais<br />

mágicos.<br />

E o motivo para essa neta querer uma reunião secreta.<br />

A melhor maneira <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir, <strong>de</strong>cidiu ela, era aparecer no Clube<br />

Aquário dali a pouco mais do que vinte e quatro horas. Deixou o bilhete na<br />

secretária. Seria fácil não lhe ligar, pensou ela, se não tivesse sido escrito por<br />

um familiar <strong>de</strong> um homem que tinha respeitado.<br />

15


E se não tivesse visto aquela fi gura nas sombras. Uma fi gura que tinha<br />

certeza que não queria ter sido vista.<br />

Entrou na casa <strong>de</strong> banho adjacente e começou a <strong>de</strong>spir-se. Era uma<br />

pena não po<strong>de</strong>r levar Mavis ao encontro. Eve suspeitava que o Clube<br />

Aquário seria mesmo ao gosto da amiga. Eve lançou as calças <strong>de</strong> ganga<br />

para o lado, espreguiçando-se para expulsar as maleitas <strong>de</strong> um longo dia. E<br />

perguntou-se o que faria com a longa noite que se aproximava.<br />

Não tinha nada urgente em que trabalhar. O último homicídio tinha<br />

sido tão <strong>de</strong> caras que ela e a ajudante o tinham encerrado em menos <strong>de</strong><br />

oito horas. Talvez passasse algumas horas abstraída a olhar para algum ecrã.<br />

Ou podia escolher uma arma na sala <strong>de</strong> armas <strong>de</strong> Roarke e <strong>de</strong>scer e fazer<br />

correr um programa <strong>de</strong> holograma para queimar o excesso <strong>de</strong> energia até<br />

conseguir adormecer.<br />

Nunca tinha experimentado uma das espingardas automáticas <strong>de</strong>le.<br />

Po<strong>de</strong>ria ser interessante experimentar como um polícia abatia um inimigo<br />

no início das Guerras Urbanas.<br />

Ela entrou no duche. — Jactos no máximo, pulsados — or<strong>de</strong>nou. —<br />

Trinta e seis graus.<br />

Desejou ter um homicídio no qual ferrar os <strong>de</strong>ntes. Algo que lhe<br />

concentrasse a mente e lhe esvaziasse o sistema. E, raios, isso era patético.<br />

Apercebeu-se <strong>de</strong> que estava só. Desesperada por uma distracção, e ele só<br />

tinha partido há três dias.<br />

Ambos tinham as suas vidas, não? Tinham-nas vivido antes <strong>de</strong> se<br />

terem conhecido e tinham continuado a vivê-las <strong>de</strong>pois. As exigências <strong>de</strong><br />

ambas as profi ssões absorviam muito tempo e atenção. O relacionamento<br />

<strong>de</strong>les funcionava — e isso continuava a surpreendê-la — porque ambos<br />

eram pessoas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />

Minha nossa, ela estava cheia <strong>de</strong> sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>le. Enojada consigo própria,<br />

enfi ou a cabeça <strong>de</strong>baixo do chuveiro e <strong>de</strong>ixou que a água lhe martelasse<br />

o cérebro.<br />

Quando mãos escorregaram em redor da cintura <strong>de</strong>la e <strong>de</strong>pois subiram<br />

para lhe agarrar os seios, ela mal se alarmou. Mas o coração <strong>de</strong>la saltou.<br />

Conhecia o toque <strong>de</strong>le, o tacto daqueles <strong>de</strong>dos longos e esguios, a textura<br />

daquelas palmas largas. Inclinou a cabeça para trás, convidando uma boca<br />

para a curva do seu ombro.<br />

— Mmm…Summerset. Seu selvagem.<br />

Dentes beliscaram-lhe a carne e fi zeram-na soltar uma risada.<br />

Polegares esfregaram os seus mamilos ensaboados, fazendo-a gemer.<br />

— Não vou <strong>de</strong>spedi-lo. — Roarke fez percorrer uma mão até ao centro<br />

do corpo <strong>de</strong>la.<br />

— Valia a pena tentar. Voltaste…— Os <strong>de</strong>dos <strong>de</strong>le mergulharam com<br />

16


perícia <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la, escorreitos e escorregadios, fazendo-a simultaneamente<br />

arquear, gemer e vir-se. — Cedo <strong>de</strong>mais — terminou ela num suspiro<br />

explosivo. — Deus meu.<br />

— Eu diria que foi mesmo a tempo. — Virou-a, e enquanto ela tremia<br />

e pestanejava para tirar a água dos olhos, cobriu a boca <strong>de</strong>la com um<br />

longo e se<strong>de</strong>nto beijo.<br />

Tinha pensado nela no voo interminável para casa. Tinha pensado<br />

nisto, apenas nisto: tocar-lhe e saboreá-la e ouvir aquela pequena suspensão<br />

na respiração <strong>de</strong>la, tal como tinha feito. E aqui estava ela, nua e molhada e<br />

já a tremer por ele.<br />

Tomou-a pelos braços no canto, agarrou-a pelas ancas e, lentamente,<br />

levantou-a no ar. — Tiveste sauda<strong>de</strong>s minhas?<br />

O coração <strong>de</strong>la galopava. Estava a centímetros <strong>de</strong> embater contra ela,<br />

<strong>de</strong> a preencher, <strong>de</strong> a <strong>de</strong>struir. — Nem por isso.<br />

— Bem, nesse caso… — Ele beijou-a ao <strong>de</strong> leve no queixo. — Vou<br />

<strong>de</strong>ixar-te terminar o duche em paz.<br />

Num rompante, ela envolveu as pernas em redor da sua cintura, segurando<br />

com força a crina molhada que era o cabelo <strong>de</strong>le. — Experimenta,<br />

pá, e és um homem morto.<br />

— Bem, já que é no interesse da auto-sobrevivência. — Para torturar<br />

ambos, ele entrou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la lentamente, observando os olhos <strong>de</strong>la a fi carem<br />

opacos. Fechou novamente a boca sobre a <strong>de</strong>la, fazendo com que os<br />

seus curtos fôlegos tremessem por ele.<br />

A viagem foi lenta e escorregadia, e mais terna do que qualquer um<br />

<strong>de</strong>les tinha esperado. O clímax veio com um longo e sossegado suspiro. Os<br />

lábios <strong>de</strong>la curvaram-se contra os <strong>de</strong>le. — Bem-vindo a casa.<br />

Ela podia vê-lo agora, aqueles olhos azuis estonteantes, a cara que<br />

tinha tanto <strong>de</strong> santo quanto <strong>de</strong> pecador, a boca <strong>de</strong> um poeta con<strong>de</strong>nado.<br />

O cabelo <strong>de</strong>le pingava água, negro e escorreito, afl orando os ombros largos<br />

envoltos num músculo subtil e surpreen<strong>de</strong>ntemente forte.<br />

Olhar para ele <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>stas ausências breves e periódicas fazia sempre<br />

com que algo inesperado a percorresse. Ela duvidava que alguma vez se<br />

habituaria ao facto <strong>de</strong> que ele não só a queria, como a amava.<br />

Ela ainda sorria ao passar os <strong>de</strong>dos pelo seu espesso cabelo negro. —<br />

Está tudo bem com o Olympus Resort?<br />

— Ajustamentos, alguns atrasos. Nada com que não consigamos lidar.<br />

O resort e centro <strong>de</strong> prazer elaborado localizado na estação espacial<br />

iria abrir <strong>de</strong>ntro do prazo, porque ele não aceitaria nada menos do que isso.<br />

Ele or<strong>de</strong>nou que os jactos se <strong>de</strong>sligassem e <strong>de</strong>pois pegou numa toalha<br />

para enrolar no corpo <strong>de</strong>la, quando ela própria teria utilizado o tubo<br />

secador. — Começo a compreen<strong>de</strong>r porque fi cas aqui quando estou fora.<br />

17


Não conseguia dormir na Suite Presi<strong>de</strong>ncial. — Ele pegou noutra toalha e<br />

esfregou-lhe o cabelo. — Era <strong>de</strong>masiado solitária sem ti.<br />

Inclinou-se contra ele por um momento, apenas para sentir as linhas<br />

familiares do corpo <strong>de</strong>le contra o <strong>de</strong>la. — Estamos a fi car tão melosos.<br />

— Não me importo. Nós, os irlan<strong>de</strong>ses, somos muito sentimentais.<br />

Isso fê-la esboçar um sorriso enquanto ele se virou para ir buscar os<br />

robes. Ele podia ter a música da Irlanda na voz, mas ela duvidava seriamente<br />

se quaisquer um dos seus parceiros ou inimigos <strong>de</strong> negócios consi<strong>de</strong>rariam<br />

Roarke um homem sentimental.<br />

— Não tens nódoas negras recentes — observou ele, ajudando-a a<br />

vestir o robe antes <strong>de</strong> ela o po<strong>de</strong>r fazer. — Presumo que isso signifi que que<br />

tiveste uns dias sossegados.<br />

— Em gran<strong>de</strong> parte. Houve um tipo que se entusiasmou <strong>de</strong>mais<br />

com uma acompanhante registada. Estrangulou-a até à morte durante<br />

o sexo. — Ela apertou o robe, passando os <strong>de</strong>dos pelo cabelo para espalhar<br />

mais a água. — Assustou-se e fugiu. Ela moveu os ombros ao entrar<br />

no escritório. — Mas arranjou um advogado e entregou-se umas horas<br />

mais tar<strong>de</strong>. O advogado do Ministério Público reduziu a acusação para<br />

homicídio involuntário. Deixei a Peabody tratar do interrogatório e da<br />

<strong>de</strong>tenção.<br />

— Hmm… — Roarke foi buscar vinho a um armário embutido, servindo<br />

um copo a ambos. — Des<strong>de</strong> então tem estado calmo.<br />

— Sim. Esta noite fui àquele velório.<br />

Ele cerrou as sobrancelhas, <strong>de</strong>scontraindo em seguida. — Ah, pois<br />

foi, tinhas-me contado. Desculpa não ter conseguido chegar a casa a tempo<br />

<strong>de</strong> ir contigo.<br />

— O Feeney está a aceitar a coisa muito mal. Teria sido mais fácil se<br />

o Frank tivesse morrido no cumprimento do <strong>de</strong>ver.<br />

Desta vez, as sobrancelhas <strong>de</strong> Roarke franziram-se. — Preferirias que<br />

o teu colega tivesse sido assassinado em vez <strong>de</strong>, digamos, ter entrado gentilmente<br />

na doce noite?<br />

— Teria compreendido melhor, só isso. — Ela franziu as sobrancelhas<br />

para o copo <strong>de</strong> vinho. Não pensou que seria sensato dizer a Roarke que<br />

ela própria preferiria uma morte rápida e violenta. — No entanto, há algo<br />

estranho. Conheci a família do Frank. A neta mais velha é um pouco a dar<br />

para o esquisito.<br />

— Como?<br />

— A forma como falava e os dados que recolhi sobre ela quando cheguei<br />

a casa.<br />

Intrigado, ele ergueu o copo para beber um gole. — Investigaste os<br />

antece<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>la?<br />

18


— Foi só uma investigação rápida. Porque ela me entregou isto. —<br />

Eve caminhou até à secretária, pegando no bilhete.<br />

Roarke examinou-o com cuidado. — Labirinto terrestre.<br />

— O quê?<br />

— Este símbolo. É celta.<br />

Abanando a cabeça, Eve aproximou-se para voltar a olhar. — Tu sabes<br />

as coisas mais estranhas.<br />

— Não é assim tão estranho. Afi nal, tenho ascendência celta. O antigo<br />

símbolo do labirinto é mágico e sagrado.<br />

— Bem, isso enquadra-se. Ela anda metida em bruxaria, ou algo assim.<br />

Conseguiu iniciar uma educação <strong>de</strong> primeira. Harvard. Mas <strong>de</strong>sistiu<br />

para trabalhar numa loja <strong>de</strong> West Village que ven<strong>de</strong> cristais e ervas mágicas.<br />

Roarke percorreu o símbolo com a ponta do <strong>de</strong>do. Já o tinha visto,<br />

bem como a outros parecidos. Durante a sua infância, os cultos em Dublin<br />

tinham sido tudo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> gangues maléfi cos a pacifi stas pios. Todos, como é<br />

evi<strong>de</strong>nte, tinham utilizado a religião como a <strong>de</strong>sculpa para matar. Ou ser<br />

morto.<br />

— Não tens a mais pequena i<strong>de</strong>ia do motivo para ela se querer encontrar<br />

contigo?<br />

— Nenhuma. Diria que ela pensa que leu a minha aura, ou algo assim.<br />

A Mavis era a cabecilha <strong>de</strong> uma vigarice mística antes <strong>de</strong> eu a pren<strong>de</strong>r<br />

por roubar carteiras. Disse-me que as pessoas pagam quase qualquer coisa<br />

se lhes dissermos o que querem ouvir. Ainda mais, se lhes dissermos o que<br />

não querem ouvir.<br />

— Por isso é que os vigaristas e os empresários legítimos são muito<br />

parecidos. — Ele sorriu para ela. — Presumo que, ainda assim, vais.<br />

— Claro, vou investigar.<br />

Evi<strong>de</strong>ntemente, fá-lo-ia. Roarke <strong>de</strong>itou outro olhar ao bilhete e <strong>de</strong>pois<br />

pô-lo <strong>de</strong> lado. — Vou contigo.<br />

— Ela quer…<br />

— É uma pena o que ela quer. — Ele bebeu um gole <strong>de</strong> vinho, um<br />

homem habituado a obter exactamente o que queria. De um modo ou <strong>de</strong><br />

outro. — Não me meto no teu caminho, mas vou. O Clube Aquário é basicamente<br />

inofensivo, mas há sempre elementos pouco recomendáveis que<br />

escapam ao controlo.<br />

— Os elementos pouco recomendáveis são a minha vida — disse<br />

ela num tom sério, erguendo <strong>de</strong>pois a cabeça. — Tu não és, tipo, dono do<br />

Aquarian, pois não?<br />

— Não. — Sorriu. — Gostavas que fosse?<br />

Ela riu-se e pegou-lhe na mão. — Anda. Vamos beber isto na cama.<br />

…<br />

19


Descontraída pelo sexo e pelo vinho, adormeceu pacifi camente, enrolada<br />

em Roarke. Por isso é que fi cou surpreendida por acordar subitamente<br />

apenas duas horas mais tar<strong>de</strong>. Não tinha sido um dos seus pesa<strong>de</strong>los. Não<br />

havia terror, dor, frio, suor peganhento.<br />

No entanto, tinha acordado estremunhada e o coração <strong>de</strong>la ainda<br />

não tinha sossegado. Deixou-se fi car <strong>de</strong>itada quieta, olhando para a enorme<br />

clarabóia por cima da cama, escutando a respiração calma e constante<br />

<strong>de</strong> Roarke a seu lado.<br />

Mudou <strong>de</strong> posição, <strong>de</strong>itou um olhar aos pés da cama e quase lançou<br />

um grito quando olhos brilharam no escuro. Depois, registou o peso em<br />

cima dos tornozelos. Galahad — pensou ela revirando os olhos. O gato tinha<br />

entrado e saltado para cima da cama. Era isso que a tinha acordado —<br />

disse para si própria. Era apenas isso.<br />

Voltou a acomodar-se, virou-se <strong>de</strong> lado e sentiu o braço <strong>de</strong> Roarke a<br />

envolvê-la no sono. Com um suspiro, fechou os olhos, aninhando-se com<br />

familiarida<strong>de</strong> contra ele.<br />

Foi apenas o gato — pensou sonolenta.<br />

Mas po<strong>de</strong>ria ter jurado que tinha ouvido cânticos.<br />

20


CAPÍTULO DOIS<br />

N a manhã seguinte, quando Eve já estava enterrada em papelada, a estranha<br />

vigília nocturna já tinha sido esquecida. Nova Iorque parecia<br />

estar satisfeita em gozar os dias solarengos do início do Outono e comportar-se.<br />

Parecia uma boa altura para tirar algumas horas e organizar o<br />

gabinete <strong>de</strong>la.<br />

Ou melhor, para <strong>de</strong>legar em Peabody a organização.<br />

— Como é que os seus fi cheiros po<strong>de</strong>m estar tão <strong>de</strong>sorganizados? —<br />

perguntou Peabody. A sua cara sincera e quadrada expressava remorso e<br />

<strong>de</strong>sapontamento profundos.<br />

— Eu sei on<strong>de</strong> está tudo — disse-lhe Eve. — Quero que ponhas tudo<br />

on<strong>de</strong> eu ainda saiba on<strong>de</strong> está, mas também on<strong>de</strong> faça sentido estar. É um<br />

trabalho <strong>de</strong>masiado duro, Agente?<br />

— Eu consigo tratar disso. — Peabody revirou os olhos nas costas <strong>de</strong><br />

Eve. — Chefe.<br />

— Está bem. E não me revires os olhos. Se as coisas estão um pouco<br />

<strong>de</strong>sorganizadas, como tu dizes, é porque tive um ano ocupado. Como estamos<br />

no último trimestre e estou a treinar-te, recai sobre mim obrigar-te<br />

a fazer isto. — Eve virou-se e esboçou um ligeiro sorriso. — Esperando,<br />

Peabody, que um dia tenhas um serviçal em quem <strong>de</strong>legar tarefas manhosas.<br />

— A sua fé em mim é tocante, Dallas. Assoberba-me. — Ela silvou<br />

para o computador. — Ou talvez me esteja a assoberbar o facto <strong>de</strong> ter aqui<br />

folhas amarelas com data <strong>de</strong> há cinco anos. Deviam ter sido mandadas para<br />

o servidor e retiradas da sua unida<strong>de</strong>s após vinte e quatro meses.<br />

— Então, envia-as e retira-as agora. — O sorriso <strong>de</strong> Eve alargou-se<br />

enquanto a máquina soluçava e, <strong>de</strong>pois, <strong>de</strong>ixou escapar um aviso <strong>de</strong> falha<br />

<strong>de</strong> sistema. — E boa sorte.<br />

— A tecnologia po<strong>de</strong> ser nossa amiga. E como em qualquer amiza<strong>de</strong>,<br />

precisa <strong>de</strong> manutenção e compreensão regulares.<br />

— Eu compreendo-a perfeitamente. — Eve aproximou-se, batendo<br />

duas vezes com o punho na drive. A unida<strong>de</strong> soluçou e voltou ao modo <strong>de</strong><br />

funcionamento. — Estás a ver?<br />

— É mesmo <strong>de</strong>licada, Tenente. Por isso é que o pessoal da manutenção<br />

lança dardos à sua fotografi a.<br />

— Ainda? Minha nossa, são mesmo rancorosos. — Encolhendo os<br />

ombros, Eve sentou-se no canto da secretária. — O que sabes sobre bruxaria?<br />

21


— Se quiser lançar um feitiço ao computador, Dallas, isso sai um<br />

pouco das minhas competências. — Com os <strong>de</strong>ntes cerrados, movia e comprimia<br />

fi cheiros.<br />

— És uma free-ager.<br />

— Não praticante. Vá, vá, tu consegues — murmurou para o computador.<br />

— Para além disso — acrescentou. — Os free-agers não são wiccans.<br />

Ambas são religiões da terra e ambas se baseiam nas or<strong>de</strong>ns naturais,<br />

mas…fi lho da mãe, para on<strong>de</strong> é que foi?<br />

— O quê? Para on<strong>de</strong> foi o quê?<br />

— Nada. — Com os ombros encolhidos, Peabody vigiava o monitor.<br />

— Nada. Não se preocupe, estou a tratar disso. Provavelmente nem precisava<br />

daqueles fi cheiros.<br />

— Isso é uma piada, Peabody?<br />

— Po<strong>de</strong> apostar. Ha ha. — Uma linha <strong>de</strong> suor escorria-lhe pelas<br />

costas enquanto atacava as teclas. — Pronto. Já está. Não há problema<br />

nenhum. E lá vai ele para o servidor. Limpo e arrumado. — Deixou escapar<br />

um enorme suspiro. — Será que posso ir buscar café? Só para me<br />

manter alerta.<br />

Eve <strong>de</strong>sviou o olhar para o ecrã, sem ver nada que prenunciasse <strong>de</strong>sgraças.<br />

Sem dizer nada, levantou-se e pediu café do AutoChef.<br />

— Porque quereria informações sobre wicca? Está a pensar em converter-se?<br />

— Sob o olhar reprovador <strong>de</strong> Eve, Peabody tentou um sorriso.<br />

— Outra piada.<br />

— Já vi que hoje não paras. Estou apenas curiosa.<br />

— Bem, há algumas sobreposições em princípios básicos entre wiccans<br />

e free-agers. Uma busca pelo equilíbrio e harmonia, a celebração das<br />

estações que reporta à Antiguida<strong>de</strong>, um código rígido <strong>de</strong> não-violência.<br />

— Não-violência? — Eve semicerrou os olhos. — E maldições, lançar<br />

feitiços e sacrifícios? Virgens nuas no altar e galos negros a fi carem sem<br />

cabeça?<br />

— A fi cção caracteriza as bruxas <strong>de</strong>sse modo. A Tenente sabe, Crescei,<br />

crescei, labores e trabalhos. Shakespeare. Macbeth.<br />

Eve fungou. — Vou apanhar-te, minha linda, e ao teu cãozinho também.<br />

A Bruxa Má do Oeste. Canal <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os clássicos.<br />

— Boa — admitiu Peabody. — Mas ambos os exemplos são baseados<br />

em concepções erróneas. As bruxas não são velhas feias e más que misturam<br />

cal<strong>de</strong>irões <strong>de</strong> gosma ou caçam rapariguinhas e os seus espantalhos<br />

falantes amigáveis. Os wiccans gostam <strong>de</strong> estar nus, mas não magoam nada<br />

nem ninguém. Só praticam magia branca.<br />

— Por oposição a?<br />

— Magia negra.<br />

22


Eve estudou a sua ajudante. — Não acreditas nessas coisas? Magia e<br />

feitiços?<br />

— Não. — Reanimada com o café, Peabody voltou-se para o computador.<br />

— Conheço alguns dos princípios básicos porque tenho um primo<br />

que se converteu à religião wicca. Ele gosta mesmo disso. A<strong>de</strong>riu a um<br />

coven em Cincinnati.<br />

— Tens um primo num coven em Cincinnati. — Rindo, Eve pousou<br />

o café. — Peabody, nunca paras <strong>de</strong> me espantar.<br />

— Um dia <strong>de</strong>stes, conto-lhe a história da minha avó e dos seus cinco<br />

amantes.<br />

— Cinco amantes não é anormal na vida <strong>de</strong> uma mulher.<br />

— Não durante a vida <strong>de</strong>la; foi no mês passado. Todos ao mesmo<br />

tempo. — Peabody olhou para cima, impassível. — Tem noventa e oito<br />

anos. Espero sair a ela.<br />

Eve engoliu a próxima gargalhada com o apitar do seu tele-link. —<br />

Dallas. — Observou a cara do Comandante Whitney a nadar no ecrã. —<br />

Sim, Comandante.<br />

— Gostaria <strong>de</strong> falar consigo, Tenente, no meu gabinete. O mais <strong>de</strong>pressa<br />

possível.<br />

— Sim, chefe. Cinco minutos. — Eve <strong>de</strong>sligou, lançando um olhar<br />

esperançoso a Peabody. — Talvez se esteja a passar algo. Continua a trabalhar<br />

nesses fi cheiros. Se formos sair, eu contacto-te.<br />

Começou a sair, mas voltou a enfi ar a cabeça na porta. — Não comas<br />

o meu doce.<br />

— Raios — murmurou Peabody entre <strong>de</strong>ntes. — Ela nunca falha.<br />

Whitney tinha passado a maior parte da sua vida com distintivo e uma<br />

gran<strong>de</strong> parte da sua vida profi ssional na chefi a. Fazia com que lhe dissesse<br />

respeito conhecer os seus polícias, julgar as suas forças e fraquezas. E sabia<br />

como utilizar ambas.<br />

Era um homem gran<strong>de</strong> com mãos <strong>de</strong> operário e olhos escuros e inquisitivos<br />

que alguns consi<strong>de</strong>ravam frios. À superfície, o seu temperamento<br />

era quase assustadoramente regular. E como a maioria das superfícies planas,<br />

revestia algo perigoso que fervilhava sob a superfície.<br />

Eve respeitava-o, gostava <strong>de</strong>le ocasionalmente e admirava-o sempre.<br />

Estava sentado à secretária quando ela entrou no gabinete, com rugas<br />

<strong>de</strong> concentração a franzir-lhe o sobrolho enquanto lia um livro <strong>de</strong> capa<br />

dura. Não levantou o olhar, fazendo meramente um gesto na direcção <strong>de</strong><br />

uma ca<strong>de</strong>ira. Ela sentou-se, viu um eléctrico aéreo passar ruidosamente<br />

pela janela, espantada como sempre pelo número <strong>de</strong> passageiros com binóculos<br />

e telescópios.<br />

23


O que esperavam ver por <strong>de</strong>trás das janelas on<strong>de</strong> polícias trabalhavam?<br />

— interrogou-se ela. Suspeitos a serem torturados, armas <strong>de</strong>scarregadas,<br />

vítimas sanguinolentas a chorar? E porque é que a fantasia <strong>de</strong> tamanha<br />

miséria os iria entreter?<br />

— Ontem à noite vi-te no velório.<br />

Eve fez transitar os seus pensamentos e atenção para o seu comandante.<br />

— Presumo que quase todos os polícias da Central tenham aparecido.<br />

— As pessoas gostavam do Frank.<br />

— Sim, pois gostavam.<br />

— Nunca trabalhaste com ele?<br />

— Deu-me algumas dicas quando era novata, ajudou-me com o<br />

trabalho <strong>de</strong> cepa algumas vezes, mas não, nunca trabalhei directamente<br />

com ele.<br />

Whitney assentiu, mantendo os seus olhos nos <strong>de</strong>la. — Foi parceiro<br />

do Feeney, antes do teu tempo. Tu foste parceira do Feeney <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> o<br />

Frank ter passado das ruas para a secretária.<br />

Ela começou a sentir uma sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconforto nas entranhas.<br />

Há aqui qualquer coisa — pensou ela. Algo não bate certo. — Sim, chefe.<br />

Isto atingiu bastante o Feeney.<br />

— Tenho noção disso, Dallas. Por isso é que o Capitão Feeney não<br />

veio hoje. Whitney apoiou os cotovelos na secretária, entrelaçou os <strong>de</strong>dos,<br />

sobrepondo-os. — Temos uma possível situação, Tenente. Uma situação<br />

<strong>de</strong>licada.<br />

— Relacionada com o Detective Sargento Wojinski?<br />

— A informação que te vou transmitir é confi <strong>de</strong>ncial. A tua ajudante<br />

po<strong>de</strong> ser informada conforme penses necessário, mas mais ninguém no<br />

Corpo. Ninguém nos média. Estou a pedir-to, a or<strong>de</strong>nar-to — corrigiu ele<br />

— para trabalhares essencialmente sozinha neste assunto.<br />

O <strong>de</strong>sconforto que sentia no estômago espalhou-se em pequenas<br />

golfadas <strong>de</strong> medo ao pensar em Feeney. — Compreendido.<br />

— Há algumas dúvidas em relação às circunstâncias da morte do DS<br />

Wojinski.<br />

— Dúvidas, Comandante?<br />

— Vais precisar <strong>de</strong> saber os antece<strong>de</strong>ntes. — Ele pousou as suas mãos<br />

dobradas na ponta da secretária. — Foi-me feito saber que o DS Wojinski,<br />

ou andava a fazer investigação por conta própria fora do expediente, ou<br />

estava envolvido com substâncias ilegais.<br />

— Droga? O Frank? Ninguém era mais limpo do que o Frank.<br />

Whitney nem pestanejou. — A 22 <strong>de</strong> Setembro <strong>de</strong>ste ano, o DS<br />

Wojinski foi avistado por um <strong>de</strong>tective <strong>de</strong> substâncias ilegais à paisana en-<br />

24


quanto este alegadamente fazia uma transacção num suposto centro <strong>de</strong><br />

distribuição química. O Athame é um clube privado, <strong>de</strong> temática religiosa,<br />

que oferece aos seus membros serviços rituais individuais ou <strong>de</strong> grupo<br />

e tem licença para serviços sexuais privados. A Divisão <strong>de</strong> Substâncias<br />

Ilegais anda a investigá-lo há quase dois anos. O Frank foi visto a fazer<br />

uma compra.<br />

Quando Eve não disse nada, Whitney inspirou profundamente. —<br />

Esta situação foi-me subsequentemente reportada. Interroguei o Frank<br />

e ele não foi muito expansivo. — Whitney hesitou, <strong>de</strong>pois continuou. —<br />

Francamente, Dallas, o facto <strong>de</strong> ele nem confi rmar nem <strong>de</strong>smentir, se recusar<br />

a explicar ou discutir o assunto, não me pareceu nada <strong>de</strong>le. E preocupou-me.<br />

Or<strong>de</strong>nei-lhe que se submetesse a um exame físico, incluindo um<br />

scan <strong>de</strong> drogas, aconselhei-o a tirar uma semana <strong>de</strong> baixa. Concordou em<br />

fazer ambas as coisas. Nessa altura, o scan <strong>de</strong>u um resultado limpo. Devido<br />

ao registo <strong>de</strong>le e ao conhecimento e opinião pessoais que <strong>de</strong>le fazia, não<br />

registei o inci<strong>de</strong>nte no fi cheiro <strong>de</strong>le, mas selei-o.<br />

Ele ergueu-se, virando-se para a janela. — Talvez isso tenha sido um<br />

erro. É possível que se tivesse avançado com o assunto nessa altura, ele ainda<br />

estivesse vivo e não estivéssemos a ter esta discussão.<br />

— Confi ou no seu juízo e no seu homem.<br />

Whitney voltou-se. Os seus olhos estavam obscurecidos; eram intensos,<br />

mas não frios. — pensou Eve. Eles sentiam. — Sim, confi ei. E agora tenho<br />

mais dados. A autópsia padrão feita ao DS Wojinski <strong>de</strong>tectou indícios<br />

<strong>de</strong> digitalis e Zeus.<br />

— Zeus. — Nesse momento, Eve levantou-se. — O Frank não era<br />

drogado, Comandante. Esquecendo quem e o que ele era, um químico tão<br />

potente quanto Zeus revela indícios. Consegue ver-se nos olhos, na alteração<br />

<strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>. Se ele andasse a consumir Zeus, todos os polícias na<br />

divisão <strong>de</strong>le saberiam. O scan <strong>de</strong> droga teria acusado qualquer coisa. Tem<br />

<strong>de</strong> haver algum engano.<br />

Ela enfi ou as mãos nos bolsos, forçando-se a não andar <strong>de</strong> um lado<br />

para o outro. — Sim, há polícias que consomem e há polícias que acham<br />

que os distintivos <strong>de</strong>les os protegem da lei. Mas não o Frank. Não era corrupto<br />

nem por sombras.<br />

— Mas os indícios estavam à vista, Tenente. Assim como indícios <strong>de</strong><br />

outros químicos, i<strong>de</strong>ntifi cados como <strong>de</strong>signer clones. A combinação <strong>de</strong>sses<br />

químicos resultou em paragem cardíaca e morte.<br />

— Suspeita que ele teve uma overdose, ou se suicidou? — Ela abanou<br />

a cabeça. — Isso não está certo.<br />

— Repito que foram encontrados vestígios.<br />

— Então, tinha <strong>de</strong> haver um motivo. Digitalis? — Ela franziu as so-<br />

25


ancelhas. — Isso é um medicamento para o coração, não? Disse que ele<br />

tinha feito um exame há umas semanas. Porque não indicou que ele tinha<br />

problemas cardíacos?<br />

O olhar <strong>de</strong> Whitney permaneceu nivelado. — O amigo mais íntimo<br />

do Frank no Corpo é o melhor E-<strong>de</strong>tective da cida<strong>de</strong>.<br />

— O Feeney? — Eve avançou dois passos antes <strong>de</strong> conseguir parar.<br />

— Pensa que o Feeney o encobriu, adulterou os registos <strong>de</strong>le? Raios partam,<br />

Comandante.<br />

— É uma possibilida<strong>de</strong> que não posso ignorar — disse Whitney em<br />

tom neutro. — Nem tu. A amiza<strong>de</strong> não só po<strong>de</strong> toldar, como tolda sempre<br />

o juízo. Estou confi ante <strong>de</strong> que a tua amiza<strong>de</strong> com o Feeney não irá, neste<br />

caso, toldar o teu.<br />

Voltou a caminhar para a secretária, a sua posição <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>. —<br />

Estas alegações e suspeitas têm <strong>de</strong> ser investigadas e resolvidas.<br />

As golfadas quentes tinham crescido no estômago <strong>de</strong>la e queimavam<br />

como ácido. — Quer que investigue colegas. Um dos quais está morto, tendo<br />

<strong>de</strong>ixado para trás uma família enlutada. O outro que foi meu mentor e é<br />

meu amigo. — Ela colocou as mãos na secretária. — É seu amigo.<br />

Ele tinha esperado a raiva, tendo-a aceitado. Tal como esperava que<br />

ela fi zesse o trabalho. Não se contentaria com menos. — Preferias que atribuísse<br />

isto a alguém que não se importasse? — O sobrolho <strong>de</strong>le levantou-se<br />

com a interrogação. — Quero isto feito <strong>de</strong> forma sossegada, com cada pedaço<br />

<strong>de</strong> prova e todos os registos <strong>de</strong> investigação selados para apenas serem<br />

vistos por mim. A dada altura, po<strong>de</strong>rá ser necessário falar com a família<br />

do DS Wojinski. Espero que o faças com discrição e tacto. Não é necessário<br />

aumentar-lhes a dor.<br />

— E se <strong>de</strong>scobrir alguma coisa que manche uma vida inteira <strong>de</strong> serviço<br />

público?<br />

— Isso será para eu <strong>de</strong>cidir.<br />

Ela endireitou-se. — Está a pedir-me para fazer uma coisa mesmo<br />

difícil.<br />

— Estou a or<strong>de</strong>nar — corrigiu Whitney. — Isso <strong>de</strong>veria facilitar as<br />

coisas, Tenente. Para o teu lado. — Ele entregou-lhe dois discos selados.<br />

— Visiona-os na tua unida<strong>de</strong> doméstica. Todas e quaisquer transmissões<br />

sobre este assunto <strong>de</strong>vem ser enviadas da tua unida<strong>de</strong> doméstica para a<br />

minha unida<strong>de</strong> doméstica. Nada <strong>de</strong>ve passar pela Central <strong>de</strong> Polícia até eu<br />

te dizer o contrário. Estás dispensada.<br />

Ela rodou nos calcanhares, andando para a porta. Ali, fez uma pausa,<br />

mas não olhou para trás. — Não vou trair o Feeney. Raios me partam<br />

se o fi zer.<br />

Whitney observou-a a sair, <strong>de</strong>pois fechou os olhos. Sabia que ela faria<br />

26


o que fosse necessário. Só esperava que não fosse mais do que aquilo com<br />

que ela conseguia viver.<br />

O temperamento <strong>de</strong>la estava explosivo quando chegou ao seu gabinete.<br />

Peabody estava sentada em frente do monitor, com um sorrisinho.<br />

— Acabei mesmo agora. A sua unida<strong>de</strong> é mesmo mariquinhas,<br />

Dallas, mas estive a dar-lhe um pouco <strong>de</strong> amor duro.<br />

— Destroçar — ripostou Eve, agarrando no seu casaco e na mala. —<br />

Vai buscar o teu equipamento, Peabody.<br />

— Temos um caso? — Arrebitando, Peabody saltou da ca<strong>de</strong>ira e correu<br />

atrás <strong>de</strong> Eve. — Que tipo <strong>de</strong> caso? On<strong>de</strong> vamos? — Ela apressou o passo<br />

para a acompanhar. — Dallas? Tenente?<br />

Eve bateu no botão do elevador, e o olhar furibundo que lançou a<br />

Peabody foi sufi ciente para impedir mais perguntas. Entrou no elevador,<br />

acomodou-se entre vários polícias ruidosos e <strong>de</strong>ixou-se estar num silêncio<br />

estatuesco.<br />

— Dallas, como está a recém-casada? Porque não pe<strong>de</strong>s ao teu marido<br />

rico para comprar o refeitório e servir comida a sério?<br />

Ela lançou um olhar <strong>de</strong> aço pelo ombro, fi tando a cara <strong>de</strong> um polícia<br />

sorri<strong>de</strong>nte. — Mor<strong>de</strong> aqui, Carter.<br />

— Há três anos mordi mesmo e quase me partiste os <strong>de</strong>ntes todos.<br />

Estavas a guardar-te para um civil — disse ele quando o riso irrompeu.<br />

— Estavas a guardar-te para alguém que não fosse o maior cretino<br />

dos Furtos — acrescentou outra pessoa.<br />

— É melhor do que ser o menor, Forenski. Peabody — continuou<br />

Carter. — Queres que te morda?<br />

— Tens seguro <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>? Po<strong>de</strong>s morrer <strong>de</strong> velho.<br />

— Eu vou ver isso e <strong>de</strong>pois informo-te. — Com uma pisca<strong>de</strong>la,<br />

Carter e muitos outros foram-se embora.<br />

— O Carter atira-se a tudo o que tenha saias — disse Peabody em jeito<br />

<strong>de</strong> conversa, preocupada com o facto <strong>de</strong> Eve continuar a olhar para a frente.<br />

— É pena ser um cretino. — Sem resposta. — Ah, o Forenski até é giro<br />

— continuou Peabody. — Ele não tem uma parceira pessoal fi xa, pois não?<br />

— Não me intrometo nas vidas pessoais dos outros agentes — ripostou<br />

Eve, avançando a passos largos para o nível da garagem.<br />

— Não se importa <strong>de</strong> se intrometer na minha — replicou Peabody<br />

entre <strong>de</strong>ntes. Esperou enquanto Eve <strong>de</strong>scodifi cava as fechaduras do carro,<br />

<strong>de</strong>pois sentou-se no lugar do pendura. — Insiro o <strong>de</strong>stino, Tenente, ou é<br />

surpresa? — Depois, piscou os olhos quando Eve simplesmente encostou a<br />

cabeça contra o volante. — Está bem? O que se passa, Dallas?<br />

— Abre o gabinete <strong>de</strong> casa. — Eve inspirou, endireitando-se. —<br />

27


Dou-te os <strong>de</strong>talhes pelo caminho. Todas as informações que te <strong>de</strong>r e todos<br />

os registos da investigação que se segue são para ser codifi cados e selados.<br />

— Eve manobrou o carro para fora da garagem, saindo para a rua. — Essas<br />

informações e registos são todos confi <strong>de</strong>nciais. Só reportas a mim ou ao<br />

comandante.<br />

— Sim, chefe. Peabody engoliu a obstrução que se tinha alojado na<br />

sua garganta. — É interno, não é? É um dos nossos.<br />

— Sim. Raios partam. É um dos nossos.<br />

A unida<strong>de</strong> doméstica <strong>de</strong>la não sofria das excentricida<strong>de</strong>s do computador<br />

ofi cial. Roarke tinha tratado disso. Os dados <strong>de</strong>slizavam sem problemas<br />

pelo ecrã.<br />

— Detective Marion Burns. Está infi ltrada no Th e Athame há oito<br />

meses, a trabalhar como empregada <strong>de</strong> bar. — Eve cerrou os lábios. —<br />

Burns. Não a conheço.<br />

— Eu conheço mais ou menos. — Peabody arrastou a ca<strong>de</strong>ira um<br />

pouco mais próximo da <strong>de</strong> Eve. — Conheci-a quando estava…sabe, durante<br />

aquela coisa do Casto. Pareceu-me ser do tipo <strong>de</strong> confi ança, empenhada<br />

no trabalho. Se a memória não me falha, é polícia <strong>de</strong> terceira geração. A<br />

mãe <strong>de</strong>la ainda está no activo. Acho que é Capitão, em Bunko. O avô <strong>de</strong>la<br />

morreu no cumprimento do <strong>de</strong>ver durante as Guerras Urbanas. Não sei<br />

porque motivo incriminaria o DS Wojinski.<br />

— Talvez tenha relatado o que viu, ou talvez seja outra coisa qualquer.<br />

Teremos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir. O relatório que fez ao Whitney é bastante explícito.<br />

À uma da tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> Setembro, 2058, observou o DS Wojinski sentado<br />

numa cabine privada com uma conhecida trafi cante <strong>de</strong> químicos, Selina<br />

Cross. O Wojinski trocou créditos por um pequeno pacote, que parecia conter<br />

uma substância ilegal. A conversa e troca duraram quinze minutos, altura<br />

em que a Cross passou para outra cabine. O Wojinski fi cou no clube mais<br />

<strong>de</strong>z minutos, <strong>de</strong>pois foi-se embora. A Detective Burns seguiu o suspeito durante<br />

dois quarteirões, altura em que este apanhou um transporte público.<br />

— Portanto, ela não o chegou a ver a consumir.<br />

— Não. E não o chegou a ver regressar ao clube nessa noite ou em<br />

qualquer noite seguinte durante a investigação <strong>de</strong>la. A Burns é a nossa priorida<strong>de</strong><br />

em termos <strong>de</strong> interrogatório.<br />

— Sim, chefe. Dallas, já que o Wojinski e o Feeney eram próximos,<br />

não seria normal que o Wojinski lhe tivesse contado qualquer coisa? Ou<br />

no caso <strong>de</strong> isso não ter acontecido, que o Feeney tivesse reparado…em<br />

alguma coisa?<br />

— Não sei. — Eve esfregou os olhos. — O Átame. O que raio é um<br />

átame?<br />

28


— Não sei. — Peabody sacou do seu palm PC e pediu os dados.<br />

“Átame, punhal ritualístico, um instrumento ritualístico normalmente feito<br />

<strong>de</strong> aço. Tradicionalmente o átame não é utilizado para cortar, mas para invocar<br />

ou banir círculos nas religiões da terra.”<br />

Peabody levantou o olhar para Eve. — Bruxaria — continuou ela. —<br />

É uma gran<strong>de</strong> coincidência.<br />

— Não me parece. — Ela retirou o bilhete <strong>de</strong> Alice <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da gaveta<br />

da secretária e passou-a a Peabody. — A neta do Frank passou-me<br />

isto no velório. Acontece que ela trabalha numa loja chamada Spirit Quest.<br />

Conheces?<br />

— Sei o que é. — Agora com um ar preocupado, Peabody posou o<br />

bilhete. — Os wiccans são pacífi cos, Dallas. E utilizam ervas, não químicos.<br />

Nenhum verda<strong>de</strong>iro wiccan compra, ven<strong>de</strong> ou consome Zeus.<br />

— E digitalis? — Eve ergueu a cabeça. — É uma espécie <strong>de</strong> erva, não?<br />

— É <strong>de</strong>stilada da <strong>de</strong>daleira. Há séculos que é utilizada medicinalmente.<br />

— É o quê? Uma espécie <strong>de</strong> estimulante?<br />

— Não sei muito sobre curativos, mas acho que sim.<br />

— Também a Zeus. Pergunto-me que tipo <strong>de</strong> efeito se produz se<br />

combinarmos as duas. Uma mistura má, dosagem errada, o que seja…Não<br />

me surpreen<strong>de</strong>ria se provocasse um ataque cardíaco.<br />

— Acha que o Wojinski se suicidou?<br />

— O comandante suspeita disso e eu tenho questões em aberto —<br />

disse Eve com impaciência. — Não tenho respostas. Mas vou obtê-las. Ela<br />

pegou no bilhete. — Vamos começar esta noite, com a Alice. Quero-te lá<br />

às onze, à paisana. Tenta parecer uma free-ager, Peabody, não uma polícia.<br />

Peabody encolheu-se. — Tenho um vestido que a minha mãe fez<br />

para o meu último aniversário. Mas vou fi car mesmo fula se se rir.<br />

— Vou tentar controlar-me. Por agora, vejamos o que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scobrir<br />

sobre esta tal <strong>de</strong> Selina Cross e sobre o O Átame Clube.<br />

Cinco minutos <strong>de</strong>pois, Eve estava a sorrir obscuramente para a sua<br />

máquina. — Interessante. A nossa Selina é muito rodada. Passou algum<br />

tempo na gaiola. Olha-me para este cadastro, Peabody. Solicitar sexo sem<br />

licença, em 43 e em 44. Acusação <strong>de</strong> agressão também em 44, mais tar<strong>de</strong><br />

retirada. Deu <strong>de</strong> caras com o Bunko em 47, à frente <strong>de</strong> um esquema<br />

<strong>de</strong> vi<strong>de</strong>ntes. Para que raios é que as pessoas querem falar com os mortos?<br />

Suspeita <strong>de</strong> mutilações a animais em 49. Não houve provas para efectuar<br />

uma <strong>de</strong>tenção. Fabrico e distribuição <strong>de</strong> substâncias ilegais. Foi isso que foi<br />

a perdição <strong>de</strong>la e a pôs na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> 50 a 51. No entanto, são todas coisas<br />

pequenas. Mas aqui, em 55, foi <strong>de</strong>tida e interrogada no seguimento do esquartejamento<br />

ritual <strong>de</strong> um menor. O álibi <strong>de</strong>la era forte.<br />

29


— A Divisão <strong>de</strong> Substâncias Ilegais vigia-a <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que foi libertada,<br />

em 51 — adicionou Peabody.<br />

— Mas não a <strong>de</strong>tiveram.<br />

— É como disse, ela é arraia-miúda. Devem querer caça grossa.<br />

— Essa é a minha opinião. Veremos o que a Marion tem a dizer.<br />

Olhe, diz que a Selina Cross é dona do O Átame Clube, sem quaisquer ilegalida<strong>de</strong>s.<br />

— Eve cerrou os lábios. — On<strong>de</strong> é que uma trafi cante <strong>de</strong> meia<br />

tigela obteria crédito para comprar e gerir um clube? Ela é uma fachada.<br />

Pergunto-me se a Divisão <strong>de</strong> Substâncias Ilegais sabe para quem. Vamos lá<br />

vê-la bem. Computador, mostrar imagem da suspeita. Cross, Selina.<br />

— Bolas! — Peabody estremeceu um pouco enquanto a imagem fl utuava<br />

no ecrã. — Mete medo.<br />

— Não é uma cara que se esqueça — murmurou Eve.<br />

Era angulosa e esguia, os lábios cheios e <strong>de</strong> um vermelho vibrante, os<br />

olhos negros como ónix. Havia ali beleza, no equilíbrio das feições, na pele<br />

suave e branca, mas era uma beleza fria. E, como Peabody tinha observado,<br />

metia medo. O cabelo <strong>de</strong>la era tão escuro quanto os olhos, dividido perfeitamente<br />

ao meio, caindo <strong>de</strong>pois a direito. Tinha uma pequena tatuagem<br />

acima da sobrancelha esquerda.<br />

— Que símbolo é aquele? — Perguntou Eve. — Fazem zoom e aumentar<br />

segmentos vinte a vinte e dois, trinta por cento.<br />

— Um pentagrama. — A voz <strong>de</strong> Peabody falhou, fazendo com que<br />

Eve olhasse para ela com curiosida<strong>de</strong>. — Invertido. Ela não é wiccan, Dallas.<br />

Peabody limpou a garganta. — Ela é satânica.<br />

Eve não acreditava nessas coisas — na parte branca e na parte negra. Mas<br />

estava preparada para acreditar que outros acreditavam. E mais inclinada a<br />

acreditar que alguns utilizavam essa fé mal canalizada para explorar.<br />

— Tem cuidado com o que subestimas, Eve.<br />

Distraída, lançou-lhe um olhar. Roarke tinha insistido em conduzir.<br />

Ela não se podia queixar, já que qualquer um dos veículos <strong>de</strong>le era muito<br />

melhor do que os <strong>de</strong>la.<br />

— Como assim?<br />

— Quero dizer que há motivo para que certas crenças e tradições<br />

sobrevivam durante séculos.<br />

— Claro que há! Os seres humanos são e sempre foram ingénuos. E<br />

existem e sempre existiram indivíduos que sabem como explorar essa ingenuida<strong>de</strong>.<br />

Vou <strong>de</strong>scobrir se alguém explorou a do Frank.<br />

Ela tinha contado tudo a Roarke, e tinha justifi cado essa <strong>de</strong>cisão em<br />

termos profi ssionais convencendo-se <strong>de</strong> que, se não podia pedir a Feeney<br />

ajuda em termos informáticos, podia e iria pedir ajuda a Roarke.<br />

30


— És uma boa polícia e uma mulher sensata. Muitas vezes, és <strong>de</strong>masiado<br />

boa polícia e uma mulher <strong>de</strong>masiado sensata. — Ele parou por causa<br />

do trânsito, virando-se para ela. — Estou a pedir-te para teres cuidado especial<br />

ao imiscuíres-te num assunto como este.<br />

A cara <strong>de</strong>le estava encoberta e a voz estava <strong>de</strong>masiado séria.<br />

— Estás a falar <strong>de</strong> bruxas e <strong>de</strong> adoradores do diabo? Por favor, Roarke,<br />

estamos no segundo milénio. Satânicos, por amor <strong>de</strong> Deus! — Ela afastou<br />

o cabelo da cara. — O que acham que fariam com ele se ele existisse e conseguissem<br />

chamar-lhe a atenção?<br />

— É esse o problema, não? — Disse Roarke calmamente, virando à<br />

esquerda na direcção do Clube Aquariano.<br />

— Os diabos existem. — Eve franziu as sobrancelhas enquanto ele<br />

enfi ava o veículo num lugar <strong>de</strong> segundo nível na rua. — E são <strong>de</strong> carne e<br />

osso, andam em duas pernas. Tu e eu já vimos imensos.<br />

Ela saiu, <strong>de</strong>scendo a rampa para o nível da rua. Estava um pouco<br />

<strong>de</strong> vento, e a brisa refrescante tinha levado para longe os cheiros e o fumo.<br />

Acima, o céu estava <strong>de</strong> um negro espesso, sem o alívio da lua ou das estrelas.<br />

Feixes entrecruzados do moroso tráfego aéreo piscavam perseguidos<br />

pelo rumor abafado dos motores.<br />

Aqui na rua fi cava uma parte artística e <strong>de</strong> classe alta da cida<strong>de</strong>,<br />

on<strong>de</strong> até a ambu-grill na esquina era imaculada, com um menu que exibia<br />

fruta híbrida fresca em vez <strong>de</strong> cachorros <strong>de</strong> soja fumados. A maior<br />

parte dos ven<strong>de</strong>dores ambulantes se tinha retirado por esta noite, mas<br />

durante o dia, abriam os carros e empenhavam discretamente ofertas <strong>de</strong><br />

bijutaria feita à mão, tapetes e tapeçarias em ponto cruz, banhos <strong>de</strong> ervas<br />

e chás.<br />

Os pedintes nesta zona eram normalmente educados, com as licenças<br />

bem à vista. E provavelmente gastariam os seus ganhos diários numa<br />

refeição, em vez <strong>de</strong> numa pedrada química.<br />

A taxa <strong>de</strong> criminalida<strong>de</strong> era baixa, as rendas andavam pela hora da<br />

morte, e a ida<strong>de</strong> média dos seus resi<strong>de</strong>ntes e comerciantes <strong>de</strong>spreocupadamente<br />

baixa.<br />

Ela teria odiado viver aqui.<br />

— Chegámos cedo — murmurou ela, perscrutando a rua por hábito.<br />

Depois, a boca <strong>de</strong>la curvou-se num sorriso. — Estás a ver aquilo? A<br />

Mercearia Vi<strong>de</strong>nte. Acho que entras, encomendas o estufado vegetariano e<br />

eles alegam que sabiam que ias fazer isso. Salada <strong>de</strong> massa e leituras <strong>de</strong> mão.<br />

Estão abertos. — Por impulso, virou-se para Roarke. Ela queria qualquer<br />

coisa que lhe animasse o espírito. — Alinhas?<br />

— Queres que te leiam a mão?<br />

— Que raios? — Ela agarrou-lhe na mão. — Vai fazer-me entrar no<br />

31


espírito para investigar trafi cantes <strong>de</strong> químicos satânicos. Talvez nos façam<br />

<strong>de</strong>sconto e leiam a tua por meta<strong>de</strong> do preço.<br />

— Não.<br />

— Nunca se sabe antes <strong>de</strong> pedir.<br />

— Não vou pedir que me leiam a minha.<br />

— Cobar<strong>de</strong> — murmurou ela, empurrando-o pela porta.<br />

— Prefi ro a palavra cuidadoso.<br />

Ela tinha <strong>de</strong> admitir, o cheiro era maravilhoso. Não havia resquícios<br />

do exagero habitual <strong>de</strong> cebolas e molhos pesados. Em vez disso, pairava<br />

uma leve fragrância <strong>de</strong> especiarias e fl ores que se misturava perfeitamente<br />

com a música etérea.<br />

Pequenas mesas e ca<strong>de</strong>iras brancas estavam disposta a uma distância<br />

agradável do balcão principal on<strong>de</strong> taças e travessas <strong>de</strong> comida colorida<br />

eram apresentadas por <strong>de</strong>trás <strong>de</strong> vidro brilhante. Dois clientes estavam sentados<br />

juntos, <strong>de</strong>bruçados sobre taças <strong>de</strong> sopa rala. Ambos exibiam fl uidos<br />

robes brancos, sandálias com pedrarias e cabeças rapadas.<br />

Atrás do balcão estava um homem com anéis <strong>de</strong> prata em cada <strong>de</strong>do.<br />

Vestia uma camisa <strong>de</strong> mangas largas num azul <strong>de</strong>smaiado. O seu cabelo<br />

louro estava fi namente entrançado e envolto com cor<strong>de</strong>l prateado. Sorriu<br />

num gesto <strong>de</strong> boas-vindas.<br />

— Abençoados sejam. Desejam comida para o corpo ou para a alma?<br />

— Pensava que <strong>de</strong>via saber. — Eve lançou-lhe um esgar. — E que tal<br />

uma leitura?<br />

— De mãos, Tarot, runas ou aura?<br />

— Mãos. — Satisfeita consigo própria, Eve esten<strong>de</strong>u a mão.<br />

— A Cassandra é a nossa especialista em leitura <strong>de</strong> mãos. Se quiser<br />

sentar-se confortavelmente, ela terá todo o gosto em ajudá-la. Irmã —<br />

acrescentou ele quando ela começava a virar-se — as vossas auras são muito<br />

fortes, vibrantes. São um bom par. — Dizendo isto, ele pegou numa mão<br />

<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira com uma ponta arredondada e passou-a com gentileza sob o<br />

bordo <strong>de</strong> uma taça branca vidrada.<br />

Em simultâneo com a canção da vibração, uma mulher atravessou<br />

a cortina <strong>de</strong> contas que fazia a separação com a divisão das traseiras.<br />

Tinha vestida uma túnica prateada, com uma pulseira <strong>de</strong> prata enrolada<br />

acima do cotovelo. Eve reparou que ela era muito jovem, mal aparentando<br />

ter vinte anos e, como o homem, tinha o cabelo louro e penteado<br />

numa trança.<br />

— Bem-vindos. — A voz <strong>de</strong>la tinha um ligeiro sotaque irlandês. —<br />

Por favor, fi quem à vonta<strong>de</strong>. Querem ambos uma leitura?<br />

— Não, só eu. — Eve sentou-se numa mesa afastada. — A quanto fi ca?<br />

— A leitura é <strong>de</strong> graça. Apenas pedimos um donativo. — Sentou-se<br />

32


graciosamente, sorrindo para Roarke. — A vossa generosida<strong>de</strong> será apreciada.<br />

Minha senhora, a mão com que nasceu.<br />

— Vim com ambas.<br />

— A esquerda, por favor. Ela colocou a mão em concha sob a mão<br />

que Eve lhe ofereceu, mal a tocando <strong>de</strong> início. — Força e coragem. O seu<br />

<strong>de</strong>stino não estava traçado. Um trauma, uma quebra na linha da vida.<br />

Muito jovem. Foi fi lha única. Tanta dor, tanta tristeza. — Ela levantou os<br />

olhos, <strong>de</strong> um cinzento límpido. — Não teve e não tem qualquer culpa.<br />

Ela agarrou com mais força, quando Eve a repeliu instintivamente.<br />

— Não é necessário recordar tudo até que esteja pronta. Desgosto e dúvidas<br />

interiores, paixões bloqueadas. Uma mulher solitária que escolheu concentrar-se<br />

num objectivo. Uma gran<strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> justiça. Disciplinada,<br />

auto-motivada…assombrada. O seu coração foi partido, mais do que partido.<br />

Agredido. Portanto, resguardou o que sobrava. É uma mão capaz.<br />

Inspira confi ança.<br />

Ela pegou na mão direita <strong>de</strong> Eve com fi rmeza, mas mal olhou para<br />

ela. Aqueles límpidos olhos cinzentos permaneceram fi xos na cara <strong>de</strong> Eve.<br />

— Carrega muito do que se passou <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si. Não sossega, não <strong>de</strong>scansa.<br />

Mas encontrou o seu lugar. A autorida<strong>de</strong> assenta-lhe que nem uma luva, tal<br />

como a responsabilida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>la advém. É teimosa, muitas vezes obstinada,<br />

mas o seu coração está praticamente curado. Ama.<br />

Ela voltou a lançar um olhar a Roarke, e a boca <strong>de</strong>la suavizou-se<br />

quando voltou a olhar para Eve. — A profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse amor surpreen<strong>de</strong>-a.<br />

Acalma-a e não é uma pessoa que se acalme facilmente. — O<br />

polegar <strong>de</strong>la vagueou pelo topo da palma <strong>de</strong> Eve. — O seu coração tem<br />

motivos profundos. É…picuinhas. É cuidadoso, mas quando é dado, é<br />

completo. Tem consigo i<strong>de</strong>ntifi cação. Um distintivo. — Ela sorriu lentamente.<br />

— Sim, fez a escolha certa. Talvez a única que po<strong>de</strong>ria ter feito. Já<br />

matou. Mais do que uma vez. Não teve alternativa, mas pesa-lhe no coração<br />

e na mente. Neste aspecto, tem difi culda<strong>de</strong>s em separar o intelecto da<br />

emoção. Voltará a matar.<br />

Os olhos cinzentos tornaram-se vítreos e o aperto ligeiro estreitou-se.<br />

— É escuro. As forças aqui são escuras. Mal. Vidas já perdidas e<br />

outras ainda a per<strong>de</strong>r. Dor e medo. Corpo e alma. Deve proteger-se e aos<br />

que ama.<br />

Ela voltou-se para Roarke, arrebatando a mão <strong>de</strong>le e falando rapidamente<br />

em gaélico. A cara <strong>de</strong>la tinha-se tornado muito pálida, e a respiração<br />

estava ofegante.<br />

— Basta. — Aturdida, Eve arrancou a mão do aperto. — Que gran<strong>de</strong><br />

espectáculo. — Irritada com a dormência que sentia na palma, esfregou-a<br />

com força contra os joelhos dos calções. — Cassandra, correcto? Tem um<br />

33


om olho. E uma oratória impressionante. — Ela enterrou a mão no bolso,<br />

retirou cinquenta em créditos e colocou-os na mesa.<br />

— Espere. — Cassandra abriu uma pequena bolsa bordada que tinha<br />

à cintura, recolhendo uma pedra lisa num tom ver<strong>de</strong>-pálido. — Uma prenda.<br />

Um sinal. — Ela enfi ou-a na mão <strong>de</strong> Eve. — Tenha-a consigo.<br />

— Porquê?<br />

— Porque não? Por favor, volte. Abençoada seja.<br />

Eve lançou um último olhar à cara pálida <strong>de</strong>la antes <strong>de</strong> Cassandra<br />

entrar apressadamente na divisão das traseiras, <strong>de</strong>ixando um tilintar musical<br />

<strong>de</strong> contas.<br />

— Bem, lá se foi o habitual ‘Vai fazer uma longa viagem por mar,’ —<br />

murmurou Eve enquanto se dirigia para a porta. — O que te disse ela?<br />

— O sotaque <strong>de</strong>la era um pouco cerrado. Eu diria que ela é dos condados<br />

oci<strong>de</strong>ntais. — Ele saiu, estranhamente aliviado por inspirar o ar nocturno.<br />

— Basicamente, disse-me que se te amasse tanto quanto ela acreditava,<br />

me manteria por perto. Que estás em risco <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a vida, talvez a<br />

alma, e que precisas <strong>de</strong> mim para sobreviver a esta provação.<br />

— Que patacoada. — Ela olhou para a pedra que tinha na mão.<br />

— Fica com ela. — Roarke dobrou-lhe os <strong>de</strong>dos sobre a pedra. —<br />

Mal não po<strong>de</strong> fazer.<br />

Encolhendo os ombros, Eve enfi ou-a no bolso. — Acho que me vou<br />

manter afastada <strong>de</strong> vi<strong>de</strong>ntes.<br />

— É uma excelente i<strong>de</strong>ia — disse Roarke com veemência enquanto<br />

atravessava com ela a rua na direcção do Clube Aquariano.<br />

34


CAPÍTULO TRÊS<br />

E ra um lugar e peras, pensou Eve, e muito mais calmo do que qualquer<br />

discoteca em que ela já tivesse estado. Tanto as conversas como a música<br />

eram mantidas num tom baixo, e ambas tinham uma animação elegante.<br />

As mesas, como era da praxe, estavam aglomeradas, mas dispostas<br />

<strong>de</strong> modo a capacitar padrões <strong>de</strong> tráfego circulares que recordaram a Eve o<br />

símbolo no fundo do bilhete <strong>de</strong> Alice.<br />

A forrar as pare<strong>de</strong>s estavam espelhos cortados em forma <strong>de</strong> estrelas e<br />

luas. Cada um continha uma vela acesa, um pilar branco que refl ectia a luz<br />

e a chama. Entre cada espelho havia placas <strong>de</strong> símbolos e fi guras que ela não<br />

reconheceu. A pequena pista <strong>de</strong> dança também era circular, tal como o bar<br />

on<strong>de</strong> os clientes se sentavam em bancos que representavam os símbolos do<br />

Zodíaco. Ela <strong>de</strong>morou um pouco a reconhecer a mulher sentada nas faces<br />

duplas <strong>de</strong> Gémeos.<br />

— Minha nossa, é a Peabody.<br />

Roarke <strong>de</strong>sviou o olhar, concentrado na mulher <strong>de</strong> vestido comprido<br />

e esvoaçante, em tons espiralados <strong>de</strong> azul e ver<strong>de</strong>. Três longos fi os <strong>de</strong> contas<br />

brilhavam-lhe na cintura, e brincos <strong>de</strong> metais multicolores tilintavam sob<br />

as franjas do seu cabelo liso e curto.<br />

— Ora, ora — disse ele sorrindo lentamente — a nossa entroncada<br />

Peabody faz um lindo quadro.<br />

— Ela está mesmo…integrada — <strong>de</strong>cidiu Eve. — Tenho <strong>de</strong> me encontrar<br />

a sós com a Alice. Porque não vais falar com a Peabody?<br />

— O prazer é todo meu. Tenente… — Ele olhou <strong>de</strong>moradamente<br />

para os jeans gastos, casaco <strong>de</strong> cabedal usado e orelhas sem a<strong>de</strong>reços que ela<br />

exibia. — Tu não passas <strong>de</strong>spercebida.<br />

— Isso é uma crítica?<br />

— Não. — Ele passou um <strong>de</strong>do pela cova do queixo <strong>de</strong>la. — É uma<br />

observação. — Ele afastou-se, <strong>de</strong>slizando para o banco ao lado <strong>de</strong> Peabody.<br />

— Bem, vejamos…Qual seria o piropo correcto? O que faz uma bruxa simpática<br />

como tu num lugar como este?<br />

Peabody lançou-lhe um olhar <strong>de</strong> esgueira, sorrindo. — Sinto-me<br />

como uma idiota nestes preparos.<br />

— Estás com um ar adorável.<br />

Ela fungou. — Não é exactamente o meu estilo.<br />

— Sabes o que é fascinante nas mulheres, Peabody? — Ele aproxi-<br />

35


mou-se, passando um <strong>de</strong>do pelos pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>la <strong>de</strong> modo a vê-los dançar.<br />

— Têm tantos estilos. O que estás a beber?<br />

Ridiculamente lisonjeada, ela lutou para não corar. — Um Sagitário.<br />

É o meu signo. É suposto a bebida ser metabólica e espiritualmente a<strong>de</strong>quada<br />

à minha personalida<strong>de</strong>. — Ela bebericou do cálice límpido. — Por acaso,<br />

não é má. Já agora, qual é o teu signo do Zodíaco?<br />

— Não faço i<strong>de</strong>ia. Creio que nasci na primeira semana <strong>de</strong> Outubro.<br />

Crê, pensou Peabody. Que estranho não saber. — Bem, isso faria <strong>de</strong><br />

si um Balança.<br />

— Então, sejamos metabólica e espiritualmente correctos. — Ele virou-se<br />

para pedir bebidas, observando Eve a sentar-se a uma mesa. — Que<br />

signo atribuiria à sua tenente?<br />

— Ela é difícil <strong>de</strong> resumir.<br />

— Deveras — murmurou Roarke.<br />

Da sua mesa no círculo exterior, Eve observava tudo. Não havia banda<br />

ou uma imagem holográfi ca <strong>de</strong> uma. Em vez disso, a música parecia vir<br />

<strong>de</strong> todo o lado e <strong>de</strong> nenhum. Flautas aéreas e cordas sincopadas, uma voz<br />

feminina relaxante que cantava com uma doçura impossível numa língua<br />

que Eve não reconheceu.<br />

Ela via casais em conversas cândidas, outros a rir calmamente.<br />

Ninguém pestanejou quando uma mulher vestida com um lençol branco<br />

transparente se levantou para dançar sozinha. Eve pediu água e fi cou divertida<br />

ao vê-la ser servida num cálice <strong>de</strong> prata fi ngida.<br />

Pôs-se a escutar a conversa da mesa por trás <strong>de</strong>la e fi cou ainda mais<br />

divertida por ouvir a discussão sóbria do grupo sobre as suas experiências<br />

com projecção astral.<br />

Numa tabela no anel seguinte, duas mulheres falavam sobre as suas<br />

vidas passadas como dançarinas do templo na Atlântida. Ela perguntou-se<br />

porque é que as vidas passadas eram sempre mais exóticas do que as que estavam<br />

a ser vividas. Na sua opinião, era a única hipótese que uma pessoa tinha.<br />

Esquisitói<strong>de</strong>s inofensivos, pensou Eve, mas <strong>de</strong>u por si ainda a esfregar<br />

nos jeans a sua palma dormente.<br />

Ela viu Alice assim que a rapariga entrou. Agitada, pensou Eve. Mãos<br />

nervosas, ombros tensos, olhos saltitantes. Ela esperou até que Alice perscrutasse<br />

a sala e a visse. Depois, inclinou a cabeça num gesto <strong>de</strong> assentimento.<br />

Com um último vislumbre para trás, na direcção da porta, Alice<br />

apressou-se a ir ter com ela.<br />

— Veio. Receava que não viesse. — Rapidamente, meteu a mão no<br />

bolso e retirou uma pedra polida negra pendurada numa corrente <strong>de</strong> prata.<br />

— Coloque isto. Por favor — insistiu ela quando Eve apenas a examinou. —<br />

É obsidiana. Foi consagrada. Vai bloquear o mal.<br />

36


— Sou a favor disso. — Eve colocou a corrente ao pescoço. — Está<br />

melhor?<br />

— Este é o local mais seguro que conheço. O mais limpo. — Ainda a<br />

lançar olhares em redor, Alice sentou-se. — Costumava vir aqui constantemente.<br />

— Ela agarrou no amuleto que usava com ambas as mãos enquanto<br />

um empregado <strong>de</strong>slizava para a mesa. — Um Sol Dourado, por favor. —<br />

Ela inspirou profundamente enquanto reverteu novamente o olhar para<br />

Eve. — Preciso <strong>de</strong> coragem. Tentei meditar o dia todo, mas estou bloqueada.<br />

Tenho medo.<br />

— De que tens medo, Alice?<br />

— Que os que mataram o meu avô me matem a seguir.<br />

— Quem matou o teu avô?<br />

— O mal matou-o. Matar é o que o mal faz <strong>de</strong> melhor. Não vai acreditar<br />

no que lhe vou contar. É <strong>de</strong>masiado agarrada ao que po<strong>de</strong> apenas ser<br />

visto com os olhos. — Ela aceitou a bebida do empregado, fechou os olhos<br />

por um momento, como numa prece e <strong>de</strong>pois, lentamente, levou a taça<br />

aos lábios. — Mas também não o ignora. É <strong>de</strong>masiado polícia. Não quero<br />

morrer — disse Alice, pousando a taça.<br />

Esta, pensou Eve, era a primeira frase sensata que tinha ouvido. O<br />

medo era sufi cientemente genuíno, <strong>de</strong>cidiu ela, e exposto esta noite. No<br />

velório, Alice tinha tido o cuidado <strong>de</strong> usar uma camada <strong>de</strong> compostura<br />

e calma.<br />

Para a família <strong>de</strong>la, apercebeu-se Eve.<br />

— De que tens medo e porquê?<br />

— Tenho <strong>de</strong> explicar. Tudo. Tenho <strong>de</strong> fazer a purga antes <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

expiar. O meu avô respeitava-a, portanto, em memória <strong>de</strong>le, vim ter consigo.<br />

Eu não nasci bruxa.<br />

— Não? — Disse Eve num tom seco.<br />

— Há pessoas que nascem, outras pessoas, como eu, são simplesmente<br />

atraídas pela arte. Comecei a interessar-me pelo wicca através dos<br />

meus estudos e, quanto mais aprendia, mais sentia necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pertencer<br />

a isto. Fui atraída pelos rituais, pela procura por equilíbrio, pela alegria,<br />

pela ética positivista. Não partilhei o meu interesse com a minha família.<br />

Não teriam compreendido.<br />

Ela tombou a cabeça e o cabelo cerrou-se como uma cortina. —<br />

Apreciava o secretismo daquilo e ainda era sufi cientemente jovem para<br />

achar que a experiência <strong>de</strong> praticar nudismo ritual numa celebração no<br />

exterior era ligeiramente marota. A minha família… — Voltou a erguer<br />

a cabeça. — São conservadores e uma parte <strong>de</strong> mim queria simplesmente<br />

fazer algo ousado.<br />

— Uma pequena rebelião?<br />

37


— Sim, é verda<strong>de</strong>. Se eu tivesse <strong>de</strong>ixado as coisas assim — murmurou<br />

Alice — Se eu tivesse verda<strong>de</strong>iramente aceitado a minha iniciação na<br />

arte e o que signifi cava, tudo seria diferente agora. Fui fraca e o meu intelecto<br />

era <strong>de</strong>masiado ambicioso. — Voltou a pegar na bebida, molhando a<br />

sua garganta seca. — Queria saber. Comparar e analisar, como numa tese,<br />

os contrastes da magia branca e negra. Como é que po<strong>de</strong>ria apreciar uma<br />

<strong>de</strong>las sem compreen<strong>de</strong>r totalmente a sua antítese? Essa foi a minha racionalização.<br />

— Parece lógico.<br />

— Falsa lógica — insistiu Alice. — Estava a iludir-me. O ego e o intelecto<br />

eram tão arrogantes. Estudaria as artes negras apenas como estudiosa.<br />

Falaria com aqueles que tivessem escolhido o outro caminho e <strong>de</strong>scobriria<br />

o que os tinha afastado da luz. Seria entusiasmante. — Ela fez um sorriso<br />

trémulo. — Pensei que seria entusiasmante, e durante um breve período,<br />

foi.<br />

Uma criança, pensou Eve, no corpo <strong>de</strong> uma mulher estonteante.<br />

Inteligente e curiosa, mas ainda assim uma criança. Era <strong>de</strong>masiado fácil arrancar<br />

informação aos jovens. — Foi assim que conheceste a Selina Cross?<br />

Empali<strong>de</strong>cendo, Alice fez chifres <strong>de</strong> modo rápido com o indicador e<br />

o mindinho. — Como é que a conhece?<br />

— Fiz alguma pesquisa. Não vim para aqui às cegas, Alice. Como<br />

neta <strong>de</strong> polícia, não <strong>de</strong>verias esperar que o fi zesse.<br />

— Tenha medo <strong>de</strong>la. — Alice comprimiu os lábios. — Tenha medo<br />

<strong>de</strong>la.<br />

— É uma vigarista <strong>de</strong> segunda categoria e trafi cante <strong>de</strong> químicos.<br />

— Não, é muito mais. — Alice voltou a agarrar no amuleto. —<br />

Acredite nisso, Tenente. Eu já o vi. Eu sei. Ela vai querê-la. A Tenente vai<br />

constituir um <strong>de</strong>safi o.<br />

— Acreditas que ela esteve envolvida na morte do Frank?<br />

— Eu sei que teve. — Lágrimas afl oraram-lhe os olhos, aprofundando<br />

o azul suave. Uma adorável lágrima enorme transbordou e <strong>de</strong>slizou-lhe<br />

pela pálida bochecha abaixo. — Por minha causa.<br />

Eve aproximou-se para a confortar e para bloquear a cara lacrimosa<br />

<strong>de</strong> quaisquer espectadores. — Fala-me disso, fala-me <strong>de</strong>la.<br />

— Conheci-a há quase um ano. No festival do Samhain. Véspera <strong>de</strong><br />

Todos os Santos. Disse a mim mesma que era mais pesquisa. Não me apercebi<br />

o quão fundo já tinha sido atraída, quão verda<strong>de</strong>iramente seduzida<br />

estava pelo po<strong>de</strong>r, pela pura ganância egoísta do outro lado. Ainda não tinha<br />

<strong>de</strong>sempenhado qualquer um dos rituais, não então. Ainda observava.<br />

Depois conheci-a e ao que chamam Alban.<br />

— Alban?<br />

38


— Ele serve-a. — Alice ergueu a mão, pousando os <strong>de</strong>dos sobre<br />

a boca. — Aquela noite ainda não está muito nítida na minha mente.<br />

Apercebo-me agora que me lançaram um feitiço. Deixei que me guiassem<br />

para o círculo, me <strong>de</strong>spissem as vestes. Ouvi os sinos tocar e o cântico do<br />

príncipe negro. Observei o sacrifício do bo<strong>de</strong>. E partilhei do sangue.<br />

A cabeça <strong>de</strong>la voltou a cair, enquanto a vergonha fervilhava <strong>de</strong>ntro<br />

<strong>de</strong>la. — Partilhei <strong>de</strong>le, bebi-o e gostei. Nessa noite eu estava no altar. Fui<br />

amarrada à ara. Não sei como ou por quem, mas não tive medo. Estava<br />

excitada.<br />

A voz <strong>de</strong>la caiu para um murmúrio. A música mudou, passando <strong>de</strong><br />

cordas para sinos e percussões, alegremente sexual. Alice não chegou a levantar<br />

o olhar.<br />

— Cada membro do coven tocou-me, esfregando-me com óleos e<br />

sangue. O cântico estava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim e o fogo era tão quente. Depois<br />

Selina <strong>de</strong>bruçou-se sobre mim. Ela…fez coisas. Eu nunca tinha tido uma<br />

experiência sexual. Depois, enquanto ela elevava o meu corpo, o Alban<br />

aparelhou-me. Ela observava-me. As mãos <strong>de</strong>le estavam nos seios <strong>de</strong>la e<br />

ele estava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim. E ela observava a minha cara. Queria fechar os<br />

olhos, mas não podia. Não podia. Não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> olhar para os olhos<br />

<strong>de</strong>la. Era como se ela fosse quem — quem estava <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> mim.<br />

As lágrimas <strong>de</strong>la batiam agora na mesa. Apesar <strong>de</strong> Eve ter mudado<br />

<strong>de</strong> lugar para a resguardar da maioria da sala e da voz <strong>de</strong> Alice ser pouco<br />

mais do que um sussurro, várias cabeças estavam a virar-se movidas pela<br />

curiosida<strong>de</strong>.<br />

— Foste drogada, Alice. E explorada. Não tens nada <strong>de</strong> que te envergonhar.<br />

Os olhos <strong>de</strong>la ergueram-se por um momento, ameaçando quebrar o<br />

coração <strong>de</strong> Eve. — Então, porque tenho tanta vergonha? Era virgem e senti<br />

dor, mas mesmo isso me excitou. Insuportavelmente. E o prazer que veio<br />

com isso foi enorme, monstruoso. Usaram-me e eu implorei para voltar a<br />

ser usada. E fui, por todo o coven. Quando o sol nasceu eu estava perdida,<br />

escravizada. Acor<strong>de</strong>i na cama, entre eles. O Alban e a Selina. Já me tinha<br />

tornado na aprendiz <strong>de</strong>les. E no seu brinquedo.<br />

As lágrimas escorriam-lhe pela face quando voltou a beber. —<br />

Sexualmente, não havia nada que não permitisse que eles, ou alguém que<br />

eles escolhessem, me fi zesse. Abracei o lado negro. E, na minha arrogância,<br />

tornei-me <strong>de</strong>scuidada. Alguém contou ao meu avô. Ele nunca me <strong>de</strong>u<br />

um nome, mas sei que foi um wiccan. Ele confrontou-me e eu ri-me <strong>de</strong>le.<br />

Avisei-o para se manter afastado dos meus assuntos. Eu pensava que o tinha<br />

feito.<br />

Sem dizer palavra, Eve fez <strong>de</strong>slizar a sua água pela mesa. Agra<strong>de</strong>cida,<br />

39


Alice pegou no copo, esvaziando-o. — Há alguns meses, <strong>de</strong>scobri que a<br />

Selina e o Alban <strong>de</strong>sempenhavam rituais privados. Um dia cheguei mais<br />

cedo da faculda<strong>de</strong>. Fui a casa <strong>de</strong>les e ouvi o cântico cerimonial. Abri a porta<br />

da sala dos rituais. Estavam lá, juntos, a <strong>de</strong>sempenhar um sacrifício. — As<br />

mãos <strong>de</strong>la tremiam. — Desta vez não era um bo<strong>de</strong>, mas uma criança. Um<br />

menino.<br />

A mão <strong>de</strong> Eve cerrou-se sobre o pulso <strong>de</strong> Alice. — Viste-os assassinar<br />

uma criança?<br />

— Assassinar é uma palavra muito branda para aquilo que fi zeram.<br />

— As lágrimas secaram <strong>de</strong> puro horror. — Não me peça para lhe contar.<br />

Não me peça isso.<br />

Eve sabia que ela teria <strong>de</strong> o fazer, mas podia esperar. — Conta-me o<br />

que conseguires.<br />

— Vi…Selina, a faca do ritual. O sangue, os gritos. Juro que se conseguiam<br />

ver os gritos como borrões negros no ar. Era <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong> para<br />

parar.<br />

Ela voltou a olhar para Eve, com aqueles olhos marejados a implorar<br />

que acreditasse neles neste aspecto. — Cheguei <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong> para fazer<br />

fosse o que fosse pelo rapaz, mesmo que tivesse tido o po<strong>de</strong>r e a coragem<br />

para tentar.<br />

— Estavas sozinha, em choque — disse Eve cuidadosamente. — A<br />

mulher estava armada, o rapaz estava morto. Não po<strong>de</strong>rias tê-lo ajudado.<br />

Por um longo momento, Alice fi tou-a, cobrindo <strong>de</strong>pois a cara com<br />

as mãos. — Eu tento acreditar nisso. Tento tanto. Viver com isso está a <strong>de</strong>struir-me.<br />

Fugi. Pura e simplesmente fugi.<br />

— Não po<strong>de</strong>s alterar isso. — Eve manteve a mão no pulso <strong>de</strong> Alice,<br />

mas com menos pressão. Ela já tinha visto uma criança mutilada, tinha<br />

chegado tar<strong>de</strong> <strong>de</strong>mais. Segundos <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong>. Ela não tinha fugido,<br />

tinha matado. Mas a criança tinha fi cado igualmente morta, fosse como<br />

fosse. — Não po<strong>de</strong>s viajar para o passado e alterar isso. Tens <strong>de</strong> viver com<br />

o que se passou.<br />

— Eu sei. A Isis diz-me isso. — Alice inspirou tremulamente, pousando<br />

as mãos. — Estavam absorvidos no trabalho e nem me chegaram a<br />

ver. Eu rezo para que nem me tenham chegado a ver. Não fui falar com o<br />

meu avô ou com a polícia. Fiquei aterrorizada, agoniada. Não sei quanto<br />

tempo se passou, mas fui falar com a Isis, a gran<strong>de</strong> sacerdotisa que me tinha<br />

iniciado no wicca. Ela acolheu-me; mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tudo o que tinha feito,<br />

ela acolheu-me.<br />

— Não contaste ao Frank o que tinhas visto?<br />

Alice pestanejou <strong>de</strong>vido à acusação na voz <strong>de</strong> Eve. — Não então.<br />

Passei tempo a refl ectir e a purifi car-me. A Isis <strong>de</strong>sempenhou vários ritos<br />

40


<strong>de</strong> limpeza e curas áuricas. A Isis e eu achámos que seria melhor se eu permanecesse<br />

reclusa durante uns tempos, concentrada em encontrar a luz e<br />

expiação.<br />

Os olhos <strong>de</strong> Eve estavam ar<strong>de</strong>ntes e duros quando ela se inclinou. —<br />

Alice, viste uma criança a ser assassinada e não contaste a ninguém a não<br />

ser à bruxa do bairro?<br />

— Eu sei que não parece bem. — O lábio <strong>de</strong>la tremeu antes <strong>de</strong> ela o<br />

pren<strong>de</strong>r entre os <strong>de</strong>ntes e o segurar. — O ser físico da criança já não tinha<br />

ajuda. Não podia fazer nada por ele excepto rezar que a alma <strong>de</strong>le tivesse<br />

uma passagem segura para o próximo plano. Tive medo <strong>de</strong> contar ao avô.<br />

Medo do que ele po<strong>de</strong>ria fazer e do que a Selina lhe faria. Quando fui ter<br />

com ele no mês passado, contei-lhe tudo. Agora ele está morto e eu sei que<br />

ela é responsável.<br />

— Como é que sabes?<br />

— Vi-a.<br />

— Espera. — Com os olhos semicerrados, Eve levantou uma mão.<br />

— Viste-a matá-lo?<br />

— Não, vi-a do lado <strong>de</strong> fora da minha janela. Espreitei lá para fora<br />

na noite em que ele morreu e ela estava lá em baixo, a olhar para cima. A<br />

olhar para mim. Depois, recebi o telefonema da minha mãe a dizer que o<br />

avô estava morto. E a Selina sorriu. Ela sorriu e chamou-me. Alice enterrou<br />

novamente a cara nas mãos. — Ela enviou as forças <strong>de</strong>la contra ele. Utilizou<br />

o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>la para parar o coração <strong>de</strong>le. Por minha causa. Agora o corvo<br />

vem todas as noites à minha janela e observa-me com os seus olhos.<br />

Minha nossa, pensou Eve, on<strong>de</strong> é que isto ia dar? — Um pássaro?<br />

Alice pousou as mãos trémulas na mesa. — Ela consegue mudar <strong>de</strong><br />

forma. Assume a forma que lhe apetece. Protegi-me o melhor que consegui,<br />

mas a minha fé po<strong>de</strong>rá não ser sufi cientemente forte. Eles cercam-me,<br />

chamam-me.<br />

— Alice. — Apesar <strong>de</strong> ainda ter pena, Eve <strong>de</strong>u pela sua paciência a<br />

<strong>de</strong>svanecer. — A Selina Cross po<strong>de</strong> ter tido mão na morte do teu avô. Se<br />

<strong>de</strong>scobrirmos que ele não morreu <strong>de</strong> causas naturais, não foi um feitiço; foi<br />

planeado, puro homicídio. Se assim for, haverá provas e um julgamento e<br />

iremos lidar com ela.<br />

— Não consegue encontrar fumo. — Alice abanou a cabeça. — Não<br />

vai encontrar provas numa maldição.<br />

Eve per<strong>de</strong>u a paciência. — Neste ponto, és testemunha <strong>de</strong> um crime.<br />

Potencialmente, a única testemunha e, se tens medo, posso tratar <strong>de</strong> te<br />

colocar numa casa segura. — A voz <strong>de</strong>la era monocórdica e ríspida, toda<br />

ela polícia. — Preciso que me dês uma <strong>de</strong>scrição da criança para que possa<br />

investigar nos <strong>de</strong>saparecidos. Com a tua <strong>de</strong>claração formal, posso obter um<br />

41


mandado para fazer uma busca na divisão on<strong>de</strong> alegadamente testemunhaste<br />

o homicídio. Preciso que me dês pormenores, <strong>de</strong>talhes <strong>de</strong>fi nidos.<br />

Horas, locais, nomes. Posso ajudar-te.<br />

— Não compreen<strong>de</strong> — disse Alice abanando lentamente a cabeça. —<br />

Não acredita em mim.<br />

— Acredito que és uma mulher inteligente e curiosa que se meteu<br />

em mais do que conseguia aguentar com pessoas nada recomendáveis. E<br />

acredito que estás confusa e perturbada. Conheço uma pessoa com quem<br />

po<strong>de</strong>s falar para te ajudar a resolver as coisas.<br />

— Uma pessoa? — Os olhos <strong>de</strong> Alice arrefeceram e a voz <strong>de</strong>la endureceu.<br />

— Um psiquiatra? Acha que estou a imaginar coisas, a inventar. — O<br />

corpo <strong>de</strong>la tremia enquanto se erguia. — Não é a minha mente que corre<br />

risco, é a minha vida. A minha vida, Tenente Dallas, e a minha alma. Se se<br />

confrontar com a Selina, vai acreditar. E que a <strong>de</strong>usa a possa ajudar.<br />

Ela virou-se e saiu, <strong>de</strong>ixando Eve a praguejar.<br />

— Aquilo pareceu não ter resultado mesmo nada — comentou<br />

Roarke ao surgir por trás <strong>de</strong>la.<br />

— A miúda está passada, mas está aterrorizada. — Eve soltou um<br />

longo suspiro e ergueu-se. — Vamos embora daqui. — Fez sinal a Peabody,<br />

<strong>de</strong>pois dirigiu-se para a porta.<br />

Lá fora, um nevoeiro pouco espesso avançava sorrateiro pelo chão,<br />

furtivamente, como cobras cinza entrelaçadas. A chuva, esparsa e gelada,<br />

estava a começar a polir a rua.<br />

— Ali está ela — murmurou Eve ao vislumbrar Alice a apressar-se<br />

a dobrar a esquina. — Vai para sul. Peabody, segue-a, certifi ca-te <strong>de</strong> que<br />

chega a casa sã e salva.<br />

— Já está. — Peabody foi-se num passo apressado.<br />

— Aquela miúda está <strong>de</strong>sfeita, Roarke. Fo<strong>de</strong>ram-na <strong>de</strong> todas as maneiras<br />

possíveis. — Enojada, enterrou as mãos nos bolsos. — Se calhar <strong>de</strong>via<br />

ter lidado melhor com a situação, mas não vejo como ajudaria encorajar<br />

as alucinações <strong>de</strong>la. Feitiços e maldições e pessoas que mudam <strong>de</strong> forma.<br />

Minha nossa.<br />

— Querida Eve. — Ele beijou-lhe a fronte. — A minha policiazinha<br />

prática.<br />

— Pelo que ela conta, era praticamente a noiva <strong>de</strong> Satanás. — A resmungar,<br />

Eve começou a dirigir-se para o carro, rodou sobre si própria e<br />

voltou para trás. — Vou contar-te como correu, Roarke. Ela queria brincar,<br />

queria meter-se no ocultismo e <strong>de</strong>u <strong>de</strong> caras com sarilhos a sério. É uma<br />

rapariga bonita e ingénua e não é preciso uma bola <strong>de</strong> cristal para ver tudo.<br />

Portanto, foi a uma das reuniões <strong>de</strong>les, ou lá o que se chamam, e eles drogaram-na.<br />

Depois, eles violaram-na em grupo. Sacanas. Estava drogada e em<br />

42


choque e vulnerável às sugestões, pelo que foi fácil vigaristas profi ssionais<br />

convencerem-na <strong>de</strong> que fazia parte do culto <strong>de</strong>les. Tiraram uns coelhos da<br />

cartola e fascinaram-na. Utilizaram o sexo para a manter na linha.<br />

— Ela afectou-te — murmurou Roarke e tocou-lhe no cabelo, sacudindo<br />

as gotas.<br />

— Talvez o tenha feito. Raios partam, olhaste para ela? O nome assenta-lhe<br />

que nem uma luva. Parece a miúda do conto <strong>de</strong> fadas. O mais<br />

provável é também acreditar em coelhos que falam. — Depois ela suspirou,<br />

lutando para controlar as suas emoções. — Mas não estamos num conto<br />

<strong>de</strong> fadas. Ela alega que <strong>de</strong>u <strong>de</strong> caras com um homicídio ritual. Um menino,<br />

disse ela. Tenho <strong>de</strong> fazer com que veja a Mira. Uma psiquiatra vai conseguir<br />

separar os factos da fi cção. Mas acredito que o homicídio foi um facto e se<br />

mataram uma criança, mataram mais. Pessoas daquelas vêem os in<strong>de</strong>fesos<br />

como presas.<br />

— Eu sei. — Ele aproximou-se para lhe retirar a tensão dos ombros.<br />

— Demasiado familiar?<br />

— Não. Não é como o que me aconteceu. Ou a ti. — Mas havia ecos<br />

sufi cientes para a enervar. — Ainda aqui estamos, não estamos? — Ela pousou<br />

uma mão na <strong>de</strong>le, mas fez um esgar ao coberto da sombra. — Porque<br />

é que o Frank não registou o que ela lhe tinha contado? Porque raios é que<br />

se lançou sozinho nisto?<br />

— Talvez tenha feito um registo. Um registo privado.<br />

Ela pestanejou, fi tando-o. — Meu <strong>de</strong>us, como pu<strong>de</strong> ser tão lenta? —<br />

Ela emoldurou-lhe a cara com as mãos e beijou-o com força. — És brilhante.<br />

— Sim, eu sei. — Ele puxou-a quando uma fi gura saiu disparada das<br />

sombras, subindo a rampa. — Gato preto — disse ele, simultaneamente<br />

nervoso e divertido consigo próprio. — Azar.<br />

— Pois claro. — Ela começou a subir a rampa, arrebitando a cabeça<br />

enquanto o gato se sentava ao lado do carro <strong>de</strong> Roarke, observando-a através<br />

<strong>de</strong> olhos brilhantes e reluzentes. — Não me pareces ter fome, amigo. És<br />

<strong>de</strong>masiado ágil e luzidio para um gato vadio. Demasiado perfeito — apercebeu-se<br />

ela. — Deves ser um drói<strong>de</strong>. — Ainda assim, agachou-se, esten<strong>de</strong>ndo<br />

a mão para fazer festinhas. O gato silvou, arqueou-se e atacou. Eve<br />

teria fi cado com a mão toda arranhada se não tivesse sido sufi cientemente<br />

rápida para se esquivar. — Bem, isso é mesmo amigável.<br />

— Devias ter mais juízo do que esten<strong>de</strong>r a mão a animais estranhos,<br />

ou drói<strong>de</strong>s. — Porém, colocou-se em frente <strong>de</strong> Eve para <strong>de</strong>scodifi car o carro<br />

e manteve os olhos no ver<strong>de</strong> refulgente dos do gato. Quando Eve já estava<br />

no carro, falou docemente. O pêlo do gato eriçou-se, a cauda ergueu-se e<br />

<strong>de</strong>pois saltou agilmente da rampa para a rua, sendo engolido pelo nevoeiro.<br />

43


Roarke não po<strong>de</strong>ria dizer porque tinha dado a or<strong>de</strong>m em gaélico.<br />

Tinha pura e simplesmente saído assim. Ainda estava a pensar nisso quando<br />

se sentou ao lado <strong>de</strong> Eve.<br />

— Ouve, Roarke, não posso pedir ao Feeney para fazer trabalho electrónico<br />

neste caso. Pelo menos, até o comandante relaxar. Po<strong>de</strong>rei ter <strong>de</strong><br />

recorrer à família para ace<strong>de</strong>r aos registos pessoais do Frank, mas se o fi zer,<br />

terei <strong>de</strong> lhes dizer alguma coisa.<br />

— E preferes não o fazer.<br />

— De qualquer modo, ainda não. O que te parece <strong>de</strong> usares as tuas…<br />

capacida<strong>de</strong>s para ace<strong>de</strong>r à unida<strong>de</strong> e registos pessoais do Frank?<br />

O ânimo <strong>de</strong>le levantou-se quando ligou o carro, guiando-o para baixo,<br />

para o nível da rua. — Isso <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, Tenente. Recebo algum distintivo?<br />

Os lábios <strong>de</strong>la retorceram-se num sorriso. — Não. Mas consegues ter<br />

sexo com uma polícia.<br />

— Posso escolher a polícia? — Ele apenas sorriu quando ela lhe <strong>de</strong>u<br />

um murro no braço. — Escolhia-te a ti. Provavelmente. E presumo que<br />

queiras que inicie a minha investigação não ofi cial esta noite.<br />

— Era essa a i<strong>de</strong>ia.<br />

— Está bem, mas quero sexo primeiro. — Ele <strong>de</strong>itou a língua <strong>de</strong> fora<br />

enquanto ela soltava risinhos. — Quanto tempo achas que a Peabody vai<br />

estar ocupada? Estava a brincar — disse ele rapidamente, mas mudou para<br />

piloto automático para o caso <strong>de</strong> Eve se tornar violenta. — É que ela estava<br />

com um ar bastante apelativo esta noite.<br />

A rir, ele apanhou o punho <strong>de</strong>la com a mão, tocando no seio <strong>de</strong>la<br />

com a outra.<br />

— Ouve lá, pá, já estás metido em sarilhos que bastem sem tentar<br />

isso. Tomar parte em qualquer acto sexual num veículo em movimento<br />

viola os códigos do centro da cida<strong>de</strong>.<br />

— Pren<strong>de</strong>-me — sugeriu ele e mordiscou-lhe o lábio inferior.<br />

— Talvez o faça. Quando terminar contigo. — Ela libertou-se e empurrou-o.<br />

— E só por esse comentário <strong>de</strong> chico-esperto sobre a minha ajudante,<br />

não há sexo até <strong>de</strong>pois da investigação.<br />

Ele <strong>de</strong>sligou o piloto automático, <strong>de</strong>pois lançou-lhe um vislumbre<br />

lento e sorri<strong>de</strong>nte. — Queres apostar?<br />

Ela encarou aquele olhar arrogante <strong>de</strong> olhos semicerrados. —<br />

Cinquenta créditos, as mesmas hipóteses.<br />

— Apostado. — E foi a assobiar pelos portões <strong>de</strong> ferro que conduziam<br />

a casa.<br />

44


CAPÍTULO QUATRO<br />

E stá na hora <strong>de</strong> pagares.<br />

Eve rebolou, roçando o rabo <strong>de</strong>snudo e perguntou-se se fi caria<br />

com marcas do tapete nas ná<strong>de</strong>gas. Ainda a vibrar do último orgasmo, voltou<br />

a fechar os olhos. — Hã?<br />

— Cinquenta créditos. Ele inclinou-se, beijando suavemente a ponta<br />

do seio <strong>de</strong>la. — Per<strong>de</strong>ste, Tenente.<br />

Os olhos <strong>de</strong>la abriram-se e fi taram a cara estonteante e muito satisfeita<br />

<strong>de</strong>le. Estavam <strong>de</strong>itados no tapete do quarto privado <strong>de</strong>le e as roupas<br />

<strong>de</strong>les, tanto quanto ela se conseguia lembrar, estavam espalhadas por toda<br />

a parte. Começando pela escadaria on<strong>de</strong> ele a tinha encostado à pare<strong>de</strong> e<br />

começado a…ganhar a aposta.<br />

— Estou nua — salientou ela. — Não costumo ter créditos enfi ados<br />

na…<br />

— Fico satisfeito por fi car com a tua nota <strong>de</strong> dívida. — Ele levantou-se,<br />

todo ele músculos brilhantes e graciosos, e retirou um cartão <strong>de</strong> memória<br />

da consola <strong>de</strong>le. — Aqui tens. — Entregou-lho.<br />

Ela olhou para ele, sabendo que a sua dignida<strong>de</strong> estava tão perdida<br />

quanto os cinquenta créditos. — Estás mesmo a gostar disto.<br />

— Ó, mais do que tu possas imaginar.<br />

Lançando-lhe um olhar reprovador, ela lançou-se ao memorando.<br />

— Devo-te a ti, Roarke, cinquenta créditos, Dallas, Tenente Eve. — Ela atirou-lhe<br />

o memorando. — Satisfeito?<br />

— De todas as maneiras possíveis. — Sentimentalmente, ele pensou<br />

que iria guardar o memorando junto do pequeno botão cinza <strong>de</strong> fato que<br />

tinha guardado do primeiro encontro <strong>de</strong>les. — Amo-te, Dallas, Tenente<br />

Eve, <strong>de</strong> todas as maneiras possíveis.<br />

Ela não se conseguiu conter. Ficou toda <strong>de</strong>rretida por <strong>de</strong>ntro. Tinha<br />

sido a forma como ele o tinha dito, a forma como tinha olhado para ela<br />

que tinha provocado pulsações rápidas a dispararem sob a pele fun<strong>de</strong>nte.<br />

— Nem pensar nisso. Foi assim que me fi caste com os cinquenta. — Ela<br />

levantou-se antes que ele a pu<strong>de</strong>sse distrair outra vez. — On<strong>de</strong> raio estão as<br />

minhas cuecas?<br />

— Não faço a mínima i<strong>de</strong>ia. Ele caminhou até uma secção da pare<strong>de</strong>,<br />

tocando num mecanismo. Quando o painel se abriu, retirou um robe. Era<br />

<strong>de</strong> seda, fi no e fez com que os olhos <strong>de</strong>la se voltassem a semicerrar.<br />

45


Ele estava sempre a comprar-lhe coisas daquelas e estas pareciam<br />

sempre encontrar o caminho para várias partes da casa. Convenientemente.<br />

— Isso não é roupa <strong>de</strong> trabalho.<br />

— Po<strong>de</strong>mos fazer isto nus, mas o mais certo era voltares a per<strong>de</strong>r mais<br />

cinquenta. — Quando ela lhe arrancou o robe da mão, ele virou-se e tirou<br />

outro para ele. — Isto po<strong>de</strong> <strong>de</strong>morar algum tempo. Vamos precisar <strong>de</strong> café.<br />

Enquanto ela foi ao AutoChef buscar café, Roarke posicionou-se<br />

atrás da consola. O equipamento era <strong>de</strong> primeira categoria e não estava registado.<br />

O CompuGuard não po<strong>de</strong>ria localizá-lo ou bloquear o seu acesso<br />

em qualquer sistema. No entanto, mesmo com essas vantagens, encontrar<br />

um registo pessoal que po<strong>de</strong>ria ter ou não existido era como separar grãos<br />

<strong>de</strong> areia individuais <strong>de</strong> um bal<strong>de</strong> cheio.<br />

— Abordar — or<strong>de</strong>nou ele. — O mais provável é ser a unida<strong>de</strong> doméstica<br />

<strong>de</strong>le, não achas?<br />

— Tudo o que estivesse na unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>le na Central <strong>de</strong> Polícia teria<br />

sido transferido e as unida<strong>de</strong>s ofi ciais gravam todos os registos. Se ele queria<br />

manter algo para si, teria utilizado um sistema privado.<br />

— Tens a morada <strong>de</strong> casa <strong>de</strong>le? Deixa estar — disse ele antes que<br />

Eve conseguisse falar. — Eu arranjo-a. Dados, Wojinski, Frank…qual era<br />

a patente <strong>de</strong>le?<br />

— Detective Sargento, do Departamento <strong>de</strong> Registos.<br />

— Dados no ecrã um, por favor.<br />

Quando a informação começou a aparecer, Roarke agarrou no café<br />

que Eve lhe estendia e <strong>de</strong>pois acenou com os <strong>de</strong>dos quando o seu ‘link apitou.<br />

— Po<strong>de</strong>s aten<strong>de</strong>r?<br />

Era a or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>scuidada <strong>de</strong> um homem acostumado a dá-las.<br />

Automaticamente, ela eriçou-se, <strong>de</strong>pois, no mesmo impulso rápido, relegou<br />

o <strong>de</strong>scontentamento. Presumia que, naquele contexto, era necessário<br />

que agisse como assistente.<br />

— Residência Roarke. Peabody?<br />

— Não aten<strong>de</strong>u o seu comunicador.<br />

— Não, eu… — Deus sabia on<strong>de</strong> estava, pensou ela. — O que se<br />

passa?<br />

— É mau, Dallas, é mau. — Apesar da voz fi rme, a cara <strong>de</strong>la estava<br />

lívida e os olhos tinham um tom <strong>de</strong>masiado escuro. — A Alice está morta.<br />

Não consegui impedi-lo. Não consegui chegar a ela. Ela pura e simplesmente…<br />

— On<strong>de</strong> estás?<br />

— Na Tenth Street, entre a Broad e a Seventh. Chamei o serviço <strong>de</strong><br />

paramédicos, mas não houve nada…<br />

— Corres perigo?<br />

46


— Não, não. Apenas não a consegui impedir. Fiquei a olhar enquanto…<br />

— Isola a cena, Agente. Comunica à Central Telefónica. Vou a caminho.<br />

Chama reforços, como é do procedimento, e aguarda. Compreendido?<br />

— Sim, senhora. Sim.<br />

— Dallas a <strong>de</strong>sligar. Minha nossa — murmurou ela ao <strong>de</strong>sligar.<br />

— Eu levo-te. Ele já se tinha levantado e tinha a mão no ombro <strong>de</strong>la.<br />

— Não, este é o meu trabalho. — E rezou para que não fosse culpa<br />

<strong>de</strong>la. — Ficaria muito grata se fi casses aqui e recolhesses o máximo <strong>de</strong> dados<br />

possível.<br />

— Tudo bem. Eve. — Naquele momento, agarrou em ambos os ombros<br />

<strong>de</strong>la, antes <strong>de</strong> ela po<strong>de</strong>r ir-se embora. — Olha para mim. A culpa não<br />

é tua.<br />

Ela olhou para ele e tinha o <strong>de</strong>sgosto espelhado nos olhos. — Espero<br />

mesmo que não tenha sido.<br />

Não estava muita gente. Eve podia estar agra<strong>de</strong>cida por isso. Passava das<br />

duas da manhã e apenas alguns mirones se aglomeravam por trás da barricada.<br />

Viu um Táxi Rápido tombado <strong>de</strong> modo embriagado na curva e um<br />

homem sentado ao lado, com a cabeça escondida nas mãos, enquanto um<br />

paramédico falava com ele.<br />

Na rua molhada pela chuva, iluminada <strong>de</strong> modo sombrio pelo brilho<br />

<strong>de</strong> uma luz <strong>de</strong> segurança com o nevoeiro a pairar como nuvens, estava<br />

Alice. O corpo <strong>de</strong>la ali estendido, com a cara à mostra, os braços e pernas<br />

abertas numa espécie <strong>de</strong> boas-vindas selvagens. Sangue, o <strong>de</strong>la, tinha ensopado<br />

o material etéreo do vestido, tingindo-o <strong>de</strong> um vermelho escuro e<br />

ominoso.<br />

Peabody estava ao lado <strong>de</strong>la, a ajudar um polícia <strong>de</strong> giro a montar<br />

um biombo.<br />

— Agente Peabody. — Eve disse-o docemente, esperando que<br />

Peabody se virasse, endireitasse os ombros e atravessasse a rua para ir ter<br />

com ela. — O teu relatório?<br />

— Segui o sujeito até casa, tal como or<strong>de</strong>nou, Tenente. Observei-a a<br />

entrar no edifício e, <strong>de</strong> seguida, observei a luz a acen<strong>de</strong>r na segunda janela a<br />

contar da direita, no terceiro andar. Por iniciativa própria, <strong>de</strong>cidi continuar<br />

a vigilância durante quinze minutos, para me assegurar que o sujeito permanecia<br />

no interior. Não foi esse o caso.<br />

Peabody <strong>de</strong>sconcentrou-se e o seu olhar repousou no corpo. Eve colocou-se<br />

ao seu lado, bloqueando a vista. — Olha para mim quando fazes<br />

um relatório, Agente.<br />

— Sim, chefe. — Peabody recompôs-se. — O sujeito saiu do edifício<br />

47


aproximadamente <strong>de</strong>z minutos mais tar<strong>de</strong>. Parecia estar agitada, olhando<br />

continuamente por trás do ombro enquanto avançava para oeste num passo<br />

rápido. Parecia estar a chorar. Mantive a distância padrão. Por isso é que<br />

não consegui impedi-la. — Peabody teve <strong>de</strong> inspirar. — Mantive a distância<br />

padrão.<br />

— Pára. — Eve tirou-a do transe, dando um abanão rápido a Peabody.<br />

— Completa o teu relatório.<br />

Os olhos <strong>de</strong> Peabody endureceram quando se encontraram com os<br />

<strong>de</strong> Eve. — Sim, senhora. O sujeito parou <strong>de</strong> repente, retroce<strong>de</strong>ndo vários<br />

passos. Falou. Estava <strong>de</strong>masiado longe para discernir o que ela disse, mas<br />

pareceu-me que estava a falar com alguém.<br />

Ela reviu a cena na sua mente, cada passo, apoiando-se na formação<br />

como numa muleta. — Encurtei um pouco a distância, para o caso do sujeito<br />

estar em perigo. Não vi mais ninguém na rua para além do sujeito. O<br />

nevoeiro po<strong>de</strong> ter ajudado, mas não consegui ver ninguém no passeio nem<br />

na rua.<br />

— Estava ali, a falar sozinha? — perguntou Eve.<br />

— Era o que parecia, Tenente. Ficou cada vez mais agitada. Implorou<br />

que a <strong>de</strong>ixassem em paz. As palavras <strong>de</strong>la foram, ‘Não fi zeste o sufi ciente,<br />

não tiraste o sufi ciente? Porque não me <strong>de</strong>ixas em paz?’<br />

Peabody fi tou <strong>de</strong> novo o passeio, revendo a cena. Também o ouviu.<br />

Aquela hesitação <strong>de</strong> <strong>de</strong>salento e <strong>de</strong>sespero na voz <strong>de</strong> Alice. — Pensei ter<br />

ouvido uma resposta, mas não posso ter a certeza. O sujeito estava a falar<br />

<strong>de</strong>masiado alto e <strong>de</strong>pressa para po<strong>de</strong>r ter a certeza. Decidi aproximar-me,<br />

dar-me a conhecer.<br />

Um músculo no maxilar <strong>de</strong>la saltou enquanto continuava a olhar por<br />

cima do ombro <strong>de</strong> Eve. — Nesta altura, um Táxi Rápido, a ir para Leste,<br />

aproximou-se. O sujeito virou-se e correu para a rua, directamente para<br />

o caminho do veículo que se aproximava. O condutor tentou parar e <strong>de</strong>sviar-se,<br />

mas não conseguiu e bateu no sujeito <strong>de</strong> frente.<br />

Ela pausou apenas o sufi ciente para voltar a inspirar. — As condições<br />

da estrada não eram as melhores, <strong>de</strong>sempenhando um factor secundário.<br />

Mesmo com condições excelentes, é da minha opinião que o condutor não<br />

conseguiria evitar a colisão.<br />

— Compreendido. Continua.<br />

— Cheguei junto do corpo em poucos segundos e observei que ela<br />

já se encontrava morta. Chamei os paramédicos, <strong>de</strong>pois tentei contactá-la<br />

através do seu comunicador. Quando não consegui, utilizei o porta-link<br />

que tinha na mala e contactei-a em casa para relatar a situação. No cumprimento<br />

das suas or<strong>de</strong>ns, contactei a Central Telefónica e requisitei um<br />

polícia <strong>de</strong> giro, tendo <strong>de</strong>pois isolado a cena.<br />

48


Eve sabia que era horrendo chegar <strong>de</strong>masiado tar<strong>de</strong> e nem toda a<br />

compreensão do mundo podia aliviar essa culpa amarga. Portanto, não a<br />

ofereceu. — Muito bem, Agente. Aquele é o condutor?<br />

Peabody continuou a olhar para a frente, e a voz <strong>de</strong>la estava vazia. —<br />

Sim, Tenente.<br />

— Faz com que levem o veículo <strong>de</strong>le para análise, <strong>de</strong>pois fala com<br />

o serviço <strong>de</strong> paramédicos e <strong>de</strong>scobre se ele está em condições <strong>de</strong> prestar<br />

<strong>de</strong>clarações.<br />

— Sim, chefe. — Peabody cerrou um punho ao seu lado. Manteve<br />

um tom baixo, mas a voz vibrava <strong>de</strong> emoção. — Teve uma bebida com ela<br />

há cerca <strong>de</strong> uma hora. E não signifi ca nada para si.<br />

Eve aceitou o golpe e esperou que Peabody voltasse as costas antes<br />

<strong>de</strong> regressar para junto <strong>de</strong> Alice. — Signifi ca , sim — murmurou ela. — E é<br />

esse o problema.<br />

Abrindo o seu kit <strong>de</strong> campo, agachou-se para fazer o seu trabalho.<br />

Não foi homicídio. Em termos técnicos, Eve <strong>de</strong>veria ter entregado o caso<br />

ao Tráfego <strong>de</strong>pois do relatório da Peabody e da <strong>de</strong>claração que se seguiu<br />

dada pelo taxista choroso. Mas observou o corpo <strong>de</strong> Alice a ser levado<br />

para o carro mortuário e sabia que não tinha quaisquer intenções <strong>de</strong> o<br />

fazer.<br />

Lançou um último olhar à cena. A chuva quase tinha parado e não<br />

levaria o corpo. Os poucos mirones que se tinham juntado já estavam a<br />

seguir caminho, rasgando as últimas cortinas translúcidas <strong>de</strong> nevoeiro enquanto<br />

se apressavam para casa.<br />

Do outro lado, na curva, um reboque municipal já estava a levar o<br />

táxi danifi cado para ser transferido para o parque da Polícia.<br />

Alguns diriam que os aci<strong>de</strong>ntes aconteciam <strong>de</strong>masiadas vezes. Tal<br />

como, pensou Eve, ocorriam os homicídios. Demasiadas vezes.<br />

— Tiveste uma noite longa, Peabody. Estás <strong>de</strong> folga.<br />

— Preferiria fi car, Tenente, e acabar isto.<br />

— Não a vais ajudar, nem a mim, se não conseguires ser objectiva.<br />

— Consigo fazer o meu trabalho, chefe. O que sinto é apenas da minha<br />

conta.<br />

Ela levantou o seu kit <strong>de</strong> campo, olhando <strong>de</strong>moradamente para a sua<br />

ajudante. — Sim, pois é. Faz é com que não se metam no meu caminho. —<br />

Tirou o gravador do kit, esten<strong>de</strong>ndo-o a Peabody. — Fica registado, Agente.<br />

Vamos examinar a residência do sujeito.<br />

— Preten<strong>de</strong> avisar os parentes mais próximos? Chefe?<br />

— Quando acabarmos o que estamos aqui a fazer.<br />

Encaminharam-se para leste, <strong>de</strong> volta ao edifício <strong>de</strong> Alice. Ela não<br />

49


tinha chegado muito longe, pensou Eve, mal tinha sido um quarteirão. O<br />

que a tinha feito voltar a sair? E o que a tinha levado a colocar-se no caminho<br />

do táxi?<br />

O edifício era um brownstone bonito e restaurado com três andares.<br />

As portas da entrada tinham vidro biselado com um padrão gravado<br />

<strong>de</strong> pavões. A câmara <strong>de</strong> segurança estava a ser reparada e as fechaduras<br />

abriam-se com impressões palmares. Eve <strong>de</strong>sarmou-as com um código<br />

mestre e entrou num hall pequeno e polido com chão em mármore falso.<br />

O elevador tinha um lustro <strong>de</strong> bronze espelhado e funcionava com efi ciência<br />

silenciosa.<br />

Alice, pensou ela, tinha tido gosto e os recursos fi nanceiros para o<br />

fi nanciar. Havia três apartamentos no terceiro andar e, mais uma vez, Eve<br />

usou o seu código mestre para entrar.<br />

— Dallas, Tenente Eve, e ajudante, Peabody, Agente D., a entrar na<br />

residência da falecida para proce<strong>de</strong>r a uma investigação padrão. Luzes —<br />

or<strong>de</strong>nou ela, erguendo o sobrolho <strong>de</strong> seguida quando a divisão permaneceu<br />

às escuras.<br />

Peabody vasculhou junto da porta, acen<strong>de</strong>ndo um interruptor. —<br />

Ela <strong>de</strong>via preferir o controlo manual ao controlo activado por voz.<br />

A divisão estava atafulhada e era colorida. Lenços e cobertas bonitos<br />

estavam lançados por cima <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>iras, mesas. Tapeçarias que retratavam<br />

pessoas nuas atraentes e animais mitológicos cobriam as pare<strong>de</strong>s.<br />

Havia velas por toda a parte: em cima <strong>de</strong> mesas, prateleiras, no chão,<br />

tal como taças com pedras coloridas, com ervas, com pétalas <strong>de</strong> fl ores.<br />

Pedaços e varinhas <strong>de</strong> cristal, luzidias <strong>de</strong> limpeza, preenchiam todas as<br />

superfícies lisas.<br />

Um ecrã <strong>de</strong> humor estava ligado e mostrava um amplo prado com<br />

fl ores silvestres a ondular suavemente com a brisa. O áudio tocava a canção<br />

<strong>de</strong> pássaros e zéfi ros.<br />

— Ela gostava <strong>de</strong> coisas bonitas — observou Eve. — E <strong>de</strong> muitas.<br />

Movimentando-se, <strong>de</strong>itou um vislumbre aos controlos do ecrã <strong>de</strong> humor<br />

e assentiu quando reparou que corroboravam o seu pensamento. — Ela<br />

ligava isto assim que entrava. Eu diria que queria relaxar.<br />

Deixando que Peabody a seguisse, entrou na divisão contígua. O<br />

quarto era pequeno, acolhedor e, mais uma vez, estava atafulhado. A colcha<br />

na cama estreita era bordada com luas e estrelas. Um mobile <strong>de</strong> vidro,<br />

ondulante <strong>de</strong> fadas, estava pendurado por cima da cama e mesmo agora,<br />

tilintava musicalmente ao sabor da brisa através da janela aberta.<br />

— Deve ter sido esta a janela, a luz que viste acen<strong>de</strong>r.<br />

— Sim, chefe.<br />

— Portanto, ela ligou o ecrã e <strong>de</strong>pois veio direitinha ao quarto. Devia<br />

50


querer mudar <strong>de</strong> roupa, tirar o vestido húmido. Mas não o fez. — Eve pisou<br />

um pequeno tapete <strong>de</strong> quarto com a face <strong>de</strong> um sol sorri<strong>de</strong>nte. — Está atafulhado,<br />

mas arrumado à sua maneira. Não há sinais <strong>de</strong> distúrbios ou <strong>de</strong> luta.<br />

— Luta?<br />

— Disseste que ela estava agitada, a chorar quando voltou a sair. O<br />

programa do prado campestre não a acalmou, ou não teve tempo sufi ciente<br />

para o fazer.<br />

— Ela não se <strong>de</strong>u ao trabalho <strong>de</strong> o voltar a <strong>de</strong>sligar.<br />

— Não — concordou Eve. — Não se <strong>de</strong>u ao trabalho. É possível<br />

que estivesse aqui alguém quando ela chegou a casa. Alguém que a tenha<br />

perturbado ou assustado. Vamos verifi car os registos <strong>de</strong> segurança. — Ela<br />

abriu o que presumia ser um armário e <strong>de</strong>ixou escapar um som <strong>de</strong> espanto.<br />

— Bem, olha para isto. Tinha-o transformado numa espécie <strong>de</strong> divisão. Isto<br />

não está muito atafulhado. Regista isto.<br />

Peabody avançou, passando o gravador por uma divisão pequena e<br />

<strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s brancas. O chão era <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, com um pentagrama branco<br />

pintado. Um círculo <strong>de</strong> velas brancas estava disposto numa simetria cuidada<br />

em redor das pontas. Uma mesa pequena continha uma bola <strong>de</strong> cristal<br />

límpida, uma taça, um espelho, uma faca <strong>de</strong> cabo escuro e uma lâmina pequena<br />

e romba.<br />

Eve farejou o ar, mas não apanhou vestígios <strong>de</strong> fumo ou cera <strong>de</strong> vela.<br />

— O que achas que ela fazia aqui?<br />

— Eu diria que era uma espécie <strong>de</strong> sala <strong>de</strong> ritual, para meditação ou<br />

para lançar feitiços.<br />

— Minha nossa. — Com um aceno <strong>de</strong> cabeça, Eve recuou. — Vamos<br />

<strong>de</strong>ixar isso e ver o ‘link <strong>de</strong>la. Se não estava aqui ninguém para a assustar o<br />

sufi ciente para sair, talvez tenha recebido uma chamada que o tenha feito.<br />

Ela entrou no quarto primeiro — murmurou Eve, voltando a divagar para<br />

o pequeno ‘link que se encontrava à cabeceira. — Talvez preten<strong>de</strong>sse entrar<br />

ali e brincar às bruxas <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> roupa e <strong>de</strong> se acalmar. Não levava<br />

nada quando voltou a sair. Não entrou aqui para vir buscar alguma coisa<br />

e voltar a sair. Estava perturbada, voltou para casa.<br />

Eve ligou o ‘link, pedindo uma repetição da última chamada transmitida<br />

ou recebida. E o quarto encheu-se com um cântico baixo e ritmado.<br />

— O que raio é isto?<br />

— Não sei. — Desconfortável, Peabody aproximou-se.<br />

— Repetir — exigiu Eve.<br />

— Ouve os nomes. Ouve os nomes e teme-os. Loki, Belzebu,<br />

Baphomet. Eu sou a aniquilação. Eu sou a vingança. In nomine Dei nostri<br />

Santanas Luciferi excelsi. Vingança para ti, que te afastaste da lei. Ouve os<br />

nomes e teme-os.<br />

51


— Pára. — Eve teve um arrepio rápido e involuntário. — Belzebu,<br />

isso são merdas do diabo, não? Os sacanas estavam a brincar com ela, a<br />

atormentá-la. E ela já estava à beira da loucura. Não admira que tenha<br />

corrido daqui para fora. On<strong>de</strong> é que estavas, fi lho da puta, on<strong>de</strong> estavas?<br />

Localização da última transmissão. Mostrar. — A boca <strong>de</strong>la afi nou-se enquanto<br />

lia os dados. — Tenth e Seventh, mesmo ali na rua. Provavelmente<br />

num ‘link público. Cabrões. Ela ia direitinha a eles.<br />

— Não estava lá ninguém. — Mas Peabody estava agora a observar a<br />

cara <strong>de</strong> Eve, e a fúria que lhe reluzia nos olhos. — Mesmo com o nevoeiro,<br />

mesmo com a chuva, eu teria visto alguém se estivessem à espera <strong>de</strong>la. Não<br />

estava lá mais nada a não ser um gato.<br />

O coração <strong>de</strong> Eve <strong>de</strong>u um sobressalto. — Um quê?<br />

— Apenas um gato. Tive um vislumbre <strong>de</strong> um gato, mas não estava<br />

ninguém na rua.<br />

— Um gato. — Eve aproximou-se da janela. De repente, teve necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> inspirar uma boa golfada <strong>de</strong> ar. Ali, no parapeito, viu a longa pena<br />

preta. — E um pássaro — murmurou ela. Sacou da pinça, erguendo a pena<br />

a contraluz. — Ainda vamos tendo corvos em Nova Iorque. Um corvo é o<br />

mesmo que uma gralha, não é?<br />

— Mais ou menos. Acho eu.<br />

— Processa-a — or<strong>de</strong>nou Eve. — Quero que seja analisada. — Ela<br />

esfregou os <strong>de</strong>dos por cima das pálpebras, como que a afastar a fadiga. — O<br />

parente mais próximo <strong>de</strong>ve ser Brenda Wojinski, a mãe. Vê se encontras aí<br />

uma morada.<br />

— Sim, chefe. — Peabody sacou do seu PPC, <strong>de</strong>pois segurou-o simplesmente,<br />

enquanto a vergonha a assoberbava. — Tenente, gostaria <strong>de</strong> pedir<br />

<strong>de</strong>sculpa pelo comentário que fi z antes e pelo meu comportamento.<br />

Eve retirou o disco do ‘link, selando-o ela mesma. — Não recordo<br />

qualquer comentário, Peabody, ou qualquer comportamento insatisfatório.<br />

— Ela fi tou Peabody. — Enquanto o gravador ainda está ligado, faz outro<br />

scan ao apartamento.<br />

Compreen<strong>de</strong>ndo, Peabody inclinou a cabeça. — Eu sei que o gravador<br />

ainda está ligado, Tenente. Quero que isto fi que registado. Fui insubordinada<br />

e passei das marcas, quer profi ssional quer pessoalmente.<br />

Raios partam esta certinha, pensou Eve, sustendo uma praga. — Não<br />

houve insubordinação na minha opinião ou que eu me lembre, Agente.<br />

— Dallas. — Peabody <strong>de</strong>ixou escapar um suspiro. — Isso é que fui.<br />

Estava abalada e a ter difi culda<strong>de</strong> em lidar com a situação. Uma coisa é<br />

ver um corpo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> já estar morto, outra coisa é ver uma mulher ser<br />

abalroada e subir três metros no ar e aterrar no pavimento. Ela estava a ser<br />

vigiada por mim.<br />

52


— Fui dura para ti.<br />

— Sim, chefe, foi. E precisava <strong>de</strong> ser. Pensei que como conseguiu<br />

manter a compostura, conseguiu fazer o seu trabalho, que isso signifi cava<br />

que não se importava. Enganei-me e lamento.<br />

— Tomei nota. Agora, regista isto, Peabody. Seguiste or<strong>de</strong>ns, seguiste<br />

um procedimento. Não tiveste culpa do que aconteceu esta noite. Não podias<br />

tê-lo impedido. Agora, esquece isso para po<strong>de</strong>rmos <strong>de</strong>scobrir porque<br />

é que ela está morta.<br />

Eve pensou que a fi lha <strong>de</strong> um polícia sabia que quando outro polícia bate à<br />

porta às cinco da manhã, só podia ser com notícias da pior espécie. Ela viu,<br />

assim que Brenda a reconheceu, que tinha razão.<br />

— Deus meu. Deus meu. Mamã?<br />

— Não, não foi a sua mãe, Senhora Wojinski. — Eve sabia que só<br />

havia uma maneira e era ser rápida. — Foi a Alice. Posso entrar?<br />

— A Alice? — Ela piscou os olhos embaciados, colocando uma mão<br />

na porta para se apoiar — A Alice?<br />

— Acho que <strong>de</strong>víamos entrar. — Com toda a <strong>de</strong>lica<strong>de</strong>za, Eve pegou-lhe<br />

no braço e transpôs a porta. — Vamos entrar e sentarmo-nos.<br />

— A Alice? — repetiu ela. O <strong>de</strong>sgosto quebrou o véu que lhe cobria<br />

os olhos. Lágrimas transbordaram. — Não, não a minha Alice. Não a minha<br />

pequenina.<br />

Brenda per<strong>de</strong>u o equilíbrio, teria caído no chão, mas Eve apertou-a<br />

com mais força e dirigiu-se rapidamente para o assento mais próximo. —<br />

Lamento. Lamento a sua perda, Senhora Wojinski. Houve um aci<strong>de</strong>nte esta<br />

manhã e a Alice foi morta.<br />

— Um aci<strong>de</strong>nte? Não, cometeu um erro. Foi outra pessoa. Não foi a<br />

Alice. — Ela agarrou-se a Eve, com os olhos inundados numa súplica. —<br />

Não po<strong>de</strong> ter a certeza que foi a minha Alice.<br />

— Foi. Lamento.<br />

Então ce<strong>de</strong>u, enterrando a cara nas mãos, pressionando as mãos nos<br />

joelhos <strong>de</strong> modo a que o corpo se enrolasse num escudo <strong>de</strong>fensivo.<br />

— Eu podia fazer-lhe um chá — murmurou Peabody.<br />

— Sim, vai. — Era a parte do trabalho que fazia Eve sentir-se mais<br />

impotente, mais <strong>de</strong>slocada. Não havia solução para o <strong>de</strong>sgosto recente. —<br />

Quer que chame alguém? Quer que contacte a sua mãe? O seu irmão?<br />

— A Mamã…Deus meu, a Alice…Como é que vamos suportá-lo?<br />

Não havia resposta para isso, pensou Eve. No entanto, iriam fazê-lo.<br />

A vida exigia-o. — Posso dar-lhe um calmante ou, se preferir, contactar o<br />

seu médico.<br />

— Mãe?<br />

53


Enquanto Brenda continuava a embalar-se, Eve olhou na direcção<br />

da voz. O rapaz estava especado no umbral, a piscar olhos confusos e sonolentos.<br />

O cabelo <strong>de</strong>le estava revolto do sono e usava umas calças <strong>de</strong> fato <strong>de</strong><br />

treino velhas, com buracos nos joelhos.<br />

O irmão <strong>de</strong> Alice, recordou Eve. Ela tinha-se esquecido.<br />

Então, ele concentrou-se em Eve, os olhos repentinamente alerta e<br />

<strong>de</strong>masiado adultos. — O que se passa? — exigiu ele. — O que aconteceu?<br />

Como raio se chamava ele? Eve esforçou-se para se lembrar, <strong>de</strong>cidindo<br />

<strong>de</strong>pois que, naquele momento, não interessava. Ela levantou-se.<br />

Apercebeu-se <strong>de</strong> que era um rapaz alto, com vincos do sono nas bochechas<br />

e um corpo já preparado para enfrentar o pior. — Houve um aci<strong>de</strong>nte.<br />

Lamento, mas…<br />

— É a Alice. — O queixo <strong>de</strong>le tremeu, mas os olhos continuaram<br />

hirtos nos <strong>de</strong>la. — Ela morreu.<br />

— Sim, lamento.<br />

Ele continuou a fi tá-la enquanto Peabody entrou com uma chávena<br />

<strong>de</strong> chá, pousando-a <strong>de</strong>sconfortavelmente na mesa. — Que tipo <strong>de</strong><br />

aci<strong>de</strong>nte?<br />

— Foi atropelada por um carro esta madrugada.<br />

— Atropelamento e fuga?<br />

— Não. — Eve observou-o cuidadosamente, pon<strong>de</strong>rando. — Ela<br />

atravessou-se no caminho <strong>de</strong> um táxi. O condutor não conseguiu parar.<br />

Estamos a analisar o veículo <strong>de</strong>le e a cena do crime, mas houve uma testemunha<br />

que corrobora a <strong>de</strong>claração do condutor. Não creio que ele tenha<br />

tido culpa. Não tentou abandonar o local e o registo <strong>de</strong> condução <strong>de</strong>le está<br />

limpo.<br />

O rapaz pura e simplesmente assentiu, enquanto o choro da mãe<br />

enchia a divisão. — Eu vou tomar conta <strong>de</strong>la. Seria melhor se agora nos<br />

<strong>de</strong>ixasse sozinhos.<br />

— Está bem. Se tiverem quaisquer dúvidas, po<strong>de</strong>m contactar-me na<br />

Central <strong>de</strong> Polícia. Sou a Tenente Dallas.<br />

— Eu sei quem é. Agora, <strong>de</strong>ixe-nos a sós — repetiu ele, indo sentar-se<br />

ao lado da mãe.<br />

— O miúdo sabe alguma coisa — <strong>de</strong>clarou Eve quando saíram para<br />

a rua.<br />

— Essa é a minha opinião. Talvez a Alice se sentisse mais à vonta<strong>de</strong><br />

a falar com ele do que com outros membros da família. Tinham ida<strong>de</strong>s<br />

bastante aproximadas. Os irmãos e irmãs implicam uns com os outros, mas<br />

também fazem confi dências.<br />

— Eu não saberia dizer. — Ela ligou o carro, ansiosa por café. —<br />

On<strong>de</strong> raio é que vives, Peabody?<br />

54


— Porquê?<br />

— Eu <strong>de</strong>ixo-te em casa. Po<strong>de</strong>s dormir um pouco. Apresenta-te na<br />

Central às onze.<br />

— É isso que vai fazer, dormir um pouco?<br />

— Sim. — Provavelmente aquilo era uma mentira, mas ia <strong>de</strong> encontro<br />

aos objectivos <strong>de</strong>la. — É para on<strong>de</strong>?<br />

— Eu vivo em Houston.<br />

Eve hesitou apenas um pouco. — Bem, se não vai dar jeito, então<br />

que não dê mesmo jeito nenhum. — Ela dirigiu-se para sul. — Houston?<br />

Peabody, sua boémia.<br />

— Era a casa da minha prima. Quando ela <strong>de</strong>cidiu mudar-se para o<br />

Colorado para tecer tapetes, eu fi quei com a casa. Controlo <strong>de</strong> rendas.<br />

— Uma história plausível. Deves passar os teus tempos livres em bares<br />

<strong>de</strong> poesia e clubes <strong>de</strong> espéctaculos.<br />

— Por acaso, prefi ro os lounges <strong>de</strong> acasalamento. A comida é melhor.<br />

— Devias conseguir mais sexo se não pensasses tanto nisso.<br />

— Não, eu também tentei isso. — Ela soltou um enorme e abrupto<br />

bocejo. — Desculpe.<br />

— Estás no teu direito. Quando te apresentares, verifi ca o estatuto da<br />

autópsia. Quero certifi car-me <strong>de</strong> que não há nada estranho na toxicologia.<br />

E certifi ca-te <strong>de</strong> que <strong>de</strong>spes esse vestido ridículo.<br />

Peabody moveu-se no banco. — Não é assim tão disparatado. Uns<br />

quantos tipos no Aquariano pareceram gostar. Assim como o Roarke.<br />

— Sim, ele falou disso.<br />

De queixo caído, Peabody virou a cabeça. — Falou? A sério?<br />

Eve pensou que a tolice ajudava a acalmar. — Ele disse algo sobre<br />

estares com um ar apelativo. Portanto, bati-lhe. Pelo sim, pelo não.<br />

— Apelativo, minha nossa. — Peabody bateu no coração. — Vou ter<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senterrar outras peças que a minha mãe me fez. Apelativa. — Suspirou.<br />

— O Roarke não tem irmãos, primos, tios, pois não?<br />

— Tanto quanto eu saiba, Peabody, ele é único.<br />

Ela encontrou-o a dormitar. Não na cama, mas no sofá na zona <strong>de</strong> convívio<br />

da suite principal. Assim que entrou no quarto, os olhos <strong>de</strong>le abriram-se.<br />

— Tiveste-a longa e dura, Tenente. Ele esten<strong>de</strong>u-lhe uma mão. —<br />

Anda cá.<br />

— Vou tomar um duche, beber café. Tenho umas chamadas a fazer.<br />

Ele tinha-se ligado ao scanner da Polícia e sabia exactamente com o<br />

que é que ela tinha estado a lidar. — Anda cá — repetiu ele, e fechou a mão<br />

sobre a <strong>de</strong>la quando ela, relutantemente, lhe fez a vonta<strong>de</strong>. — As chamadas<br />

vão fazer alguma diferença se forem feitas daqui a uma hora?<br />

55


— Não, mas…<br />

Então, <strong>de</strong>u-lhe marradinhas até ela tombar no sofá com ele. Como<br />

a luta <strong>de</strong>la era apenas meio sentida, conseguiu enroscá-la <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong>le rapidamente.<br />

E, enrolando um braço em seu redor, beijou-lhe o cabelo. —<br />

Dorme um pouco — disse ele com doçura. — Não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fi cares<br />

esgotada.<br />

— Ela era tão nova, Roarke.<br />

— Eu sei. Abstrai-te disso, apenas por um bocadinho.<br />

— Os dados? O registo do Frank. Descobriste alguma coisa?<br />

— Falamos disso quando acordares.<br />

— Uma hora. Apenas uma hora. Unindo os <strong>de</strong>dos aos <strong>de</strong>le, permitiu-se<br />

afundar.<br />

56


CAPÍTULO CINCO<br />

Dormir ajudou. Assim como o chuveiro quente e a comida que Roarke<br />

mandou subir. Eve enfi ava ovos na boca enquanto estudava os dados<br />

que ele tinha <strong>de</strong>senterrado no ecrã.<br />

— Parece mais um diário do que um registo <strong>de</strong> investigação — <strong>de</strong>cidiu<br />

ela. — Imensos comentários pessoais e, obviamente, ele estava preocupado<br />

com a Alice. ‘Não estou certo o quão profundamente eles lhe infl uenciaram<br />

a mente ou magoaram o coração.’ Estava a pensar como avô, não<br />

como polícia. Tiraste isto da unida<strong>de</strong> doméstica <strong>de</strong>le?<br />

— Sim. Estava codifi cado e tinha senha. Suspeito que não queria que<br />

a mulher se <strong>de</strong>parasse com isto.<br />

— Se estava codifi cado, como é que ace<strong>de</strong>ste?<br />

Roarke tirou um cigarro <strong>de</strong> uma caixa esculpida, estudando-o. —<br />

Não queres mesmo que explique isso, pois não? Tenente?<br />

— Não. — Eve arrebatou mais ovos. — Acho que não. Ainda assim,<br />

os pensamentos e preocupações pessoais <strong>de</strong>le não vão ser <strong>de</strong> muita ajuda.<br />

Preciso <strong>de</strong> saber o que é que ele <strong>de</strong>scobriu, e quão longe foi a investigação<br />

privada antes <strong>de</strong> ele morrer.<br />

— Há mais. — Roarke passou por datas. — Ali, ele fala <strong>de</strong> andar a<br />

seguir a Selina Cross e faz uma lista <strong>de</strong> alguns dos…companheiros <strong>de</strong>la.<br />

— Mas não há ali nada. Suspeita que ela faz tráfi co <strong>de</strong> substâncias<br />

ilegais. Acredita que ela <strong>de</strong>sempenha cerimónias inaceitáveis na discoteca<br />

e talvez em casa. Observa personagens suspeitas a ir e vir, mas baseia tudo<br />

na emoção. Não há factos. O Frank tinha estado <strong>de</strong>masiado tempo fora das<br />

ruas. — Eve pôs o prato para o lado e levantou-se. — Se ele não queria envolver<br />

polícias, porque raio é que, pelo menos, não contratou um <strong>de</strong>tective<br />

privado para fazer o trabalho <strong>de</strong> sapa? O que é isto?<br />

Com a fronte enrugada, ela aproximou-se do ecrã.<br />

Acho que ela me obrigou. Não posso ter a certeza, mas é quase como se<br />

agora ela me estivesse a ludibriar. Em breve vou ter <strong>de</strong> agir. A Alice está<br />

aterrorizada e implora-me que me afaste da Cross e <strong>de</strong>la. A pobre miúda<br />

passa <strong>de</strong>masiado tempo com a tal da Isis. A Isis po<strong>de</strong> ser um esquisitói<strong>de</strong><br />

inofensiva, mas não po<strong>de</strong> ser uma boa infl uência para a Alice.<br />

Disse à Sally que vou trabalhar até tar<strong>de</strong>. Hoje à noite, vou entrar. A<br />

Cross passa as noites <strong>de</strong> quinta na discoteca. O apartamento <strong>de</strong>ve estar<br />

57


vazio. Se conseguir entrar lá <strong>de</strong>ntro e encontrar alguma coisa, seja o<br />

que for que prove que a Alice viu uma criança a ser assassinada, posso<br />

fazer uma <strong>de</strong>núncia anónima ao Whitney. Ela vai pagar por aquilo<br />

que ela e o nojento do amante fi zeram à minha menina. De uma forma<br />

ou <strong>de</strong> outra, ela vai pagar.<br />

— Minha nossa, invasão ao domicílio nocturna, busca e captura ilegal.<br />

— Frustrada, Eve passou ambas as mãos pelo cabelo. — O que raio lhe<br />

passou pela cabeça? Ele tinha <strong>de</strong> saber que qualquer coisa que encontrasse<br />

seria consi<strong>de</strong>rada inadmissível em tribunal. Nunca os iria apanhar <strong>de</strong>ste<br />

modo.<br />

— Palpita-me que ele não estava preocupado com o tribunal, Eve. Ele<br />

queria justiça.<br />

— E agora está morto, não está? Assim como a Alice. On<strong>de</strong> está o<br />

resto?<br />

Roarke avançou até à última entrada.<br />

A segurança do edifício é <strong>de</strong>masiado apertada, não consegui passar.<br />

Passei <strong>de</strong>masiado tempo fora do raio das ruas. Parece que, afi nal, vou<br />

ter <strong>de</strong> chatear alguém para me ajudar nisto. Vou fazer com que aquela<br />

bruxa pague nem que seja a última coisa que eu faça.<br />

— Isto é tudo, aquela entrada foi registada na noite antes <strong>de</strong> ele morrer.<br />

Po<strong>de</strong>rá haver mais, sob um código diferente.<br />

Portanto, pensou Eve, ele não a tinha feito pagar. E não tinha tido<br />

tempo <strong>de</strong> pedir ajuda. Não tinha tido tempo sufi ciente, pensou ela novamente,<br />

com sentimentos mistos <strong>de</strong> alívio e <strong>de</strong>sgosto. As entradas faziam<br />

muito para ilibar o Frank e o Feeney.<br />

— Mas tu não achas. Tu não achas que haja algo mais.<br />

— Não, não acho. Há a altura, claro. E ele não se dava assim tanto<br />

com aparelhos electrónicos — explicou Roarke. — Foi uma brinca<strong>de</strong>ira<br />

encontrar isto. Ainda assim, vamos procurar. Vai <strong>de</strong>morar um pouco a <strong>de</strong>scodifi<br />

car se houver ali qualquer coisa. E terá <strong>de</strong> ser mais tar<strong>de</strong>. Esta manhã<br />

tenho várias reuniões.<br />

Ela virou-se para ele. Apercebeu-se com um sentimento <strong>de</strong> estranheza<br />

que por momentos tinha esquecido que ele não estava a trabalhar<br />

com ela. O negócio <strong>de</strong>le e a direcção do mesmo estavam numa esfera<br />

muito distinta da do trabalho <strong>de</strong>la<br />

— Tantos milhares <strong>de</strong> milhões, tão pouco tempo.<br />

— É verda<strong>de</strong>. Mas esta noite <strong>de</strong>vo conseguir mexer mais um pouco<br />

nisso.<br />

58


Ela sabia que ele nem sequer tinha dado uma olhada aos relatórios<br />

<strong>de</strong> acções ou aceitado as chamadas matinais que não falhavam um dia. —<br />

Estou a tomar muito do teu tempo.<br />

— Deveras. — Ele contornou a consola, inclinando-se para trás contra<br />

a mesma — E o pagamento vai ser o teu tempo, Tenente. Um dia ou<br />

dois fora quando ambos pu<strong>de</strong>rmos. — Depois, o sorriso <strong>de</strong>le esmoreceu.<br />

Pegou-lhe na mão, passando o polegar sobre a gravação da aliança <strong>de</strong>la. —<br />

Eve, não gosto <strong>de</strong> interferir com o teu trabalho, mas peço-te que tenhas um<br />

cuidado acrescido neste assunto.<br />

— Um bom polícia é sempre cuidadoso.<br />

— Não — disse Roarke fi tando-a nos olhos — Esta polícia não é. É<br />

corajosa, esperta, empenhada, mas não é sempre cuidadosa.<br />

— Não te preocupes, já li<strong>de</strong>i com coisas piores do que a Selina Cross.<br />

— Ela beijou-o ligeiramente — Tenho <strong>de</strong> ir trabalhar, ver alguns relatórios.<br />

Vou tentar avisar-te se vou chegar tar<strong>de</strong>.<br />

— Faz isso — murmurou ele e viu-a partir.<br />

Pensou que ela estava errada. Duvidava mesmo muito se ela já teria<br />

lidado com alguém pior do que a Selina Cross. E ele não fazia intenções <strong>de</strong><br />

a <strong>de</strong>ixar lidar com aquilo sozinha. Aproximando-se do ‘link, Roarke ligou<br />

para a assistente e fez com que fossem canceladas todas as suas viagens para<br />

fora do planeta e da cida<strong>de</strong> no próximo mês.<br />

Pretendia manter-se muito perto <strong>de</strong> casa. E da mulher.<br />

— Nada <strong>de</strong> drogas — <strong>de</strong>clarou Eve ao olhar para o relatório da toxicologia<br />

sobre a Alice. — Nada <strong>de</strong> álcool. Ela não estava embriagada. Mas ouviste-a<br />

falar com alguém que não estava lá e correu <strong>de</strong> encontro a um táxi em movimento.<br />

Tinha induzido a si própria um estado <strong>de</strong> terror e <strong>de</strong>pois, qualquer<br />

coisa no cântico ao telefone a tinha feito <strong>de</strong>scambar. Sabiam como a<br />

afectar, como a manipular.<br />

— Não é ilegal cantar para um ‘link.<br />

— Não — consi<strong>de</strong>rou Eve. — Mas é ilegal ameaçar fazer mal através<br />

<strong>de</strong> um transmissor público.<br />

— Isso é rebuscado — retorquiu Peabody. — E é apenas uma infracção.<br />

— É um começo. Se conseguirmos ligar a transmissão à Selina Cross,<br />

po<strong>de</strong>mos chateá-la. De qualquer modo, acho que está na altura <strong>de</strong> nos conhecermos.<br />

Que tal fazermos uma viagenzita ao Inferno, Peabody?<br />

— Tenho andado mortinha para lá ir.<br />

— Quem é que não está? — Mas antes <strong>de</strong> ela se po<strong>de</strong>r levantar,<br />

Feeney irrompeu pelo gabinete a<strong>de</strong>ntro. Tinha os olhos encobertos, a<br />

cara por barbear.<br />

59


— Porque é que és a investigadora principal do caso da Alice? Um<br />

aci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> tráfego. Porque raio é que uma tenente dos Homicídios está a<br />

tratar <strong>de</strong> uma vítima <strong>de</strong> aci<strong>de</strong>nte viário?<br />

— Feeney…<br />

— Ela era minha afi lhada. Nem sequer me telefonaste. Tive <strong>de</strong> ouvir<br />

no raio das notícias.<br />

— Lamento. Não sabia. Senta-te, Feeney.<br />

Ele afastou-se com repulsa quando ela lhe tocou no braço. — Não<br />

preciso <strong>de</strong> me sentar. Quero respostas, Dallas. Quero a porra <strong>de</strong> respostas.<br />

— Peabody — murmurou Eve, esperando <strong>de</strong>pois que a ajudante saísse<br />

e fechasse a porta. — Lamento, Feeney, não sabia que eras padrinho <strong>de</strong>la.<br />

Falei com a mãe e com o irmão, e simplesmente presume que avisariam o<br />

resto da família.<br />

— A Brenda está sedada — ripostou Feeney. — O que raio esperavas?<br />

No espaço <strong>de</strong> dias per<strong>de</strong>u o pai e a fi lha. O Jamie só tem <strong>de</strong>zasseis<br />

anos. Quando ele chamou um médico, tratou da mãe e contactou a Sally<br />

já eu tinha ouvido nas notícias. Deus meu, minha nossa, ela era apenas<br />

uma miúda.<br />

Ele virou-se, repuxando o cabelo. — Eu costumava andar com ela às<br />

cavalitas, dar-lhe doces às escondidas.<br />

Era assim que era per<strong>de</strong>r alguém que amava, pensou ela. E estava<br />

grata por amar tão poucos. — Por favor, senta-te, Feeney. Não <strong>de</strong>vias ter<br />

vindo hoje.<br />

— Eu já disse que não preciso <strong>de</strong> me sentar. — A voz <strong>de</strong>le acalmou<br />

enquanto ele voltou atrás para a estudar. — Quero uma resposta, Dallas.<br />

Porque é que estás a investigar o aci<strong>de</strong>nte da Alice?<br />

Ela não podia dar-se ao luxo <strong>de</strong> hesitar, não podia dar-se ao luxo <strong>de</strong><br />

não mentir. — A Peabody fui testemunha — principiou ela, grata por lhe<br />

po<strong>de</strong>r dar ao menos isso. — Estava <strong>de</strong> folga e foi a uma discoteca. Viu o<br />

aci<strong>de</strong>nte. Abalou-a, Feeney, e ela ligou-me. Acho que foi refl exo. Não podia<br />

ter a certeza do que tinha acontecido, portanto disse-lhe para comunicar à<br />

Central Telefónica, tornar a cena segura e eu respondi. Já que o tinha feito<br />

e tinha todos os dados, avisei os parentes mais próximos. Achei que seria<br />

mais fácil para a família se fosse eu a tratar disso. — Ela moveu os ombros,<br />

amargamente envergonhada <strong>de</strong> utilizar velhos amigos. — Pensei que era o<br />

mínimo que podia fazer, pelo Frank.<br />

Ele nem chegou a tirar os olhos <strong>de</strong> cima <strong>de</strong>la. — É só isso?<br />

— O que mais po<strong>de</strong>ria ser? Ouve, acabei <strong>de</strong> receber o relatório da<br />

toxicologia. Ela não estava sob efeito, Feeney. Não estava bêbeda. Talvez<br />

ainda estivesse perturbada por causa do Frank, ou <strong>de</strong> outra coisa. Não sei.<br />

60


Po<strong>de</strong> até ter sido que nem sequer tenha visto o raio do táxi. Foi uma noite<br />

<strong>de</strong> treta, com nevoeiro e chuva.<br />

— O sacana ia além do limite <strong>de</strong> velocida<strong>de</strong>, não ia?<br />

— Não. Ela não podia dar-lhe ninguém para culpar, nem sequer podia<br />

oferecer esse conforto agridoce. — Ia <strong>de</strong>ntro do limite. O registo <strong>de</strong>le<br />

está limpo, assim como os testes <strong>de</strong> droga e álcool feitos no local. Feeney, ela<br />

apareceu em frente <strong>de</strong>le e não houve nada que ele pu<strong>de</strong>sse fazer. Quero que<br />

compreendas isso. Eu própria falei com o condutor e investiguei a cena. A<br />

culpa não foi <strong>de</strong>le. A culpa não foi <strong>de</strong> ninguém.<br />

Tinha <strong>de</strong> ser <strong>de</strong> alguém, pensou ele. Não podia per<strong>de</strong>r duas pessoas<br />

seguidas sem nenhum motivo. — Quero falar com a Peabody.<br />

— Dá-lhe um tempo, está bem? — Camadas <strong>de</strong> culpa adicionaram-se<br />

ao fardo que ela já carregava. — Deu mesmo cabo <strong>de</strong>la. Gostaria mesmo<br />

que ela se concentrasse noutra coisa até resolver a questão.<br />

Ele inspirou fundo, expirando num tremor. Por <strong>de</strong>baixo do seu <strong>de</strong>sgosto<br />

dilacerante estava a gratidão por alguém em quem ele confi ava estar<br />

a tratar da afi lhada. — Então, vais fechar o caso, pessoalmente? E dar-me<br />

todos os dados?<br />

— Eu fecho o caso, Feeney. Prometo-te.<br />

Ele assentiu, esfregando as mãos sobre a cara. — Está bem. Desculpa<br />

ter-te atacado.<br />

— Não faz mal. Não tem importância. — Ela hesitou, <strong>de</strong>pois colocou<br />

a mão no braço <strong>de</strong>le, apertando-o ligeiramente. — Vai para casa, Feeney.<br />

Hoje não queres estar aqui.<br />

— Acho que vou. — Colocou uma mão na porta. — Ela era uma<br />

querida, Dallas — disse ele calmamente. — Meu Deus, não quero ir a outro<br />

funeral.<br />

Quando ele partiu, Eve afundou-se na ca<strong>de</strong>ira. Infelicida<strong>de</strong>, culpa<br />

e raiva revolveram-se-lhe na garganta como farpas. Voltou a levantar-se e<br />

agarrou na mala. Disse a si mesma que estava com o estado <strong>de</strong> espírito perfeito<br />

para conhecer a Selina Cross.<br />

— Como é que quer fazer isto? — Perguntou Peabody enquanto encostavam<br />

o carro à frente <strong>de</strong> um elegante edifício antigo na baixa.<br />

— Ser directa. Quero que ela saiba que a Alice falou comigo e que<br />

suspeito que ela seja culpada <strong>de</strong> assédio, tráfi co e conspiração para cometer<br />

homicídio. Se ela tiver miolos, vai perceber que não tenho nada <strong>de</strong> concreto.<br />

Mas vou dar-lhe algo em que pensar.<br />

Eve saiu do carro, lançando o olhar sobre o edifício com as suas janelas<br />

<strong>de</strong> vidro cinzelado e gárgulas sorri<strong>de</strong>ntes. — Ela vive aqui, não tem<br />

difi culda<strong>de</strong>s fi nanceiras. Vamos ter <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir on<strong>de</strong> é que ela arranja o di-<br />

61


nheiro. Quero tudo registado, Peabody, e mantém os olhos abertos. Quero<br />

que me digas o que pensas.<br />

— Vou dizer-lhe agora. — Peabody enfi ou o gravador no casaco da<br />

farda, mas manteve os olhos na janela mais alta do edifício, que era <strong>de</strong> vidro<br />

largo e redondo, minuciosamente cinzelado. — Ali está outro pentagrama<br />

invertido. É um símbolo satânico. E aquelas gárgulas não parecem amigáveis.<br />

— Ela sorriu, abatida. — Se queres saber, acho que parecem ter fome.<br />

— Opiniões, Peabody. Tenta manter as fantasias no mínimo. — Eve<br />

aproximou-se do ecrã <strong>de</strong> segurança.<br />

— Por favor indique o seu nome e o motivo da visita.<br />

— Tenente Eve Dallas e ajudante, NYPSD. — Ela ergueu o distintivo<br />

para ser submetido ao scan. — Para ver Selina Cross.<br />

— São esperadas?<br />

— Oh, acho que ela não vai fi car surpreendida.<br />

— Um momento.<br />

Enquanto esperava, Eve estudou a rua. Reparou que havia imenso<br />

tráfego <strong>de</strong> veículos e peões. Mas a maior parte dos que andavam a pé utilizavam<br />

o outro lado da rua e muitos olhavam com ar exausto para ela e para<br />

o edifício.<br />

Estranhamente, não havia uma única ambu-grill ou ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> rua<br />

à vista.<br />

— Po<strong>de</strong> entrar, Tenente. Por favor, siga para o elevador um. Já está<br />

programado.<br />

— Está bem. — Eve olhou para cima, tendo apanhado a sombra <strong>de</strong><br />

um movimento por <strong>de</strong>trás da janela mais alta. — Põe um ar ofi cial, Peabody<br />

— murmurou ela enquanto se aproximavam das portas principais, extremamente<br />

blindadas. — Estamos a ser observadas.<br />

As gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong>slizaram, com as fechaduras abertas. A luz num painel<br />

<strong>de</strong> segurança embutido piscou <strong>de</strong> vermelho para ver<strong>de</strong>. — É muito hardware<br />

para um prédio — comentou Peabody, e ignorando as borboletas no<br />

estômago, colocou-se atrás <strong>de</strong> Eve.<br />

Como uma sala <strong>de</strong> velório, a zona do lobby abusava dos tons <strong>de</strong> vermelho.<br />

Uma serpente bicéfala ondulava sobre o tapete vermelho-sangue,<br />

com os fi os dourados dos olhos a reluzir enquanto observava uma fi gura <strong>de</strong><br />

vestes negras passar uma faca curva sobre o pescoço <strong>de</strong> uma cabra branca.<br />

— Que arte adorável. — Eve elevou o sobrolho enquanto Peabody<br />

contornou cuidadosamente a cobra. — A lã não mor<strong>de</strong>.<br />

— Nunca se tem cuidado <strong>de</strong>mais. — Ela olhou para trás enquanto<br />

entravam no elevador. — O<strong>de</strong>io mesmo cobras. O meu irmão costumava<br />

apanhá-las no bosque e perseguir-me com elas. Sempre tive fobia.<br />

A viagem para cima <strong>de</strong>correu <strong>de</strong>pressa e sem sobressaltos, mas <strong>de</strong>u<br />

62


a Eve tempo sufi ciente para <strong>de</strong>tectar mais uma câmara <strong>de</strong> segurança no<br />

elevador pequeno, negro e espelhado.<br />

As portas abriram-se para uma antecâmara espaçosa, com chão <strong>de</strong><br />

mármore negro. Canapés vermelhos idênticos franqueavam um arco e ostentavam<br />

braços esculpidos com lobos a rosnar. Um arranjo fl oral era projectado<br />

<strong>de</strong> um pote em forma <strong>de</strong> cabeça <strong>de</strong> javali.<br />

— Aconitum — disse Peabody calmamente — Beladona, digitalis,<br />

scutellaria, peiote. Ela encolheu os ombros perante o olhar expectante <strong>de</strong><br />

Eve. — A minha mãe é uma botânica amadora. Posso dizer-lhe que não é<br />

um arranjo fl oral normal.<br />

— Mas o habitual é tão entediante, não?<br />

Tiverem o primeiro encontro cara-a-cara com Selina Cross exactamente<br />

como ela queria ser vista. Pousava, fl anqueada pelo arco, num vestido<br />

preto apertado que tocava o chão, os pés <strong>de</strong>scalços com as unhas dos pés<br />

pintadas num vermelho violento. E sorria.<br />

A pele <strong>de</strong>la era <strong>de</strong> um branco vampírico, a pincelada <strong>de</strong> vermelho<br />

que pousava sobre os lábios cheios tão brilhante como sangue fresco. Os<br />

olhos brilhavam ver<strong>de</strong>s e felinos numa cara estreita e, sem dúvida, <strong>de</strong> bruxa,<br />

que não era bela, mas incomodamente apelativa. O cabelo caía, negro<br />

contra negro, daquele rígido risco ao meio até à cintura.<br />

A mão com que gesticulava tinha anéis em todos os <strong>de</strong>dos e no polegar.<br />

Uma corrente <strong>de</strong> prata estava ligada a cada um <strong>de</strong>les, torcendo-se numa<br />

re<strong>de</strong> intrincada sobre as costas da mão.<br />

— Tenente Dallas e Agente Peabody, não é? Que visitantes tão interessantes<br />

num dia tão aborrecido. Querem fazer o favor <strong>de</strong> entrar…na<br />

minha sala <strong>de</strong> visitas?<br />

— Está sozinha, Menina Cross? Seria mais simples se também pudéssemos<br />

falar com o Senhor Alban.<br />

— Oh, que pena. Ela virou-se, num sussurrar <strong>de</strong> sedas, e escapuliu-se<br />

pelo arco. — Esta manhã o Alban está ocupado. Sentem-se. — Ela voltou<br />

a gesticular, mostrando uma divisão generosa atulhada <strong>de</strong> mobília. Cada<br />

assento exibia as cabeças, garras ou bicos <strong>de</strong> um predador. — Posso oferecer-lhes<br />

algo?<br />

— Vamos passar a parte dos refrescos. — Consi<strong>de</strong>rando que era<br />

apropriada, Eve escolheu uma ca<strong>de</strong>ira com os braços <strong>de</strong> um cão <strong>de</strong> caça.<br />

— Nem sequer café? É o que bebe, não é? — Depois encolheu os ombros,<br />

passando a ponta <strong>de</strong> um <strong>de</strong>do sobre o pentagrama acima da sobrancelha.<br />

— Mas faça como quiser. — Com a mesma capacida<strong>de</strong> estudada,<br />

<strong>de</strong>sceu sobre um canapé curvado que se erguia em pés <strong>de</strong> cabra e <strong>de</strong>ixou<br />

cair os longos braços sobre as costas. — Bem, o que posso fazer por vocês?<br />

— Alice Lingstrom foi morta esta manhã.<br />

63


— Sim, eu sei. — Ela continuou a sorrir agradavelmente, como que<br />

a discutir uma sucessão <strong>de</strong> dias agradáveis. — Podia dizer que testemunhei<br />

o…aci<strong>de</strong>nte através do meu espelho <strong>de</strong> perscrutação, mas duvido que acredite<br />

nisso. Como é evi<strong>de</strong>nte, não é do meu feitio <strong>de</strong>s<strong>de</strong>nhar da tecnologia<br />

e costume ver as notícias e outras formas <strong>de</strong> entretenimento televisivo. Há<br />

horas que a informação se tornou pública.<br />

— Conhecia-a.<br />

— Claro que sim, foi minha pupila durante uns tempos. Acabou por<br />

se revelar muito insatisfatória. A Alice fez-lhe queixas sobre o meu tutelado.<br />

— Não foi feito como uma pergunta, mas ela esperou, como que por uma<br />

resposta.<br />

— Se quer dizer se ela me relatou que foi drogada, molestada sexualmente<br />

e testemunhou uma atrocida<strong>de</strong>, então sim, ela queixou-se.<br />

— Droga, sexo e atrocida<strong>de</strong>s. — Selina <strong>de</strong>ixou escapar uma gargalhada<br />

grave e ronronante. — Que imaginação tinha a nossa pequena Alice. É<br />

uma pena que não a possa ter utilizado para alargar a visão. Como é a sua<br />

imaginação, Tenente Dallas? — Ela fez gesticular a mão coberta por re<strong>de</strong>.<br />

Na pequena lareira <strong>de</strong> mármore, irromperam chamas.<br />

Peabody saltou, não conseguindo suprir um grito, mas nenhuma das<br />

outras mulheres pareceu dar por isso. Continuaram a encarar-se, sem piscar<br />

os olhos.<br />

— Ou posso chamar-lhe Eve?<br />

— Não. Po<strong>de</strong> chamar-me Tenente Dallas. Está um pouco <strong>de</strong> calor<br />

para acen<strong>de</strong>r a lareira, não acha? E é um pouco cedo para truques <strong>de</strong> salão.<br />

— Eu gosto <strong>de</strong> calor. Tem uns nervos excelentes, Tenente.<br />

— Também tenho pouca tolerância por trafulhas e trafi cantes e assassinos<br />

<strong>de</strong> crianças.<br />

— Eu sou isso tudo? — Selina bateu com as afi adas unhas vermelhas<br />

nas costas do canapé, o seu único sinal exterior <strong>de</strong> irritação face à falta <strong>de</strong><br />

resposta <strong>de</strong> Eve. — Prove-o.<br />

— Irei fazê-lo. On<strong>de</strong> esteve na noite passada entre a uma e as três da<br />

manhã?<br />

— Estive aqui, na minha sala <strong>de</strong> ritual, com o Alban e um jovem<br />

iniciado a quem chamamos Lobar. Estivemos a <strong>de</strong>sempenhar uma cerimónia<br />

sexual privada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a meia-noite até à alvorada. O Lobar é jovem e…<br />

entusiasta.<br />

— Vou querer falar com ambos.<br />

— Po<strong>de</strong> contactar o Lobar todas as noites entre as oito e as onze na<br />

nossa discoteca. Quanto ao Alban, eu não sei o horário <strong>de</strong>le, mas ele passa<br />

a maior parte das noites aqui ou na discoteca. A não ser que acredite em<br />

magia, Tenente, está a <strong>de</strong>sperdiçar o seu tempo. Difi cilmente po<strong>de</strong>ria estar<br />

64


aqui, a fo<strong>de</strong>r dois homens muito interessantes, e lá fora a atrair a pobre<br />

Alice para a sua morte.<br />

— É isso que se consi<strong>de</strong>ra, uma mágica? — Eve olhou para a lareira<br />

que ainda resistia com um ligeiro esgar <strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezo. — Aquilo não é mais<br />

do que um truque e <strong>de</strong> uma distracção para os olhos. Po<strong>de</strong> pedir a licença<br />

para fazer malabarismo nas ruas por dois mil créditos por ano.<br />

Os músculos <strong>de</strong> Selina tremeram enquanto ela se sentou para a frente.<br />

Tinha os olhos a ar<strong>de</strong>r, mimetizando o fogo. — Sou uma alta-sacerdotisa<br />

do senhor das trevas. Os nossos números constituem uma legião e tenho<br />

po<strong>de</strong>res que a fariam chorar.<br />

— Não choro facilmente, Menina Cross. — Ah, explodia facilmente,<br />

pensou Eve com satisfação. E um orgulho facilmente ferido. — Já não está<br />

a lidar com uma rapariga impressionável <strong>de</strong> 18 anos, nem com o avô assustado<br />

<strong>de</strong>la. Qual foi o membro da sua legião que telefonou à Alice ontem à<br />

noite e tocou uma cassete com ameaças em cântico?<br />

— Não faço i<strong>de</strong>ia do que está a falar. E está a começar a aborrecer-me.<br />

— A pena negra no peitoril da janela foi um belo toque. Ou pena<br />

simulada, <strong>de</strong>veria eu dizer, mas ela não po<strong>de</strong>ria sabê-lo. Gosta <strong>de</strong> animais<br />

<strong>de</strong> estimação drói<strong>de</strong>s, Menina Cross?<br />

Com langor, Selina ergueu uma mão, passando-a pelo cabelo até às<br />

pontas. — Não gosto mesmo nada <strong>de</strong>…animais <strong>de</strong> estimação.<br />

— Não? Nada <strong>de</strong> gatos ou corvos?<br />

— Isso seria mesmo previsível.<br />

— A Alice acreditava que conseguia mudar <strong>de</strong> forma — disse Eve,<br />

observando <strong>de</strong>pois como Selina sorria. — Será que nos po<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar<br />

esse pequeno talento?<br />

As unhas <strong>de</strong> Selina voltaram a bater. O tom <strong>de</strong> Eve era tão insultuoso<br />

como uma chapada dada com as costas da mão. — Não estou aqui para seu<br />

divertimento. Ou para que a sua mente tacanha me goze.<br />

— É isso que lhe chama? Estava a divertir a Alice com gatos e pássaros<br />

e cânticos ameaçadores através do ‘link <strong>de</strong>la? Como é que se podia sentir<br />

segura na sua própria casa? Era assim uma ameaça tão gran<strong>de</strong> para si?<br />

— Para mim ela não passava <strong>de</strong> um falhanço infeliz.<br />

— Foi vista a ven<strong>de</strong>r substâncias ilegais ao Frank Wojinski.<br />

A mudança brusca fez com que Selina piscasse os olhos. — Agora<br />

com os lábios cerrados, o sorriso não lhe chegava aos olhos. — Se isso fosse<br />

verda<strong>de</strong>, não estaríamos a ter esta conversa aqui em minha casa, mas na<br />

sala <strong>de</strong> interrogatórios. Sou herbalista, repito que com licença, e muitas vezes<br />

vendo e negoceio substâncias perfeitamente legais.<br />

— Planta as suas ervas aqui?<br />

— Por acaso, planto, e <strong>de</strong>stilo as minhas poções e medicamentos.<br />

65


— Gostaria <strong>de</strong> as ver. Porque não me mostra a sua zona <strong>de</strong> trabalho?<br />

— Vai precisar <strong>de</strong> um mandado para isso, e ambas sabemos que não<br />

tem motivo para um.<br />

— Tem razão. Acho que foi por isso que o Frank não se preocupou<br />

em pedir um mandado. — Eve levantou-se lentamente, falando com doçura<br />

— Sabia que ele andava atrás <strong>de</strong> si, mas suspeitou que pu<strong>de</strong>sse entrar<br />

aqui <strong>de</strong>ntro? Não viu isso na sua bola mágica, pois não? — disse Eve enquanto<br />

a respiração <strong>de</strong> Selina se tornou mais forte e ofegante. — O que<br />

pensaria se eu lhe dissesse que ele esteve na sua casa, e registou o que viu, e<br />

o que encontrou?<br />

— Não tem nada. Nada. — Selina ergueu-se. — Ele era um velhote<br />

com pouco juízo e maus refl exos. Vi logo que era polícia da primeira vez<br />

que me tentou seguir. Nunca esteve em minha casa. Ele não lhe disse nada<br />

enquanto estava vivo e agora já não po<strong>de</strong> contar-lhe nada.<br />

— Não? Não acredita em falar com os mortos, Menina Cross? Eu<br />

ganho a vida com isso.<br />

— E acha que eu não reconheço fumo e espelhos, Tenente? — Os<br />

seios espectaculares <strong>de</strong>la constringiram-se contra o material do vestido, enquanto<br />

ela lutava por normalizar a respiração. — A Alice era uma rapariga<br />

tonta que acreditava que podia brincar com as forças das trevas e, <strong>de</strong>pois,<br />

fugir para a sua patética magia branca e para a sua simpática familiazinha.<br />

Pagou o preço pela sua ignorância e cobardia. Mas não às minhas mãos.<br />

Não tenho mais nada a dizer-lhe.<br />

— Por agora, basta. Peabody? — Ela começou a encaminhar-se para<br />

o arco. — O seu fogo está a apagar-se, Menina Cross — disse docemente. —<br />

Em breve não terá mais do que uma mixórdia <strong>de</strong> cinzas.<br />

Selina fi cou on<strong>de</strong> estava, a tremer <strong>de</strong> raiva. Quando a porta se fechou<br />

e a segurança já tinha sido ligada, enrolou as mãos em punhos e gritou com<br />

gana.<br />

Abriu-se um painel na pare<strong>de</strong>. O homem que saiu era alto e dourado.<br />

O peito <strong>de</strong>le brilhava musculoso. Tinha sobre o coração uma tatuagem <strong>de</strong><br />

um bo<strong>de</strong>. Tinha vestido apenas um robe preto aberto, <strong>de</strong>scuidadamente<br />

preso na cintura com um cordão prateado.<br />

— Alban. — Selina correu para ele, envolvendo-o com os braços.<br />

— Pronto, meu amor. — A voz <strong>de</strong>le era grave e apaziguante. — Na<br />

mão que lhe afagava o cabelo estava um gran<strong>de</strong> anel <strong>de</strong> prata esculpido com<br />

um pentagrama invertido. — Não <strong>de</strong>ves <strong>de</strong>sequilibrar os teus chakras.<br />

— Que se fodam os meus chakras. — Ela chorava agora, com <strong>de</strong>sespero,<br />

batendo-lhe como uma criança numa birra cega. — O<strong>de</strong>io-a.<br />

O<strong>de</strong>io-a. Ela tem <strong>de</strong> ser castigada.<br />

Com um suspiro, ele <strong>de</strong>ixou-a abater a fúria na divisão, praguejando<br />

66


e partindo bric-a-brac. Sabia que o ataque passaria mais <strong>de</strong>pressa se ele se<br />

limitasse a observar e a <strong>de</strong>ixasse purgar.<br />

— Quero-a morta, Alban. Morta. Quero que passe por agonias, que<br />

grite por misericórdia, que sangre e se contorça e sangre. Ela insultou-me.<br />

Ela <strong>de</strong>safi ou-me. Só lhe faltou rir-se na minha cara.<br />

— Ela não acredita, Selina. Não tem visão.<br />

Exausta, como sempre <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um ataque <strong>de</strong> raiva, <strong>de</strong>ixou-se cair<br />

no canapé. — Polícias. Toda a minha vida os odiei.<br />

— Eu sei. — Ele pegou numa garrafa alta e estreita e serviu-lhe um<br />

líquido espesso e turvo. — Vamos ter <strong>de</strong> ter cuidado com ela. Ela dá muito<br />

nas vistas. — Ele passou-lhe um cálice. — Mas pensaremos em algo, não é?<br />

— Claro que sim. — Ela voltou a sorrir, dando pequenos goles na mistura.<br />

— Algo muito especial. O amo haveria <strong>de</strong> querer algo…inventivo no<br />

caso <strong>de</strong>la. — Nesse momento ela riu-se com gosto, lançando a cabeça para<br />

trás. A polícia tinha sido o seu calcanhar <strong>de</strong> Aquiles — até ter <strong>de</strong>scoberto um<br />

po<strong>de</strong>r mais elevado. — Vamos torná-la numa crente. Não é, Alban?<br />

— Ela vai acreditar.<br />

Ela bebeu com mais sofreguidão, sentindo o adorável torpor a revestir-lhe<br />

as emoções entrelaçadas. E <strong>de</strong>ixou o cálice cair. — Anda cá e possui-me.<br />

— Com os olhos a brilhar, ela escorregou para baixo. — Obriga-me.<br />

E quando cobriu o corpo <strong>de</strong>la com o <strong>de</strong>le, ela virou a cabeça, mostrou<br />

os <strong>de</strong>ntes e enterrou-os no ombro <strong>de</strong>le para fazer sangue.<br />

— Magoa-me — exigiu ela.<br />

— Com prazer. — Respon<strong>de</strong>u ele.<br />

E quando se separaram, com a paixão violenta saciada, ele fi cou quieto<br />

ao lado <strong>de</strong>la. Sabia que agora ela ia reanimar-se. Iria esfriar e acalmar-se<br />

e iria pensar.<br />

— Esta noite <strong>de</strong>víamos <strong>de</strong>sempenhar uma cerimónia. Reunir o coven<br />

todo para uma Missa Negra. Precisamos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, Alban. Ela não é<br />

fraca e quer <strong>de</strong>struir-nos.<br />

— Não irá fazê-lo. — Desta vez com afecto, ele afagou-lhe a face.<br />

— Não po<strong>de</strong>. Afi nal, ela é apenas uma polícia sem passado e com um futuro<br />

limitado. Mas, como é evi<strong>de</strong>nte, tens razão: vamos convocar o coven.<br />

Vamos <strong>de</strong>sempenhar o rito. E, acho que vamos dar à Tenente Dallas uma<br />

distracção…ou duas. Não vai ter tempo ou inclinação para se preocupar<br />

<strong>de</strong>masiado com a nossa pequena Alice durante muito tempo.<br />

Uma excitação renovada percorreu-a em ondas, uma maré forte que<br />

lhe inundou os olhos. — Quem morre?<br />

— Meu amor. — Ele levantou-a, trespassou-a, suspirou quando os<br />

músculos <strong>de</strong>la se apertaram vigorosamente em redor <strong>de</strong>le. — Só tens <strong>de</strong><br />

escolher.<br />

67


…<br />

— Chateou-a mesmo. Peabody lutava por ignorar o ligeiro suor <strong>de</strong> medo<br />

que lhe secava na pele enquanto Eve conduzia para longe do edifício.<br />

— Era essa a i<strong>de</strong>ia. Agora que sei que o forte <strong>de</strong>la não é o controlo,<br />

conseguirei chateá-la novamente. Ela é puro ego — <strong>de</strong>cidiu Eve. — Imagina,<br />

pensar que caíamos num truque <strong>de</strong> segunda como o fogo.<br />

— Sim. — Peabody conseguiu esboçar um sorriso doentio. —<br />

Imagine. Eve pren<strong>de</strong>u a língua nos <strong>de</strong>ntes e <strong>de</strong>cidiu não repreen<strong>de</strong>r a ajudante.<br />

— Já que estamos numa <strong>de</strong> bruxas, vamos fazer um <strong>de</strong>svio e ver a<br />

tal <strong>de</strong> Isis na Spirit Quest. Ela espreitou do canto do olho para Peabody. —<br />

Bem, talvez atazanasse só um pouco. — Deves po<strong>de</strong>r comprar um talismã<br />

ou algumas ervas — disse ela solenemente. — Tu sabes, para afastar o mal.<br />

Peabody moveu-se no assento. Sentir-se tonta não era tão mau quanto<br />

preocupar-se com ser amaldiçoada. — Não me parece que o faça.<br />

— Depois <strong>de</strong> lidarmos com esta Isis, po<strong>de</strong>mos ir comer um substituto<br />

<strong>de</strong> piza…com muito alho.<br />

— O alho é para vampiros.<br />

— Oh. Po<strong>de</strong>mos pedir ao Roarke que nos empreste algumas armas<br />

antigas <strong>de</strong>le. Com balas <strong>de</strong> prata.<br />

— Lobisomens, Dallas. — Divertida com ambas, Peabody revirou os<br />

olhos. — Vai ser-nos muito útil se tivermos <strong>de</strong> nos <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> bruxaria.<br />

— Então, qual a protecção contra bruxas?<br />

— Não sei — admitiu Peabody. — Mas é certinho que vou <strong>de</strong>scobrir.<br />

68

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!