17.04.2013 Views

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

SABORES PRINCIPAIS 90<br />

91<br />

Cheguei a Estocolmo no dia 28 <strong>de</strong><br />

Agosto <strong>de</strong> 1981. Começava o frio Outono e<br />

a luz do dia ia-se retirando até se apagar<br />

quase por completo, como um prelúdio ao<br />

duro Inverno escandinavo.<br />

Tudo era novo, começava uma nova<br />

vida numa <strong>cultura</strong> totalmente <strong>de</strong>sconhecida<br />

para os meus sentidos.<br />

Neófita e analfabeta, percorria os supermercados<br />

e as lojas da cida<strong>de</strong> que me acolhera.<br />

Os meus olhos abriam-se, assombrados<br />

e curiosos, perante as montras e a<br />

exposição dos diversos artigos, suspeitosamente<br />

comestíveis, que ainda não tinham<br />

nome. Recordo uma família latino-americana<br />

que, entusiasticamente, contava ter<br />

<strong>de</strong>scoberto uma saborosa carne enlatada, a<br />

muito bom preço, da marca Kitekat. Os infelizes<br />

consumiam carne para gatos sem o<br />

saber!<br />

Com esta lamentável e vergonhosa<br />

experiência, redobrei o cuidado com as<br />

minhas compras. Consegui um dicionário<br />

sueco-espanhol, e assim começou o meu<br />

amaldiçoado processo <strong>de</strong> aprendizagem <strong>de</strong><br />

um idioma com nove vogais e consoantes<br />

impronunciáveis para as minhas cordas<br />

vocais.<br />

Pouco a pouco, fui-me habituando ao<br />

som e à melodia escandinavos. Mas o mais<br />

difícil foi o conhecimento e a adaptação<br />

das minhas papilas gustativas. Como apreciar<br />

umas sardinhas azuis e fritas com marmelada<br />

<strong>de</strong> arandanos 1 , ou um pudim <strong>de</strong><br />

sangre y dulce, acompanhados também <strong>de</strong><br />

marmelada e batatas cozidas, ou o suspeito<br />

arenque do Norte, fermentado em água e<br />

levedura, embalado em boiões, acompanhado<br />

com cerveja, vodca ou licor <strong>de</strong><br />

absinto, e comido no início da Prima-vera,<br />

sem a presença das crianças nos terraços ou<br />

jardins, porque cheira sempre a estrume?!<br />

Como não estranhar, nestas circunstâncias<br />

adversas – quase um atentado terrorista ao<br />

paladar –, os doces pêssegos amadurecidos<br />

pelo Sol e amontoados, todas as sextas-feiras<br />

pela manhã, no mercado <strong>de</strong> frutas e<br />

hortaliças do bairro popular <strong>de</strong> São<br />

Miguel?! Ou os tomates amadurecidos com<br />

a rama, com sabor a tomate, ou os figos a<br />

secarem numa gran<strong>de</strong> cesta <strong>de</strong> vime à espera<br />

do Inverno?!<br />

Recordo um sonho recorrente no meu<br />

exílio: regressava a casa, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> muitos<br />

anos, os meus pais tinham envelhecido,<br />

atravessava o guarda-vento ver<strong>de</strong> da porta<br />

principal da minha casa, caminhava pelo<br />

corredor estreito em direcção à cozinha<br />

on<strong>de</strong> havia sempre uma mesa gran<strong>de</strong> e<br />

generosa, as ca<strong>de</strong>iras colocadas para cada<br />

irmão e parentela adjacente, como uma tia<br />

solteirona que nunca soube a diferença<br />

entre o orégão e o orgasmo, mas que sabia<br />

<strong>de</strong> cor os poemas do romântico Becker.<br />

Voltava a cruzar o largo corredor, as portas<br />

<strong>de</strong> dois batentes dos quartos principais, até<br />

ao fundo, on<strong>de</strong> estavam a sala <strong>de</strong> jantar, no<br />

pátio interior, e a cozinha, <strong>de</strong>masiado<br />

pequena para dar <strong>de</strong> comer a tão numerosa<br />

família. E, no meu sonho, via a mesa repleta<br />

<strong>de</strong> frutos <strong>de</strong> Verão: pêssegos amarelos e<br />

vermelhos, damascos, anonas, lúcumas 2 ,<br />

nêsperas, papaias, uvas, melões, melancias.<br />

Ao <strong>de</strong>spertar <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong>sses sonhos,<br />

levantava o meu corpo com esforço e dirigia-me<br />

à minha própria realida<strong>de</strong>, frente à<br />

janela, <strong>de</strong>scascando a ácida laranja universal<br />

como o meu <strong>de</strong>sencanto, enquanto<br />

caíam lentamente os flocos <strong>de</strong> neve, até<br />

formar uma camada <strong>de</strong> distância entre esse<br />

solo e o meu.<br />

Os sonhos são lampejos eléctricos,<br />

<strong>de</strong>sejos incrustados da nossa realida<strong>de</strong>. Era<br />

a minha lista <strong>de</strong> perdas que gotejava como<br />

uma chuva fina e refrescante. Suponho<br />

que, nessas circunstâncias <strong>de</strong> afastamento,<br />

sobredimensionava os afectos e fazia uma<br />

selecção aleatória das memórias. Só <strong>de</strong>ixava<br />

as passagens harmoniosas e benignas para<br />

me reconciliar com tanto sofrimento passado.<br />

A mesa repleta <strong>de</strong> frutos representava<br />

os meus pais, as suas ausências, o lamento<br />

que eu intuía <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a outra margem e o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> sobreviver à separação que me<br />

era imposta.<br />

Na longa costa do meu país, abundam<br />

peixes e mariscos, saborosos e apreciados<br />

por isso. A sul, existe um mexilhão chamado<br />

«choro zapato», apelidado assim<br />

pelo seu tamanho gran<strong>de</strong>, como o <strong>de</strong> um<br />

sapato <strong>de</strong> um adulto. Em <strong>de</strong>terminada<br />

época do ano, a sua carne é suave como<br />

manteiga e costuma-se comê-lo cru com<br />

umas gotinhas <strong>de</strong> limão. Foi assim que o

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!