Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
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Uma cena do romance regionalista <strong>de</strong><br />
Nuno <strong>de</strong> Montemor, Maria Mim 6 , surpreen<strong>de</strong><br />
o Castelo do Sabugal com gran<strong>de</strong> felicida<strong>de</strong><br />
estética no seu quadro heróico-<br />
-romântico, que vale a pena transcrever:<br />
«Intacto, garboso e sempre vivo, continuamente<br />
embalado pela água azul do<br />
Rio Côa que, em jeitos <strong>de</strong> pajem, graciosamente<br />
se lhe curva, a banhá-lo, dir-se-ia<br />
que os seus fundamentos criaram raízes<br />
vegetais no leito do rio, tão viçosa é a<br />
escarpa íngreme que a ele conduz, e sobre<br />
a qual o castelo assenta enramado <strong>de</strong> heras<br />
e flores, como altar <strong>de</strong> Maio em constante<br />
Primavera. (...) Belo e encantado castelo<br />
das cinco quinas, como, no dizer do povo,<br />
não há outro em Portugal! Que o rio<br />
encurvasse pelo nascente, um braço, a<br />
É um cenário <strong>de</strong> fascínio<br />
da arte rupestre,<br />
«museu <strong>de</strong> história da arte<br />
ao ar livre<br />
como não há outro<br />
no mundo com esta<br />
profundida<strong>de</strong> temporal.<br />
enlaçar a cintura da vila, para a mudar<br />
numa ilha branca e ver<strong>de</strong> e o tão enamorado<br />
Almourol não passaria <strong>de</strong> um pobre e<br />
ressequido esqueleto.»<br />
O apontamento final <strong>de</strong>ste trecho convida-nos<br />
a consi<strong>de</strong>rar mais em <strong>de</strong>talhe o<br />
percurso sinuoso do rio. E também aqui o<br />
Côa se mostra raro: é um dos poucos rios<br />
em Portugal que correm <strong>de</strong> sul para norte,<br />
o que, olhando-o no mapa, o faz parecer<br />
como que um rio ao invés – sobe em vez<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>scer, acentuando a imagem <strong>de</strong> um rio<br />
esforçado, no penoso afã <strong>de</strong> levar à foz um<br />
caudal atormentado.<br />
Nasce na freguesia <strong>de</strong> Fóios na serra<br />
das Mesas, também conhecida por serra da<br />
Nave Molhada, pequeno como qualquer<br />
outro, mas o seu caudal vai engrossando<br />
até <strong>de</strong>saguar, majestoso e farto, na margem<br />
esquerda do rio Douro, próximo <strong>de</strong> Vila<br />
Nova <strong>de</strong> Foz Côa (que do facto lhe tira o<br />
nome). Da nascente até à foz são 135 km<br />
<strong>de</strong> tortuoso leito, alimentado por muitos<br />
afluentes (sendo os principais na margem<br />
direita, as ribeiras <strong>de</strong> Alfaiates e Adão e, na<br />
esquerda, as ribeiras <strong>de</strong> Noémi, Gaiteiros,<br />
Cabras, Massucine e Tamegal).<br />
Atravessa, qual espinha dorsal, o concelho<br />
do Sabugal, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> próximo da raia,<br />
passa, como se viu, na vila do Sabugal e<br />
segue a este das freguesias <strong>de</strong> Valongo e<br />
Castelo Mendo, a oeste dos concelhos <strong>de</strong><br />
Almeida e <strong>de</strong> Pinhel, até entrar no Douro<br />
em Vila Nova <strong>de</strong> Foz Côa.<br />
Por volta <strong>de</strong> 1800, Frei Bernardo <strong>de</strong><br />
Brito 7 <strong>de</strong>screve-o com pitoresco rigor da<br />
seguinte forma: «É rio <strong>de</strong> muita cópia <strong>de</strong><br />
peixe, como são barbos, bogas, bordalos e<br />
outros modos <strong>de</strong> pescaria. A cor das suas<br />
águas é pouco clara, tirante a ver<strong>de</strong> escuro;<br />
é <strong>de</strong> malíssima digestão, e mui pesada,<br />
causa tristeza, dores <strong>de</strong> barriga e <strong>de</strong> cabeça,<br />
engrossa o entendimento e, para mulheres<br />
formosas, é <strong>de</strong> muito pouco proveito, porque<br />
lhe dana o carão notavelmente: só tem<br />
virtu<strong>de</strong> para tingir lãs e cal<strong>de</strong>ar ferro, que<br />
neste particular é excelente.»<br />
Porém, é sabido que «não há trutas<br />
como as do Côa» e também é verda<strong>de</strong> que<br />
as suas águas serviram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre para<br />
irrigar lameiros e campos <strong>de</strong> cultivo,<br />
fazendo das suas margens viveiros férteis<br />
das localida<strong>de</strong>s por on<strong>de</strong> passa.<br />
Mas a primeira «biografia» total do<br />
rio traça-se pela primeira vez a partir do<br />
«Inquérito do Ministério do Reino dirigido<br />
às Paróquias em 1758». Consta <strong>de</strong><br />
19 perguntas que inci<strong>de</strong>m sobre a origem,<br />
características hídricas, aproveitamentos,<br />
construções, navegabilida<strong>de</strong> e<br />
até eventual mineração no caudal. Assim<br />
se fica a saber do cultivo <strong>de</strong> algumas partes<br />
das margens, das espécies arbóreas<br />
que acompanham o curso do rio que tem<br />
(tinha) muitos moinhos e algumas pontes,<br />
tudo em 10 conjuntos <strong>de</strong> respostas<br />
(tantos quantas as paróquias) <strong>de</strong> análise<br />
<strong>de</strong>veras interessante.<br />
Pelo pormenor e pela curiosida<strong>de</strong> das<br />
observações, não resisto a transcrever o<br />
teor da resposta assinada pelo aba<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Quadrazais, Paulo Correia da Costa, datada<br />
<strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> Abril <strong>de</strong> 1758:<br />
1 In J. Leite <strong>de</strong> Vasconcelos,<br />
Religiões da Lusitânia<br />
(3 volumes, 1897, 1905, 1913).<br />
2 In J. Pinharanda Gomes,<br />
Geógrafos do Côa, Actas do<br />
Congresso do 7.º Centenário<br />
do Foral – Sabugal, 1996,<br />
págs. 97-108.<br />
3 In Frei Joaquim Santa<br />
Rosa Viterbo, Elucidário<br />
das Palavras, Termos<br />
e Frases que em Portugal<br />
Antigamente se Usavam,<br />
(2 volumes, 1798-99).<br />
4 In Joaquim Manuel Correia,<br />
Terras <strong>de</strong> Riba-Côa<br />
– Memórias sobre o Concelho<br />
do Sabugal, ed. da Fe<strong>de</strong>ração<br />
dos Municípios da Beira-Serra,<br />
Lisboa, 1946, pág. 14.<br />
5 D. Dinis teria conquistado ou<br />
tomado posse efectiva <strong>de</strong>stas<br />
terras, em 1296, <strong>de</strong> regresso<br />
<strong>de</strong> uma mal-sucedida empresa<br />
em terras <strong>de</strong> Leão, ao apoiar<br />
as pretensões ao trono do tio<br />
<strong>de</strong> Fernando IV <strong>de</strong> Castela<br />
(ainda menor ao tempo) e que,<br />
por ilegítimas, se goraram. Diz o<br />
Dr. Joaquim Correia: «O certo é<br />
que D. Dinis invadiu a comarca<br />
<strong>de</strong> Riba Côa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Ribeira<br />
<strong>de</strong> Tourões e o Rio Águeda, que<br />
ficou sendo a linha divisória<br />
dos dois países até ao Côa, que<br />
anteriormente separava as duas<br />
nações.» O direito à posse <strong>de</strong>stas<br />
terras por Portugal, anterior<br />
mesmo a esta expedição, parece,<br />
aliás , ser implicitamente<br />
reconhecido pelo texto<br />
do Tratado <strong>de</strong> Alcanizes.<br />
6 Nuno <strong>de</strong> Montemor (pseudónimo<br />
literário <strong>de</strong> Joaquim Augusto Álvares<br />
<strong>de</strong> Almeida), Maria Mim,<br />
1939, 4.ª ed. da Câmara Municipal<br />
do Sabugal, 2003.<br />
7 Frei Bernardo <strong>de</strong> Brito, Geografia<br />
Antiga da Lusitânia (1804), ed.<br />
1957, págs. 22-23.