Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
RIOS PROFUNDOS 76<br />
Côa, o rio que nunca<br />
viu o mar…<br />
Maria Lúcia Garcia Marques<br />
Outono. Fim da tar<strong>de</strong>.A estrada velha <strong>de</strong>sce, dormente, até<br />
ao rio. Na penúltima curva, em brutal colisão, extinguira-se,<br />
havia meses, uma vida que me era cara. E esta era uma espécie<br />
<strong>de</strong> romagem, in memoriam, na assunção <strong>de</strong> um luto que o curso<br />
ensombrecido do rio, lá em baixo, parecia acompanhar. No local,<br />
espiava as marcas do <strong>de</strong>sastre quando, vindo do fundo da valeta,<br />
certeiro, direito a mim, um lampejo <strong>de</strong> vidro me fez <strong>de</strong>scobrir<br />
os óculos que minha mãe usara. Parecia que todo aquele tempo<br />
tinham esperado ali por mim para me dizerem que olhasse por<br />
quem ficara. Recolhi-os piedosamente e, numa oração, olhei o rio.<br />
Na quase noite, pressenti-o mais do que o vi e pareceu-me que<br />
o seu marulhar se aquietara, como se, guardião daquela vonta<strong>de</strong><br />
última, cumprida a missão, pu<strong>de</strong>sse seguir mais em paz o seu<br />
caminho. Requiescat...<br />
Bo<strong>de</strong> cuja cabeça se encontra animada, Quinta da Barca (foto CNART), Instituto Português <strong>de</strong> Arqueologia<br />
77