Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
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CEM ANOS DE SOLIDÃO 74 75<br />
Os filhos,<br />
Tucumán vinte anos <strong>de</strong>pois<br />
Julio Pantoja<br />
Com o nome <strong>de</strong> «Operativo In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ncia», em 1975, lançava-se em Tucumán, a mais pequena província argentina, uma feroz<br />
repressão movida contra as organizações populares, com o pretexto <strong>de</strong> combater a guerrilha.<br />
Com o golpe <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> Março <strong>de</strong> 1976, que durou até 1983, a violência estatal aperfeiçoou-se e esten<strong>de</strong>u o seu braço<br />
a todo e qualquer opositor que ousasse levantar a voz.<br />
Esta violência, que logo se generalizou a todo o país, <strong>de</strong>ixou, em Tucumán, um saldo <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecidos, assassinados,<br />
presos, torturados e exilados.<br />
Duas décadas <strong>de</strong>pois, o mesmo militar que dirigiu aquela repressão e que foi interventor <strong>de</strong>ssa ditadura na província, o general<br />
Antonio Domingo Bussi, foi eleito governador nas eleições <strong>de</strong>mocráticas, apesar das acusações <strong>de</strong> genocídio, torturas e rapto <strong>de</strong> bebés.<br />
Com um endémico atraso económico, político e social, face ao resto do país, esta convulsionada província do Noroeste argentino<br />
continua a <strong>de</strong>bater-se, até hoje, entre um tenebroso passado marcado a fogo pelo zumbido das balas dos anos 70 e a formalida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>mocrática envenenada pela corrupção da mudança <strong>de</strong> século.<br />
A FOTOGRAFIA E ESTE ENSAIO FOTOGRÁFICO<br />
A partir do triunfo, nas eleições da minha província, do general genocida, conjuntamente com o vigésimo aniversário do<br />
golpe militar, <strong>de</strong>diquei-me sistematicamente a retratar os filhos <strong>de</strong> vítimas da repressão em Tucumán.<br />
A princípio, foi talvez apenas um impulso quase ingénuo <strong>de</strong> resistência conduzido pela indignação, mas, aos poucos, foi-se<br />
consolidando e tomando a forma <strong>de</strong> uma tomada <strong>de</strong> posição lúcida, usando a minha ferramenta: a fotografia.<br />
Um dia, quando estava a começar este trabalho, a curadora <strong>de</strong> fotografia <strong>de</strong> um importante museu dos Estados Unidos fez-me<br />
uma brilhante pergunta que serviu <strong>de</strong> síntese e <strong>de</strong> <strong>de</strong>safio para este ensaio. Interrogou-me sobre a eventual diferenciação visual<br />
entre um grupo <strong>de</strong> adolescentes cujos pais haviam <strong>de</strong>saparecido e os restantes adolescentes.<br />
A minha hipótese <strong>de</strong> trabalho foi simples. Sempre estive certo <strong>de</strong> que <strong>de</strong>via existir um <strong>de</strong>nominador comum entre aqueles que,<br />
sendo <strong>de</strong> uma mesma geração, tinham passado por tanto sofrimento do mesmo tipo, atormentados pelo Estado terrorista. Se o nexo<br />
partia da mesma experiência <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong>veria existir o seu correlativo no visual. As respostas chegavam à medida que o trabalho<br />
se <strong>de</strong>senvolvia.<br />
Sob o ponto <strong>de</strong> vista estético, encontrei duas linhas sobre as quais seria interessante trabalhar. Uma, po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>nominá-la<br />
horizontal, e está relacionada com o geracional: com um grupo <strong>de</strong> jovens marcado pelo rock, e pela música popular em geral, e por<br />
um importante compromisso social e político. E aqui se produz o cruzamento vertical. Este compromisso não é um signo característico<br />
dos nossos dias, mas relaciona-se com os agitados anos 70 que tiveram os seus pais como protagonistas. Mas aqui surge outra<br />
relação: naquela época, os seus pais teriam aproximadamente as ida<strong>de</strong>s que eles têm hoje.<br />
Outro ponto sempre importante, mas vital neste caso, é a relevância do nome que acompanha cada retrato porque permite preservar<br />
a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e a história <strong>de</strong> cada um. As fotos sem nome são fotos <strong>de</strong> «NN», como classificavam os militares as suas vítimas.<br />
Eu <strong>de</strong>veria situar-me nos antípodas.<br />
Simultaneamente, era óbvio que não tinha interesse em retratar estes jovens <strong>de</strong> uma forma fria. A minha i<strong>de</strong>ia era mais profunda.<br />
A intenção era dar uma pincelada muito mais subjectiva e pessoal sobre este grupo humano tão particular.<br />
Tirar cada uma <strong>de</strong>stas fotografias levou horas, até dias, <strong>de</strong> conversas e confidências, com álbuns <strong>de</strong>sbotados e fotos também<br />
<strong>de</strong>scoloridas entre as mãos. Logo a partir dos primeiros contactos, quase sempre telefónicos, propunha-lhes que escolhessem um<br />
local que se relacionasse com as suas histórias, vivências e recordações mais íntimas. Assim, surgem casas <strong>de</strong> avós, pátios <strong>de</strong><br />
escolas, praças e, claro, os quartos da adolescência ainda recente. Deste modo, com este clima e algumas lágrimas que embaciavam<br />
os olhos – <strong>de</strong> ambos –, a pouco e pouco foram-se esboçando, melancolicamente, as imagens <strong>de</strong>ste ensaio.