Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
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A INVENÇÃO DA AMÉRICA 62<br />
63<br />
Durante estes meses<br />
em que no hemisfério<br />
sul sofremos o<br />
Inverno e a Europa<br />
<strong>de</strong>sfruta do Verão, tive<br />
a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar<br />
nos Estados Unidos<br />
em alguns fóruns<br />
sobre literatura, política<br />
e <strong>cultura</strong>, nos quais<br />
se <strong>de</strong>bateu com paixão,<br />
e <strong>de</strong> que modo, o tema<br />
da utopia na América<br />
Latina. Até há pouco<br />
tempo, a palavra utopia<br />
tinha caído em <strong>de</strong>scrédito,<br />
assemelhava-se à<br />
irresponsabilida<strong>de</strong>, a<br />
uma espécie <strong>de</strong> infantilismo<br />
progressista, e<br />
conceitos como «pragmatismo»,<br />
«realismo»,<br />
«coisismo», haviam perdido<br />
o brilho, e os políticos<br />
renovados, antigos<br />
militantes <strong>de</strong> esquerda, ontem com<br />
botas, boina e barba, hoje com pós-graduação<br />
numa universida<strong>de</strong> dos Estados Unidos,<br />
impecável traje Giorgio Armani e uma barbita<br />
incipiente, com mais <strong>de</strong> cinco dias, os que ao<br />
<strong>de</strong>ixarem o po<strong>de</strong>r passam <strong>de</strong> imediato a abrir<br />
escritórios <strong>de</strong> consultoria e «lobbismo», ou a<br />
ocupar uma cómoda poltrona <strong>de</strong> couro nas<br />
direcções das empresas que há décadas se<br />
haviam proposto expropriar. O lema parecia<br />
ser: If you cannot beat them,join them! Apesar <strong>de</strong>stas<br />
mudanças e do po<strong>de</strong>rio militar dos Estados<br />
Unidos, li<strong>de</strong>rados por um presi<strong>de</strong>nte que crê<br />
possuir uma missão messiânica no mundo, a<br />
pergunta persiste: existe ainda a utopia como<br />
força inspiradora <strong>de</strong> mudanças ou ressaibo<br />
do passado? Ter-se-ão efectivamente os intelectuais<br />
latino-americanos <strong>de</strong>spedido da utopia,<br />
como um horizonte i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> um mundo<br />
mais justo, ou preocupam-se hoje apenas<br />
com estabelecer priorida<strong>de</strong>s novas, mais<br />
orientadas para a sua incorporação no mercado<br />
global, para a circulação <strong>de</strong> traduções e<br />
consolidação da sua carreira? Estas questões<br />
não são menores num continente que nasceu<br />
pela mão da utopia e que <strong>de</strong>ve gran<strong>de</strong><br />
parte dos seus dramas e momentos épicos<br />
Ter-se-ão efectivamente<br />
os intelectuais<br />
latino-americanos<br />
<strong>de</strong>spedido da utopia,<br />
como um horizonte i<strong>de</strong>al<br />
<strong>de</strong> um mundo mais justo,<br />
ou preocupam-se hoje<br />
apenas com estabelecer<br />
priorida<strong>de</strong>s novas,<br />
mais orientadas<br />
para a sua incorporação<br />
no mercado global,<br />
para a circulação<br />
<strong>de</strong> traduções e consolidação<br />
da sua carreira?<br />
precisamente à sua<br />
obsessão utópica.<br />
Ao ser «<strong>de</strong>scoberto»,<br />
o Novo Mundo<br />
emerge como possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um novo<br />
começo para a Europa.<br />
A Europa encontra-se<br />
numa etapa <strong>de</strong> saturação,<br />
não <strong>de</strong>scola ainda<br />
completamente para o<br />
Renascimento, e a religião<br />
continua a reprimir<br />
a expressão <strong>de</strong> um<br />
pensamento livre dos<br />
grilhões das escrituras,<br />
esse pensamento que<br />
permitirá o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
das ciências e<br />
as posições in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
face à teologia.<br />
A América surge como<br />
possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
novo começo. Raramente,<br />
talvez nunca, a<br />
humanida<strong>de</strong> se encontrou em semelhante<br />
circunstância: a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> começar <strong>de</strong><br />
novo, como quando o indivíduo, após uma<br />
crise, planeia iniciar uma nova existência. Por<br />
isso Colombo, que era um pragmático e <strong>de</strong><br />
certo modo um oportunista, acredita que o<br />
Paraíso está na <strong>de</strong>sembocadura do Orinoco;<br />
por isso Tomás Moro, procurando dotar a sua<br />
visão <strong>de</strong> realismo, instala a sua socieda<strong>de</strong> utópica<br />
na América; e por isso Ponce <strong>de</strong> León<br />
procura aqui, e com serieda<strong>de</strong> e convicção<br />
plenas, a fonte da eterna juventu<strong>de</strong>. E por isso<br />
Fernando Cortez parte para estas terras em<br />
busca das amazonas, que nunca foram<br />
encontradas, mas que legaram o seu nome à<br />
selva americana, hoje em perigo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sflorestação;<br />
e por isso tantos <strong>de</strong>mandaram o El<br />
Dorado, a Cida<strong>de</strong> dos Césares, dos grifos, dos<br />
tritões, dos dragões, dos anões, das sereias e<br />
dos gigantes. O que na Europa podia ficar<br />
reduzido a folclore, a lenda e relato para ouvir<br />
à volta <strong>de</strong> uma fogueira, na América movia<br />
exércitos, <strong>de</strong>struía vidas, oprimia povos inteiros,<br />
criava fortunas.<br />
Mas a utopia não acaba ali nas nossas terras<br />
latino-americanas. A luta pela in<strong>de</strong>pendência<br />
e a consolidação das nossas nações é