17.04.2013 Views

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

VIDAS CONTADAS 56 57<br />

gabinete do Museu. Estava nervoso,<br />

diferente, tenso. Viajava<br />

muito, havia regressado famoso,<br />

e tinha-se mudado várias vezes,<br />

fugindo dos ruídos que o perturbavam<br />

facilmente, o ladrar<br />

dos cães, as brigas dos gatos, a<br />

estridência dos vizinhos, o ruído<br />

das ruas. Algo se <strong>de</strong>smoronava<br />

subtilmente entre ele e Celia, e o<br />

amor pereceu neste caos. Separaram-se<br />

em 1964, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> terem<br />

partilhado a vida durante<br />

mais <strong>de</strong> vinte anos. Ela não o tinha<br />

acompanhado nas suas viagens.<br />

Ele ia com frequência ao<br />

Chile para acompanhamento psiquiátrico.<br />

A minha numerosa e conservadora<br />

família nunca conseguiu<br />

compreen<strong>de</strong>r por que José<br />

<strong>de</strong>ixou Celia e, muito menos,<br />

que tivessem <strong>de</strong>cidido dar-se até<br />

ao fim.A minha avó, sim, tê-lo-<br />

-ia compreendido. Mas já não<br />

estava viva, na altura. Discordando<br />

da política familiar, eu ia<br />

buscá-lo, às vezes, à Galeria <strong>de</strong><br />

Arte on<strong>de</strong> trabalhava a sua nova<br />

mulher, a chilena Sibila Arredondo.<br />

Uma vez estivemos a tomar<br />

café no «Viena» com Ángel<br />

Rama, ao lado da Galeria. Eu<br />

planeava sair do Peru, já estava<br />

casada e tinha três filhos mas<br />

queria viajar, e disso falámos,<br />

como ao ir ao México havia <strong>de</strong>cidido<br />

regressar. Deu-me o<br />

nome <strong>de</strong> alguns amigos, o<br />

mesmo Ángel que não voltei a<br />

ver senão num congresso em<br />

Austin. Também se queixou da<br />

sua saú<strong>de</strong>, José estava muito<br />

tenso, era verda<strong>de</strong>, estávamos<br />

em finais <strong>de</strong> 1968. Fomos à Galeria<br />

porque me disse que queria<br />

que conhecesse Sibila: era<br />

uma mulher jovem, olhos <strong>de</strong><br />

expressão profunda, perspicaz,<br />

com um véu cálido no olhar.<br />

Fiquei surpreendida, fazia-me<br />

lembrar a minha tia Celia.<br />

Alicia e Celia continuaram a<br />

viver juntas.Alicia sofria <strong>de</strong> uma<br />

doença que a incapacitou fisicamente,<br />

hoje creio que foi a<br />

doença Lou Gherig. Trabalhou até<br />

po<strong>de</strong>r no Museu, e Luis Valcárcel,<br />

ao ver as dificulda<strong>de</strong>s que tinha<br />

para se <strong>de</strong>slocar, ce<strong>de</strong>u-lhe o seu<br />

gabinete <strong>de</strong> director no primeiro<br />

piso. Morreu nos braços <strong>de</strong> Celia,<br />

a 27 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong> 1968.<br />

Alegres, jovens,<br />

apaixonados. Tudo<br />

o que os ro<strong>de</strong>ava<br />

adquiria um tom <strong>de</strong><br />

beleza e plasticida<strong>de</strong>.<br />

As suas roupas, as suas<br />

coisas, a disposição<br />

dos móveis,<br />

os souvenirs, algumas<br />

plantas, os gatos,<br />

sem os quais José<br />

não podia passar.<br />

Recordando-a, José María escreveu<br />

no diário El Comercio aquele<br />

que seria um dos seus últimos<br />

artigos:<br />

«Alicia Bustamante Vernal<br />

fazia parte da elite artística limenha,<br />

teoricamente convencida<br />

do <strong>de</strong>stino ilimitado da arte e da<br />

<strong>cultura</strong> peruanas, a chamada arte<br />

indígena (…) nas suas apaixonadas<br />

viagens pelos povos serranos<br />

chegou a cumprir uma função<br />

inestimável (…) chegou a<br />

ser unicamente o que tantas ve-<br />

zes se disse <strong>de</strong>la: que foi quem<br />

pela primeira vez ofereceu a<br />

Lima uma exposição <strong>de</strong> arte popular<br />

peruana (1939), pela primeira<br />

vez alcançou a façanha <strong>de</strong><br />

expor a arte tradicional peruana<br />

nas capitais europeias (1959),<br />

tudo isto sem nunca ter tido fortuna<br />

pessoal; mas, ainda assim,<br />

esta não foi a melhor obra <strong>de</strong> Alicia<br />

Bustamante. Igualmente importante<br />

foi que ela se convertera<br />

numa ponte viva entre os dois<br />

mundos <strong>cultura</strong>is, ainda que<br />

hoje muito separados, mas que o<br />

estavam muito mais quando ela<br />

partiu para os campos para recompilar<br />

a arte indígena. Consumida<br />

pelas “luzes” e pelo amor<br />

à obra <strong>de</strong> todos os artífices índios<br />

e mestiços <strong>de</strong> quem ela se aproximou,<br />

pô<strong>de</strong>, por sua vez, mostrar<br />

a esses artífices a mudança<br />

que se estava a operar no outro<br />

universo social do país. Ela, Alicia,<br />

tinha o aspecto, o rosto típico<br />

dos menosprezadores que<br />

formavam a casta dos dominadores,<br />

mas Alicia era diferente.<br />

Apesar <strong>de</strong> não falar quechúa, ela<br />

conquistava num instante… a<br />

confiança e o afecto dos oleiros,<br />

tecelães, fazedores <strong>de</strong> imagens…<br />

convencia que nem todos os<br />

“mistis”, nem todos os “brancos”<br />

eram surdos e como que<br />

feitos <strong>de</strong> outros materiais misteriosamente<br />

impenetráveis e<br />

odiosos… Sem dúvida, a difusão<br />

da arte popular e o que este feito<br />

representa para a <strong>cultura</strong> peruana<br />

<strong>de</strong>vem muito a Alicia Bustamante.<br />

Ninguém duvida que o<br />

país lhe <strong>de</strong>va a ela mais do que a<br />

ninguém.»<br />

José Maria suicidou-se finalmente<br />

a 2 <strong>de</strong> Dezembro <strong>de</strong><br />

1969. No seu leito <strong>de</strong> morte,<br />

mandou chamar Celia, tendo a<br />

seu lado o seu amigo Carlos<br />

Cueto. E havia muitas pessoas, os<br />

meus tios tinham sido do Partido

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!