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Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

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A avó chamou-me mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois<br />

do almoço como sempre,<br />

para conversar. Desta vez <strong>de</strong>i-me<br />

conta <strong>de</strong> que, à cabeceira da<br />

enorme mesa, não iria ouvir rádio.<br />

– Vem Yola, lê-me agora o livro<br />

<strong>de</strong> José. Conta-me como são<br />

as ilustrações.<br />

E tirou do seu regaço um<br />

exemplar novinho. Era um livro<br />

<strong>de</strong> muitas páginas que lhe <strong>de</strong>screvi<br />

minuciosamente, as notas<br />

<strong>de</strong> rodapé, tudo. A minha avó,<br />

que tinha crescido na Europa, regressou<br />

ao Peru aos 26 anos para<br />

se casar com o senhor Bustamante,<br />

<strong>de</strong> Arequipa. Ela falava<br />

cinco idiomas mas preferia o alemão.<br />

Sabia <strong>de</strong> cor poemas <strong>de</strong><br />

Göethe, Schiller. Ao ler-lhe Yawar<br />

Fiesta, <strong>de</strong>tínhamo-nos nas palavras<br />

quechúas.<br />

– Parece alemão. Gostarão as<br />

pessoas do uso do quechúa num<br />

livro?<br />

«O que sou? Um homem<br />

civilizado que não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />

ser, na medula, um indígena do<br />

Peru; indígena, não índio. E assim<br />

caminhei pelas ruas <strong>de</strong> Paris<br />

e Roma, <strong>de</strong> Berlim e Buenos<br />

Aires…»<br />

Algumas noites, quando<br />

acabávamos <strong>de</strong> jantar na longa<br />

mesa presidida pela minha avó<br />

e à qual se sentavam os meus<br />

três tios, os sete netos <strong>de</strong> então<br />

e os meus pais, os meus tios escolhiam<br />

alguns <strong>de</strong> nós para<br />

irem com eles à estação central<br />

dos Correios na Praça <strong>de</strong> Armas<br />

meter as suas cartas. Levavam-<br />

-nos <strong>de</strong> mão dada pela névoa<br />

<strong>de</strong> Lima, às vezes sob uma<br />

chuva miudinha. Lima não era<br />

ainda uma gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>spersonalizada.<br />

Tinha um discreto<br />

sabor colonial, com as<br />

suas varandas coloniais que se<br />

viam na noite como caixinhas<br />

<strong>de</strong> encaixe recortadas pela luz<br />

interior. Por vezes, comentavam<br />

a última reunião na Peña, o seu<br />

trabalho. Apesar <strong>de</strong> não captar<br />

gran<strong>de</strong> parte das suas conversas,<br />

sentia que os três possuíam algo<br />

que me fazia vê-los <strong>de</strong> forma<br />

diferente.<br />

Outras noites, José falava-nos<br />

em quechúa, fazendo recordar o<br />

que tínhamos aprendido nas<br />

nossas férias em Huariaca, a pequena<br />

povoação na zona mineira<br />

on<strong>de</strong> o meu pai se tinha estabe-<br />

Lima não era ainda<br />

uma gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>spersonalizada.<br />

Possuía um discreto<br />

sabor colonial,<br />

com as suas varandas<br />

coloniais que se viam<br />

na noite como<br />

caixinhas <strong>de</strong> encaixe<br />

recortadas pela<br />

luz interior.<br />

lecido para ven<strong>de</strong>r ma<strong>de</strong>ira para<br />

as minas. Ensinava-nos algumas<br />

frases e, quando as estreávamos<br />

com os nossos amigos da povoação,<br />

convertiam-se em piadas picantes<br />

ou palavrões. Ainda hoje<br />

uso algumas <strong>de</strong>las. Os meus tios<br />

também viajaram pelo México e<br />

falaram muito <strong>de</strong>sse país. Fizeram<br />

uma gran<strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> com o<br />

revolucionário mexicano Moisés<br />

Sáenz. Uma fotografia sua estava<br />

em lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, ao lado do<br />

cavalete da minha tia Alicia. Décadas<br />

<strong>de</strong>pois, numa reunião <strong>cultura</strong>l<br />

nos Estados Unidos, cruzei-<br />

-me com uma sobrinha <strong>de</strong> Sáenz<br />

que comigo queria confirmar<br />

<strong>de</strong>talhes daquela relação amorosa.<br />

Os tios falavam da arte popular<br />

peruana e mexicana, ameaçada<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>struição pelo turismo,<br />

pela pobreza e pelo <strong>de</strong>srespeito<br />

pelos índios. Quando se punham<br />

a trabalhar, estavam a uma<br />

gran<strong>de</strong> distância, num mundo<br />

que eu admirava e que os fazia<br />

viver como só eles eram.<br />

Alegres, jovens, apaixonados.<br />

Tudo o que os ro<strong>de</strong>ava adquiria<br />

um tom <strong>de</strong> beleza e plasticida<strong>de</strong>.<br />

As suas roupas, as suas<br />

coisas, a disposição dos móveis,<br />

os souvenirs, algumas plantas, os<br />

gatos, sem os quais José não podia<br />

passar.Ainda os vejo: José <strong>de</strong>dilhando<br />

o seu charango, no ócio<br />

<strong>de</strong> uma tar<strong>de</strong> feliz, cantando suavemente<br />

hinos que me eram familiares,<br />

ou também o refrão<br />

«Wifalalaaaa! Wifalalaaaaa!». De<br />

vez em quando, José começava a<br />

dançar. Era como se fosse mais<br />

uma criança na casa. Admirávamo-lo,<br />

em parte, porque a<br />

minha avó tinha-nos ensinado a<br />

respeitar o talento, a inteligência.<br />

Quando nasceu a minha irmã<br />

Nora, a minha mãe pediu-lhe<br />

que a levasse à pia baptismal.<br />

A José agradou-lhe muito a i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> ser padrinho.<br />

«Des<strong>de</strong> 1943, fui visto por<br />

muitos médicos peruanos… e<br />

dantes sofri muito <strong>de</strong> insónias e<br />

<strong>de</strong>pressões…» 8<br />

Depois <strong>de</strong> terminar o secundário,<br />

via pouco José María.<br />

Uma vez foi buscar-me ao diário<br />

La Crónica, on<strong>de</strong> eu trabalhava, e<br />

pediu-me os meus poemas. José<br />

Flores Araoz tinha-me publicado<br />

na revista Cultura Peruana e isso<br />

provocou-lhe curiosida<strong>de</strong>, por<br />

isso lhe levei um folheto ao seu

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