Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
VIDAS CONTADAS 54 55<br />
algum amigo ou parente, que<br />
queriam que nos conhecesse.<br />
Assim conheci Alliocha, filho<br />
dos seus amigos Ortiz Rescaniere.<br />
Tinham-lhe especial afeição, era<br />
um miúdo inquieto, vivaço. José<br />
María referia-se a ele na sua carta<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida, ao Reitor da Universida<strong>de</strong><br />
Agrária, como Alejandro<br />
Ortiz, seu discípulo muito<br />
querido. Certa tar<strong>de</strong>, um jovem<br />
alto, magro e narigudo veio buscá-los.<br />
Mãos nos bolsos do gabão,<br />
ar apressado e sorriso simpático.<br />
Era Sebastián Salazar Bondy que<br />
tinha regressado <strong>de</strong> Buenos Aires,<br />
após o seu divórcio <strong>de</strong> uma actriz<br />
argentina. Entrou para o grupo da<br />
Peña. Não imaginava que a minha<br />
irmã Alicia casaria mais tar<strong>de</strong><br />
com o seu primo-irmão; este<br />
noivado aproximou-nos como<br />
família nos meus anos <strong>de</strong> vida literária<br />
em Lima, e, sem me aperceber,<br />
interferi nos seus amores<br />
com a minha irmã mais nova,<br />
Marcela. (Depois <strong>de</strong> ter partilhado<br />
belos tempos na Lima<br />
crioula <strong>de</strong> então, afastámo-nos.<br />
Sendo um intelectual cada vez<br />
mais influente na <strong>cultura</strong> peruana<br />
da época, a sua inimiza<strong>de</strong> foi um<br />
dos maiores obstáculos na minha<br />
carreira, porque, digamos, her<strong>de</strong>i-a<br />
dos seus solidários discípulos<br />
que Lima chamava «as viúvas<br />
<strong>de</strong> Salazar Bondy».)<br />
Um dia, no mês <strong>de</strong> Outubro,<br />
na casa dos avós, prepararam<br />
as varandas para que chegassem<br />
os seus amigos toureiros<br />
que vinham ver passar a procissão<br />
do Senhor dos Milagres e atirar-lhe<br />
flores <strong>de</strong>sfolhadas enquanto<br />
o incenso se espalhava ao<br />
ritmo da música. Manolete entre<br />
eles, o próprio Dominguín e alguns<br />
outros jovens toureiros que<br />
faziam pegas na fazenda Huando<br />
on<strong>de</strong> vivia a minha tia Rebeca <strong>de</strong><br />
Simpson… Depois arranjaram<br />
uma casita <strong>de</strong> praia no porto <strong>de</strong><br />
Supe, a norte <strong>de</strong> Lima. Era, na<br />
época, um porto bonito e calmo,<br />
sem fábricas <strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> peixe.<br />
Para lá convidaram, ano após<br />
ano, os seus amigos da Peña e,<br />
após a temporada, comentavam<br />
com a minha avó os namoricos<br />
e os acontecimentos do Verão: o<br />
<strong>de</strong> Blanca Varela com Gody Szyszlo,<br />
ou Sebastián. O da minha<br />
exótica e sedutora prima Nita,<br />
que era a sua favorita. Uma vez<br />
«O que sou?<br />
Um homem civilizado<br />
que não <strong>de</strong>ixou<br />
<strong>de</strong> ser, na medula,<br />
um indígena do Peru;<br />
indígena, não índio.<br />
E assim caminhei<br />
pelas ruas <strong>de</strong> Paris<br />
e Roma, <strong>de</strong> Berlim<br />
e Buenos Aires…»<br />
visitei essa casa ou rancho,<br />
quando ainda não estava concluída;<br />
alguns quartos sem tecto,<br />
um pátio com vista para o mar,<br />
vasos por todos os lados, conchas<br />
incrustadas nas pare<strong>de</strong>s das casas-<br />
-<strong>de</strong>-banho e quadros <strong>de</strong> pintores<br />
indigenistas nas pare<strong>de</strong>s da sala <strong>de</strong><br />
jantar. Passaram em Supe verões<br />
inesquecíveis com os seus amigos<br />
pintores, poetas e músicos.<br />
«Ela (Celia), a sua irmã Alicia<br />
e os amigos comuns abri-<br />
ram-me as portas da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Lima, tornaram mais fácil a minha<br />
superficial entrada nela e,<br />
com o meu pai e os livros, o<br />
melhor entendimento do castelhano,<br />
a meta<strong>de</strong> do mundo. E<br />
também com Celia e Alicia começámos<br />
a quebrar o muro que<br />
encerrava Lima e a costa – a<br />
mente dos crioulos todo-po<strong>de</strong>rosos,<br />
colonos <strong>de</strong> uma mescla<br />
bastante in<strong>de</strong>finível <strong>de</strong> Espanha,<br />
França e Estados Unidos e dos<br />
colonos dos seus colonos…» 7 .<br />
Um dia, a minha avó referiu<br />
que José estava a terminar um livro<br />
e que não se podia entrar no<br />
seu quarto, nem tocar em nenhum<br />
papel.<br />
– Vai publicar um livro novo.<br />
A tua tia Alicia fez os <strong>de</strong>senhos,<br />
ou seja, as ilustrações.<br />
Sim, já sabia.Tinha visto Alicia<br />
diante do seu cavalete. Gostava<br />
<strong>de</strong> a ver pintar, mas importunava-a<br />
fazendo-lhe muitas perguntas<br />
que eu não sabia serem<br />
indiscretas, como, por exemplo,<br />
porque eram todos tão amáveis<br />
com os primos ricos. Outra pergunta<br />
irritou-a tanto que me <strong>de</strong>u<br />
com a paleta na cabeça. Saí disparada<br />
e ressentida. Por isso não<br />
contei à minha avó como eram<br />
os seus novos <strong>de</strong>senhos e muito<br />
menos os quadros que estava a<br />
pintar. Geralmente, lia-lhe as notas<br />
sobre as exposições e também<br />
o que era publicado a respeito <strong>de</strong><br />
José María. Eu não entendia<br />
gran<strong>de</strong> coisa, mas reconhecia um<br />
ou outro nome. A minha avozinha<br />
embevecia-se e enchia-se <strong>de</strong><br />
orgulho:<br />
– Lê isso <strong>de</strong> novo, como<br />
diz… excepcional, autêntico?<br />
Pouco <strong>de</strong>pois apareceu Yawar<br />
Fiesta. No dia em que chegaram<br />
alguns embrulhos, nem se podia<br />
caminhar. Alguns amigos, os<br />
meus outros tios e tias, os meus<br />
primos, estava tudo em alvoroço.