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Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

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à igreja, eles não acreditam nessas<br />

coisas.<br />

Suspirava, secava as lágrimas<br />

nos seus olhos vazios, com o seu<br />

lencito <strong>de</strong> cheiro a lima, que <strong>de</strong>pois<br />

escondia numa das mangas.<br />

Não me lembro <strong>de</strong> quem representou<br />

José, talvez Carlos Cueto<br />

Fernandini, naquele dia, entre as<br />

malas semifechadas, alguns parentes<br />

próximos, pouquíssimos<br />

amigos. Celia aprumava-se, vestida<br />

com um fato curto branco,<br />

saia-casaco, tricotado, estava<br />

muito linda. Alicia, emocionada<br />

e séria, preparava a partida. As<br />

duas irmãs inseparáveis iam separar-se<br />

pela primeira vez.<br />

José María, Celia e Alicia formaram<br />

uma tría<strong>de</strong> unida pelos<br />

seus i<strong>de</strong>ais e pelo trabalho.<br />

Emilia Barcia, amiga <strong>de</strong> Alicia,<br />

arranjou-lhe um trabalho num<br />

jardim-escola. O que Alicia fez<br />

daquelas activida<strong>de</strong>s com os pequenos,<br />

como artista que era, foi<br />

algo maravilhoso: o papel crepe<br />

em formas fantásticas, as cores<br />

brilhantes, os miúdos pareciam<br />

duen<strong>de</strong>s saídos <strong>de</strong> um conto enquanto<br />

dançavam evocando a<br />

Primavera no parque Neptuno.<br />

Durante pelo menos um quarto<br />

<strong>de</strong> século, a sua casa foi também<br />

pousada dos artistas populares<br />

que chegavam à gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>,<br />

vindos do alto dos An<strong>de</strong>s. A sua<br />

conjugação era fecunda e a época<br />

das suas mais profundas buscas e<br />

produções <strong>de</strong>u-se enquanto estiveram<br />

juntos. José escrevia sobre<br />

um mundo que Alicia pintava<br />

nos seus quadros e que Celita<br />

tornava real na colecção nascente.<br />

Celia apoiou e estimulou<br />

vivamente o marido, o escritor<br />

serrano que se impunha num<br />

meio tão classista e superficial<br />

como ten<strong>de</strong> a ser a socieda<strong>de</strong> limenha.<br />

As minhas tias conheciam<br />

esse ambiente e <strong>de</strong>safiaram-no<br />

constantemente à custa<br />

<strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sgostos dos avós,<br />

que as aprovavam em silêncio, e<br />

da censura <strong>de</strong> alguns parentes com<br />

vícios <strong>de</strong> aristocratas falidos.<br />

A tia e o seu escritor foram<br />

para a sua al<strong>de</strong>ia na serra. Às<br />

vezes chegavam cartas e fotos.<br />

Muito campo, sol, trigo, música:<br />

a essência pura daquilo <strong>de</strong> que<br />

gostavam. Viajavam para outras<br />

terras, o seu amigo Emilio Adolfo<br />

José escrevia sobre um<br />

mundo que Alicia<br />

pintava nos seus<br />

quadros e que Celita<br />

tornava real na<br />

colecção nascente.<br />

Celia apoiou e<br />

estimulou vivamente o<br />

seu marido, o escritor<br />

serrano que se<br />

impunha num meio tão<br />

classicista e superficial<br />

como ten<strong>de</strong> a ser a<br />

socieda<strong>de</strong> limenha.<br />

Westphalen juntou-se-lhes numa<br />

viagem, com Celia e José abraçados,<br />

ao sol. Uma fotografia<br />

fixou-os a todos, felizes, em fato-<br />

-<strong>de</strong>-banho.Algum tempo <strong>de</strong>pois,<br />

«o casal», como lhes chamava a<br />

minha avó, regressou <strong>de</strong> visita.<br />

Foi nessa altura que conheci José<br />

María. Era um homem muito<br />

simples, mo<strong>de</strong>sto, doce. Reconheci<br />

nele os amigos <strong>de</strong> província<br />

das serras on<strong>de</strong> tínhamos crescido.<br />

O seu ar infantil convidava-<br />

-nos à brinca<strong>de</strong>ira, aos contos.<br />

Revelou-se muito curioso: queria<br />

saber das nossas histórias, o que<br />

tínhamos conhecido, escutado,<br />

aprendido, comido, brincado; o<br />

que os índios <strong>de</strong>ssas povoações<br />

nos contavam pelas tar<strong>de</strong>s.<br />

Recor<strong>de</strong>i o sabor <strong>de</strong>stas divertidas<br />

conversas, vários anos<br />

<strong>de</strong>pois, quando tive nas minhas<br />

mãos Canciones y cuentos <strong>de</strong>l pueblo<br />

quechua (1947), uma colecção <strong>de</strong><br />

tradições, mitos e lendas que recolheu<br />

junto das alunas do colégio<br />

on<strong>de</strong> eu estudava e <strong>de</strong> outros<br />

lugares do país. Celia e José instalaram-se<br />

em casa dos meus<br />

avós. Trabalhavam muito e nem<br />

sempre era permitido brincar<br />

com ele. O quarto <strong>de</strong>les era, para<br />

mim, um lugar fantástico. Repleto<br />

<strong>de</strong> objectos <strong>de</strong> arte popular<br />

peruana e mexicana, <strong>de</strong> sacolas,<br />

chullos 3 , quenas 4 , llicllas 5 , um charango 6 ,<br />

uma guitarra, papéis, uma máquina<br />

<strong>de</strong> escrever velha e ruidosa,<br />

na qual a minha tia Celia teclava.<br />

Era uma mistura <strong>de</strong> atelier e<br />

«quarto on<strong>de</strong> se vive». José escrevia<br />

à mão. Tinha uma mão<br />

aleijada. Ouvi que, em criança, tivera<br />

uma madrasta muito má que<br />

o maltratava. Supus que teria algo<br />

a ver com os seus <strong>de</strong>dos encolhidos,<br />

o que me dava muita pena.<br />

José María conversava muito<br />

com a minha avó, na penumbra<br />

da sala <strong>de</strong> jantar; eu observava-os<br />

através do biombo, numa tar<strong>de</strong><br />

sombria <strong>de</strong> Inverno limenho que<br />

me apertava o coração com algo<br />

parecido ao medo. Da minha<br />

ca<strong>de</strong>irinha <strong>de</strong> vime via que estavam<br />

juntos, à cabeceira da mesa,<br />

como se ele estivesse a fazer<br />

queixa das suas penúrias <strong>de</strong><br />

criança. A avó abanava a cabeça,<br />

fazia-lhe perguntas, tacteava-lhe<br />

a mão.<br />

Quando ele estava a trabalhar,<br />

não <strong>de</strong>víamos entrar no seu quarto.<br />

Às vezes chamavam-nos para<br />

cumprimentarmos, rapidamente,

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