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Revista Atlântica de cultura ibero-americanat

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VIDAS CONTADAS 52 53<br />

O meu pai tinha viajado para<br />

o Norte do Peru para tentar a<br />

sorte. Regressou a Lima em<br />

1939, com vários filhos e pouca<br />

fortuna. Vínhamos com gran<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> conhecer os avós, tios,<br />

primos, cujas imagens e nomes<br />

meu pai tinha mantido vivos,<br />

para mim, em histórias fantásticas.<br />

À luz do can<strong>de</strong>eiro a petróleo,<br />

na distante fazenda piurana<br />

<strong>de</strong> Parihuanás, escutávamos os seus<br />

relatos sobre os nossos tetravós,<br />

bisavós, avós, <strong>de</strong> vários lugares do<br />

Sul do Peru e do Norte do Chile.<br />

Relatos sobre as figuras mais<br />

próximas das suas irmãs mais<br />

novas,Alicia e Celia – que se apresentavam<br />

na minha imaginação<br />

infantil como duas mulheres<br />

extraordinárias.A voz do meu pai<br />

enchia-se <strong>de</strong> carinho e admiração<br />

ao recordá-las. Chegámos, por<br />

fim, a Callao, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> três dias<br />

<strong>de</strong> viagem por mar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Paita,<br />

Piura, no barco «Rainha do Pacífico».<br />

A minha mãe viajava com<br />

seis filhos, o mais novo com dois<br />

anos, e todos enjoámos.A «nossa<br />

família» foi receber-nos ao porto.<br />

Senti para sempre uma gran<strong>de</strong><br />

admiração por Alicia e Celia. Não<br />

eram como as outras pessoas:<br />

pareciam unidas por um laço especial<br />

<strong>de</strong> força, uma paixão que,<br />

animando-as, lhes concedia singularida<strong>de</strong><br />

e beleza. Mais tar<strong>de</strong><br />

compreendi que essa paixão incluía<br />

o seu i<strong>de</strong>al político e o seu<br />

trabalho a favor dos indígenas do<br />

Peru. Viajavam constantemente<br />

pelos povoados da costa e das<br />

serras reunindo objectos <strong>de</strong> arte<br />

popular que mais tar<strong>de</strong> formariam<br />

a sua famosa colecção <strong>de</strong><br />

«Arte Popular Peruana» 1 .<br />

Nutriam um amor violento<br />

pelo Peru, em <strong>de</strong>fesa do nativo e<br />

pelo reconhecimento dos artistas<br />

populares que constantemente<br />

ajudavam. Era inevitável que conhecessem<br />

José María Arguedas<br />

quando ele chegou a Lima. Alguém<br />

o levou a esse centro peruanista,<br />

indigenista, a «Peña Pancho<br />

Fierro» que elas tinham fundado<br />

(1938?) e que funcionava num recanto<br />

da Praceta San Agustín.<br />

Àquele local afluíram,durante mais<br />

<strong>de</strong> vinte anos, artistas, intelectuais<br />

peruanos e estrangeiros que visitavam<br />

Lima,constituindo a vanguarda<br />

da vida <strong>cultura</strong>l peruana 2 .<br />

Era inevitável que<br />

conhecessem José<br />

María Arguedas<br />

quando ele chegou a<br />

Lima. Alguém o levou<br />

a esse centro peruanista,<br />

indigenista,<br />

a «Peña Pancho Fierro»<br />

que elas tinham<br />

fundado (1938?)<br />

e que<br />

funcionava num<br />

recanto da Praceta<br />

San Agustín.<br />

José María enamorou-se da<br />

bela arequipenha A<strong>de</strong>lita Montesinos,<br />

com a qual me cruzei na<br />

minha adolescência inquieta e<br />

que me contou da sua rivalida<strong>de</strong><br />

com Celia pelo amor <strong>de</strong> José<br />

María com quem se ia casar. José<br />

María enamorou-se <strong>de</strong> Celia, com<br />

quem casou em 1939, uma data<br />

que não recordo mas que <strong>de</strong>ixou<br />

algumas imagens na minha<br />

memória.<br />

Os meus avós, Josefina Vernal<br />

y Luza (nascida em Iquique) e<br />

Carlos Bustamante y Gandarillas,<br />

arequipenho, viviam no segundo<br />

andar <strong>de</strong> uma casa colonial, na<br />

Rua Mariquitas, 336, no centro<br />

antigo <strong>de</strong> Lima. Havia mais gente<br />

que <strong>de</strong> costume, nós os Bustamante<br />

e Moscoso estávamos <strong>de</strong><br />

regresso a Lima e vivíamos em<br />

casa dos avós. A avó estava cega<br />

havia vários anos, Celia era a sua<br />

filha mais nova e a mais querida.<br />

Nesse dia, a avó <strong>de</strong>sejava saber<br />

tudo o que se passava à sua volta:<br />

como estava vestida Celita, que<br />

horas eram, quem ia e vinha. Sabia<br />

que a sua filha iria viajar para<br />

a serra após a cerimónia. Eu tinha<br />

aprendido a ler muito cedo e tinha-me<br />

convertido em sua «leitora<br />

e acompanhante». Desejosa<br />

<strong>de</strong> falar, a avó contava-me longas<br />

histórias da sua infância em<br />

Iquique e, <strong>de</strong>pois, da sua vida <strong>de</strong><br />

colegial na Europa, recordações<br />

<strong>de</strong> um mundo que tinha <strong>de</strong>saparecido.<br />

Falava a uma criança,<br />

como falamos a quem esperamos<br />

que esqueça. Celita, dizia-me, casava-se<br />

com um escritor que falava<br />

quechúa e que escrevia misturando<br />

o castelhano com a língua<br />

nativa. Um rapaz inteligente<br />

que tinha encontrado um posto<br />

<strong>de</strong> professor num povoado perto<br />

<strong>de</strong> Cuzco que se chamava Sicuani.<br />

Para lá levaria a minha tia<br />

Celia <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> se casarem. Que<br />

pena não terem dinheiro. E <strong>de</strong>ixava<br />

resvalar algumas lágrimas<br />

na sua obscurida<strong>de</strong>.<br />

– Chama-me «Dona Josefina,<br />

a ceguinha»; quem me <strong>de</strong>ra po<strong>de</strong>r<br />

vê-lo! Bom rapaz. Um escritor,<br />

é pena que vão trabalhar para<br />

tão longe, mas assim são os artistas…<br />

Algo mais a <strong>de</strong>ixava triste:<br />

– José não estará aqui. Casaram-se<br />

por procuração, enten<strong>de</strong>s?<br />

– Não, avó.<br />

– Outra pessoa representará<br />

o noivo. Além do mais, não vão

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