Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
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Arcádia, como resposta necessária<br />
<strong>de</strong> um momento histórico<br />
flutuante e instável, que procurava<br />
referentes ou argumentos para<br />
salvaguardar a hesitante utopia<br />
republicana. Emergia assim para<br />
a literatura a cida<strong>de</strong> do passado,<br />
quase invisível em pleno século<br />
XX, mas, em todo o caso, idiossincrasia<br />
da Lima mo<strong>de</strong>rna.<br />
Sobre essa cida<strong>de</strong> invisível que<br />
Palma converteu em mito fundador<br />
<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, meditava<br />
Julio Ramón Ribeyro no artigo<br />
que <strong>de</strong>dicou ao narrador tradicionista,<br />
intitulado «Gracias,<br />
viejo socarrón». Ali, Ribeyro<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u que a existência <strong>de</strong><br />
Lima como cida<strong>de</strong> histórica, tal<br />
como se concebe no imaginário<br />
<strong>cultura</strong>l, se <strong>de</strong>via indiscutivelmente<br />
à obra <strong>de</strong> Ricardo Palma:<br />
«O nosso passado seria para nós<br />
terreno baldio, <strong>de</strong>sertificação e<br />
silêncio, não fossem as centenas<br />
<strong>de</strong> Tradiciones que este “cocabichinhos”<br />
escreveu no <strong>de</strong>curso<br />
da sua longa vida.» 2<br />
A influência da obra <strong>de</strong><br />
Palma na literatura que posteriormente<br />
alimentou o mito<br />
arcádico do passado, e que se<br />
<strong>de</strong>u em chamar literatura passadista,<br />
intensificou-se fundamentalmente<br />
após a <strong>de</strong>molidora<br />
Guerra do Pacífico, que aboliu as<br />
esperanças e confirmou a frustração<br />
da «promessa» republicana.<br />
Só uns anos antes, em 1870,<br />
tinham-se <strong>de</strong>struído as muralhas<br />
simbólicas que até ao momento<br />
enclausuravam a consciência <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento urbano. O <strong>de</strong>saparecimento<br />
dos intolerantes<br />
muros, símbolos do obscurantismo<br />
e do centralismo, parecia<br />
confirmar o advento <strong>de</strong>finitivo<br />
da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> urbana – que se<br />
viu truncada após a guerra – e<br />
predizia a iminência <strong>de</strong> uma<br />
futura abertura ao mundo andino.<br />
No entanto, a incorporação<br />
da serra no espaço alienante da<br />
cida<strong>de</strong> tardaria umas décadas a<br />
efectuar-se.<br />
Foi assim que, nos alvores<br />
do século XX, surgiu uma nova<br />
geração <strong>de</strong> escritores, os filhos da<br />
Guerra do Pacífico, que evitaram<br />
a problemática nacional para nos<br />
oferecer essa versão «passadista»<br />
da cida<strong>de</strong>, impregnada <strong>de</strong> nostalgia<br />
e melancolia, gerando, <strong>de</strong><br />
uma forma muito clara, a versão<br />
i<strong>de</strong>alizadora <strong>de</strong> Lima como Arcádia<br />
colonial. Entre eles, José Gál-<br />
EMERGIA ASSIM<br />
PARA A LITERATURA<br />
A CIDADE<br />
DO PASSADO,<br />
QUASE INVISÍVEL<br />
EM PLENO<br />
SÉCULO XX,<br />
MAS EM TODO O CASO<br />
IDIOSSINCRASIA<br />
DA LIMA<br />
MODERNA.<br />
vez escreveu a citada Una Lima que<br />
se va (1921) 3 ; e Luis Alayza, em Mi<br />
país (4.ª serie: ciuda<strong>de</strong>s, valles y playas <strong>de</strong><br />
la costa <strong>de</strong>l Perú), recordou a construção<br />
das muralhas com as<br />
quais o duque <strong>de</strong> la Palata quis<br />
proteger Lima dos piratas que<br />
assediavam as costas – «Noutros<br />
tempos, as muralhas foram sítios<br />
<strong>de</strong> recreio aristocrático e, muitas<br />
vezes, <strong>de</strong> aventuras românticas»<br />
– para logo <strong>de</strong>screver, uma vez<br />
<strong>de</strong>struídas, «a interminável colina<br />
<strong>de</strong> lixeiras em que se chegou a<br />
converter a <strong>de</strong>fesa da “Ciudad <strong>de</strong><br />
los Reyes”» 4 . Esta é a incipiente<br />
«barriada» cujas consequências<br />
dramáticas se encontram analisadas<br />
em algumas obras dos escritores<br />
da <strong>de</strong>nominada geração <strong>de</strong><br />
50.<br />
A opulenta Ciudad <strong>de</strong> los<br />
Reyes, enriquecida graças ao<br />
centralismo que a manteve isolada<br />
da realida<strong>de</strong> andina da qual se<br />
nutria, assistiria por fim à nacionalização<br />
do seu espaço. O processo<br />
da literatura peruana mitificou<br />
um passado quimérico <strong>de</strong><br />
paz e felicida<strong>de</strong>, nas obras que<br />
registam a <strong>de</strong>sintegração da Lima<br />
vice-reinal – Enrique A. Carrillo<br />
«Cabotín», Gastón Roger, José<br />
Gálvez, etc. –; o mesmo passado<br />
que Manuel González Prada,<br />
José Carlos Mariátegui e Sebastián<br />
Salazar Bondy <strong>de</strong>nunciaram<br />
como causa directa da sobrevivência<br />
do sistema <strong>de</strong> classes e<br />
dos problemas globais do país.<br />
Em meados do século, a transformação<br />
urbana impôs uma fisionomia<br />
totalmente renovada da<br />
cida<strong>de</strong>, enclausurou a já cambaleante<br />
exclusivida<strong>de</strong> limenha e<br />
incorporou no seu espaço a imagem<br />
fervorosa do país real.<br />
Esta nova realida<strong>de</strong> foi traçada<br />
pelos escritores neo-realistas<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 50, através <strong>de</strong> uma<br />
perspectiva crítica e analítica das<br />
aceleradas transformações urbanas<br />
ocorridas durante estas décadas.<br />
A dissolução do hortus clausum<br />
vice-reinal era já <strong>de</strong>finitiva na<br />
realida<strong>de</strong> da cida<strong>de</strong>, mas, na literatura,<br />
o seu próprio processo<br />
sobreviveu, gerando uma tradição<br />
urbana concreta: o discurso<br />
literário que dramatiza as<br />
mudanças e impõe o contraste<br />
com o presente. Este discurso já<br />
se encontrava nas Tradiciones <strong>de</strong>