Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
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CIDADES INVISÍVEIS 42<br />
não se faria esperar, e a prematura<br />
morte <strong>de</strong> Val<strong>de</strong>lomar não lhe<br />
permitiu comprovar como a sua<br />
frase mudaria radicalmente <strong>de</strong><br />
significado em muito pouco<br />
tempo, dado que a evolução da<br />
cida<strong>de</strong>, durante a primeira meta<strong>de</strong><br />
do século XX, converteria a citada<br />
sentença num paradoxo histórico:<br />
Lima continuou a ser o<br />
Peru, mas já não num sentido <strong>de</strong><br />
centralismo exclusivista e <strong>de</strong><br />
elite, senão o oposto, na perspectiva<br />
da «peruanização» da sua<br />
socieda<strong>de</strong>, resultante da avalanche<br />
migratória das províncias, a<br />
partir da década <strong>de</strong> trinta.<br />
Des<strong>de</strong> o princípio do século,<br />
a Lima vice-reinal tinha começado<br />
a <strong>de</strong>svanecer-se num passado<br />
quase inverosímil, pelo contraste<br />
radical que impôs a transformação<br />
urbana. A constatação <strong>de</strong>sta<br />
profunda mudança teve uma<br />
imagem concreta e real no espaço<br />
da cida<strong>de</strong> e, ao mesmo tempo,<br />
numa construção literária <strong>de</strong>senvolvida<br />
por uma série <strong>de</strong> autores,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> finais do século XIX. No<br />
ano <strong>de</strong> 1870, «o mandato das<br />
mutações» chegava à aristocrática<br />
Ciudad <strong>de</strong> los Reyes com o objectivo<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>struir o símbolo principal<br />
do seu inabalável elitismo: as<br />
muralhas construídas pelo duque<br />
<strong>de</strong> la Palata. A <strong>de</strong>molição dos<br />
velhos muros marcou um ponto<br />
<strong>de</strong> inflexão transcen<strong>de</strong>ntal na<br />
evolução da cida<strong>de</strong> que abriu as<br />
suas portas à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, mas<br />
também ao Peru na sua globalida<strong>de</strong>.<br />
Foi assim que, no século<br />
XX, Lima transformou radicalmente<br />
as suas faces para adquirir<br />
um rosto peruano e, nesse processo,<br />
o divórcio secular do Centro<br />
com o resto do país, que escondia<br />
o drama dos <strong>de</strong>spojados por<br />
<strong>de</strong>trás dos cumes dos An<strong>de</strong>s, e<br />
que se revelou no espaço que<br />
transpunha os limites da cida<strong>de</strong><br />
mo<strong>de</strong>rna. Paralelamente, a <strong>de</strong>sa-<br />
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justada transformação nacional<br />
gerou a <strong>de</strong>cadência física e espiritual<br />
da urbe <strong>de</strong>spoetizada: a<br />
«Ciudad <strong>de</strong> la Gracia», como a<br />
apelidara Ruben Darío, cobria-se<br />
<strong>de</strong> cinzento para <strong>de</strong>svanecer-se<br />
no idêntico e impessoal <strong>de</strong> uma<br />
problemática mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>.<br />
Contudo, o lirismo daquele<br />
«horto fechado» que foi a Lima<br />
do passado não cairia no esquecimento:<br />
a literatura encarregar-<br />
-se-ia <strong>de</strong> resgatá-lo quando, <strong>de</strong>pois<br />
do caos revolucionário da in<strong>de</strong>-<br />
NO SÉCULO XX,<br />
LIMA TRANSFORMOU<br />
RADICALMENTE<br />
AS SUAS FACES<br />
PARA ADQUIRIR<br />
UM ROSTO PERUANO<br />
E, NESSE PROCESSO,<br />
O DIVÓRCIO SECULAR<br />
DO CENTRO<br />
COM O RESTO DO PAÍS.<br />
pendência, surgiu a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> recuperar a memória histórica<br />
como forma iniludível <strong>de</strong> incluí-<br />
-la no presente para olhar para o<br />
futuro. Neste âmbito, a recuperação<br />
do passado na literatura<br />
peruana concretiza-se, fundamentalmente,<br />
numa tradição literária<br />
urbana que tem a sua origem nos<br />
finais do século XX, na obra <strong>de</strong><br />
Ricardo Palma. Nas suas Tradiciones<br />
Peruanas, o escritor construiu a<br />
cida<strong>de</strong> mítica da colónia, inaugurando<br />
um discurso evocativo<br />
cujas reminiscências, todavia, se<br />
sentiram em meados do século<br />
XX, na obra literária <strong>de</strong> Julio<br />
Ramón Ribeyro, que assumiu o<br />
<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> criar a geografia literária<br />
da Lima mo<strong>de</strong>rna. Entre<br />
Palma e Ribeyro, a história da<br />
capital na literatura do Peru<br />
<strong>de</strong>senvolveu-se através <strong>de</strong> uma<br />
tradição concreta: a construção<br />
literária <strong>de</strong> «una Lima que se<br />
va», título da obra <strong>de</strong> José Gálvez<br />
na qual este cronista, recorrendo<br />
à semente arraigada nas Tradiciones<br />
Peruanas, consolidou uma literatura<br />
urbana baseada nas recuperações<br />
do passado.<br />
Mas retornemos à origem,<br />
as «tradiciones» palmianas, um<br />
género que, através da inédita<br />
fusão entre história, lenda e literatura,<br />
<strong>de</strong>u lugar a várias séries<br />
<strong>de</strong> relatos nos quais a cida<strong>de</strong><br />
vice-reinal revivia os seus faustos.<br />
Nas Tradiciones, os limenhos<br />
da urbe republicana, saturados<br />
<strong>de</strong> história entre a real e a<br />
inventada, podiam <strong>de</strong>scobrir em<br />
cada rua da sua cida<strong>de</strong> uma<br />
anedota do tradicionista, <strong>de</strong><br />
forma que o hortus clausum vice-<br />
-reinal, em processo <strong>de</strong> extinção,<br />
se impregnou <strong>de</strong> história e <strong>de</strong><br />
lenda, integrando-se <strong>de</strong>cididamente<br />
na consciência republicana<br />
da segunda meta<strong>de</strong> do<br />
século XIX.<br />
Através da visão intra-histórica<br />
do anedotário social e político<br />
dos séculos anteriores, e do<br />
trabalho <strong>de</strong> recuperação da literatura<br />
colonial, Palma restituiu a<br />
consciência histórica que havia<br />
eliminado, num primeiro momento,<br />
o fervor da In<strong>de</strong>pendência.<br />
No problemático ambiente republicano,<br />
esta afirmação das raízes<br />
parecia necessária e <strong>de</strong>la se <strong>de</strong>duz<br />
uma mitificação da cida<strong>de</strong> como