Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Revista Atlântica de cultura ibero-americanat
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
TRAVESSIAS 28 29<br />
8. A MULHER APETITOSA<br />
[ESCREVE AO PADRE]<br />
Querido bartolomeu,<br />
Soube que estás <strong>de</strong> mala feita para um estranho barco e que tudo isso supostamente<br />
é segredo.<br />
O meu corpo também sabe <strong>de</strong> tudo isso, e o que te digo é que não há distância,<br />
nem haverá, que me perturbe neste ritmo <strong>de</strong> encontro ao que for, e há-<strong>de</strong> ser, inevitável.<br />
Nunca te escondi isto, e on<strong>de</strong> cabe um padre cabe uma mulher: se fugires, fujo<br />
contigo.<br />
A verda<strong>de</strong> é que mais cedo ou mais tar<strong>de</strong> hás-<strong>de</strong> fazer amor comigo. Por favor,<br />
digo eu: não faças essa cara, nada disto é uma ameaça. É, tu sabes, uma simples<br />
promessa.<br />
Beijos,<br />
Margarida-em-flor.<br />
LISTA PARCIAL DA CARGA DO EUZEBEL (9)<br />
Água do rio São Francisco (dois tonéis); quarenta quilos <strong>de</strong><br />
polvilho doce e azedo, mais <strong>de</strong>z rodas <strong>de</strong> queijo curado (para o<br />
pão <strong>de</strong> queijo a bordo); vinte quilos <strong>de</strong> fubá (para broas a bordo);<br />
vinte litros <strong>de</strong> caninha alambicada em socavões <strong>de</strong> Minas (para alegrias<br />
a bordo); <strong>de</strong>z quilos <strong>de</strong> carne <strong>de</strong> sol proce<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Curvelo<br />
(para assados a bordo); pimentas várias e diversas; feijão roxo e<br />
feijão preto; farinha <strong>de</strong> milho e farinha <strong>de</strong> mandioca; linguiça<br />
<strong>de</strong>fumada; maquineta <strong>de</strong> gelo movida a querosene; duas gela<strong>de</strong>iras<br />
para a conservação das frutas e dos legumes e das hortaliças;<br />
uma sanfona e uma viola <strong>de</strong> <strong>de</strong>z cordas; dois tambores; um baú<br />
para guardar palavras novas; lunetas <strong>de</strong> olhar para fora e lunetas <strong>de</strong><br />
olhar para <strong>de</strong>ntro; binóculos <strong>de</strong> ver estrelas; um bacamarte propulsor<br />
<strong>de</strong> fogos-<strong>de</strong>-artifício; anzóis e caniços; dois livros <strong>de</strong> Ana<br />
Paula Tavares; um <strong>de</strong> Camões e outro <strong>de</strong> Gregório <strong>de</strong> Matos; um <strong>de</strong><br />
Guimarães Rosa e outro <strong>de</strong> Luandino Vieira; ramos <strong>de</strong> alecrim e <strong>de</strong><br />
hortelã; um dicionário dos passarinhos <strong>de</strong> Minas e um dicionário<br />
dos passarinhos <strong>de</strong> Luanda; apitos para chamar sereias; vozes gravadas:<br />
<strong>de</strong> sabiás, bem-te-vis, curiós e pintassilgos.<br />
9. DE MÃOS, DE ESTRELAS<br />
[DOS PENSARES DE UM DOS NARRADORES]<br />
No fundo, o que as pessoas e o barco faziam era esperar, em<br />
acumulação e sabedoria, uma boa hora para partir. Alguém no<br />
meio dos já chegados sabia, evi<strong>de</strong>ntemente, o que se iria passar,<br />
sem incluir nesta previsão os ventos, as correntes, as refeições e os<br />
barcos com que se cruzariam. Havia um <strong>de</strong>stino a cumprir, e era<br />
uma viagem. No céu as estrelas estavam prontas, na «praia da chicala»<br />
as mãos estavam salgadas.<br />
E esperaram.