A mosca e o ladrão Ondjaki FICÇÕES 110 111 Ilustração <strong>de</strong> Maria <strong>de</strong> Lour<strong>de</strong>s Carrasquinho Gomes
Uma mosca lânguida dançava. O som chegava libertino do mar – como um vento adocicado. A mosca exercitava movimentos concisos, rápidos, frenéticos. Transe ou passe <strong>de</strong>sajeitado. O seu corpo obe<strong>de</strong>cia a uma melodia ou a uma interferência magnética não perceptível. Mas que dançava a mosca, dançava. As nuvens embalavam a madrugada. A brisa fraca trazia em si restos <strong>de</strong> sal, e memórias, e sorrisos <strong>de</strong> vidro que a todo momento se podiam quebrar. Talvez o amor seja isso: restos <strong>de</strong> vidro e belas cicatrizes. Ele dormia no quarto. O aquário dormia na sala. Os peixes não. Uma <strong>de</strong>stas noites…, dizia-lhe eu às vezes. Ele dormia, sob o mosquiteiro encarnado. Quero que me ofereças um mosquiteiro, mas que seja encarnado. Distingui com niti<strong>de</strong>z os passos do ladrão na cozinha. Calculei até o seu peso. Afligia-me não <strong>de</strong>tectar nenhum odor. Pousou o que fosse um saco ou uma mochila pequena. Foi acumulando objectos. Talvez a minha colher preferida. O meu prato fundo trazido da Argélia com os seus <strong>de</strong>senhos finos, feitos à mão, lembrando estrelas no céu <strong>de</strong> um <strong>de</strong>serto frio. As minhas chávenas <strong>de</strong> todos os cafés tomados. Tudo o que or<strong>de</strong>nava a minha escuridão numa pauta <strong>de</strong> gestos quotidianos. A minha escuridão. A escuridão da sala. Era uma janela enorme. Cabiam nela a madrugada e a mosca. A mosca era, como outras, pequena. Outrora, o amor tinha sido enorme. Do tamanho <strong>de</strong> uma obsessão. Uma <strong>de</strong>stas noites tudo vai mudar. Ele dormia sob a paz encarnada do mosquiteiro. Deslocou-se, o ladrão, da cozinha para a sala. Sem hesitação. A mosca parou a sua dança. Viu-me. Compreen<strong>de</strong> que, não o tendo visto, eu já sabia da sua presença. Não tendo gritado, já não o faria. O ladrão não podia gritar. Pousou a mochila no chão, em gesto <strong>de</strong> entrega. Olhou a sala, o armário <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. Tocou os livros como se soubesse <strong>de</strong>les. Olhou a mulher na sala. Era eu. Viu a janela. A mosca ainda lá estava. A madrugada também. Trazia nos pés um par <strong>de</strong> sandálias dotadas <strong>de</strong> uma simplicida<strong>de</strong> comovedora, e os pés limpos, e nem aproximando-se pu<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o seu odor. Talvez algum resto <strong>de</strong> incenso. Talvez ma<strong>de</strong>ira já esculpida. O que leva <strong>de</strong>sta casa que não encontrou nas outras? O ladrão sentou-se no sofá comigo. Mas não chegou perto. Comida. Cruzou as pernas como se não tivesse pressa. Eu olhava alternadamente o ladrão e a mosca. Ele dormia lá <strong>de</strong>ntro, no quarto. A janela acolhia a mosca. Também tem os livros <strong>de</strong> poesia reunida, isso poupar-lhe-á algum trabalho. Leve pelo menos a poesia oriental e a brasileira. Ele ace<strong>de</strong>u com a cabeça. Fechou os olhos, respirando fundo, libertando-se não tanto do cansaço, mas <strong>de</strong> uma espécie <strong>de</strong> futuro. Olhou <strong>de</strong> novo para mim. O ladrão emanava uma certa culpa. Atrapalhado por não ter mais que dizer, sentia cada oferta como um dardo doloroso. Leve-me consigo, ladrão. Não posso.Vou para muito longe. Era esse o meu <strong>de</strong>sejo. Levantou-se. Alcançou os dois livros <strong>de</strong> poesia reunida. Levo uma vida já ocupada. Mulher e dois filhos. Não me leve a mal. Esten<strong>de</strong>u-me a mão.Tocaram-se os corpos. Era mão não <strong>de</strong> homem mas <strong>de</strong> pessoa. Trazia nela, confirmei, um cansaço para além das activida<strong>de</strong>s diurnas ou das coisas materiais. E, nessa proximida<strong>de</strong>, constatei, não possuía odor algum. A mosca voltou aos seus movimentos <strong>de</strong>sajeitados. No seu bailado havia algo <strong>de</strong> caos organizado. Contudo, o tempo <strong>de</strong> exposição da dança não me permitiria <strong>de</strong>tectar um padrão. O corpo do ladrão obe<strong>de</strong>cia a uma melodia <strong>de</strong> retirada que não sofreria nenhuma interferência feminina. A madrugada continha em si restos <strong>de</strong> sal, e sorrisos, e memórias <strong>de</strong> vidro que a todo momento se podiam quebrar. Talvez o passado seja somente uma bela cicatriz. Regressei ao quarto. Havia um mosquiteiro. Era encarnado. No mosquiteiro, havia uma fresta aberta. Ninguém dormia na cama. Não houve, nunca, um homem adormecido na minha cama. Difícil é aceitar lembranças: sei <strong>de</strong> um ladrão que não liberta odor algum. E nunca tinha visto uma mosca dançar.
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